UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CAMPUS ARAPIRACA
UNIDADE EDUCACIONAL DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS
CURSO DE PSICOLOGIA
LYLLIAN TELES LOPES COSTA
A CONCEPÇÃO DE HOMEM-MUNDO DA GESTALT-TERAPIA E SUA
APLICAÇÃO NA PRÁTICA:
O CONCEITO DE TRANSFENOMENALIDADE DE KOHLER EM AÇÃO
PALMEIRA DOS ÍNDIOS
2020
LYLLIAN TELES LOPES COSTA
A CONCEPÇÃO DE HOMEM-MUNDO DA GESTALT-TERAPIA E SUA
APLICAÇÃO NA PRÁTICA:
O CONCEITO DE TRANSFENOMENALIDADE DE KOHLER EM AÇÃO
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC apresentado
ao Curso de Graduação em Psicologia da Unidade
Educacional de Palmeira dos Índios do Campus
Arapiraca da Universidade Federal de Alagoas –
UFAL para a obtenção do título de Formação em
Psicologia.
Orientadora: Profª. Ma. Fernanda Cristina Nunes
Simião.
PALMEIRA DOS ÍNDIOS
2020
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Unidade Palmeira dos Índios
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Kassandra Kallyna Nunes de Souza (CRB-4: 1844)
C837c Costa, Lyllian Teles Lopes
A concepção de homem-mundo da gestalt-terapia e sua aplicação na
prática: o conceito de transfenomenalidade de Kohler em ação/ Lyllian Teles
Lopes Costa, 2020.
160 f.
Orientadora: Fernanda Cristina Nunes Simião.
Monografia (Graduação em Psicologia) – Universidade Federal de
Alagoas. Campus Arapiraca. Unidade Educacional de Palmeira dos Índios.
Palmeira dos Índios, 2020.
Bibliografia: f. 155 – 160
1. Psicologia. 2. Psicoterapia. 3. Gestalt-terapia. I. I. Simião, Fernanda
Cristina Nunes. II. Título.
CDU: 159.9
LYLLIAN TELES LOPES COSTA
A CONCEPÇÃO DE HOMEM-MUNDO DA GESTALT-TERAPIA E SUA
APLICAÇÃO NA PRÁTICA:
O CONCEITO DE TRANSFENOMENALIDADE DE KOHLER EM AÇÃO
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC
apresentado à Banca Examinadora para
obtenção do Grau de Formação em Psicologia
no Curso de Graduação em Psicologia da
Unidade Educacional de Palmeira dos Índios do
Campus Arapiraca da Universidade Federal de
Alagoas – UFAL.
Data da aprovação: 19/02/2020
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
Devo agradecer, em primeiro lugar, àquela que me deu à luz e, com toda a força divina,
enfrentou céus e terra para fazer com que eu seja quem eu sou hoje. Te agradeço, mãe (Adriana),
por ter sido tão forte para enfrentar esse mundo sozinha, mesmo comigo debaixo de tuas asas,
tomando-lhe a paciência e os últimos centavos. Eu te amo e devo a ti cada infinito passo dessa
minha jornada e a oportunidade de estar aqui para poder fazer a diferença através da
maravilhosa profissão que escolhi. Ou será que foi ela que me escolheu?
Agradeço ao meu companheiro único e uno comigo, Vinícius, por ser essa pessoa tão
maravilhosa, que está comigo sempre, confiando e acreditando no potencial que tenho a
oferecer, mesmo quando eu mesma não sou capaz de acreditar. Agradeço todos os dias por ter
você comigo. Obrigada, eu te amo, para sempre!
À minha família: minha avó, Ivonete, e minha tia, Cícera. Obrigada por sempre estarem
aqui, pelo cuidado e todo carinho. Amo vocês!
Gratidão aos meus sogros, Edvânia e Flávio, por serem uma mãe e um pai para mim e
por terem me dado a chance de pertencer a essa família. Vocês são incríveis!
Agradeço pelo companheirismo e pela amizade às minhas amigas de graduação, Ingryd
Ramos, Aryana Lorraynne e Franciely Barbosa. Vocês são os presentes que a UFAL me deu.
Muito obrigada por tudo, meninas! A passagem pela Universidade não seria a mesma sem a
companhia, o apoio e o afeto de vocês!
Aos meus professores de Psicologia da Unidade de Palmeira dos Índios, imensa gratidão
pela oportunidade de aprender com todos vocês. Obrigada!
Todo o meu carinho a minha professora e orientadora Fernanda Simião pela paciência
que dispôs para realização desse trabalho e por ser essa excelente pessoa e profissional. Você é
demais, obrigada!
Por fim, agradeço a Deus pela imensa beleza e multiplicidade da vida que me
impulsionou à missão de ser uma psicóloga. Aqui vou eu!
O que vive é indestrutível, permanece livre em sua
forma de servidão mais profunda, permanece uno e,
mesmo que o divida até o fundo, permanece
invulnerável, e mesmo que o despedace até a medula,
seu ser escapará vitorioso por entre as mãos.
Holderlin
RESUMO
Este trabalho teve por objetivo geral analisar a aplicabilidade prática da Gestalt-Terapia, considerando
suas origens e ramificações, que abrigam suas bases epistemológicas, filosóficas e teóricas e,
consequentemente, a sua visão de homem-mundo, que desagua no conceito de transfenomenalidade
postulado por Kohler. Para tanto, buscamos como objetivos específicos investigar as fronteiras
epistemológicas entre objetividade e subjetividade no âmbito das ciências e da Psicologia; evidenciar,
através da exploração da concepção de homem-mundo da Gestalt-Terapia, as equivalências e
ambivalências existentes entre a Psicologia da Gestalt e a Gestalt-Terapia, considerando seus
pressupostos filosóficos, que são a Fenomenologia, o Existencialismo e o Humanismo; e, além disso,
identificar, através do conceito de transfenomenalidade de Kohler, qual a implicância da concepção de
homem-mundo da Gestalt-Terapia na produção do conhecimento e na prática clínica. Nos capítulos que
compõem este trabalho, discorremos sobre a origem epistemológica da Psicologia e da abordagem
gestáltica, em que discutimos os tipos de ciência (explicativa e compreensiva) e seus respectivos
métodos de investigação, os quais desaguam na dicotomia objetividade e subjetividade. Posteriormente,
realizamos um breve apanhado sobre as três principais vertentes da Psicologia – a Psicanálise, o
Comportamentalismo e a Psicologia Humanista –, a fim de situar epistemologicamente a Gestalt-Terapia
e sua visão de homem-mundo. Apresentamos, também, as bases epistemológicas, pressupostos
filosóficos e teóricos da Gestalt-Terapia com o intuito de aprofundar a compreensão de homem-mundo,
que é o objeto de estudo do nosso trabalho. Esta pesquisa se caracteriza como bibliográfica, qualitativa
e analítico-crítica. Dispomos da base de dados Google Acadêmico para levantamento de material a ser
analisado e selecionamos três artigos científicos em português que trouxessem a apresentação e a
descrição da intervenção do psicoterapeuta diante de um caso clínico em psicoterapia sobre demandas
específicas de transtornos mentais ou psíquicos, sendo que dois destes casos tem por base a Gestalt-
Terapia e um deles a Abordagem Centrada na Pessoa. Os métodos de análise utilizados por essa pesquisa
foram a Pesquisa Narrativa, a Análise de Conteúdo e o Pragmatismo Filosófico. Com base na análise de
conteúdo, definimos três categorias: 1) Objetividade e subjetividade: o sujeito uno na Psicologia; 2)
Ambivalências e equivalências das perspectivas gestálticas sobre o ser-no-mundo; e 3)
Transfenomenalidade: o sujeito uno e a prática clínica da Gestalt-Terapia. Compreendemos que este
trabalho demonstrou como a Psicologia vem se aproximando da realidade do ser humano visando a
estudá-lo, para, posteriormente, intervir. Assim, de acordo com os resultados dessa pesquisa, chegamos
à conclusão de que uma ciência comprometida com o fenômeno humano deverá buscar compreendê-lo
a partir dele mesmo em sua totalidade, existência intencional e relação com o mundo.
Palavras-chave: Psicologia. Gestalt-Terapia. Transfenomenalidade. Prática Clínica.
ABSTRACT
This work had the general aim of analyzing the practical applicability of the Gestalt Therapy,
considering its origins and its branches, which carry its epistemological, philosophical and theoretical
bases. As a consequence, this monograph shows how Gestalt sees mankind in its relationship with the
world and presents the concept of transphenomenal as stated by Kohler. Therefore, the specific
objectives of this work are to investigate the epistemological boundaries between objectivity and
subjectivity among science and Psychology; to emphasize, by means of the exploitation of Gestalt’s
conception of the person-world, the equivalences and ambivalences which exist among Gestalt
Psychology and Gestalt Therapy, while keeping in mind its philosophical assumptions, Phenomenology,
Existentialism and Humanism; in addition, this work aims to identify, through Kohler's concept of
transphenomenal, what is the meaning of the Gestalt’s person-world concept in the production of
knowledge and in clinical practice. This monograph discusses the epistemological origin of Psychology
and the Gestalt approach and the types of science (explanatory and comprehensive) as well as its
methods of investigation, which encompass the objectivity and subjectivity dichotomy. After that, this
work discusses briefly the three main branches of Psychology – Psychoanalysis, Behavioral Psychology
and Humanistic Psychology –, in order to properly locate Gestalt therapy, epistemologically, and its
person-world conception. This monograph also presents the epistemological bases, philosophical and
theoretical assumptions of Gestalt Therapy in order to deepen the understanding of its person-world
conception. This research is bibliographic, qualitative and analytical-critical. Google Scholar’s database
was used with the objective of gathering material to be analyzed. Three scientific papers which presented
and described the intervention of a psychotherapist on specific demands related to mental or psychic
disorders. Two of them have used the Gestalt Therapy perspective. The other was based on the Person-
Based Approach. The methods of analysis utilized here were the Content Analysis Methodology and the
Philosophical Pragmatism. Based on the Content Analysis, three categories were defined: 1) Objectivity
and subjectivity: the single-subject in Psychology; 2) Ambivalences and equivalences of Gestalt’s
perspectives on being in the world; and 3) Transphenomenality: the single-subject and the clinical
practice of Gestalt-Therapy. This work demonstrated how Psychology has becoming closer of the human
reality in order to study the former and, posteriorly, to intervene on it. Thus, according to the results
found in the course of this research, we concluded that a science committed to the human phenomenon
should seek to understand the later from itself in its totality, as well as its intentional existence and
relationship with the world.
Keywords: Psychology. Gestalt Therapy. Transphenomenality. Clinical Practice.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
2 CIÊNCIA EXPLICATIVA E COMPREENSIVA: OBJETIVIDADE E
SUBJETIVIDADE 15
2.1 Explicar e Compreender 15
2.2 Dicotomia entre Objetividade e Subjetividade 18
3 AS TRÊS GRANDES VERTENTES DA PSICOLOGIA 35
3.1 Psicanálise 35
3.2 Comportamentalismo 41
3.3 Psicologia Humanista 49
4 BASES EPISTEMOLÓGICAS, PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E TEÓRICOS
DA GESTALT-TERAPIA 55
4.1 O que é Gestalt? 55
4.2 Fenomenologia 59
4.3 Existencialismo 62
4.4 Humanismo 66
4.5 A Psicologia da Gestalt 69
4.5.1 A Tese do Isomorfismo 77
4.5.2 Transfenomenalidade 78
4.6 Teoria Organísmica de Kurt Goldstein 82
4.7 Teoria de Campo de Kurt Lewin 84
4.8 Gestalt-Terapia: Principais conceitos 85
4.8.1 Fronteira de contato 85
4.8.2 Figura-fundo 86
4.8.3 Awareness (tomada de consciência) 88
4.8.4 Autorregulação organísmica (self-actualization) 89
4.8.5 Ajustamento criativo 90
4.8.6 Aqui-Agora 92
4.8.7 Self 94
4.8.8 Experimentação 95
5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA 99
5.1 Pesquisa Narrativa 102
5.2 Análise de Conteúdo 105
5.3 Pragmatismo Filosófico 107
5.4 Descrições dos casos clínicos 110
6 ANÁLISE E DISCUSSÃO: A CURA DA DIVISÃO E O TODO QUE VAI MUITO
ALÉM DA SOMA DAS PARTES 119
6.1 Objetividade e subjetividade: o sujeito uno na Psicologia 120
6.2 Ambivalências e equivalências das perspectivas gestálticas sobre o ser-no-mundo 130
6.2.1 Análise Narrativa – Caso 1 136
6.3 Transfenomenalidade: o sujeito uno e a prática clínica da Gestalt-Terapia 139
6.3.1 Análise Narrativa – Caso 2 142
6.3.2 Análise Narrativa – Caso 3 144
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 152
REFERÊNCIAS 155
10
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa teve a incumbência de investigar a atuação prática da Gestalt-Terapia
tendo como ponto de partida a sua visão de homem-mundo. Assim, discutimos acerca da
construção teórica da Gestalt-Terapia no âmbito da Psicologia, com o intuito de, a partir disso,
contextualizar epistemologicamente o sujeito da abordagem gestáltica. Para isso, se fez
necessário resgatar o lugar do todo da Gestalt1 tanto na produção do conhecimento como na
Psicologia, a fim de analisar de que forma tem se construído essa visão de homem-mundo, bem
como as implicações dessa teoria e compreensão na prática e vice-versa.
Tivemos como objetivo geral analisar a aplicabilidade prática da Gestalt-Terapia,
considerando suas origens e ramificações, que abrigam suas bases epistemológicas, filosóficas
e teóricas e, consequentemente, a sua visão de homem-mundo, que desagua no conceito de
transfenomenalidade postulado por Kohler.
Para consolidação dessa proposta, nossos objetivos específicos foram: 1) investigar as
fronteiras epistemológicas entre objetividade e subjetividade no âmbito das ciências e da
Psicologia; 2) evidenciar, através da exploração da concepção de homem-mundo da Gestalt-
Terapia, as equivalências e ambivalências existentes entre a Psicologia da Gestalt e a Gestalt-
Terapia, considerando seus pressupostos filosóficos, que são a Fenomenologia, o
Existencialismo e o Humanismo; e 3) identificar, através do conceito de transfenomenalidade
de Kohler, qual a implicância da concepção de homem-mundo da Gestalt-Terapia na produção
do conhecimento e na prática clínica.
A motivação para a realização dessa pesquisa decorre de meados do 5º período do curso
de Psicologia através do desenvolvimento de ideias que têm sido maturadas e estudadas já há
muito tempo. A confirmação e permanência dessas ideias durante todo o curso demandou,
então, uma exploração científica legítima, impulsionando o desabrochar dessa pesquisa.
Consideramos que o processo de construção da Psicologia não se dá de maneira linear.
Na realidade, todas as Psicologias envolvidas na nossa discussão nasceram, de certa forma, de
1 Quando dizemos o todo da Gestalt nos referimos às perspectivas gestálticas que serviram de base para
a Gestalt-Terapia, bem como esta última em si. Essas perspectivas são: a Fenomenologia Existencial, a
Psicologia da Gestalt e a Gestalt-Terapia. Agrupamos essas abordagens numa unidade que chamamos o
todo da Gestalt, que é o alvo de nossa análise. Ao longo deste trabalho, veremos que estas abordagens
foram atreladas umas às outras pelas suas concepções de homem e mundo, bem como pelas suas práticas,
que geralmente se entrelaçam.
11
uma reelaboração da outra, de acordo com novos pressupostos e novas compreensões do sujeito,
implicando na consideração desta como tendo um caráter poli paradigmático no que se refere à
epistemologia.
A nossa discussão principal se deu, então, em torno da construção da concepção de
sujeito para algumas vertentes da Psicologia, que terei a ousadia de afirmar como uma vertente
una devido à sua orientação para a totalidade. As equivalências encontradas serão o ponto de
partida e de convergência para essa compreensão una da Psicologia, considerando suas
ramificações e objeto de estudo. Foi esse caminho pela estrutura das Ciências e da Psicologia
que ofereceu um norte para uma compreensão ampla da Gestalt-Terapia e sua visão de homem-
mundo e para a análise pragmática de sua prática clínica.
Diante disso, a proposta do nosso trabalho teve o intuito de buscar compreender o ser
humano em sua totalidade. Para tanto, nos ancoramos no conceito de transfenomenalidade de
Kohler, através do qual podemos verificar a possibilidade de elo entre objetividade e
subjetividade, rompendo com o paradigma de que as ciências humanas e as ciências naturais
possuem objetos de estudo diferenciados, pois compreender dessa maneira só reforça
pressupostos segregadores de aspectos subjetivos e objetivos que, na realidade, atuam como um
só para o sujeito.
A respeito dos diferentes tipos de ciência, ressalta-se que, quando se fala em ciências
humanas, esta recebe o status de ciência compreensiva, sendo contrastada com a dita ciência
explicativa, reservada às ciências naturais. Seguindo essa diferenciação, analisamos as
incongruências presentes nessa disputa epistemológica e tentamos promover a cura da divisão,
que rompe o sujeito em fragmentos dele mesmo. Nesse viés, essa divisão não contempla sua
imensa complexidade e, consequentemente, não alcança o cerne de sua questão.
Dessa forma, ousamos afirmar, a partir do exposto nessa pesquisa, que há a
possibilidade de um único paradigma em Psicologia que comporte as multiplicidades de cada
tipo de ciência, considerando a complexidade de seu objeto de estudo: o ser humano. Aliás, é
inegável que este último é estudado tanto em um tipo de ciência quanto noutro. Assim, partimos
do pressuposto de que, quando falamos em concepção de sujeito, separar aspectos constituintes
do mesmo seria limitá-lo no tempo e no espaço, desaguando em sua fragmentação e na
consequente rejeição de sua totalidade como pessoa. Além disso, a rejeição da pessoa em sua
totalidade implicaria fatalmente na nossa prática clínica e profissional.
De acordo com Ribeiro (1985, p. 18),
12
[...] não basta afirmar que tudo se resume na matéria que, através de
combinações atômicas complexas, formou todas as espécies existentes, como
ensina o materialismo, nem tampouco basta afirmar a existência de domínios
separados, colocando de um lado vida e natureza inanimada e do outro,
espírito, como queria Descartes, ou vida e espírito de um lado e natureza
inorgânica do outro, como querem os vitalistas, para que a compreensão da
relação homem-universo seja descrita ou compreendida. Tais posições
mantêm a explicação do homem dentro de uma divisão que chega a ser
essencial, isto é, onde a própria natureza humana não é considerada dentro de
um único universo. Tal postura exigiria uma multiplicidade de discursos para
que o homem se fizesse, de fato, inteligível.
Ora, seria insuficiente dizer que o sujeito é constituído de dimensões objetivas e
subjetivas quando essas dimensões, por si só, não agregam a totalidade, complexidade e
multiplicidade do sujeito. Essa distinção não tem fundamento na realidade, bem como a
distância criada entre aspectos objetivos e subjetivos na Psicologia também não se fundamenta,
justamente pela sua obrigação em corresponder àquele que se pretende seu “objeto” de estudo.
Diante disso, tomamos como a principal necessidade dessa pesquisa a compreensão da
pessoa em sua totalidade, considerando que toda teoria implica numa prática e na produção de
subjetividades. Assim sendo, partimos de uma análise pragmática, ou seja, nos utilizamos da
realidade fática para verificar os postulados teóricos (tanto da Gestalt-Terapia como da
Psicologia em si), tendo como principal foco a compreensão de que o que mais importa é, de
fato, a vida e a subjetividade das pessoas. É a prática que conduz a teoria e não o contrário.
Justificamos a imprescindibilidade da análise e estudo aprofundado dessas questões,
pois tomamos como fundamental a concepção de sujeito em sua totalidade, considerando não
só a produção de conhecimento – que comporta o fazer da ciência teórica – mas, principalmente,
a sua implicância na prática clínica dos psicólogos e, consequentemente, na vida das pessoas.
Desse modo, ressaltamos a necessidade de que o saber psicológico contemple as formas e
necessidades destas pessoas de maneira global. Para tanto, é essencial a produção de um saber
comprometido com o ser humano e não com os pressupostos teóricos construídos a parte dele.
A respeito dos caminhos metodológicos, a nossa pesquisa se desenvolveu a partir dos
métodos qualitativo, bibliográfico e analítico-crítico, por meio da Análise de Conteúdo de
Bardin (2004), da Pesquisa Narrativa de Clandinin e Connelly (2000) e do Pragmatismo
Filosófico de William James. A pesquisa narrativa serviu como base para busca de materiais
fáticos que trouxessem o aporte realístico para a discussão, em que selecionamos casos clínicos
13
em psicoterapia de base gestáltica e existencial-fenomenológica para análise pragmática,
visando investigar de que forma a teoria se revela na prática e vice-versa.
Através da revisão de literatura realizada, nos utilizamos da produção de autores que
discutem a Psicologia como um todo, bem como especificamente a Gestalt-Terapia e suas bases
teórico-filosóficas. Entre esses autores estão: Goodwin (2010); Perls, Hefferline e Goodman
(1997); Ribeiro (1985); Granzotto e Granzotto (2016); Frazão e Fukumitsu (2015) e Fonseca
(2006).
A partir das buscas realizadas na base de dados do Google Acadêmico pelos descritores
“estudos de caso em Gestalt-terapia” e “Gestalt-terapia e transtornos mentais”, selecionamos
para nossa análise narrativa três artigos científicos em português que trouxessem casos clínicos
em psicoterapia sobre demandas específicas de transtornos mentais ou psíquicos, sendo dois
deles da Gestalt-Terapia e um da Abordagem Centrada na Pessoa.
Optamos por delimitar a demanda específica de transtornos mentais ou psíquicos
visando estabelecer um foco de atenção no que se refere à atuação da Psicologia em relação à
premissa principal da Gestalt sobre o ser humano: o todo vai muito além da soma das partes.
Escolhemos destacar esta premissa por se tratar de uma sentença que demonstra de maneira
suscinta qual a concepção de homem-mundo da Gestalt-Terapia e, além disso, estar interligada
ao conceito de transfenomenalidade de Kohler, conceito central destacado por nós neste
trabalho.
Ao fim da análise de conteúdo de todo o material estudado, definimos três categorias,
que foram: 1) Objetividade e subjetividade: o sujeito uno na Psicologia; 2) Ambivalências e
equivalências das perspectivas gestálticas sobre o ser-no-mundo; e 3) Transfenomenalidade:
o sujeito uno e a prática clínica da Gestalt-Terapia. A partir delas, pudemos alcançar os
objetivos almejados nesta pesquisa, estabelecendo uma conexão entre teoria e prática.
A respeito da estrutura de nosso estudo, organizamos o nosso trabalho em cinco
capítulos. No primeiro capítulo – Ciência explicativa e compreensiva: objetividade e
subjetividade –, discutimos os tipos de ciência (explicativa e compreensiva) e suas
especificidades, discorrendo sobre a diferenciação dos seus métodos de estudo. Além disso,
tratamos da dicotomia entre objetividade e subjetividade, tal qual permeia a discussão
psicológica como um todo e é fruto das distinções entre os tipos de ciência.
No segundo capítulo – As três grandes vertentes da Psicologia –, apresentamos as três
principais perspectivas em Psicologia com o objetivo de explorar as visões de homem-mundo
14
desenvolvidas, a fim de contextualizar a abordagem gestáltica fazendo um resgate de seus
vieses científicos, históricos e epistemológicos.
No terceiro capítulo – Bases epistemológicas, pressupostos filosóficos e teóricos da
Gestalt-Terapia –, fazemos um aprofundado caminho pelas bases da abordagem gestáltica
buscando discutir a sua visão de homem-mundo, a qual está totalmente imbrincada em suas
fontes epistemológicas, filosóficas e teóricas. Além disso, abordamos os principais conceitos
em Gestalt-Terapia, buscando oferecer um maior suporte teórico para a posterior análise dos
casos clínicos.
No quarto capítulo – Procedimentos metodológicos da pesquisa –, apresentamos
detalhadamente o percurso realizado para a construção do trabalho e análise dos dados, que se
deu por meio dos métodos: Pesquisa Narrativa, Análise de Conteúdo e Pragmatismo Filosófico.
Além disso, apresentamos as descrições dos três casos clínicos escolhidos para Análise
Narrativa, os quais serviram de suporte prático para a etapa de análise pragmática.
No quinto capítulo – Análise e Discussão: a cura da divisão e o todo que vai muito além
da soma das partes –, trazemos a discussão analítica dos resultados, onde abordamos as três
categorias de análise definidas, através das quais discutimos os principais pontos críticos do
conteúdo estudado, dando um maior destaque para a prática clínica da Gestalt-Terapia.
Por fim, expomos as nossas considerações finais, em que pudemos refletir acerca da
importância de toda a nossa discussão, enfatizando a imprescindibilidade de mais estudos que
abordem essa temática.
15
2 CIÊNCIA EXPLICATIVA E COMPREENSIVA: OBJETIVIDADE E
SUBJETIVIDADE
Neste capítulo, faremos um breve apanhado das definições de ciência construídas
historicamente a fim de delimitar campos e áreas específicas de estudo. Os módulos de ciência
costumam seguir a distinção entre Ciência Explicativa e Compreensiva postulada pelo filósofo
hermenêutico e historiador alemão Wilhelm Dilthey (1833 – 1911) em fins do século XIX e
início do século XX, ao situar os objetos de estudo das ciências naturais e das ciências humanas,
apelando também para a validação desta última como ciência. Concentramo-nos, então, neste
autor, para explanar essa diferenciação, devido ser um postulado seu, todavia, tal separação tem
ganhado dimensões amplas no âmbito epistemológico de produção de conhecimento.
Posteriormente à explanação dos tipos de ciência e seus respectivos objetos de estudo,
falaremos um pouco a respeito da distinção que guia essa discussão epistemológica: a diferença
entre objetividade e subjetividade e as implicações decorrentes desta segregação.
Consideramos imprescindível fazer essa discussão inicial, em relação às ciências e suas
dicotomias, uma vez que a Psicologia – tal qual surge como um campo considerado científico
só mais tarde (século XIX) – necessita ser situada dentro do tempo e do seu modo de ciência
específico para uma melhor compreensão de cada uma de suas vertentes (ponto de discussão a
ser explanado no capítulo posterior) bem como para uma análise de suas ambivalências,
semelhanças e, possivelmente, superações.
2.1 Explicar e Compreender
De antemão, se faz necessário o esclarecimento dos sentidos de explicar e compreender.
De acordo com o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1988, p. 284) explicar é “tornar inteligível
ou claro (o que é ambíguo ou obscuro); ajuizar da intenção, do sentido de, interpretar”. A
explicação, então, na discussão científica, consiste na interpretação descritiva dos fenômenos,
de forma objetiva, no sentido de explanar, por exemplo, como determinado fenômeno se
manifesta.
A compreensão, de acordo com o referido dicionário, significa “conter em si, constar
de, abranger; mencionar, incluir; alcançar com a inteligência, atinar com; perceber, entender;
16
perceber ou alcançar as intenções ou o sentido de” (FERREIRA, 1988, p. 165). Nas discussões
científicas, compreender representa uma forma de olhar a realidade centrada na sua expressão
pura ou histórica, sem definições a-priori.
Para ressaltar a distinção no que se refere às disputas entre os paradigmas científicos
explicativos e compreensivos, Franco (2012, p. 18) afirma que
Uma visão excessivamente explicativa sobre o humano destruiria a condição
de liberdade na história. Só a noção de compreensão faz justiça a esta
experiência interior e central da ação humana. A explicação se presta a forças
físicas, fala dos efeitos, mas não da natureza das agências envolvidas. Muito
interessante é sua afirmação sobre “compreender tudo”: “... o ser humano que
compreendesse tudo, não seria humano”. Isto porque compreender é capturar
a individualidade, e nossa capacidade de capturar a individualidade é sempre
limitada por nossa própria individualidade. A compreensão no pensamento de
Dilthey não é uma questão do pensamento abstrato. Ela exige o envolvimento
de quem compreende, que participa também com imaginação, para enxergar
o universal no particular e o todo na parte.
O método experimental das ciências da natureza há muito se consolidou por seu rigor
metodológico, em que se exige validade e precisão ao se coletar e interpretar dados colhidos na
pesquisa empírica. Sendo assim, aspectos humanos que não se encaixem ao nível de
mensuração exigida pelo método científico ou que para adequar-se ao método sejam reduzidos,
deveriam ser objeto de estudo das chamadas ciências humanas, ou – como para Dilthey –
ciências do espírito (SCOCUGLIA, 2002).
O que Dilthey contesta, então, é o método positivista, afirmando não ser possível
enquadrar tudo dentro desse método. Sendo assim, segundo o autor, as ciências humanas
compreendem enquanto as ciências naturais explicam os fenômenos. Para ele, isso acontece
porque ambas têm objeto de estudo diversos. Todavia, sua postura não é tão radical a ponto de
separá-las drasticamente, mas o filósofo chega a estabelecer tanto uma relação de continuidade
– em que ambas se complementam – como uma relação de descontinuidade – em que há uma
ruptura ou desvio de foco entre elas ao se estudar os fenômenos.
Como ressalta Franco (2012, p. 17),
É importante, no entanto, destacar que Dilthey se afasta de qualquer apreensão
especulativa do outro. Ele busca algo que possa ser empiricamente testado,
descritivo e que possa ser psicologicamente sustentado. A compreensão, em
Dilthey é, assim, sempre um caminho, uma mediação.
17
Desse modo, Dilthey ressalta a importância de se considerar os aspectos históricos,
sociais e existenciais dos seres humanos como aspectos passíveis de serem estudados tão quanto
os objetos mensuráveis das ciências naturais. O método compreensivo, para ele, é o veículo. De
acordo com esse filósofo, as informações obtidas através da história do sujeito são tidas como
dados objetivos, ou seja, dados materiais. A abordagem compreensiva é tomada então como
abordagem objetiva de interpretação. Visto isso, ele não defende um método filosófico e
especulativo de compreensão e interpretação dos dados, mas sim algo baseado na realidade.
Assim, a diferença primordial reside na impossibilidade de se apreender leis gerais em relação
ao processo histórico dos sujeitos (SCOCUGLIA, 2002).
A hermenêutica2 de Dilthey, pois, situa a historicidade humana como ponto chave de
toda compreensão científica e humana acerca da natureza da experiência e, consequentemente,
da subjetividade. Dessa forma, é com seu questionamento que nasce toda a reflexão
epistemológica a respeito da constituição humana e da possível homogeneidade entre sujeito e
objeto (GADAMER, 1999).
Para Dilthey a compreensão adequada é mais orgânica porque intui melhor a
complexidade do espírito humano, tomando a experiência vivida como o
elemento central. O último e derradeiro ensaio destaca o mesmo, a
importância de uma leitura dos movimentos humanos na história. Não se trata
de ter uma leitura filosófica da história, mas procurar, filosoficamente,
entender a consciência humana que emerge na história (FRANCO, 2012, p.
19).
Devido às dimensões históricas e epistemológicas decorrentes dos postulados de Dilthey
ao reivindicar o status de legitimidade das ciências humanas – e diga-se, fenomenológicas – o
pensamento deste autor vem então a assemelhar-se aos postulados fenomenológicos de
Heidegger, Husserl e vários outros fenomenólogos do século XX (FRANCO, 2012).
A seguir, discutiremos a base dicotômica de compreensão dos fenômenos humanos que
enseja essa delimitação entre as ciências – a saber, a dicotomia entre objetividade e
2 A Hermenêutica é um método de interpretação da realidade transmutada pelas formas artísticas,
científicas, poéticas e, no geral, expressivas, que podem vir a compor um texto, uma obra de arte etc.
Na filosofia hermenêutica de Dilthey, a vida, a experiência e a historicidade humanas têm completa
centralidade de seu questionamento filosófico e epistemológico. Além disso, o método fenomenológico
se ancora, em grande parte, na compreensão hermenêutica acerca da ontologia humana.
18
subjetividade – no que diz respeito aos métodos de estudo e pesquisa empírica do fazer
científico.
2.2 Dicotomia entre Objetividade e Subjetividade
Para esclarecermos o caminho percorrido, a fim de explanar a relação entre objetividade
e subjetividade, utilizamo-nos da discussão acerca de algumas teorias psicológicas que
permeiam a disputa epistemológica acerca do método da Psicologia como ciência humana, bem
como quanto à concepção de homem-mundo.
Sendo assim, antes de nos debruçarmos completamente sobre o objeto de estudo deste
trabalho – a prática da Gestalt-Terapia e sua compreensão de homem-mundo – torna-se
imprescindível fazer, antes, uma explanação breve da compreensão de homem-mundo para a
Psicologia como um todo, tomando como foco algumas de suas principais teorias e suas origens
filosóficas. Contudo, traremos apenas aquelas que sejam relevantes ao enfoque deste trabalho.
A distinção entre objetividade e subjetividade reina desde que a humanidade passou a
se perguntar sobre si mesma e sobre os fenômenos existentes. É uma discussão que não se
concentra apenas na Psicologia, mas permeia todo o saber e produção científicos. Tal paralelo
surge, arriscamos dizer, com a separação entre corpo e mente, fruto de concepções dualistas
sobre a natureza e a constituição humana.
As concepções dualistas vêm desde as discussões do filósofo grego Platão (428/427 –
348/347 a.C.) ao separar o mundo sensível do mundo das ideias, em que, neste último, todas as
formas são criadas pela natureza racional, enquanto que o mundo sensível – ou mundo material
– seria um reflexo dessas formas ideais (CHAUÍ, 2010).
A concepção de mente como algo distinto do corpo foi sendo performada historicamente
conduzindo estudos científicos ora concentrados em aspectos ditos mentais ou subjetivos ora
em aspectos comportamentais e sociais. Os aspectos comportamentais são considerados
fenômenos objetivos e, geralmente, são os únicos aspectos passíveis de observação empírica
(GOODWIN, 2010).
A dicotomia entre objetividade e subjetividade surge, então, como um sintoma das
dificuldades encontradas na produção científica e da busca pelo método mais adequado à
amplitude humana. Essa dicotomia pode ser explicada, primeiramente, através do que
19
chamamos monismo versus dualismo, ou seja, duas correntes distintas de pensamento. A
primeira corrente, o monismo, compreende o ser humano como alguém que é constituído por
um corpo e é dotado de singularidade, contudo, essa singularidade é construída na experiência.
A segunda corrente, o dualismo, percebe o ser humano como alguém que transcende essa vida
material e possui uma alma, possivelmente dada por Deus, que não pode ser alcançada pela
ciência (RIBEIRO, 1985).
Como principais ícones do pensamento dualista – ou idealista –, além de Platão,
supracitado, temos seu professor, o filósofo grego Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.), o filósofo,
físico e matemático francês René Descartes (1596 – 1650) e o filósofo alemão Friedrich Hegel
(1770 – 1831).
Quanto aos adeptos do monismo – ou materialismo – temos o filósofo grego Aristóteles
(384 a.C. – 322 a.C.); o frade católico Tomás de Aquino (1225 – 1274), que ressignificou o
pensamento aristotélico ao fazer um elo entre este e o cristianismo; o filósofo e empirista
britânico John Locke (1632 – 1704); e o naturalista britânico Charles Darwin (1809 – 1882),
conhecido pela sua obra revolucionária a respeito da evolução das espécies.
Frente à variedade de problemas e situações humanas na história, no decorrer do fazer
científico há a separação entre ciência e filosofia que desagua na especialização: um processo
que abre espaço ao nascimento do positivismo, em que é percebida necessidade de se delimitar
áreas específicas do conhecimento, para fins didáticos e de aprofundamento, bem como a
definição de um método dotado de rigor metodológico que conferisse à ciência confiabilidade
e fidedignidade, deixando a filosofia, então, responsável pelos “temas da alma” ou pelas
especulações sem comprovação (MORIN, 2002).
É o método científico, então, que delimita áreas específicas de investigação e os limites
da pesquisa empírica. Este irá se concentrar em aspectos objetivos (mensuráveis). Dentro da
Psicologia, apesar de não haver consenso em relação ao caráter objetivo ou subjetivo de
diversos fenômenos humanos, alguns dos aspectos estudados – mesmo em laboratório – são os
processos cognitivos e fenômenos mentais, as funções básicas do comportamento humano, a
estrutura da personalidade, a reprodução, a variabilidade genética, entre outros.
Inicialmente, aspectos subjetivos como consciência e percepção começaram a ser
estudados de maneira separada por estruturalistas. O Estruturalismo foi a primeira escola de
Psicologia criada e seus principais nomes foram o psicólogo alemão Wilhelm Wundt (1832 –
1920), que criou o primeiro laboratório experimental de Psicologia em Leipzig (1879), e o
20
psicólogo experimental inglês Edward B. Titchener (1867 – 1927), que foi um dos alunos de
Wundt.
Apesar das controvérsias históricas, devido à popularização equivocada propagada por
Titchener quanto ao sistema de seu mestre, Wundt não tinha, necessariamente, a pretensão de
produzir uma psicologia estruturalista. A chamada Psicologia Estrutural veio a ser formulada
e propagada, mais tarde, de maneira sistemática, pelo seu discípulo Titchener. O sistema teórico
de Wundt, por ter origens na pesquisa fisiológica da época e, depois, por ter sido alvo da
admiração de Titchener, acabou se unificando à psicologia estrutural que seu discípulo viria a
criar posteriormente (GOODWIN, 2010).
Uma evidência da unificação do sistema de Wundt ao de Titchener diz respeito ao
principal método do Estruturalismo, o chamado método de introspecção, que consistia no
estudo laboratorial controlado da percepção a partir de respostas de indivíduos treinados acerca
de como percebiam estímulos externos. No laboratório de Wundt, por sua vez, a introspecção
se dividia em dois fenômenos diferenciados: a auto-observação e a percepção interna, dois
movimentos distintos que, só mais tarde, vieram a ser dissolvidos em um único movimento – o
introspectivo (GOODWIN, 2010).
A percepção interna, então, diz respeito à apreensão dos fenômenos após sua ocorrência,
de modo que os indivíduos treinados poderiam perceber e avaliar a relação causal estabelecida
nesse processo, ou seja, seria possível avaliar quais estímulos estão envolvidos numa relação
de causa e efeito em relação a determinadas sensações. Como apenas os próprios indivíduos
poderiam descrever quanto à sua percepção – por ser algo predominantemente subjetivo – se
fazia necessário que os indivíduos fossem altamente treinados. Esse método, junto à auto-
observação experimental, possibilitaria que os resultados percebidos pudessem ser
reproduzidos experimentalmente em laboratório, onde haveria preparo e substituição das
condições externas. Uma vez monitorados, antes dos fenômenos aparecerem, se poderia
analisar as variáveis envolvidas em sua ocorrência e suas regras de organização
(MARCELLOS; ARAUJO, 2010).
Também não foi por acaso Wundt ser considerado o “pai” da Psicologia Experimental.
Na verdade, ele já tinha pretensões de criar uma nova ciência e uma “nova psicologia” com as
ideias que estava desenvolvendo em laboratório. Ele fez questão de delimitar esse espaço, como
o médico neurologista e psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856 – 1939) faria mais tarde,
no sentido de se responsabilizar por um novo paradigma científico que surgiria.
21
Outro fator determinante foi a disseminação que seu laboratório viria a ter após alguns
anos de sua fundação. A sua iniciativa acabou ganhando dimensões amplas de interesse por
parte da comunidade científica da época, bem como para a consolidação da Psicologia como
ciência. Diante disso, como ressalta Goodwin (2010, p. 125),
A nova psicologia de Wundt possuía dois programas principais: o exame da
experiência consciente “imediata”, por meio de métodos experimentais de
laboratório, e o estudo de processos mentais superiores, por meio de métodos
não laboratoriais.
A experiência imediata, para Wundt, era o que havia de mais amplo e complexo, por
isso requeria a minuciosidade do método laboratorial, inclusive se considerarmos a importância
de maior rigor devido à inconstância do fenômeno consciente. Para fazermos uma distinção
fundamental, a experiência imediata seria aquela em que vivenciamos diretamente um
fenômeno no ambiente, ou seja, sentir diretamente frio ou calor e percebê-lo internamente, e a
experiência mediata seria aquela em que conseguimos perceber algo, porém, a partir de um
mediador externo, como por exemplo, saber que está frio ou calor através da medição de
temperatura por um termômetro. Como ressaltam Marcellos e Araujo (2010, p. 3),
[...] a experiência poderia ser abordada por dois pontos de vista distintos,
porém complementares. Um deles refere-se ao domínio que procura, em suas
investigações, abstrair a atividade do sujeito e considerar somente os objetos
em sua regularidade espaço-temporal. Por este motivo e por recorrer à
formulação conceitual, seria dito mediato ou externo e caracterizaria o tipo de
experiência ao qual se dedicam as ciências naturais. O outro tipo de
experiência, chamada de imediata ou interna, seria aquele referente ao
domínio intuitivo, ou seja, da apreensão direta dos próprios fenômenos
subjetivos. A ciência mais geral que adota esta perspectiva seria a psicologia
(WUNDT, 1897, p. 1-6).
Acontece que medir a experiência consciente imediata não é algo de fácil acesso, mesmo
com os recursos em laboratório, aliás, é justamente esse fator que vem a ser, mais tarde, alvo
de críticas, pois argumenta-se que não se pode mensurar fenômenos dessa natureza. Wundt, de
certa forma, compreendia e reconhecia esse problema, todavia, ele defendia que
[...] embora o método experimental só ofereça acesso indireto à experiência
interna, estando limitado à manipulação e ao controle de suas condições
22
externas, a confiabilidade de seu uso estaria assegurada em função de os
processos psíquicos constituírem, com o mundo externo que os cerca, uma
única realidade e, portanto, apresentarem-se ao estudo científico em estreita
relação (MARCELLOS; ARAUJO, 2010, p. 4).
Um conceito que permitia tais investigações e, de certa forma, justificava, de maneira
mais esclarecedora, o status de ciência da Psicologia de Wundt era o conceito de paralelismo
psicofísico. Para ele, todos esses fenômenos só poderiam ser estudados enquanto
compreendidos como uma unidade – a unidade entre aspectos objetivos e subjetivos, porém,
uma unidade apenas de caráter relacional, não de correspondência ou identidade, como se dá,
por exemplo, no ideal platônico (o mundo sensível como reflexo ou idêntico ao mundo das
ideias).
Dada a precedência da vida orgânica sobre os fenômenos mentais, Wundt
entende que não poderia haver fenômenos psíquicos independentes de uma
base física, por outro lado, isso não significaria dizer que toda complexidade
da série psíquica poderia encontrar um correspondente na série física, o que
significaria reduzir os fenômenos psíquicos superiores, tais como aqueles de
caráter coletivo e cultural, a elementos fisiológicos. A proposta do paralelismo
psicofísico, assentada na relação intrínseca entre a experiência mediata e
imediata, assumiria, portanto, um caráter metodológico, capaz de nortear os
estudos científicos da vida psíquica individual, devendo, porém, ser
complementada, do ponto de vista coletivo, pela observação comparada dos
fenômenos complexos [sociais] (MARCELLOS; ARAUJO, 2010, p. 4).
Assim sendo, apesar de fazer uma distinção intrínseca de processos físicos e psíquicos,
Wundt procurava assumir uma postura monista de compreensão do ser humano, até mesmo
para se adequar ao modelo de ciência da época. Ele acreditava que determinados fenômenos
humanos – mas, não todos – poderiam ser submetidos ao modelo de investigação do método
científico, considerando sua constância e regularidade e, além disso, a adequação a este método
conferiria o status de confiabilidade e legitimidade aos resultados encontrados e às leis – mesmo
que processuais – estabelecidas pela Psicologia a respeito da consciência humana. Ainda assim,
em sua obra, a separação entre as instâncias objetiva e subjetiva se fazia presente, mesmo que
de forma sutil.
Não é à toa que, posteriormente, Wundt escreveu uma obra completamente dedicada ao
que ele chamava de Psicologia dos Povos, no original Volkerpsychologie, publicado em 1863,
onde abordou fenômenos de natureza sociocultural e intrinsecamente dinâmicos, ou seja,
23
imensuráveis à maneira do método científico e que, segundo o autor, ficariam a cargo de estudos
comparativos. Essa distinção, de certa forma, nos faz acreditar que os fenômenos sociais
acabaram ficando de fora da suposta unidade concebida pelo cientista – a unidade entre a vida
orgânica/física e os fenômenos mentais superiores/psíquicos.
Embora acreditasse que a investigação de laboratório se limitasse
necessariamente à experiência consciente imediata de processos mentais
básicos, Wundt tinha em mente um objetivo mais amplo para sua psicologia.
Ele queria analisar outros processos mentais, como aprendizagem, o
raciocínio, a linguagem e os efeitos da cultura, mas achava que, pelo fato de
estarem tão imbricados na história pessoal, na história cultural e no ambiente
social do indivíduo, esses processos não poderiam ser controlados o suficiente
para o exame em laboratório. Em vez disso, poderiam ser estudados apenas
por meio de técnicas de observação indutivas, comparações entre culturas,
análises históricas e estudos de caso (GOODWIN, 2010, p. 126).
Apesar de ter sido um marco ante à ciência experimental e para a própria Psicologia
como ciência, os estudos de Wundt não tiveram repercussão suficiente para perpetuarem-se
como uma abordagem psicológica de aplicabilidade. Conforme Marcellos e Araujo (2010, p.
