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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ALMAS QUE VAGUEIAM NA ESTRADA FRIA: ALEGORIAS DA PASSAGEM
EM PESSACH: A TRAVESSIA
Luciana Povoa de Almeida Silva
2013
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ALMAS QUE VAGUEIAM NA ESTRADA FRIA: ALEGORIAS DA PASSAGEM
EM PESSACH: A TRAVESSIA
Luciana Povoa de Almeida Silva
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Literatura da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do
título de Mestre em Teoria Literária.
Orientador: Professor Doutor João
Camillo Penna.
Rio de Janeiro
2013
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Almas que vagueiam na estrada fria: alegorias da passagem em Pessach: a travessia
Luciana Povoa de Almeida Silva
Orientador: Professor Doutor João Camillo Penna
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Teoria Literária.
Aprovada por:
________________________________________________________________
Presidente, Professor Doutor João Camillo Penna - UFRJ
________________________________________________________________
Professora Doutora Mary Kimiko Guimarães Murashima - UERJ
_________________________________________________________________
Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves - UFRJ
_________________________________________________________________
Professor Doutor Eduardo Coelho – UFRJ, suplente
_________________________________________________________________
Professora Doutora Venus Brasileira Couy – UFRJ, suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
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SILVA, Luciana Povoa de Almeida.
Almas que vagueiam na estrada fria: alegorias da
passagem em Pessach: a travessia / Luciana Povoa de
Almeida Silva – Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras,
2013.
xiii.91f.
Orientador: João Camillo Penna.
Dissertação (Mestrado) – UFRJ / FL / Programa de Pós
Graduação em Ciência da Literatura, 2013.
Referências bibliográficas: f. 102-104.
1. Cony, Carlos Heitor. 2. Literatura. 3. Teoria Literária.
I. Penna, João Camillo. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura. III. Título.
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A Oskar e Emilie S., pela possibilidade da pessach oferecida.
Às Clarices de minha vida, por demonstrarem os vértices vitais.
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Sed pleni omnes sunt libri, plenae sapientium voces, plena exemplorum vetustas; quae
iacerent in tenebris omnia, nisi litterarum lumen accederet.
(CÍCERO, Pro Archia)
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Agradecimentos
O amor impede a morte, escreveu Clarice ao despejar a Água Viva de sua
Olympia portátil. No instante em que eu considerei a literatura frígida e sem mais razões
para os seus existencialismos – talvez pela necessidade da compreensão de sua téchne,
deixando de lado a fruição do prazer relativo à simples leitura de suas linhas e não tendo
que me ater às exegeses das entrelinhas –, Carlos Heitor Cony promoveu a travessia do
meu eu próprio e retirou a minha alma que vagava nas estradas frias do deslocamento.
Eu, que à beira de me tornar a égide do homem do imediato kierkergaardiano, tive
minha consciência realojada ao pulso ritmado da catarse literária que outrora eu tive e
estava prestes a perder. Quando o deleite pela arte em linhas e versos estava quase
escapando pelas minhas mãos – como a areia fina que foge dos dedos da criança na
praia, sobejando inocência no prazer do instante-já –, Cony impediu a queda no
precipício que leva a morte. Eu retornara ao amor à confecção literária. Saí dos meus
meses de deserto em direção à aurora que, novamente, nascia para mim. Refiz a
travessia.
Ao Carlos Heitor Cony, por impedir a causa da ruína. Pelo regalo que
sempre estará em um local privilegiado da minha biblioteca e de minha cabeceira.
Ao Professor Doutor João Camillo Penna, pela honra de seus diálogos e
orientações várias.
À Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira, por revelar as
veredas do páthos da Teoria da Literatura, desde os primórdios de minha graduação em
Literaturas, e por demonstrar a existência da kalokagathía em seus mais profundos e
singelos vértices.
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Ao Professor Doutor Eduardo Coelho, pelo auxílio.
À Professora Doutora Venus Brasileira Couy, pela disponibilidade
imediata frente a esse trabalho tanto vital quanto necessário. Obrigada por assistir ao
parto.
À Professora Doutora Mayara Ribeiro Guimarães, por compartilhar o
brilho nos olhos pela ucraniana mais brasileira que existe – a morte é pequena demais
para a magnitude da herança lispectoriana –, pelos livros-veredas e pela compreensão. A
sine qua non compreensão.
À Mary Murashima, Maryzinha, samurai das planilhas, magistra das
galáxias – tudo é demasiadamente pouco. Você está na esfera acima do tudo. Quem
sabe, um dia, algum idioma consiga adjetivar toda a magnificência que é você. Ou,
talvez, as planilhas. Enquanto isso, eu continuo dizendo em casa: “quando eu crescer, eu
quero ser igual a ela”. Não, esquece, não dá. Você cria o mundo em duas horas. É
covardia.
Ao magister Anderson de Araújo Martins Esteves: suas sinapses estão a
salvo das Erythrinidae. Não se preocupe.
À Tatiana Gandelman, judia-eclética, shel zahav. Você é o machado
dourado que o toco teme.
Aos meus amigos helênicos Michális Manóloglou, Paraskevi
Giannakou e Konstantina Karamichali, por colaborar, graciosamente, com sentido
pragmático da minha Pessach em direção ao meu retorno a casa: Σας ευχαριστώ πάρα
πολύ για όλα!
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Às águas da Lagoa Rodrigo de Freitas, indispensáveis para a dissertação
quando a necessidade de liberação de endorfina se fazia urgente: obrigada, querido skiff
Paulo Ronái por suportar a fúria dos meus músculos durante os longos e dolorosos
treinos do Remo e, mesmo assim, singrar com maestria e elegância as águas das quais
eu fazia o meu refúgio.
À família Póvoa – minha mãe, Fátima; meu pai, Luciano e meus
irmãos Marcus Vinicius e Lili –, pelo apoio incondicional desde os primeiros rabiscos
do Jardim de Infância ao fim dos meus dias. Meu general-mãe, Yiddishe Mamma, que
na austeridade de sua criação me fez a eterna busca do melhor possível. Meu pai,
Luciano¸ que, no silêncio das palavras mas na sonoridade dos gestos, construiu meu
caráter e a minha total e completa admiração e entrega pelos cavalos. Fez-me Centauro,
pois. Meu irmão Marquinho: nossa paixão pelo mar. Minha saudosa – mas sempre
presente – irmã Lili: nunca esquecerei o recado final dos seus olhos. A vida é breve
para quem já nasceu sabendo amar.
