11. Unidade e variedade na história cultural (PETER BURKE)
231
Atravessamos hoje um período da chamada "virada cultural" no estudo da humanidade e sociedade. "Estudos culturais" florescem agora em muitas instituições educacionais, sobretudo no mundo de língua inglesa.1 Muitos estudiosos que há mais ou menos uma década se descreviam como críticos literários, historiadores da arte ou historiadores da ciência hoje preferem definir-se como historiadores culturais, trabalhando em "cultura visual", "a cultura da ciência" e assim por diante. "Cientistas" políticos e historiadores políticos pesquisam "cultura política", enquanto economistas e historiadores econômicos desviaram a atenção da produção para o consumo, e assim para desejos e necessidades moldados em termos culturais. Na verdade, na GrãBretanha contemporânea e em outras partes, a "cultura" se tornou um termo cotidiano que as pessoas comuns utilizam quando falam de sua comunidade ou estilo de vida.2 Apesar disso, a história cultural ainda não está estabelecida de maneira muito sólida, pelo menos no sentido institucional. Pensando bem, não é fácil responder à pergunta: que é cultura? Parece ser tão difícil definir o termo quanto prescindir dele.
Como vimos no Capítulo 1, muitas variedades de "história cultural" vêm sendo praticadas em diferentes partes do mundo desde fins do século XVIII, quando se cunhou originalmente o termo na Alemanha (p. 14). Nos últimos anos, a história cultural se fragmentou ainda mais que antes. A disciplina da história está se dividindo em cada vez mais subdisciplinas, e
1 Hall (1980); Turner (1990); Storey (1996).
2 Baumann (1996), 4, 34.
233
a maioria dos estudiosos prefere contribuir para a história de "setores" como ciência, arte,
literatura, educação ou a própria historiografia, em vez de escrever
sobre culturas totais. De qualquer modo, a natureza, ou pelo menos a definição de história
cultural, é cada vez mais questionada,
O momento parece propício para fazer um balanço e tentar estabelecer um equilíbrio.
Começo aqui com um breve relato da história cultural tradicional, passo
para a chamada "nova" história cultural, definida em contraste com a tradição, e termino
discutindo o que se faz hoje, se devemos optar pela nova, retornar à antiga
ou tentar fazer algum tipo de síntese. Devo dizer de uma vez por todas que não reivindico
qualquer competência na totalidade desse enorme "campo". Como outros historiadores,
minha tendência é trabalhar em um determinado período (séculos XVI e XVII) e em uma
região específica (Europa Ocidental, sobretudo a Itália), como terão mostrado
os estudos de caso detalhados nos primeiros capítulos. Neste final, contudo, vou transpor
esses limites disciplinares espaciais e temporais, na tentativa de ver
a história cultural (apesar de suas divisões internas) como um todo.
HISTÓRIA CULTURAL CLÁSSICA E SUAS CRíTICAS
Em meados do século XIX, quando Matthew Arnold fazia suas palestras sobre "Cultura e
anarquia", e jacob Burckhardt escrevia sua Kultur der Renaissance in Italien,
a idéia de cultura parecia praticamente prescindir de explicações. A situação não era muito
diferente em 1926, quando Johan Huizinga fez sua famosa palestra, em
Utrecht, sobre "A tarefa da história cultural".
Para os três historiadores, "cultura" significava arte, literatura e idéias "suaves e
leves", como a descreveu Arnold, ou, na formulação mais precisa, embora
mais prosaica, de Huizinga, "figuras, motivos,
234
temas, símbolos e sentimentos".3 A literatura, idéias, símbolos, sentimentos, e assim por
diante, eram em essência os encontrados na tradição ocidental, dos gregos
em diante, entre as elites com acesso à educação formal. Em suma, cultura era algo que as
sociedades tinham (ou, mais exatamente, que alguns grupos em algumas sociedades
tinham), embora faltasse a outros.
Trata-se da concepção de cultura de "teatro de ópera", como foi rotulada por um
antropólogo americano.4 Essa concepção é subjacente ao que se pode chamar
de variedade "clássica" da história cultural, no duplo sentido de que enfatiza os clássicos,
ou o câncine, de grandes obras e também fundamenta muitos clássicos
históricos, em particular Renaissance (1860), de Jacob Burckhardt, e Waning of the MiMe
Ages (1919), de Johan Huizinga. O estudo de Huizinga é de muitas maneiras
uma tentativa tanto de imitar quanto de superar o de Burckhardt. A diferença entre essas
obras e estudos especializados de história da arte, literatura, filosofia,
música e outros é sua generalidade, o interesse por todas as artes e a relação de umas com
as outras e com o "espírito do tempo".
Os estudos de Burckhardt e Huizinga - para não mencionar outras destacadas obras
dos mesmos autores - são livros maravilhosos de grandes historiadores. Os
dois escritores têm o dom de evocar o passado e também mostrar relações entre diferentes
atividades. Apesar disso, eu diria que sua abordagem não pode ou não deve
ser o modelo para a história cultural de hoje, porque não consegue lidar de maneira
satisfatória com algumas dificuldades. Os próprios Burckhardt e Huizinga, ao
contrário de seus seguidores, tinham pelo menos vez por outra consciência dessas
dificuldades, embora na maior parte do tempo o que praticassem fosse a abordagem
clássica. Essa tradição clássica da história cultural expõe-se a pelo menos cinco objeções
serias.
3 Huizinga (1929); cf. Gilbert (1990), 46-80.
4 Wagner (1975), 21.
235
1) Paira no ar, no sentido de ignorar a sociedade (ou pelo menos dar pouca ênfase a ela) - a
infra-estrutura econômica, a estrutura política e social e assim por
diante. O próprio Burckhardt admitiu na velhice que seu livro não dedicara a devida
atenção aos fundamentos econômicos do Renascimento, e Huizinga discutiu a tardia
preocupação medieval com a morte sem relacioná-la às pestes que assolaram a Europa de
1348 em diante. Essa crítica geral foi enfatizada pelos primeiros estudiosos
a criticar o modelo clássico, os marxistas, ou mais exatamente aquela fração dos marxistas
que levavam a cultura a sério.
Nas décadas de 1940 e 1950, três refugiados da Europa central na Inglaterra, Frederick
Antal, Francis Mingender e Arnold Hauser, apresentaram uma história
cultural alternativa, uma "história social" da arte e literatura.5 Nas décadas de 1950 e 1960,
os estudos sobre cultura e sociedade de Raymond Williams, Edward Thompson
e outros continuaram ou refizeram essa tradição.6 Thompson, por exemplo, criticou a
localização da cultura popular no que chamou de "ar rarefeito" dos sentidos,
atitudes e valores, e tentou situá-la "em seu próprio contexto material", "um ambiente
funcional de exploração e resistência à exploração".7
A história cultural alternativa apresentada nessa tradição teve muito a dizer sobre a
relação do que Marx chamou de "superestrutura" cultural com sua "base"
econômica, embora Thompson e Williams fossem ou se tornassem desfavoráveis a essa
metáfora.8 Também demonstraram preocupação com o que sociólogos como Max Weber
chamaram de "mensageiros" de cultura. Consideravam a cultura um sistema de mensagens
em que é importante identificar "quem diz o que a quem". Uma visão, a propósito,
que não se limitava nem se limita aos marxistas.
5 Antal (1947); Klingender (1947); Hauser (1951). 6 Williams (1958, 1961); Thompson
(1963). 7 Thompson (1991), 7. 8 Williams (1977).
236
Na antropologia social, por exemplo, os defensores do que se conhece como "teoria
padrão" da cultura, uma abordagem morfológica não diferente da (digamos)
de Huizinga, foram criticados pelos defensores de uma teoria da cultura funcional. Um dos
líderes da escola funcional, Bronislaw Malinowski, tomou o exemplo de um
bastão que se poderia usar para escavar, impulsionar, andar ou lutar. "Em cada caso desses
usos específicos, o bastão é encaixado em um contexto cultural diferente;
isto é, empregado para diferentes usos, cercado por diferentes idéias, dotado de diferente
valor cultural e, como regra geral, designado por um diferente nome. "9
2) Uma segunda crítica importante à história cultural é sua dependência do postulado de
unidade ou consenso cultural. Alguns escritores tradicionais gostavam de
usar o termo hegeliano "espírito do tempo", Zeitgeist, mas, mesmo quando não se usava
essa expressão, a suposição essencial permanecia. Assim Burckhardt escreveu
sobre "a cultura do Renascimento", enquanto Huizinga certa vez aconselhou os
historiadores a procurarem "a qualidade que une todos os produtos culturais de um período
e os torna homogêneos".10 De maneira semelhante, Paul Hazard intitulou The Crisis of the
European Mind (1935) seu estudo sobre os intelectuais de fins do século
XVII, e Perry Miller chamou sua história das idéias acadêmicas harvardianas ou
aproximadas de The New England Mind (1939). Arnold Toynbee tomou a idéia de unidade
em termos ainda mais literais quando organizou seu comparativo Study of History (1934-
61) em torno de 26 "civilizações" distintas. A mesma idéia ou suposição fundamenta
(na verdade, escora) os maciços volumes de Declínio do Ocidente (1918-22), de Oswald
Spengler.