2), por não ter conseguido se inserir “no âmbito das investigações empíricas, fundamentadas
pela lógica e pela teoria do conhecimento e testada suas hipóteses, [...] suas contribuições não
encontraram continuidade na história da psicologia”.
Para os teóricos do Funcionalismo – outra corrente da Psicologia, contemporânea ao
Estruturalismo – os atos mentais e subjetivos eram vistos apenas como um conjunto de
processos internos, consequentemente, inacessíveis do ponto de vista do método científico.
Todavia, a premissa principal, que também viria respaldar a noção de aplicabilidade da
perspectiva funcionalista, era de que os processos subjetivos ou internos agiam sempre em
função de um comportamento observável – aliado à sobrevivência –, logo, a subjetividade só
poderia ser estudada através desses comportamentos.
Assim, é desta forma que a consciência passa a ser considerada nos diversos
funcionalismos: a partir de sua função num duplo sentido: como um processo
dinâmico e como um processo orgânico dotado de finalidade adaptativa. Esta
concepção da experiência consciente abre assim uma nova questão, a saber, a
de sua função biológica. Nossa consciência opera aqui no ajuste a situações
problemáticas, sendo ativada com o fim de selecionar as melhores hipóteses
ou alternativas de ação. A experiência passa a ser vista a partir de uma nova
questão (a adaptação), por meio de diversos métodos, distintos da introspecção
controlada (os métodos comparativos com os animais, as psicometrias, a
24
observação natural) e regulada por um novo modelo inspirado na teoria da
seleção natural, fazendo da biologia a ciência-guia da nova psicologia em vias
de surgimento (FERREIRA, 2010, p. 188).
De inspiração darwinista e pragmatista, o Funcionalismo consistiu em uma ciência que,
além de postular o comportamento adaptativo como pressuposto fundamental – ressaltando o
valor ambiental concernente ao comportamento de seleção e avaliação dos organismos –
também possuía o caráter utilitário de buscar a real funcionalidade e aplicabilidade da teoria
para adaptação dos sujeitos na realidade, possibilitando o nascimento de uma Psicologia
aplicada e direcionada.
Inicialmente, as escolas do Funcionalismo se dividiram em duas: a Universidade de
Chicago e a Universidade de Columbia. Dentre os principais autores dessa perspectiva em
Chicago estão os professores e psicólogos norte-americanos John Dewey (1859 – 1952), James
Angell (1869-1949) e Harvey A. Carr (1873 – 1954). E em Columbia, os professores e
psicólogos norte-americanos Edward L. Thorndike (1874 – 1949) e Robert S. Woodworth
(1869 – 1962). Junto a eles, temos o psicólogo norte-americano William James (1842 – 1910),
que estudou e lecionou na Universidade de Havard e é considerado um dos principais
fundadores do Funcionalismo, juntamente com H. A. Carr, Dewey e Thorndike.
Quanto à compreensão do Funcionalismo acerca da relação entre objetividade e
subjetividade, iremos colocar em discussão o pensamento de dois funcionalistas dentre os
principais fundadores: o do psiquiatra clínico e matemático Harvey A. Carr e do psicólogo
pragmatista William James. Consideramos a apresentação de ambos como sendo suficiente para
a posterior análise deste trabalho.
Primeiramente, Harvey Carr afirmava que o objeto de estudo da Psicologia era,
sobretudo, a atividade mental – termo genérico utilizado para comportamento adaptativo. Para
ele, pode haver três tipos de métodos de abordagem: 1) Observação objetiva, em que as
operações mentais são apreendidas na medida em que refletem no comportamento; 2)
Observação subjetiva, em que acontece a apreensão das próprias operações mentais através do
método introspectivo – no entanto restrito a indivíduos treinados e habilidosos (nesse tipo de
método, observa-se certa tolerância ao estruturalismo, apesar das divergências entre essas
escolas); e 3) Observação social, em que se estuda a mente por meio de suas crenças religiosas,
criações, sistemas éticos, cultura, política etc.
25
Não é difícil notar a importante contribuição dos funcionalistas no que diz respeito ao
pioneirismo em relação à aplicabilidade da Psicologia como ciência, a transformando numa
possível prática, bem como no que concerne à compreensão do ser humano como agente ativo
no ambiente. Todavia, a respeito do pensamento de Carr, notamos, ainda, a separação sutil entre
objetividade e subjetividade não só pela delimitação dos métodos de abordagem – o que pode
ser meramente utilizado para fins didáticos –, mas, principalmente, pela inclinação ao método
introspeccionista da Psicologia Estrutural, o que remete à compreensão da mente como uma
estrutura de unidades elementares e a trata como um fenômeno paralelo ao corpo, bem como
devido a separação da categoria social quando colocada lado a lado das abordagens subjetiva e
objetiva.
James, por outro lado, quando decide enveredar pela corrente pragmatista dentro do
Funcionalismo é aquele que melhor se adequa à perspectiva da unidade entre aspectos objetivos
e subjetivos. No entanto, como seu colega Carr, no início, ele também correu o risco de se
prender ao dualismo, algo que acompanha mesmo aqueles que buscam assumir uma postura
científica materialista, como podemos observar até aqui, através do que ocorreu também com
Wundt.
Conforme Ferreira (2010, p. 185, grifos nossos),
A relação entre pragmatismo e funcionalismo é bastante estreita: os primeiros
filósofos pragmatistas como William James e John Dewey são também os
primeiros psicólogos funcionalistas. James Angell (1903), por exemplo,
estipula claramente que o funcionalismo é o pragmatismo psicológico, assim
como o pragmatismo é o funcionalismo filosófico. Mas esta relação é mais
complexa que a assinatura comum dos mesmos autores. Por exemplo, vemos
em James uma psicologia anterior a sua filosofia pragmatista que ainda não é
inteiramente funcionalista. A psicologia dos Princípios de Psicologia
(James, 1890), como Dewey (1940) posteriormente ressalta, ainda não é
plenamente funcional. Ela seria travada por obstáculos, como uma certa
substancialização do sujeito e o dualismo entre mente e corpo advogado
como atitude do psicólogo. É a partir do pragmatismo que o funcionalismo
psicológico vai ser proposto em sua radicalidade.
Entretanto, como todo e qualquer processo de produção do conhecimento não está livre
ou imune das contradições decorrentes de sua construção, o pensamento de James também
sofreu modificações ao longo do tempo. E mesmo ao lado de perspectivas dualistas, ele não foi
eximido de receber o título de principal funcionalista norte-americano.
26
Este autor escreveu em seu principal livro Princípios de Psicologia, publicado em 1890,
que o objeto de estudo desta ciência não é descobrir e analisar os processos elementares da
experiência perceptiva, e sim se debruçar sobre as pessoas verdadeiramente reais e seu processo
de adaptação às circunstâncias do mundo.
Para James, a função primordial da consciência é tornar os seres humanos organismos
preparados para responder satisfatoriamente às mudanças do ambiente. Segundo ele, a
consciência se configura como o fenômeno mais imprescindível para a evolução, para a
sobrevivência e para a perpetuação da espécie humana (FERREIRA, 2010).
Em suma, o Funcionalismo constitui a base do que, mais tarde, vem a ser uma das
vertentes mais importantes e paradigmáticas da história da Psicologia: o Comportamentalismo
ou Behaviorismo em seu termo original – corrente filosófica e empírica que tem como foco de
estudo o comportamento humano e suas manifestações subjetivas.
Nesta linha de pensamento, pela necessidade discursiva da seção – objetividade e
subjetividade – introduziremos aqui uma das vertentes do Comportamentalismo, o
Behaviorismo Radical, vertente criada pelo psicólogo norte-americano Burrhus Frederic
Skinner (1904 – 1990) que entende todos os fenômenos humanos como sendo comportamento,
inclusive os processos psicológicos básicos ditos mentais. Essa corrente de pensamento é
guiada por uma visão monista do ser humano, onde a distinção entre corpo e mente é dissolvida
e há certa tentativa de quebrar a segregação entre aspectos objetivos e subjetivos, dentre estes
também se incluem os aspectos sociais e culturais. (MOREIRA; MEDEIROS, 2007).
O Behaviorismo radical tem sua base teórica em três aspectos indissociáveis da vida
humana: filogênese, ontogênese e cultura. Para Skinner, esses três aspectos andam juntos e
constituem o humano, sendo possível fazer um estudo fidedigno considerando a relação entre
esses três âmbitos, que na vida vivida, atuam como um só. Como afirmam Hubner et al. (2012,
p. 101),
A história filogenética marca a herança da espécie a partir das contingencias
de sobrevivência que selecionam a forma e a função do corpo humano. A
ontogenética é responsável pela construção dos comportamentos ao longo da
história de aprendizagem desse corpo, tornando-o uma pessoa única. A
história cultural amplia, concomitantemente, essa construção em práticas
grupais entre os membros de uma cultura, transmitidas por favorecerem a
sobrevivência do grupo.
27
O que diferencia Skinner dos behavioristas clássicos – John B. Watson (1878 – 1958) e
Ivan P. Pavlov (1849 – 1936) – e nos força a citá-lo precocemente aqui é justamente a tentativa
de quebra da dicotomia, que, inicialmente, se dá ao ver unidade entre corpo e mente –
assumindo uma postura monista – e, posteriormente, ao focar, também, na unidade entre os
aspectos constituintes da vida humana: aspectos objetivos e subjetivos, ou como diria o próprio
Skinner: comportamentos públicos ou privados.
Como afirma Matos (1991), se compreendermos o comportamento humano como um
fenômeno concebido na relação entre o organismo e o ambiente externo, podemos também
chegar à conclusão de que tanto o ambiente interno – o organismo – como o ambiente externo
estão envolvidos nesse processo, ou seja, o ambiente denominado na perspectiva do
Behaviorismo Radical não se restringe apenas aos eventos públicos e observáveis, mas também
faz parte da vida interna dos indivíduos. Sendo assim, o ambiente pode estar fora ou dentro do
sujeito, ele é todo e qualquer evento, objetivo ou subjetivo.
Podemos observar com essa introdução à perspectiva comportamental que, talvez, o
Behaviorismo tenha sido a maior contribuição que o Funcionalismo tenha deixado como legado
à ciência psicológica, pois a filosofia behaviorista, como veremos no capítulo a seguir, foi uma
das teorias que veio a ganhar maior aplicabilidade aos diversos contextos humanos em que atua
a Psicologia. Além disso, com Skinner, o Behaviorismo passou também a evidenciar a possível
unidade do ser humano com o mundo que o cerca.
A próxima teoria da Psicologia a fazer essa discussão no que se refere à objetividade e
subjetividade é a Psicologia Sócio-histórica, vertente da área da Psicologia Social que vem a
ser considerada como “uma perspectiva crítica” das vertentes tradicionais – Psicanálise,
Behaviorismo e Gestalt – as quais explanaremos mais profundamente no próximo capítulo.
Como uma abordagem crítica, a Psicologia Sócio-histórica, perpetuada pela psicóloga
e professora brasileira Ana Mercês Bahia Bock (1952 –), declara-se anticientificista e, como
Dilthey, busca legitimidade científica para as ciências humanas. No entanto, não é com Bock
que nasce a Psicologia Sócio-histórica. Seu criador é o psicólogo e teórico russo Lev Vygotsky
(1896 – 1934) e a sistematização de sua teoria carrega a nomenclatura de Psicologia Histórico
Cultural. Essa, por sua vez, é a base da perspectiva sócio-histórica perpetrada por Bock,
ressaltamos seu nome uma vez que ela é a principal expoente desta teoria no Brasil.
Tendo como base epistemológica o Materialismo Histórico Dialético do sociólogo e
historiador revolucionário alemão Karl Marx (1818 – 1883) e do empresário industrial alemão
28
Friedrich Engels (1820 – 1895), o sistema teórico de Vygotsky se concentrou em unificar os
aspectos fisiológicos ou naturais do humano às noções psicológicas ou subjetivas do ser,
compreendendo os indivíduos como seres em uma unidade complexa que se constitui e se
desenvolve, intrinsecamente, na materialidade e historicidade da vida e da sociedade.
Ancorado nos pressupostos do Materialismo Histórico Dialético, Vygotsky compreende
que é através da própria ação e através do próprio trabalho – a sua principal ferramenta – que o
ser humano se desenvolve. Desse modo, são suas próprias ações que modificam o mundo e esse
movimento também o modifica, numa relação dialética. Como afirma Vygotsky (1996 apud
ZANELLA, 2004, p. 128), “[...] a tarefa fundamental da psicologia dialética consiste
precisamente em descobrir a conexão significativa entre as partes e o todo, em saber considerar
o processo psíquico em conexão orgânica nos limites de um processo integral mais complexo”.
Sendo assim, o autor também faz questão de ressaltar que afirmar a unidade entre a
psique e as funções cerebrais (fisiológicas) não é o mesmo que afirmar a noção de identidade –
no sentido de identificar como sendo iguais a função e a sua expressão psicológica – e sim
compreender os dois fenômenos como uma via de mão única, indissociáveis, imbricados em
uma relação dialética entre si e com o mundo (ZANELLA, 2004).
Segundo a Psicologia Histórico Cultural, portanto, o sujeito existe enquanto relação com
o mundo, ele internaliza o mundo e é nessa relação que ele produz cultura. Esse mesmo sujeito
é visto como ativo, autônomo, consciente e capaz de transformar a sua realidade por meio de
suas ações, ou seja, ao mesmo tempo em que transforma, é transformado pelo mundo. Como
podemos observar, na teoria de Vygotsky há maior flexibilidade em reconhecer a função dos
aspectos biológicos nesse processo, mas quando partimos para a Psicologia Sócio-histórica aqui
no Brasil, como veremos adiante, muitos desses aspectos são deixados de lado, tanto pelas
consequências da interpretação da teoria vygoskiana por Bock, bem como pela vinculação dessa
teoria a um viés político-ideológico.
No que diz respeito à posição político-ideológica da Psicologia Sócio-histórica aliada à
prática profissional do psicólogo, Bock (2004, p. 10 apud SANTOS, 2018, p. 23, grifos do
autor) afirma que
Ao mesmo tempo que esta tarefa, de definirmos o projeto de nossa
intervenção, se coloca como obrigatória, outro ganho acontece. Passamos a
nos ver, como profissionais, que através de nossas intervenções atuamos
no mundo; mudamos o mundo; nos objetivamos no mundo. Nos vemos,
então, como sujeitos que transformam o mundo a partir de sua prática
29
profissional. Isto passa a exigir que façamos de nosso projeto profissional,
um projeto político, de construção do âmbito coletivo.
Diante disso, Bock, que toma seu viés não só como uma teoria psicológica, mas como
instrumento político, faz críticas severas à Psicologia tradicional dizendo que esta é guiada por
uma visão dicotômica, reducionista e mecanicista do ser humano. Sendo assim, ela se propõe a
quebrar esses fatores deterministas e suas imposições. Defende que, sob nenhuma hipótese, a
Psicologia deve se resumir ao método científico das ciências naturais, afirmando ser este um
método que não abarca a essência social e intrinsecamente histórica do ser humano e,
consequentemente, o reduz à mecânica das leis gerais.
Conforme Santos (2018, p. 11), Bock “Segue adiante, lançando os pressupostos da
‘Perspectiva Crítica’, sendo: O fenômeno psicológico não é pertencente à natureza, não pré
existe e reflete a condição social, econômica e cultural do homem”. A Psicologia Sócio-
histórica no Brasil, por sua vez, não admite a existência de algo como a “natureza humana”, e
concebe o indivíduo como um produto ou reflexo da sua relação material com o mundo, lugar
implicado por aspectos socioeconômicos e culturais, que, segundo a autora, tem um peso muito
maior do que aspectos biológicos.
Para a Psicologia Sócio-histórica, em relação aos aspectos biológicos, quando estes não
são negados completamente, são compreendidos como condicionados à moldagem do social,
porém, para esta perspectiva, o movimento contrário, em que se entende que a genética molda
comportamentos, não é concebido. Dessa forma, quando é discutida a relação entre objetividade
e subjetividade, não há como não colocar, também, em discussão, a constituição humana. Logo,
[...] falar do fenômeno psicológico é obrigatoriamente falar da sociedade.
Falar da subjetividade humana é falar da objetividade onde vivem os homens.
A compreensão do “mundo interno” exige a compreensão do “mundo
externo”, pois são dois aspectos de um mesmo movimento, de um processo
no qual o homem atua e constrói/modifica o mundo e este, por sua vez,
propicia os elementos para a constituição psicológica do homem. As
capacidades humanas devem ser vistas como algo que surge após uma série
de transformações qualitativas. Cada transformação cria condições para novas
transformações, em um processo histórico, e não natural. O fenômeno
psicológico deve ser entendido como construção no nível individual do mundo
simbólico que é social. O fenômeno deve ser visto como subjetividade,
concebida como algo que se constituiu na relação com o mundo material e
social, mundo este que só existe pela atividade humana. Subjetividade e
objetividade se constituem uma à outra sem se confundirem. A linguagem
é mediação para a internalização da objetividade, permitindo a construção de
sentidos pessoais que constituem a subjetividade. O mundo psicológico é um
30
mundo em relação dialética com o mundo social. Conhecer o fenômeno
psicológico significa conhecer a expressão subjetiva de um mundo
objetivo/coletivo; um fenômeno que se constitui em um processo de
conversão do social em individual; de construção interna dos elementos e
atividades do mundo externo. Conhecê-lo desta forma significa retirá-lo de
um campo abstrato e idealista e dar a ele uma base material vigorosa. Permite
ainda que se supere definitivamente visões metafísicas do fenômeno
psicológico que o conceberam como algo súbito, algo que surge no homem,
ou melhor, algo que já estava lá, em estado embrionário, e que se atualiza com
o amadurecimento humano” (BOCK, 2004, p. 6 apud SANTOS, 2018, p. 15,
grifos do autor).
Por fim, resta esclarecermos a concepção de subjetividade e objetividade para a vertente
psicológica que é foco de nosso estudo: a Gestalt. Como ela se configura como o objetivo
último de nosso trabalho, se faz necessário o esclarecimento mais profundo de seu conceito já
neste capítulo.
O termo alemão Gestalt tem na base do seu significado a noção de boa forma, todo ou
configuração, remetendo à unidade ou totalidade. Ao longo deste trabalho, utilizaremos este
termo considerando a sua amplitude, que abarca todas as teorias e práticas que remetem a uma
compreensão de homem-mundo como um todo unificado que não pode ser compreendido a
partir da soma de suas partes e que existe apenas quando em relação com o mundo.
A despeito dessa configuração, dentro do todo que chamamos Gestalt se inserem muitas
perspectivas. Algumas delas são mais importantes para os fins deste trabalho: a Fenomenologia
Existencial, com seus primordiais pressupostos filosóficos; a Psicologia da Gestalt, como
ciência introdutória; e a Gestalt-Terapia, como prática.
Neste momento da discussão, o foco neste “todo” da Gestalt é imprescindível, posto que
a explanação de sua dimensão ampla se faz necessária para compreensão fidedigna de sua
constituição histórica. Só mais tarde, no capítulo de análise deste trabalho, poderemos nos deter,
de forma mais esclarecida, em sua aplicação prática e nas implicações dessa aplicação.
O conceito de Gestalt remonta um grande histórico de teorias desenvolvidas por
filósofos e psicólogos dos quais falaremos com mais afinco no próximo capítulo. Para sermos
mais precisos, porém, sem considerar uma perspectiva cronológica, podemos afirmar que o
desenvolvimento do conceito de Gestalt como um conceito chave da Psicologia se dá com o
nascimento da Psicologia da Gestalt, pois é esta perspectiva que dá início a essa abordagem no
âmbito da ciência psicológica.
31
Os criadores da Psicologia da Gestalt foram os cientistas e psicólogos alemães Max
Wertheimer (1880 – 1943), Wolfgang Kohler (1887 – 1967) e Kurt Kofka (1886 – 1941). O
pressuposto mais forte da Psicologia da Gestalt e que, mais tarde, viria a constituir, também, o
escopo da Gestalt-Terapia como prática psicoterapêutica é: o todo vai muito além da soma das
partes. Tal premissa considera a constituição humana como sendo um todo que não se resume
a processos segregados entre si, bem como, nem mesmo a soma desses processos, e sim à sua
totalidade, que é algo completamente distinto.
Sendo assim, expandindo para a nossa discussão, para a Gestalt, a relação entre
objetividade e subjetividade resulta na totalidade do sujeito, e essa totalidade transcende a
especificidade de cada um desses aspectos.
[...] a escola da Gestalt e Kurt Lewin nos leva de encontro ao indivíduo
considerado em sua totalidade. Neles, encontramos uma concepção de campo
onde todos os elementos se fazem presentes, os internos e os externos. Os
conscientes e os inconscientes. Cada qual com sua parcela de influência no
comportamento psico-social (DAMERGIAN, 1991, p. 66 apud SANTOS,
2018, p. 12).
A Gestalt, que compreende o sujeito como uma unidade, é tomada pela vertente crítica
da Psicologia Social – a Sócio-histórica – como uma psicologia “subjetivista”. Essa unidade é
expressa através da intencionalidade da consciência que – segundo o filósofo e matemático
alemão Edmund Husserl (1859 – 1938), considerado o pai da Fenomenologia –, a consciência
é sempre consciência de alguma coisa, ou seja, o sujeito existe apenas enquanto relação com o
mundo (HUSSERL, 2001).
Segundo a Psicologia Sócio-histórica, então, conceitos gestálticos como totalidade,
intencionalidade e essência dão corpo a uma teoria subjetivista que tem a razão como principal
instância. Esta teoria equivoca-se quando relaciona esses conceitos com a estrutura mental ou
identifica a própria Gestalt com o racionalismo. A respeito dessa crítica, Giusta (2013, p. 26)
afirma que
A gestalt, ao preconizar as estruturas mentais como totalidades organizadas
segundo princípios inerentes à razão humana, toma partido pela “pré-
formação”. Se as estruturas são, de fato, pré-formadas e não fruto da ação do
sujeito sobre o mundo objetivo e do mundo objetivo sobre o sujeito, não há
por que apelar para a atividade desse sujeito. Fica patente que, assim como o
32
behaviorismo é um objetivismo sem objetividade, a gestalt é um subjetivismo
sem subjetividade, o que dá no mesmo.
A crítica em relação ao suposto “subjetivismo” acontece devido ao foco que a Gestalt
dá à intencionalidade dos sujeitos – uma característica universal e essencial aos seres humanos
–, que são os únicos que podem realmente existir, enquanto as coisas apenas são. Acontece que
o equívoco pode ocorrer devido à errônea interpretação, visto que o indivíduo é o único que
pode existir uma vez que somente ele tem a capacidade de significar a própria experiência, e a
existência em si demanda significado e intenção. E quando se fala em essência, essa não diz
respeito, necessariamente, a um conceito abstrato ou à existência de uma alma que defina o
humano.
Conforme ressalta Ribeiro (1985, p. 45),
O caráter da essência é o refletir-se; o fundamento da essência é a reflexão em
si, e a reflexão em outro é o fenômeno ou o manifestar-se da essência. Por
outro lado, como a essência é precisamente o que existe, a existência é o
fenômeno. O fenômeno não é um aparecer subjetivo distinto de uma essência
ou número incognoscível, como para Kant; é o próprio manifestar-se objetivo
da essência, possui um valor objetivo. A realidade, última categoria da
essência, é a essência revelada exteriormente no fenômeno.
Assim, os objetos inanimados do mundo só ganham vida uma vez que ganham
significado e este só pode partir dos indivíduos que possuem consciência intencional. O ponto
chave é que essa noção de consciência também não se reduz ao intelecto ou à razão humana.
Somente à medida que são sujeitos à nossa intencionalidade é que os objetos ganham existência
e intenção, no mais, apenas são.
De toda forma, ser é diferente de existir, porém, um completa o outro – eu preciso ser
para existir, eu preciso existir para ter consciência de que sou. Assim, nessa relação dialógica
entre ser e existir, somos considerados fenômeno3. Ribeiro (1985, p. 53) nos traz em suas
palavras um pouco desse sentido de ser e existir:
3 Segundo Ribeiro (1985, p. 51), “tudo aquilo de que a consciência toma conhecimento de uma maneira
intencional pode ser chamado de fenômeno e se torna uma significação para a consciência”.
33
Sendo a consciência, consciência de alguma coisa, ela só é consciência quando
voltada-para um objeto e, de outro lado, o objeto só pode ser definido em
relação à consciência, se ele é um objeto-para-um-sujeito. Isto significa a
existência intencional do objeto na consciência. [...] o objeto só existe agora
em nós, porque nós o percebemos. [...] A realidade, a exterioridade, a
existência do objeto percebido e o seu próprio caráter de objeto dependem das
estruturas da consciência intencional, estruturas graças as quais a consciência
ingênua vê como vê.
Diferentemente da sócio-histórica, que apesar de afirmar um sujeito ativo o transforma
em um receptáculo de condicionamentos sociais, a Gestalt compreende o sujeito como alguém
que possui intencionalidade para o mundo – que detém a própria autonomia e consciência diante
das coisas. A crítica deve-se ao equívoco de que essa intenção se dá a priori, mas, como
mencionamos anteriormente, ancorados em Husserl, a consciência só existe enquanto
consciência de alguma coisa, logo, também só é possível enquanto relação com o mundo.
Como ressalta Penha (1991 apud DALGALARRONDO, 2008, p. 89),
Husserl propõe inverter essa visão meramente passiva da consciência (tabula
rasa); para ele, o fundamental da consciência é ser profundamente “ativa”,
visando o mundo e produzindo sentido para os objetos que se lhe apresentam.
Não existiria, então, uma consciência pura, pois ela é, necessariamente,
“consciência de algo”. A INTENCIONALIDADE, isto é, o visar algo, o
dirigir-se aos objetos, de modo ativo e produtivo é próprio da consciência na
visão fenomenológica.
O filósofo existencialista dinamarquês Soren Kierkegaard (1813 – 1855) dizia que “a
subjetividade é a verdade, a subjetividade é a realidade” (RIBEIRO, 1985, p. 32). Isto significa
a necessidade de se tentar compreender o indivíduo a partir de sua singularidade, de seu
manifestar-se subjetivo. Segundo Ribeiro (1985), conhecer é, portanto, fazer um apelo à
existência, à subjetividade.
Sendo assim, para a Gestalt, que se ancora em pressupostos fenomenológicos, a
subjetividade é a própria realidade do sujeito. A sua manifestação, apesar de objetiva, pois se
perfaz na materialidade da existência, não perde seu caráter subjetivo, pois depende da
singularidade interna do sujeito que a manifestou. Desse modo, a subjetividade,
primordialmente, depende da sua consciência intencional. Conforme Ribeiro (1985, p. 52),
34
A intencionalidade cria relação entre o sujeito e o objeto, entre o pensamento
e o ser, entre o homem e o mundo. A consciência é livre, é ativa, cabe a ela
dar sentido (intenção) às coisas. Ela não é um mero depósito de imagens e
representações de objetos que agiriam sobre os nossos sentidos. Não são os
objetos do mundo exterior que criam as imagens na consciência, mas é ela que
dá sentido ao que existe na realidade objetiva.
Diante disso, notamos que, dentre os conceitos explanados a respeito da relação
objetividade-subjetividade, o conceito de consciência intencional é de extrema importância no
que diz respeito à compreensão de um sujeito ativo, que não somente se condiciona à realidade,
mas cria a própria realidade. Essa compreensão também se faz imprescindível para o
entendimento de uma prática que se centre no ser humano como ponto de partida.
Consideramos que esse panorama que fizemos acerca dos tipos de ciência e suas
dicotomias nos oferecerá um norte em relação às principais vertentes da Psicologia e ao modo
como cada uma delas se constituiu, inclusive, a Gestalt-Terapia. Esse panorama irá oferecer um
melhor entendimento acerca dos caminhos percorridos no que se refere à prática do nosso
referencial teórico: a abordagem gestáltica.
É necessário entender onde cada uma dessas principais vertentes se insere, no sentido
de pensar, também, suas possíveis adequações e transformações, bem como a aplicação do que
já está posto como teoria e compreensão do ser humano, pois, só é possível chegarmos aos fins
objetivos deste trabalho – analisar a prática da Gestalt-Terapia a partir da sua visão de homem-
mundo – compreendendo por quais caminhos esta teoria se enveredou.
Por fim, apresentadas as principais perspectivas filosóficas e psicológicas a respeito da
relação entre objetividade e subjetividade e seus modos epistemológicos de ciência, no próximo
capítulo, explanaremos de forma breve as três principais vertentes da Psicologia como uma
ciência humana: a Psicanálise, o Comportamentalismo e a Psicologia Humanista.
35
3 AS TRÊS GRANDES VERTENTES DA PSICOLOGIA
Este capítulo tem a incumbência de apresentar, de maneira breve, as três principais
vertentes da Psicologia – a Psicanálise, o Comportamentalismo e a Psicologia Humanista –, a
fim de delimitar onde estas se inserem no que diz respeito aos tipos de ciência, discussão que
tem por objetivo situar a perspectiva teórica do nosso trabalho no tempo, na sua história e
também no processo de produção do conhecimento. Como falado anteriormente, tal explanação
e discussão dará norte a uma melhor compreensão da concepção de sujeito da Psicologia como
um todo e, consequentemente, à compreensão prática de sua aplicação.
3.1 Psicanálise
Iremos dar início com a Psicanálise de Sigmund Freud, aquela que, além de não ter
nascido de críticas às perspectivas anteriores, como a maioria das abordagens psicológicas,
introduziu a Psicologia propriamente dita no mercado das profissões a partir da descoberta da
“cura pela fala” – termo usado pela paciente do médico neurologista Joseph Breuer (1842 –
1925), colega de Freud, que mais tarde viria a se tornar sua paciente, comumente conhecida
como Anna O.
O estopim para a fundação da Psicanálise, além das necessidades financeiras de Freud
– que exigiu que este fosse mais do que um pesquisador – foi a sua relação com Joseph Breuer.
Anna O, que tinha vários sintomas histéricos, estava sendo tratada por ele através do seu método
catártico. Como ressalta Goodwin (2010, p. 427), “ele descobriu que, quando conseguia
remontar a primeira ocorrência de um sintoma, Anna vivenciava uma liberação emocional à
qual Breuer se referia como uma “catarse” e os sintomas cediam”.
Freud acompanhou esse caso junto a Breuer e, posteriormente, passou a tratar de Anna
sozinho – os motivos da transferência dos cuidados de Breuer para Freud são, ainda,
controversos (GOODWIN, 2010). Em meio ao tratamento de Anna, ambos passaram a
documentar o caso no livro intitulado Estudos sobre a histeria, publicado em 1895, obra que
passou a ser considerada um dos marcos da Psicanálise, na qual Freud cunhou seus primeiros
conceitos e fundamentos mais preponderantes, entre eles: a relação simbólica que os sintomas
demonstravam ter com eventos traumáticos; o conceito de insight, processo através do qual a
36
pessoa poderia ter o alívio dos sintomas, ao tornar algo inconsciente lúcido à consciência; e
também o conceito de transferência “para referir-se a esse apego ao terapeuta, considerando-o
um passo importante no caminho para recuperação” (GOODWIN, 2010, p. 427).
Quando Freud passou a consolidar sua carreira, em meados da década de 1890, através
da especialização no tratamento da histeria, ele trabalhou utilizando e testando vários métodos
de tratamento, entre eles a hidroterapia para acalmar os nervos e a hipnose como forma de fazer
vir à tona lembranças recalcadas. Foi esse movimento que o levou à técnica da associação livre,
a qual veio a ser o principal método da prática psicanalítica. A associação livre consiste em
falar o que vier à cabeça, sem censurar absolutamente nada. Freud encontrava neste método a
via principal que levaria à expressão do inconsciente, que, segundo ele, atua como um depósito
de reminiscências, para onde vão todos os resíduos simbólicos de determinados eventos
traumáticos (GOODWIN, 2010).
A análise dos sonhos é também um dos principais métodos da prática psicanalítica e
instrumento utilizado na exploração do inconsciente. Foi no ano de 1900 que ocorreu a
publicação oficial do considerado mais importante livro de Freud A interpretação dos Sonhos,
fruto não só de seus estudos e influências, mas também de sua recorrente autoanálise.
Freud achava que os sonhos eram desejos disfarçados, distinguindo entre seu
conteúdo manifesto (a descrição verbal que fornecemos dos sonhos; aquilo de
que eles aparentemente falam) e seu conteúdo latente (seu verdadeiro
significado inconsciente, que em geral tem relação com a sexualidade e/ou
agressividade). Por meio da elaboração onírica, o conteúdo latente dos sonhos
se transforma, simbolicamente, no conteúdo manifesto (GOODWIN, 2010, p.
429).
Para Freud, um importante fator para constituição humana – e dominante em relação à
condição problemática que, vez ou outra, nos acometem – é a sexualidade. À medida que
trabalhava com seus pacientes e avançava no tratamento da histeria, Freud alimentava a forte
crença de que esses problemas neuróticos tinham origem em problemas sexuais não resolvidos.
Inicialmente, fazia a relação direta de abusos sexuais relatados e os sintomas histéricos,
associando a histeria aos traumas da infância. No entanto, foi forçado a rever sua hipótese uma
vez que os relatos nem sempre eram comprovados, fazendo valer a noção de que poderiam ser
imaginários e frutos de desejos inconscientes. Foi assim, então, que ele desenvolveu sua
teorização sobre a sexualidade infantil, através do conceito de complexo de Édipo.
37
Em termos freudianos, o complexo de Édipo – inspirado na tragédia grega Édipo Rei de
Sófocles (496 a.C – 406 a.C) – diz respeito ao afeto que o menino sente pela mãe e o contraste
desse afeto em relação ao pai, aquele que detém o seu “verdadeiro” amor. O mesmo processo
acontece com a menina, mas o afeto é direcionado ao pai e a hostilidade à mãe. Para Freud, o
complexo de Édipo é o âmago da constituição humana, é quando se determina a estrutura a qual
o indivíduo pertence (neurótica, psicótica ou perversa) e se estabelece a sua personalidade,
através da formação da libido e do ego (GOODWIN, 2010).
A partir do complexo de Édipo, outros conceitos estruturais foram desenvolvidos, entre
eles, os conceitos chaves da estrutura da personalidade: id, ego e superego, e mais tarde os
mecanismos de defesa, bem como os princípios motivacionais originários como “eros, o
instinto de vida, manifesto na motivação sexual, e tânatos, a pulsão de morte, expressa por
meio da agressividade e da autodestruição” (GOODWIN, 2010, p. 43, grifos do autor).
A Psicanálise de Freud, ao chegar ao século XX, já vinha sendo denominada pelo seu
criador como a sua “metapsicologia”, nomenclatura escolhida para batizar a sua teoria geral
do comportamento humano. Apesar do seu rigor quanto à estrutura da teoria psicanalítica, essa
metateoria não deixou de sofrer as influências do contexto da época, bem como as influências
do próprio desenvolvimento da história do seu fundador, que se abalou profundamente com os
efeitos da Primeira Guerra Mundial, ao notar os atos desastrosos que o homem era capaz de
cometer, bem como por ter passado pela morte de uma de suas filhas nesse mesmo período.
Isso tudo fez Freud refletir de maneira muito intensa a respeito da morte e foi nesse processo
que ele desenvolveu o conceito de pulsão de morte – mais uma faceta do ser humano a ser
agregada à teoria, junto à pulsão de vida.
Dentre as três instâncias que compõem a estrutura da personalidade, o ego, que se situa
no centro desta, é aquele que busca manter o equilíbrio entre as outras instâncias – o id e o
superego. Freud situa esse centro entre as partes consciente, pré-consciente e inconsciente. O
ego, por estar no centro, é o responsável pelo equilíbrio de forças decorrentes do conflito
constante entre o id e o superego. O id é aquele responsável pelos nossos instintos mais
primitivos, é a-moral – não possui moral, ou seja, também não é imoral, simplesmente não
atribui valor – e é a-temporal. Demanda, a todo o momento, a satisfação de suas necessidades,
principalmente sexo e agressividade.
Na outra instância, há o superego, aquele que detém as regras da sociedade e da
civilização, que atua como um regulador de condutas, representa os valores morais aprendidos
e trabalha impedindo que os instintos do id se expressem de maneira crua. É nesse embate que
38
o ego se insere atuando com o objetivo de não permitir que o indivíduo se aniquile nesse
conflito, ou mesmo se renda a alguma das forças de forma unilateral. Goodwin (2010, p. 432)
afirma que
O ego precisa, além disso, levar em consideração os fatores ambientais
presentes no mundo real, os quais entram no sistema através do que Freud
denominou sistema de “percepção-consciência”. O ego que funciona bem,
segundo Freud, serve de mediador, direcionando as necessidades provenientes
do id de maneira realista e compatível com os valores morais.
Por fim, quanto à teoria psicanalítica, resta apresentarmos os mecanismos de defesa do
ego, que constituem formas de se proteger do real conteúdo potencialmente traumático ou
traumático das situações da vida cotidiana. Os principais mecanismos de defesa são: 1)
recalque, acontece através da parte inconsciente do ego e consiste na expulsão dos conteúdos
reprimidos e indesejados para o inconsciente; 2) projeção, processo em que atribuímos a um
outro características que são nossas, porém, não admitimos, ou seja, projetamos em outra pessoa
como forma de defesa; 3) sublimação, um dos processos mais saudáveis entre os mecanismos
é canalizar as energias que seriam direcionadas a alguma pulsão instintiva e primitiva,
redirecionando a outras atividades de valor social ou para o indivíduo e 4) formação reativa, os
impulsos geralmente considerados reprováveis pelo indivíduo são substituídos pelo seu oposto
para esconder os verdadeiros sentimentos negativos, por ex.: o sentimento de rejeição pelo
próprio filho é reprovado e substituído pelo comportamento excessivamente protetor
(GOODWIN, 2010).
Por fim, consideramos importante fazer um resgate das influências históricas que
implicaram o pensamento de Freud e a construção da sua teoria e prática psicanalítica. As
influências históricas de qualquer teoria implicam diretamente na sua categorização dentro de
um tipo de epistemologia específico, ou seja, dentro de uma forma específica de produção de
conhecimento, tal qual discutimos anteriormente no capítulo anterior sobre as formas de ciência
(explicativa e compreensiva) e suas delimitações no que diz respeito à objetividade e
subjetividade.
As influências filosóficas de Freud, especificamente, não são poucas. Mais da metade
da sua formação em Medicina aconteceu ao lado de fisiologistas. Uma das maiores influências
foi o seu mentor Ernst Brucke (1819 – 1892), psiquiatra e psicólogo alemão, que era o diretor
do Instituto de Fisiologia da sua Universidade (GOODWIN, 2010). Assim sendo, Freud, que
39
era apaixonado pela pesquisa, se enveredou cedo para o lado das ciências naturais, uma vez que
era a forma de ciência que dominava o contexto da época.
Com efeito, essa formação [de Freud] ocorreu durante um período de grande
produção no que se refere aos avanços das diversas disciplinas
tradicionalmente tidas como modelos para a ciência, sendo que isso
possibilitou o surgimento de projetos decisivos de psicologia científica. [...] a
medicina, em seus diversos campos, começava a estabelecer com a física uma
relação cada vez mais consistente, abrindo espaço para a exploração
experimental do corpo (CARVALHO; MONZANI, 2015, p. 784).
Dessa forma, Freud cresceu dentro da Universidade buscando sempre – de maneira
muito espontânea e fiel a si mesmo – formas de pesquisa que correspondessem às exigências
científicas da época. Quando adentrou no âmbito da Psicologia, através da hipnose, não deixou
de lado essa fidelidade à ciência, considerando sempre a causalidade dos fenômenos, e
buscando sempre a origem dos fatos. No entanto, mesmo assim, ele não ficou imune às críticas
e rigidez dos colegas cientistas que aferravam com fortes argumentos a imprecisão e “fantasia”
que a hipnose, a Psicanálise e suas ideias no geral representavam.
Freud, todavia, não concordava que estivesse fugindo do âmbito das ciências naturais,
pois, para ele, a própria alma humana se constituía como um fenômeno natural, sendo assim,
mantinha-se constante em suas ideias e considerava que a Psicologia era uma ciência que
também deveria estar alinhada com a Medicina, a Fisiologia etc. (CARVALHO; MONZANI,
2015).
Os médicos fisiologistas da época ainda estavam impactados com as ideias de Charles
Darwin que não datavam, sequer, 20 anos de publicação, consequentemente, também afetou
Freud de maneira intrínseca. Como ressalta Goodwin (2010, p. 425),
Em primeiro lugar, a percepção básica de Darwin de que a natureza humana
se baseia em seu passado animal forneceu respaldo para as ideias de Freud
acerca da importância de seus instintos biológicos na motivação do
comportamento e do fato que o comportamento nem sempre é “racional”. Em
segundo lugar, a crença de Freud na importância central da motivação sexual
decorre logicamente do fato, bastante óbvio, de que o sexo e a resultante
perpetuação da espécie constituem a própria base da evolução.
40
No entanto, não poderíamos esquecer do fato de que a Psicanálise teve seus dissidentes,
apesar de estar intimamente ligada ao seu fundador. Entre os dissidentes mais destacados – que
desenvolveram sistemas próprios – estão o médico psicanalista austríaco Wilhelm Reich (1897
– 1957), o professor e psicanalista americano Otto Rank (1884 – 1939), o psicanalista
culturalista alemão Erich Fromm (1900 – 1980), o psiquiatra húngaro Alfred Adler (1870 –
1937) e o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875 – 1961), um dos melhores amigos de Freud,
pioneiro no tratamento da esquizofrenia e, posteriormente, criador da Psicologia Analítica.
Um dos principais motivos para ocorrência e difusão das dissidências da Psicanálise
freudiana, além do dogmatismo de Freud em não mudar ou flexibilizar a sua compreensão
teórica a respeito do ser humano, foi justamente a sua tendência em colocar a sexualidade como
fonte principal de todos os problemas e, também, como parte estrutural determinante da
personalidade.
Jung merece maior destaque, pois, sua perspectiva – intimamente holística e simbólica
acerca da busca humana por sentido –, mais tarde, viria a ser considerada uma das mais
importantes influências para o desenvolvimento das psicoterapias fenomenológico-existenciais
e, consequentemente, para a Gestalt-Terapia como prática clínica e psicoterapêutica. Conforme
ressalta Fonseca (2006, p. 54, grifos do autor),
Com a sua concepção [de Jung] de individuação, como uma apropriação, cada
vez mais plena, pelo homem, das camadas progressivamente mais profundas
de seu ser, e de sua vinculação com o universo; e com uma compreensão deste
processo como o desdobramento da própria saúde do ser humano, Jung se
contrapôs ao modelo psicanalítico freudiano, que bipartia a pessoa nas pulsões
de morte e de vida, e que entendia uma necessidade de coação social na
constituição do ego e da pessoa, para que o ser humano não realizasse
justamente aquilo que ele seria mais profundamente, e que, para Freud se
constituía como um poço de instintos destrutivos e anti-sociais. Para Jung não.
Na integração de seus níveis mais profundos de ser é que residia, para ele, a
saúde do ser humano, e o desdobramento desta saúde era exatamente, para ele,
a apropriação e integração em sua personalidade, pela pessoa, dos níveis mais
profundos de seu ser.
Jung foi o primeiro a postular – ao menos entre o meio psicanalítico – a noção de
totalidade do indivíduo, amparada em seu conceito de self. O self constitui, sob a perspectiva
junguiana, a totalidade do ser almejada em um contínuo processo de individuação, ou seja, de
constante busca de si mesmo. Para Jung chegar a essa conclusão ele percorreu anos de pesquisa
através do estudo comparado entre culturas humanas diversas, o que fortaleceu a premissa de
41
que essa busca por sentido e pela totalidade essencial tem dimensões arquetípicas autônomas
– energéticas, transcendentais e espirituais – que permeiam toda a humanidade e afetam os
indivíduos de maneira individual e coletiva.
Por isso, Jung é considerado como uma das influências – mesmo que remotas – da
Gestalt-Terapia, uma vez que tentou trazer a noção de totalidade do indivíduo buscando estudar
várias dimensões de sua vida – como a cultura, a consciência, a espiritualidade e a atuação das
camadas mais profundas do ser no direcionamento de sua intencionalidade.
Além de ter sido um teórico importantíssimo para área da Psicologia, que trouxe
perspectivas que englobam vários fatores excluídos dos estudos acerca do ser humano, Jung foi
também essencial à formação do todo da Gestalt como teoria e prática, tanto pela concepção
holística, como pela perspectiva humanista de interpretação da realidade.
A seguir, iremos discorrer sobre o Comportamentalismo, a segunda principal vertente
da Psicologia, que surge como pioneira no que diz respeito ao contraponto feito à Psicanálise.
O comportamentalismo, aliado ao método científico, é a vertente que virá apresentar críticas
ferrenhas à teoria freudiana – a qual, pelo seu método interpretativo – não é passível nem de
comprovação e nem de refutação.