À D. Maria da Penha, por sempre acreditar na positividade e mostrar que
a amizade é uma honra de poucos, mesmo quando há seis décadas separando o nosso
nascimento.
À Fernanda, καλλιόπη μου, por cotidianamente demonstrar, a mim, a
existência da Ítaca kavafiana nos mais simples índices vitais. Porto cretense, no qual o
navio se mantém ancorado até o final. O fim inexiste. As âncoras permanecem.
Aos meus filhos e amigos de rabo, Antônia, Ártemis, Capitu, Cheid,
Clarice, Dr. Preguinho, Eduarda, Fabiana, Giuseppe, Haia, Ioannis, Lica,
Mascarada, Maria Helena, Maristela, Princesa, Sophia, Valentina (Porrinha), Zion
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e Zizi – todos Marias e Josés – que me trouxeram a liberdade e sempre me fazem
passar por cima. Fortalezas de ontem, de hoje e de amanhã.
À Chaya Lispector, eternizada na parede do meu escritório e em minhas
sinapses desde os meus treze anos de idade, por me proporcionar a descoberta do
mundo e ser o zahav meu de cada dia.
À Clarice, minha Clarice de quatro patas, por me fazer compreender a
linha retilínea entre as nossas retinas. O bambuzal da esquina sempre será o locus do
encontro dos nossos destinos.
Aos aproximados seis milhões de judeus aprisionados e mortos em Arbeitsdorf,
Auschwitz-Birkenau, Bardufoss, Belzec, Bergen-Belsen, Bolzano, Bredtvet, Breendonk,
Breitenau, Buchenwald, Chelmno, Dachau, Falstad, Flossenbürg, Grini, Gross-Rosen,
Herzogenbusch, Hinzert, Jasenovac, Kaufering, Kauen/Kovno, Klooga, Langenstein
Zwieberge, Le Vernet, L’viv, Majdanek, Malchow, Maly Trostenets, Mauthausen-
Gusen, Mittelbau-Dora, Natzweiler-Struthof, Neuengamme, Niederhagen, Oranienburg,
Osthofen, Pinkas I, Pinkas II, Plaszów, Ravensbrück, Riga-Kaiserwald, Risiera di San
Sabba, Sachsenhausen, Sobibór, Stutthof, Lager Sylt, Theresienstadt, Treblinka,
Vaivara, Varsóvia e Westerbork, por instaurarem uma nova era e um novo conceito de
memória: U’vtardemat ilan va’even, schvuyah bachalomah, ha’ir Asher badad
yoshevet, ubelibah – chomah (“E no profundo sono da árvore e da pedra, presa em um
sonho está a cidade solitária; e em seu coração – um muro).
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Resumo
ALMAS QUE VAGUEIAM NA ESTRADA FRIA: ALEGORIAS DA PASSAGEM
EM PESSACH: A TRAVESSIA
Luciana Povoa de Almeida Silva
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do grau de Mestre em Ciência da
Literatura (Teoria Literária).
Orientador: João Camillo Penna
A presente dissertação tem por objetivo investigar como o romance intitulado Pessach:
a travessia, de Carlos Heitor Cony, pode ser entendida como uma alegoria da passagem
em termos de transformação da individualidade de seu protagonista Paulo Simões – um
judeu assimilado, caracterizado pelo esvaziamento de ideais e apatia política. Para tanto,
buscar-se-á auxílio teórico em Walter Benjamin no que tange à questão da alegoria; em
Georg Lukács, para que seja possível compreender o locus do protagonista no romance
moderno; em Søren Kierkegaard, para se pensar a constituição do “si próprio” em seu
processo reflexivo de individuação, e em Giorgio Agamben, com o objetivo de se
realizar uma exegese no que diz respeito à constituição originária judaica do
personagem Joaquim Goldberg Simon e a sua dupla condição de supertestis e terstis no
decorrer do seu desenvolvimento individual. Igualmente, será abordada, de modo
sucinto, a questão do “deslocamento” em sua perspectiva teórica elaborada por Elena
Palmero González, James Clifford e Stuart Hall, para que seja possível compreender
como é realizada a constituição deslocada do protagonista do romance a ser estudado
em vias de recuperação de sua autorreflexividade.
Palavras-chave: travessia; individuação; alegoria; testemunho; transformação.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
12
Abstract
WANDERING SOULS IN THE COLD ROAD: ALLEGORIES OF THE PASSAGE
IN PESSACH: A TRAVESSIA
Luciana Povoa de Almeida Silva
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do grau de Mestre em Ciência da
Literatura (Teoria Literária).
Orientador: João Camillo Penna
Abstract: This dissertation aims at investigating the way the novel entitled Pessach: a
travessia by Carlos Heitor Cony, can be understood as an allegory of the passage in
terms of transformation of the individuality of its protagonist Paulo Simões - an
assimilated Jew, characterized by the emptiness of his ideals and political apathy. The
study solicits the help of theorists such as: Walter Benjamin regarding the issue of the
allegory; Georg Lukács, for the understanding of the protagonist’s locus in the modern
novel; Søren Kierkegaard, in order to think the constitution of "itself” in its reflexive
process of individuation; and Giorgio Agamben, with the objective of performing an
exegesis with regard to the constitution of original Jewish characters such as Joaquim
Simon Goldberg and his double condition as supertestis and terstis towards his
individual development. It will also be discussed, briefly, the issue of displacement in
its theoretical perspective as elaborated by Elena Palmero González, James Clifford and
Stuart Hall, as means of understanding how the displaced constitution of the novel’s
protagonist is accomplished in the process of his recovery his self-reflexivity.