O problema é que esse postulado de unidade cultural é extremamente difícil de
justificar, Mais uma vez, foram os marxistas que tomaram a liderança em criticá-lo.
Thompson,
9 MalinoWski (1931); cf. Singer (1968).
10 Huizinga (1929), 76.
237
por exemplo, observou que "o próprio termo 'cultura', com sua confortável evocação de
consenso, pode servir para desviar a atenção das contradições sociais e culturais".11
Empregou-se o mesmo argumento contra os antropólogos que trabalhavam na tradição de
Émile Durkheim. De modo bastante irônico, críticas semelhantes foram dirígidas
por Ernst Gombrich contra o historiador marxista Arnold Hauser, assim como contra
Burckhardt, Huizinga e o historiador de arte Erwin Panofsky pelo que ele chama
de suposição hegeliana de um "espírito do tempo" (p. 36), brilhantemente ilustrada no
elegante ensaio de Panofsky, Gothic ArcNtecture and Scholasticism (1951).12
O problema é que esse consenso ou homogeneidade cultural é muito difícil de
solucionar. O movimento que chamamos de Renascimento, por exemplo, ocorreu
na cultura de elite, e não é provável que tenha sensibilizado a maioria camponesa da
população. Mesmo na elite, havia nessa época divisões culturais. A arte gótica
tradicional, assim como o novo estilo renascentista, continuou a atrair patronos. Antal
chegou mesmo a afirmar que a arte ricamente detalhada e decorativa de Gentile
da Fabriano expressava a visão de mundo da nobreza feudal, enquanto a mais simples e
realista de Masaccio manifestava a da burguesia florentina. Esse contraste entre
dois estilos e duas classes é muito simples, mas a questão da existência de distinções na
cultura das classes superiores na Florença do século XV merece ser levada
a sério.
De maneira semelhante, a cultura popular no início da Europa moderna, por exemplo,
não apenas variava de uma região para outra, mas também assumia diferentes
formas em cidades e aldeias, ou entre mulheres e homens. Mesmo a cultura de um
indivíduo talvez esteja longe de ser homogênea. As classes superiores na Europa moderna
podem ser descritas como "biculturais", no sentido de que participavam plena-
11 Thompson (1991),6. 12 Gombrich (1969).
238
mente da cultura popular, além de ter uma cultura própria que as pessoas comuns não
partilhavam.13 Mais uma vez, no Japão do século XIX, alguns homens da classe
superior, pelo menos, começaram a viver o que se chamou de "vida dupla", ao mesmo
tempo ocidental e tradicional, consumindo dois tipos de comida, usando dois tipos
de roupas, tendo dois tipos de livros e assim por diante. 14
3) Uma idéia essencial na história cultural clássica, extraída da Igreja, é a de "tradição",
sendo a idéia básica de transmitir objetos, práticas e valores de geração
para geração. O oposto complementar de tradição era a idéia de "recepção", a recepção da
lei romana, por exemplo, ou a do Renascimento fora da Itália. Em todos esses
casos, a suposição generalizada era de que o que se recebia era o mesmo que fora dado:
uma "herança" ou "legado" cultural (como nos títulos de uma outrora famosa
série de estudos O legado da Grécia, O legado de Roma, e assim por diante).
Essa suposição foi solapada pelo alemão Aby Warburg e seus seguidores (pioneiros na
década de 1920 dos "estudos culturais" interdisciplinares, ou Kulturwissenschaffi,
em uma série de notáveis monografias sobre a tradição clássica na Idade Média e no
Renascimento. Observaram, por exemplo, que os deuses pagãos só "sobreviveram"
até os tempos medievais ao preço de algumas admiráveis transformações. Mercúrio, por
exemplo, era às vezes representado como um anjo e com mais freqüência como um
bispo.15 Warburg interessou-se, em particular, por elementos da tradição que chamou de
"esquemas" ou "fórmulas", sejam visuais ou verbais, que persistiam com o passar
dos séculos, embora seus usos e aplicações variassem. 16 A identificação de estereótipos,
fórmulas, lugares-comuns e temas recorrentes em textos, imagens e apresentações
e o estu-
13 Burke (1978), 23-64.
14 Witte (1928); Seidensticker (1983).
15 Warburg (1932); Seznec (1940).
16 Warburg (1932), vol. 1, 3-58, 195-200.
239
do de sua transformação se tornaram parte importante da prática da história cultural, como
testemunha a recente obra sobre memória e viagem discutida anteriormente
(Capítulos 3 e 6).
A tradição, como disse um especialista em índia antiga, está sujeita a um conflito
interno entre os princípios transmitidos de uma geração a outra e as situações
modificadas às quais devem ser aplicados.17 Colocar a questão de outra maneira, seguir a
tradição ao pé da letra, provavelmente significa divergir de seu espírito.
Não surpreende que - como no caso dos discípulos de Confúcio (digamos), ou Lutero, os
seguidores tantas vezes divirjam dos fundadores. A fachada de tradição talvez
mascare a inovação.18 Como já vimos, pode-se levantar essa questão sobre a própria
historiografia. Ranke não era nem um pouco mais rankiano, ou Burckhardt burckhardtiano,
do que Marx marxista.
A idéia de tradição foi submetida a uma crítica ainda mais devastadora por Eric
Hobsbawm, que afirma que várias práticas que consideramos muito antigas
foram, na verdade, inventadas há não muito tempo, muitas delas (no caso da Europa) entre
1870 e 1914, em resposta à mudança social e às necessidades de Estados nacionais
cada vez mais centralizados. 19 Pode-se sugerir
que a distinção entre tradições inventadas e "genuínas" de Hobsbawm é demasiado aguda.
Certa medida de adaptação consciente ou inconsciente às novas circunstâncias
é uma característica constante da transmissão de tradição, como demonstra, de maneira
mais drástica que a maioria, o exemplo da África ocidental de Goody (p. 87).
Apesar disso, o desafio de Hobsbawm aos historiadores culturais exige uma resposta.
Em vista dessas ambigüidades, pode-se perguntar se os historiadores não se sairiam
melhor se abandonassem por completo a idéia de tradição. Em minha opinião,
é praticamente impossível escrever história cultural sem tradição, contudo está
17 Hcesterman (1985), 10-25.
18 Schwartz (1959).
19 Hobsbawm e Ranger (1983), 263-307.
240
mais do que na hora de se abandonar o que se pode chamar de noção tradicional de
tradição, modificando-a para levar em consideração a adaptação, assim como o
reconhecimento,
e recorrendo às idéias da teoria da "recepção", discutidas abaixo.
4) Uma quarta crítica à história cultural clássica é que a idéia de cultura implícita, nessa
abordagem, é estreita demais. Em primeiro lugar, equipara cultura com
alta cultura. Na última geração, em particular, os historiadores fizeram muito para
restabelecer o equilíbrio e recuperar a história da cultura das pessoas comuns.
Contudo, mesmo os estudos sobre cultura popular tratam muitas vezes a cultura como uma
série de "obras", como exemplos de "Canção folclórica", "arte popular" e assim
por diante. Por outro lado, os antropólogos têm tradicionalmente usado o termo "cultura" de
forma muito mais generalizada, para referir-se a atitudes e valores de
uma determinada sociedade e sua expressão e personificação em "representações coletivas"
(como dizia Durkheim) ou "práticas", termo que passou a ser associado a
teóricos sociais recentes, como Pierre Bourdieu e Michel de Certeau. Ex-críticos literários,
como Raymond Williams e Richard Hoggart, que fundaram os "estudos culturais"
britânicos, se deslocaram na mesma direção, dos textos literários para textos populares e de
textos populares para estilos de vida.
5) Também se pode criticar a tradição clássica da história cultural com base em que ela não
é mais apropriada ou adequada para nossa época. Embora o passado não
mude, a história precisa ser reescrita a cada geração, para que o passado continue a ser
inteligível para um presente modificado. A história cultural foi escrita
pelas elites européias a respeito de si mesmas. Hoje, por outro lado, o apelo da história
cultural é mais amplo e diversificado, em termos geográficos e sociais.