3.2 Comportamentalismo
A fundação do Comportamentalismo – também conhecido como Behaviorismo – como
uma vertente da Psicologia deve o seu crédito a Watson, psicólogo experimental norte-
americano já citado no capítulo anterior. A atribuição de Watson como “fundador” dessa
perspectiva se deve a seu status de psicólogo comportamental, fortemente defendido por ele
mesmo e, também, ao seu proclamado Manifesto Behaviorista, o qual tentou definir o objeto
de estudo da Psicologia e marcou, de certa forma, o início de um verdadeiro movimento dentro
da Psicologia norte-americana.
Apesar de Watson ter sido o primeiro a proclamar a Psicologia como uma ciência
behaviorista, o Comportamentalismo não surge, especificamente, com ele. Antes disso, houve
a perspectiva funcionalista, que já colocava em foco o comportamento como o único passível
de observação e, posteriormente, o fisiologista russo Pavlov, também citado anteriormente.
42
Pavlov, então, apesar de ter sido chamado de psicólogo – devido à sua pesquisa acerca
do condicionamento reflexo – não queria ser titulado dessa forma. Segundo ele, era apenas um
fisiologista, e quanto aos objetivos do método científico, afirmava que
[...] a única estratégia cientificamente defensável era limitar a investigação a
estímulos externos e reações fisiológicas mensuráveis. A “abordagem
psicológica”, por outro lado, implicava um dualismo entre processos
mentais e físicos que Pavlov não estava disposto a aceitar (GOODWIN,
2010, p. 340, grifos nossos).
A contribuição de Pavlov para a Psicologia consistiu, então, na descoberta do que ele
chamou de reflexo incondicionado, conceito esse evidenciado através de suas pesquisas com
cães em laboratório. Foi neste estudo com cães que Pavlov se utilizou do condicionamento
reflexo – ou clássico como mais tarde viria a ser chamado por Skinner – como um método
comportamental que visava produzir um determinado comportamento alvo.
Além de estudar, então, os mecanismos comportamentais de estímulo-reação dos
organismos, Pavlov estudara também, nesse processo, uma maneira de controlar o
comportamento. Algo que, mais tarde, ele viria justificar como um objetivo último da ciência
comportamental: a previsão e controle do comportamento humano e não humano.
O condicionamento reflexo, então, consiste no emparelhamento de um estímulo
incondicionado – presente no processo de reflexo incondicionado (resposta involuntária do
organismo frente a um estímulo) – a um estímulo neutro com vistas a produzir um reflexo
condicionado (ou seja, uma resposta condicionada a este estímulo neutro, e não somente ao
estímulo incondicionado ou estímulo primário). O resultado deste condicionamento produziria,
então, o que antes era inexistente – uma resposta automática do organismo (reflexo
condicionado) e um novo comportamento. Tal movimento é representado na figura a seguir.
43
Figura 1 – Esquema S-R (Estímulo Resposta)
Fonte: Adaptação de Moreira e Medeiros (2007)
O reflexo incondicionado se refere a padrões de respostas inatos que todos os seres
humanos possuem selecionados pelo ambiente durante a história evolutiva das espécies. O
condicionamento reflexo, pois, é a mecânica que produz uma gama de novos comportamentos
reflexos que, no entanto, não seriam mais incondicionados às formas inatas e sim condicionados
pelos estímulos do meio ambiente, em outras palavras: comportamentos aprendidos.
Os estímulos são provenientes do ambiente externo e provocam, invariavelmente,
determinadas respostas/mudanças nos organismos. Esse processo deriva da noção de Darwin
de adaptação, que consiste no processo de aprendizagem do organismo decorrente da influência
desses estímulos, que o faz se adaptar às mudanças do ambiente e, consequentemente, alterar a
própria constituição (MOREIRA; MEDEIROS, 2007).
Watson, por sua vez, foi aquele que mais aproximou a perspectiva Comportamental da
Psicologia, e apesar de divergir de forma precisa do Funcionalismo, conduziu estudos ao lado
do funcionalista Carr. No entanto, vale ressaltar que ele foi mais radical do que qualquer outro
behaviorista ao defender um limite extremo entre objetividade e subjetividade e,
44
consequentemente, a eliminação da Psicologia como estudo da consciência em detrimento da
Psicologia como estudo do comportamento.
Para Watson, a Psicologia deveria esquecer completamente qualquer método
introspeccionista ou subjetivo para se deslumbrar nos ditames da ciência comportamental, bem
como deveria esquecer a noção de consciência e trabalhar apenas o comportamento observável,
como nos traz o próprio Watson (1913, p. 158 apud GOODWIN, 2010, p. 352) em seu
manifesto:
A psicologia como o behaviorista a vê é um ramo puramente experimental e
objetivo das ciências naturais. Seu objetivo teórico é a previsão e o controle
do comportamento. A introspecção não é parte essencial de seus métodos, e o
valor científico de seus dados não depende da presteza com que se prestam à
interpretação em termos de consciência. O behaviorista, em seu empenho de
obter um esquema unitário da reação animal, não conhece nenhuma linha
divisória entre o homem e o animal [...].
Muito posteriormente a anos de pesquisa dedicados à ciência comportamental, Watson
acabou por se voltar ao campo da publicidade. Apesar de suas contribuições à ciência do
comportamento, temos de concordar com a história evidenciada aos olhos de Goodwin (2010,
p. 363) ao afirmar que “em certo sentido, o Behaviorismo watsoniano foi um tremendo
fracasso”, pois, apesar de pregar tanto o rigor metodológico, muitas de suas inferências
decorriam de nada além de alegações sem fundamentos e sem tantas evidências empíricas – as
quais o mesmo julgava tão essenciais. Todavia, não podemos deixar de admitir que, como
Wundt, historicamente, Watson também foi um importante psicólogo ao ajudar a firmar o lugar
da Psicologia como uma ciência possível.
De certa forma, ele também contribuiu para a difusão do pensamento behaviorista entre
os norte-americanos – como aconteceu com a perspectiva funcionalista – no que diz respeito à
questão da aplicabilidade da ciência psicológica à vida real e sua eficácia no trato dos problemas
humanos, bem como à forte insatisfação com o método introspeccionista, tal qual lhes parecia
desprovido de aplicação prática. De todo modo, foi apenas entre os norte-americanos que o
Behaviorismo ganhou toda a difusão no início de sua propagação, não tendo tanta repercussão
em outros países, aliás, o utilitarismo sempre foi uma marca e um objetivo dos Estados Unidos
(GOODWIN, 2010).
45
Um pouco mais tarde, porém, já no fim da década de 1920 e início da década de 1930,
o Behaviorismo passou a ganhar nova força através dos chamados neobehavioristas – os
psicólogos norte-americanos Edward C. Tolman (1886 – 1959) e Clark Hull (1884 – 1952) – e
com o Behaviorismo Radical de Skinner. Diante disso, os Behaviorismos watsoniano e
pavloviano passaram a ser denominados de Behaviorismo Clássico em relação às novas
correntes que surgiram. Toda essa força do Behaviorismo decorreu, também, do contexto da
época, em que vigorava a disseminação do positivismo lógico, que tinha entre seus princípios a
pesquisa experimental com base em fenômenos observáveis e replicáveis, bem como o
desprendimento de métodos “especulativos” de se fazer conhecimento.
O problema é que, mesmo se concentrando no que é observável, é difícil, se
não impossível, evitar a discussão de conceitos não observáveis quando se
desenvolve uma teoria. Por exemplo, se você acredita que o comportamento
humano pode ser motivado pela necessidade de reduzir um impulso forte
como a fome, não terá outro jeito a não ser definir exatamente o que é a fome
e como esta funciona para nos motivar a agir (GOODWIN, 2010, p. 370).
Fazendo um elo à citação de Goodwin, entendemos que a definição hipotético-dedutiva
ou indutiva de um determinado fenômeno não necessariamente concebe um fim pronto e a priori
a respeito do fenômeno – não de uma maneira irreversível –, pelo contrário, serve de guia ao
estudo, o qual irá comprovar a hipótese ou não. No caso do método indutivo, a hipótese sequer
existe, o que existe são princípios observáveis que poderão ser transformados em princípios
gerais, a depender dos resultados encontrados.
A motivação, por exemplo, é um fenômeno não observável e, como concluiremos mais
a frente, foi estudada a fundo pelo Behaviorismo, que, antes, precisou definir o que é motivação,
para só, então, poder explorar o fenômeno estudado. Isso não significa, porém, que estudar o
fenômeno lhe dando uma definição seja algo puramente especulativo, muito pelo contrário,
diferentemente da criação e comprovação de hipóteses ou formulação de leis que se
demonstram regulares, a especulação chega à definição e se encerra nela mesma – já os métodos
hipotético-dedutivo e indutivo ancoram suas hipóteses em traços evidentes, que só então
poderão se provar generalizáveis ou universais.
Sendo assim, podemos chegar à conclusão de que o equívoco das perspectivas
positivistas se encontra no extremismo de considerarem como objeto de estudo apenas
fenômenos observáveis, uma vez que muitos dos aspectos estudados por essas perspectivas não
46
se aplicam unicamente a essa categoria, pois, na maioria das situações, são fenômenos
intrinsecamente interligados objetiva e subjetivamente, portanto, fenômenos não-observáveis
acabam se implicando, também, nessa relação.
Para finalizar esta seção a respeito do Behaviorismo, não podemos deixar de aprofundar
um pouco mais as ideias daquele que consideramos um dos principais ícones dessa teoria –
Skinner – do qual já falamos um pouco no capítulo anterior. Falar de Skinner quando se trata
da perspectiva comportamental é imprescindível, uma vez que foi ele quem deu vida à
aplicabilidade de uma perspectiva que tinha tudo para ser só mais um pensamento determinista
e reducionista sobre o ser humano, assim, ressalta-se que Skinner foi o psicólogo que salvou o
Behaviorismo de afundar-se completamente neste erro.
Como já trouxemos anteriormente, Skinner foi o único, dentro da perspectiva
comportamental, a buscar, mesmo que sutilmente, uma unidade entre aspectos objetivos e
subjetivos para a constituição humana, e mesmo concordando com o postulado do
Behaviorismo Clássico a respeito do foco nos fenômenos observáveis, ele tinha outra forma de
enxergar de que maneira esses fenômenos eram constituídos e expressos. Para ele, não havia,
pois, distinção, tudo era comportamento, inclusive o que fazia parte da subjetividade dos
indivíduos. Logo, a subjetividade também poderia ser estudada pela Psicologia, e desta vez, por
um método que diferia completamente do método introspeccionista: a análise experimental do
comportamento.
O principal postulado de Skinner, que amplia o escopo da filosofia behaviorista, é o
conceito de comportamento operante (que corresponde à ação do organismo no ambiente), este
conceito caminha ao lado do conceito de comportamento reflexo de Pavlov (a resposta do
organismo ao ambiente). Nesta linha de pensamento, o condicionamento operante de Skinner
complementa o condicionamento clássico (reflexo) de Pavlov. Sendo assim, Skinner postula o
condicionamento operante como um outro aspecto do controle do comportamento.
O comportamento operante, pois, consiste nos comportamentos emitidos pelos
indivíduos que produzem uma mudança no meio ambiente, ou seja, diz respeito à forma humana
de “operar” ou agir no mundo (GOODWIN, 2010). Sendo assim, segundo Skinner, em
Comportamento Verbal (1957, p. 1), “os homens agem sobre o mundo, modificando-o e, por
sua vez, são modificados pelas consequências de suas ações”. É dessa forma, então, que Skinner
garante a capacidade ativa do indivíduo no mundo, sem deixar de assumir o princípio
importantíssimo a respeito das consequências destas ações, que também são determinantes para
a constituição humana.
47
Em relação à necessidade de se ampliar o entendimento acerca das formas de
comportamento e condicionamento, Goodwin (2010, p. 393) ressalta que
O condicionamento do tipo S [“S” significa estímulo – modelo Pavloviano de
pareamento entre estímulos] explica um certo tipo de comportamento, mas
Skinner argumentava que ele não explicaria muitos comportamentos que
parecem não ter um estímulo facilmente identificável. Isso é, certos
comportamentos são emitidos pelo organismo e controlados pelas
consequências desses comportamentos, e não por um estímulo indutor.
Logo após o postulado sobre o comportamento operante, Skinner estabelece o
condicionamento operante como método fundamental que dará suporte ao que define como
sendo o objetivo da ciência comportamental: a previsão e controle do comportamento (nesse
quesito, o autor não diverge de nenhum dos behavioristas anteriormente citados). Para ele, o
condicionamento operante deveria ser utilizado através da análise experimental do
comportamento, a qual constitui um método/prática ainda mais abrangente, em que se inserem
todos os demais postulados do Behaviorismo.
Skinner, diferentemente de como fizeram os behavioristas do passado – e como também
faziam os teóricos da Psicologia Cognitiva4, a principal rival do Behaviorismo – não admitia
métodos hipotético-dedutivos. Para ele, não havia hipóteses “a priori” e, como ressalta
Goodwin (2010, p. 396), “preferia a abordagem puramente indutiva da pesquisa, estudando
exemplos de comportamento observável e buscando regularidades que pudessem tornar-se
princípios gerais”.
Nessa mesma linha de não se ancorar em hipóteses definidas a priori, Skinner também
ia de encontro ao que ele chamava de ficções explanatórias. Segundo Goodwin (2010, p. 398),
“a ficção explanatória é a tendência a propor algum fator interno hipotético situado entre os
estímulos observáveis e os comportamentos mensuráveis e, então, usar esse fator como
pseudoexplicação do comportamento”. Para Skinner, então, tal explicação, só poderia estar no
histórico de vida e aprendizagem dos indivíduos e nas contingências de reforço a qual foram
expostos especificamente no momento atual do comportamento em evidência.
4 Área da Psicologia que estuda os processos cognitivos (ou mentais) relacionados aos comportamentos,
como por exemplo: memória, pensamento, emoção, sentimento, percepção, atenção etc.
48
Esse entendimento do autor a respeito das ficções explanatórias foi o que o levou a
criticar fortemente as posturas dos fisiologistas a respeito do reducionismo do comportamento
à atividade do sistema nervoso; e a se contrapor aos cognitivistas que se debruçavam sobre
“pseudoexplicações” a respeito do movimento interno dos indivíduos, e nesse processo,
consequentemente, caíam numa perspectiva mentalista de compreensão do ser humano.
A respeito da liberdade de escolha do ser humano – um fator de discussão importante
para nosso trabalho – Skinner defendeu, por uma vida, a mensagem de que esta liberdade era
uma ilusão. Apesar de constar no escopo do comportamento operante uma faceta do
comportamento humano que atua sobre o mundo, para ele, a noção de liberdade de escolha ia
totalmente de encontro ao pressuposto principal da análise do comportamento: a ideia de que o
comportamento segue leis previsíveis e mensuráveis e é passível ao controle das contingências
de reforço ambientais (MOREIRA; MEDEIROS, 2007).
Consideramos que essa defesa de uma vida inteira pode ter sido equivocada no sentido
de contradizer o próprio princípio skinneriano de comportamento e condicionamento operante,
uma vez que agir e se adaptar são comportamentos sumariamente ativos, pois produz mudanças
ambientais. Até mesmo sujeito ao condicionamento, o indivíduo não deixa de produzir
respostas autônomas, se considerarmos, nesse sentido, sua capacidade de filtragem interna ou
privada (comportamentos privados, como por exemplo, o pensamento, a percepção, a atenção
etc.).
O melhor seria dizer que a liberdade de escolha não existe sem variáveis intervenientes,
ou seja, sem fatores externos que a influenciam. Aliás, é preciso admitir que o ambiente também
é autônomo, logo, neste sentido, sim, a liberdade estaria condicionada ao meio ambiente. No
entanto, dizer que a liberdade não existe de jeito nenhum e é uma ilusão anula completamente
a própria filosofia behaviorista de compreensão do ser humano em prol da soberania das leis e
contingências de reforço universais – tão exigidas pela ciência experimental.
Uma das maiores contribuições do Behaviorismo à história da Psicologia foi o produto
final resultante da grande necessidade que a maioria de seus teóricos sentiu em buscar
funcionalidade e eficácia para os seus sistemas aplicados à realidade e, consequentemente, ao
bem-estar humano em geral (GOODWIN, 2010). Tanto quanto as perspectivas funcionalistas e
behavioristas ganharam mais impacto do que os sistemas de Wundt e Titchener, também o
Behaviorismo Radical de Skinner teve maior respeitabilidade e continuidade prática do que os
sistemas neobehavioristas de Tolman e Hull.
49
A seguir, apresentaremos a última das três principais vertentes da Psicologia: a vertente
Humanista e seus desdobramentos. É justamente essa a vertente que irá desaguar na Gestalt-
Terapia como teoria e prática, sendo imprescindível para a consolidação de sua visão de
homem-mundo e também para o desenvolvimento das psicoterapias fenomenológico-
existenciais.
3.3 Psicologia Humanista
Para introduzirmos a Psicologia Humanista como uma vertente, se faz necessário um
apanhado breve da principal teoria que lhes deu base, a Psicologia da Gestalt, que se valeu dos
postulados de Husserl ao construir sua teoria sobre a percepção humana e se tornou o ponto de
partida para um movimento posterior imprescindível no que diz respeito à epistemologia da
ciência psicológica: o Movimento Humanista, de base intrinsecamente fenomenológico
existencial. Mais tarde, este movimento viria a ser chamado de Psicologia Humanista.
Como trouxemos anteriormente, a Psicologia da Gestalt é a primeira geração da
Psicologia que se serviu do conceito Gestalt para construir sua teoria no âmbito da ciência
psicológica. Entre as suas bases filosóficas e epistemológicas está a Fenomenologia, a qual mais
tarde se associou diretamente ao Existencialismo como corrente filosófica e, com isso, passou
a fazer parte de um todo maior chamado Fenomenologia Existencial.
Dentre os principais nomes da Fenomenologia Existencial estão os anteriormente
citados Husserl e Kierkegaard; o filósofo e professor alemão Martin Heidegger (1889 – 1976);
o filósofo e crítico francês Jean Paul Sartre (1905 – 1980); o filósofo existencialista alemão
Friedrich Nietzsche (1844 – 1900); o filósofo fenomenológico francês Maurice Merleau-Ponty
(1908 – 1961); e o filósofo e pedagogo Martin Buber (1878 – 1965).
No entanto, não foi somente a Psicologia da Gestalt que motivou a criação de um
movimento humanista, mas, principalmente, suas bases filosóficas – o Existencialismo e a
Fenomenologia – justamente pelo resgate que essas perspectivas fazem do Humanismo
Filosófico – filosofia que busca re(situar) o homem no centro.
Dentre os principais nomes do Movimento Humanista temos: o psicólogo americano
Abraham Maslow (1908 – 1970); o neurologista e psiquiatra alemão Kurt Goldstein (1878 –
1965), que foi uma das principais influências teóricas; o psicólogo existencialista americano
50
Rollo May (1909 – 1994); e o psicólogo humanista norte-americano Carl Rogers (1902 – 1987),
responsável por desenvolver uma das mais importantes práticas psicoterapêuticas dentro da
Psicologia de base humanista – a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP).
A Psicologia da Gestalt pode ser considerada o pontapé do Movimento Humanista
devido à sua ligação com os pressupostos da Fenomenologia de Husserl e, posteriormente, a
sua ligação com os conceitos teóricos de Kurt Goldstein a respeito da relação todo-parte, bem
como devido à própria identificação do Movimento Humanista com uma teoria psicológica que
fizesse um movimento contrário, por assim dizer, ao movimento feito pela vertente
comportamental – que para os psicólogos humanistas acabava reduzindo o todo às partes e
mecanizando o sujeito existencial a leis genéricas e superficiais. A respeito disso, De Carvalho
(1990 apud CASTAÑON, 2007, p. 106) afirma que
[...] a oposição ao Behaviorismo foi a posição que, pelo caminho da negação,
mais contribuiu para o estabelecimento conceitual da Psicologia Humanista.
Os Humanistas caracterizam o Behaviorismo como uma teoria em que o
homem é visto como um ser inanimado, um organismo puramente reativo,
“uma coisa passiva perdida, sem responsabilidade por seu próprio
comportamento” (p. 33). Assim, o Behaviorismo veria o homem como um
conjunto de respostas a estímulos, ou seja, uma coleção de hábitos
independentes.
Além de se contrapor à perspectiva comportamental, a Psicologia Humanista surgiu
também como um protesto à Teoria Psicanalítica, que, a seu ver, era bastante determinista e
enclausurava o sujeito em categorias e leis universais, não permitindo uma compreensão de
possibilidades e alternativas autônomas aos sujeitos. Desse modo, o Movimento Humanista
surgiu em forma de protesto à Psicologia que se fazia anteriormente, visando – em vez de
somente sintomas psicopatológicos – aspectos positivos da vida humana. Aspectos esses
ressaltados por Castañon (2007, p. 107): “[...] a alegria, o altruísmo, a fruição estética, a
satisfação ou o êxtase”.
Diante disso, esse autor destaca que
A oposição feita pelo movimento da Psicologia Humanista ao Behaviorismo
e à Psicanálise teve como influências anteriores principais as obras do
neuropsiquiatra Kurt Goldstein, da Psicologia da Gestalt e de alguns dos
primeiros teóricos da personalidade. Goldstein exerceu poderosa influência
sobre os psicólogos humanistas através de obras como The Organism (1934)
51
e Human Nature in the light of psychopathology (1940), baseadas em sua
pesquisa sobre a capacidade de reorganização do cérebro humano após lesões
cerebrais, feita com soldados feridos em combate. Nelas, Goldstein introduz
conceitos que seriam assimilados e desenvolvidos por psicólogos humanistas,
como os de autoatualização e tendência ao crescimento, assim como sua visão
holista do organismo humano. Ele enfatiza em suas obras a visão de que o
Organismo é um todo unificado, afetado em sua totalidade pelo o que quer
que aconteça em qualquer uma de suas partes (CASTAÑON, 2007, p. 107,
grifos do autor).
Apesar, pois, de ter seus objetivos em relação à ciência psicológica mais ou menos
definidos (e esses objetivos se concentravam em evidenciar o humano escondido ou esquecido
pelas perspectivas comportamentalistas ou deterministas), muitos dos teóricos que seguiram o
Movimento Humanista se contrapunham uns aos outros no que diz respeito ao seu objeto de
estudo e, consequentemente, à concepção de homem-mundo.
Maslow e Goldstein eram, talvez, os únicos que, explicitamente, tentavam não se
distanciar da compreensão biológica do homem acerca de alguns aspectos, como aqueles de
origem natural e filogenética. Maslow, por exemplo, inferiu fortes críticas ao Existencialismo,
compreendendo-a como uma perspectiva que era totalmente antibiológica e anticientífica. Tal
perspectiva filosófica, por sua vez, era a principal via de compreensão do ser humano para Rollo
May, que também fazia parte do Movimento Humanista.
No entanto, houve sim uma tentativa de unificar os diversos lados assumidos pelos
psicólogos humanistas no que diz respeito à compreensão de ser humano e, consequentemente,
seu objeto de estudo. Tal unificação leva em conta os pontos principais da perspectiva
humanista, que são: o ser humano vai além da soma de suas partes; é consciente; possui livre-
arbítrio; e tem intencionalidade (CASTAÑON, 2007).
A visão homem-mundo, para a Perspectiva Humanista, então, se configura como algo
que vai além do que as outras duas perspectivas (Psicanálise e Behaviorismo) pregaram devido
a um fator muito importante e, ao mesmo tempo, muito simples de ser considerado, e que, no
entanto, ambas as vertentes psicológicas escolheram não assumir ou enfocar: a problemática do
sentido da vida.
O sentido da vida vem a se tornar uma problemática para a Psicologia Humanista ao
passo que esta situa o homem no centro e compreende que a atribuição de sentidos é o
movimento constante do ser no e pelo mundo. Todavia, nem sempre estes sentidos são
encontrados, e é nesse momento que a Psicologia deve atuar. No que se refere à pesquisa
52
psicológica, é também por meio da compreensão deste sentido único para cada pessoa que a
Psicologia irá estudar o ser humano, segundo o entendimento de suas multiplicidades e
possibilidades.
Ainda sobre essa concepção de homem, Castañon (2007, p. 111, grifos do autor) ressalta
que,
Sob o enfoque humanista, o ser humano aparece não como uma resultante de
uma série de coisas, mas como, fundamentalmente, o iniciante de uma série
de coisas. O Homem só aparece para o humanismo na questão do sentido, não
na questão da causa explicativa. O enfoque explicativo se refere ao Homem
como resultado, como passado. Não se refere ao Homem presente, desafiado
por questões de sentido.
Desse modo, a vertente Humanista, sob o entendimento de que o ser vai além das
causalidades explicativas da ciência moderna (em que se ampara o Comportamentalismo), se
contrapõe ao paradigma propagado por Locke acerca da experiência, que diz que nada há no
intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos. A Psicologia Humanista se contrapõe
veementemente a esse pressuposto, uma vez que o intelecto deste axioma é interpretado por
essa vertente como equivalente à consciência, tal qual é dotada de intencionalidade, da qual
falamos, e que é direcionada para as coisas mesmas. Sendo assim, a consciência não poderia
ser considerada uma tábula rasa – termo um tanto equivocado utilizado por Locke para
justificar seu pressuposto.
Diante do exposto, vale ressaltar que tanto com conceito de intencionalidade, bem como
o conceito do próprio Locke, foram sendo deturpados – o que não é difícil de esperar com a
variedade de posturas teóricas que abarca a Psicologia. No caso de Locke, a culpa foi mais do
termo escolhido (tábula rasa) do que da complexidade de seu pensamento. Em relação à
intencionalidade, o que pode ter influenciado a sua errônea interpretação foram as diversas
adaptações filosóficas e teóricas que o conceito original sofreu.
Poderemos compreender melhor – ao nos debruçarmos sobre os conceitos da Gestalt-
Terapia de maneira mais profunda no próximo capítulo – que a intencionalidade é algo que
antecede até mesmo as funções mentais, para as quais o intelecto é direcionado. A consciência,
pois, é pré-mental e não se reduz meramente à racionalidade ou ao intelecto. A consciência
intencional não é condicionada à atividade mental, logo, o intelecto não pode equivaler ao
conceito de consciência.
53
No que concerne à consciência intencional como fenômeno pré-mental, Granzotto e
Granzotto (2016, p. 31-37, grifos dos autores) ressaltam que
[...] o filósofo Edmund Husserl reconheceu, nas Gestalten originalmente
propostas por Brentano, nossa dupla inserção pré-mental no mundo da vida.
Por um lado, uma Gestalt é uma ação (linguageira, motora, perceptiva...) de
nosso corpo frente ao mundo ele mesmo. Por outro, uma Gestalt é a
manifestação do mundo junto àqueles atos. [...] Não é novidade alguma o
reconhecimento de que o “apetite” ou “desejo irracional”, próprio ao reino
animal, é uma faculdade autônoma. Aristóteles assim já o admitia em sua obra
“De Anima” (1999). Todavia ninguém antes de Brentano havia ousado
afirmar que tal faculdade, além de autônoma, seria capaz de determinar o
curso de nossas faculdades mentais superiores, inclusive a vontade. Uma
vontade orientada por fenômenos pré-mentais não revelaria mais que uma
configuração patológica do psiquismo. Tratar-se-ia de uma deficiência na
capacidade de julgar ou, como se diz no senso comum, uma falta de “juízo”
ou, simplesmente, de uma “loucura”. Brentano vai na contramão dessa
tradição ao afirmar que as representações objetivas produzidas por nossos
juízos estariam antecipadas por “representantes” que se constituiriam em um
domínio pré-mental, como aquele que caracteriza nossa sensibilidade e nossa
motricidade. Brentano chama tais representantes de “fenômenos psíquicos”,
entendendo por isso totalidades de sentido pré-mental (ou Gestalten)
investidas da capacidade de antever, de maneira indeterminada, o objeto a ser
representado por nossos juízos (produzidos por nossos atos mentais).
Se considerarmos, então, o conceito de intencionalidade da consciência (que somente é
consciência de alguma coisa) de maneira fidedigna à concepção do filósofo alemão Franz
Brentano (1838 – 1917), ressalvada por Husserl, não há como conceber um ser humano
dissociado das suas vivências no mundo da experiência, pois são estas vivências que lhe oferece
substância e lhe confere a possibilidade de atribuição de sentidos.
Quanto à tábula rasa, apesar do termo infeliz utilizado por Locke para se referir ao ser
humano, quando ele defende o pensamento aristotélico dizendo que não há nada no intelecto
que antes não tenha passado pelos sentidos, ou seja, que não tenha sido vivido na experiência
– se considerarmos o contexto em que o pensamento materialista ganhou vigor e
preponderância –, perceberemos com mais clareza que ele não estava se contrapondo,
necessariamente, à ideia de consciência autônoma ou intencional – aliás, esta também só é
possível enquanto em relação com o mundo –, e sim estava se contrapondo ao racionalismo
cartesiano que precedeu o nascimento da “verdadeira” ciência.
O que Locke fez, então, foi uma contraposição às teorias cartesianas e platônicas
(mundo das ideias) a respeito da soberania da razão sobre os sentidos e sobre a experiência
54
humana. Ele defendia que o homem se constitui na experiência e que não há algo “dado” a
priori em um imaginável “mundo das ideias” onde reside a razão/intelecto. O termo intelecto,
pois, se refere à ideia de mente/razão, a qual sob a perspectiva platônica e cartesiana, assume
uma relação hierárquica com os sentidos (que sobrevivem de aparências). É a essa relação – da
mente como predominante sobre os sentidos – que Locke vem manifestar negação.
No mais, não poderemos deixar de ressaltar o nome de Wilhelm Dilthey como uma das
maiores influências da Psicologia Humanista, no que se refere à sua compreensão sobre as
ciências e sobre qual o método mais adequado ao objeto de estudo das ciências humanas. Como
já falamos no capítulo anterior, Dilthey foi aquele que buscou legitimidade para o método
compreensivo das ciências humanas e é o principal responsável pela distinção científico-
epistemológica entre explicar e compreender.
A despeito de sua configuração holística, a Psicologia Humanista se tornou a área da
Psicologia em que várias abordagens psicológicas se inseriram, justamente pela sua
característica de colocar o ser humano em sua singularidade como centro/foco e em primeiro
lugar. O centro, por si só, abarca não só o ser humano como uma totalidade, mas também como
uma totalidade interrelacional – a essa relação atribuímos a perspectiva de “todo”, que
compreende todos os aspectos do campo que afetam o ser ou que sejam afetados por ele.
Neste capítulo, pudemos revisitar as principais vertentes da Psicologia – a Psicanálise,
o Comportamentalismo e a Psicologia Humanista –, entendendo quais os principais postulados
de cada uma, suas visões de mundo e de sujeito, bem como a que cada uma se contrapõe no que
diz respeito à adoção de um modo específico de ciência e de entendimento dos fenômenos
humanos. Esse esclarecimento do modus operandi de cada teoria psicológica nos oferecerá
maior suporte para o entendimento da Gestalt-Terapia como teoria e como prática.
A Gestalt-Terapia como prática psicoterápica é uma das principais abordagens que virá
compor o leque de possibilidades dentro de uma perspectiva humanista de se trabalhar e
enxergar o ser humano. No capítulo que segue, discutiremos de forma mais profunda sobre as
suas bases epistemológicas e pressupostos filosóficos dessa abordagem, bem como das teorias
dentro da Psicologia que lhe dão suporte. É sobre ela que nos debruçaremos daqui em diante,
retomando seus principais conceitos e explorando sua prática clínica.
55
4 BASES EPISTEMOLÓGICAS, PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E TEÓRICOS DA
GESTALT-TERAPIA
Neste capítulo, faremos um passeio pelas bases epistemológicas, filosóficas e teóricas,
bem como pelos principais conceitos da Gestalt-Terapia, a fim de esclarecer, posteriormente,
sua aplicação prática. Iniciaremos com o aprofundamento da noção de Gestalt, conceito que se
performou historicamente sob a perspectiva de vários autores e estudiosos. Assim, falaremos a
respeito da compreensão de homem-mundo que implica a noção de Gestalt, bem como, das
perspectivas que adotaram essa compreensão, tal qual, mais tarde, veio a se tornar o escopo da
prática clínica psicoterapêutica que pretendemos analisar: a Gestalt-Terapia.
Sendo assim, este capítulo será destinado à explanação de como essas bases conversam
com a Gestalt-Terapia em si, demonstrando os principais conceitos em que essa discussão
teórico-filosófica desagua. Serão discutidas, então, as seguintes perspectivas: a Fenomenologia,
o Existencialismo, o Humanismo, a Psicologia da Gestalt, a Teoria Organísmica, a Teoria de
Campo e, por fim, a Gestalt-Terapia.
Como falado anteriormente, a noção de Gestalt remonta um histórico de autores e
teorias. É por este motivo que este capítulo se faz imprescindível no sentido de discutir como a
ideia de Gestalt se configura em cada perspectiva teórica e de que forma, mais tarde, acaba se
tornando uma prática clínica.
4.1 O que é Gestalt?
O primeiro a postular o vocábulo Gestalt foi o filósofo Franz Brentano. Para ele, as
gestalten – termo técnico do filósofo para se referir ao plural de Gestalt – são entidades
correspondentes aos fenômenos psíquicos. A escolha do termo gestalten se dá justamente pelo
que falamos anteriormente, relacionando o conceito de Gestalt à noção de configuração ou
totalidade. Para esse filósofo, no entanto, os fenômenos psíquicos são, além de totalidades,
gestalten autônomas e espontâneas, portanto, pré-objetivas, e próprias daquele que as detém,
ou seja, próprias do sujeito e imanentes à consciência (GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2016).
É importante falarmos de Brentano, pois este foi um dos principais precursores do
movimento fenomenológico, apesar de não ter sido considerado o pai da Fenomenologia, lugar
56
que mais tarde viria a ser ocupado por Husserl. Além de tudo, Brentano foi aquele pontapé
inicial que era necessário para o desenvolvimento de uma filosofia fenomenológica – o que
mais tarde acaba por se configurar não só como método de interpretação da realidade, mas
também como uma ciência humana.
Junto à noção de Gestalt nasce, também, o conceito de intencionalidade, fenômeno esse
que precede até mesmo nossos atos mentais, ou seja, é algo compreendido como inerente à
pessoa, mas que não se confunde com a mente ou o intelecto. Por isso, as gestalten são como
são: totalidades espontâneas e autônomas, pois essas são guiadas pela intencionalidade da
consciência. Não há como tratar de um conceito sem o outro. Conforme Fonseca (2006, p. 30,
grifos do autor),
[...] Brentano, igualmente, entendeu que a consciência se constitui num nível
mais básico do que o nível da dicotomização sujeito-objeto. Ou seja, a
consciência constitui-se anteriormente a qualquer cisão sujeito-objeto, o que
ele designou de caráter intencional, a intencionalidade, da consciência [...]
Para Brentano, os fenômenos psíquicos são equivalentes ao movimento da consciência
intencional, este movimento é completamente anterior à relação sujeito-objeto. Sendo assim, o
filósofo insere toda a orientação autônoma das gestalten (a intencionalidade) em um nível que
não nos permite compreender exatamente como a nossa intencionalidade opera no mundo e de
que forma o mundo é capaz de transforma-la também.
Mais tarde, Husserl reelaborou o conhecimento teórico encontrado em Brentano,
ampliando o conceito de intencionalidade. No entendimento deste conceito, inseriu a
consciência situada pela noção de tempo, fator não discutido por Brentano e que viria orientar
a compreensão dos vividos essenciais (objetos psíquicos totalmente ligados às vivências de
correlação). Husserl, ao elaborar sua Fenomenologia, sentiu falta de uma descrição que
colocasse a relação com o mundo em maior evidência (GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2016).
Husserl se incomoda com essa “falta” no pensamento de Brentano e, através das noções
de atual e inatual – que se referem a acontecimentos emergentes para a consciência situados
nos tempos presente, passado e futuro –, postula que a intencionalidade acontece no potencial
correlacional que o mundo pode fornecer ao indivíduo.
É por isso que Husserl fará críticas à definição de Brentano e diante desse processo de
produção define a noção de objeto intencional transcendente, em que tenta mostrar que as
57
coisas mesmas do mundo também possuem intencionalidade quando em relação conosco –
seres conscientes e orientados por uma intencionalidade intrínseca.
Para Brentano, os fenômenos psíquicos – imanentes à consciência – são a origem dos
atos e objetos psíquicos. Os fenômenos psíquicos abrigam a intencionalidade dos sujeitos,
enquanto os atos psíquicos dizem respeito às representações mentais ou ações dos sujeitos
voltadas ao mundo. Para Brentano, a intencionalidade se findava nos fenômenos psíquicos, ou
seja, residia na consciência.
Husserl, por sua vez, só concordou com Brentano no que diz respeito à origem dos atos
psíquicos, que é a consciência, mas discordou no que diz respeito ao movimento intencional
ser um processo unicamente da consciência, pois, para o filósofo, “consciência é sempre
consciência de alguma coisa”. Nesse sentido, entendia que os fenômenos psíquicos e a
consciência como origem dos atos e representações estava sujeita, também, ao objeto
intencional transcendente, ou seja, a consciência não só implica como é implicada nessa relação
com o mundo. Dessa forma, Husserl amplia o leque de possibilidades das pessoas ao afirmar
que o mundo e as coisas mesmas ganham intencionalidade, ao passo em que ambos (em um só)
se relacionam com a nossa subjetividade.
Nesse ínterim, o mundo é capaz de nos moldar também, mas ele não age sozinho, da
mesma forma que nós também não agimos. Uma vez que nossa consciência é situada no tempo,
somos capazes não só de representar a realidade subjetivamente sob o viés de uma nova
totalidade subjetiva, como também somos capazes de criar a nossa própria realidade com base
nos atos intuitivos e conforme as próprias potencialidades que a relação com o mundo pode
gerar.
O objeto (ou a materialidade da existência) torna-se intencional e é transcendente
porque não é mais imanente ao sujeito, é constituído na relação com ele e vice-versa. Assim,
Husserl ressignifica o pensamento de Brentano – e não que Brentano estivesse errado, apenas
não tratou da relação com o mundo que é evidenciada pela Fenomenologia.
Sendo assim, a respeito do conceito gestáltico de intencionalidade podemos concluir
que esta é pré-objetiva, no sentido de não se resumir à racionalidade intelectual e nem mesmo
depender de um fator externo (como podemos perceber com base nas afirmações de Brentano).
Com base no caráter relacional/temporal essencial ressaltado por Husserl, percebemos que uma
vez orientada para algo, uma vez direcionada às coisas mesmas, a intencionalidade acontece
58
através de vivências essenciais5 correlatas ao mundo – aquele que, neste contexto, torna-se
objeto intencional transcendente.
Portanto, a intencionalidade não possui um caráter unicamente individual. Ela acontece
em dois níveis: o nível pré-mental/pré-objetivo ou operativo, em que ela é (de ser), e no nível
mental/comportamental ou categorial (de existir). Quando dizemos que ela é pré-mental/pré-
objetiva, nos referimos ao pensamento de Brentano, o qual se volta para a intencionalidade
como um fenômeno psíquico originador dos atos e objetos psíquicos, portanto, que não depende
do nível mental. E quando afirmamos que existe um nível mental/comportamental ou
categorial, nos referimos à Husserl, que evidencia o caráter vivencial da intencionalidade
correlato ao mundo.
Neste sentido, a intencionalidade torna-se um fator intersubjetivo, sua essência é
produzir vivências, e essas vivências são sempre representadas pela potencialidade
organizacional das gestalten em dar forma ou um sentido único para aquilo que vivencia. Além
disso, a via de sentido não é a única via para a qual a intencionalidade se direciona. A
intencionalidade também comporta os nossos movimentos e todo o processo que diz respeito
ao vir-a-ser. Conforme Granzotto e Granzotto (2016, p. 55, grifos nossos),
[...] o que nos permite falar – agora do ponto de vista dos atos – de uma
diferença entre uma intencionalidade operativa, eminentemente exercida na
forma de atos intuitivos e voltada para transcendências ou possibilidades
unirradiais (como são os objetos da percepção, da memória, da imaginação e
da motricidade); e uma intencionalidade categorial, eminentemente exercida
por meio dos atos intencionais e voltada para transcendências ou
possibilidades unirradiais (como são os objetos da linguagem, das ciências, da
filosofia e da lógica e, em certa medida, da experiência clínica).
Dessa forma, o movimento das gestalten e da intencionalidade estão intrinsecamente
relacionados, um não acontece sem o outro. E é por isso, também, que não podemos falar de
Gestalt e, mais especificamente, de Gestalt-Terapia, sem retomar a origem de seus principais
conceitos. Ressaltamos, então, que todos os teóricos que discutiremos mais a frente construíram
5 Na abordagem transcendental husserliana as vivências essenciais se referem não somente aos objetos
(ou objetividade correlata ao mundo), mas majoritariamente ao “como” conhecemos os objetos do
mundo, como significamos e ressignificamos as relações.
59
seus conceitos gestálticos, inclusive o próprio conceito de Gestalt, à luz da Psicologia de
Brentano e da Psicologia eidética e descritiva de Husserl.
Diante disso, Gestalt vem a significar, na sua essência, a totalidade destas perspectivas
que transmutam uma palavra numa ação. É algo que estamos tentando evidenciar no decorrer
deste trabalho: como o conceito de Gestalt, independentemente de qual autor vos fala,
representa uma prática voltada ao ser humano em sua totalidade, representa uma prática voltada
ao homem como centro de sua vida. A seguir, apresentaremos a Fenomenologia, que é uma das
bases filosóficas da Gestalt-Terapia, resgatando seus principais fundamentos.
4.2 Fenomenologia
A Gestalt-Terapia é baseada numa abordagem fenomenológica, isto quer dizer que toda
a sua prática é orientada por uma visão fenomenológica do mundo e daquele que lida com ele:
o homem. E o que é a Fenomenologia? Como dissemos anteriormente, a Fenomenologia
tornou-se, além de uma filosofia, um método de interpretação da realidade. Esta seção se destina
a compreender alguns dos principais pressupostos fenomenológicos que se relacionam com a
Gestalt-Terapia, que faz um resgate clínico de seus conceitos fundamentais.
“Fenômeno”, segundo a etimologia da palavra, significa “aparecer” ou “manifestar-se”.
Filósofos fenomenológicos, como Heidegger, se utilizaram desses conceitos para tratar do que
para nós aparece como algo desconhecido e que de alguma forma só poderia ser reconhecido
através da luz (RIBEIRO, 1985). Ou seja, fenômeno é algo que se manifesta, mas além de tudo,
se mostra desconhecido à consciência, e que só então descoberto poderá ser significado pela
nossa percepção. Neste sentido, a luz diz respeito ao momento em que um fenômeno fica
evidente para a consciência através da nossa percepção.
Quando dizemos fenômeno, podemos dizer que o homem em si é um
fenômeno, sem dúvida o mais complexo, aquele com que o manifestar-se da
consciência percorre caminhos de difícil acesso. Pois o fenômeno homem se
revela lentamente. Quanto mais ele se desnuda, mais ele vem, se aproxima de
uma determinada luz, mais ele está em contato com a sua realidade, com sua
essência (RIBEIRO, 1985, p. 45).
60
É interessante observar que a Fenomenologia é o que vem dar norte a toda noção de
Gestalt, porque é ela, como método de interpretação da realidade, que nos fará discutir acerca
da nossa própria percepção consciente, e toda a percepção consciente se relaciona com a noção
de sentido para nós como pessoas. Assim, a Fenomenologia nos faz questionar: como
apreendemos esse mundo que nos cerca? Conforme afirma Ribeiro (1985, p. 44), “[...] de certo
modo, uma casa, por exemplo, não tem realidade nem na consciência, nem fora dela, mas o seu
modo de existência vai depender do modo como a consciência a apreende, a encontra, a visa,
do modo como ela lhe dá sentido”.
Segundo Husserl, a Fenomenologia é a ciência descritiva das essências da consciência
e seus atos. Para este autor, os vividos (ou vivências) são essenciais no sentido de serem únicos
e singulares para cada ser consciente que os vivencia e, consequentemente, existe. Além de
tudo, são essenciais como fatores inerentes à vida, que só acontece em um processo
correlacional homem-mundo. Os nossos atos, então, serão sempre moldados pela nossa
percepção consciente, pelo sentido que atribuímos às coisas, pela nossa capacidade de filtrar,
interpretar e significar a realidade e tudo que se apresenta como fenômeno (RIBEIRO, 1985).
Sendo assim, partindo dessa compreensão do ser consciente e da relação que ele
estabelece com o mundo, temos de enfatizar o conceito de redução fenomenológica, que é de
extrema importância, e que, mais tarde, será utilizado como norte para a prática da Gestalt-
Terapia, tanto como princípio metodológico, quanto como princípio ético. A essência deste
conceito preconiza que todos nós tendemos a ir às coisas mesmas e atribuir-lhes significado.
Cada significado é único a depender de quem o vivencia e se relaciona com o fenômeno dado
em si. Com isso, compreende-se que os fenômenos jamais estão dissociados das experiências
de cada sujeito. É por isso que Husserl cria o seu conceito de redução fenomenológica para
evidenciar a importância de, ao ir às coisas mesmas, colocarmos as nossas verdades (certezas,
sentidos e julgamentos) entre parênteses. Esta seria a única forma de compreender o fenômeno
como ele verdadeiramente se apresenta.