Keywords: passage; individuation; allegory; testimony; transformation.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
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Sumário
Introdução................................................................................................................... .....14
1. Quando o contexto enuncia-se em texto: tempos de Ditadura....................................18
1.1. Pessach: a travessia em contexto......................................................................19
1.2. Panorama histórico-político...............................................................................24
2. Personagem em trânsito: a alegoria da Pessach e a constituição do herói
problemático....................................................................................................................35
2.1. Alegoria e a passagem por cima: a pessach do indivíduo.................................35
2.2. Paulo Simões: a travessia do indivíduo problemático lukácsiano ao herói de sua
própria epopeia.........................................................................................................47
3. Processos de individuação: contribuições de Walter Benjamin e Søren
Kierkegaard.....................................................................................................................54
3.1. Do restitutio ao novum: perspectivas benjaminianas........................................54
3.1.1. As teses sobre a História e a história de Pessach: a travessia...................56
3.1.2. Mnemosýne em vias de recuperação..........................................................58
3.2. Kierkegaard e a inteireza paradoxal do indivíduo.............................................60
3.2.1. Tornar-se si próprio ou o desafio da subjetivação.....................................63
3.2.2. Éthos e a consciência reflexiva..................................................................75
4. Pessach: travessia e deslocamento..............................................................................81
4.1. Vestígios de almas que vagueiam na estrada fria..............................................81
4.1.1. O aidós da sobrevivência: o duplo êxodo do deserto e a consciência do
éthos cindido........................................................................................................86
4.2. Deslocamentos reais e metafóricos: a travessia como constitutio e
(re)constitutio...........................................................................................................93
Conclusão......................................................................................................................100
Referências bibliográficas............................................................................................ 102
14
Introdução
Dentre os teóricos que investigaram a produção literária da modernidade e da
contemporaneidade, podemos destacar Walter Benjamin, Georg Lukács, Giorgio
Agamben e Søren Kierkegaard, cujos trabalhos, voltados para manifestações da arte
literária e filosófica que datam dos séculos XIX e XX, oferecem significantes reflexões
para a compreensão de boa parte dos textos literários da contemporaneidade.
O presente trabalho pretende estudar alguns aspectos trabalhados,
majoritariamente, pelos teóricos supracitados na leitura de um romance brasileiro de
1967. Trata-se da obra de Carlos Heitor Cony intitulada Pessach: a travessia. O referido
texto, ambientado nos chamados “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil,
apresenta um protagonista que assoma seus quarenta anos e percebe o vazio de sua
existência até então.
O primeiro item da reflexão aqui proposta em torno da obra de Cony volta-se,
justamente, para a realização de um breve mapeamento do contexto histórico-político
em que a narrativa se desenvolve. Com o auxílio teórico de Roberto Schwarz, na obra
Cultura e Política 1964-1969 e de diversos ensaios presentes na obra organizada por
Ferreira & Delgado, intitulada O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX, é possível construir um panorama
imagético do período em que se passa a trama envolvendo Paulo Simões e seu caminho
de profunda reflexão e de questionamentos vários sobre suas atitudes e posturas até
então.
A partir daí, propõe-se uma exegese acurada da constituição do protagonista da
obra – Paulo Simões – com o auxílio teórico de Walter Benjamin, Georg Lukács, Søren
Kierkegaard e Giorgio Agamben.
15
O segundo capítulo abarcará o conceito de alegoria desenvolvido por Benjamin
em seu estudo intitulado Origem do drama trágico alemão, buscando compreender a
alegoria como constituinte fundamental do contexto em que transita o protagonista. No
mesmo capítulo, abordar-se-ão conceitos desenvolvidos por Lukács em sua obra Teoria
do Romance, sobretudo no que diz respeito à percepção da personagem como elemento
problemático no contexto da narrativa da modernidade. Partindo da compreensão
lukácsiana acerca da constituição do herói problemático, constrói-se uma hipótese sobre
a travessia pela qual passa o protagonista, de indivíduo alienado para membro ativo de
uma coletividade. Destaca-se, dessa forma, a percepção de como o protagonista só
alcança a compreensão de si mesmo a partir de seu engajamento a essa coletividade
redentora de seus “quarenta anos de deserto”.
O terceiro capítulo da presente dissertação lidará, novamente, com a personagem
Paulo, entretanto não pela perspectiva do processo narrativo empreendido na
modernidade, mas como indivíduo em trânsito, com implicações na constituição de seu
ethos levando em conta a reconstrução de sua individualidade. Para tanto, foram
utilizados conceitos de Walter Benjamin presentes na coletânea O anjo da História e a
reflexão ontológica de Søren Kierkegaard contida no livro O desespero humano. Nessa
mesma parte do presente trabalho, buscar-se-á, igualmente, a apreciação dos temas
sobre a questão da redenção e rememoração de acordo com a ótica do messianismo
judaico e, sem dúvida, do materialismo histórico – cuja matriz teológica é inegável –
verificados na obra em contraste com o pensamento benjaminiano encontrado nas Teses
sobre a história.
Por fim, a última parte desta pesquisa volta-se para a relação entre o protagonista
e a questão de seu ethos judaico escamoteado a partir da postura de seu pai, Joaquim
Goldberg Simon, e por ele mesmo recuperado em um tenso diálogo que remete
16
necessariamente ao episódio histórico da Shoah durante a vigência do nazismo.
Paralelamente, é traçada uma relação com o conceito de deslocamento que constitui
tanto Paulo, no macroambiente da narrativa, quanto Joaquim, no encontro fundamental
entre pai e filho que, finalmente, desnudam-se nas suas escolhas individuais. Procura-se
demonstrar, por fim, como o sujeito é constituído e reconstituído a partir de seu
deslocamento, seja ele objetivo – físico, geográfico – e/ou subjetivo – como a viagem
interior e intimista pode estabelecer que o entre-lugar seja a redenção, a verdadeira
travessia individual. Para isso, conta-se, brevemente, com o apoio teórico de críticos
como Elena Palmero González, Edward Said, Stuart Hall e James Clifford para
compreender como a diáspora pós-moderna é capaz de ressuscitar,
epistemologicamente, o cerne identitário-cultural.
A travessia presente no título é a marca a ser explorada na narrativa de Cony,
uma vez que se faz alegoria constitutiva do romance e, concomitantemente, necessário
caminho para a transformação e êxodo do deserto que é a existência do protagonista até
seus quarenta anos.
17
É tempo de acabar com tanta ignomínia. Os homens que, à minha volta, preparam-se
para a luta, repelem a ignomínia que caiu sobre eles. Preferem morrer a aturar essa
ignomínia. Eu a aceito, ainda. Preparo-me para consumar, mais uma vez, a coisa
hedionda, abominável, sem sentido: o bidê.