Em alguns países, associa-se esse apelo cada vez maior ao surgimento de cursos
multidisciplinares sob a égide de "estudos Culturais".
A história cultural clássica enfatizava um cânone de grandes obras na tradição
européia, mas os historiadores culturais de fins do século XX trabalham em
uma era de descanonização. A
241
crítica bem divulgada do chamado "cânone" de grandes livros nos Estados Unidos e as
"guerras decorrentes" são apenas parte do que se rotulou "multiculturalismo".20
Ocidentais cultos, assim como intelectuais do Terceiro Mundo, sentem-se cada vez menos à
vontade com a idéia de uma única "grande tradição" com um monopólio de
legitimidade cultural. Não nos é mais possível identificar "cultura" com nossas próprias
tradições.
Vivemos em uma era de generalizado desconforto, se não de rejeição, à chamada
"grande narrativa" do desenvolvimento da cultura ocidental - os gregos, os
romanos, o Renascimento, as Descobertas, a Revolução Científica, o Iluminísmo e assim
por diante, uma narrativa que pode ser usada para legitimar direitos à superioridade
por parte das elites ocidentais.21
Há desconforto semelhante com a idéia de um cânone literário, intelectual ou artístico, ou
pelo menos com a seleção específica de textos ou imagens que eram apresentados
como "os" Grandes Livros, Mestres Clássicos ou Antigos. Hoje, o processo de
"canonização" e os conflitos sociais subjacentes se tornaram objeto de estudo de
historiadores
culturais, porém mais pela luz que projeta sobre idéias e suposições dos canonizadores do
que dos canonizados.22
O que deve ser feito? Para declarar minha própria opinião sobre uma questão cujo
consenso parece, na melhor das hipóteses, remoto, e na pior, impossível,
não devemos abandonar o estudo do Renascimento e de outros movimentos na "alta"
cultura do Ocidente, que ainda tem muito a oferecer a muitas pessoas hoje, apesar
da distância cultural cada vez maior entre as idéias e afirmações de fins do século XX e as
dos públicos originais. Na verdade, eu gostaria de opinar que os cursos
de "estudos culturais" se enriqueceriam muito se abrissem espaço para movimentos desse
tipo junto com a cultura popular
20 Bakhtin (1993).
21 Lyotard (1979); ???Bou~a (1990), 348-65.
22 Gorak (1991); Javitch (1991).
242
da época. Contudo, os historiadores deveriam escrever sobre movimentos de uma maneira
que reconheça o valor de outras tradições culturais em vez de encará-los como
barbarismo ou ausência de cultura.
HISTÓRIA ANTROPOLóGICA
Os leitores talvez estejam se perguntando se a moral das críticas relacionadas acima é o
abandono total de toda a história cultural. Talvez por isso o movimento
de estudos culturais - apesar do exemplo de um de seus líderes, Raymond Williams - tenha
dedicado tão pouca atenção à história (outro motivo pode ser a posição marginal
da história cultural na Grã-Bretanha). Mas também se pode afirmar que a história cultural
se tornou ainda mais necessária do que nunca em nossa era de fragmentação,
especialização e relativismo. Provavelmente, é por isso que especialistas em outras
disciplinas, da crítica literária à sociologia, se têm voltado para essa direção.
Parece que estamos passando por uma redescoberta da importância dos símbolos na
história, assim como pelo que costumava ser chamado de "antropologia simbólica".
Outra reação às críticas pode ser a prática de um diferente tipo de história cultural.
Como vimos, muitos historiadores e críticos marxistas tentaram fazer
isso. já se mencionou a obra de Hauser, Antal, Thompson, Hobsbawm e Williams, e não
seria difícil alongar a lista para incluir Georg Lukács, Lucien Goldmann e outros.
Pode-se descrever a obra desses indivíduos como um estilo alternativo de história cultural.
Mas continua a existir estranheza em relação à idéia de uma tradição
de história cultural marxista. Seguir Marx era em geral afirmar que a cultura era
simplesmente a "superestrutura", a cobertura de açúcar no bolo da história. Os
marxistas interessados na história da cultura ficavam em uma posição marginal que os
deixava expostos a ataques dos dois lados, dos colegas marxistas e dos colegas
historiadores da cultura. A acolhida a The Making of the English
243
Working Class, de Edward Thompson, exemplifica esse ponto com suficiente clareza.
Um novo estilo de história cultural, quer o chamemos de segundo ou terceiro estilo,
surgiu de fato na última geração, graças, em parte, a ex-marxistas, ou
pelo menos a estudiosos que outrora consideraram atraentes alguns aspectos do marxismo.
Essa abordagem é às vezes chamada de "nova história cultural".23
Como a novidade
é um bem logo diminuído, talvez fosse mais sensato descrever o novo estilo de outra
maneira. Uma possibilidade é falar em variedade de história "antropológica",
pois muitos de seus praticantes (o presente autor entre eles) confessariam que aprenderam
demais com os antropólogos. Também aprenderam muito com os críticos literários,
como os "novos historicistas" nos Estados Unidos, que adaptaram seus métodos de "leitura
rigorosa" ao estudo de textos não-literários, como documentos oficiais,
e na verdade ao estudo de "textos" entre aspas, dos rituais às imagens.24 Pensando bem,
alguns antropólogos aprenderam com os críticos literários, e vice-versa.
A semiótica, estudo de sinais de todos os tipos, de poemas e pinturas a comida e roupas, foi
projeto conjunto de estudiosos de língua e literatura, como Roman jakobson
e Roland Barthes, e antropólogos como Claude LéviStrauss. Seu interesse por estruturas de
sentido imutáveis "profundas" diminuiu o apelo (para falar em termos mais
brandos) para os historiadores, sobretudo a princípio, mas no decorrer da última geração,
aproximadamente, a contribuição da semiótica para a renovação da história
cultural (a idéia de uma sala ou uma refeição como um sistema de símbolos, a consciência
de oposições e inversões, e assim por diante) foi se tornando cada vez mais
visível.
Apesar das complexas origens do movimento, "história antropológica" talvez seja um
rótulo conveniente para ela. É bastante claro que essa história - como
todo estilo de história - é produto de nossa época, neste caso uma época de choques
culturais, multiculturalis-
23 Hunt (1989); cf. Chartier (1988).
24 Greenblatt (1988a, 1988b).
244
mo e assim por diante. Por isso mesmo tem algo a oferecer ao estudo do presente, assim
como do passado, considerando-se as recentes tendências da perspectiva a longo
prazo.
Aby Warburg e Johan Huizínga já haviam se interessado pela antropologia no início do
século, mas hoje sua influência entre os historiadores é muito mais
penetrante do que na sua época. Um grupo substancial de estudiosos atuais considera o
passado como um país estrangeiro e, como fazem os antropólogos, julgam sua
tarefa interpretar a língua das culturas "deles", em termos literais e metafóricos. Foi o
antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard que concebeu sua disciplina
como uma espécie de tradução de conceitos da cultura que era estudada para os da cultura
de quem a estudava.25 Para empregar a distinção hoje famosa feita pelo antropólogo
lingüista Kenneth Pike, é necessario mover-se para a frente e para trás entre o vocabulário
"êtnico" (pertencente a uma unidade significativa que funciona em contraste
com outras unidades em uma língua ou outro sistema de comportamento) dos nativos de
uma cultura, os íntimos, e os conceitos "éticos", daqueles que a estudam.
A história cultural também é uma tradução cultural da linguagem do passado para a do
presente, dos conceitos da época estudada para os de historiadores e
seus leitores. Seu objetivo é tornar a "alteridade" do passado ao mesmo tempo visível e
inteligível.26 Isso não significa que os historiadores devem tratar o passado
como completamente estranho. Os perigos de tratar outras culturas dessa forma Já foram
mostrados com muita clareza em debates sobre "orientalismo", em outras palavras,
a visão (ou visões) ocidental do Oriente (ou orientais).27
Em vez de pensar em termos de uma oposição binária entre Eu e o Outro, como
fizeram tantas vezes os participantes de encontros cul-
25 Beidelinan (1971); Lowenthal (1985); Pilson (1993).
26 Damton (1984),4; Pallares-Burke (1996).
27 Said (1978).
245
turais, talvez seja mais esclarecedor tentar pensar em termos de níveis de distância cultural.
Poderíamos tentar adquirir uma visão dupla, ver as pessoas no passado
como diferentes de nós (para evitar a atribuição anacrônica de nossos valores a elas), mas
ao mesmo tempo como iguais a nós em sua humanidade fundamental.
As diferenças entre o modelo antropológico de história cultural corrente e seus
antecessores, clássicos e marxistas, poderiam ser resumidas em quatro observações.