A redução fenomenológica, porém, terá sempre um limite, pois, compreendemos, sob o
ponto de vista da Fenomenologia, que tudo está em relação e, automaticamente, o fenômeno
ganha intencionalidade ao passo em que nos encontramos com ele. Só que precisamos nos
despir de nossos julgamentos, para que verdadeiramente encontremos sua essência intrínseca.
Na ciência experimental esse distanciamento é chamado de neutralidade (fator que
retira a influência do profissional do objeto estudado), mas, para a Fenomenologia, não é
possível ser totalmente imparcial, pois estamos sempre em uma posição de correlação, logo, o
61
movimento de atribuir sentido é involuntário. De toda forma, o que podemos fazer é deixar
esses sentidos produzidos entre parênteses. Este movimento constitui a redução
fenomenológica.
Uma das diferenças entre o método fenomenológico e o método científico, portanto, é
que, sob a ótica da redução fenomenológica, o fenomenólogo está completamente interligado
ao fenômeno pelo apriori de correlação, enquanto que na ciência experimental busca-se estudar
e lidar com o fenômeno em si de forma isolada, ou como dito, de forma neutra. Sob a
perspectiva de Ribeiro (1985, p. 60), no entanto, defender o método da redução fenomenológica
em vez do método científico da neutralidade não significa “renunciar à objetividade científica,
mas antes reintegrar o mundo da ciência ao mundo da vida”.
Para a Fenomenologia e para Gestalt-Terapia, então, o conceito de redução
fenomenológica é de extrema importância, uma vez que nós, como psicoterapeutas, precisamos
olhar para o outro em sua singularidade, antes de qualquer pressuposto teórico-científico e antes
mesmo de nossas pressuposições como humanos.
Acerca da complexidade da redução fenomenológica, Ribeiro (1985, p. 44) faz as
seguintes reflexões:
Como é difícil estar diante das coisas (pessoas, fatos) sem nos misturarmos
com elas! Como é difícil essa postura de observador, que se coloca à distância,
para poder ver melhor! O que significa “ir às coisas mesmas”, quando estamos
diante de um cliente? Que significa “reduzir”, para encontrar a essência
mesma do que se procura? No entanto, se não “reduzirmos”, terminamos
fazendo terapia de nós mesmos e não de nossos clientes. Reduzir, aqui,
significa encontrar-se com o cliente nele, com ele, através dele. Significa
encontrar, intuir tudo que ele é em si, sem nenhuma mistura de nada daquilo
que nós somos. Significa perceber-lhe a essência e com ela familiarizar-se,
significa descobrir-lhe a totalidade e concomitantemente descobrir o sistema
de correlação que minha consciência estabelece com ele. Significa, enfim,
chegar à sua essência.
O conceito de redução fenomenológica, então, além de nos colocar numa posição ética
frente ao indivíduo (fenômeno intimamente complexo que se apresenta), nos remete ao
princípio de enxergar as pessoas em sua totalidade e não apenas como uma soma de suas partes
e/ou sintomas decorrentes de um momento existencial. Diante disso, Ribeiro (1985, p. 58-60)
ressalta que
62
O homem todo e tudo no homem são o objeto da fenomenologia. Isto significa
acabar com a dicotomia mente-corpo e passar o predomínio à pessoa-como-
um-todo [...] a coerência fenomenológica não poderia ir a outro lugar, pois o
homem é a expressão dele todo. Não há como dicotomizar, seja separando
mente e corpo, sujeito-objeto, seja valorizando mais a um que a outro. A
fenomenologia tenta recuperar o homem todo, prestando especial atenção ao
seu corpo que é o visível do invisível, que é o tocável do intocável, que é o
experimental do inexprimível.
A Fenomenologia é, portanto, a ciência que se debruça sobre os seres humanos de forma
a apreender-lhes como realmente são: seres conscientes, únicos em sua totalidade e dotados de
intencionalidade. Esclarecidos os principais pontos da Fenomenologia que alicerçam a prática
da Gestalt-Terapia, podemos concluir que esta filosofia e o resgate de seus métodos oferecem
um suporte essencial tanto à compreensão de homem-mundo da Gestalt-Terapia, quanto à sua
prática clínica e psicoterapêutica. A seguir, apresentaremos o Existencialismo que é, também,
uma das correntes filosóficas de base da Gestalt-Terapia.
4.3 Existencialismo
O Existencialismo, como uma corrente filosófica, tem uma grande incógnita como
figura de seu questionamento: a existência. A existência, para os filósofos dessa corrente, é a
grande e principal interrogação dos seres humanos. “De onde viemos?”, “Para onde vamos?”,
“O que viemos fazer aqui?”, “Escolhemos estar aqui?” e “Quando escolhemos?” são perguntas
que, ao longo de nossas vidas, foram se tornando parte fundamental da nossa constituição, pois
responder a essas perguntas ou encontrar respostas convincentes para cada uma delas é o que
pode nos orientar para algo.
Essa orientação/norte, segundo o Existencialismo, é algo para o qual todos os seres
humanos, mais cedo ou mais tarde, acabam se voltando. Todos estamos à busca de sentido,
pois, desde os primórdios, o ser humano se questiona sobre suas origens, sua constituição, suas
capacidades, e também sobre a existência como um todo. É algo que se desvela como
incompreensível, na maioria das vezes e para a maioria das pessoas.
Atualmente, com o desenvolvimento da ciência e com o avanço constante da produção
de conhecimento – inclusive, da própria Psicologia – nós podemos ter algumas dessas respostas,
mas tudo é tão amplo e cada pessoa é tão una que o sentido e o significado vão depender,
primordialmente, daquele que o procura. Esse é um dos motivos e uma das justificativas para a
63
criação das psicoterapias de base fenomenológico-existenciais, pois, como afirma Ribeiro
(1985, p. 41), “[...] esta nos parece uma das funções da psicoterapia existencial, fazer com que
o homem se interprete, encontre seu próprio lugar no mundo, como dizia Kierkegaard: ‘O
homem não pode viver sem sentido’”.
Então, antes mesmo de ser uma corrente que se questiona a respeito do sentido da
existência, o Existencialismo vem a ser uma filosofia que busca encontrar o sentido dessa
existência, ele tem a função de ajudar o homem em sua jornada, tomando o próprio homem
como centro. Sendo assim, essa corrente filosófica busca colocar o homem em contato com a
própria experiência direta no mundo, considerando que somente ele poderá interpretar
fielmente a própria condição existencial.
Além do questionamento da própria existência, dos próprios limites e das próprias
possibilidades, o Existencialismo conduz a pessoa ao exercício do autoconhecimento, que é
uma ferramenta que nos convida a enxergar o valor e o significado do homem como pessoa e
como humanidade.
Este apelo ao “conhecer-se” profundamente não é uma proposta intelectual,
mas conhecer-se na relação com o mundo e consigo próprio, de modo que o
homem possa dar respostas diferenciadas entre suas necessidades e as
exigências que vêm de fora (RIBEIRO, 1985, p. 35).
O autoconhecimento, nesse sentido, não só serve para o indivíduo – que é ente principal
da própria vida – mas também atua como ferramenta da própria psicoterapia fenomenológico-
existencial, no sentido de oferecer tanto ao terapeuta, como ao cliente, um ponto de partida para
o desvendar do fenômeno do ser. Como ressalta Ribeiro (1985, p. 35) “ao se desvelar, o homem
se conhece e, desvelando-se a si próprio, ele pode compreender o outro”.
Para o terapeuta, é de extrema importância esse exercício como uma forma de situar as
próprias demandas e não as confundir com as do cliente. Esse processo desagua na redução
fenomenológica, em que se compreende o outro a partir dele mesmo e não do que se pensa ou
sente sobre o outro.
Para o cliente, por sua vez, o autoconhecimento – tanto fora do processo terapêutico,
como inserido nele – o conduz para dentro de si mesmo e da movimentação da própria essência,
proporcionando um maior entendimento a respeito dos próprios desejos, dos próprios impasses
64
e das possibilidades enquanto sujeito, como também uma tomada de consciência – conceito
fundamental que discutiremos mais à frente na seção sobre Gestalt-Terapia.
No que diz respeito ao autoconhecimento como uma verdadeira tomada de consciência,
Ribeiro (1985, p. 36) nos traz que
A existência é o todo. Lidar existencialmente com o todo significa estar atento
aos apelos internos que dele promanam, às contradições nele existentes, às
mudanças do dentro-fora-dentro da realidade. Esta visão empresta um sentido
todo especial à nossa proposta de entender o processo psicoterapêutico a partir
de um conceito de homem, como algo real, coisificado na existência através
de uma história individual.
Com essas considerações, podemos perceber que o Existencialismo, tão quanto o
Humanismo, também busca situar o ser humano no centro de sua vida, como um ser autônomo,
livre e responsável. A pessoa em si é o mais importante. O que nos traz, mais uma vez, às
noções de ser e existir – conceituações que são a base dessa corrente. Nas palavras de Ribeiro
(1985, p. 36, grifos nossos),
Assim como diz Heidegger, só o homem existe, enquanto modo característico
de estar no mundo, ao passo que as coisas simplesmente são. As coisas não
têm, como o homem, entendimento, sentimento, linguagem, que Heidegger
chamou de existentialia. Enquanto ser que existe, o homem é um ser de opção,
podendo definir o que pretende ser. O homem paira acima das coisas
materiais, não se confundindo com elas. Ele é o Dasein, uma peça individual,
diferenciada no mundo.
Essa noção de existência vem do entendimento de que o homem é o único capaz de
projetar a si mesmo, ele é o único que pode sair de si, mesmo que categoricamente, para criar-
se a si mesmo novamente, é o único que – no sentido etimológico da palavra existência (ex-
sistere) – pode vir-a-ser e, além de tudo, construir tudo o que demais existe (inclusive a si
próprio), através da própria intencionalidade, através do seu próprio e único operar no mundo
(RIBEIRO, 1985).
Diante disso, surge a pergunta: quem é o Dasein? Ele é o ser-aí, o eis-aí-ser.
O termo “Dasein” serviu para designar a manifestação do ser enquanto ente.
O Dasein se compreende a si mesmo enquanto ser que existe. Segundo
Heidegger, a substância do Dasein é a existência e não o espírito enquanto
65
síntese de corpo e alma. O Dasein não pode ser caracterizado fora da
existência. Ele é seu compreender-se e seu projetar-se. O Dasein enquanto
substância, ou seja, na sua existencialidade ou substancialidade é um ainda-
não, que se lançando na existência reside na não totalidade, no vazio, no nada.
A existência é a sua essência (ROBERTO, 2009, p. 1).
Diante dessa condição de vir-a-ser, a existência se lança ao homem como um
enfrentamento. Aliás, falar em uma pessoa livre, autônoma e responsável a defronta com uma
gama de responsabilidades. É nesse viés que Sartre (1970, p. 7) dirá que “O homem está
condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e como, no entanto, é livre,
uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer...”.
Sob esse viés, a liberdade é entendida enquanto angústia que movimenta. Então, ao
mesmo tempo em que o homem pode definir-se a si mesmo conforme a própria condução do
vir-a-ser, toda a sua relação “com o aqui-agora é limitada pela relação da pessoa com o mundo”
(Ribeiro, 1985, p. 36). Sendo assim, a autonomia – fator que oferece controle – também é
condicionada às consequências das próprias ações no mundo, e é claro, também é condicionada
à liberdade do outro, pois tudo está em constante relação e implicação.
A partir dessa implicação, também surge a noção de responsabilidade – agarrada à
perspectiva da liberdade – pois, uma vez livre, como afirma Sartre, podemos escolher os
caminhos a seguir, no entanto, ao passo que escolhemos, tornamo-nos responsáveis por
quaisquer resultados que decorra dessa escolha. Como ressalta Ribeiro (1985, p. 39),
[...] O homem é angústia, pois, sendo livre e como tal se reconhecendo passa
a ser também um legislador de si e dos outros. De outro lado, deve fazer tudo
sozinho, pois ninguém pode, de fato, executar seu projeto para ele; ele é o
criador responsável de si próprio.
Neste sentido, como afirmou Sartre, resgatado por Ribeiro (1985, p. 39), “o
existencialismo é assim, uma moral de ação e um verdadeiro humanismo”, assim tornou-se base
primordial de uma prática direcionada à pessoa como principal interprete de si mesma. Uma
prática como essa implica em não sobrepor nenhuma teoria sobre à pessoa, implica não impor
qualquer julgamento ou pressuposto anterior ao que a própria pessoa escolheu para si mesma
através da tomada de consciência e através da própria liberdade e responsabilidade.
Desse modo, o Existencialismo – junto à Fenomenologia – vem a ser um dos
pressupostos filosóficos de base para o desenvolvimento da Gestalt-Terapia como visão de
66
homem-mundo e como prática psicoterapêutica justamente pelo seu olhar sobre a existência e
sobre o humano que caminha por ela – um ser humano livre, autônomo e responsável.
Seguiremos na exploração das bases filosóficas da Gestalt-Terapia nos debruçando agora sobre
o Humanismo.
4.4 Humanismo
No capítulo anterior, nós falamos do Movimento Humanista, desenvolvido por
psicólogos que tentaram resgatar os princípios do Humanismo Filosófico como corrente que
busca situar o homem no centro. Aqui, discorreremos um pouco sobre essa perspectiva
filosófica que serviu de base para o desenvolvimento da Gestalt-Terapia, enfocando os
princípios da Psicologia Humanista como corrente que defende o Humanismo.
Trouxemos, no capítulo anterior, a Psicologia Humanista como uma das três vertentes
em Psicologia, a qual possui um conjunto diverso de abordagens psicológicas que se orientam
por esse viés de compreensão do humano. Dentre as principais abordagens temos A abordagem
Centrada na Pessoa e a Gestalt-Terapia.
No entanto, cabe ressaltar aqui, no que diz respeito às bases filosóficas e teóricas da
Gestalt-Terapia, que o Humanismo, antes de se tornar um movimento concreto, direcionado por
psicólogos e estudiosos da área da Psicologia, foi um movimento implícito e sutil que fez parte
do pensamento de vários filósofos desde a Grécia antiga e do Renascimento. Antes de um
movimento da Psicologia, foi um movimento cultural que tentava resgatar os valores greco-
romanos e buscava, também, o desprendimento dos dogmas cristalizados da Igreja Católica,
que era dominante na época (FONSECA, 2006).
O Humanismo foi um fenômeno presente em todas as filosofias direcionadas pelo
Existencialismo e pela Fenomenologia Existencial, e só mais tarde é que vem a se tornar um
movimento concreto dentro da Psicologia. É também por esta abundância de teóricos e filósofos
envolvidos com a perspectiva humanista que há, ainda, muitas divergências de pensamento e
compreensão dentro da Psicologia Humanista como um todo. Mas, no geral, todas as
perspectivas que se enquadram nessa vertente têm uma equivalência: o homem e suas vivências
como centro de tudo.
67
A Psicologia Humanista, precisamente, é a vertente em que desagua, então, todas as
teorias e técnicas que se voltam para o entendimento do homem no centro de sua própria vida,
e para além da compreensão sobre o homem, também trata da relação humana para com o
homem humano. Ou seja, traz o foco para a relação terapêutica, que, acima de tudo, deve ser
guiada por uma ética que tem o humano como um ser autônomo, livre e responsável.
Isso nos leva a uma compreensão que retira do terapeuta o lugar de “detentor do saber”
e retira também a soberania da técnica sobre a vida das pessoas. É por esse fator, também, que
o Humanismo está intrinsecamente ligado às perspectivas fenomenológico-existenciais, pois
toma a vivência humana como ponto de partida. Neste sentido, com o homem no centro de sua
vida, compreendemos que também cabe a ele as rédeas do próprio processo terapêutico. O
terapeuta, então, deve ser alguém que estará ali para auxiliar na construção desse caminho, mas
não alguém que rouba a autonomia do sujeito e lhes diz o que fazer (FONSECA, 2006).
Conforme o humanista Carl Rogers, todos os seres humanos tem a capacidade inata para
o autocrescimento, potencialidade que Rogers chamou de tendência atualizante, que, segundo
ele, “[...] é uma tendência inata de todo organismo ao crescimento, maturidade e atualização de
suas potencialidades” (BRITO; MOREIRA, 2011, p. 1). O papel do terapeuta é, então, oferecer
as condições necessárias para a potencialização dessa tendência ao crescimento pessoal, e essas
condições, segundo Rogers, constituem os três pilares da relação terapêutica, que são: empatia,
consideração positiva e autenticidade – discorreremos sobre esses pilares posteriormente.
Indo por esse caminho, podemos perceber que evidenciar o homem como centro de sua
própria vida também o coloca diante de si mesmo. Compreendê-lo como ente que possui
capacidades e potencialidades de se autorregular desagua, também, no entendimento de que
cada pessoa possui ferramentas que atendam a seu próprio desenvolvimento como pessoa.
Neste sentido, o Humanismo traz o foco para o crescimento e realização do ser humano
– a partir dele mesmo – e não somente através de um processo terapêutico, e mesmo dentro do
processo, a autonomia é toda dele, tão quanto a responsabilidade no que diz respeito à sua
própria evolução. Isso provoca um processo de humanização – por parte do terapeuta e do
cliente – que se tornam cada vez mais humanos, e através do autoconhecimento e da tomada de
consciência criam formas “de autogerir-se, de evoluir a partir de dentro, conscientizando-se,
momento por momento” (RIBEIRO, 1985, p. 28).
Diante disso, a Psicologia Humanista busca direcionar seu olhar para o que há de
positivo em relação ao ser humano: o potencial de cada um para moldar seu próprio
68
desenvolvimento, inclusive em terapia, pois se busca tirar o terapeuta de uma relação autoritária
para com o outro. E é por isso que, sob a ótica da perspectiva humanista, devemos priorizar
uma relação genuína e dialógica, em que se permite que a pessoa seja quem ela é, sem objeções
e julgamentos.
É nesse modelo de relação terapêutica que se baseia a Psicologia Humanista. Conforme
a Abordagem Centrada na Pessoa – prática do seu principal expoente, Rogers –, o terapeuta
deve agir sempre guiado pelos três pilares da relação terapêutica que, como apontamos
anteriormente, são: a empatia, a consideração positiva e a autenticidade. A empatia consiste
em “penetrar no mundo fenomênico do cliente – sentir o mundo fenomênico do cliente como
se fosse o seu próprio, sem nunca perder a condição ‘como se’” (ROGERS, 1961, p. 284 apud
PATTERSON; EISENBERG, 2016, p. 44).
A consideração positiva diz respeito à aceitação incondicional do paciente pelo
terapeuta, bem como a congruência que ele é capaz de estabelecer entre as impressões que tem
do paciente e o que é de fato importante para o processo terapêutico. Assim sendo, o terapeuta
deve ser sincero consigo mesmo e trabalhar qualquer barreira que possa ter em relação ao que
o cliente apresenta, para que isso não o impeça de exercer a consideração positiva do cliente e
sua aceitação incondicional, que significa abraçar a demanda do cliente sem julgamentos.
A Autenticidade, segundo Patterson e Eisenberg (2016, p. 49),
[...] significa apresentar-se honestamente ao cliente, sem defesas, objetivos
ocultos ou uma imagem cuidadosamente manipulada. São sinônimos de
autenticidade: sinceridade, imparcialidade e consistência. São antônimos:
falsidade, defensividade, desonestidade, ocultação do eu e manipulação ou
controle da imagem.
Diante disso, podemos perceber que a relação genuína e dialógica é condição sine qua
non (indispensável e essencial) para o processo terapêutico. Os três pilares descritos por Rogers,
por mais que sejam definidos de maneira isolada, quando acontecem constituem fenômenos
entrelaçados e implicados, pois um é imprescindível para que o outro aconteça.
Portanto, a empatia, a consideração positiva e a autenticidade compõem esta relação
genuína que a Psicologia Humanista busca enfatizar, sendo imprescindível que o terapeuta
busque ser uma pessoa empática, autêntica e capaz da aceitação incondicional do cliente. Assim
sendo, através do sincero desvelar do terapeuta, sem defensividade ou falsidade, a relação
69
terapêutica ganha uma âncora para o desenvolvimento da congruência e da confiança do cliente
em relação ao processo, ao terapeuta e a si mesmo.
Diante do exposto, o Humanismo, no que concerne à Psicologia, foi um importante
movimento para o desenvolvimento de um olhar psicológico voltado ao ser humano e às
subjetividades humanas como centro da compreensão homem-mundo e, consequentemente,
centro da ação terapêutica. Na abordagem gestáltica, precisamente, é impossível conceber uma
prática que não esteja atrelada à Psicologia Humanista e seus pressupostos acerca da
subjetividade e singularidade humanas.
Apresentados os pressupostos filosóficos da Gestalt-Terapia, seguiremos com seus
principais pressupostos teóricos de base, que são: a Psicologia da Gestalt, a Teoria Organísmica
de Kurt Goldstein e a Teoria de Campo de Kurt Lewin.
4.5 A Psicologia da Gestalt
Para introduzir a Teoria da Gestalt (como é, também, chamada a Psicologia da Gestalt)
como uma vertente da Psicologia e como uma das bases teóricas da Gestalt-Terapia, resgatamos
suas principais influências filosóficas: a Fenomenologia de Brentano e a Fenomenologia de
Husserl, discutidas no início desse capítulo.
Husserl foi aquele que, apesar de em suas Investigações Lógicas, publicada em 1901,
afirmar que a Fenomenologia não se ocuparia de objetos naturais – para este, inclui-se aqui a
psique humana –, acabou admitindo em seus escritos que “o eu e seus conteúdos de consciência
também pertencem ao mundo”, relação que, mais tarde, respaldou os estudos de fenômenos
psíquicos e perceptuais da Psicologia da Gestalt (GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2016).
É o conceito de intencionalidade, por influência de Brentano e Husserl, que traz a
Psicologia da Gestalt à fonte da Fenomenologia como base para seus estudos acerca da
percepção humana. A Teoria da Gestalt retoma o conceito de totalidade de Brentano e de objeto
intencional transcendente de Husserl com vistas a ancorar, de um modo significativo, seus
estudos experimentais acerca da percepção.
O conceito de totalidade será melhor expresso após o esclarecimento do fenômeno que
– diante dos estudos gestálticos de Wertheimer – acabou respaldando cientificamente e
70
objetivamente a constituição da relação todo-parte como fenômeno psíquico e ato subjetivo das
gestalten.
Como falado anteriormente na seção que trata da Fenomenologia, o objeto intencional
transcendente diz respeito aos vividos intencionais que fazem com que um objeto inanimado
do mundo ou caracterizado como apenas categorial à consciência transcenda seu aspecto de
coisa que é para se tornar ato consciente que existe, e isso só é possível enquanto sujeito à nossa
intencionalidade – a intencionalidade da consciência. Este conceito diz respeito a como os
objetos do mundo também passam a ter intencionalidade.
Além disso, conforme ressalta Fonseca (2006, p. 31, grifos do autor),
Brentano criou a Psicologia da Gestalt, ao explicitar que os elementos, as
partes da consciência só podem ser entendidas enquanto pertencentes à
totalidade da consciência. Consciência esta que, a cada um de seus momentos,
se configura como ato de consciência. A configuração, articulação das partes,
tem, é, um sentido próprio; diferente da mera associação, ou soma, de seus
elementos constituintes, como o queria o elementarismo associacionista
wundtiano. [...] Igualmente, Brentano compreendeu e explicitou o caráter
especulativo do ser. Dado a cada momento apenas no movimento de uma
variação de perspectivas. Assumiu, assim, um método aporético, que
privilegia a vivência das perspectivas até o seu limite (aporia), e a abertura
para as perspectivas que daí emergem.
Sendo assim, de acordo com a relação estabelecida por Fonseca (2006), nós podemos
compreender como a origem da Psicologia da Gestalt está no entendimento acerca dos
fenômenos psíquicos (gestalten) de Brentano e, posteriormente, de Husserl.
Concentrar-nos-emos nos conceitos gestálticos mais importantes no que diz respeito ao
objetivo deste trabalho. O primeiro é o conceito de fenômeno phi – o que vem até mesmo
respaldar a noção de intencionalidade, e isso acontece de maneira retroativa, pois a noção de
intencionalidade também o respalda. O fenômeno phi é aquele que vem evidenciar o
entendimento acerca da predominância do todo como algo transcendente à soma das partes.
Dessa forma, fenômeno phi, todo-parte e totalidade são conceitos imbricados e podemos
traduzi-los no conceito de Gestalt.
O fenômeno phi, inicialmente estudado e evidenciado por Wertheimer (que só mais tarde
veio a se juntar a seus colegas Kohler e Kofka), foi identificado a partir de um experimento que,
como descrevem Granzotto e Granzotto (2010, p. 77, grifos nossos),
71
[...] consistia em duas ranhuras, uma vertical e outra inclinada, a mais ou
menos vinte e cinco graus em relação à vertical. Quando a luz era projetada,
primeiro, através de uma ranhura, e, depois, através da outra, a fenda
iluminada parecia deslocar-se de uma posição para a outra, se o tempo entre a
apresentação das duas luzes se mantivesse em limites adequados. Wertheimer
calculou os limites de tempo em que o movimento era percebido. O intervalo
ótimo situava-se em torno de sessenta milissegundos. Se o intervalo entre as
apresentações excedesse cerca de duzentos milissegundos, a luz era vista,
sucessivamente, primeiro, em uma posição, e, depois, em outra. Se o
intervalado fosse demasiado curto, de trinta milissegundos ou menos, as duas
luzes pareciam estar continuamente acesas. Wertheimer deu a esse tipo de
movimento o nome de fenômeno phi. [...]. Em 1912, quando publica sua tese,
Wertheimer explica o fenômeno phi em termos muito simples. Trata-se de
algo para o qual não há explicação, mas a partir do qual é possível
explicar a percepção de fato: o primado do todo em relação às partes.
O que acontece na prática é que, ao visualizarmos os objetos, de acordo com a
compreensão do fenômeno phi, predomina a relação de totalidade, o que causa a percepção de
movimento e fechamento da gestalt, descrito nas leis de organização da percepção. Em relação
à percepção visual, o fenômeno phi é chamado comumente de ilusão de ótica. Vide a imagem
a seguir.
Figura 2 – Fenômeno Phi (Ilusão de Ótica)
Fonte: KITAOKA (2002)
O fenômeno phi foi o ponto de partida, então, para o nascimento da Psicologia da Gestalt
como uma vertente da Psicologia que, além de tudo, viria divergir das abordagens
72
comportamentalistas e estruturalistas que vigoravam na época. O fenômeno estudado, apesar
de complexo, age, curiosamente, como uma ação primária e, de certa forma, natural – o que
acaba indo de encontro com a Fenomenologia de Husserl, que não queria criar nenhuma lei
psíquica, nem mesmo se ocupar com as ciências naturais.
No entanto, mesmo a despeito de sua vontade, a noção de totalidade implicada na
relação da consciência com os objetos categoriais (do mundo) seria respaldada pela descoberta
do fenômeno phi, que comprovara tanto o conceito de intencionalidade, como o primado do
todo em relação às partes, premissa fundamental da Psicologia da Gestalt. Assim, o conceito
de todo-parte está completamente imbricado no fenômeno phi porque é justamente ele que traz
a evidência de como a totalidade atua e, consequentemente, mostra como atua a Gestalt: a boa
forma e/ou configuração subjetiva.
Portanto, para a Psicologia da Gestalt, tendemos a perceber sempre o todo, a boa forma
e o fenômeno phi involuntariamente. Ainda que não se conheça a sua origem e pouco se tenha
conhecido a respeito de sua natureza, este fenômeno determina com provas materiais o processo
perceptivo primário da consciência, que consiste em organizar partes numa totalidade única –
algo que vai muito além do que a mera associação. Esta totalidade pode ser melhor
compreendida através dos Princípios de Organização da Percepção ou Lei da Pregnância.
Como ressalta Goodwin (2010, p. 312),
[...] os psicólogos muitas vezes os utilizam [os princípios de organização da
percepção] quando acusam os gestaltistas de nativistas no que se refere à
percepção. Porém, estes argumentam, pelo contrário, que os princípios de
organização não têm nada a ver com a questão inato x adquirido. Em vez disso,
eles devem ser considerados inerentes à natureza dos objetos do mundo;
nossos sistemas perceptuais destinam-se a adivinhar da melhor maneira o que
existe nele. Como afirmou Wertheimer (1923/1967), “pode-se reconhecer a
‘boa Gestalt’ resultante simplesmente pela sua própria necessidade interior”
(p. 83).
Com base nos estudos da Teoria da Gestalt, por mais que utilizemos o termo “natural”
para referir-nos aos princípios da percepção, isso não significa dizer que é algo,
necessariamente, inato, mas sim primário. No que se refere à organização da percepção, diz
respeito a uma tendência a perceber a boa forma, e esta é orientada conforme a consciência
intencional do indivíduo, que atribui sentido às coisas de maneira a visualizar e se afetar pelo
todo que se mostra à consciência, e não pela soma das partes de suas vivências.
73
Dizer que essa perspectiva transcende o associacionismo e o elementarismo wundtiano
significa dizer que somar elementos ou entendê-los como processos psíquicos que atuam de
maneira isolada não é suficiente para a compreensão da subjetividade humana, esta constitui
um todo, e somente pode ser compreendida enquanto todo que existe para além da soma das
partes.
As leis ou princípios de organização da percepção são: proximidade, similaridade,
direção ou continuidade, disposição objetiva, fechamento ou destino comum e pregnância (boa
forma). Explicaremos cada uma delas a seguir, apresentando também uma figura ilustrativa.
Figura 3 – Proximidade: elementos próximos tendem a ser percebidos juntos.
Fonte: Autora
Figura 4 – Similaridade: elementos semelhantes tendem a ser agrupados e percebidos como
pertencentes a uma única estrutura.
Fonte: Autora
74
Figura 5 – Direção ou continuidade: tendemos a perceber os objetos do mundo como tendo
uma fluidez direcionada – relativa à noção subjetiva de tempo.
Fonte: Autora
Figura 6 – Disposição objetiva: tendemos a visualizar perceptualmente um objeto mesmo
quando já não estamos mais vendo materialmente (vide a visualização de uma luz forte ou a
capacidade representacional da mente6).
Fonte: Autora
6 Experimente olhar para a luz do sol por um pequeno intervalo de tempo e perceberá que continuará
vendo, mesmo de olhos fechados ou olhando em outra direção.
75
Figura 7 – Fechamento ou destino comum: mesmo elementos fora da forma tendem a ser
aglomerados numa totalidade única. Esses princípios desaguam da Lei da Pregância em que
“as figuras são vistas de um modo tão “bom” quanto possível, sob as condições do estímulo”
(GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2004, p. 7).
Fonte: Autora
Figura 8 – Pregnância ou boa forma: tendência a perceber os objetos de forma organizada
numa única totalidade.
Fonte: Canva
76
Outro conceito fundamental da Psicologia da Gestalt, o qual não podemos deixar de
expor aqui, é o conceito de figura-fundo, resgatado da ótica exposta no vaso do psicólogo
dinamarquês Edgar Rubin (1886 – 1951), que retoma a noção de apercepção consciente de
Husserl no que diz respeito à percepção espaço-temporal, como observa-se na figura abaixo.
Figura 9 – Vaso de Rubin (1915)
Fonte: Google
Conforme o pensamento de Kohler, o conceito de figura-fundo diz respeito a uma
relação perceptual presente nas gestalten em que toda configuração haverá elementos que são
figura e outros que são fundo. Esses elementos poderão se intercalar em determinados
momentos, num movimento em que o que se percebe ora é figura, ora é fundo, compondo uma
totalidade.
No que concerne à perspectiva husserliana de apercepção espaço-temporal traduzida
no conceito figura-fundo, Granzotto e Granzotto (2016, p. 86) afirmam que
Para Husserl (1893), em cada vivência material, a consciência pode intuir um
sentido de totalidade, que é sua própria vida em constante escoamento ou,
numa única palavra, tempo vivido (kairós). Husserl, ademais, vai dizer que
essa experimentação que a consciência tem de seu próprio fluir é a forma mais
elementar de nossa vida subjetiva (e, neste sentido, de nossa intencionalidade),
porquanto estabelecemos, sem a necessidade do recurso a um ato intelectual,
um horizonte de perfis inatuais para nossas vivências atuais (que sempre
requerem um ato intelectual para se tornarem um objeto temporal). Por tal
77
razão, Husserl vai chamar a experiência de apercepção da unidade do próprio
fluir de intencionalidade operativa (não de intencionalidade categorial ou de
ato, como no caso daquelas vivências instituídas por meio de atos de
linguagem). Por meio dela, deflagramos um “campo de presença” de “perfis
retidos ou inatuais” em favor de “vividos atuais” (p. 105-8).
O conceito de figura-fundo, então, foi de extrema importância para o desenvolvimento
da compreensão de homem-mundo da Gestalt-Terapia, bem como para o desenvolvimento do
conceito de transfenomenalidade, pertencente ao tema de nosso trabalho, o qual exploraremos
em profundidade na seção destinada à Gestalt-Terapia.
A seguir, discorreremos brevemente a respeito da Tese do Isomorfismo, que foi uma
perspectiva adotada pelos psicólogos da Gestalt e que embasou a compreensão de homem-
mundo da Psicologia da Gestalt – visão que evidencia a transfenomenalidade, bem como
respalda a visão de homem-mundo da Gestalt-Terapia.
4.5.1 A Tese do Isomorfismo
Todos os conceitos gestálticos – principalmente o conceito de transfenomenalidade,
tema de nosso trabalho – serão melhor entendidos à luz do que consideramos ser um pilar da
compreensão de homem-mundo para as perspectivas da Gestalt: a Teoria do Isomorfismo.
Com base nos estudos realizados em laboratório e ancorados na noção brentaniana e
husserliana de gestalten, os psicólogos da forma (da Gestalt) compreenderam que existe uma
forma de organização comum entre os atos psíquicos e os objetos do mundo físico. Então, para
eles, as gestalten nada mais são que uma unidade entre os atos psíquicos da experiência humana
e o mundo como uma estrutura físico-geográfica. É neste sentido que formamos uma totalidade
e uma unidade com o mundo.
Conforme a teoria, as expressões ou estruturas físicas estão completamente atreladas às
expressões psíquicas e subjetivas, e as gestalten constituem uma totalidade única composta por
essas partes, mas, em sua essência, transcendem a sua soma. Por este fator, essa ideia foi
chamada de Tese ou Teoria do Isomorfismo, pois, segundo ela, a esfera da consciência e da
percepção e a esfera do mundo físico possuem um mesmo princípio organizador: uma mesma
Gestalt. Dessa forma, tanto nós quanto o mundo caminhamos para a totalidade ou “boa
configuração”.
78
A respeito desse elo que liga o mundo psíquico ao mundo físico, Granzotto e Granzotto
(2016, p. 83) explicam que:
Se é possível eu reconhecer, mesmo na ausência de todos os estímulos que
inicialmente participaram da minha experiência perceptiva, um cubo que
conserva sua forma desde o passado, é porque meu córtex visual, assim como
o cubo ele mesmo, tendem a conservar, cada qual ao seu modo, a configuração
total de suas partes. O cérebro e o mundo conservam, desde o passado, uma
mesma disposição objetiva, ou o que é a mesma coisa, uma mesma Gestalt.
Nesse interim, a Tese do Isomorfismo bebe completamente da noção de objeto
intencional transcendente, a qual compreende que existe uma relação transcendental entre a
psique ou consciência humana e o mundo físico que a circunda. Essa união entre o mundo físico
e o mundo da experiência e vivências humanas pode ser considerada o fim da dicotomia
objetividade x subjetividade – dicotomia esta discutida no primeiro capítulo deste trabalho.
Mais tarde, a Tese do Isomorfismo foi reforçada por Kohler, pois é ela que dará vasão
ao entendimento do conceito de transfenomenalidade (discutido a seguir) dentro da Psicologia
da Gestalt e, posteriormente, implicará diretamente na compreensão de homem-mundo da
Gestalt-Terapia.
4.5.2 Transfenomenalidade
Essa seção destina-se a explorar o conceito de transfenomenalidade de Kohler,
remontando suas origens e sua compreensão como fenômeno preponderante na relação homem-
mundo, tanto na Fenomenologia, como na Psicologia da Gestalt e na Gestalt-Terapia. No que
concerne à aplicabilidade prática da Gestalt-Terapia, este conceito é a base da nossa análise no
presente estudo. É o conceito que vem definir epistemologicamente o que é o todo da Gestalt e
de que maneira ele se performa na produção de conhecimento e na prática psicoterapêutica.
Sartre, em sua obra O ser e o nada, publicada em 1943, correlaciona o entendimento
acerca da transfenomenalidade com a sentença de Husserl que diz que a consciência é sempre
consciência de alguma coisa. Para Sartre, a transfenomenalidade consiste na relação
transcendente homem-mundo, mas também do mundo para com o homem, de forma que
estabelece uma diferença entre o que ele chama de fenômeno do ser e o ser do fenômeno. O
79
fenômeno do ser é aquele que diz respeito a nós mesmos e nossa consciência, nosso ser. O ser
do fenômeno significa o ato de ser das coisas mesmas, que são objeto para a consciência. É
nesta relação que acontece a transfenomenalidade, mas não somente da consciência em relação
a algo, como também do “nada” para a consciência. O nada, neste sentido, se refere ao fato de
que o ser do fenômeno também pode atuar pela ausência material (mas que se mantém presente
perceptivamente), bem como pela condição de ser que não existe, mas apenas é7.
Como ressalta o próprio Sartre (1943, p. 33, grifos do autor),
[...] ser consciência de alguma coisa é estar diante de uma presença concreta
e plena que não é a consciência. Sem dúvida, pode-se ter consciência de uma
ausência. Mas esta ausência aparece necessariamente sobre um fundo de
presença.
Essa forma de presença retrata a atuação do ser do fenômeno, que representam as coisas
mesmas do mundo ou vividos essenciais na consciência. Sendo assim, é estabelecida uma
relação retroativa de transfenomenalidade, em que nossas vivências, antes de qualquer reflexão
(mental) age sobre nós mesmos, enquanto agimos no mundo. A transfenomenalidade pode ser
entendida, então, como a relação intrínseca entre objetividade e subjetividade, no sentido de
não segregar nem uma, nem outra, compreendendo que a atuação de ambas acontece num todo
correlacional.
No que se refere à relação sujeito-objeto, ou seja, à relação entre objetividade e
subjetividade presente no conceito de transfenomenalidade, consideramos pertinente resgatar
aqui um conceito imprescindível da filosofia hermenêutica que retrata como a
transfenomenalidade acontece. Este é o conceito de jogo do filósofo hermenêutico alemão
Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002). Em sua obra “Verdade e Método”, publicada pela
primeira vez em 1960, Gadamer faz diversas reflexões acerca da natureza da experiência
estética que, em muitos sentidos e, principalmente, no centro da discussão hermenêutica,
representa o principal ponto de reflexão acerca da relação sujeito-objeto.
Neste sentido, a beleza, a arte e a poesia ganham maior destaque, considerando que
refletem o movimento intrínseco de interrelação entre o fenômeno do ser e o ser do fenômeno,
ou seja, a relação intersubjetiva entre o espetáculo e o espectador, entre o espectador e a obra
7 Falamos sobre a diferença entre ser e existir na seção em que discutimos sobre o Existencialismo.
80
e, de um ângulo ainda mais íntimo, a relação entre a subjetividade daquele que cria e a
objetividade daquilo que foi criado, fenômeno este que, posteriormente, se tornará sujeito a
outras formas de subjetividade.
Para Gadamer (1999), o jogo representa uma forma de ser que independe do jogador,
se transformando numa realidade (transfenomenal) que atua autonomamente (ou seja, tem
regras próprias) e conduz, em grande parte, aquele que joga. Relacionamos este conceito à
noção de objeto intencional transcendente dentro da Fenomenologia e, também, ao conceito de
transfenomenalidade de Kohler. Além disso, algo que aproxima ainda mais estes conceitos é a
transformação do jogo em configuração (todo), postulada por Gadamer (1999, p. 187-191), ao
se referir à natureza gestáltica do jogo:
[...] o jogo [como] (espetáculo) possui, antes, uma autonomia simples,
justamente o que deve ser assinalado pelo conceito e transformação. [...] O
conceito de transformação terá, portanto, de caracterizar o modo de ser
independente e superior daquilo que denominamos configuração. A partir dela
é que determinamos a chamada realidade.
Nesse ínterim, o conceito de jogo de Gadamer retrata bem este movimento
interrelacional inerente à condição existencial da experiência estética em que nossa consciência
atua, mas não domina o poder intencional dos objetos, uma vez que ao objeto é conferida a
transcendência de ser que é. De acordo com Santos (2013, p. 6), “[...] não é o jogador que
delimita o espaço do jogo, atribuindo-lhe suas características e contornos, mas, o próprio jogo,
ao realizar-se, dimensiona a si mesmo e, consequentemente, a circunstância que o envolve”.
Assim, além de estar ligado ao conceito de transfenomenalidade, o conceito de jogo
denota uma forma particular de expressão da relação todo-parte, nos levando novamente ao
entendimento gestáltico do primado do todo em relação às partes e, neste caso, na “[...] total
primazia do jogo sobre a consciência do jogador” (GADAMER, 2005, p. 158 apud SANTOS,
2013, p. 6).
O conceito de jogo, então, desagua no entendimento desse fenômeno consciente (entre
nós e o mundo) como uma realidade intrinsecamente transfenomenal, ou seja, que não está nem
na subjetividade nem na objetividade, mas numa dança completamente independente que
transcende esses dois aspectos (sujeito e objeto), formando uma totalidade única, dinâmica e
autônoma. Veremos adiante como este conceito foi performado na Psicologia através do olhar
dos psicólogos da Gestalt.
81
Afim de superar o dualismo psíquico versus físico, Kofka estabelece o que ele chamou
de transobjetividade, demonstrando como acontece o elo entre corpo, mente e mundo exposto
na Tese do Isomorfismo. Com isso, para Kofka, a noção de transobjetividade vem a significar
a união ou unidade descrita nesta tese. Entretanto, o psicólogo faz questão de enfatizar que a
transobjetividade não significa uma junção de duas totalidades distintas com um mesmo destino
ou configuração, e sim corresponde à “configuração de uma única totalidade a “amarrar” o
cérebro e as coisas físicas” (GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2016, p. 84, grifo nosso).
Dessa forma, Kofka postula didaticamente sobre a existência de duas esferas
pertencentes a essa relação de transobjetividade, essas esferas são: o campo molar (fenomênico)
e o campo molecular (geográfico). O campo molar é onde o ser humano atua, é onde Kofka
insere o comportamento humano e a experiência/vivência; e o campo geográfico é equivalente
ao mundo físico (estrutural). Para este autor, essa distinção é meramente didática com o intuito
de explanar o entendimento da transobjetividade de uma maneira mais inteligível. Todavia,
destacamos que, em suma, tanto no ambiente comportamental, como no ambiente geográfico,
os fatos assumem formas comuns de organização. Assim, ressaltamos que essa forma comum
constitui a organização para a totalidade.
De acordo com Granzotto e Granzotto (2016, p. 84, grifo dos autores),
Olhando por uma ótica molar (ou fenomênica), o que se encontrará é o
domínio ou ambiente comportamental. Ele não é formado por estímulos
pontuais, mas por totalidades (que Kofka também chama de condutas) que se
formam em virtude dos estímulos. Trata-se de totalidades que se chamam de
comportamentos, sejam eles perceptivos, motores, afetivos ou intelectuais.
Essas totalidades são realidades transobjetivas ou Gestalten. Mas, por outro
lado, olhando por uma ótica molecular, o que se encontrará é o ambiente que
Kofka chama de geográfico. Nele, estão localizados todos os eventos que
envolvem o organismo e o meio. Mesmo as relações que se costuma designar
como vínculos de causa e efeito, se vistos por essa ótica, são organizações
gestálticas entre os materiais envolvidos.
Kohler, por sua vez, discorda da distinção – mesmo que didática – realizada por Kofka.
Está de acordo com a noção de transobjetividade, mas compreende que a relação entre campos
postulada por Kofka não foi suficiente para esclarecer em que sentido ambos constituem uma
única Gestalt, ou uma única realidade.
Para Kohler, a melhor definição para o conceito de transfenomenalidade é de uma
“ponte” entre corpo/mente e mundo. Neste conceito, o psicólogo faz questão de evidenciar que
82
o elemento trans significa que a objetividade e a subjetividade seriam uma coisa só, que vai
além da justaposição de dois elementos relacionados – como os campos molar e molecular de
Kofka. A união entre objetividade e subjetividade, então, desagua na totalização de uma
realidade transfenomenal e não na combinação ou interrelação de duas realidades distintas.
Dessa forma, por mais que Kofka tenha tentado mostrar que existe uma forma comum de
organização entre os campos (formando uma totalidade), para Kohler, foi necessário um
argumento mais contundente.
O argumento de Kofka demonstra, por exemplo, que o meio (físico), ou seja, os objetos
físico-químicos da constituição humana e constituição estrutural do mundo, mantém uma
equivalência com a constituição subjetiva do ser humano. Dessa forma, o que ocorre no corpo,
por exemplo, implica na mente ou consciência e vice-versa. Mas o que Kohler tenta mostrar,
pela via mais radical, é que a própria subjetividade – numa perspectiva transfenomenal – é parte
da objetividade, e o contrário também é verdadeiro. Diante disso, Kohler insere, de uma vez
por todas, o âmbito da experiência social e põe fim a qualquer dicotomia.