(CONY: 2007, 196)
18
1. Quando o contexto enuncia-se em texto: tempos de Ditadura
René Bady, em sua obra intitulada Introduction à l'étude de la littérature
française, diz que “o escritor não é uma resultante, nem mesmo um simples foco
refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu
núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele
combina e cria ao devolver à realidade.” 1
Em tom crítico semelhante, Antônio Candido, em “Literatura e Sociedade”,
postula que a exegese essencial da obra só é possível ao amalgamar texto e contexto em
sua relação dialeticamente integrada. Desta feita, o que parecia absoluta e
inconciliavelmente externo – o caráter social - se faz elemento interno – as veredas
literárias stricto sensu – na consonância entre realidade e ficção. A integridade da obra
de per si não se deixa enveredar em sua plenitude em óticas divergentes em relação ao
texto, que de modo honesto e consciente, permite ser amparado – para fins de maior
compreensão fenomenológica – em seu contexto, em uma relação simbiótica e unívoca,
de acordo com o pensamento de Fausto de Macrocosmos: “tudo é tecido num conjunto,
cada coisa vive e atua sobre a outra”. 2
Mesmo sem a pretensão de se elaborar um estudo sociológico sobre a obra, a
matéria do romance se encontra em estado de intersecção relativo à ambiência social,
permitindo o pleno fluxo do significado. É nessa esfera que é possível reflet ir sobre o
romance Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony.
1 BADY, René. Introduction à l’étude de la littérature française, Éditions de La Librairie de
l’Université, Friburgo, 1943, p.31. 2 Segundo o original alemão utilizado por CANDIDO, Antônio, “... alies sich zum Ganzen webt!
/ Eins in dem andem wirkt und lebt!”. In: Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre
Azul, 2006. p. 15.
19
1.1. Pessach: a travessia em contexto
A obra em questão, publicada originalmente em 1967, narra a travessia de Paulo
Simões, um escritor carioca de boa circulação no mercado editorial, que vivencia uma
reviravolta em seu núcleo vital no dia de seu aniversário de quarenta anos. Paulo
Simões, que renega suas origens judaicas e, por consequência, seu sobrenome
“Goldberg Simon” – tornando-se, pois, um judeu assimilado – recebe a visita de Silvio,
seu ex-companheiro de serviço militar e de Vera, ambos membros de um grupo de
guerrilha, em seu apartamento na manhã em que completa quarenta anos, a fim de tentar
convencer Paulo a entrar para a luta armada.
Absolutamente contrário aos meios radicais que essa vertente da esquerda
propunha, o escritor rejeita enfaticamente a ideia, sem saber que as próximas horas
seriam responsáveis por um total redirecionamento de suas convicções de uma efetiva
práxis política, a priori de caráter involuntário. Entretanto, com o decorrer do tempo, as
ações involuntárias passam pela travessia do engajamento – o êxodo de uma realidade
com objetivos opacos em direção a firmes traçados de destinos e incumbências
pessoais: a Terra Prometida do indivíduo de per si, - na linguagem de Kierkegaard - a
subjetividade em vias de libertação.
O ano é 1966 – mais precisamente 14 de março de 1966 –, dois anos após o
golpe militar de 1964 no Brasil. É interessante, nesse âmbito, elaborar uma pequena
rememoração desse ambiente político durante o período de 1964 a, aproximadamente,
1969, tendo em vista o pressuposto de Antônio Candido evidenciado no início do ensaio
citado acima, em que o caráter externo – a conjuntura social, contextual – da obra torna-
se um composto dialeticamente íntegro ao associar-se ao caráter interno da obra – o
corpus literário.
20
Roberto Schwarz, em seu ensaio “Cultura e Política, 1964-1969”, inserido na
coletânea O pai de família e outros estudos 3, expõe de modo bastante consistente o
panorama político dessa época. Vejamos, a seguir, algumas considerações do autor que
considero de absoluta relevância para o presente estudo.
Conforme já exposto nos parágrafos supracitados, Pessach: a travessia inicia
seu enredo em 14 de março de 1966. A data do dia e do mês escolhidos pelo autor para
iniciar a travessia de Paulo Simões não é casual: foi no dia 13 de março de 1964 que
ocorreu o Comício da Central, considerado um dos mais populosos da história
brasileira, no qual o presidente João Goulart procurou se fortalecer angariando o apoio
da população para as suas propostas de transformação social, fortalecendo o seu
governo bastante enfraquecido em função da oposição declarada dos militares e da crise
na economia.
Deposto no golpe de 1964 no qual a ditadura militar instala-se, Goulart é
sucedido, através da eleição indireta de 11 de abril do mesmo ano, pelo general
Humberto de Alencar Castello Branco. Na ocasião, a luta armada ainda não se
encontrava organizada e o povo, por sua vez, mobilizava-se ideologicamente ainda de
forma morosa, sem pensar, exatamente, na possibilidade das guerrilhas. É importante
lembrar, também, que uma parcela bastante significativa da população apoiava as
diretrizes gerais promovidas pelo governo de Castello Branco. O povo vivenciava os
prováveis resultados, conforme explicita Schwarz:
Em seguida, [o povo]4 sofreu as consequências:
intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural,
rebaixamento geral dos salários, expurgo especialmente
nos escalões baixos das forças armadas, inquérito militar
na Universidade, invasão das igrejas, dissolução das
3 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969. In: O pai de família e outros estudos.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 4 Adendo meu.
21
organizações estudantis, censura, suspensão de habeas
corpus etc. (SCHWARZ: 1992, 62)
Tendo como foco a figura de Paulo Simões, alegoria5 da intelectualidade
esquerdista, é interessante ressaltar a propriedade hegemônica, na semântica de viés
cultural, dessa ala política. Muitos intelectuais de esquerda foram poupados das torturas,
prisões e longos interrogatórios no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS),
deixando tal “tratamento férrico” ser direcionado àqueles que organizavam a
proximidade comunicativa com operários, marinheiros, soldados e camponeses. Até o
momento, a esquerda florescia em um andamento excepcional em seu locus restrito,
tornando-se, desta feita, um excelente complexo mercadológico ao redimensionar a
fisiognomia artística e editorial.
Essa disposição foi sedimentada em 1964, tendo a sua duração estendida até,
aproximadamente, dezembro de 1968, já no governo de Arthur da Costa e Silva. A
partir de então, a esquerda intelectual passa a ser, também, ávida e obstinadamente
combatida pelo regime militar. Irrompe, nos centros acadêmicos e grêmios estudantis,
uma nova massa com habilidades intelectuais interessantes à esquerda, colaborando
para fortalecer a oposição ao poder do Estado: os estudantes e sua situação de
semiclandestinidade, configurando-se como uma geração compactamente anticapitalista
6.