A. Em primeiro lugar, abandonou-se o tradicional contraste entre sociedades com
cultura e sem cultura. O declínio do Império Romano, por exemplo, não deve
ser considerado a derrota da "cultura" pelo "barbarismo", mas um choque de culturas. Os
ostrogodos, visigodos, vândalos e outros grupos tinham suas próprias culturas
(valores, tradições, práticas, representações e assim por diante). Por mais paradoxal que
possa parecer a expressão, houve uma "Civilização dos bárbaros". A suposição
baseada nesse terceiro modelo é um relativismo cultural tão estranho para os marxistas
quanto teria sido para Burckhardt e Huizinga. Como os antropólogos, os novos
historiadores culturais falam em "culturas" no plural. Não pressupõem que todas as culturas
sejam iguais em todos os aspectos, mas se abstêm de juizos de valor sobre
a superioridade de algumas em relação a outras, julgamentos feitos inevitavelmente do
ponto de vista da própria cultura do historiador, e que atuam como tantos obstáculos
à compreensão.
B. Em segundo lugar, tem-se redefinido cultura, no sentido malinowskiano, como se
abrangesse "artefatos herdados, bens, processos técnicos, idéias, hábitos
e valores", ou geertziano, como "as dimensões simbólicas da ação social".28 Em outras
palavras, estendeu-se o sentido do termo para abranger uma variedade muito
mais ampla de atividades do que antes - não apenas a arte, mas a cultura material,
28 Malinowski (1931), 621; Geertz (1973), 30.
246
não apenas o escrito, mas o oral, não apenas o drama, mas o ritual, não apenas a filosofia,
mas as mentalidades das pessoas comuns. A vida cotidiana ou a "cultura
cotidiana" é fundamental para essa abordagem, sobretudo as "regras" ou convenções
subjacentes à vida cotidiana, o que Bourdieu chama de "teoria da prática" e o semiólogo
Jury Lotman, "poética do comportamento cotidiano".29 É claro que o processo de aprender
como ser um monge medieval, uma nobre do Renascimento ou um camponês do século
XIX envolvia mais do que regras internalizadas. Como sugere Bourdieu, o processo de
aprendizagem inclui um padrão mais flexível de respostas a situações que como
os filósofos escolásticos - ele chama de "habitus".30 Portanto, talvez fosse mais correto
usar o termo "princípio" em vez de "regra".
Nesse sentido mais amplo, invoca-se agora a cultura para compreender as mudanças
econômicas ou políticas que antes se analisavam de maneira mais estreita,
interna. Um historiador do declínio do desempenho econômico britânico entre 1850 e 1980,
por exemplo, o explicou "pelo declínio do espírito industrial" associado
ao afidalgamento de industriais e por fim à revolução (ou, como a chama o autor, "contrarevolução")
de valores.31 De sua parte, os historiadores políticos utilizam
cada vez mais a idéia de "cultura política" para referir-se a atitudes, valores e práticas
transmitidos como parte do processo de "socializar" crianças e admitidos
como certos daí em diante.
Um impressionante exemplo nessa direção é o falecido F. S. L. Lyons, um historiador
político que intitulou seu último livro Culture and Anarchy in Ireland
1890-1939. O objetivo da forçada referência a Matthew Arnold foi a convicção de Lyons de
que só se pode entender a política irlandesa naquele período levando em
conta "o fato de que pelo menos quatro culturas, durante os últimos três séculos, se
29 Bourdieu (1972); Lotman (1984); Frvkman e ???L6fgren (1996).
30 Bourdieu (1972), 78-87.
31 Wiener (1981).
247
vêm empurrando umas às outras na ilha". A dominante cultura inglesa coexistia e se
chocava com as culturas galesa, protestante de Uíster e anglo-irlandesa.32
C. Em terceiro lugar, à idéia de "tradição", essencial à antiga história cultural, juntouse
um grupo de opções. Uma delas é o conceito de "reprodução" cultural,
lançado na década de 1970 pelos teóricos Louis Althusser e Pierre Bourdieu.33 Uma
vantagem desse conceito é sugerir que as tradições não persistem automaticamente,
por inercia. Ao contrário, como nos lembra a história da educação, é necessário um grande
esforço para transmiti-las de geração a geração. A desvantagem do termo
é que a idéia de "reprodução" sugere uma cópia exata ou mesmo mecânica, uma sugestão
que a história da educação está longe de confirmar.34 A idéia de reprodução,
como a idéia de tradição, necessita de um contrapeso, como a idéia de recepção.
Os chamados "teóricos da recepção", entre os quais incluo o jesuíta antropólogohistoriador
Michel de Certeau, substituíram a tradicional suposição de recepção
passiva pela nova de adaptação criativa. Afirmam que "a característica essencial da
transmissão cultural é que tudo o que se transmite muda".35 Adaptando a doutrina
de alguns padres da igreja, que recomendavam aos cristãos que "saqueassem" a cultura
pagã da mesma maneira que os israelitas saquearam os tesouros dos egípcios,
esses teóricos enfatizam não a transmissão, mas a "apropriação". Como os filósofos
escolásticos medievais, afirmam que "tudo é recebido, e recebido segundo a maneira
do recebedor" ("Quidquid recipitur, ad modum recipientis recipitur").36 A posição deles
pressupõe uma crítica à semiótica, ou mais exatamente uma historicização
da semiótica, pois nega a possibilidade de encontrar sentidos fixos nos artefatos culturais.
32 Lyons (1979).
33 Althusser (1971); Bourdieu e Passeron (1970).
34 Williams (1981), 181-205.
35 Dresden (1975), 119ff.
36 Jauss (1974); Certeau (1980); cf. Ricoeur (1981), 182-93.
248
Em suma, a ênfase transferiu-se do doador para o receptor, com base em que o que é
recebido é sempre diferente do que foi originalmente transmitido, porque
os receptores, de maneira consciente ou inconsciente, interpretam e adaptam as idéias,
costumes, imagens e tudo o que lhes é oferecido. A história cultural do Japão,
por exemplo, oferece muitos exemplos do que se costumava chamar de "imitação",
primeiro da China e mais recentemente do Ocidente. Essa imitação muitas vezes é tão
criativa que um termo mais adequado para isso poderia ser "tradução cultural". Assim, o
budismo Ch'an foi traduzido para Zen, e o romance ocidental domesticado por
Natsume Soseki, que afirmava ter escrito uma de suas histórias "à maneira de um haicai".
Pode-se ligar a idéia de recepção à dos esquemas, definida mais como uma estrutura
mental do que no sentido dado por Warburg, de um topos visual ou verbal.
Um esquema pode moldar as atitudes para com o novo, como no caso dos viajantes
britânicos estudado no Capítulo 6. O esquema, nesse sentido, às vezes é descrito como
uma "grade", uma tela ou filtro, que permite a entrada de novos elementos mas exclui
outros, assegurando desse modo que as mensagens recebidas sejam em alguns aspectos
diferentes das mensagens originalmente enviadas.37
D. A quarta e última questão é o inverso das suposições sobre a relação entre cultura e
sociedade implícita na crítica marxista da história cultural clássica.
Tanto os historiadores culturais clássicos quanto os teóricos culturais clássicos têm reagido
contra a idéia da "superestrutura". Muitos deles acreditam que a cultura
consegue resistir às pressões SOCiais, ou mesmo que molda a realidade social. Daí o
interesse cada vez maior pela história das "representações", e em particular
pela história da "construção", "invenção" ou "constituição" do que costumava, em geral, ser
considerado "fatos" sociais, como classe social, nação ou gênero. Vários
livros recentes trazem a palavra
37 Foucault (1971), 11; Ginzburg (1976).
249
"inventar" no título, seja relacionada à invenção da Argentina, da Escócia, dos povos, ou -
como vimos - da tradição.38
Associada ao interesse pela invenção está a história da imaginação coletiva,
Vimaginaire social, uma nova ênfase, embora não um novo tópico, que se cristalizou
na França, em parte como resposta à célebre crítica de Michel Foucault aos historiadores
pelo que ele chamou de idéia "empobrecida" do real que excluía o que era
imaginado. Essa abordagem foi na verdade lançada por dois estudos da Idade Média que
surgiram mais ou menos na mesma época, um tratando deste mundo e o outro do
seguinte - The Three Orders (1979), de Georges Duby, e Birth of Purgatory (1981), de
Jacques Le Goff. A história da imaginação desenvolveu-se a partir da história
das mentalidades, que discuti em ensaio de minha autoria intitulado "Forças e Fraquezas da
História das Mentalidades" em History of European Ideas 7.* Contudo,
seus praticantes dedicam mais atenção às fontes visuais, e também à influência dos
esquemas tradicionais sobre a percepção.