Por fim, diante da relação entre os conceitos de transobjetividade de Kofka e de
transfenomenalidade de Kohler, consideramos que o primeiro quebra a dicotomia corpo-mente,
enquanto que o segundo quebra a dicotomia corpo-mente e mundo. Além disso, conforme
ressalta Cholfe (2009, p. 182), entendemos que “é na presença de um que o outro se define”.
Destacamos a importância destes conceitos justamente por proporem a quebra da dicotomia
objetividade x subjetividade, a qual é fundamental para a compreensão de homem-mundo da
Gestalt-Terapia e para a discussão apresentada neste trabalho. A próxima teoria de base da
Gestalt-Terapia a ser discutida é a Teoria Organísmica de Goldstein.
4.6 Teoria Organísmica de Kurt Goldstein
Nessa seção, visamos esclarecer os conceitos fundamentais concernentes à Teoria
Organísmica de Kurt Goldstein com o objetivo de resgatar a sua visão de homem presente na
Gestalt-Terapia. Goldstein, já citado no capítulo anterior, foi um dos fortes nomes do
Movimento Humanista. A Teoria Organísmica é uma perspectiva que, sobretudo, discorre a
respeito dos princípios de autorregulação e da tendência à totalidade, estes se configuram
como seus principais postulados acerca da constituição humana.
83
Goldstein construiu sua teoria à luz do tratamento de vítimas de lesão cerebral durante
a Segunda Guerra Mundial. O que ele percebeu – e que ofereceu subsídios para o
desenvolvimento de suas ideias – foi que existia uma orientação humana para reorganização
física e psíquica com base na totalidade dos fatos, e era isso que determinava o comportamento
dos indivíduos num dado momento.
Sendo assim, para Goldstein, a totalidade constituída na interação organismo-meio tem
preponderância ao determinar de que forma o sujeito irá se autorregular. Com base, então, no
tratamento das vítimas da Segunda Guerra Mundial, esse psicólogo, além de descobrir a
existência do fenômeno de autorregulação organísmica, pôde verificar de que forma ele
acontece. Segundo ele, ocorre um fenômeno chamado centragem – que é a potencialidade das
células para conservarem o equilíbrio ou homeostase entre sua concentração interna e a
concentração das células vizinhas (GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2004).
Para este autor, então, a pessoa vive numa dinâmica constante de autorregulação, e é
desta noção que decorre a primeira noção gestáltica de ajustamento. Neste sentido, conforme
Tellegen (1984, p. 38-39 apud GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2004, p. 14), “em
circunstâncias adversas, o organismo desenvolve mecanismos adaptativos que podem ser mais
funcionais, ou menos. Um sintoma é, antes de mais nada, uma forma de ajustamento”.
Diante disso, a centragem ou tendência ao equilíbrio/homeostase ocorre em dois níveis:
1) num processo interior – nível vital ou conservativo: é feita pelas células do organismo através
do sistema fisiológico; e 2) num processo interrelacional – nível valorativo ou funcional: diz
respeito aos “sistemas de contato sensoriais e motores pelos quais o organismo obtém do meio,
o que precisa para atender as suas necessidades vitais” (GOLDSTEIN, 1939, p. 46 apud
GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2004, p. 13-14).
Podemos concluir, então, que, para Goldstein, a concepção gestáltica de totalidade está
completamente interligada à dinâmica de autorregulação do organismo no meio ambiente,
observada no fenômeno de centragem ou homeostase – um processo que demonstra a busca da
pessoa por equilíbrio na sua relação consigo e com o mundo. Assim sendo, homem-mundo
constituem, juntos, uma totalidade indissociável. Essa compreensão de sujeito é de fundamental
importância para o desdobramento da Gestalt-Terapia como teoria e como prática. Abaixo,
seguiremos nossa discussão apresentando outro pressuposto teórico importante para a
abordagem gestáltica: a Teoria de Campo de Kurt Lewin.
84
4.7 Teoria de Campo de Kurt Lewin
Para Kurt Lewin, o tema campo foi a melhor formulação conceitual proposta pela
Psicologia da Gestalt a respeito das gestalten. Lewin retoma de Kofka essa noção de campo,
mas amplia o conceito deste último introduzindo a noção de espaço vital: onde acontecem as
vivências de pertencimento do organismo frente ao meio ambiente (GRANZOTTO;
GRANZOTTO, 2004).
Conforme Lewin, o campo/espaço, onde reside a totalidade dos fatos na vida das
pessoas, é uma Gestalt, e a Gestalt é onde reside a relação organismo-meio. Sob esta concepção,
postula também o conceito de fronteiras, que são regiões de permeabilidade entre o homem e
o mundo. As fronteiras, para este autor, são totalidades intrínsecas que vão além da soma de
suas partes (organismo + meio), e constituem também o espaço vital onde cada pessoa se
singulariza. Assim sendo, é também nas fronteiras (da pessoa com o meio) que acontece a
emergência de figuras8. Essas figuras decorrem da formação de constructas ou essências
fenomenológicas: totalidades resultantes da configuração gestáltica das partes no todo
(GRANZOTTO; GRANZOTTO, 2016).
Dessa forma, a Teoria de Campo de Kurt Lewin, discorre sobre a existência de uma
instância que abarca a totalidade da vida das pessoas, abrigando também, consequentemente, a
relação organismo-meio. Essa instância é o campo ou espaço vital, e é neste campo (Gestalt) –
onde reside o homem e a totalidade dos fatos – que nós vivenciamos o mundo através das nossas
fronteiras de contato.
Exploraremos o conceito de fronteira de contato na seção que se segue, em que
falaremos a respeito dos principais conceitos da Gestalt-Terapia, que são um ponto chave da
nossa discussão a respeito da concepção de homem-mundo e de como esta concepção se
configura na prática clínica dessa abordagem.
Sendo assim, é importante ressaltar que tanto Goldstein como Lewin foram de extrema
importância para o desenvolvimento da Gestalt-Terapia, sendo os seus postulados científicos
tomados como princípios fundamentais para a re(elaboração) de conceitos gestálticos
posteriores. Discorreremos abaixo sobre esses conceitos.
8 Vide o conceito de figura-fundo dos primeiros psicólogos da Gestalt.
85
4.8 Gestalt-Terapia: Principais conceitos
A Gestalt-Terapia tem como seu principal nome Friedrich (Fritz) Salomon Perls (1893
– 1970), mas cabe ressaltarmos aqui que esta foi desenvolvida e criada pelo chamado grupo
dos sete9, constituído por Isadore Fromm, Paul Goodman (1911 – 1972) – psicoterapeuta
americano –, Paul Weisz, Sylvester Eastman, Elliot Shapiro, Ralph Hefferline (1910 – 1974) –
professor de Psicologia –, além dos psicoterapeutas Fritz e Laura Perls (1905 – 1990.
Posteriormente, Richard Kitzler integrou-se ao grupo.
Adiante, objetivamos esclarecer os principais conceitos da Gestalt-Terapia que dão
vasão a sua perspectiva de homem-mundo, visando expor a fundamentação teórica do capítulo
que tratará de sua aplicação prática: a análise deste trabalho. Esta fundamentação ganha corpo
nestes conceitos, mas permeia todo o caminho que fizemos até aqui, através do resgate das
raízes epistemológicas, filosóficas e teóricas da Gestalt-Terapia.
4.8.1 Fronteira de contato
A fronteira de contato – conceito já introduzido no tópico em que resgatamos os
postulados de Kurt Lewin – é o primeiro conceito a ser exposto na obra Gestalt-Terapia de
Perls, Hefferline e Goodman, publicada pela primeira vez em 1951. É um conceito que reflete
o pensamento do grupo dos sete no que diz respeito à constituição da relação homem-mundo.
Para a Gestalt-Terapia, então, a fronteira de contato é um limiar existente entre o
organismo e o meio ambiente, algo que fica entre mim e o outro, entre o mundo e eu. Um fator
importante é que esse limiar se configura – tal como o conceito de transfenomenalidade – como
um ponto de intersecção entre a objetividade e a subjetividade, performando uma totalidade
completamente autônoma, ou seja, um a priori de correlação: independentemente de qualquer
coisa, o homem está sempre em relação com o mundo. Assim sendo, a fronteira de contato é o
limiar existencial ou espaço vital que configura o modo como essa relação acontece no aqui-
agora.
9 Não encontramos informações consideráveis sobre a origem e formação de todos os membros.
86
Para Perls, Hefferline e Goodman (1997), referenciados como PHG10, esse limiar é
como a superfície da pele e de outros órgãos responsáveis pelas respostas sensoriais do
organismo, e para além do campo físico, constitui um processo de intersubjetividade, em que o
organismo e o meio são um só. Conforme os autores, essa é uma “abordagem “unitária”, no
sentido de que tentamos de maneira detalhada levar em consideração todo problema como se
dando num campo social-animal-físico” (p. 43).
O conceito de contato – intimamente ligado à fronteira de contato – é um termo que
vem juntar numa totalidade única instâncias antes separadas uma da outra como se fossem
âmbitos independentes, entretanto, ambas são interdependentes e não o contrário. Dessa forma,
a sua soma (seu contato) transcende para uma totalidade completamente diferente.
Quando dizemos “fronteira”, pensamos em uma “fronteira entre”, mas a
fronteira – de – contato, onde a experiência tem lugar, não separa o organismo
e seu ambiente; em vez disso limita o organismo, o contém e protege, ao
mesmo tempo que contata o ambiente (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN,
1997, p. 43, grifos dos autores).
Portanto, a fronteira de contato é um conceito importantíssimo que compreende o ser
humano como alguém que continua sendo um ser completamente único mesmo quando
implicado pelas relações que vivencia neste mundo. Dessa forma, a fronteira de contato
estabelece uma relação de implicância sem, necessariamente, retirar o ser de sua
individualidade e singularidade humana.
4.8.2 Figura-fundo
Para a Gestalt-Terapia, figura-fundo é um processo criativo decorrente do contato.
Conforme Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 45, grifos dos autores), “contato, o trabalho
que resulta em assimilação e crescimento, é a formação de uma figura de interesse contra um
fundo ou contexto do campo organismo/ambiente”. Sendo assim, a figura (de contato) constitui
uma gestalt (imagem, percepção, insight) formada através da percepção da pessoa frente aos
fatores do contexto – que assume a forma de um fundo (do campo organismo-ambiente).
10 Seguiremos utilizando a abreviatura PHG para nos referirmos a Perls, Hefferline e Goodman.
87
Ressaltamos que haverá determinados momentos que implicarão na emergência de um
fator como figura, mesmo que antes tenha se configurado como fundo. O contrário também é
possível e a figura pode tornar-se fundo conforme caminha a relação organismo-ambiente. Por
isso, fala-se da relação figura-fundo como uma dinâmica, um processo, e não algo estático.
Estabelecendo uma ligação com a hermenêutica presente na Fenomenologia Existencial
– considerando um dos seus principais princípios ontológicos a homogeneidade entre sujeito e
objeto e, consequentemente, entre objetividade e subjetividade –, podemos compreender o
conceito de figura-fundo como uma dinâmica intrínseca entre o todo e as partes. Tal dinâmica
nos leva à noção heideggeriana de círculo hermenêutico, o qual postula que a compreensão
hermenêutica encontra o seu cume na relação intrínseca entre o todo e as partes, considerando
a experiência humana como um fenômeno que somente será compreendido em seu sentido e
significado pleno se for interpretado conforme a dinâmica todo-parte e, em sentido último,
conforme a dinâmica figura-fundo.
A respeito dessa dinâmica compreensiva, Gadamer (1999, 436-437) ressalta que
[...] O movimento da compreensão vai constantemente do todo à parte e desta
ao todo. A tarefa é ampliar a unidade do sentido compreendido em círculos
concêntricos. O critério correspondente para a correção da compreensão é
sempre a concordância de cada particularidade com o todo. Quando não há tal
concordância, isso significa que a compreensão malogrou. [...] A
compreensão acaba acontecendo, a cada caso, a partir desse todo, de natureza
tanto objetiva como subjetiva. No que se relaciona com essa teoria, Dilthey
falará de “estruturas” e da “concentração em um ponto central”, a partir do
qual se produz a compreensão do todo. Com isso ele transporta ao mundo
histórico, como já dizíamos, o que desde sempre tem sido um fundamento de
toda interpretação textual: que cada texto deve ser compreendido a partir de si
mesmo.
Na Gestalt-Terapia, essa compreensão dinâmica entre figura-fundo toma a historicidade
de cada indivíduo como centro, ou seja, toda a vida e toda a pessoa são focos de compreensão.
As “estruturas” diltheyrianas descritas por Gadamer nos remetem à própria noção de figura, a
qual emerge como ponto central e, no entanto, deverá sempre ser interpretada conforme a
compreensão do todo que transcende ela mesma, traduzindo-se, posteriormente, em fundo; e,
em muitas outras vezes, faz o movimento contrário, e de fundo torna-se figura.
88
4.8.3 Awareness (tomada de consciência)
Awareness é postulada por PHG como processo referente à consciência, tal qual se
perfaz através do contato com o mundo. Segundo os autores, ela assume uma função contato
de extrema importância que envolve tanto o nível perceptivo como o nível motor (movimento),
o que remonta à noção de intencionalidade categorial e operativa. Isso quer dizer que existe
um nível de consciência perceptiva (de atribuição de sentido) e também de operatividade ou
ação no mundo em que condicionamos a realidade a essa forma de consciência, ou seja, agimos
conforme a nossa percepção consciente em dado momento. Diante disso, tanto o trabalho
teórico do gestalt-terapeuta como sua atuação clínica são voltados a intensificação da awareness
ou tomada de consciência no que diz respeito à realidade de cada pessoa, através do olhar para
a totalidade.
A awareness como uma função contato implica primordialmente nas formas de
ajustamento e, assim, configura-se como um fator determinante. Através da tomada de
consciência, conforme afirmam Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 44), “há dificuldades e
demoras de ajustamento”. Isto acontece porque é um processo que depende de inúmeros fatores,
inclusive de outras funções contato, como, por exemplo, a correlação (fronteira) primária entre
o homem e o contexto que o cerca – contexto esse que também exercerá influência sobre como
a consciência constrói seus sentidos (vide a discussão realizada anteriormente acerca do
conceito de objeto intencional transcendente).
De acordo com o fato de que a awareness acontece em dois níveis, podemos
compreender que ela não apenas diz respeito ao exercício de uma “reflexão” ou
“racionalização” sobre determinado fato ou problema, mas primordialmente corresponde à
visualização ou percepção consciente da totalidade gestáltica da realidade, que implica
diretamente numa ação condicionada à percepção consciente, em que tanto o organismo como
o ambiente demandam mudança.
Em relação a esse processo, Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 46, grifos dos
autores) discorrem que
Desde o início da psicanálise, [...] sempre pareceu que a “mera” awareness,
por exemplo, a recordação, curasse a neurose. Note, contudo, que a awareness
não é uma reflexão sobre o problema, mas é ela própria uma integração
criativa deste. Podemos entender também porque comumente “awareness”
89
não ajuda, pois geralmente não se trata em absoluto de uma gestalt consciente,
um conteúdo estruturado, mas mero conteúdo, verbalização ou reminiscência,
e como tal não se alimenta da energia da necessidade orgânica atual e de uma
ajuda ambiental atual.
Por fim, salientamos que, de acordo com os autores, este fator de demanda por mudança
faz com que a tomada de consciência (awareness) se torne um processo essencial para a
consolidação dos ajustamentos pelo organismo. As noções de awareness e ajustamento
decorrem de dois conceitos explorados em seções e capítulos anteriores: o conceito de
autorregulação organísmica e o processo de individuação (conceito junguiano).
4.8.4 Autorregulação organísmica (self-actualization)
Como explanado anteriormente, o conceito de autorregulação organísmica foi
postulado por Goldstein e resgatado pela Gestalt-Terapia. Vale ressaltar que este conceito está
intimamente interligado ao conceito de tendência atualizante ou autoatualização de Carl
Rogers. Ambos – Goldstein e Rogers – foram importantes expoentes do Movimento Humanista.
Para a Gestalt-Terapia, a autorregulação organísmica é um movimento constante que
todos os seres humanos vivenciam buscando um ajustamento a própria realidade. No que diz
respeito à tendência atualizante, isto significa que tais ajustamentos oferecem subsídios ao
crescimento pessoal de cada um. Assim sendo, ao passo que cada ser é capaz de se inventar e
reinventar, pode se tornar alguém completamente novo. Sob a perspectiva fenomenológico-
existencial, esses fenômenos humanos são um eterno vir-a-ser.
De acordo com a Gestalt-Terapia, “todo contato é ajustamento do organismo e
ambiente” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 45, grifos dos autores). Sendo
assim, da mesma forma que todo contato é um a priori de correlação, também os ajustamentos
são intencionais e criativos, pois, na relação com o mundo, o homem está sempre em processo
de assimilação do ambiente a própria constituição. Dessa forma, a cada novo contato, novas
mudanças ocorrerão.
A respeito disso, Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 44) ressaltam que
90
[...] um organismo vive em seu ambiente por meio da manutenção de sua
diferença e, o que é mais importante, por meio da assimilação do ambiente à
sua diferença; e é na fronteira que os perigos são rejeitados, os obstáculos
superados e o assimilável é selecionado e apropriado. Bem, o que é
selecionado e assimilado é sempre o novo, o organismo persiste pela
assimilação do novo, pela mudança e crescimento. Por exemplo, o alimento,
como Aristóteles costuma dizer, é o “dessemelhante” que pode se tornar
“semelhante”; e no processo de assimilação o organismo é sucessivamente
modificado.
Além disso, a autorregulação organísmica, como forma de ajustamento, está
completamente interligada ao conceito de awareness – a qual só ocorre por meio do contato. A
respeito disso, ressaltamos, também, o elo existente entre a noção de awareness e o processo
de individuação de Jung, o qual está correlacionado ao princípio de autorregulação
organísmica.
Nesse interim, é importante resgatamos essa ligação, uma vez que o processo de
individuação diz respeito à busca constante de si mesmo (self) e do autoconhecimento –
propagada pela Psicologia Humanista – como uma ferramenta para potencialização da
consciência e do crescimento; o que demonstra a relação direta entre todos os conceitos
discutidos nessa seção, caracterizando-os como conceitos gestálticos.
4.8.5 Ajustamento criativo
O conceito de ajustamento criativo pode ser entendido, nas palavras de Peruzzo (2011,
p. 381), “como adaptações de arranjos harmônicos realizados de forma criativa, inovadora e
original; por utilizar-se do que está ao seu alcance para sobrevivência em um meio hostil, ao
qual necessita transformar na mesma proporção em que é transformado”. Para além da
preservação e sobrevivência, os ajustamentos criativos buscam responder, também, às
necessidades que transcendem o âmbito do campo físico, fazendo com que estejamos sempre
tentando encontrar respostas inovadoras ou melhores para determinadas situações e vivências
cotidianas.
Isso nos remete ao fato de que, por mais que a noção de autorregulação organísmica
tenha trazido à tona o conceito de ajustamento, Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 44-45,
grifos dos autores) fizeram questão de introduzir o termo criativo para integrar este conceito,
fortalecendo a ideia de que
91
[...] todo contato [onde ocorre os ajustamentos] é criativo e dinâmico. Ele não
pode ser rotineiro, estereotipado ou simplesmente conservador porque tem
que enfrentar o novo, uma vez que só este é nutritivo. [...] Por outro lado, o
contato não pode aceitar a novidade de forma passiva ou meramente se ajustar
a ela, porque a novidade tem de ser assimilada. Todo contato é ajustamento
criativo do organismo e ambiente. Resposta consciente no campo (como
orientação e como manipulação) é o instrumento de crescimento no campo.
Crescimento é a função da fronteira-de-contato no campo
organismo/ambiente; é por meio de ajustamento criativo, mudança e
crescimento que as unidades orgânicas complicadas persistem na unidade
maior do campo.
Conforme ressaltam os autores, é por meio dos ajustamentos criativos que damos forma
às gestalten, onde mesmo situações complicadas (ou inacabadas) integram um todo (boa forma)
que vai muito além da soma das partes. Neste sentido, esses ajustamentos prevalecerão mesmo
em meio a gestalten abertas ou débeis. A respeito disso, Perls, Hefferline e Goodman (1997, p.
46) afirmam que
[...] quando a figura é opaca, confusa, deselegante, sem energia [...] podemos
estar certos de que há falta de contato, algo no ambiente está obliterado,
alguma necessidade orgânica vital não está sendo expressa, a pessoa não está
“toda aí”, isto é, seu campo total não pode emprestar sua urgência e recursos
para o completamento da figura.
Isso desagua nas noções de ajustamento criativo funcional (saudável) e disfuncional
(não saudável), pois é substancialmente diante das gestalten abertas que os seres humanos
sentem a necessidade e o ímpeto para a totalidade ou fechamento da figura (gestalt) –
travestida, por exemplo, em uma situação conflituosa. Os ajustamentos criativos funcionais
ocorrem quando a pessoa consegue assimilar o ambiente, integrando a totalidade do contexto
à sua totalidade, completando a figura gestáltica e adicionando experiências de excitamento e
crescimento à sua história pessoal. Isso decorre do funcionamento saudável da fronteira de
contato, em que a pessoa se desenvolve de maneira integrada e plena.
Já os ajustamentos criativos disfuncionais remetem ao embotamento do sujeito e à
rigidez da fronteira de contato – que pode ser interna ao sujeito, o que impede as formas de
autoconhecimento e crescimento. Devido à cristalização da experiência, o sujeito se torna
incapaz de assimilar o novo extraído do campo organismo/ambiente, o que desagua em
limitações às suas possibilidades existenciais. Sendo assim, os ajustamentos criativos
92
disfuncionais ocorrem quando a pessoa já não consegue se autorregular da melhor maneira que
poderia. Dessa forma, esses ajustamentos podem estar ligados à formação de gestalten débeis,
que podem gerar desordem, instabilidade ou um mau funcionamento do organismo.
Um exemplo de ajustamento criativo disfuncional é o ajustamento psicóticos. A
respeito desse tipo de ajustamento, Granzotto e Granzotto (2008 apud PERUZZO, 2011, p. 386)
afirmam que
Ajustamentos psicóticos são utilizados quando o indivíduo não é capaz de
entrar em contato com suas necessidades, com seus excitamentos, e assim não
consegue definir uma figura dentro do fundo, o que faz com que este tenha
que criar uma figura, como se fosse uma alucinação. Para que assim o
organismo, de alguma forma, possa se auto-regular, mesmo que de forma
precária, o que não é o ideal, mas o real, o possível.
Diante disso, podemos observar que, para a Gestalt-Terapia, independente das
condições, os seres humanos estão numa dinâmica constante de ajustamentos criativos – sejam
eles considerados funcionais ou disfuncionais. Vale ressaltar que tais ajustamentos devem ser
sempre interpretados em relação ao campo organismo/ambiente no qual a pessoa está inserida,
de maneira singular e integral.
4.8.6 Aqui-Agora
Para a Gestalt-Terapia, o conceito de aqui-agora é de fundamental importância no que
diz respeito a dois aspectos: o primeiro se refere à intervenção clínica e o segundo à implicância
da temporalidade na totalidade subjetiva pessoal (self). Em relação ao primeiro aspecto,
podemos dizer que o aqui-agora é um princípio que norteia a prática do gestalt-terapeuta, uma
vez que este compreende o processo e a relação terapêutica (no presente) como fenômenos de
suma importância para o despontar das potencialidades da pessoa. Ou seja, isso quer dizer que,
independentemente do cliente apresentar um conteúdo do passado ou projetos futuros, o que
definirá seu desenvolvimento e crescimento (seja em relação ao passado ou ao futuro) é o
presente, o aqui-agora.
Desse modo, o aqui-agora se refere tanto à relação terapêutica como ao presente ou
aqui-agora do cliente em si. Assim, mesmo diante de sintomas provocados num dado momento
93
do passado, se a pessoa apresenta esses sintomas atualmente, quer dizer que o problema se
configura como algo completamente novo e atual. Logo, a intervenção deve partir de como o
problema se apresenta no aqui-agora para o cliente. A respeito disso, como ressaltam Perls,
Hefferline e Goodman (1997, p. 46, grifos dos autores),
A terapia consiste em analisar a estrutura interna da experiência concreta,
qualquer que seja o grau de contato desta; não tanto o que está sendo
experenciado, relembrado, feito, dito etc., mas a maneira como o que está
sendo relembrado é relembrado, ou como o que é dito é dito, com que
expressão facial, tom de voz, sintaxe, postura, afeto, omissão, consideração
ou falta de consideração para com a outra pessoa etc. Trabalhando a unidade
e a desunidade dessa estrutura aqui e agora, é possível refazer as relações
dinâmicas da figura e fundo até que o contato se intensifique, a awareness se
ilumine e o comportamento se energize.
Sendo assim, o aqui-agora aponta para a reatualização (self-actualizacion) constante
do sujeito frente às situações da vida, o que quer dizer que, se uma situação inacabada (gestalt
aberta) está impelindo a pessoa para o fechamento desta situação, isto significa que a gestalt é
atual e deve, portanto, ser trabalhada sob a ótica do momento presente.
O segundo aspecto fundamental para a compreensão do aqui-agora, que é a totalidade
psíquica subjetiva – o self –, nos remete à noção de temporalidade, demonstrando que, mesmo
que o sujeito esteja vivenciando a manifestação de uma situação passada ou a conjectura de
uma situação futura, ambas as noções de temporalidade delimitam um espaço que se configura
numa totalidade completamente única e diferente, que é o presente.
Isto, entretanto, não significa vangloriar um tempo em detrimento do outro, mas tão
somente dizer que passado e futuro são partes de uma totalidade transcendente que se configura
no aqui-agora (presente). Essa totalidade é o self (si mesmo), que performa a unidade da pessoa
no aqui-agora.
Conforme afirmam Arenhart e Freitas (2016, p. 40),
Isso significa que o foco na Gestalt-terapia é redirecionado para como a
experiência está sendo vivida, relembrada e retida no presente. O aqui-e-agora
abrange uma conscientização que vai além das categorias de conteúdo
(porque), das abstrações, verbalizações ou relações causais traçadas, para
incluir as formas, a relação e a corporeidade que surgem no aqui-e-agora por
meio das realidades sensoriais e motoras disponíveis.
94
Dessa forma, mais do que tentar buscar as causas do sintoma que se manifesta, ou o que
provocou determinada abertura de gestalt, o gestalt-terapeuta direciona o seu foco para como a
pessoa está vivenciando determinada situação. Sendo assim, a atenção é voltada para a
experiência presente do cliente, considerando-o, também, como o único tempo possível de
realização e crescimento.
4.8.7 Self
Na Gestalt-Terapia, o self corresponde à totalidade subjetiva das pessoas. Para sermos
mais precisos, é o sistema de contatos que cada pessoa estabelece num dado momento. Esse
sistema diz respeito à fronteira de contato de cada um, que é condicionada pelo momento
presente, de acordo com as figuras emergentes e as dinâmicas de figura-fundo performadas.
Sendo assim, o self se configura como um sistema flexivelmente variado e mutável, que
se transforma conforme as necessidades orgânicas e subjetivas que se apresentam. Além disso,
vale ressaltar que, como explicado anteriormente, o self constitui um processo integrador que,
à luz do contato e da awareness, dá forma à subjetividade humana. Dessa forma, o self
representa a totalidade do ser, pois, majoritariamente, como um campo, integra organismo e
ambiente e, neste sentido, a gestalt (campo-self) tende a se completar (PERLS; HEFFERLINE;
GOODMAN, 1997).
Nesse interim, o self corresponde tanto ao princípio gestáltico da totalidade, como
também de crescimento – como discutimos anteriormente na seção a respeito da autorregulação
organísmica. Com isso, compreende-se que o fechamento e a correspondência do campo numa
totalidade única representam o equilíbrio que todo organismo busca em sua dinâmica de
autorregulação. Contudo, de acordo com Perls, Hefferline e Goodman (1977, p. 179), “[...] já
que as condições estão sempre mudando, o equilíbrio parcial obtido é sempre inusitado; é
preciso crescer para chegar a ele. Um organismo preserva-se somente pelo crescimento”.
Assim, vale ressaltar que, nesse processo, o equilíbrio/homeostase almejados pelo self
são sempre parciais, pois, do contrário, levaria o organismo ao próprio aniquilamento. Diante
disso, percebemos que a dinâmica de equilíbrio/homeostase/autorregulação e,
consequentemente, o self, estarão sempre condicionados ao movimento, ao excitamento e ao
crescimento, fenômenos esses que dependem, primordialmente, da assimilação do ambiente
95
pelo organismo e vice-versa. Ressaltamos que todos esses processos estão imbricados e
acontecem na fronteira de contato.
4.8.8 Experimentação
Em Gestalt-Terapia, a experimentação difere totalmente do que, a princípio, se pensa
quando se ouve a palavra experimento. Geralmente, se atribui a nomenclatura experimento para
designar um estudo científico laboratorial, contudo, em Gestalt-Terapia, esse conceito ganha
um outro significado, pois se configura como um processo de entrar em contato com.
No que se refere ao processo psicoterapêutico, a experimentação resulta em um método.
No contexto terapêutico individual ou em grupo, o objetivo do gestalt-terapeuta é colocar seus
clientes em contato consigo mesmo no/com o momento presente. Sendo assim, a
experimentação consiste em vivenciar, experenciar e visualizar como está se sentindo
(pessoal/subjetiva/fisicamente) no aqui-agora. Destacamos que esse processo é um movimento
constante de tomada de consciência, dessa forma, objetiva a awareness.
Como ressaltam Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 49, grifo dos autores),
[...] nosso método terapêutico é o seguinte: treinar o ego, as diferentes
identificações e alienações, por meio de experimentos com uma awareness
deliberada das nossas variadas funções, até que se reviva espontaneamente a
sensação de que “Sou eu que estou pensando, percebendo, sentindo e fazendo
isto”. Nesta altura, o paciente pode assumir, por conta própria, o controle.
No que concerne à experimentação como um todo, é necessário expormos aqui,
também, a diferenciação fundamental entre técnica, exercício e experimento, pois, na prática,
esses conceitos podem acabar se confundido sem a devida compreensão de seus princípios.
Todavia, vale ressaltar que, a rigor, os três processos tem um objetivo comum: todos eles
buscam potencializar o contato através da awareness (tomada de consciência), que é o principal
objetivo do gestalt-terapeuta. Em resumo, a aplicabilidade desses princípios, pela via
terapêutica, desagua no processo de experimentação por parte do cliente (FIGUEROA, 2015).
A técnica tem como principal âncora o repertório metodológico do terapeuta. Ela
consiste em ferramentas utilizadas e desenvolvidas pelo terapeuta com vistas a atingir objetivos
96
determinados. Além disso, ela pode ser utilizada tanto em exercícios como nos experimentos.
O que difere a utilização da técnica em exercícios e em experimentos é que, no primeiro, ela é
planejada, e no segundo não. Assim, no experimento, a técnica só emerge como figura no aqui-
agora, está condicionada ao movimento da relação terapêutica. O experimento, em si, é uma
vivência e, sobretudo, é uma iminência que surge dentro da relação terapêutica, é um improviso
(imprevisto e espontâneo) que decorre única e exclusivamente da relação dialógica entre o
terapeuta e o cliente. Ele surge e acontece no aqui-agora vivencial, “orientando-se de acordo
com o que sucede, sem um fim determinado” (FIGUEROA, 2015, p. 88).
A respeito desse processo, Figueroa (2015, p. 90) exemplifica que
Em geral, é o terapeuta que convida o cliente ao experimento a partir de um
tema emergente – um assunto, um gesto, uma fantasia etc. Ele sugere uma
experiência, isto é, um modo de explorar o tema, fazendo algo com aquilo que
não seja só falar sobre. A fim de obter elementos suficientes para a formulação
do experimento, o terapeuta pode utilizar recursos como: perguntar ao cliente
sobre a sua necessidade naquela situação; perguntar o que quer fazer com o
tema emergente; pedir que entre em contato com suas sensações e seus
sentimentos; sugerir que preste atenção no ambiente, olhando para as pessoas
à sua volta.
Além disso, ao vivenciar um experimento – e também na experimentação como um todo
– através da ampliação da awareness, o cliente pode vivenciar a integração entre as partes ou
o fechamento de uma gestalt aberta. Ele pode vivenciar conscientemente um processo que antes
era inconsciente – na Gestalt-Terapia, o que é inconsciente pode se configurar como fundo ou
fenômeno que ainda não chegou à luz da consciência.
Os exercícios, por sua vez, podem ser chamados de atividades, geralmente propostas
pelo terapeuta, e que podem ser realizadas tanto dentro quanto fora da terapia. De acordo com
Figueroa (2015, p. 88), os exercícios são “procedimentos [que podem ser autoaplicáveis] nos
quais os recursos técnicos visam objetivos previamente definidos, como explorar uma das
funções contato (audição, visão, tato, olfato, paladar), observar a respiração etc.”.
Para os criadores da Gestalt-Terapia – PHG –, a única via para a solução dos problemas
humanos, bem como para o fechamento das gestalten, é a experimentação, ou seja, o
desabrochar do contato através da awareness (tomada de consciência), em que não só nos
damos conta de algo que antes era inconsciente (ou não era um fenômeno percebido), como
também tornamos possível a nós mesmos a ressignificação da situação (da gestalt), através da
97
emergência de uma nova figura, que pode ser uma nova percepção, visão ou interpretação da
realidade.
Como trouxemos no nosso terceiro capítulo – em que apresentamos o Humanismo e a
Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers como uma das principais psicoterapias de base
fenomenológico-existencial –, o papel do psicoterapeuta, de acordo com Rogers, é oferecer as
condições necessárias para o desabrochar da tendência atualizante de cada pessoa com o
objetivo de potencializar o crescimento inerente ao mecanismo de autorregulação organísmica.
Essas condições foram nomeadas por Rogers de condições facilitadoras11 e na Gestalt-Terapia
de Perls tais ações terapêuticas se agrupam na noção de disposição experimental.
Em certo sentido, a experimentação (gestáltica) consiste na ação terapêutica que
proporciona a ampliação dessas condições à pessoa. Ressalta-se, no entanto, que, em amplo
sentido, tais condições são potencializadas pela experimentação em si, e não pelo
psicoterapeuta como centralizador do processo. Assim, cabe ao sujeito reconhecer a
possibilidade de aventurar-se no processo e em sua própria condição existencial de vir-a-ser,
considerando que a ampliação de sua fronteira de contato estará sempre sujeita ao
impermanente e ao desconhecido.
No sentido existencial-fenomenológico, a experimentação, pois, configura-se no ato de
lançar-se nos mistérios da existência, assumindo-a como único campo fenomênico onde as
vivências podem acontecer. De acordo com Gadamer (1999, p. 125-126, grifos nossos), “[...]
somente existem vivências na medida em que nelas algo se experimenta ou é intencionado.
[...] A vida somente se manifesta na vivência”.
Por fim, não objetivamos explanar aqui todo o arsenal de técnicas, experimentos e
exercícios possíveis em Gestalt-Terapia, mas ressaltamos a importância de se explorar em
profundidade o rol de possibilidades da atuação prática que permeia a produção e literatura da
área.
Diante da discussão realizada neste capítulo, consideramos esse resgate das bases
filosóficas e teóricas da Gestalt-Terapia, bem como dos seus principais conceitos, um ponto
fundamental do nosso trabalho, uma vez que norteará a compreensão do processo clínico e
psicoterapêutico frente à realidade das pessoas. Assim, agora que entramos em contato com os
11 Como apresentado no nosso terceiro capítulo, as condições facilitadoras apresentadas por Rogers são:
empatia, congruência e autenticidade.
98
princípios que ancoram a visão de homem-mundo da abordagem gestáltica, podemos partir para
análise da atuação prática que lhes confere a vida. No próximo capítulo, discorreremos sobre o
percurso metodológico dessa pesquisa, apresentando o material estudado e os métodos
escolhidos para a análise.
99
5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA
O presente capítulo tem a incumbência de apresentar detalhadamente os procedimentos
metodológicos adotados para o desenvolvimento da pesquisa e para a análise dos resultados,
considerando os objetivos almejados. A nossa pesquisa consiste em um trabalho de caráter
qualitativo, bibliográfico e analítico-crítico acerca da construção teórica e aplicação prática da
Gestalt-Terapia no âmbito da Psicologia. Apresentaremos, então, como se deu a busca e a
seleção dos casos clínicos que servirão de base para a análise dessa prática, expondo, também,
os métodos escolhidos para avaliação dos resultados, que são: a Pesquisa Narrativa, a Análise
de Conteúdo e o Pragmatismo Filosófico. Além disso, o final deste capítulo conta com as
descrições dos casos clínicos em formato de Análise Narrativa – parte do método da Pesquisa
Narrativa – para uma melhor compreensão do leitor.
Nosso objetivo geral foi analisar a aplicabilidade prática da Gestalt-Terapia,
considerando suas origens e ramificações, que abrigam suas bases epistemológicas, filosóficas
e teóricas e, consequentemente, a sua visão de homem-mundo, que desagua no conceito de
transfenomenalidade postulado por Kohler. Sendo assim, analisaremos de que forma a
concepção de homem-mundo tem implicado na atuação do gestalt-terapeuta frente à clínica12.
Para alcançar nosso objetivo geral, tivemos como objetivos específicos: investigar as
fronteiras epistemológicas entre objetividade e subjetividade no âmbito das ciências e da
Psicologia; evidenciar, através da exploração da concepção de homem-mundo da Gestalt-
Terapia, as equivalências e ambivalências existentes entre a Psicologia da Gestalt e a Gestalt-
Terapia, considerando seus pressupostos filosóficos, que são a Fenomenologia, o
Existencialismo e o Humanismo; e identificar, através do conceito de transfenomenalidade de
Kohler, qual a implicância da concepção de homem-mundo da Gestalt-Terapia na produção do
conhecimento e na prática clínica. Dessa forma, o presente estudo e análise foram realizados
com foco nesta concepção de homem-mundo e sua implicância no que diz respeito à produção
de subjetividades.
12 Ressalta-se clínica não somente como a prática da psicoterapia em consultório, mas também como
uma área que se estende para vários âmbitos institucionais como, por exemplo: hospitais, escolas,
instituições de saúde mental, empresas etc.
100
Como mencionado anteriormente, esta pesquisa possui caráter qualitativo, bibliográfico
e analítico-crítico. O caráter qualitativo desta pesquisa se refere tanto à análise minuciosa de
saberes científicos produzidos a respeito dos fenômenos humanos, quanto à própria
ressignificação desses fenômenos pela Psicologia, através da discussão, reelaboração e
consequente esclarecimento.
A pesquisa qualitativa tem como característica a busca exaustiva por uma produção de
conhecimento que não se resuma à coleta de dados e à exposição empírica desses dados
traduzidos em uma realidade numérica e estatística. Dessa forma, o método qualitativo se
define, então, por transcender a esse processo quantitativo. Ressaltamos, porém, que o método
quantitativo também é importante, mas muitas vezes não contempla os objetivos almejados –
em razão da amplitude e inexatidão humana – como acontece, por exemplo, no contexto de
nosso trabalho.
Somado a isso, Rey e Luis (2002, p. 106) apontam que
[...] a construção da informação na pesquisa qualitativa não se apoia na coleta
de dados, como se realiza na pesquisa tradicional; mas segue o curso
progressivo e aberto de um processo de construção e interpretação que
acompanha todos os momentos da pesquisa. Esta última é um processo de
construção teórica, e não um processo de definição de dados empíricos que
tem um momento de conceituação, como ocorre na pesquisa quantitativa: nela
o momento teórico representa mais um momento de conceituação e
organização do material fático, que um momento construtivo e de produção
de ideias.
Assim sendo, o caráter da nossa pesquisa se define como exploratório e qualitativo, não
tendo nenhum intuito estatístico ou quantitativo. Para o levantamento de dados, realizamos,
inicialmente, uma pesquisa bibliográfica, através de uma revisão de literatura, com o objetivo
de fazer um levantamento histórico das bases filosóficas e teóricas da Gestalt-Terapia,
objetivando resgatar, também, as origens do conceito de transfenomenalidade.
Com base na revisão de literatura realizada, nos utilizamos da produção de autores que
discutem a Psicologia como um todo, bem como especificamente a Gestalt-Terapia e suas bases
teórico-filosóficas. Entre esses autores estão: Goodwin (2010); Perls, Hefferline e Goodman
(1997); Ribeiro (1985); Granzotto e Granzotto (2016); Frazão e Fukumitsu (2015) e Fonseca
(2006).
101
Escolhemos expor aqui os principais artigos e obras de autores que são referência no
tema – tanto a respeito da Gestalt-Terapia em si, como em relação ao conceito de
transfenomenalidade – que foram utilizados no nosso trabalho. As produções escolhidas estão
dispostas no quadro a seguir de acordo com a ordem crescente e conforme o ano de publicação,
desacatando título, autores e tipo de produção (livro ou artigo).
Quadro 1 – Materiais de referência no tema estudado
Nº TÍTULO AUTOR (A) TIPO ANO
1 O ser e o nada – ensaio de ontologia
fenomenológica Jean Paul Sartre Livro 1943
2 Gestalt-Terapia
Frederick Perls;
Ralph Hefferline;
Paul Goodman
Livro 1994
3 Gestalt-Terapia: refazendo um caminho Jorge Ponciano
Ribeiro Livro 1985
5
Para uma história da psicologia e da
psicoterapia fenomenológico existencial – dita
humanista. Apontamentos
Afonso H Lisboa da
Fonseca Livro 2006
6 Experiência e Natureza: a Teoria da Gestalt
entre a ciência e a fenomenologia
Jonas Fornitano
Cholfe Artigo 2009
7 A fenomenologia de Köhler e o conceito de
experiência direta
Sávio Passafaro
Peres Artigo 2014
8 A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo
em Gestalt-Terapia
Lilian Meyer Frazão;
Karina Okajima
Fukumitsu
Livro 2015
9 Fenomenologia e Gestalt-Terapia
Marcos José Muller-
Granzotto;
Rosane Lorena
Muller-Granzotto
Livro 2016
Fonte: a autora
A respeito dos métodos de análise adotados nesta pesquisa, utilizamos três tipos, que
são: a Pesquisa Narrativa, a Análise de Conteúdo e o Pragmatismo Filosófico. De acordo com
Clandinin e Connely (2000), A Pesquisa Narrativa consiste em um método de produção de
102
informações através de uma ou mais histórias já publicadas. A Análise de Conteúdo, segundo
Bardin (2004, p. 7), é “[...] um conjunto de instrumentos de cunho metodológico em constante
aperfeiçoamento, que se aplicam a discursos (conteúdos e continentes) extremamente
diversificados”. E o Pragmatismo Filosófico é um método criado pelo psicólogo William James
(já citado no primeiro capítulo) e outros teóricos que buscam a relevância de pressupostos
teóricos no que diz respeito à experiência real das pessoas, ou seja, em relação aos fatos.
Partimos do pressuposto de que a Pesquisa Narrativa é o método que irá expor, de forma
mais nítida, como se dá a prática da Gestalt-Terapia frente ao ser humano, pois será por meio
do contato com artigos científicos que trazem a descrição e análise de casos clínicos que
teremos uma base fidedigna de análise. Diante disso, ao analisar as histórias de cada caso,
teremos o auxílio da Análise de Conteúdo, com vistas a estruturar, de forma categórica, a
ligação entre a prática e a teoria, visando uma melhor compreensão dos conceitos e seu reflexo
no mundo. Por fim, será o Pragmatismo Filosófico aquele que nos oferecerá um panorama real
dos efeitos decorrentes e sentidos construídos a partir dessa relação intrínseca entre teoria e
prática.
A seguir, descreveremos a justificativa para a escolha de cada um desses métodos,
auferindo e ressaltando a complexidade do tema estudado e pesquisado, que é constituído por
várias formas e facetas: a teoria, a prática e os efeitos de ambas na vida e na produção subjetiva
das pessoas.
5.1 Pesquisa Narrativa
Clandinin e Connely (2000, p. 20 apud PINNEGAR; DAYNES, 2007, p. 3)
[...] definem pesquisa narrativa como “uma forma de entender a experiência”
em um processo de colaboração entre pesquisador e pesquisado. A pesquisa
narrativa mais comum pode ser descrita como uma metodologia que consiste
na coleta de histórias sobre determinado tema onde o investigador encontrará
informações para entender determinado fenômeno. As histórias podem ser
obtidas por meio de vários métodos: entrevistas, diários, autobiografias,
gravação de narrativas orais, narrativas escritas e notas de campo. Outra forma
de fazer pesquisa narrativa é descrita por Polkinghorne (1995, p. 1) como
análise narrativa, um tipo de estudo que reúne eventos e acontecimentos e
produz uma história explicativa. Em síntese, a pesquisa narrativa usa as
narrativas tanto como método quanto como fenômeno do estudo.