5 A discussão sobre o conceito de alegoria será elaborada no capítulo 2 da presente monografia,
a partir do escrito de Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão. 6 É interessante ressaltar, de acordo com SCHWARZ (1992), que no período pré-64 o
pensamento de esquerda no Brasil combinava um caráter antiimperialista, com uma débil
organização no que diz respeito à luta efetiva de classes. Como exemplo disso, temos a proposta
do Partido Comunista de aliança entre a burguesia nacional e a classe trabalhadora, contra o
capital estrangeiro. Desse modo, o PC caracteriza-se muito mais pelo aspecto antiimperialista do
que pelo caráter anticapitalista. Em contraposição, conforme já exposto nos parágrafos
supracitados, a geração estudantil de grêmios e centros acadêmicos representavam, a seu modo,
a massa que vociferava contra o progresso do capital.
22
Nesse sentido, Cony elabora uma representação ficcional sutil sobre essa
temática a partir da personagem Ana Maria, filha de Paulo Simões, interna em um
colégio católico após o divórcio dos pais. A personagem em questão, através do diálogo
com o seu pai em um breve momento da narrativa, sugere em sua fala a manifestação de
um movimento estudantil em sua formação embrionária, e que virá a ser percebido
como um incômodo, uma periculosidade potencial para o regime em vigência.
- (...) A gente tem um processo infernal para tapear as
freiras. - A diretora disse que apanhou uma aluna lendo um livro
meu. O livro está lá na diretoria. - Isso foi golpe. As freiras apanharam um livro apenas,
mas há outros que entraram aqui e são lidos em rodízio. - Isso não me honra muito.
- Mas não é só você. Lemos Sartre, Faulkner, Miller... - Miller?
- Sim. Uma garota diz que você, nos primeiros livros,
imitava Miller, é verdade?
- É difícil explicar, mas não é verdade. - Bem, de qualquer forma, vou estudar sociologia. Temos
aqui dentro um grupo de esquerda, pai, não é legal? (grifo meu). (CONY, 2007:51)
A passagem que remete à chegada de Paulo Simões ao colégio de sua filha
representa uma espécie de iconografia triádica composta pelo próprio protagonista, Ana
Maria e as freiras que conduzem o regimento interno da instituição de ensino. Eis, desse
modo, uma ambientação paradoxal, do conflito ideológico entre as partes: enquanto Ana
Maria figura como a voz da doutrina esquerdista ainda incipiente, restrita ao viés
intelectual guiado pela literatura de Faulkner, Sartre, Miller e até mesmo do próprio
Paulo – ainda que a filha, seu respectivo grupo ideológico e vários outros indivíduos o
considerem um “bocado alienado” 7 –, as freiras atuam como o cânone do interdito: a
7 Cf. CONY: 2007, 52.
23
censura da literatura8 é recorrente, estipulando um tipo de Index interno além de apoiar
claramente o governo militar. Há, assim, dois polos de concentração ideológica
nitidamente demarcados.
O terceiro item de elocução, Paulo Simões, encontra-se no ponto intermediário
entre os dois polos supracitados: inserido em sua clausura de subjetividade superficial e
autovivificação e limitado em apenas assinar, no máximo, alguns manifestos para
libertar presos políticos, a personagem limita-se, até o momento, à sua própria
neutralidade.
(...) Não sou a favor de nenhuma causa. Nem contra. Sou
homem e sou neutro. (CONY: 2007, 46)
Um dos primeiros momentos em que o sujeito em questão retira-se de seu estado
inerte de neutralidade é quando interpela Ana Maria: eis a imersão no fluxo de
consciência do indivíduo ao ter a sua voz interna despertada, buscando a compreensão
de si e de sua ideologia própria, em prol da compreensão da existência em um momento
embrionário da consciência de Paulo Simões em relação à sua idiossincrática semântica
existencial.
8 É interessante perceber como a questão da literatura é trabalhada no romance em tela,
principalmente na passagem discutida. A arte é considerada, pela ala reacionária, um aviso de
incêndio, uma pulsão de possíveis perigos ideológicos que possam ser veiculados através desse
meio, seja a arte como música, pintura, literatura. Esta, por sua vez, ocupa um locus
privilegiado: Paulo Simões é escritor, ou seja, integra-se na intelectualidade que, consciente ou
não a priori, pode a qualquer momento apresentar-se como engajada em causas da esquerda,
tendo em vista a sua função formadora da personalidade crítica do indivíduo. Nas palavras de
CANDIDO (1999:84), “longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, ela age como o
impacto discriminado da própria vida e educa como ela com altos e baixos, luzes e sombras”.
In: BORGES, Marilurdes Cruz. Sentido, dialogismo e cena enunciativa em Pessach: a travessia,
de Carlos Heitor Cony. Dissertação apresentada à Universidade de Franca. Franca: 2008, p. 25
24
Dessa forma, é possível perceber uma situação em que a intelectualidade –
representada pelo escritor no romance – encontra-se pressionada pela direita e pela
esquerda, inserindo-se em uma situação de “crise aguda”.9 Nesse sentido, a temática
prioritária em obras literárias e na filmografia política é, de fato, a conversão do
intelectual à luta armada, à militância.
Pessach: a travessia trabalha com a passagem do indivíduo da
inessenciabilidade à essenciabilidade, indivíduo este que “passa por cima” 10
de seu
caráter problemático e intrinsecamente romanesco à microepopeia de um microgrupo
diante da macroestrutura do sistema. Paulo Simões é o sobrevivente da libertação de si
mesmo, dos libambos dos seus “quarenta anos de deserto” próprios em direção ao
engajamento lato sensu de suas convicções e destinos, finalmente, delineados.
1.2. Panorama histórico-político
Nilson Borges, em seu artigo intitulado “A Doutrina de Segurança
Nacional e os governos militares”11
, evidencia, de modo extremamente lúcido e
didático, o panorama político brasileiro durante o período da ditadura militar. No início
do ensaio, o autor coloca em foco o desencadeamento dos golpes do Estado e a entrada
dos militares no panorama político nos anos 70 em vários países da América Latina – e,
certamente, em terras brasileiras. Como exemplo, cita-se o ano de 1979, em que dois
9 Cf. SCHWARZ, R. Cultura e política, 1964-1969. In: “O pai de família e outros estudos”. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 89. 10
“Passar por cima” é o significado literal da palavra hebraica Pessach, que remete à Páscoa
judaica. Esta, grosso modo, recorda a libertação do povo de Israel do Egito, de acordo com a
narrativa de Shemot. 11
In: FERREIRA, J. e DELGADO, L. A. N. (org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura
– regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 15-42.