Historiadores já apresentavam estudos sobre a percepção na década de 1950: imagens
do Novo Mundo, por exemplo, como uma "terra virgem", ou do Brasil como
um paraíso terrestre, ou o sul do Pacífico como país natal de selvagens nobres e ignóbeis.39
Na verdade, Burckhardt e Huizinga já estavam conscientes de que essa
percepção tinha uma história. Burckhardt escreveu sobre o surgimento da visão do Estado
como "obra de arte", em outras palavras, como resultado de planejamento,
e Huizinga se interessou pela influência dos romances de cavalaria na percepção da
realidade social e política.40 Na época deles, contudo, consideravam-se os estudos
desse tipo desimportantes para as preocupações dos historiadores.
38 Hobsbawm e Ranger (1983); Morgan (1988); Pittock (1991); Shurnway (1991).
* Burke (1986), pp. 439-51. (N. do E.)
39 Smith (1950); Buarque de Holanda (1959); Smith (1960).
40 Burckhardt (1860), cap. 1; Huizinga (1919).
250
Hoje, por outro lado, o que antes era marginal se tornou essencial, e muitos dos
tópicos tradicionais têm sido reestudados desse ponto de vista. Benedict
Anderson, por exemplo, reescreveu a história da consciência nacional em termos do que
chama de "comunidades imaginadas", observando a influência da ficção, como
no caso do filipino José Rizal e seu romance Noli me tangere (1887).41 A continuação do
debate sobre o significado da Revolução Francesa, em particular, gira hoje
em
torno do lugar que ela ocupa na "imaginação política" francesa.42 Também se tem estudado
a história da feitiçaria e demonologia, como a história da imaginação coletiva,
desde o mito dos "sabás" à projeção de temores e desejos secretos em bodes expiatórios
individuaiS.43 Em suma, a fronteira entre "cultura" e "sociedade" foi redefinida,
e o império da cultura e da liberdade individual, expandido.
OS PROBLEMAS
Em que medida a nova história cultural é bem-sucedida? Em minha opinião, as abordagens
descritas acima têm sido necessárias. Não são apenas uma nova moda, mas respostas
a fraquezas palpáveis de paradigmas anteriores. Isto não quer dizer que todos os
historiadores culturais devam segui-las - é sem dúvida melhor que varios estilos
de historiadores coexistam do que apenas um conquiste o monopólio. De qualquer modo, as
reações contra o saber convencional têm sido levadas longe demais. Por exemplo,
a ênfase corrente na construção ou invenção da cultura exagera tanto a liberdade humana
quanto a visão mais antiga de cultura como "reflexão" da sociedade reduzia
essa liberdade. A invenção jamais está livre de coerções. A invenção
41 Anderson (1983), 26-29.
42 Furet (1984).
43 Cohn (1975); Ginzburg (1990); Muchembled (1990); Clark (1996).
251
ou sonho de um grupo pode ser a prisão de outro grupo. Na verdade, há momentos
revolucionários em que a liberdade de inventar está no nível máximo e tudo parece
possível, mas esses momentos são seguidos de uma -cristalização" cultural.
Como ocorre muitas vezes na história das disciplinas, para não mencionar na vida em
geral, a tentativa de solucionar alguns problemas suscitou outros pelo
menos igualmente intratáveis. Para destacar as dificuldades contínuas, talvez seja útil
salientar alguns dos pontos fracos de dois exemplos recentes muito famosos
dessas novas abordagens. Esses livros estão entre as mais brilhantes obras de história
cultural publicadas nas últimas duas ou três décadas. Por isso mesmo, como
nos casos de Burckhardt e Huizinga, vale a pena examinar suas fraquezas.
Em The Embarrassment of Riches (1987), um estudo da República Holandesa no
século XVII, Simon Schama recorre aos nomes de Émile Durkheim, Maurice Halbwachs
e Mary Douglas, e como esses antropólogos Schama se concentra nos valores sociais e sua
personificação na vida cotidiana. A República Holandesa era uma nova nação,
e ele se dedica à formação - se não à invenção - de uma nova identidade, expressa no
sentido dos holandeses que se encaram como um segundo Israel, um povo eleito
que se libertara do jugo do faraó espanhol. Sugere em seguida que a vida cotidiana era
influenciada, ou mesmo moldada, por essa nova identidade. Segundo Schama,
isso é o que explica o senso singularmente agudo de privacidade e domesticidade na
Holanda, assim como a limpeza esmerada das casas holandesas, comentada por tantos
viajantes estrangeiros. Eles mostravam ao mundo, e em especial à Holanda espanhola ou do
sul, que eram diferentes. Pela primeira vez, a limpeza obsessiva das donas-de-casa
holandesas é apresentada mais como parte da história holandesa do que citada de passagem,
como no passado, por historiadores em direção a assuntos mais sérios.
O ponto fraco desse livro, partilhado pela obra de Burckhardt e Huizinga, assim como
pela tradição antropológica durkheimiana, é sua ênfase na unidade cultural.
Schama rejeita visões que consideram
252
a cultura como "afloramento de classe social". Ao contrário de muitos dos novos
historiadores culturais, ele não passou por uma fase de comunhão com o marxismo.
Concentra-se no que os holandeses tinham em comum e pouco tem a dizer sobre os
contrastes e conflitos culturais entre regiões ou entre grupos religiosos e sociais.
Interpreta a obsessão com limpeza mais como um símbolo da condição holandesa do que
como uma tentativa das citadinas da classe média de diferenciar-se dos camponeses
ou de seus vizinhos urbanos mais pobres. Ainda assim, como mostra com abundante clareza
uma obra recente de uma equipe de historiadores holandeses, os contrastes
e conflitos entre os ricos e os pobres, urbanos e rurais e, não menos significativo, católicos
e protestantes foram importantes na história das chamadas "Províncias
Unidas" no século XVII.44 A presença de um partido "Orange" nas duas culturas não é a
única semelhança entre os holandeses do norte no século XVII e os irlandeses
do norte no XX.
O livro igualmente célebre de Carl Schorske trata da Viena em fins do século XIX, a
Viena de Arthur Schnitzler, Otto Wagner, Karl Lueger, Sigmund Freud,
Gustav Klimt, Hugo von Hofmannsthal e Arnold Schoenberg. Suas muitas intuições sobre a
obra de todos esses homens, nas diferentes artes que praticavam, e o meio
social deles terão de ser aqui ignorados para concentrarmos a atenção em um único
problema geral: a tensão entre unidade e variedade. Schorske tem muita consciência
da importância das subculturas na capital imperial poliglota, de diferentes grupos de
intelectuais e da fragmentação da cultura, "com que cada campo proclama independência
do todo, cada parte, por sua vez, desagregando-se em partes".45 De maneira semelhante,
seu próprio estudo é dividido em sete diferentes ensaios sobre diferentes
aspectos da cultura da Viena de fin du siècle - literatura, arquitetura, política, psicanálise,
pintura e musica.
44 Schama (1987); Bockhorst et al. (1992).
45 Schorske (1981), xxvi-xxix.
253
A fragmentação foi sem a menor dúvida uma escolha deliberada do autor. É pelo
menos simbolicamente adequada a um estudo do moderniSMO.46 Também responde
à preocupação do autor "em respeitar o desenvolvimento histórico de cada ramo
constituinte da cultura moderna (pensamento social, literatura, arquitetura etc.),
em vez de esconder a realidade pluralizada por trás de definições homogeneizadas".47 A
rejeição a afirmações fáceis sobre Zeitgeist e a disposição de levar o desenvolvimento
interno a sério é uma das muitas virtudes desse estudo.
Schorske também se interessa pela "coesão" dos diferentes "elementos culturais",
descritos em vários capítulos do livro, e sua relação com uma experiência
política partilhada, "a crise de uma polidez liberal". Na verdade, seu livro traz o subtítulo
"política e cultura". Por meio disso, ele tenta manter o equilíbrio
entre explicações "internalistas" e "externalistas" da mudança cultural. Na prática, contudo,
a política recebe um capítulo só seu, como a pintura e a música. Embora
se indiquem ligações, elas nem sempre são explicitadas, pelo menos extensamente. O
parágrafo final discute apenas Schoenberg e Kokoschka. O autor preferiu não escrever
um capítulo final que tentasse entrelaçar os fios. Tal opção merece ser respeitada, seja
ditada por modéstia, honestidade ou pelo desejo de deixar os leitores livres
para tirar suas próprias conclusões. Ao mesmo tempo, essa renúncia é, em certo aspecto,
uma fuga à responsabilidade. A raison d'être de um historiador cultural é
sem a menor dúvida revelar as ligações entre diferentes atividades. Se essa tarefa for
impossível, bem se poderia deixar a arquitetura aos historiadores da arquitetura,
a psicanálise aos historiadores da psicanálise, e assim por diante.