103
Para tanto, a narrativa será construída com base em casos clínicos já publicados com
vistas a relatar e analisar a prática e o manejo do (a) gestalt-terapeuta de base humanista e
fenomenológica existencial frente aos clientes. Optamos por delimitar a demanda específica de
transtornos mentais ou psíquicos visando estabelecer um foco de atenção no que se refere à
atuação da Psicologia em relação à premissa principal da Gestalt sobre o ser humano: o todo
vai muito além da soma das partes. Escolhemos destacar esta premissa por se tratar de uma
sentença que demonstra de maneira suscinta qual a concepção de homem-mundo da Gestalt-
Terapia e, além disso, estar interligada ao conceito de transfenomenalidade de Kohler, conceito
central destacado por nós neste trabalho.
No que diz respeito à busca pelas histórias narrativas que nos serviram de base, ao buscar
na base de dados do Google Acadêmico13, no período de março a junho de 2019, utilizamos os
seguintes descritores na ferramenta de busca: na primeira busca, “estudos de caso em Gestalt-
terapia” e na segunda busca, “Gestalt-terapia e transtornos mentais”. Os resultados apontaram
cerca de 7.280 produções para o primeiro descritor e 3.060 produções para o segundo descritor.
Na primeira etapa de filtragem do material a ser analisado, escolhemos como critérios
de inclusão a seleção de artigos científicos em português que trouxessem o foco para a
descrição e análise de uma intervenção clínica em Gestalt-Terapia relacionada à situação de
transtornos mentais ou psíquicos. Assim, focamos em publicações em forma de artigo e
excluímos publicações estruturadas como história de vida, monografias e/ou trabalhos de
conclusão de curso, dentre outros tipos de publicação, com o objetivo de filtrar e delimitar o
campo específico da realidade a ser estudada.
Considerando esses critérios, referentes à temática de interesse desse estudo, apenas 20
(vinte) artigos científicos em português foram previamente selecionados e, dentre eles, 3 (três)
foram escolhidos para a construção da análise narrativa dessa pesquisa. Nessa segunda etapa de
filtragem, objetivamos selecionar apenas artigos científicos que apresentassem um caso prático
de como se dá o manejo da Gestalt-Terapia, por esse motivo, excluímos a grande maioria dos
artigos por apresentarem um caráter majoritariamente teórico acerca do manejo. Sendo assim,
dentre os 20 artigos que abordavam a temática pesquisada, analisamos o título e o resumo de
cada obra e fizemos uma leitura flutuante do conteúdo com vistas a verificar se apresentava
13 Ferramenta de pesquisa do Google que oferece acesso a publicações em literatura acadêmica.
104
dados práticos (casos clínicos, suas descrições e manejo) e excluímos aqueles que não tinham
a configuração definida a priori: ser um artigo científico em português que abordasse o manejo
clínico da Gestalt-Terapia apresentando um caso clínico realizado na prática.
Ressaltamos que dentre os três artigos escolhidos, dois deles apresentam casos clínicos
que descrevem o manejo da Gestalt-Terapia – sendo um sobre fobia social e outro sobre o
trauma infantil – e o terceiro trata do manejo da depressão pela Abordagem Centrada na Pessoa
(ACP), tal qual estabelece relação com a Gestalt devido à sua base humanista e
fenomenológica-existencial. Os artigos selecionados estão dispostos no quadro abaixo de forma
crescente conforme o ano de publicação.
Quadro 2 – Artigos científicos selecionados para a análise prática da Gestalt-Terapia
Nº TÍTULO AUTOR (A) ANO
1 Rompimento amoroso, depressão e auto-estima:
estudo de caso
Dilcio Dantas
Guedes;
Julieta Monteiro
Leitner;
Karine Cardozo
Rodrigues Machado
2008
2 Fobia Social: o olhar da Gestalt-Terapia. Um estudo de
caso
Joseane de Alcântara;
Marisete Malaguth
Mendonça
2010
3 Efetividade da clínica gestáltica no tratamento do
trauma infantil: estudo de caso
Daniela Bianchi;
Ida Kublikowski 2018
Fonte: a autora
Como podemos visualizar a partir do quadro, os transtornos mentais ou psíquicos
explorados nas intervenções clínicas que nos servirão de material de análise são: a depressão, a
fobia social e o trauma infantil. Ao final deste capítulo o leitor entrará em contato com a
descrição e análise narrativa de cada caso.
105
5.2 Análise de Conteúdo
A Análise de Conteúdo, método criado pela professora-assistente de Psicologia da
Universidade de Paris V, Laurence Bardin, é uma metodologia adequada tanto às análises
quantitativas como qualitativas. Se configura como um método empírico, o qual irá nos orientar
na sistematização dos achados, sejam eles fatuais ou teóricos e, consequentemente, na
interpretação das informações, buscando dissecar seus sentidos e produções.
Segundo Bardin (2004), uma das funções da análise de conteúdo é a função de verificar
se o material dado é verdadeiro ou não14. A análise de conteúdo, então, tem as seguintes
atribuições: 1) foca-se nas comunicações – no presente trabalho, estas comunicações são a) as
teorias e conhecimentos acerca do ser humano e b) a relação entre esses conhecimentos
produzidos e os seres humanos reais; 2) é categorial-temática, ou seja, constitui apenas um dos
métodos de análise; e 3) tem o caráter de inferir, através das mensagens/comunicações
analisadas, uma interpretação fidedigna da realidade.
Segundo a criadora do método, a análise de conteúdo é algo que se realiza na prática.
Sendo assim, conforme afirma Santos (2012, p. 385), “[...] no que tange às práticas, alguns
exemplos ilustram uma análise de conteúdo segura e objetiva, são eles: análise de entrevista,
análise lexical e sintática de uma amostra e análise temática de um texto”. Nessa pesquisa
utilizaremos a análise temática de textos, tanto aqueles utilizados nas discussões teóricas e
bibliográficas, como aqueles das descrições dos casos clínicos resultantes da análise narrativa
realizada no nosso trabalho.
O método proposto segue alguns passos cronológicos definidos como critérios de
organização, esses passos são: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material e 3) o tratamento
dos resultados. A pré-análise consiste em uma fase de organização das ideias e conteúdos que
desaguam na análise propriamente dita. Segundo Bardin (2009 apud ROCHA, 2017, p. 82),
“[...] essa fase tem como principais objetivos: realizar a escolha dos documentos que serão
analisados, a formulação das hipóteses e dos objetivos, bem como a elaboração de possíveis
indicadores que servirão de base para a interpretação final”.
14 Na seção que trata do Pragmatismo Filosófico perceberemos o quanto esses dois métodos tem em
comum.
106
A exploração do material é uma fase da análise de conteúdo intrinsecamente
relacionada com a fase anterior, a pré-análise, uma vez que se refere à aplicação prática desta
fase, em que serão escolhidos os documentos a serem analisados e será realizada a leitura
flutuante com o objetivo de estabelecer as hipóteses e objetivos que orientarão a interpretação
final.
O tratamento dos resultados é realizado através da combinação entre duas técnicas: a
codificação e a inferência. A codificação se refere ao recorte realizado com vistas a delimitar
o campo/temática da pesquisa, e a inferência diz respeito à confirmação ou refutação das
hipóteses formuladas através do estudo. As demais técnicas de análise são: categorização,
interpretação e informatização (BARDIN, 2004).
A categorização consiste num método de elaboração de categorias de análise, sendo
estas formadas por meio do agrupamento de temáticas que se relacionam, todas em um único
bloco categorial, facilitando, posteriormente, a análise do material, que é realizada de acordo
com cada categoria formulada. Cada uma delas deverá abrigar uma única temática, não sendo
possível determinado tema aparecer em mais de uma categoria (essa delimitação é
imprescindível para a manutenção da legitimidade do método).
Como afirmamos anteriormente, a Análise de Conteúdo é um método de análise
categorial/temática. Dessa forma, os próximos passos do método, que são a interpretação e
informatização dos dados, também deverão ser realizados por categoria, e só posteriormente é
possível uma interpretação final baseada na totalidade das categorias. É neste passo que surgirão
as inferências.
Considerando todas essas etapas do processo de análise do conteúdo, na nossa pesquisa
as categorias de análise foram elaboradas enfocando os objetivos específicos desse trabalho, a
partir da análise do material estudado, que foram os principais textos de referência no tema
(Quadro 1) e os casos clínicos (Quadro 2). Como resultado desse processo, formulamos três
categorias de análise, que são: 1) Objetividade e subjetividade: o sujeito uno na Psicologia; 2)
Ambivalências e equivalências das perspectivas gestálticas sobre o ser-no-mundo; e 3)
Transfenomenalidade: o sujeito uno e a prática clínica da Gestalt-Terapia. Estas serão
discutidas no próximo capítulo.
107
5.3 Pragmatismo Filosófico
O Pragmatismo Filosófico consiste em um sistema prático de interpretação da realidade
que tem como principais nomes o filósofo Charles Sanders Pierce (1839 – 1914) e os psicólogos
William James (1842 – 1910) e John Dewey (1859 – 1952), os dois últimos sendo ligados à
Psicologia clássica, dentro da perspectiva do Funcionalismo.
O pragmatismo filosófico nasce, inicialmente, como uma “filosofia da ação”,
preocupada com as formas em que se determinam “as verdades”. Mas, além disso, se constitui
como um método de análise da realidade e das proposições teóricas da ciência. É um método
que tem como princípio vencer as disputas teóricas intermináveis. Sua justificativa tem origem
nos problemas filosóficos, mas o método não se limita à filosofia. Segundo García (2010, p.
224), “[...] a prova da verdade de uma proposta é sua utilidade prática. O propósito do
pensamento é guiar a ação e o efeito de uma ideia é mais importante que sua origem”.
Utilizaremos, então, o pensamento de James e Dewey porque ambos foram teóricos da
Psicologia e compactuam com a ideia do pragmatismo como sendo um método baseado na
realidade fatual, e não apenas algo baseado na razão, no intelecto, na teoria.
Vale ressaltar que, o pensamento de Dewey enfatiza a importância de não se prender a
abstrações e sim buscar construções teóricas e práticas que trabalhem para o melhor
desenvolvimento do organismo. Para Dewey (1919/1959 apud BRANCO; CIRINO, 2016, p.
16), “[...] a Ciência é algo que ‘[...] nasce e se comprova na experiência, e que, depois, é
utilizada mediante as invenções para expandir e enriquecer por mil meios a experiência’”. O
pensamento de James caminha pela mesma via.
Como afirma Nascimento (2011, p. 8),
A filosofia pragmática, conforme James, é uma via intermediária entre as vias
opostas do racionalismo e do empirismo, numa tentativa de conciliar
divergências. James reivindica uma filosofia que não somente exercite os
poderes da abstração intelectual, mas que estabeleça alguma conexão positiva
com o mundo real, o mundo de vidas humanas finitas. Assim, o método
pragmatista consiste num instrumento para assentar as disputas metafísicas,
uma vez que, de outro modo, se estenderiam interminavelmente.
Ao ser ligado à Psicologia Clássica, o Pragmatismo vem influenciar diretamente outras
correntes posteriores em Psicologia e, consequentemente, teóricos ligados à Fenomenologia
108
Existencial, à Psicologia da Gestalt e à Gestalt-Terapia – mesmo que remotamente. Entre esses
teóricos, temos Kurt Goldstein (Teoria Organísmica) e Carl Rogers (ACP) como principais
nomes. Sendo assim, ao nos depararmos com tal ligação, reforçamos ainda mais o interesse de
trabalhar com este método (pragmatismo filosófico), uma vez que já foi cogitada a relação entre
ele a vertente teórica que objetivamos analisar. Consideramos este um fator que demanda maior
exploração e aprofundamento e tentaremos explanar isto neste trabalho.
O pragmatismo filosófico, então, é um método de análise que implica embasar seus
achados empiricamente. Isso significa que será através das consequências práticas da atuação
que analisaremos as produções científicas, tanto relacionadas à concepção de sujeito, bem como
às suas produções subjetivas na prática. Ou seja, tentaremos explanar quais os efeitos que a
abordagem gestáltica tem sobre a vida das pessoas e de que forma ela reflete sua visão de
homem-mundo de uma maneira real e fatual.
Isso não significa dizer, necessariamente, que afirmaremos haver ou não utilidade e
eficiência dessa perspectiva, mas, para além da discussão referente à sua eficiência, iremos
analisar se a teoria implica realmente na prática de forma fiel a seus postulados e,
consequentemente, se a prática comprova as teorias e compreensões sobre o homem.
Ressaltamos o pensamento de Rogers, adepto da Psicologia Humanista – que embasa,
também, a prática da Gestalt-Terapia – em relação à adequação da teoria à realidade humana
e não o contrário. Nas palavras de Branco e Cirino (2016, p. 17):
Seguindo o lastro funcionalista, nos anos em que trabalhou na Universidade
de Chicago, Rogers (1951/1992) foi cuidadoso em não adentrar em questões
filosóficas gerais do tipo “o que é realidade?” ou “o que é a verdade?”. O autor
procurava sempre se restringir e se manter leal às suas observações e pesquisas
clínicas para formular sua teoria, entendendo-a como um plano hipotético
submetido, constantemente, à prova (Rogers, 1959/1977).
Diante disso, através da revisão de literatura e da análise dos casos clínicos, sendo
guiados pelo método pragmático, analisamos de que forma a aplicabilidade da teoria reflete na
vida das pessoas, nelas mesmas e em suas potencialidades, buscando reforçar o princípio de
que a teoria deve sempre ser submetida aos efeitos práticos e à implicância real na vida humana,
ao contrário de tentar adequar esta vida aos seus pressupostos. Sendo assim, pretendemos
encerrar as discussões que separam o ser humano de sua completa existência, que dividem
109
territórios teóricos que, na prática, atuam da mesma forma e, consequentemente, dividem,
também, a vida humana: a qual, na realidade, caminha como uma unidade/totalidade.
A respeito desse aspecto e do seu vencimento pelo método pragmatista, James (1948, p.
93) afirma que
[...] o método pragmatista é, antes de tudo, um método de terminar
discussões metafísicas que, de outro modo, seriam intermináveis. O
mundo é um ou muitos? Livre ou fadado? Material ou espiritual? Essas
noções podem ou não trazer bem para o mundo; e as disputas sobre elas
são intermináveis. O método pragmático, neste caso, é tentar interpretar
cada noção identificando as suas respectivas consequências práticas [...]
se nenhuma diferença prática puder ser identificada, então as
alternativas significam praticamente a mesma coisa, e a disputa é inútil.
Diante do exposto, explicitamos que analisaremos todos esses fatores com auxílio do
Pragmatismo Filosófico e da Análise de Conteúdo junto à interface prática da Análise Narrativa
dos casos clínicos em que a visão de homem-mundo da Gestalt-Terapia pôde ser trabalhada.
Vale ressaltar que, ainda neste capítulo, iremos expor as descrições dos casos clínicos
escolhidos, que elaboramos como primeira etapa da análise narrativa, visando que o leitor
tenha acesso a um panorama de cada caso, os quais serão discutidos no próximo capítulo com
base nas categorias definidas. Porém, se necessário, recomenda-se a leitura dos casos na íntegra
para uma compreensão mais ampla, pois estes se encontram disponíveis virtualmente em
formato digital. Nas descrições, optamos por utilizar os mesmos nomes escolhidos pelos autores
dos artigos, sendo todos eles nomes fictícios, utilizados para proteger a identidade das pessoas
envolvidas e o sigilo das informações pessoais.
Assim, após o leitor ter entrado em contato com todo o arsenal epistemológico,
filosófico e teórico da Gestalt-Terapia e também com o conteúdo de cada caso, poderá
compreender melhor a estrutura das categorias definidas e os resultados analíticos que serão
apresentados no próximo capítulo.
110
5.4 Descrições dos casos clínicos
• Caso 1 – Rompimento Amoroso, Depressão e Autoestima
Leonardo, quando iniciou a psicoterapia, tinha 34 anos, ainda morava com os pais, não
tinha mais o emprego e, após um rompimento amoroso, segundo os relatos de sua mãe, ele
passou a ser cuidado e alimentado como um bebê, sendo este um dos motivos que a fez levá-lo
à terapia. Já não controlava suas capacidades intrínsecas, não ia ao banheiro sozinho, mal comia
e chorava constantemente. Várias vezes ameaçava se matar, dizia que pularia da janela e
demonstrava em gestos simbólicos essa mesma ideia.
As coisas começaram a mudar quando, aos poucos, ele foi se entregando ao processo
terapêutico. Desenhava seus símbolos, falava em gestos e comunicava-se mesmo em meio às
resistências. Seu terapeuta temia a possibilidade de não estar se comunicando fidedignamente
com ele e, como o próprio terapeuta nos traz:
É importante ressaltar que o terapeuta precisa estar presente na relação,
trazendo tudo de si e experimentando o que acontece consigo e com o cliente,
atento a que sentimentos são gerados, sem nunca esquecer que a experiência
do outro é autêntica e singular (GUEDES; LEITNER; MACHADO, 2008, p.
610).
Leonardo começara a mudar já desde a primeira sessão, o que pareceu ser a resposta que
o terapeuta precisava. Como ser humano, ele precisava, mas, o mais importante: também
precisava da resposta de Leonardo como guia para as intervenções. Todavia, o terapeuta admitiu
que não fossem essas incertezas a figura da situação. Como em qualquer processo, ou projeto
existencial, as respostas surgiriam elas mesmas, como fenômeno, no seu campo e no seu tempo.
Um dia depois, a mãe de Leonardo me ligou dizendo que ele tem falado
algumas coisas, tem se alimentado e tem feito uso da toalete de forma
autônoma. [...] Sinto que me comunico com ele, mesmo de forma atípica.
Tenho estado angustiado com as hipóteses de que essa comunicação, na
verdade, não exista, mas ao mesmo tempo sinto que, no fundo, ela está
presente. Hoje continuou em silêncio na sala (GUEDES; LEITNER;
MACHADO, 2008, p. 622).
111
Antes do início do processo psicoterápico, soube-se que Leonardo passou a se medicar
(por recomendação psiquiátrica) também por causa das perturbações psicóticas breves, que, ao
se agravarem, tornaram-se um dos motivos da sua ida à psicoterapia e, além disso, ele não
estava mais exercendo sua própria autonomia. Sua mãe que o levara e demonstrava estar muito
sobrecarregada, pois levava o peso existencial da responsabilidade consigo... Sem o exercício
da sua autonomia, Leonardo não sabia mais o que era responsabilidade.
A autonomia pressupõe um potencial de escolha. Por potencial de escolha,
entende-se a um conjunto de dispositivos internos (emocionais, volitivos e
cognitivos) e externos (políticos, econômicos e sociais) que dão suporte ao
sujeito estabelecer metas e estratégias para alcançar seus objetivos
psicológicos e materiais. Geralmente essas escolhas remetem à noção de auto
atualização (Rogers, 1975,1977). [...], no entanto, para que essa condição
múltipla da existência se efetive, é preciso que o sujeito formule um projeto
(ou projetos) e se mobilize para alcançá-lo(s) (GUEDES; LEITNER;
MACHADO, 2008, p. 611).
Como mencionado, seu ajustamento disfuncional ocorrera após o fim de uma relação
amorosa, a qual desencadeara uma série de sintomas psicopatológicos, desaguando na
depressão, esse embotamento do sentimento, essa alienação do próprio eu e da própria vida,
essa incomensurável desvalia... Leonardo perdeu o sentido. Todavia, mesmo diante dessa
condição, demonstrava capacidade crítica consciente ao perguntar sobre os benefícios da
psicoterapia.
Ainda que tenha passado por muitas sessões, Leonardo voltava a vivenciar sensações
paranoides, não se sentia responsável pelos próprios caminhos e ideais, culpava o mundo: os
pais e as circunstâncias que vivenciava. Buscava suporte para si e para a mãe, que considerava
frágil, apesar de carregá-lo sobre os ombros, ou talvez sua aparente fragilidade fosse justamente
por ter que carregá-lo. Para Leonardo, a fragilidade da mãe era algo injusto, por isso, ele culpava
a si mesmo e ao seu pai – do qual a mãe se separara.
Foi a partir da tomada de consciência – da própria condição, do próprio movimento e
das próprias potencialidades – que Leonardo passou a considerar-se mais autônomo em relação
à sua vida. Ele interrompe a psicoterapia por dois meses, a fim de voar, voar com as próprias
asas.
112
Leonardo referiu sentir indecisão e insegurança quanto a suas próprias
opiniões. Tinha medo, segundo ele próprio, de enfrentar desafios que estariam
por vir, antecipando possíveis fracassos. Pôde dar-se conta que sua
insegurança tem sustentado seu pessimismo e que pode encontrar outras
formas para enfrentar os desafios. Pôde também dar-se conta que o rumo da
sua existência dependeria do seu comprometimento sobre as escolhas que
fizer. Falou do medo de voltar a estar como antes, como se sentisse que
poderia perder o controle, “mais uma vez” (sic). Mesmo com tantas incertezas,
ficou claro que assumiu um potencial para o enfrentamento das dificuldades
que poderão vir (GUEDES; LEITNER; MACHADO, 2008, p. 626).
Após um tempo, Leonardo volta à psicoterapia já com o almejado “controle” em suas
mãos, porém, temendo cair. A vida o desestrutura, e ele vai entendendo que a responsabilidade
pela reestruturação é completamente dele. Ele volta, então, buscando um apoio e uma avaliação
psicológica, pois com este recurso poderia saber se estava progredindo ou não. Leonardo se
angustiava diante desse processo de mudança, que foi outro fator que o motivou a voltar. Porém,
como traz o terapeuta:
É, justamente, a partir desse lugar de angústia que a mudança se opera, assim
como possibilita exercitar a negação de si, caso o sujeito não queira assumir a
responsabilidade da tomada de posição. Dessa forma, o sujeito tem duas
opções elementares, dentre tantas infinitas: ou aceita a angústia e dela
aproveita-se para promover crescimento autêntico, ampliando seu campo
fenomênico e, consequentemente, ampliando seu leque de escolhas e
variabilidade de condutas; ou, então, nega a integração da angústia à sua
vivência, diminuindo suas opções e aumentando sentimentos de culpa que,
possivelmente, fomentará o tédio existencial, intensificando a desorganização
psicológica (Erthal, 1995, 1989). É por isso que se afirma que o objetivo da
psicoterapia é, em justa medida, favorecer que o sujeito possa autorizar-se
como sujeito, a tomar posições a partir de sua liberdade de escolha e a assumir
sua angústia existencial de ser “só”, mesmo que em relação (Moreira, 2001)
(GUEDES; LEITNER; MACHADO, 2008, p. 609).
Apesar dos medos, inseguranças e ansiedades inerentes a toda condição existencial,
Leonardo finaliza o processo psicoterapêutico ainda solteiro, porém, mais consciente,
autônomo, com novas versões de sentido sobre a vida, diante de novas possibilidades, novos
amigos e novas estratégias possíveis ao enfrentamento da vida – vida que é parte dele mesmo.
Diante disso, com o resgate de sua autonomia, passou a operar outras formas de ajustamentos
mais satisfatórias, não apresentando mais sinais de depressão e sintomas psicóticos.
113
• Caso 2 – Efetividade da clínica gestáltica no tratamento do trauma infantil
RD é o nome da criança, uma criança que esteve sofrendo desde que nasceu. Ele passa
por um processo de adoção que, de certa forma, é o que lhe salva de um mar imenso de descaso
e sofrimento. Foram seus pais – um casal homoafetivo – que o levaram para a psicoterapia, em
busca de um suporte psicológico para a criança, que muitas vezes agia de forma agressiva e
apresentava diversos problemas de relacionamento, principalmente em novos ambientes e ao
entrar em contato com pessoas desconhecidas. Esse comportamento de RD e a forma de lidar
com o novo o levava a se isolar e brincar sozinho em diversos momentos, o que não
possibilitava a criação de laços e relações saudáveis de amizade, comuns ao seu estágio de
desenvolvimento. Nas palavras de seu terapeuta:
Outros sintomas referidos pelos pais e escola foram: embotamento afetivo
(manifestado por dificuldade em reconhecer e expressar as suas emoções), e
dificuldades cognitivas (compreender novas tarefas, organizar as suas ações e
articular com clareza as suas necessidades), descontrole dos impulsos
agressivos (normalmente desproporcional ao evento) (BIANCHI;
KUBLIKOWSKI, 2018, p. 254).
Mesmo com poucas informações sobre o histórico da criança, seus pais adotivos
apontaram pontos críticos de sua vivência anterior à época em que foi colocado em uma casa
de acolhimento, o que aconteceu quando RD tinha três anos de idade. Antes disso, ele viveu
como desabrigado, em situação de rua, além de sofrer também com a violência física,
negligência no cuidado e abandono pelos seus pais biológicos.
Os principais pontos críticos na história de RD é que, além de ter vivenciado a situação
de morar na rua, sua mãe sofria de transtorno mental – apresentando comportamento violento
– e seu pai era alcoolista. Sendo moradores de rua, tanto RD quanto os seus pais estavam
sujeitos a péssimas condições de higiene e segurança pessoal.
As sessões de psicoterapia, conforme o relato da terapeuta, ocorreram todas com o
suporte de recursos lúdicos, sendo o principal deles a caixa de areia, além de outros brinquedos,
como animais, bonecos e carros. De acordo com a descrição das primeiras sessões, a disposição
dos objetos feita pela criança dentro da caixa de areia assume uma estrutura completamente
desorganizada, fator que podemos observar na figura abaixo, que retratam duas fotos das caixas
de areia organizadas pela criança em sessões diferenciadas.
114
Figura 10 – Caixas de areia: fotos das primeiras sessões da terapia de RD
Fonte: Bianchi e Kublikowski (2018)
Aos poucos, RD foi incluindo o terapeuta nas brincadeiras, o que permitiu a este último
compreender de maneira mais direta as implicações e evoluções da criança durante o processo.
Conforme a análise do terapeuta, as caixas de areia, somadas ao comportamento de RD durante
as brincadeiras, foram fenômenos que demonstraram a representação simbólica de uma divisão
entre o que RD chama de “lugar do bem” e “lugar do mal”, o que remete ao embate que a
criança vivenciou quando em situação de rua e, provavelmente, na casa de acolhimento.
No primeiro cenário [da figura 10] há uma divisão em três compartimentos.
Segundo RD, havia o espaço do bem (fazenda), um espaço do mal e uma casa
onde estão as tartarugas e um homem. Essa temática – nutrição, morte e luta
do bem com o mal – perpetua-se durante muito tempo nas brincadeiras. Aos
poucos RD inclui a terapeuta nas brincadeiras, fazendo mais contato visual e
verbal. A possibilidade dele poder expressar através da brincadeira o
sofrimento físico e psíquico, juntamente com o fato de poder ressignificar a
privação, dando lugar a uma experiência de nutrição, pôde levar RD a um
resgate do relaxamento, minimizando a hipervigilância (BIANCHI;
KUBLIKOWSKI, 2018, p. 255).
A mudança de ambiente gerada pela saída da casa de acolhimento e transferência para
o lar de seus pais adotivos repercutiu nas brincadeiras da criança durante as sessões de terapia,
apesar dele ainda não ter conhecimento de que o processo de adoção estava sendo finalizado.
RD começou, então, a utilizar nas caixas de areia menos objetos e animais que representam
agressividade, dando lugar a outros animais – como cavalos, cães e também figuras humanas –
, bem como a um ambiente mais limpo e acolhedor.
115
Figura 11 – Caixas de areia: fotos de sessões após 1 (um) ano de terapia de RD
Fonte: Bianchi e Kublikowski (2018)
Além disso, justamente no dia em que findou o processo de adoção, RD representou
uma ponte que levava até uma casa. Com base na visão da caixa de areia acima, bem como na
outra representação abaixo, podemos observar que o ambiente desordenado em que RD viveu
deu lugar a um outro tipo de ambiente, um ambiente novo e familiar, em que a confiança pode
existir. Desse modo, a hipervigilância, o medo e a ansiedade se vão, e voltam as noções de
confiança, cuidado e segurança.
Figura 12 – Caixas de areia: fotos das sessões após a finalização do processo de adoção de RD
Fonte: Bianchi e Kublikowski (2018)
Como podemos ver, através das representações de RD e também aos olhos da
intervenção terapêutica, há nessas últimas caixas de areia a possibilidade de integralização e
harmonização dos elementos. Antes era como se não houvesse um todo. Antes era como se
tudo que existia na vida de RD fosse desorganizado e não caminhasse para lugar algum. Agora,
116
RD já consegue colocar cada coisa no seu lugar, ele organiza os elementos em um todo coerente,
ele sente que pode chegar em algum lugar e, majoritariamente, sabe que isso só é possível agora,
porque passou a ser amado, cuidado e respeitado.
De acordo com a análise do terapeuta, a transformação do contexto de vida de RD foi
crucial para essa mudança de perspectiva e para liberação do trauma carregado em suas costas.
Antes RD sequer enxergava possibilidades de expressar suas emoções, era fechado, “neutro”,
“morto”. RD era uma criança “morta por dentro” – seu medo performava todas as barreiras e
sabotava qualquer tipo de contato.
Hoje RD vive. Vive, contata e ama. Está livre para vir-a-ser.
• Caso 3 – Fobia Social: o olhar da Gestalt-Terapia
Este caso conta a história de uma mulher chamada Paula (nome fictício), que aos 25
anos de idade recebeu o diagnóstico psiquiátrico de fobia social. Desde os 17 anos, quando
concluiu o ensino médio, Paula não estuda e nem trabalha, não consegue estar diante das
pessoas, sente-se observada e paralisada diante da sua vida, e foi isso que a fez buscar a
psicoterapia. Ela queria mudar, pois se sentia imóvel, inerte para a vida, se sentia como alguém
que não era ela mesma, e queria mudar! Nas suas palavras:
[...] eu fiquei sete anos trancada em casa, dá pra acreditar nisso? Foram sete
anos só limpando casa, por temer o olhar das pessoas! Você deve achar que
eu sou maluca... eu sinto que perdi sete anos da minha vida e quero mudar
isso, não quero mais perder meu tempo, porque eu sei que sou capaz de
estudar, me tornar uma profissional formada, trabalhar como qualquer outra
pessoa, sabe?! Mas eu não consigo!... Quando me vejo diante das pessoas é
como se eu paralisasse! Sinto minha mão tremendo, aí eu fico parecendo uma
idiota, e as pessoas devem pensar que eu sou mesmo, porque fujo das
situações... (ALCÂNTARA; MENDONÇA, 2010, p. 18).
Nas primeiras sessões de terapia, Paula diz se sentir envergonhada quando está de frente
para as pessoas, até mesmo quando está praticando atividades rotineiras, como comer ou
escrever. Nesses momentos, ela sente que está sendo observada, vigiada e julgada. Encontra na
psicoterapia, então, um refúgio, um lugar e uma pessoa que a acolhe, que ela sabe (como ela
mesma disse) que não irá julgá-la, pois a psicoterapeuta entende o que está se passando com
117
ela. Naquele lugar, e somente nele, Paula era aceita. Além do mais, a vivência única desse lugar
foi um fenômeno imprescindível para que ela mesma pudesse, também, se aceitar (como é) em
outros lugares!
A psicoterapeuta nos conta pontos importantes de sua relação com Paula, demonstrando
quão fundamental é a aceitação incondicional da sua cliente, de modo a abrigá-la em sua
totalidade e unicidade. Além do mais, enfatiza a importância de se perceber a pessoa como
alguém que está adoecido e não como alguém que é doente. Existem fatores a serem
evidenciados que mostram os motivos para que a figura deste momento seja esta: a de uma
pessoa adoecida, porém, que jamais deixa de estar sujeita ao eterno vir-a-ser! Paula, pela sua
própria mobilização, estava prestes a ser uma pessoa completamente nova!
Através de um exercício de awareness, Paula demonstrou que tinha um medo
compulsório do contato com os outros porque se sentia julgada. Sua fobia era descarregada em
tremores excessivos nas mãos que impendiam que ela se expressasse, fazendo-a sentir-se
envergonhada e, consequentemente, imóvel. Em um dado momento, a origem desse medo se
generalizou.
Antes da fobia começar, entretanto, ela frequentava a igreja e cantava, tinha amigas e ia
para a escola. Porém, se sentia muito oprimida, pois não podia se arrumar, cuidar da aparência,
vestir calças, passar maquiagem ou cortar o cabelo. Para Paula, essas eram coisas normais que
as pessoas poderiam fazer, pois isso as fazia se sentirem bem, e ela não poderia se sentir bem,
pois, se o fizesse, estaria traindo a igreja. Assim, estaria traindo, também, a Deus.
Paula, no entanto, não considerava isso verdade. Ela deixou de ir à igreja e continuava
crendo em Deus. Resolveu se arrumar e se sentir bem consigo mesma. Até que recebeu a visita
das meninas da igreja e paralisou. Naquele momento, ela só conseguia tremer. Não sabia porque
foram lá, mas se sentiu atordoada pelas suas colegas a verem assim: arrumada, bonita, com
calças e cabelo curto. A respeito desse momento, ela diz: “Eu fiquei sem ação, senti vergonha,
como se eu tivesse feito algo muito errado!” (ALCÂNTARA; MENDONÇA, 2010, p. 23).
Paula passou a assimilar aquela culpa como se fosse sua, e não era. Ela não acreditava
que estava fazendo algo errado e, no entanto, reprimir seu modo de ser, engavetar sua energia
de vida e fechar-se para o contato social foi a forma que encontrou de lidar com toda a raiva
que escondia no peito e a culpa que carregava sem ser sua. Na psicoterapia, ela pode descarregar
essa raiva, se dando conta da origem de seu trauma. Pode verbalizar, também, todas as
consequências resultantes da fobia que a afetava e que desaguou em tantos anos de inércia.
118
Paula tomou consciência de que fechara sua fronteira de contato com o mundo, cercando-se
num muro incontínuo de solidão e impossibilidades de ser. Nas palavras da terapeuta:
À medida que o emergente contato com suas emoções começa a ser
estabelecido pela cliente, com o auxílio disciplinado e afetuoso da terapeuta,
foi possível à mesma ampliar suas possibilidades de ação e sua visão do campo
(ALCÂNTARA; MENDONÇA, 2010, p. 26).
Sendo assim, a partir do processo de compreensão dos elementos que geraram sua fobia
e de catarse em psicoterapia das emoções que estavam reprimidas, através de seu acolhimento
e enfrentamento, Paula tomou a iniciativa de ir a uma loja comprar algo. De acordo com ela,
era uma loja cara e ela comprou a prazo, sem hesitar em se expor – pois, tanto ir à loja como
comprar a prazo eram ações que ela considerava impossíveis de realizar diante da fobia. Nesta
loja ela falou com a vendedora que – sincronicidades à vista – era uma menina da igreja que
usava batom, calças e camisetas.... Ah!!!
Paula, uma vez, sentira a necessidade de mudar, passou a usar calças e camisetas e
desenvolveu uma fobia. Hoje, ela resolve mudar novamente, vencendo a fobia que a paralisara.
Desde então, bobeou, mas permaneceu firme, buscando ajustar funcionalmente seu medo à
realidade, confrontando a si mesma a falar com a gerente da loja e fazer entrevistas de emprego
com o objetivo fatal de ser uma pessoa que tem uma vida, uma vida comum, uma vida normal.
Esses foram os primeiros passos de Paula até que ela voltasse a estudar (foi para
faculdade) e trabalhar! Não permitindo que sua energia findasse em si mesma, ficando no
mesmo lugar. Esse não era o equilíbrio. Para manter-se em equilíbrio precisava mover-se, ser e
crescer! Paula, então, mudou. Com a mudança, curou-se e cresceu!
Adeus medo, o medo desapareceu!
119
6 ANÁLISE E DISCUSSÃO: A CURA DA DIVISÃO E O TODO QUE VAI MUITO
ALÉM DA SOMA DAS PARTES
Temos a incumbência de apresentar, neste capítulo, os resultados analíticos dessa
pesquisa, com vistas a demonstrar os frutos de toda a nossa discussão teórica. Esses frutos, além
de promulgar uma concepção de homem-mundo ainda não enfatizada pela Psicologia (não com
a devida atenção, como veremos mais a frente), nos mostra o movimento da teoria virando
prática e vice-versa.
No nosso primeiro capítulo discutimos as definições de ciência que situam a Psicologia
no tempo e na produção de conhecimento, além da dicotomia que tem guiado a criação e o
desenvolvimento de suas abordagens teóricas – a dicotomia entre objetividade e subjetividade.
No segundo capítulo, discorremos a respeito das três grandes vertentes da Psicologia – a
Psicanálise, o Comportamentalismo e a Psicologia Humanista – com o objetivo de situar
epistemologicamente a abordagem que é objeto de nosso trabalho: a Gestalt-Terapia.
No terceiro capítulo, nós trouxemos os principais postulados epistemológicos,
filosóficos e teóricos da Gestalt-Terapia a fim de contextualizar essa abordagem em relação às
suas bases, bem como explanar a sua visão de homem-mundo – que é um ponto crucial para a
sua análise pragmática e fatual. No quarto capítulo, expomos os métodos de análise e as
intervenções clínicas que serviram de base empírica para a discussão prática do nosso objeto de
estudo: a prática da Gestalt-Terapia.
Assim sendo, com base em todo material estudado, pudemos perceber um ponto
fundamental que permeia toda a nossa discussão: a concepção de homem-mundo para a
Psicologia como um todo (numa perspectiva epistemológica), considerando o quanto ela
implica na concepção de homem-mundo da Gestalt-Terapia e, consequentemente, em sua
prática clínica – tal qual é reflexo das teorias que se criaram.
Diante disso, com base na filtragem e seleção de material descritas no capítulo anterior
– através dos métodos: Pesquisa Narrativa, Análise de Conteúdo e Pragmatismo Filosófico –
definimos três categorias de análise, baseadas tanto no conteúdo teórico como no conteúdo
prático (as intervenções dos três casos clínicos selecionados para análise). As categorias
elaboradas foram: 1) Objetividade e subjetividade: o sujeito uno na Psicologia; 2)
Ambivalências e equivalências das perspectivas gestálticas sobre o ser-no-mundo; e 3)
Transfenomenalidade: o sujeito uno e a prática clínica da Gestalt-Terapia. A seguir,
120
apresentaremos a discussão analítica de cada uma das categorias, inserindo os casos clínicos
em sua explanação.
6.1 Objetividade e subjetividade: o sujeito uno na Psicologia
A dicotomia entre objetividade e subjetividade foi discutida no nosso primeiro capítulo,
apresentando diversas divergências de posicionamento em Psicologia no que se refere à
interpretação do ser no mundo e à produção de conhecimento. Essa dicotomia existe desde o
nascimento da Psicologia, pois reflete a separação entre os tipos de ciência – explicativa e
compreensiva – e seus métodos específicos de investigação científica. Nossa pretensão, no que
se refere a essa categoria, é demonstrar de que forma essa dicotomia acaba por não se sustentar,
apesar de permear toda a discussão teórico-científica, bem como evidenciar que a única
possibilidade de um estudo fidedigno dos fenômenos humanos é a união paradigmática15 entre
as áreas científicas mencionadas.
Historicamente, um fator preponderante na distinção entre ciência explicativa e
compreensiva foi a promoção do método científico como único método de investigação válido,
tornando este um método cientificamente hegemônico. Sendo assim, criou-se, como já
explanado no primeiro capítulo, a distinção entre ciências humanas e naturais e,
consequentemente, a dicotomia entre objetividade e subjetividade. A partir disso, o ser humano
– que é objeto de estudo tanto num tipo de ciência quanto noutro – também foi dividido em
partes (RIBEIRO, 1985).
Além disso, de acordo com Scoguglia (2002, p. 255), as perspectivas compreensivas
acabam por reforçar, também, o dualismo ontológico (entre objetividade e subjetividade) uma
vez que
[...] centralizam suas investigações na singularidade do mundo social em
relação ao natural e reafirmam a maior complexidade das análises das ações
humanas. Reforçam também, um dualismo epistemológico, pois consideram
que são realidades completamente diferentes, não podendo ser estudadas da
mesma maneira porque os interesses cognitivos que orientam o conhecimento
15 Conforme nos traz Jacobina (2000, p. 7-8) – ancorado no conceito de paradigma de Thomas Kuhn
(1922 – 1996) –, o sentido deste conceito se refere a uma “[...] ‘matriz disciplinar’, uma estrutura
partilhada pelos praticantes de uma mesma disciplina”.
121
são distintos. Para Dilthey, por exemplo, as ciências sociais se interessam
pelas singularidades enquanto as ciências naturais se interessam pela
generalidade, pelo que se repete ou pelo que não varia.
É notória a importância da busca pela legitimidade das ciências humanas, ou a crítica
em relação ao método científico hegemônico não conseguir abarcar toda a complexidade da
experiência humana. Porém, o que se defende ao ser criada a noção de ciência compreensiva
não é uma complementariedade entre os tipos de ciência (que, supostamente, possuem objetos
de estudos diferenciados), mas sim uma contradição e uma afronta ao método científico, fator
que cria mais uma disputa epistemológica do que uma ciência verdadeiramente comprometida
com o ser humano, consequentemente, fidedigna à realidade estudada (SCOGUGLIA, 2002).
A respeito da distância estabelecida entre os tipos de ciência e da indissociabilidade
entre elas, Franco (2012, p. 21) propõe a possibilidade de
[...] uma dialética entre os termos. Assim, toda interpretação efetiva teria
momentos de explicação e momentos de compreensão. Estaríamos assumindo
que entre as ciências humanas e naturais há, ao mesmo tempo, continuidade e
descontinuidade. [...] Não se pode dizer “sou pela subjetividade, sou pelas
humanas” e desistir do lugar da matemática e da importância das ciências da
experimentação. A relação entre natureza e cultura terá que ser mais complexa
que isto. O futuro dos estudos da subjetividade, quer me parecer, tem a ver
exatamente com a capacidade de fazer luto desta tensão, algo infantil, das
humanas contra as ciências naturais e exatas.
Como vimos no primeiro capítulo, muitas das contradições entre as perspectivas
psicológicas a respeito dos fenômenos objetivos e subjetivos são guiadas pela distinção entre as
ciências e pela busca do status de cientificidade, porém, este não precisaria se resumir ao
método experimental (laboratorial) e nem se ater unicamente aos métodos das ciências
humanas.
A busca excessiva pelo status científico, muitas vezes, fez com que perspectivas não
necessariamente dicotômicas passassem a ser interpretadas como dicotômicas. Nesse mesmo
movimento, perspectivas compreensivas, que buscaram a quebra da dicotomia, acabaram por
reforçá-la, através de um posicionamento radical em relação à divergência epistemológica dos
métodos, que, em suma, podem se complementar da mesma forma como se complementam a
objetividade e a subjetividade nos fenômenos humanos estudados (EYSENCK, 1997).
122
Ricoeur (1976) discorda daqueles que alimentam a dicotomia entre
compreensão e explicação, entendendo-as como realizações epistemológicas
distintas, pertinentes a diferentes áreas do saber – a compreensão adstrita às
Ciências Humanas e a explicação às Ciências da Natureza – e a diferentes
esferas da realidade, ou seja, o espírito e a natureza. Para nosso autor, de modo
diferente, se o discurso é produzido como evento e compreendido pelo outro
como significação, conforme previamente exposto, é passível não apenas de
ser compreendido, mas também de ser explicado (MELO, 2016, p. 302).
Diante disso, propomos o seguinte questionamento, o qual tentaremos responder ao
longo deste capítulo: será que os objetos de estudo das ciências explicativas e compreensivas
são tão divergentes assim, ou são fenômenos pertencentes a uma única realidade existente?
Estudar esses fenômenos, de uma maneira fiel à sua existência, não implica considerá-los como
uma totalidade indissociável?
Wundt, por exemplo, apesar de postular o conceito de paralelismo psicofísico – que
acaba situando corpo e mente em instâncias diferentes –, bem como a distinção científica entre
aspectos psicológicos e sociais, compreendia a complexidade da experiência humana como
uma totalidade, por mais que a divisão em partes fosse dominante.
No que se refere a este fator, Marcellos e Araujo (2010, p. 13) ressaltam que
Wundt defende um monismo segundo o qual a complexidade da experiência
humana é entendida como um todo unificado e coerente, podendo ser
observada a partir de sua relação com os objetos da experiência ou
exclusivamente a partir da referência ao sujeito.
Já James, apesar de ser um funcionalista, que focava no comportamento observável,
valorizava, também, a função e o estudo da consciência – fenômeno considerado por alguns
cientistas comportamentais como completamente irrelevante, justamente pelo seu caráter
subjetivo.
Continuando no território das abordagens em Psicologia e das dicotomias no que se
refere à sua visão de sujeito, a Psicologia Sócio-histórica de Bock (também abordada no nosso
primeiro capítulo) é uma das perspectivas que tentou quebrar a dicotomia objetividade x
subjetividade bem como a dicotomia indivíduo x sociedade – e a partir dessa tentativa, aferrou
severas críticas às abordagens clássicas em Psicologia, dentre elas as suas três principais
vertentes: a Psicanálise, o Comportamentalismo e a Gestalt.
123
Todavia, a Psicologia Sócio-histórica – que como tantas outras abordagens nasceu de
uma crítica a uma abordagem anterior – não se atentou ao fato de que algumas das principais
teorias em Psicologia que criticava tinham os mesmos objetivos que os seus: distanciar-se dos
dualismos corpo-mente e corpo-mente e mundo presente na origem filosófica da Psicologia.