25
terços da população latino-americana estavam sob a égide dos regimes militares ou sob
as rédeas castrenses.
No caso brasileiro, o início do ciclo militarista deu-se através do golpe – ou, de
acordo com as palavras do autor, “processo intervencionista” – de 1964 aliado à
aniquilação do governo de João Goulart. Entretanto, mesmo com muitos teóricos
querendo restringir a entrada militar no cenário político apenas com a instauração do
golpe em 1964, relatos históricos evidenciam a crise como uma espécie de instante
catártico das Forças Armadas, em que estas se apresentam como “atores políticos
atuantes”. Borges oferece diversos exemplos dessa crise como brecha militar:
Assim foi, em 1889, com a proclamação da República,
mediante um golpe articulado por Deodoro da Fonseca,
Floriano Peixoto e a mocidade militar, liderada por
Benjamin Constant, e assim continuou sendo, em 1930,
com a derrubada da República oligárquica, que permitiu a
instauração da ditadura do Estado Novo e a deposição de
Getúlio Vargas em 1945. Mas foram também os militares
que participaram do processo de estabelecer um regime
democrático, que vigorou de 1945 a 1964, e garantiram a
posse de Juscelino Kubitschek em 1955, abortando um
golpe preparado por setores das Forças Armadas.
(BORGES: 2003, 15)
Analisando o histórico das Forças Armadas no panorama político brasileiro,
Nilson Borges diagnostica duas fases majoritárias nesse contexto: a primeira, pré-1964,
na qual havia a intervenção pontual dos militares para fins exclusivos de
restabelecimento da ordem institucional para que, logo depois, as rédeas do Estado
fossem novamente entregues às mãos civis: era, assim, estipulada a chamada “função
arbitral-tutelar” dos militares12
; a segunda, pós-1964, em que irrompe a Doutrina de
Segurança Nacional (DSN) instrumentalizada pela Escola Superior de Guerra (ESG),
12
É interessante observar como Nilson Borges aproveita uma hipótese formulada pelo
brasilianista norte-americano, Alfred Stepan, em Os militares na política, editado em 1971, que
identificou o padrão de intervenção dos militares na estrutura política brasileira antes do golpe
de 1964 com o papel do antigo poder moderador, na monarquia.
26
proporcionando a condução do Estado pelos militares, desviando a base civil dos
centros de decisões políticas e tornando-os “agentes de segundo plano” na coadjuvância
para que houvesse uma pseudodemocracia e uma pseudolegitimidade nas vitrines do
regime. Desse modo, o aparelho militar acabou se tornando a grande força tutelar do
sistema, limitando o alcance das ações civis de acordo com os seus interesses
hegemônicos.
Dessa forma, é possível perceber que o ano de 1964 foi um divisor de águas
considerável para o aparelho militar brasileiro, tendo em vista o fato de que, até o
mencionado ano, as Forças Armadas mantiveram-se em condição arbitral-tutelar –
função esta já elucidada em parágrafos anteriores. A partir dos novos rumos do país de
1964 em diante, o processo intervencionista por parte dos militares passa a ter um
caráter extremo e contundente, caminhando para a diligência efetiva da pátria, e não
mais se contentando com a anterior condição arbitral-tutelar: de agora em diante – até o
fim do período militar brasileiro – a hegemonia do Estado estava atrelada ao poderio
castrense. Nilson Borges, inclusive, põe em foco a questão do intervencionismo militar,
após a República proclamada, ter sido um processo constante no cenário político
brasileiro, até mesmo por tal procedimento ter se tornado habitual em nosso histórico
como consequência das constantes intervenções militares, criando uma espécie de
cultura militar.
Voltando um pouco na cronologia dos fatos com o objetivo de elucidar
brevemente determinadas questões, é importante ressaltar que os anos 1950 foram
importantes para o reforço da autoridade pública dos militares, através da centralização
de ações políticas e administrativas a fim de controlar o aparato sociopolítico do Estado,
controle este incentivado pelo crescimento da industrialização e o pelo processo
progressivo de urbanização. Além disso, houve um significativo divisionismo na
27
instituição militar, acarretando as denominadas clivagens, isto é, o polêmico surgimento
de partidos militares dentro da própria instituição, fato este ocasionado
fundamentalmente, por aspectos de cunho organizacional e ideológico. Nesse contexto,
na tentativa de homogeneização do aparato, setores militares acabaram se aproximando
de setores civis estimulados pela Escola Superior de Guerra, acarretando uma
aproximação de elites civis ao locus militar.
O padrão moderador 13
das Forças Armadas abriu as portas, de modo pari passu,
à centralização cada vez mais efetiva do aparelho militar em relação às rédeas políticas
do Estado.
Da análise do período pré-1964, vai-se notar um processo
de centralização do poder militar na medida em que o
poder civil se subordinava ao poder militar, sendo que, a
partir dos anos 1930, as Forças Armadas asseguram o
monopólio legal e real da intervenção. Como
consequência, o aparelho militar torna-se sujeito político
coletivo, muito embora, ao disputar o controle político,
surjam no seu interior clivagens (partidos militares) que
comprometem sua unidade organizacional. (BORGES,
2003:19)
Borges dá o exemplo dos governos de Getúlio Vargas, de difícil compreensão
em relação à questão militar. Em 1930, as Forças Armadas foram peça fundamental
para que Vargas chegasse à Presidência. Posteriormente, liderados por Eurico Gaspar
Dutra e Góes Monteiro, os militares apoiam a implantação do ditatorial Estado Novo
para, em seguida, levar Getúlio Vargas ao suicídio ao impor-lhe forçadamente a sua
deposição. Tal medida estaria baseada na alteração ideológica de Vargas ao dialogar
com as massas promovendo, dessa forma, o fortalecimento dos sindicatos relacionados
ao governo e a exaltação do espírito ufanista. Assim, há uma fissura considerável entre
13
Ao mencionar o poder moderador, há uma referência explícita ao modelo imperial, em que o
poder moderador está centrado na figura do imperador.
28
o governo varguista e as alianças militares e elites civis, estabelecendo a síndrome
antigetulista na instituição desde 1930 até o governo de Goulart.