O problema essencial para os historiadores culturais hoje, pelo menos no meu
entender, é de que modo resistir à fragmentação sem retornar à suposição enganadora
da homogeneidade de determinada sociedade ou período. Em outras palavras, revelar uma
unidade
46 Cf. Roth (1994a); Roth (1994b), 34.
47 Schorske (1981), xix-xx.
254
subjacente (ou pelo menos ligações subjacentes) sem negar a diversidade do passado. Por
isso talvez seja útil chamar a atenção para um corpo de obras recentes e
destacadas sobre a história de encontros culturais.
O MODELO DE ENCONTRO
Nos últimos anos, os historiadores culturais têm se interessado cada vez mais por
encontros, e também por "choques", "conflitos", "competições" e "invasões" culturais,
sem esquecer ou minimizar os aspectos destrutivos desses contatos.48 De sua parte, os
historiadores da descoberta ou colonialismo começaram a examinar as conseqüências
culturais, além das sociais e políticas, da expansão européia.
Seria, é claro, insensato tratar esses encontros como se ocorressem entre duas culturas,
recuando a uma linguagem de homogeneidade cultural e tratando as
culturas como entidades objetivamente ligadas (os indivíduos às vezes têm um forte senso
de limites, mas na prática as fronteiras são atravessadas repetidas vezes).
A questão a ser aqui enfatizada é o interesse relativamente novo pela maneira como as
partes envolvidas percebiam, entendiam ou, na verdade, não entendiam umas às
outras. Mais de uma monografia recente enfatizou a tradução errônea e a "identidade mal
interpretada" entre conceitos em dois sistemas culturais, uma compreensão
equivocada que bem poderia ter favorecido o processo de coexistência. Um diálogo de
surdos continua sendo uma espécie de diálogo.49 Por exemplo, na África e em outras
partes, missionários cristãos muitas vezes acreditavam haver "convertido" a população
local, pois na visão deles a aceitação do ciumento Deus dos cristãos envolvia
necessariamente a rejeição de outras religiões. Por outro lado, como indicaram vários
africanistas,
48 Axtell (1985); Bitterh (1986); Lewis (1995).
49 Lockhart (1994), 219; MacGaffey (1994),259-60.
255
alguns convertidos talvez estivessem interessados em apropriar-se de determinadas técnicas
espirituais para incorporá-las ao sistema religioso local (p. 222). É
difícil dizer quem manipulava quem, mas é pelo menos claro que as diferentes partes do
encontro operavam com diferentes definições da situação.50
Em alguns livros admiraveis, antropólogos sociais tentaram reconstituir a "visão dos
vencidos", da maneira como os caribenhos percebiam Colombo, os astecas,
Cortéz, e os incas, Pizarro.51 O exemplo que originou a maioria dos debates diz respeito ao
encontro dos havaianos com o capitão Cook e seus marinheiros. O historiador
da arte Bernard Smith estudou as percepções européias do encontro seguindo as diretrizes
das histórias dos esquemas de Aby Warburg. O antropólogo Marshall Sahlins
depois tentou reconstituir as visões dos havaianos. Observou que Cook chegou na fase do
ano em que os havaianos esperavam seu deus Lono, e afirmou que sua chegada
foi percebida como uma epifania do deus, assimilando assim o extraordinário evento novo,
a chegada de estranhos, na ordem cultural. Contestou-se a afirmação, e o
debate persiste.52 De maneira semelhante, os sinólogos ocidentais, há muito interessados
em conhecer as maneiras como os missionários e diplomatas europeus percebiam
os chineses, começaram a pensar seriamente sobre a maneira como os chineses percebiam
os ocidentais.53 já se afirmou, por exemplo, que na China a Virgem Maria foi
assimilada à deusa da misericórdia nativa, Kuan Yin, enquanto no México a assimilaram
como a deusa Toriantân, originando assim a híbrida Madona de Guadalupe.54
Embora eu seja um historiador da Europa europeu, como deixam amplamente claro os
capítulos anteriores, citei esses exemplos da
50 Sunith (1960); Prins (1980); MacGaffey (1986),191-216; cf. Riton (1985).
51 Portilla (1959); Wachtel (1971); Hulrne (1987); Clendinnen (1992).
52 Smith (1960); Sahlins (1985); Obeyesekere (1992); Sahlins (1995).
53 Gernet (1982); Spence (1990).
54 Boxer (1975), cap. 4; Lafaye (1974).
256
Ásia, África, América e Austrália por dois motivos. Primeiro, uma das mais empolgantes
pesquisas correntes em história cultural se realiza nas fronteiras - fronteiras
do assunto, fronteiras européias. Segundo, esse trabalho nas fronteiras talvez sirva como
inspiração para o resto de nós. Se nenhuma cultura é uma ilha, nem mesmo
o Haiti ou a GrãBretanha, deve ser possível empregar o modelo de encontro para estudar a
história de nossa própria cultura, ou culturas, que devemos considerar variadas
em vez de homogêneas, múltiplas em vez de singulares. Portanto, os encontros e interações
precisam juntar-se às práticas e representações que Chartier descreveu
como os principais objetos da nova história cultural. Afinal, como observou recentemente
Edward Said: "A história de todas as culturas é a história do empréstimo
cultural."55
A história dos impérios oferece claros exemplos de interação cultural. O historiador
Arnaldo Momigliano escreveu um livro sobre os limites da helenização,
a interação entre gregos, romanos, celtas, judeus e persas dentro e fora do Império
Romano.56 Quando os chamados "bárbaros" invadiram aquele império, realizou-se
um processo de interação cultural que incluiu não apenas a romanização dos invasores mas
também o inverso, a "goticização" dos romanos. Em fins do período medieval
ou início do moderno, pode-se examinar dessa maneira a fronteira entre o Império Otomano
e o cristianismo.
Realizou-se, por exemplo, um estudo da interação religiosa - ou, segundo as palavras
do autor, "transferências" - em nível não-oficial, como as peregrinações
dos muçulmanos aos santuários de santos cristãos e vice-versa. Historiadores da arte
estudaram a cultura material comum à fronteira, por exemplo, o uso da cimitarra
turca por tropas polonesas. Historiadores da literatura já compararam os heróis épicos dos
dois lados da fronteira, o grego Digenis Acritas, por exemplo, e o turco
Dede Korkut. Em suma, a zona de fronteira, muçulma-
55 Said (1993), 261.
56 Mornigliano (1975).
257
na ou cristã, tinha muitas coisas em comum, em contraposição aos centros rivais de
Istambul e Viena.57
Pode-se fazer uma afirmação semelhante sobre a Espanha medieval. Da época de
Américo Castro, na década de 1940, em diante, alguns historiadores enfatizaram
a simbiose ou convivencia de judeus, cristãos e muçulmanos espanhóis, as trocas culturais
entre eles. Por exemplo, os eruditos judeus eram fluentes em poesia árabe.
Como na fronteira européia oriental, os guerreiros dos dois lados usavam equipamento
semelhante, e parece que tinham também valores semelhantes. A cultura material
dos "moçárabes" (cristãos sob o domínio muçulmano) e os "mudéjares" (muçulmanos sob o
domínio cristão) combinava elementos das duas tradições. Algumas igrejas católicas
(como algumas sinagogas) foram construídas no estilo muçulmano, com arcos em forma de
ferradura, telhas e decoração geométrica nas portas e tetos. Em geral, é impossível
dizer se a cerâmica e outros artefatos no estilo "hispano-mourisco" foram feitos por ou para
cristãos ou muçulmanos, pois o repertório de temas é comum.58
Também ocorreram trocas nos domínios da língua e literatura. Muitas pessoas eram
bilíngües. Algumas escreviam espanhol em caracteres árabes, e outras árabe
em alfabeto latino. Algumas pessoas usavam dois nomes, um espanhol e outro árabe, o que
sugere que tinham duas identidades. Romances de cavalaria escritos em estilo
semelhante eram populares nos dois lados das fronteiras religiosas (Capítulo 9). Alguns
poemas passavam do espanhol para o árabe num unico verso. "Que faray Mamma?
Meu Vbabib estad yanal" ("Que farei, mãe? Meu amante está à porta!"). Os exemplos mais
espetaculares de simbiose vêm das práticas de religião popular. Como ocorria
na fronteira otomano-habsburguesa, santuários, como o de San Ginés, atraíam devoção
tanto de muçulmanos quanto de cristãos.59
57 Hasluck (1929); Angyal (1957); Mankowski (1959); Inalcik (1973), 186-202.
58 Terrasse (1932, 1958).
59 Castro (1948); Stern (1953); Galmós de Fuentes (1967); MacKay (1976); Mann et al.
(1992).