Vale ressaltar que a busca pela quebra da dicotomia corpo-mente e corpo-mente e
mundo é um movimento que permeia a maior parte das perspectivas em Psicologia, sejam as
abordagens mais inclinadas aos estudos comparativos ou experimentais. Apesar deste fato, a
grande maioria dos psicólogos ainda se mostra resistente no que se refere à junção de ambas
compreensões e métodos.
Em relação a essa resistência que persiste entre os especialistas, Eysenck (1997, p. 1224-
1226) aponta que
A existência de um paradigma implica a existência de um acordo
(razoavelmente) universal sobre seus elementos essenciais; claramente, esse
acordo entre especialistas está completamente ausente. [...] Como físicos
tiveram que aprender que estavam lidando com um continuum espaço-tempo,
psicólogos terão de aprender que precisam lidar com um continuum mente-
corpo – e não com entidades cartesianas completamente separadas uma da
outra.
O Comportamentalismo, discutido no nosso segundo capítulo, perspectiva mais
inclinada à ciência experimental, foi uma das mais afetadas pelas críticas da Psicologia Sócio-
histórica. Essa perspectiva também compreende que existe uma unidade entre corpo e mente,
o que o configura como uma teoria monista ao considerar a relação retroativa do ser humano
no ambiente (e em sociedade), bem como a sua condição histórica como fator determinante.
Apesar de suas divergências, no que se refere à dicotomia entre objetividade e
subjetividade, a Psicologia Sócio-histórica parece dialogar com uma das vertentes
comportamentalistas: o Behaviorismo Radical de Skinner. A respeito disso, a sentença de
Skinner (1957, p. 1) que diz “[...] os homens agem sobre o mundo, modificando-o e, por sua
vez, são modificados pelas consequências de suas ações” condiz, especificamente, com a
principal premissa do método adotado pela Psicologia Sócio-histórica, o materialismo histórico
dialético, tal qual propaga a ideia de que os homens transformam o mundo e são transformados
por ele.
124
Nesse ínterim, as divergências existentes entre essas perspectivas no que se refere à
origem natural-biológica do ser humano implicam apenas numa questão de nomenclatura, por
exemplo, na Psicologia Sócio-histórica, o nome dado à noção de natureza humana, que advém
do naturalismo, em que se ancora a perspectiva behaviorista, é transmutado no conceito de
condição humana, que reflete a tentativa de negar o aspecto biológico e, no entanto, se refere
ao mesmo processo: o ser humano condicionado a algum aspecto inato – além da própria
existência no mundo –, mesmo que não totalmente. Temos, também, a noção de internalização
em que o ser humano apreende o mundo que o cerca, filtrando as informações recebidas. No
Behaviorismo Radical esse fenômeno é chamado de aprendizagem.
Assim sendo, a depender de como o fenômeno ocorre, o sujeito pode ser mais ativo ou
passivo, sendo sempre influenciado pelas situações presentes no meio e vice-versa. Na
perspectiva do Behaviorismo Radical, essas situações recebem o nome de contingências (que
são determinadas pela história filogenética, sociogenética e cultural), e na perspectiva da
Psicologia Sócio-histórica são chamadas de contexto sociocultural. Na primeira perspectiva,
essa influência decorrente do contexto significa um condicionamento, algo que a segunda não
é capaz de admitir, afirmando ser uma ideia mecanicista (SANTOS, 2018). Visualizamos,
entretanto, que, nesses pontos, ambas as perspectivas parecem dizer a mesma coisa, porém, de
modos diferentes.
A respeito da Gestalt (tomemos aqui as perspectivas gestálticas como um todo),
aprofundada no nosso terceiro capítulo, e que também foi alvo de críticas da Psicologia Sócio-
histórica, esse fenômeno de internalização e aprendizagem desagua nas noções de assimilação,
introjeção e apropriação do meio ambiente pelo organismo (PERLS; HEFFERLINE;
GOODMAN, 1997). Dessa forma, podemos perceber que, em suma, todas as perspectivas
mencionadas consideram o ser humano como ativo nesse processo interrelacional,
independentemente de estar sujeito aos condicionamentos ambientais, ao mundo que o cerca e
à ação do objeto intencional transcendente (os objetos vivenciais do mundo). Neste sentido, o
ponto chave dessa ideia é que a liberdade de atividade e autonomia do indivíduo não é
independente da relação com o mundo.
Apesar disso, nem todos se mantiveram fiéis à sua própria compreensão de ser humano
devido à reverência que tinham em relação aos territórios teórico-científicos estabelecidos.
Skinner, por exemplo, arriscou afirmar que a liberdade era uma ilusão devido à sua ideia de
previsão e controle do comportamento, mesmo apresentando em seus principais postulados as
noções de comportamento ativo e operante, de autocontrole e transformação social pelo
125
homem. A Psicologia Sócio-histórica, do outro lado, mesmo lutando por uma compreensão de
ser humano ativo em sociedade, ao fixar-se na ideia de supremacia do contexto social, torna
esse humano um receptáculo de condicionamentos sociais. Nesse ínterim, essa perspectiva é
fortemente marcada pela aliança entre Psicologia e Política, tornando-se, para além de uma
ciência psicológica, um grande constructo de ideologias (SANTOS, 2018).
Considerando os fatores de equivalência entre as perspectivas estudadas, não podemos
deixar de expor, também, àquela entre o método indutivo adotado pelo Behaviorismo Radical
de Skinner e o método da redução fenomenológica da Fenomenologia de Husserl. Ressaltamos,
antes, que além de ter se tornado uma prática clínica, a Fenomenologia também se configurou
historicamente como um método de investigação, como os métodos dedutivo e indutivo. O
método indutivo, por sua vez, é aquele que estabelece uma relação possível com a redução
fenomenológica, uma vez que, pelo seu rigor científico, propõe o distanciamento de hipóteses
estabelecidas a priori. Na redução fenomenológica, no entanto, considera-se que as hipóteses
(julgamentos) podem até existir, mas somente entre parênteses, e no método indutivo, se
existirem, estas deverão ser estudadas e averiguadas cientificamente antes de se tornarem um
princípio.
Apesar das equivalências apontadas, a Psicologia Humanista – que é o berço da Gestalt-
Terapia –, também nasceu de severas críticas ao Estruturalismo e ao Comportamentalismo.
Todavia, muitas das críticas se referem ao modus operandi do modelo científico da época, tal
qual não valorizava a importância da subjetividade nas investigações. Isso decorria justamente
das disputas epistemológicas apontadas e da dicotomização de aspectos objetivos e subjetivos,
como, por exemplo, o comportamento e a consciência. A Gestalt, por sua vez, é a teoria que
tentará findar esta dicotomização, como demonstra a afirmação de Cholfe (2009, p. 69):
Reconhecendo que a oposição entre a psicologia da consciência e a do
comportamento originava-se de pressuposições inadequadas comuns, os
gestaltistas caminharão na construção de um sistema em que a relação entre
percepção e comportamento não se torna apenas possível, mas necessária.
Veremos que essa tensão presente na psicologia do início do século XX
carecia de uma revisão da noção de ciência que a permeava, passando por
questões fundamentais para o conhecimento humano, como a relação entre a
subjetividade e a objetividade.
Diante disso, percebemos a necessidade de uma perspectiva que agregasse esses
aspectos humanos num todo, sem renunciar a imprescindibilidade de nenhum aspecto.
126
Devemos esse movimento, em parte, à Psicologia da Gestalt e, posteriormente, à Psicologia
Humanista (a qual tem seu nascimento implicado pela criação da primeira), que é aquela que
nasce com o objetivo de evidenciar de maneira mais enfática a totalidade e potencialidades do
seu objeto de estudo, tendo como foco de atenção a pessoa como entidade mais importante
nesse processo. Notamos, com todo esse resgate, a importância do movimento histórico da
Psicologia no desenvolvimento da Gestalt como abordagem psicológica, considerando neste
todo tanto a Psicologia da Gestalt, como a Psicologia Humanista e, consequentemente, a
Gestalt-Terapia.
Consideramos que a divisão do ser humano em partes permeou toda a história da
Psicologia, formando territórios teóricos que, em suma, nem precisariam existir, não fosse a
segregação entre os tipos de ciência e a dicotomia objetividade x subjetividade. A
especialização, de certa forma, criou um movimento contrário ao movimento buscado pela
Psicologia, pois o objetivo comum das principais abordagens psicológicas – mesmo as não
comportamentalistas – eram ter legitimidade científica, dessa forma, muitas cederam ao método
de divisão em partes para estudar o ser humano. Entretanto, apesar das divergências entre as
abordagens matrizes da Psicologia, compreendemos que a busca – mesmo que de maneira
fragmentada – por um sistema teórico que evidenciasse a totalidade do ser-no-mundo foi
majoritária, e é por este fator que nenhuma perspectiva de maneira isolada se deteve como única
possível.
Diante disso, o que buscamos demonstrar nesta categoria vai muito além das
peculiaridades de cada perspectiva e das ambivalências estabelecidas entre elas. Buscamos
demonstrar seus pontos em comum, principalmente no que concerne à visão de homem-mundo.
Qual o seu fator de contato? O que as aproximam? Arriscamos dizer que é a integração entre
objetividade e subjetividade. A compreensão do ser humano como um todo unificado. Assim,
é nítida a importância de cada uma dessas perspectivas no que diz respeito à complexidade
humana, tanto em relação ao estudo desta, como em relação ao tratamento terapêutico,
considerando que ambos estão imbricados.
No que diz respeito à Psicanálise – uma das principais vertentes em Psicologia –
consideramos justificável deixá-la por último nessa discussão analítica, pois o próprio Perls,
como principal nome da Gestalt-Terapia, foi um teórico que deu início aos seus estudos e
produções dentro dessa vertente, mas acabou por distanciar-se dela, criando, assim, a sua
própria vertente teórica. Cabe ressaltar, então, que a abordagem gestáltica nasce de uma crítica
à Psicanálise, porém, se configura como uma perspectiva completamente nova.
127
A primeira obra de Perls, Ego, Fome e Agressão, publicada em 1942, representou a sua
crítica a muitos dos postulados psicanalíticos da época. Para Perls, por exemplo, a noção de
consciência foi deturpada pela má compreensão de sua complexidade pela Psicanálise, e
somado a isso, ele critica o enfoque exclusivo dado ao inconsciente. Segundo ele, na Psicanálise
a consciência era compreendida como um mero receptor de impressões, o que desaguava,
também, na noção equivocada do self por esta perspectiva (PERLS; HEFFERLINE;
GOODMAN, 1997).
Em Gestalt-Terapia, o self é o conceito que, basicamente, unifica a compreensão de
personalidade ou subjetividade16 da pessoa humana em sua totalidade. Consequentemente, é
um dos conceitos fundamentais para essa perspectiva, tal qual decorre da relação estabelecida
entre Perls e a Psicanálise. Muitos outros conceitos psicanalíticos serviram de influência e/ou
foram resgatados por Perls – tanto conceitos freudianos, como conceitos de dissidentes da
Psicanálise, como Jung, que mais se aproximava da Fenomenologia (LIMA; DIOGO, 2009).
Entre esses conceitos, temos o conceito freudiano de self, como mencionado, e o conceito
junguiano chamado processo de individuação, discutidos no terceiro capítulo desse estudo.
Além desses, vale ressaltarmos o conceito de agressividade/agressão, que compõe o título da
primeira obra de Perls.
O processo de individuação, sobretudo, ao ganhar a complementariedade da noção de
awareness em Gestalt-Terapia, passa a significar não somente a tomada de consciência tendo
o autoconhecimento como ferramenta, mas também o processo de tornar-se presente como
única via possível para esse tipo de contato. Perls, por exemplo, apontou a Psicanálise e seu
método de associação livre como uma forma de ampliação da awareness, ainda assim, ressalta
que Freud não deu a devida atenção ao fator mais importante desse processo, que é o aqui-
agora. Ter consciência, pois, não é meramente “dar-se conta”, mas agir conforme a
consciência, antes mesmo de perceber-se consciente de tal fenômeno (PERLS; HEFFERLINE;
GOODMAN, 1997).
Além disso, Perls direcionou um foco de atenção fundamental ao conceito psicanalítico
de agressividade, demonstrando um aspecto positivo de crescimento implícito nessa ideia.
16 Para a Gestalt-Terapia, a personalidade ou subjetividade é compreendida através do conceito de self,
o qual não é estático, e sendo dinâmico, é compreendido segundo um horizonte processual.
128
Como ressaltam Isadore From e Vincent Miller (1997, p. 23, grifos dos autores) na Introdução17
da obra Gestalt-Terapia de Perls, Hefferline e Goodman,
Em Ego, Hunger and Aggression, Perls descreveu as origens desta no que ele
chamou de “agressão dental”, morder, tirar um pedaço, e mastigar
completamente a própria experiência para absorver as partes de que se precisa
e livrar-se do que não se precisa. Essa ênfase coloca a agressão sob uma luz
positiva, realçando seu papel tanto na preservação de um sentido de si próprio
como no entender-se para contatar o ambiente. A agressão nos habilita arriscar
ter um impacto no nosso mundo, e nos liberta para sermos criativos ou
produtivos. Este, naturalmente, é o rumo oposto ao tomado por Freud, que
vinculava a agressão ao sadismo anal e ao instinto de morte. Para a Gestalt-
Terapia, a agressão é por natureza sadia e está a serviço da vida.
A crítica de Perls à Psicanálise, apesar de severa, não foi infundada, pois Freud e muitos
de seus súditos – apesar de pioneiros em relação à produção psicológico-científica acerca do
inconsciente – deixaram de lado as potencialidades autorreguladoras da consciência, em
detrimento do “depósito” de reminiscências (inconsciente), o qual acabou por se configurar
como um receptor passivo, que, em sua atividade e supremacia, condiciona a consciência,
inibindo seu poder de atividade e mudança.
Vale ressaltar, porém, que a Psicanálise, apesar de suas contribuições, não adentra nas
equivalências que buscamos evidenciar entre as perspectivas em Psicologia, uma vez que não
nasceu de uma crítica a qualquer paradigma anterior (o que significa que ela não tenta resgatar
ou remodelar nenhum postulado psicológico). Todavia, pelo movimento contrário, é ela que
oferece muito do substrato para a criação e difusão de outras perspectivas em Psicologia
(inclusive a Gestalt-Terapia), além da própria iniciação da clínica como prática
psicoterapêutica.
A partir do exposto, notamos a importância do resgate epistemológico (não só da Gestalt
como da própria Psicologia), pois muitos dos princípios apresentados e discutidos constituíram
a gênese do conceito de Gestalt e, consequentemente, da Gestalt-Terapia como teoria e prática.
Com isso, percebemos que a união corpo-mente e mundo – nas palavras de Perls, Hefferline e
Goodman (1997), campo animal-social-físico – foi preponderante.
A respeito da relação entre os campos animal-social-físico, ressaltamos, mais uma vez,
conforme apresentado no terceiro capítulo, a compreensão gestaltista que enfoca o isomorfismo
17 Introdução à edição do The Gestalt Journal.
129
entre os campos molar e molecular de Kofka, tal qual nos remete ao princípio comportamental
que diz: tudo é comportamento – e que, sobretudo, não se refere unicamente aos fenômenos
(objetivos) observáveis, mas também aos eventos privados ou subjetivos (internos) do ser
humano. Tudo é comportamento, e o comportamento humano em sua totalidade constitui a
subjetividade (EYSENCK, 1997).
Com isso, ressaltamos que a relação exposta entre essas perspectivas psicológicas
demonstra como cada uma delas, à sua maneira, buscou a relação de totalidade que permeia a
vida humana. Ou seja, mesmo divergindo no que diz respeito ao método de investigação e ao
foco de trabalho, todas elas focaram numa perspectiva central no que diz respeito ao fenômeno
estudado: compreendem o ser humano como ser ativo que só existe enquanto relação com o
mundo.
A respeito das equivalências apontadas, conforme ressalta Jacobina (2000) – baseado
na compreensão epistemológica de Kuhn –, uma característica das ciências humanas é o seu
caráter poli paradigmático, no sentido de abrigar, dentro de uma única área do conhecimento,
vários paradigmas, que, geralmente, são incomensuráveis, ou seja, incompatíveis. No entanto,
algo evidenciado por esses autores nos mostra que tem ocorrido um fenômeno interessante com
a produção epistemológica do conhecimento: o resgate de velhos paradigmas. Porém, uma vez
remodelados, ganham a roupagem de um novo paradigma, que pela crítica torna-se o oposto e,
no entanto, carregam os mesmos termos do velho paradigma tradicional.
Ainda de acordo com Jacobina (2000), para se ter uma ciência bem estruturada, devemos
limitá-la a um único paradigma, no entanto, um mesmo paradigma pode comportar espaço para
diversos campos de pesquisa científica. Assim, podemos concluir que é isto que tem ocorrido
com a Psicologia, a qual, em sua gama de abordagens, em sua maioria incompatíveis e
incomensuráveis, não é capaz de se unificar e, consequentemente, ganhar uma maior
confiabilidade, que, conforme o paradigma científico, somente é garantida pela homogeneidade
de seus postulados. A respeito disso, Jung (2015, p. 117) ressalta o seguinte: “[...] prefere-se
geralmente cultivar a ‘psicologia de compartimentos’, onde uma gaveta nada sabe do que a
outra contém”.
Apesar desse fato, arriscamos dizer que a relação de equivalência das visões de homem-
mundo entre as perspectivas em Psicologia comportam um único paradigma, mas uma gama de
variáveis a serem exploradas, e é por este motivo que existem tantas abordagens diferentes, e
que, no entanto, se direcionam ao mesmo e único fenômeno: o ser-uno-ativo e em relação com
o mundo.
130
Por fim, ressaltamos que o recorte das equivalências exposto nesta categoria evidencia
um dos modos em que a prática condiciona a teoria. Neste sentido, a possibilidade de um único
paradigma em Psicologia pode não ter se definido conceitualmente em seu atual modelo
científico, porém, na realidade prática (de suas principais abordagens), é um fenômeno
preponderantemente presente.
A seguir, daremos continuidade às nossas discussões analíticas das outras duas
categorias definidas, explorando de maneira pragmática suas ramificações teórico-práticas.
6.2 Ambivalências e equivalências das perspectivas gestálticas sobre o ser-no-mundo
Esta categoria tem a incumbência de apresentar as ambivalências e equivalências entre
a Psicologia da Gestalt e a Gestalt-Terapia, considerando as perspectivas gestálticas como um
todo, incluindo as suas bases epistemológicas que serviram de âncora para a construção da
dessas teorias, bem como para o desenvolvimento de outras abordagens gestálticas de base
humanista, como, por exemplo, a Abordagem Centrada na Pessoa. Diante desse processo de
análise pragmática, sob a ótica da realidade, consideramos importante aprofundar até que ponto
essas distinções são funcionais ou não.
De acordo com o material estudado, a principal fonte do elo possível entre a Psicologia
da Gestalt e a Gestalt-Terapia é a Fenomenologia, perspectiva que abriga não só a principal
premissa da teoria da Gestalt – o todo vai muito além da soma das partes –, como também veio
a se configurar como uma base imprescindível para a compreensão de homem-mundo da
abordagem gestáltica.
A Fenomenologia, por mais que alguns teóricos a contraponha à Psicologia da Gestalt
– devido às críticas do próprio Husserl ao gestaltismo –, vem a configurar a base desta última
como ciência empírica. Sendo assim, é a relação entre Fenomenologia e Psicologia da Gestalt
que inclui a noção de Gestalt no eixo da Psicologia como ciência experimental e humana. Desse
modo, foi esse movimento empírico dos primeiros psicólogos da Gestalt – de resgatar o primado
do todo em relação às partes, evidenciando experimentalmente o que já se explanava pelo
método fenomenológico – que inseriu a abordagem gestáltica no movimento da Psicologia
(CHOLFE, 2009).
131
Diante disso, é notório que a Fenomenologia, apesar de abrigar alguns postulados
filosóficos de caráter mais especulativo do que empírico (como, por exemplo, a noção de
consciência imanente de Brentano), tem toda uma base materialista de compreensão do ser
humano, pois se ancora na experiência direta do ser-no-mundo, e essa experiência direta, por si
só, constitui uma essência majoritariamente objetiva, ou seja, transcendente. Sendo assim, as
vivências humanas constituem, sob a ótica do método fenomenológico, um dado material, e
diante de sua natureza, essas vivências só podem ser compreendidas a partir delas mesmas e de
sua implicação transcendente à consciência intencional.
“Parece haver um único ponto de partida para a psicologia, exatamente como
para todas as outras ciências: o mundo como encontramos, ingenuamente e
sem crítica” (Köhler, 1947/1929, p. 7). Não há, segundo os gestaltistas, outra
base possível para o conhecimento senão nossa experiência original, ingênua,
a ordem tal como nos é revelada pelo mundo fenomenal. Tal ordem é
justamente o que pretende descrever o termo Gestalt, constituindo-se como o
conceito básico sobre o qual será estruturada a epistemologia do gestaltismo
(CHOLFE, 2009, p. 171).
A respeito da compreensão da Fenomenologia como uma filosofia materialista e sua
relação com a Psicologia da Gestalt constituindo um método fenomenológico de apreensão da
realidade, Cholfe (2009, p. 167) ressalta que
[...] uma das ideias por trás da reflexão fenomenológica gestaltista já estava
presente na filosofia de Brentano e mesmo na filosofia empirista, trata-se da
noção de que os dados da experiência consciente são os únicos objetos
científicos diretamente acessíveis, fato que concede à psicologia descritiva um
privilégio em relação às outras ciências, cujos objetos são transcendentes.
Todo método fenomenológico, além dessa ideia básica, carrega o esforço de
empreender uma suspensão da atividade judicativa diante dos fenômenos,
tentando apreendê-los em sua originalidade, isto é, tal como aparecem à nossa
apreensão. Assim, no âmbito dos fenômenos, o “aparecer” equivale ao “ser”.
Diante dessa reflexão, podemos afirmar, inclusive, que já nesta relação entre a
Fenomenologia e a Psicologia da Gestalt podemos verificar a possibilidade de uma integração
entre objetividade e subjetividade. Seu substrato está na possibilidade do estudo da consciência
através de uma filosofia materialista (a Fenomenologia) – que tem as vivências humanas como
ponto de partida –, combinada a uma base empírica confiável (a Psicologia da Gestalt), a qual
foi capaz de provar experimentalmente o primado do todo em relação às partes e,
132
consequentemente, a autonomia das gestalten como totalidades intrínsecas (que se originam no
pensamento de Brentano).
A partir dessa relação, os psicólogos da Gestalt não somente tornaram a própria
perspectiva uma teoria científica legítima, como também a Fenomenologia uma filosofia
fidedigna e confiável, que, mais tarde, viria a fundamentar uma gama de abordagens
psicoterapêuticas comprometidas com os problemas humanos. Dessa forma, não só a
Fenomenologia se constituiu como um método materialista, como também o gestaltismo como
método fenomenológico. Para tanto, como podemos perceber, não foi necessário distanciar-se
do método experimental (CHOLFE, 2009).
Apesar das contribuições fundamentais da Psicologia da Gestalt e de sua irredutibilidade
no que se refere ao desenvolvimento da Gestalt-Terapia como prática psicoterapêutica, existem
algumas críticas desta última para com a primeira. Essas críticas se referem a um certo
“atomismo” da Psicologia da Gestalt no que diz respeito às propriedades das gestalten
apreendidas como “estruturas autônomas sem interior” (GRANZOTTO; GRANZOTTO,
2004). A compreensão por parte dos teóricos da Gestalt-Terapia gira em torno do entendimento
de que, na Fenomenologia, as gestalten correspondem aos vividos da subjetividade, que são
intrinsecamente dinâmicos; e na Psicologia da Gestalt, estas são configurações autônomas,
porém, estáticas, reduzidas ao contexto laboratorial.
A respeito das estruturas como entidades estáticas, com base no pensamento de
Brentano – o primeiro a postular o conceito de Gestalt –, arriscamos dizer que o caráter
atribuído às gestalten como leis, constantes ou estruturas, evidenciado pela Psicologia da
Gestalt, não anula o ponto de intersecção existente entre elas (as gestalten) e os vividos
essenciais. Pela via contrária, esse caráter revela objetivamente a atuação da intencionalidade
da consciência (como trouxemos no terceiro capítulo), pois, tanto na Fenomenologia de
Brentano, como na de Husserl, a intencionalidade é anterior a qualquer ato mental, ou seja, tal
qual as gestalten, constitui uma totalidade espontânea, autônoma e pré-mental (GRANZOTTO;
GRANZOTTO, 2016).
Ainda referente às críticas à Psicologia da Gestalt, no que diz respeito à redução das
gestalten ao ambiente do laboratório, Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 52, grifos nossos)
ressaltam que
133
A própria situação de laboratório põe um limite em relação à extensão de
nosso pensamento e ao que descobriremos. Essa situação é o contexto total
que determina o significado do que emerge, e o que emerge da limitação é a
qualidade meramente formal e estática da maior parte da teoria da gestalt.
[...] uma situação de laboratório controlada não é de fato uma situação
vitalmente instigante. [...] Mais exatamente, com um fervor louvável de
objetividade, os gestaltistas evitaram, às vezes com declarações cômicas de
pureza, qualquer comércio com aquilo que apaixona e interessa [...] Muitas
vezes parecem estar dizendo na verdade que tudo é relevante no campo da
totalidade, exceto os fatores humanamente interessantes; estes são
“subjetivos” e irrelevantes. Contudo, por outro lado, só o que é interessante
produz uma estrutura vigorosa.
Como podemos perceber, os autores não estavam completamente satisfeitos com as
ramificações da Psicologia de Gestalt como ciência psicológica devido à sua inclinação à
pesquisa no âmbito da ciência experimental. No entanto, apesar de suas severas críticas,
compreendemos que a relação entre a Psicologia da Gestalt e a Gestalt-Terapia transcende o
posicionamento epistemológico que escolheram aderir, uma vez que o que verdadeiramente
importa – sob a ótica dos fatos – não são suas inclinações teóricas pessoais, e sim o estudo
fidedigno da realidade humana.
É notório que, de uma perspectiva laboratorial, a compreensão das gestalten torna-se
incompleta, pois, sob essa ótica do estudo, os resultados desaguam em seus aspectos objetivos
– como, por exemplo, as leis de organização da percepção –, e não fundamentalmente em
aspectos subjetivos, como mais tarde se debruça a Gestalt-Terapia. Todavia, os achados da
Psicologia da Gestalt foram fundamentais para a compreensão da interrelação dos aspectos
objetivos e subjetivos. Neste sentido, a crítica de que a subjetividade foi ignorada pela
Psicologia da Gestalt não tem uma base fática, nem mesmo sólida (CHOLFE, 2009).
Desse modo, considerando a importância da redução fenomenológica como método de
investigação (ir às coisas mesmas), o que a Psicologia da Gestalt tentou fazer em laboratório
foi justamente estudar o movimento das gestalten tais quais elas se apresentavam, considerando
não somente sua repetição (que possibilita a descrição e explicação do fenômeno), como
também a compreensão de sua significação, tal qual apontou para a tendência à totalidade e a
pregnância (boa forma). Nas palavras de Cholfe (2009, p. 173-174),
A partir do momento em que a noção de causalidade passa a se referir a leis
de organização, os fatos tornam-se relacionados significativamente, isto é,
passam a ter sentido num contexto, sendo mutuamente necessários e
inteligíveis com base na configuração que tendem a realizar. Ora, os processos
134
fenomenais e naturais não são, portanto, arbitrários ou meramente
correlacionados, eles nos revelam uma ordem e um fim, são problemas que
exigem a compreensão de seu sentido e não apenas a constatação de sua
repetição. Com base em tais argumentos, temos uma identificação, na Teoria
da Gestalt, entre explicação e compreensão, e a última implicação que
gostaríamos de apontar em relação à epistemologia gestaltista, isto é, a
superação da fronteira entre as ciências naturais (guiadas pela noção de
explicação), e as ciências humanas (guiadas pela noção de significação)
(Koffka, 1955/1935, capítulo 1; Köhler, 1959/1938, capítulo 10).
Além disso, não podemos esquecer do fato de que os estudos do fenômeno phi de
Wertheimer, somados aos conceitos posteriores da Psicologia da Gestalt, tais como figura-
fundo, a tese do isomorfismo, a transfenomenalidade de Kohler e a noção de campo encontrada
em Kofka, foram fatores de comprovação da atuação das gestalten como entidades autônomas
e do ser humano como uma totalidade. Todos esses fatores de relação foram expostos no nosso
terceiro capítulo, que faz um apanhado de todo o substrato essencial para o desenvolvimento
da Gestalt-Terapia como teoria e prática psicoterapêutica.
No que diz respeito à subjetividade tomada como irrelevante, a própria percepção –
objeto de estudo da Psicologia da Gestalt – se configura como um aspecto subjetivo. No entanto,
o que não podemos ignorar, principalmente de um ponto de vista fenomenológico, é sua relação
intrínseca com a objetividade, pois não existe percepção sem objetividade, e a consciência não
existe de maneira isolada. De acordo com Husserl, a consciência é sempre consciência de
alguma coisa (RIBEIRO, 1985).
Uma vez que os teóricos da Gestalt-Terapia se referem aos estudos da Psicologia da
Gestalt em laboratório como reducionistas, eles se contrapõem à união entre objetividade e
subjetividade, compreendendo esta última como a única passível de ser “interessante” ao
cientista e, consequentemente, ao psicólogo. Neste ponto, mais uma vez, devido às disputas
epistemológicas, uma perspectiva unitária do ser humano corre o risco de dissolvê-lo em partes,
contribuindo, mesmo que não intencionalmente, para a manutenção das dicotomias entre sujeito
e objeto.
A partir dessa reflexão, no que se refere à produção do conhecimento, consideramos
encerrada a dicotomia entre Psicologia da Gestalt e Gestalt-Terapia, uma vez que ambas estão
imbricadas pelas próprias origens e pela união entre objetividade e subjetividade – cada uma se
atendo ao seu campo específico, porém, se complementando num todo que vai muito além da
soma das partes. Já em relação à prática psicoterapêutica, somente a Gestalt-Terapia se
direcionou à aplicabilidade terapêutica de sua teoria às realidades humanas. No entanto, ambas
135
são de fundamental importância, pois constituem a visão de homem-mundo que embasa essa
prática e os estudos posteriores necessários à sua aplicabilidade.
Com isso, compreendemos que as equivalências entre a Psicologia da Gestalt e a
Gestalt-Terapia são evidenciadas não só pela concepção de homem-mundo, mas,
primordialmente, pelas bases que lhe ofereceram a ótica da integralidade do ser humano: essas
bases são a Fenomenologia Existencial e a Psicologia Humanista. É por estar atrelada a estas
perspectivas que a Gestalt-Terapia vem a ser compreendida como um modelo de psicoterapia
existencial-fenomenológica (RIBEIRO, 1985).
A Fenomenologia Existencial, discutida no nosso terceiro capítulo, se configura como
uma forma ampla de ver o ser-no-mundo. Devido a sua gama de autores e filósofos
existencialistas, com o tempo, esta adquiriu uma variedade de modelos em psicoterapia, as quais
geralmente enfocam a perspectiva do autor adotado. A Gestalt-Terapia, por sua vez, engloba a
sua compreensão de homem-mundo de uma maneira geral, sem se ater a um determinado autor.
Conforme afirma Ribeiro (1985, p. 41) acerca da relação entre Fenomenologia e Gestalt-
Terapia,
[...] encontramos as mesmas preocupações através de conceitos que serão
posteriormente apresentados e aprofundados, ressaltando, de uma maneira
geral, a crença no homem, aqui e agora presente, capaz de tornar-se cada vez
mais consciente de si próprio, a partir da experiência vivida agora e da certeza
de sua extensão para depois, dentro de uma visão holística do homem como
homem e dele como ser no mundo.
Partindo para a aplicabilidade das psicoterapias gestálticas, como apresentado no início
da discussão desta categoria, a Abordagem Centrada na Pessoa, criada por Carl Rogers, é
também um dos modelos de psicoterapia que advém da perspectiva humanista e,
posteriormente, se alia ao pensamento fenomenológico existencial, se assemelhando a uma
postura gestalt-fenomenológica no que se refere à compreensão de ser humano e à relação
terapêutica. Esse elo estabelecido entre a ACP18 e a Fenomenologia Existencial – considerando
sua ligação ao movimento humanista, que é aliado intrinsecamente ao gestaltismo – é um fator
preponderante de aproximação entre esta e a Gestalt-Terapia.
18 Seguiremos nos referindo à Abordagem Centrada na Pessoa pela abreviatura comumente utilizada –
ACP.
136
No nosso terceiro capítulo, expomos alguns dos principais conceitos da ACP como
vertente humanista de compreensão de ser humano e como estes conceitos se intercalam aos da
Gestalt-Terapia a fim de demonstrar o elo teórico entre essas duas abordagens, tais quais estão
na matriz da concepção de homem-mundo orientada pela ótica gestáltica. Nesta categoria, que
se propôs a evidenciar as equivalências e ambivalências das perspectivas gestálticas sobre o
ser-no-mundo, iremos expor – agora sob a ótica da prática – de que forma essas abordagens
caminham juntas, evidenciando pragmaticamente a suas interrelações. Para tanto, iremos
demonstrar estas equivalências através da análise narrativa do primeiro Caso Clínico (Caso 1),
descrito no capítulo anterior, que tem como título: Rompimento Amoroso, Depressão e
Autoestima.
6.2.1 Análise Narrativa – Caso 1
Sob a ótica humanista da ACP, todo ser humano é livre, autônomo e responsável. Diante
de sua própria liberdade existencial, deve ser capaz de exercer sua autonomia, considerando a
própria responsabilidade diante dos efeitos decorrentes de suas escolhas. No Caso 1, Leonardo
perdeu sua autonomia ao passo em que o sintoma depressivo tomou conta de sua subjetividade,
tornando-o dependente exclusivamente de sua mãe, a qual detinha não só sua liberdade (a fim
de assegurar-lhe a proteção), bem como toda a responsabilidade por ele. Nesse contexto,
Leonardo havia perdido a condição de ser humano livre, autônomo e responsável, pois, além
de estar sujeito a um grande outro (a sua mãe), vivia como um ser subjacente aos episódios
psicóticos breves que o circundavam.
No entanto, considerando as potencialidades que todo ser humano tem diante de seu
campo de possibilidades e também a tendência atualizante (organísmica) como pressuposto
fundamental, o psicólogo que se propôs a tratar Leonardo viu na relação dialógica da situação
terapêutica um novo campo se abrindo para o seu cliente: este campo era a terapia e a relação
de crescimento possível que brotava dali. De acordo com Rogers, esse é um dos principais
papéis do terapeuta: oferecer as condições necessárias para o desabrochar da tendência
atualizante da pessoa. Então, feito isto, diante da nova possibilidade apresentada, uma
perspectiva de autorregulação se fez presente para Leonardo. Podemos visualizar esse
movimento no relato do terapeuta:
137
Um dia depois [da primeira sessão de terapia], a mãe de Leonardo me ligou
dizendo que ele tem falado algumas coisas, tem se alimentado e tem feito uso
do toalete de forma autônoma. [...] Sinto que me comunico com ele, mesmo
de forma atípica. Tenho estado angustiado com as hipóteses de que essa
comunicação, na verdade, não exista, mas ao mesmo tempo sinto que, no
fundo, ela está presente. Hoje continuou em silêncio na sala (GUEDES;
LEITNER; MACHADO, 2008, p. 622).
Antes de iniciar a terapia, o que estava acontecendo com Leonardo era uma forma de
ajustamento criativo disfuncional (um dos principais conceitos da Gestalt-Terapia). Com o
término de seu namoro, perdera o sentido. Sob a ótica gestáltica da Fenomenologia Existencial,
o sentido é parte fundamental para o completamento da figura; e, para Rogers, o sentido é parte
fundamental para a constituição da identidade do indivíduo e para a noção pessoal de
congruência e autenticidade (GUEDES; LEITNER; MACHADO, 2008). Leonardo estava
impossibilitado de ser quem era, uma vez que esquecera de si mesmo em meio a tanto
sofrimento. Neste sentido, a depressão como transtorno o alienava não só do mundo ao redor,
mas da sua própria noção de self (si mesmo).
Além disso, culpava o mundo pelo que acontecia com ele. É claro que o contexto
influenciava o que estava acontecendo com Leonardo, mas o contexto jamais age de maneira
isolada das ações dele mesmo. Culpar o mundo pelo que estava sentindo retirava o seu controle
e autonomia em relação às suas próprias potencialidades para entregá-los a entes abstratos
como: a relação inacabada dos pais, o pai, a mãe, a ex-namorada, o chefe que o demitiu etc.
Muito desse sentimento de culpabilização do mundo decorria da não aceitação de sua condição
e devido ao controle de sua vida e poder sobre si mesmo estar totalmente entregue ao problema:
os outros, a psicose e a depressão.
Ao ir se dando conta (awareness – conceito da Gestalt-Terapia) do momento existencial
pelo qual passava (no aqui-agora), Leonardo começou a visualizar novas possibilidades para
além da terapia. Ampliou a percepção de seu campo e, consequentemente, ao aceitar a sua
responsabilidade existencial diante de sua própria vida, viu a possibilidade de assumir-se como
um ser autêntico, dotado de autonomia, e capaz de enfrentar os desafios impostos pelo mundo.
A partir disso, resolveu dar um tempo na terapia. Para o terapeuta, esse fenômeno significou
um movimento importante para o possível fechamento de suas gestalten, tais quais, segundo
este, só poderiam fechar-se de fato quando Leonardo se permitisse entrar em contato com o
mundo. Esse processo é descrito pelo terapeuta na seguinte passagem:
138
[Leonardo] decide “dar um tempo” (sic) na terapia. Eu achei que isso seria
uma forma de exercitar sua autonomia e experienciar o mundo já que, na
psicoterapia, seu fluxo estava dando voltas, como se estivesse represando
energia e evitando uma tomada de posição sobre aquilo que estava retornando
de forma recorrente (experiente por conta do sofrimento). Esse engodo estava
causando-me certo incômodo. Da minha parte, eu também senti que precisava
dar esse tempo, pois percebia que não iríamos sair daquele ciclo, a não ser que
procurasse fechar suas gestalten lançando-se no-mundo (GUEDES;
LEITNER; MACHADO, 2008, p. 627).
Como podemos perceber, a psicoterapia de Leonardo teve um caráter intrinsecamente
gestáltico19 e se constituiu como uma via de realização conjunta que possibilitou ao cliente uma
maior tomada de consciência (awareness) a respeito de sua própria condição no momento
presente (aqui-agora). Esse processo, consequentemente, gerou o resgate de sua autonomia
(perdida) diante da vida, possibilitando a ampliação da fronteira de contato e da percepção de
seu campo fenomênico, o que gerou uma maior abertura para o mundo e uma maior flexibilidade
ao lidar com suas questões existenciais.
É notório que compreender o homem como ser livre, autônomo e responsável implica
em atribuir a ele mesmo o desabrochar da sua própria existência. Sendo assim, neste caso, para
além do resgate das potencialidades de Leonardo durante o processo terapêutico, conseguimos
visualizar também, como fator imprescindível, o que tange ao contexto fora dele – em que o ser
se lança no mundo e, diante desse contato, por meio de suas interrelações, é confrontado a
mudar e viver (vir-a-ser). Essa confrontação do sujeito com o mundo e suas intempéries pode
gerar o sentimento de angústia, e o sujeito é forçado a escolher o que fazer diante dela.
É, justamente, a partir desse lugar de angústia que a mudança se opera, assim
como possibilita exercitar a negação de si, caso o sujeito não queira assumir a
responsabilidade da tomada de posição. Dessa forma, o sujeito tem duas
opções elementares, dentre tantas infinitas: ou aceita a angústia e dela
aproveita-se para promover crescimento autêntico, ampliando seu campo
fenomênico e, consequentemente, ampliando seu leque de escolhas e
variabilidade de condutas; ou, então, nega a integração da angústia à sua
vivência, diminuindo suas opções e aumentando sentimentos de culpa que,
possivelmente, fomentará o tédio existencial, intensificando a desorganização
psicológica (Erthal, 1995, 1989). É por isso que se afirma que o objetivo da
psicoterapia é, em justa medida, favorecer que o sujeito possa autorizar-se
como sujeito, a tomar posições a partir de sua liberdade de escolha e a assumir
19 De maneira pragmática, compreendemos que esse caráter gestáltico integra a Abordagem Centrada
na Pessoa e a Gestalt-Terapia numa totalidade.
139
sua angústia existencial de ser “só”, mesmo que em relação (Moreira, 2001)
(GUEDES; LEITNER; MACHADO, 2008, p. 609).
Diante deste Caso Clínico, podemos visualizar, de maneira pragmática, de que forma
acontece a permeabilidade entre a Fenomenologia Existencial, a ACP e a Gestalt-Terapia,
situando a visão una de homem-mundo, tal qual se ancora no Humanismo e no Existencialismo,
que são suas bases filosóficas. Além disso, este caso nos mostra, de maneira fática, quais as
interrelações conceituais e práticas entre a ACP e a Gestalt-Terapia no que se refere à
aplicabilidade psicoterapêutica.
Por fim, destacamos que esta atuação prática nos revela uma interrelação imprescindível
entre as estas abordagens no que se refere à atuação diante das subjetividades humanas, bem
como uma congruência fidedigna entre a prática e a teoria. Além disso, ressaltamos que esta
última (a teoria) fez jus ao homem como ser autônomo, livre, responsável, e como centro de
sua própria vida.
6.3 Transfenomenalidade: o sujeito uno e a prática clínica da Gestalt-Terapia
Nesta última categoria de análise, pretendemos explanar as implicações do conceito de
transfenomenalidade de Kohler para a configuração da Gestalt-Terapia como teoria e prática,
enfocando esta última (a prática) como principal critério de avaliação. Através da análise
conscienciosa da atuação da Gestalt-Terapia frente aos sujeitos – apresentadas no Caso 2 e
Caso 3 –, podemos visualizar de maneira fidedigna a ramificação que o conceito de
transfenomenalidade tomou no que diz respeito à compreensão de ser humano e à relação
terapêutica.
A partir de uma perspectiva fenomenológica, o conceito de transfenomenalidade de
Kohler, antes de qualquer coisa, significa que existe uma forma comum – que é total – entre
nós e o mundo que nos cerca, isso significa que nossa percepção dos objetos físicos, por si só,
já constitui uma experiência objetiva (ou percepto) do mundo cotidiano. De uma perspectiva
gestáltica, ao mesmo tempo em que o objeto em si não muda – pois ele é, antes mesmo de estar
sujeito a minha percepção –, no momento em que eu entro em contato com ele, este ganha a
existência intencional conferida pela minha consciência. Nesse movimento, a objetividade e a
140
subjetividade se entrelaçam de maneira a não se soltarem jamais20. Sendo assim, a experiência
direta se configura, então, como ato objetivo e subjetivo simultaneamente.
A esse respeito, Peres (2014, p. 176) afirma que
[...] toda “experiência de algo” é compreendida como uma relação entre dois
aspectos de uma mesma experiência englobante. No momento em que ele
[Kohler] afirma coisas como “observo uma experiência objetiva”
(Köhler,1929/1968, p. 20), “o aparelho se manifesta como parte do campo
visual” (Köhler, 1929/1968, p. 21), “Estou ciente da presença da mistura
graças a certas experiências objetivas que tenho diante de mim” (Köhler,
1929/1968, p. 21), fica claro que as experiências objetivas são “observadas”,
estão “diante de mim” e fazem parte integrante de “meu campo visual”. O ato
de observar é uma experiência subjetiva, enquanto o observado é uma
experiência objetiva.
Esse mesmo autor nos traz um exemplo desse processo:
Enquanto a cadeira e suas propriedades percebidas são dependentes de
processos fisiológicos cerebrais, a própria cadeira física, a qual não é de modo
algum a cadeira da experiência, é transcendente e independente da cadeira
percebida. A cadeira física não pode ser vista nem experienciada diretamente
de maneira alguma (PERES, 2014, p. 174).
O exemplo apresentado nos faz questionar: como a objetividade pode ser apreendida se,
conforme a citação, “a cadeira física não pode ser vista nem experenciada diretamente de
maneira alguma”? Isto significa que, uma vez que a cadeira estiver sujeita a nossa
intencionalidade, ela será sempre uma experiência intersubjetiva. No entanto, pelo seu caráter
transcendente (de coisa que é), esta não perde seu caráter objetivo; e, num outro contexto ou
para outro indivíduo, ela poderá vir a significar qualquer outra coisa.
Assim sendo, para Kohler, isto significa que o mundo, tal como o conhecemos, possui
uma essência intrinsecamente transfenomenal, o que implica dizer não somente que
20 Na obra “Gestalt-Terapia”, Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 43) resgatam o pensamento de
Aristóteles, o qual ratifica que “[...] no ato, no perceber, o objeto e o órgão são idênticos”. Isso nos
remete à noção de transfenomenalidade, conceito este que sugere uma forma comum (total) entre nós e
o mundo e, consequentemente, entre a nossa percepção e o objeto percebido.