É importante mencionar a relevância da expressão segurança nacional que já se
fazia visível nos discursos das Forças Armadas nos anos 1930 principalmente pelas
manifestações de Góes Monteiro que associavam a presença da Segurança Nacional à
fundamentação ufanista da ordem e da disciplina popular que colaborassem para a
solidificação cada vez mais expressiva da importância inabalável do país frente a
qualquer outro possível interesse dos civis.
O ano de 1964 foi, indubitavelmente, um marco na política e na sociedade
brasileiras a partir da tomada do poder pelas mãos militares apoiadas por empresas
nacionais e transnacionais, além do governo americano e de setores das Forças Armadas
oriundas da ESG (Escola Superior de Guerra), elementos que gerenciavam uma política
conspiratória, na qual a Doutrina de Segurança Nacional – assistida pelos EUA e França
– apresentou-se como justificativa na tomada do poder e alteração estrutural das bases
políticas do Estado.
No contexto em que Pessach: a travessia é ambientada, o golpe instaurado no
ano de 1964 é a base de novas delimitações para as funções a que se atribuíram as
próprias Forças Armadas durante todo esse processo sociopolítico, no qual os militares
passam a coordenar múltiplas funções administrativas e políticas, incorporando, a
priori, uma média de trinta por cento dos cargos anteriormente ocupados por civis. É
interessante levar em consideração o fato de que, segundo Borges, o regime militar pós-
64 apresentava duas características consideradas contraditórias: a durabilidade e a
mutabilidade. A primeira diz respeito ao longo tempo de permanência militar nas rédeas
governamentais; a segunda, por sua vez, refere-se à interface do governo no que diz
29
respeito à presença ou ausência de abertura política – a mutabilidade promove a
concretização efetiva do poder instaurado e mantido pela ala militar.
A censura, a repressão e o terrorismo produzidos pelo Estado foram a tríade de
apoio das Forças Armadas em relação ao seu papel de partido político representante da
burguesia e dos interesses das elites que outrora dominavam ativa e frontalmente. Desse
modo, a sociedade civil acabou por ser agenciada pelos militares e por seus aliados à
medida que as condições de supremacia e legitimidade militares eram cada vez mais
consolidadas no país: conforme o aparelho militar fortalecia o estado, neutralizando o
máximo possível as pressões civis sob o subterfúgio do crescimento econômico
brasileiro, as Forças Armadas atingiam um elevado grau de autonomia na Instituição.
O núcleo do poder militar estava embutido naquilo que
chamavam de sistema: um órgão informal que agrupava os
generais do Alto Comando Militar. Ao sistema cabia a
tarefa de, em última instância, decidir sobre as questões
políticas, tanto de política interna quanto de política
externa. Nada de importante deixava de passar pelo crivo e
pelo nihil obstat do sistema. Os partidos civis eram meros
coadjuvantes no cenário político, além de estarem
divididos entre o partido do governo (Arena-PDS) e a
oposição consentida (MDB-PMDB). As forças Armadas,
no papel de poder dirigente-hegemônico, impediam que
fossem transferidos para a classe civil os centros de
decisão política. (BORGES, 2003:21-22)
É interessante verificar como Borges, analisa, de modo bastante didático, o
período pós-1964. Segundo ele, o pós-1964 pode ser dividido em três fases principais.
A primeira inicia-se com o golpe militar do referido ano e estende-se até a instauração
do AI-5. Nesse período, as diretrizes do regime militar foram extremamente discutidas,
ou seja, se os militares do sistema iriam adiante com os planos de dirigismo estatal ou se
reconduziriam, com limites estabelecidos, o poder aos civis de bases confiáveis. O
avanço militar em relação ao papel dirigente seria denominado “processo
revolucionário”, nomenclatura formulada durante o governo de Castelo Branco, que
30
acreditava que tal “revolução” deveria ter um caráter transitório, entretanto suas ideias
foram suplantadas pela parcela militar considerada mais radical. O “processo
revolucionário” dos militares foi definitivamente estabelecido, até então, como
permanente a partir do momento em que Arthur da Costa e Silva é empossado como
presidente da República, além da publicação do Ato Institucional de número 5 como
fato sine qua non para a permanência militar, estabelecendo, dessa forma, o poderio das
Forças Armadas no controle do Estado.
A segunda fase do período pós-1964 constitui-se na transição entre a
implementação do AI-5 até a liberalização política, cujo início deu-se no período de
governo do presidente Ernesto Geisel, no qual o referido Ato Institucional foi revogado.
Esse foi o período em que a tortura dos presos políticos era uma prática comum e
recorrente com a finalidade de manter, de acordo com a ótica da Direita governamental,
a ordem e o progresso do Estado brasileiro.
A terceira fase refere-se à liberalização política estabelecida no governo do então
presidente Ernesto Geisel, no qual as diretrizes do “processo revolucionário” foram
freadas, revertendo o histórico da censura do DOPS e reajustando as medidas de
segurança do Estado estabelecidas pelo controle militar. A partir do processo de
liberalização política e, por consequência, do desaparecimento do Ato Institucional
Número 5, o poder foi, pari passu, retornando às mãos civis, desde que estes estivessem
nos moldes das bases confiáveis.
Indubitavelmente, durante esse período a censura e a tortura foram
características que sobressaíram na política brasileira da ditadura militar. A repressão
oriunda e fomentada pelo Serviço Nacional de Informação (SNI) – com base na
Doutrina de Segurança Nacional (DSN) – acarretou um vertiginoso crescimento do
31
“terror”, seja por parte da Esquerda – com ataques constantes dos guerrilheiros da luta
armada –, seja por parte do aparelho governamental através das famigeradas torturas
físicas e psicológicas de uma parte da Inteligência militar. A partir do crescimento
vertiginoso das ações terroristas por parte da ala considerada mais “radical” do aparelho
militar, houve o surgimento da denominada síndrome de tensão-pressão no próprio
escopo militar entre oficiais atrelados à Inteligência e os restantes, avessos a qualquer
tipo de intervenção violenta e excessiva do sistema vigente. Nesse contexto, surgem as
rivalidades ideológicas e práticas entre aqueles ligados à Inteligência – “comunidade de
informação” – e os moderados, contrários ao regimento daquela parcela militar
politicamente engajada.