258
A história cultural de outras nações poderia ser escrita em termos de encontros entre
regiões, como o norte e o sul da Itália, França ou mesmo a Inglaterra.
No caso da América do Norte colonial, David Fischer identificou quatro culturas regionais,
ou "modos de pensar e costumes", transportados por quatro grupos de imigrantes,
os anglicanos do leste para Massachusetts, os sulistas para a Virgínia, os dos condados
centrais da Inglaterra para Delaware e os de fronteiras para o "interior"
do país. Os estilos de linguagem e construção, assim como as atitudes políticas e religiosas,
continuaram distintos durante séculos.60
Este exemplo sugere a possibilidade de um empreendimento ainda mais ambicioso:
estudar a história cultural como um processo de interação entre diferentes
subculturas, entre homens e mulheres, urbanos e rurais, católicos e protestantes,
muçulmanos e hindus, e assim por diante. Cada grupo se define em contraste com
os outros, mas cria seu próprio estilo cultural - como no caso de jovens britânicos na década
de 1970, por exemplo - pela apropriação de itens dos acervos comuns,
juntando-os em um sistema com um novo sentido.61
O conceito sociológico de "subcultura", que pressupõe diversidade em uma estrutura
comum, e o conceito de "contracultura", que envolve uma tentativa de inverter
os valores da cultura dominante, merecem ser levados mais a sério do que o são por
historiadores culturais.62 Trabalhar com o conceito de subcultura tem a vantagem
de tornar determinados problemas mais explícitos do que antes. A subcultura inclui todos os
aspectos da vida de seus membros, ou só alguns domínios? É possível pertencer
a mais de uma subcultura em determinada época? Havia mais coisas em comum entre dois
judeus, um dos quais era italiano, ou dois italianos, um dos quais era
60 Fischer (1989).
61 Hebdige (1979).
62 Yinger (1960); Clarke (1974); Clarke et al. (1975).
259
judeu?63 A relação entre a cultura principal e a subcultura é de complementaridade ou
conflito?
As classes sociais, como as religiões, poderiam ser analisadas como subcultura. O
falecido Edward Thompson era um severo crítico da visão de cultura como
uma comunidade que privilegiava sentidos partilhados sobre conflitos de sentido. De modo
bastante irônico, ele mesmo foi criticado pelo modelo comunitário de cultura
operaria que se acha subjacente a seu famoso Making of the English Working-Class.
Poderíamos tentar ir além desse modelo comunitário com a ajuda de Pierre Bourdieu,
cuja etnografia da França contemporânea salientou até que ponto a burguesia e a classe
trabalhadora definiram cada uma a si mesma pelo contraste com a outra.64
De maneira semelhante, em um livro que é ou deve ser exemplar para historiadores, dois
etnólogos suecos puseram a formação da classe média sueca no contexto da
luta de seus membros para diferenciar-se tanto da nobreza quanto da classe trabalhadora,
em domínios culturais como atitudes em relação a tempo e espaço, sujeira
e limpeza.65 A solidariedade dentro de um grupo é em geral mais forte no momento do
mais acirrado conflito com forasteiros. Dessa maneira, historiadores culturais
poderiam contribuir para a reintegração da história em uma era de superespecialização em
que ela tem se desintegrado em fragmentos disciplinares nacionais e regionais.66
AS CONSEQÜÊNCIAS
No caso de encontros culturais, a percepção do novo em termos do antigo, descrita na
última seção, em geral se revela impossível de sustentar por um prazo mais longo.
As novas experiências primeiro
63 Bonfil (1990).
64 Thompson (1963); Bourdieu (1979).
65 Frykman e Ldfgren (1979).
66 CC Karmnen (1984); Bender (1986).
260
ameaçam e depois solapam as antigas categorias. A "ordem cultural" tradicional - como a
denomina o antropólogo americano Marshall Sahlins - às vezes se fragmenta
sob a pressão da tentativa de assimilá-la.67 O estágio seguinte varia de cultura para cultura,
ao longo de um espectro que se estende da assimilação à rejeição via
adaptação e resistência, como a resistência ao protestantismo no mundo mediterrâneo
discutido por Fernand Braudel.69 A razão por que os membros de algumas culturas
deveriam interessar-se em particular pela novidade ou pelo exótico é uma questão tão
fascinante quanto difícil de responder. A afirmação de que as culturas mais
integradas são relativamente fechadas, enquanto as mais abertas e receptivas têm menos
integração, corre risco de circularídade, mas tem pelo menos a virtude de
apresentar o problema do ponto de vista do receptor.69 OS parágrafos que se seguem se
concentrarão na receptividade à custa de resistência.
As conseqüências dos encontros entre culturas foram estudadas pela primeira vez de
maneira sistemática por estudiosos de sociedades do Novo Mundo, onde os
encontros haviam sido particularmente drásticos. No início do século XX, antropólogos
norte-americanos, entre eles o imigrante Franz Boas, descreveram as mudanças
nas culturas indígenas americanas como resultantes do contato com a cultura branca em
termos do que denominaram "aculturação", a adoção de elementos da cultura dominante.
Um discípulo de Boas, Melville Herskovits, definiu a aculturação como um fenômeno mais
abrangente do que a difusão, e tentou explicar por que alguns traços, mais
que outros, foram incorporados à cultura receptora.70 Essa ênfase na seleção ou triagem de
traços se revelou esclarecedora. No Peru, por exemplo, já se observou
que os índios adotaram elementos culturais da "cultura doadora" para os quais não existiam
equivalentes locais.
67 Sahlins (1981), 136-56.
68 Braudel (1949), parre 2, cap. 6, sessão 1.
69 Ottenberg (1959); Schneider (1959).
70 Herskovirs (1938); cf. Dupront (1966),
261
Também se tem afirmado que, após alguns anos, a adoção de novos elementos declina. À
fase de apropriação segue-se a da "cristalização" cultural.71
A essa altura, os estudiosos da cultura, a começar por especialistas em história da
religião no antigo mundo mediterrâneo, muitas vezes falaram em "sincretismo".
Herskovits se interessava sobretudo pelo sincretismo religioso, como por exemplo a
identificação entre deuses africanos tradicionais e santos católicos no Haiti,
Cuba, Brasil e em outros lugares. Outro discípulo de Boas, Gilberto Freyre, interpretou a
história do Brasil colonial em termos do que chamou de "sociedade híbrida",
ou "fusão" de diferentes tradições culturaiS.72 Pelo menos um historiador do
Renascimento, Edgar Wind, empregou o termo "hibridização" para descrever a interação
de culturas pagãs e cristãs. Sua posição era de rejeitar uma análise de mão única da
secularização da cultura renascentista, alegando que a "hibridização funciona
em mão dupla". Por exemplo, podia-se fazer "uma Virgem ou Madalena parecer uma
Vênus", mas, por outro lado, "a arte renascentista produziu muitas imagens de Vênus
que se assemelham a uma Virgem ou Madalena".73
De maneira semelhante, o sociólogo cubano Fernando Ortiz afirmou que se devia
substituir o termo "aculturação" por "transculturação", baseando-se em que
duas culturas eram modificadas em conseqüência de seus encontros, e não apenas a
chamada "doadora". Ortiz foi um dos primeiros a sugerir que deveríamos falar da
descoberta americana de Colombo.74 Um bom exemplo desse tipo de aculturação, em que
os conquistadores são conquistados, é o dos "creoles", homens e mulheres de origem
européia mas que nasceram nas Américas e se tornaram, com o passar do tempo, cada vez
mais americanos em cultura e consciência.75
71 Foster (1960), 227-34; Glick (1979), 282-4.
72 Freyre (1933); Herskovits (1937, 1938).
73 Wind (1958), 29.
74 Ortiz (1940), introdução.
75 Brading (1991); Alberro (1992).
262
A assimilação de santos cristãos em deuses e deusas não-cristãos como o Xangô
africano ocidental, o Kuan Yin chinês e o Nahuati Tonantzin tem suas analogias
na Europa. Como observou Erasmo, um processo semelhante ocorrera no início dos tempos
cristãos, quando santos como são Jorge foram assimilados em deuses e heróis
como Perseu. "Acomodação" era o termo tradicional usado para descrever esse processo no
século XVI (como no princípio da Igreja), quando os missionários jesuítas
na China e índia, por exemplo, tentaram traduzir o cristianismo em termos culturais locais,
apresentando-o como compatível com muitos dos valores dos mandarins e
brâmanes.