141
objetividade e subjetividade se imbricam, como também respalda a noção de que nós e o mundo
mudamos a todo momento, logo, somos um eterno vir-a-ser (PERES, 2014).
Relacionando esse processo ao conceito de jogo de Gadamer (que como apresentamos
no nosso terceiro capítulo este conceito está totalmente ligado ao conceito de
transfenomenalidade), compreendemos esse vir-a-ser como uma infinita gama de
possibilidades intrínsecas à relação homem-mundo, pois o jogo e a relação transfenomenal
entre sujeito e objeto irão gerar diferentes formas de ser a depender do campo ao qual este
homem pertence. Conforme afirma Santos (2013, p. 4),
[...] o jogo possui a capacidade de sempre revigorar-se em uma constante
repetição, possuindo, portanto, regras próprias. E, ao passo que o jogo
possibilita instaurar uma constante repetição de determinadas ações, são
justamente essas ações repetidas que deixam que se mostre o diferente: pelas
mesmas jogadas nasce o diferente, não devendo perder de vista o fato de que,
embora se repita uma jogada (ação) aparentemente igual às demais, a
configuração fluída de sentidos por ela revelada está sempre imbuída de um
viço de novidade.
Na Gestalt-Terapia, esse movimento transfenomenal entre nós e o mundo desagua no
conceito de figura-fundo, que representa todos os eventos de nossas vidas que, em algum
momento, se configuram como uma figura emergente ao nosso percepto, e em outra ocasião
podem vir a se tornar fundo (um campo, um contexto, uma memória). Diante disso, sob a ótica
do conceito de transfenomenalidade de Kohler, nós e o mundo constituímos uma totalidade
dinâmica que vai muito além da soma das partes.
No que se refere a nossa pesquisa, que se propõe a analisar pragmaticamente casos
clínicos de pessoas com algum transtorno mental ou psíquico, essa noção de totalidade deve
ser muito bem explanada, pois os transtornos, quando se tornam um fenômeno característico de
um sujeito num dado momento, devem ser vistos sob a compreensão de que uma pessoa adoece,
mas, principalmente, que ela não “é” aquele transtorno, este último é apenas uma parte do todo
que a constitui.
Essa compreensão é condizente ao entendimento da pessoa como totalidade, que vive
um constante e eterno vir-a-ser, ou seja, a depender das transformações que esta pessoa vivencie
na sua relação organismo-meio, em um dado momento, o transtorno que a acompanhou poderá
não fazer mais parte dela. Essas transformações geralmente dependem das mudanças internas
142
e ambientais que geram possibilidades de ajustamentos criativos cada vez mais funcionais para
a pessoa (FRAZÃO, 2015).
Compreender a dinâmica de um transtorno mental dessa forma nos mostra dois fatores
importantíssimos para a atuação do gestalt-terapeuta frente aos sujeitos, que são: 1) sob a ótica
da transfenomenalidade, os transtornos são sempre transfenomenais, ou seja, acontecem na
relação organismo-meio e se constituem como fenômenos isomórficos, que tem uma forma
comum tanto no campo físico (molecular), como no campo comportamental (molar); e 2)
devido ao caráter dinâmico da pessoa em movimento, “ter” um transtorno caracteriza um estado
e não um modo permanente de ser, por isso, sob essa perspectiva, fala-se em pessoa que “está”
doente e não em pessoa que “é” doente (ALCÂNTARA; MENDONÇA, 2010).
Diante disso, ao compreender os transtornos mentais como formas de ajustamento
criativo disfuncional (ou não saudável) e não como propriedades imanentes aos sujeitos,
abrimos mão de uma compreensão de ser humano como ser determinado (e, portanto, separado
de seu campo) em detrimento de uma compreensão de ser humano como uma totalidade
indivisível, a qual não se restringe unicamente ao transtorno e, além disso, o transcende como
parte característica do sujeito. A seguir, veremos como essa totalidade se manifesta como
fenômeno através da análise narrativa dos Casos Clínicos 2 e 3, a partir da qual discutimos a
prática da Gestalt-Terapia.
6.3.1 Análise Narrativa – Caso 2
O caso da criança RD demonstra de forma nítida como estão imbricados o organismo e
o meio em que está inserido e de que forma o seu contexto vivencial (objeto intencional
transcendente) foi fundamental para sua transformação frente ao mundo. Sem a mudança
efetiva em sua realidade, RD não teria conseguido enxergar uma importante faceta da vida: o
seu lado bom. Assim, mesmo que seja enfática a eficiência de seu tratamento psicoterapêutico,
o que se destaca neste caso, inclusive pelas autoras do artigo, é a mudança em seu campo, que
transcende todo o processo.
Desde o início da psicoterapia, através da visualização da caixa de areia – em que RD
representa seus sentimentos –, percebemos o embate em que vive a criança, a qual busca se
defender do mundo. É notório que o ajustamento criativo possível naquele momento para RD
se constituía como disfuncional, pois gerava ansiedade, medo, angústia e prejudicava suas
143
interrelações. É compreensível que ele tenha desenvolvido essas formas de ajustamento
considerando o contexto em que esteve inserido: a situação de rua, a violência e a negligência
por parte de seus pais biológicos. Dessa forma, apesar de ser considerado um ajustamento
criativo disfuncional, destacamos que era o possível para ele diante da realidade que enfrentava.
Nessa perspectiva, de acordo com Frazão (2015, p. 92, grifos do autor),
A escolha feita pela pessoa é sempre a escolha que ela, naquela circunstância,
com aquela experiência pôde fazer. A escolha feita foi em função de uma
necessidade que considero absolutamente verdadeira e legítima: a de
sobreviver como indivíduo mantendo a relação com o outro. Essa escolha se
constitui num ajustamento criativo que pressupõe o princípio da pregnância,
ou da boa forma, da psicologia da Gestalt, de acordo com a qual a organização
psicológica será sempre tão “boa” quanto às condições reinantes o permitirem
(Kofka, 1975, p. 121). O princípio da pregnância é o pressuposto do conceito
de autorregulação organísmica da Gestalt-terapia, segundo o qual o organismo
fará o melhor que pode para se regular dados simultaneamente suas
capacidades e recursos do ambiente (Latner, 1973). As respostas adaptativas
necessárias à sobrevivência que observamos em funcionamento não saudável
resultam de processos de autorregulação organísmica, sendo (na origem)
ajustamentos criativos e constituindo aquilo que é possível.
É somente a partir da possibilidade de acolhimento por parte de seus pais adotivos e
também da abertura para expressão emocional sem julgamento em terapia que RD começa a
externalizar o sofrimento físico e psíquico que o acompanhava desde o início de sua vida. Essa
abertura possibilitou a fluidez da fronteira de contato da criança que, a partir disso, encontrou
novas formas de ressignificar a sua privação – tanto material, quanto afetiva/emocional
(BIANCHI; KUBLIKOWSKI, 2018).
Ao fim do processo de adoção, RD vivencia um movimento de centralização e
integração de partes, em que os objetos de seu meio/campo/mundo são organizados de forma
mais harmônica – em que há possibilidade de fechamento de gestalten através da disposição de
cada coisa em seu lugar. Esse processo também passa a ser demonstrado pela criança, ao longo
do tempo, ao dispor os objetos na caixa de areia (vide as figuras trazidas na descrição do caso
clínico apresentada no capítulo anterior).
Esse processo de mudança de RD (a centralização e integração dos elementos) desagua
numa melhor regulação afetiva da criança, que, a partir disso, além de vivenciar a diminuição
de seus momentos agressivos, passa a expressar as suas emoções de maneira mais saudável e a
se relacionar melhor com outras crianças (BIANCHI; KUBLIKOWSKI, 2018). Isso, no entanto,
144
não quer dizer que RD não apresentasse mais medo e ansiedade, todavia, significava que ele
desenvolveu recursos mais funcionais para lidar com possíveis emoções emergentes que
poderiam desestruturar sua personalidade e/ou reduzir a sua confiança no ambiente.
Sob a ótica do conceito de transfenomenalidade, compreendemos que essa integração
e centralização vivenciada por RD foi imprescindível para a abertura de um campo de
possibilidades mais saudável para a criança. Diante disso, consideramos, então, que a criança,
ao fim do processo terapêutico, já estando em sua nova vida e novo lar, pode vivenciar o que
chamamos de cura na Psicologia e gestalt plena na Gestalt-Terapia. Essa plenitude da gestalt é
evidenciada pela relação transfenomenal entre organismo-meio.
A respeito dessa noção de cura da Gestalt-Terapia, Perls, Hefferline e Goodman (1997,
p. 46, grifos dos autores) ressaltam o seguinte:
[...] Trabalhando a unidade e a desunidade dessa estrutura da experiência no
aqui e agora, é possível refazer as relações dinâmicas da figura e fundo até que
o contato se intensifique, a awareness se ilumine e o comportamento se
energize. E o mais importante de tudo, a realização de uma gestalt vigorosa
é a própria cura, porquanto a figura de contato não é apenas uma indicação
da integração criativa da experiência, mas é a própria integração.
Nesse ínterim, um dos objetivos almejados pela Gestalt-Terapia em sua prática clínica
é a possibilidade de realização de uma gestalt plena e, portanto, passível de cura, onde gestalten
abertas (situações inacabadas) podem ganhar um fechamento (desfecho). Isso nos remete à
integração da desunidade mencionada pelos autores na citação. Essa integração comporta o
processo de formação da unidade necessária para transformação do conteúdo dissolvido em
partes num todo muito mais vigoroso, pleno e, consequentemente, mais saudável para a pessoa,
a qual se orienta sempre para a totalidade. Podemos ver mais detalhes desse processo de cura
na análise narrativa do Caso 3.
6.3.2 Análise Narrativa – Caso 3
A partir do que já discutimos até aqui, podemos ver como os conceitos da Gestalt-
Terapia se entrelaçam ao de suas bases, performando a prática que lhes confere vida e, ao
mesmo tempo, condicionando suas teorias às realidades humanas. Consideramos o conceito de
145
transfenomenalidade como o conceito chave dessa discussão, pois é um termo que abriga essas
relações teóricas encontradas e a prática em si da Gestalt-Terapia como um todo. Diante da
análise narrativa do Caso 3 veremos de forma mais direta como alguns conceitos se entrelaçam,
se unindo ao conceito de transfenomenalidade, que ganha aplicabilidade através da prática
clínica e psicoterapêutica da Gestalt-Terapia.
Um dos principais conceitos que será evidenciado nessa relação intrínseca entre teoria
e prática é o conceito de self, que tal como o apresentamos no terceiro capítulo constitui a
totalidade presente do indivíduo na fronteira de contato; e como discutido neste capítulo, se
refere à personalidade ou subjetividade da pessoa, que é dinâmica e pode mudar de acordo com
as circunstâncias que esta vivencia. A respeito desse movimento dinâmico, Perls, Hefferline e
Goodman (1997, p. 179, grifos dos autores) afirmam que “[...] não se deve pensar o self como
uma instituição fixada; ele existe onde quer que haja de fato uma interação de fronteira, e
sempre que esta existir. Parafraseando Aristóteles, ‘quando se aperta o polegar, o self existe no
polegar dolorido’”.
O que também temos de atentar, quando retomamos o conceito de self, além da sua
dinamicidade, é para a compreensão deste como um processo de unificação, em que a totalidade
da vida dos sujeitos se expressa, e não como uma estrutura separada por partes, ou seja,
fragmentada. Diante isso, se assumirmos esta segunda postura, que impede a compreensão do
sujeito tal qual ele é e se apresenta, corremos o risco – como psicólogos e até mesmo na vida
cotidiana – de fragmentar as pessoas.
Um exemplo desse movimento ocorre quando nos deparamos com um diagnóstico de
transtorno mental, por exemplo, em que podemos acabar reduzindo a totalidade da pessoa a
esse transtorno (parte). Esse modo de compreender o self desagua em sua repartição, pois
passamos a enxergar, então, um self “quebrado”, e diante dessa visão limitada,
consequentemente, perdemos a possibilidade de uma visualização genuína do que a pessoa tem
a oferecer. Nesse sentido, além de estar distante da redução fenomenológica, ficamos
impossibilitados de oferecer um feedback livre de julgamentos e uma escuta clínica qualificada.
O Caso 3 nos mostra a superação dessa visão fragmentada. Vemos, nesta situação, uma
mulher adulta (Paula) que recebe um diagnóstico de fobia social e que, no entanto, não se
aniquila no próprio medo, tendo, por iniciativa própria, a necessidade de mudança, o que a leva
a buscar a psicoterapia. Na relação psicoterapêutica, a psicóloga somente conseguiu enxergar
as potencialidades de Paula porque se despiu dos prováveis julgamentos que teria ao se deparar
com uma pessoa com fobia social. A terapeuta não formulou hipótese alguma, uma vez que o
146
próprio movimento de awareness de Paula iria denunciar as fontes do problema (situação
inacabada).
A psicóloga lida com o tratamento de Paula baseada no que Frazão (2015) chama de
pensamento diagnóstico processual. Essa postura diagnóstica pode ser aplicada
independentemente do diagnóstico anterior de Paula, pois parte do pressuposto da importância
de não tornar o diagnóstico mais um rótulo fixo/permanente para o cliente. Pelo contrário,
entendemos este, sob a ótica da Gestalt-Terapia, como um movimento fluído a ser percorrido
durante a terapia e que, por este motivo, está sujeito a mudanças e constante atualização,
considerando como a pessoa está a cada momento. Acerca desse processo de diagnóstico em
Gestalt-Terapia, Frazão (2015, p. 94, grifos do autor) explica que
Ao longo do processo terapêutico, constantemente nos perguntamos o que está
acontecendo e a serviço do quê (para quê). No pensamento diagnóstico
processual, além de identificarmos os ajustamentos disfuncionais – que por
tenderem a ser padronizados e repetitivos perderam sua natureza criativa –,
devemos identificar os ajustamentos criativos funcionais, que nos remetem às
possibilidades e potencialidades de nossos pacientes. Esse diagnóstico deve
acompanhar o processo terapêutico levando em consideração o crescimento
do paciente e suas mudanças ao longo do tempo e na sua relação consigo e
com o outro. É por isso que, em lugar de diagnóstico, prefiro falar em
pensamento diagnóstico processual.
Nesse ínterim, para a Gestalt-Terapia, a doença é compreendida como uma interrupção
ou inibição no processo de ajustamento criativo do indivíduo desaguando em bloqueios do
ciclo do contato. Para Ribeiro (2007 apud ALCÂNTARA; MENDONÇA, 2010 p. 19), existem
alguns sinais da ocorrência de um ciclo de contato pleno, que são: fluidez, sensação,
consciência, mobilização, ação, interação, contato final, satisfação e retirada. Além destes
sinais, há também os bloqueios do ciclo do contato, que podem tomar diferentes formas:
fixação, dessensibilização, deflexão, introjeção, projeção, proflexão, retroflexão, egotismo e
confluência21.
Considerando o caso de Paula, o que havia acontecido com ela, precisamente, consistia
no bloqueio da fluidez do contato, causando uma fixação da energia mobilizada, que desaguava
21 Neste trabalho, não objetivamos nos deter na explicação dos sinais de contato pleno ou bloqueios do
ciclo do contato. Pretendemos somente explanar quais desses sinais e bloqueios foram vivenciados pela
paciente relatada no Caso 3 durante a intervenção clínica.
147
no tremor excessivo diante das outras pessoas e na paralização diante da vida (ALCÂNTARA;
MENDONÇA, 2010). Paula, na tentativa de manutenção da relação com o outro, se viu diante
de um impasse, pois sentiu-se na obrigação de escolher entre sustentar sua autonomia diante do
próprio self ou manter sua relação com aqueles que a cercavam: a igreja, as amigas, a
comunidade etc. Não encontrando outra maneira de equilibrar essa situação, desenvolveu uma
forma disfuncional de ajustamento criativo.
Vale ressaltar que não é porque ocorreu uma fixação ou inibição no processo de
ajustamento que ele deixou de ocorrer, pelo contrário, ao passo que o ajustamento criativo de
Paula passou pelo bloqueio do ciclo do contato pleno, ela desenvolveu uma forma de
ajustamento criativo disfuncional, que neste caso se configurou como uma fobia social,
impossibilitando o fechamento da gestalt.
A respeito da fixação e inibição do ciclo do contato de Paula, a terapeuta explica:
Podemos observar no diálogo relatado que Paula teve um choque ao ser
flagrada cometendo um ato que era considerado pecaminoso pela sua Igreja e
pelos membros da sua comunidade mais próxima, inclusive pela sua família.
O “olhar reprovador” das amigas acentuou sua profunda mobilização
emocional – a vergonha, e com esse sentimento ela não pôde fazer nada até
agora. Estava mobilizada por intensa emoção de vergonha e revolta e fixou-
se nessa mobilização, permanecendo sem realizar nenhuma ação
(ALCÂNTARA; MENDONÇA, 2010, p. 25).
Além disso, ainda de acordo com as autoras Alcântara e Mendonça (2010, p. 23, grifos
dos autores), “[...] a vivência atual apresentada pela cliente – a fobia ao julgamento do outro –
indica que houve e há elementos no campo social que configuram sua vivência fóbica no
presente”. Neste ponto, as autoras retomam o ocorrido com Paula há 7 anos, quando suas amigas
a encontraram mudada (com cabelo curto, vestindo calça e camiseta), e esse evento gerou o
princípio de sua fobia social. Isso demonstra como o que aconteceu no passado se configura no
atual presente de forma ativa em sua vida, e também evidencia como algo “externo” à Paula foi
capaz de produzir um sintoma tão forte e tão presente subjetivamente. Este exemplo nos
esclarece de maneira pragmática o conceito de aqui-agora, além da relação campo-organismo-
ambiente implícita no conceito de transfenomenalidade e na interligação dos campos animal-
social-físico da Gestalt-Terapia.
Sob a ótica humanista do ser-no-mundo, a Gestalt-Terapia busca enxergar as
potencialidades da pessoa frente à sua realidade. Isso nos remete ao fato de que Paula, mesmo
148
tendo vivenciado por tanto tempo esse transtorno, foi capaz de se autorregular de uma forma
surpreendente, pois, ao longo do processo terapêutico, ela foi tomando consciência (awareness)
dos aspectos vivenciais vinculados ao seu transtorno, sendo, a partir disso, capaz de mobilizar
sua energia para se organizar internamente e mudar. Isso possibilitou a ampliação da visão de
campo de Paula, que antes não conseguia perceber meios de sair daquela situação. Diante dessa
ampliação, ela passou a enxergar assertivamente as ferramentas do ambiente necessárias a essa
mudança. Podemos observar esse movimento no seguinte recorte do diálogo da terapeuta com
Paula em psicoterapia:
C: [...] a Paula de antes não fazia isso (referindo-se novamente à sua iniciativa
de conversar com a gerente da loja).
T: Que negócio é esse que você está falando? Que Paula é essa de antes?
C: A Paula de antes de fazer terapia.
T: Tem uma Paula antes de fazer terapia e outra depois...
C: Tá vendo? (pega uma foto da carteira de identidade, põe ao lado do rosto)
Olha aqui, não é a mesma pessoa!
T: Como é essa pessoa da foto?
C: Antes de sair da Igreja era ainda pior!
T: Pior como?
C: Tem uma Paula que é retraída, você tem que ver as fotos de quando eu
ainda frequentava a Igreja. Não parece eu!
T: Paula, tem três momentos que você está falando. Um quando você
frequentava a Igreja, outro quando você saiu da Igreja, e o terceiro agora, que
você começou a terapia (a Terapeuta organiza a fala da cliente, visando com
a organização do discurso, a organização da vivência).
C: (balança a cabeça concordando com a terapeuta)
T: Nesses três momentos está você... Mas parece que você passou por duas
mudanças muito significativas, uma quando decidiu parar de frequentar a
Igreja, e outra mudança agora, quando você voltou a estudar e trabalhar. Você
concorda com isso?
C: Sim, sou eu nesses três momentos... mas me sinto diferente... não estou
certa de que sou capaz... (referindo-se a continuar as entrevistas de emprego)
... mas parece que eu posso sim... porque sou eu que estou fazendo tudo agora!
T: Você que está fazendo o quê?
C: Sou eu quem estou indo pra faculdade. Sou eu que fui à entrevista para
meu emprego... (ALCÂNTARA; MENDONÇA, 2010, p. 30-31, grifos dos
autores).
149
A partir da mudança de atitude de Paula, percebemos que ela passou a se sentir no
processo, estando completamente consciente do próprio movimento, no aqui e agora. Além de
conscientizar-se dos fatores que geraram a sua fobia, também foi capaz de conscientizar-se
sobre as formas que foi adquirindo durante essa constante dinâmica de figura-fundo, em que
figuras diferentes – do seu próprio self – foram emergindo a cada momento, e os fundos foram
sendo revelados, retratando a totalidade de suas vivências. A cura de Paula, portanto, se deu
como uma consequência de seu próprio processo de mudança (ALCÂNTARA; MENDONÇA,
2010).
Repetimos que a cura surpreendeu até mesmo a terapeuta, que não esperava
de Paula a mudança tão rápida. O processo psicoterápico nos leva ao
inesperado, pois o potencial do cliente é algo inalcançável, cujo limite nos
escapa. É certo que a cura mostrou-se no contexto continente das sessões, sob
as intervenções apoiadoras da Confirmação, Presença e Inclusão exercitadas
pela terapeuta no processo. Mas foi igualmente gerada do potencial criativo
da própria cliente (ALCÂNTARA; MEDONÇA, 2010, p. 34).
Diante disso, no que se refere à prática clínica da Gestalt-Terapia, é importantíssima a
visualização da própria relação terapêutica como uma gestalt. Para além do contexto da pessoa,
a terapia constitui um espaço de criação e desenvolvimento de potencialidades, neste sentido,
o desenvolvimento do contato – via pela qual ocorre a awareness – é fundamental. Assim
sendo, a terapia em si se configura como um espaço necessário a esse desenvolvimento, e a
relação terapêutica genuína, que contempla a confiança, a autenticidade e a aceitação
incondicional, é uma própria gestalt.
A partir dessa compreensão da relação terapêutica como uma gestalt, podemos
entender melhor como a relação terapeuta-cliente se configura como um ambiente potencial
para a experimentação, que comporta o desabrochar de possíveis técnicas, experimentos e
exercícios (conceitos explicados no terceiro capítulo deste trabalho) que visam à tomada de
consciência e ampliação da fronteira de contato.
No que concerne a isto, Perls, Hefferline e Goodman (1977, p. 47) reforçam o
entendimento de que “[...] a única via de solução de um problema humano é a invenção
experimental”. Com base nesse postulado, entendemos que foi a partir da invenção
experimental que Leonardo (Caso 1), RD (Caso 2) e Paula (Caso 3) puderam vivenciar a
ampliação de seu campo de possibilidades e, consequentemente, da sua consciência em relação
a própria subjetividade e a própria vida.
150
Dessa forma, a experimentação se constitui como principal ferramenta de trabalho do
gestalt-terapeuta frente à subjetividade e às vivências das pessoas, sendo a via mais utilizada
no que se refere ao trato das neuroses e ansiedades humanas (PERLS; HEFFERLINE;
GOODMAN, 1997). No que se refere à vivência humana em sua característica fenomenológica
de “coisa em si”, podemos dizer que a experimentação, sob a ótica da transfenomenalidade,
vem a configurar um fenômeno de ser que é, o qual permeia toda a vida, performando um modo
de ser completamente único e singular. Nessa perspectiva, é possível compreender que a
experimentação adquire uma forma comum tanto na terapia quanto no cotidiano, em que a vida
acontece e é por nós experimentada.
Considerando toda a discussão realizada neste trabalho, podemos perceber, a partir de
cada uma das categorias de análise, a exploração em profundidade dos objetivos almejados, que
tiveram como base primordial a visão de homem-mundo e a prática da Gestalt-Terapia. Como
apontamos em nossa discussão, essa visão e prática remetem intrinsecamente às bases
filosóficas, epistemológicas e teóricas da abordagem gestáltica e, além disso, a um movimento
epistemológico primário dentro da Psicologia como ciência. Esse movimento diz respeito à
separação entre os tipos de ciência (explicativa e compreensiva) e à dicotomia entre
objetividade e subjetividade.
Após esse movimento, surge o que poderíamos chamar de movimento secundário na
Psicologia, este diz respeito a sua orientação sutil e intrínseca para compreensão do ser humano
em sua totalidade. Tal orientação foi sendo destrinchada durante todo esse trabalho e, mais
especificamente, na nossa primeira categoria, em que esse movimento se torna ainda mais
evidente estando sujeito à análise pragmática.
Um ponto que merece destaque no nosso trabalho é que podemos perceber que, além da
aproximação epistemológica, há uma unidade equivalente entre a Gestalt-Terapia, que é foco
de nosso trabalho, e as perspectivas gestálticas que lhe fornecem substrato: a Fenomenologia
Existencial e a Psicologia da Gestalt. Além dessas, também temos a Abordagem Centrada na
Pessoa de Carl Rogers, com a qual podemos enxergar certa aproximação, consideramos que
essas aproximações e equivalências são possíveis tanto pela visão de homem-mundo dessas
perspectivas como pela sua aplicação na prática.
Além desses fatores, o momento em que a prática em si se revela mostrou-se deveras
emocionante, pois proporcionou o olhar sobre como o gestalt-terapeuta atua e enxerga o ser
humano no mundo, oferecendo aspectos reais da vida cotidiana em que o conceito de
151
transfenomenalidade pode ser evidenciado para só posteriormente ser aplicado à compreensão
psicoterapêutica.
Por fim, chegamos à conclusão de que o que mais importa, diante de tamanhas
teorizações, é o fenômeno que se revela. Diante disso, ressalta-se a importância de que toda e
qualquer teoria esteja condicionada ao desabrochar desse fenômeno, tal qual corresponde ao ser
humano, mas, para além dele, se performa na transcendência e amplitude de sua existência.
152
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema da nossa pesquisa teve como figura principal a prática clínica da Gestalt-Terapia
partindo do resgate de suas bases epistemológicas e teórico-filosóficas no que concerne à sua
visão de homem-mundo. A necessidade de se abordar esse tema surgiu do incômodo gerado,
ao longo dos anos de graduação, diante da fragmentação do ser humano em partes, tanto na
vida como dentro da própria Psicologia – a qual deveria estar comprometida, desde o início,
com a realidade daquele que ela se propõe cuidar, e não com seus postulados teóricos.
Nosso objetivo geral foi analisar a aplicabilidade prática da Gestalt-Terapia,
considerando suas origens e ramificações, que abrigam suas bases epistemológicas, filosóficas
e teóricas e, consequentemente, a sua visão de homem-mundo, que desagua no conceito de
transfenomenalidade postulado por Kohler.
Para chegar a isto, tivemos como objetivos específicos investigar as fronteiras
epistemológicas entre objetividade e subjetividade no âmbito das ciências e da Psicologia;
também evidenciar, através da exploração da concepção de homem-mundo da Gestalt-Terapia,
as equivalências e ambivalências existentes entre a Psicologia da Gestalt e a Gestalt-Terapia,
considerando seus pressupostos filosóficos, a Fenomenologia, o Existencialismo e o
Humanismo; e, por fim, identificar, através do conceito de transfenomenalidade de Kohler, qual
a implicância da concepção de homem-mundo da Gestalt-Terapia na produção do
conhecimento e na prática clínica.
Sendo assim, para responder aos objetivos definidos, estruturamos o trabalho da
seguinte maneira: no primeiro capítulo, tratamos das definições dos tipos de ciência e seus
respectivos objetos de estudo, decorrente da diferenciação entre objetividade e subjetividade,
buscando trazer as principais perspectivas psicológicas e seus caminhos metodológicos. Esse
capítulo possibilitou uma contextualização histórica e epistemológica da Gestalt-Terapia no que
se refere à produção de conhecimento dentro da Psicologia como uma ciência humana.
No segundo capítulo, discutimos as três principais vertentes da Psicologia, a Psicanálise,
o Comportamentalismo e a Psicologia Humanista, a fim de situar, mais uma vez, a Gestalt-
Terapia, porém, desta vez, aliada a última dessas vertentes, que foi, também, o seu berço. Esse
resgate permitiu encontrar a origem da concepção de homem-mundo da Gestalt-Terapia como
uma abordagem que busca enxergar o homem como centro e, com este posicionamento,
evidencia o ser humano em sua totalidade.
153
O terceiro capítulo foi aquele que trouxe o acervo completo das principais bases
epistemológicas, filosóficas e teóricas da Gestalt-Terapia, com o objetivo de discutir a fundo a
sua concepção de homem-mundo, com o intuito de, posteriormente, analisar as equivalências e
ambivalências entre a abordagem gestáltica e estas bases, desta vez sob o enfoque prático.
A nossa pesquisa foi construída a partir do método bibliográfico, qualitativo e analítico-
crítico sob a ótica da Pesquisa Narrativa, da Análise de Conteúdo e do Pragmatismo Filosófico.
Fizemos uma exploração de material com vistas a levantar boas referências que trouxessem
fundamentação a nossa discussão e, também, realizamos uma pesquisa narrativa visando o
acesso a casos clínicos que retratassem uma intervenção de base gestáltica. Após esse processo
de exploração de material e pesquisa narrativa, foram selecionados três artigos científicos em
português para análise.
A partir disso, utilizamos a análise de conteúdo como método de análise para estruturar
a nossa discussão, que foi elaborada em três categorias. Somado a esse processo, aplicamos o
pragmatismo filosófico como pressuposto fundamental da discussão fatual, que toma os fatos
como princípios e condiciona a teoria à prática. Os três casos clínicos selecionados serviram de
base para o alcance do objetivo geral desse trabalho, pois trouxe a prática clínica de base
gestáltica e existencial-fenomenológica como figura principal, onde pudemos aplicar a análise
pragmática. Nesse ínterim, podemos refletir sobre como a prática muitas vezes acaba refletindo
a teoria e, no entanto, concomitantemente a transcende.
Com essa pesquisa, compreendemos que a totalidade da vida humana se caracteriza, em
sua gama de multiplicidades, como um fator complexo e, muitas vezes, indizível, o que torna a
Psicologia essa ciência magnífica e cheia caminhos diferentes a trilhar. Entretanto, é justamente
pela amplitude desses caminhos e da multiplicidade que lhe perpassa que essa ciência humana
pode se consolidar como uma ciência legítima, pois, em alguns níveis, ela conseguiu alcançar
a subjetividade humana. Esse trabalho pode mostrar uma parte desse alcance, porém, além
disso, trouxe alguns desafios a serem vencidos. Um desses desafios é a possibilidade de diálogo
diante do que mais importa: o ser humano em sua totalidade.
Diante dos materiais analisados – as referências bibliográficas e os três casos clínicos –
percebemos a importância desse trabalho no que diz respeito ao resgate da prática como
principal fator de avaliação no que se refere a um pressuposto fundamental da Psicologia
Humanista e da Gestalt-Terapia: ter o homem como centro. Sob essa ótica, frisamos, mais uma
vez, a necessidade da teoria tomar seu norte a partir do fenômeno humano e não o contrário, e
é por isso que escolhemos discutir a prática da Gestalt-Terapia.
154
Visualizamos que, em muitos sentidos, a prática corresponde à teoria e, por isso,
situamos o conceito de transfenomenalidade de Kohler como um ponto central dessa
correspondência. Aliás, se temos uma ciência que busca ser aplicada à vida das pessoas, esta
deve buscar a compreensão mais fidedigna possível daquilo que procura estudar e,
consequentemente, intervir, considerando as multiplicidades envolvidas na relação dessas
pessoas com o mundo.
Nessa pesquisa, notamos que a Psicologia, com sua visão de homem-mundo atuando na
prática, aproxima-se de seu objetivo de ser fidedigna à pessoa que lhe perpassa. Contudo, em
outros sentidos, como, por exemplo, diante das disputas epistemológicas, a Psicologia chega a
correr o risco de retirar o homem do centro – para colocar a si mesma no centro –, fortalecendo
a dicotomia entre objetividade x subjetividade e, ainda mais gravemente, a repartição do homem
em fragmentos que não constituem a totalidade dele mesmo.
Diante disso, a nossa pesquisa se configura como uma tentativa de evidenciar um
caminho possível em Psicologia que a conduza à compreensão do sujeito (humano) como uma
unidade/totalidade. Para tanto, foi necessário enfatizar os pontos de equivalência científica e
paradigmática entre as abordagens psicológicas, tanto em relação ao todo da Gestalt como no
que se refere a algumas das principais vertentes da Psicologia e, também, demonstrar como a
prática (empírica) nos revela esse ponto de convergência, o qual traduz a noção de totalidade
(humana). Sendo assim, tanto o ser humano quanto a Psicologia são um “todo que vai muito
além da soma das partes”, essa totalidade se revela como fenômeno e transcende qualquer soma
possível entre seus elementos constituintes.
Além desses aspectos, conseguimos identificar, ainda, outra faceta importante do nosso
trabalho, que diz respeito a como esse estudo pode servir de norte para uma análise/reflexão
acerca da aplicação prática da Gestalt-Terapia e de seus conceitos na produção do conhecimento
e, consequentemente, na atuação clínica e psicoterapêutica.
Por fim, esperamos que este passo dado na Psicologia e na Gestalt-Terapia – em nome
do homem como centro e como totalidade – transcenda os horizontes traçados e ganhe a
imensidão que lhes é merecida a partir de novos estudos e análises comprometidos com as
subjetividades e multiplicidades humanas dentro desta área magnífica que é a ciência
psicológica.
155
REFERÊNCIAS
ALCÂNTARA; Joseane de; MENDONÇA; Marisete Malaguth. Fobia Social: o olhar da
Gestalt-Terapia. Um estudo de caso. Revista da Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 22, n. 1,
p. 3-35, jul. 2010. Disponível em: https://itgt.com.br/wp-
content/uploads/2013/06/TCC_Joseane-de-Alc%C3%A2ntara.pdf. Acesso em: 22 jun. 2019.
ARENHART, Paula; LUCAS FREITAS, Joanneliese de. A Temporalidade do Aqui-e-Agora
Gestáltico: implicações Teóricas e Práticas. Revista da Abordagem Gestáltica, Goiânia, v.
22. n. 1, p. 39-48, jan-jun. 2016. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672016000100006.
Acesso em: 17 out. 2019.
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2004.
BIANCHI, Daniela; KUBLIKOWSKI, Ida. Efetividade da clínica gestáltica no tratamento do
trauma infantil: estudo de caso. Revista Promover e Inovar em Psicologia da Saúde,
Lisboa, p. 251-258, jan. 2018. Disponível em:
http://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/6185/1/12CongNacSaude251.pdf. Acesso em: 22
jun. 2019.
BRANCO; Paulo Coelho Castelo; CIRINO, Sérgio Dias. Funcionalismo e Pragmatismo na
Teoria de Carl Rogers: apontamentos históricos. Revista da Abordagem Gestáltica,
Goiânia, v. 22, n. 1, p.12-20, jan-jun. 2016. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672016000100003.
Acesso em: 13 mar. 2019.
CARVALHO; Vitor Orquiza de; MONZANI, Luiz Roberto. Sobre as origens da concepção
freudiana de ciências da natureza. Sci. Stud, São Paulo, v. 13, n. 4, p. 781-809, set-dez. 2015.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662015000400004. Acesso em: 15 maio
2019.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
CHOLFE, Jonas Fornitano. Experiência e Natureza: a Teoria da Gestalt entre a ciência e a
fenomenologia (Experiência e Natureza no Gestaltismo). Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, v. 19,
n. 2, p. 165-192, jul-dez. 2009. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/554-
Texto%20do%20artigo-1050-1-10-20170207.pdf. Acesso em: 14 ago. 2019.
156
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. ed.
Porto Alegre: Artmed, 2008.
EYSENCK, Hans J. Personality and Experimental Psychology: The Unification of
Psychology and the Possibility of a Paradigm. Journal of Personality and Social
Psychology, Washington, v. 73, n. 6, p. 1224-1237, 1997. Disponível em:
https://psycnet.apa.org/record/1997-42257-007. Acesso em: 26 nov. 2019.
FERREIRA, Arthur Arruda Leal. O Pragmatismo Jamesiano e a Psicologia: de uma relação
histórica a uma ferramenta atual. Cognitio-estudos: Revista Eletrônica de Filosofia, São
Paulo, v. 7, n. 2, p. 185-190, jul-dez, 2010. Disponível em:
http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo. Acesso em: 13 mar. 2019.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
FIGUEROA, Mauro. As técnicas em Gestalt-terapia. In: FRAZÃO, Lilian Meyer;
FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo
em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2015. p. 103-128.
FONSECA, Afonso Henrique Lisboa da. Apontamentos para uma história da Psicologia e
da Psicoterapia Fenomenológico Existencial dita humanista. Maceió: Pedang, 2006.
FRANCO, Sérgio Gouvêia. “Dilthey: compreensão e explicação” e possíveis implicações
para o método clínico. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 15, n. 1, p. 14-26,
mar. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
47142012000100002. Acesso em: 07 jan. 2019.
FRAZÃO, Lilian Meyer. Compreensão clínica em Gestalt-terapia: pensamento diagnóstico
processual e ajustamentos criativos funcionais e disfuncionais. In: FRAZÃO, Lilian Meyer;
FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo
em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2015. p. 83-102.
FRAZÃO, Lilian Meyer; FUKUMITSU, Karina Okajima (Orgs.). A clínica, a relação
psicoterapêutica e o manejo em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2015.
FROM, Isadore; MILLER, Vincent. Introdução à edição do The Gestalt Journal. In: PERLS,
Frederick; HEFFERLINE; Ralph; GOODMAN, Paul. Gestalt-Terapia. 3. ed. São Paulo:
Summus, 1997. p. 17-30.
157
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
GARCÍA, Marta Rizo. As contribuições do pragmatismo de William James e da
fenomenologia social de Alfred Schütz à Comunicação. Matrizes, v. 3, n. 2, p. 221-225, jan-
jul. 2010. Disponível em: http://docplayer.com.br/70889398-As-contribuicoes-do-
pragmatismo-de-william-james-e-da-fenomenologia-social-de-alfred-schutz-a-
comunicacao.html. Acesso em: 20 mar. 2019.
GIUSTA, Agnela da Silva. Concepções de Aprendizagem e práticas pedagógicas. Educação
em Revista, Belo Horizonte, v. 29, n. 01, p. 17-36, mar. 2013. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982013000100003. Acesso
em: 18 jun. 2019.
GOODWIN, James. História da Psicologia Moderna. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2010.
GRANZOTTO, Marcos José Muller; GRANZOTTO, Rosane Lorena Muller. Fenomenologia
e Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 2007.
GRANZOTTO, Marcos José Muller; GRANZOTTO, Rosane Lorena Muller. Gênese
Fenomenológica da Noção de Gestalt. Revista do X Encontro Goiano da Abordagem
Gestáltica, Goiânia, v. 3 n. 10, p. 2-15, 2004. Disponível em:
http://www.igt.psc.br/Revistas/R1/Genese_fenomenologica_da_nocao_de_gestalt.htm.
Acesso em: 15 maio 2019.
GUEDES, Dilcio Dantas; LEITNER, Julieta Monteiro; MACHADO, Karine Cardozo
Rodrigues. Rompimento amoroso, depressão e auto-estima: estudo de caso. Revista Mal-
estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 8, n. 3, p. 603-643, set. 2008. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482008000300003.
Acesso em: 22 jun. 2019
HUBNER, Maria Marta Costa; MOREIRA, Márcio Borges. Temas clássicos da psicologia
sob a ótica da análise do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.
JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. O paradigma da epistemologia histórica: a contribuição de
Thomas Kuhn. Hist. cienc. saúde-Manguinhos, v. 6, n. 3, p. 609-630, fev. 2000. Disponível
em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702000000400006. Acesso em: 18 out. 2019.
158
JAMES, William. What Pragmatism Means. Vintage Books. A Division of Random House.
New York. 1948. Disponível em: http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-
books/William%20James-1.pdf. Acesso em: 31 jul. 2019.
JUNG, Carl Gustav. Espiritualidade e Transcendência. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
LIMA, Andrea de Alvarenga; DIOGO, Jean Carlo Kurpel. Reflexões sobre a afinidade de
Jung com a Fenomenologia. Revista da Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 15, n. 1, jun.
2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
68672009000100003. Acesso em: 05 nov. 2019.
MAGALHÃES, Edna Maria do Nascimento. Pragmatismo: uma filosofia da ação. Revista
Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, v. 3, n. 1, p. 42-57, 2011.
Disponível em:
http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/ano3_01/3_nascimento.pdf.
Acesso em: 06 out. 2018.
MARCELLOS, Cíntia Fernandes; ARAUJO; Saulo de Freitas. A Questão da Consciência na
Psicologia de Wilhelm Wundt. Estud. pesqui. Psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 1-14, abr.
2011. Disponível em: www.revispsi.uerj.br/v11n1/artigos/html/v11n1a16.html. Acesso em:
29 maio 2019.
MATOS, Maria Amélia. As Categorias Formais de Comportamento Verbal em Skinner. In:
Anais da Reunião Anual da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto, São Paulo, n. 21,
p. 333-341, 1991. Disponível em:
http://www.itcrcampinas.com.br/pdf/outros/as_categorias_formais_de_comportamento_verbal
.PDF. Acesso em: 25 jan. 2019.
MELO, Maria Lúcia Almeida. Contribuições da hermenêutica de Paul Ricoeur à pesquisa
fenomenológica em psicologia. Psicologia USP, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 296-306, mai.-ago.
2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0103-656420140071. Acesso em: 07 jan.
2019.
MOREIRA, Márcio Borges; MEDEIROS, Carlos Augusto de. Princípios básicos da Análise
do Comportamento. Porto Alegre: Artemed, 2007.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. São Paulo:
Cortez; Brasília: UNESCO, 2000.
159
PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e. A pesquisa narrativa: uma introdução. Revista
Brasileira de Linguística Aplicada, v. 8, n. 2, jul.-dez. 2008. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbla/v8n2/01.pdf. Acesso em: 07 jan. 2019
PATTERSON, Lewis E.; EISENBERG, Sheldon. O processo de aconselhamento. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2013.
PERES, Sávio Passafaro. A Fenomenologia de Köhler e o conceito de experiência direta.
Revista da abordagem gestáltica, Goiânia, v. 20, n. 2, p. 171-180, dez. 2014. Disponível
em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672014000200004.
Acesso em: 29 out. 2019.
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. Gestalt-Terapia. 3. ed. São
Paulo: Summus, 1997.
PERUZZO, Gisele. Os ajustamentos criativos no desenvolvimento infantil: uma visão
gestáltica. Revista IGT na Rede, Rio de Janeiro, v. 8 n. 15, p. 369-399, 2011. Disponível em:
http://www.igt.psc.br/ojs/ ISSN 1807-2526. Acesso em: 17 out. 2019.
REY, Fernando Luis González. O trabalho de campo na pesquisa psicológica e o processo de
construção da informação na pesquisa qualitativa. In: REY, Fernando Luis González.
Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Pioneira Thomson
Learning, 2002. p. 98-159.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt-terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus,
1985.
ROBERTO, Luciano da Silva. Os modos de ser do “Dasein” a partir da analítica existencial
heideggeriana. Rev. Pensamento Extemporâneo: Filosofia a qualquer tempo, ago. 2009.
Disponível em: https://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=489. Acesso em: 20 set. 2019.
ROCHA, Mariana Pereira. Possíveis caminhos para a compreensão da depressão a partir
da perspectiva da Gestalt-terapia. 2017, 125f. Monografia (Graduação em Psicologia) –
Universidade Federal de Alagoas. Campus Arapiraca. Unidade Educacional de Palmeira dos
Índios. Palmeira dos Índios, 2017.
SANTOS, Alan Ferreira dos. Um estudo epistemológico sobre a psicologia sócio-histórica.
Psicologia pt. o portal dos psicólogos, fev. 2018. Disponível em:
https://www.psicologia.pt/artigos/textos/TL0431.pdf. Acesso em: 27 maio 2019.
160
SANTOS, Fernanda Marsaro dos. Análise de conteúdo: a visão de Laurence Bardin. Revista
Eletrônica de Educação, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 383-387, maio 2012. Disponível em:
http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/291/156. Acesso em: 19 mar.
2019.
SANTOS, Leandro Assis. O fenômeno do jogo e a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer.
Intuitio – Revista do PPG em Filosofia da PUCRS, Rio de Janeiro, v. 6. n. 2, p. 102-112,
nov. 2013. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/15043. Acesso em: 20
jan. 2020.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Paris: Lés Editions Nagel, 1970.
Disponível em: http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-
1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf. Acesso em: 05 set. 2019.
SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhey Cavalcanti. A hermenêutica de Wilheim Dilthey e a
reflexão epistemológica nas ciências humanas contemporâneas. Sociedade e Estado, Brasília,
v. 17, n. 2, p. 249-281, jul.-dez. 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922002000200003. Acesso
em: 07 jan. 2019.
SKINNER, Burrhus Frederic. Verbal Behavior. Cambridge: B.F Skinner Foundation, 1957.
ZANELLA, Andréa Vieira. Atividade, significação e constituição do sujeito: considerações à
luz da psicologia histórico-cultural. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 1, p. 127-135,
2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/%0D/pe/v9n1/v9n1a16.pdf. Acesso em: 29
maio 2019.