A preocupação com esse problema é natural em uma época como a nossa, marcada por
encontros cada vez mais freqüentes e intensos de todos os tipos. Emprega-se
uma grande variedade de termos em diferentes lugares e diferentes disciplinas para
descrever os processos culturais de empréstimo, apropriação, troca, recepção,
transferência, transposição, resistência, sincretismo, aculturação, enculturação,
inculturação, interculturação, transculturação, hibridização (mestizaje), creolização
e interação e interpenetração de culturas. Em seguimento ao redespertar de interesse pela
arte mudéjar mencionada acima (ela própria relacionada a uma consciência
cada vez maior hoje do mundo muçulmano), alguns espanhóis agora se referem a um
processo de "mudejarismo" em sua história cultural.76 Alguns desses novos termos
talvez soem exoticos, e mesmo bárbaros. Sua variedade presta eloqüente testemunho à
fragmentação do mundo acadêmico atual. Também revela uma nova concepção de cultura
como bricolagem, em que o processo de apropriação e assimilação não é secundário, mas
essencial.
Permanecem os problemas conceituais, assim como os empíricos. Utiliza-se a idéia de
"sincretismo", por exemplo, para descrever uma grande variedade de situações,
de "mixagem" a síntese cultural. O
uso generalizado muito vago do termo suscita, ou mais exatamente obscurece, muitos
problemas.77
Entre esses problemas está o das intenções dos agentes, de suas interpretações do que
fazem, o ponto de vista "êmico" (p. 245). Por exemplo, no caso da interação
entre cristianismo e religiões africanas, temos de examinar vários cenários. Os governantes
africanos, como vimos, podem muito bem considerar que estão incorporando
novos elementos a sua religião tradicional. No caso do "sincretismo" dos escravos africanos
nas Américas - a identificação entre santa Bárbara e Xangô, por exemplo
-, elee bem podem ter empregado as táticas defensivas de se conformar externamente com o
cristianismo, embora conservando suas crenças tradicionais. No caso da religião
no Brasil contemporâneo, por outro lado, "pluralismo" talvez fosse um termo melhor que
sincretismo, pois as mesmas pessoas podem participar das práticas de mais
de um culto religioso, assim como pacientes podem procurar a cura em mais de um sistema
de medicina.
Para retornar à linguagem "tradicional", os indivíduos talvez tenham acesso a mais de
uma tradição e optem por uma em vez de outra segundo a situação, ou
se apropriem de elementos das duas para fazer alguma coisa por conta própria. Do ponto de
vista "êmico", o que o historiador precisa examinar é a lógica subjacente
a essas apropriações e combinações, os motivos locais dessas opções. Por isso alguns
historiadores têm estudado as respostas de indivíduos aos encontros entre culturas,
em especial aqueles que mudaram de comportamento - quer os chamemos de
"convertidos", da perspectiva de sua nova cultura, ou "renegados", do ponto de vista da
antiga.
A questão é estudar esses indivíduos - cristãos que viraram muçulmanos no Império
Otomano, ou ingleses que viraram índios na América do Norte - como casos extremos
e especialmente visíveis de resposta à situação do encontro e concentrar-se nas maneiras
como eles reconstruíram sua identidade.78 As complexidades da situação são
77 Apter (1991).
78 Axteli (1985); Scaraffia (1993).
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bem exemplificadas pelo estudo de um grupo de negros brasileiros, descendentes de
escravos, que retornaram à África Ocidental porque a consideravam sua pátria, e
descobriram que os habitantes locais os consideravam americanos.79
Por outro lado, vistas de fora, essas pessoas são exemplos do processo geral de
"sincretismo". já se sugeriu que limitamos o emprego desse termo à "coexistência
temporária" de elementos de diferentes culturas, distinguindo-o de uma verdadeira
"síntese".80 Mas qual a duração desse "temporário"? Podemos afirmar que a síntese
ou integração triunfa necessariamente a longo prazo? Em nossa época, é difícil não
depararmos com movimentos de anti-sincretismo ou desintegração, campanhas pela
recuperação de tradições "autênticas" ou "puras".81
O conceito de "hibridismo" cultural e os termos a ele associados são igualmente
problemáticos. 82 É muito fácil escorregar (como Freyre, por exemplo, muitas
vezes fez) entre discussões de miscigenação metafórica e literal, seja apregoando os
louvores da fertilização cruzada ou condenando as formas "bastardas" ou "mestiças"
de cultura que surgem por si mesmas desse processo. Deve o termo "hibridização" ser
descritivo ou explanatório? As novas formas surgem por si mesmas no decorrer
de um encontro cultural ou são obra de indivíduos criativos?
Os lingüistas oferecem outro meio de abordar as consequencias dos encontros
culturais.83 O encontro de culturas, como de linguagens, poderia ser descrito
em termos do surgimento primeiro do pidgin, uma forma de língua reduzida ao essencial
para fins de comunicação intercultural, e depois do creole. A "creolização"
descreve a
79 Carneiro da Cunha (1985).
80 Pye (1993).
81 Stewart (1994).
82 Young (1995).
83 Glick (1979), 277-81; Hannerz (1992),264-6.
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situação em que um pidgin desenvolve uma estrutura mais complexa no momento em que
as pessoas começam a usá-lo como sua primeira língua e para propósitos gerais.
Os lingüistas afirmam que o que antes era considerado apenas erro, como inglês
"malfalado" ou latim "de cozinha", devia ser visto como uma variedade de língua com
suas próprias regras. Também se pode fazer uma afirmação semelhante sobre (digamos) a
linguagem da arquitetura na fronteira entre culturas.
Em alguns contextos, a melhor analogia lingüística pode ser uma "língua mista", como
a media lengua do Equador, em que se combina o vocabulário espanhol
com a sintaxe quíchua, ou o latim "macarrôníco" discutido no Capítulo 8. Durante o
Renascimento, por exemplo, os ornamentos de um estilo arquitetônico (o clássico)
eram às vezes sobrepostos às estruturas de outro (o gótico). Em outros contextos, uma
analogia melhor talvez seja a dos bilíngües, que "se desviam" entre uma língua
e outra de acordo com a situação. Como vimos no caso de alguns japoneses do século XIX,
as pessoas conseguem ser biculturais, viver uma vida dupla, transferir-se
de um código cultural para outro.
Retomemos a situação de hoje. Alguns observadores ficam impressionados com a
homogeneização da cultura mundial, o "efeito CocaCola", embora muitas vezes
não
levem em conta a criatividade da recepção e a transposição dos sentidos discutidas antes
neste capítulo. Outros vêem mixagem ou ouvem pidgin em toda parte. Alguns
acreditam poder discernir uma nova ordem, a "creolização do mundo".84 Um dos grandes
estudantes da cultura em nosso século, o erudito russo Mikhail Bakhtin, costumava
enfatizar o que chamava de "heteroglossia", em outras palavras, a variedade e conflito de
línguas e pontos de vista dos quais, segundo sugeriu, se desenvolveram
novas formas de linguagem e novas formas de literatura (em particular o romance).85
84 Hannerz (1992); cf. Friedman (1994), 195-232.
85Bakhtin (1981).
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Retornamos ao problema fundamental de unidade e variedade, não apenas na história
cultural, mas na própria cultura. É necessário evitar duas super simplificações
opostas: a visão de cultura homogênea, cega às diferenças e conflitos, e a visão de cultura
essencialmente fragmentada, o que deixa de levar em conta os meios pelos
quais todos criamos nossas misturas, sincretismos e sínteses individuais ou de grupo. A
interação de subculturas às vezes produz uma unidade de opostos aparentes.
Feche os olhos e ouça por um momento um sul-africano falando. Não é fácil dizer se o
locutor é negro ou branco. Não vale a pena perguntar se as culturas negra e branca
da África do Sul compartilham outras características, apesar de seus contrastes, conflitos,
graças a séculos de interação?
Para alguém de fora, historiador ou antropólogo, a resposta é sem a menor dúvida
"sim". As semelhanças parecem exceder em peso as diferenças. Para os de
dentro, contudo, as diferenças talvez sejam mais importantes que as semelhanças. É
provável que essa questão sobre diferenças em perspectiva seja válida para muitos
encontros culturais. Portanto, deduz-se que uma história cultural centrada em encontros não
deve ser escrita segundo um ponto de vista apenas. Nas palavras de Mikhail
Bakhtin, essa história tem de ser "polifônica". Em outras palavras, tem de conter em si
mesma várias línguas e pontos de vista, incluindo os dos vitoriosos e vencidos,
homens e mulheres, os de dentro e os de fora, de contemporâneos e historiadores.