As ações terroristas levadas a cabo pelo Serviço Nacional de Informação (SNI)
só serão reduzidas quando o presidente Ernesto Geisel demite o general Ednardo
D’Ávila Melo, então comandante do II Exército, após a constatação do assassinato por
tortura de um operário, de um jornalista e de um tenente da Polícia Militar, José Ferreira
de Almeida – todos presos políticos. Foi somente após essa demissão que a função do
SNI – ou, que seja, da comunidade de informações – acabou por ser reformulada.
Segundo Borges:
(...) Somente o recuo do Serviço Nacional de Informações
para a especificidade do seu papel como órgão de informação
e contrainformação da presidência da República
restabeleceria as condições para uma efetiva contenção das
Forças Armadas como um aparelho de intervenção no
domínio político. (BORGES: 2003, 23)
Um dos aspectos de considerável importância no que diz respeito ao período
estudado é a denominada Doutrina de Segurança Nacional, de base estadounidense.
Sua origem situa-se em meados da Guerra Fria, oriunda das posições ideológicas entre
Leste e Oeste. É interessante perceber como a DSN oferece, em cada ramo estrutural,
32
cada tijolo necessário para a construção e, principalmente, manutenção da força do
Estado e de sua ordem social preestabelecida pelas mãos vigentes. Na concepção da
Doutrina, “a guerra e a estratégia tornam-se a única realidade e a resposta a tudo”
(BORGES: 2003, 24).
Desse modo, irrompe – nas bases da ideologia instaurada pela Doutrina – um
conceito de extrema relevância no cenário militar: a segurança nacional como uma
espécie de “programa de assistência militar”, tendo forte aliança com os preceitos
institucionais norte-americanos, ampliando a noção conceitual de totalidade da guerra,
na qual prepondera a ampla questão do conflito de nível nacional e internacional. Nesse
sentido, entra em campo a problemática concepção de “geopolítica”, tendo como
objetivo impregnar a teoria com marcas políticas, e não mais preponderantemente
geográficas.
O aparato militar brasileiro aderiu à compreensão epistemológica do termo
“geopolítica” pensado pelo professor Friedrich Ratzel14
. Para ele, “o Estado é um
organismo que necessita de espaço e expansão como qualquer outro ser biológico. A
partir daí foi ressuscitada a expressão espaço vital, de H. G. Von Treitschke.”
(BORGES: 2003, 25). Levando em consideração o uso do termo espaço vital pelo
nacional-socialismo alemão durante a segunda grande guerra, os rumos que poderiam
ser tomados pelas estratégias militares afiliadas a esse tipo de mentalidade é, no
mínimo, delicada e preocupante. E é no background desse processo complexo e
inquietante que as páginas de Pessach: a travessia serão delineadas em direção à busca
da subjetivação e do tornar-se si próprio a partir da saída da passividade rumo ao ato
14
Friedrich Ratzel (1844-1904), geógrafo e filósofo alemão, um dos criadores da vertente da
sociologia denominada “Geografia Social”. Desenvolveu a teoria do Estado como um organismo
vivo, necessitando expandir-se como qualquer outro ser biológico. Nesse sentido, propôs o conceito
de Lebensraum (“Espaço Vital”), apropriado pelo nacional-socialimo nazista alemão de Adolf Hitler
e utilizado como projeto político do mesmo na segunda guerra mundial.
33
indubitavelmente reflexivo de Paulo Goldberg Simon: a passagem por cima mediante à
inesperada Terra da Promissão personativa.
34
Antes que a vida me insulte, eu insultarei a vida: me engajo numa luta – não há
cruzadas para defender o túmulo do Salvador, é pena – e a ela me entrego com
ferocidade. Talvez consiga ser herói.
(CONY: 2007, 36)
35
2. Personagem em trânsito: a alegoria da Pessach e a constituição do herói
problemático
Ao remeter à exegese da obra que é objeto de estudo da presente dissertação a
uma abordagem teórica benjaminiana e lukácsiana, entende-se como podem ser
complementares as reflexões de ambos os teóricos germânicos.
No presente capítulo, intenta-se pensar como o conceito de alegoria, trabalhado
por Walter Benjamin, em Origem do drama trágico alemão, aplica-se à leitura acurada
da Pessach – travessia do indivíduo-personagem Paulo Simões. Do mesmo modo, com
o auxílio de Georg Lukács, especificamente da obra Teoria do Romance, objetiva-se
realçar a constituição do protagonista como herói problemático da modernidade no
romance em questão.
2.1. Alegoria e a passagem por cima: a Pessach do indivíduo
Walter Benjamin, em “Alegoria e drama trágico”, capítulo de A Origem do
drama trágico alemão, disserta amplamente sobre a questão da alegoria em sua relação
com o conceito de símbolo. Benjamin procura reabilitar o conceito de alegoria,
percebendo-o de maneira distinta das concepções tradicionais de símbolo e alegoria,
revendo o conceito de símbolo como postulado pelo romantismo de Goethe e Schlegel,
indicando como a concepção romântica do símbolo traduziria uma pretensão ao saber
absoluto (PEREIRA: 2007, 48), que, por sua vez, careceria da têmpera dialética15
(BENJAMIN: 2004, 174), algo que se teria manifestado já na concepção do
Classicismo, na compreensão de um indivíduo perfeito que descreveria “o círculo do
15
Para Benjamin, a visão romântica dos conceitos de símbolo e alegoria perde em valor
reflexivo ao não contemplarem a profundidade dialética que as duas noções precisam carregar.
36
simbólico”16
, perdendo a dimensão dialética presente na “apoteose barroca”17
(BENJAMIN: 2004, 174).
Na ótica benjaminiana percebe-se uma busca por pensar a noção de símbolo
como algo diverso do que foi proposto pelo Romantismo, a partir de reflexões de
Cysarz, Creuzer e Görres. Em Cysarz, o filósofo percebe como a noção de “fenômeno
alegórico” é reconhecida no Barroco, mas apenas de maneira superficial. Será com
Creuzer e Görres que Benjamin poderá desenvolver melhor sua ideia. No primeiro, o
símbolo apresenta-se como combinação entre a esplêndida beleza da forma e a suprema
plenitude do ser, fusão entre finito e infinito, traduzindo-se, na arte, pela escultura grega
– exemplo do símbolo na esfera da obra de arte como uma espécie de plasmado perfeito.
Tal compreensão leva Creuzer a uma reflexão acerca do símbolo artístico, que seria
superior ao, por exemplo, símbolo religioso (BENJAMIN: 2004, 178) e de natureza
plástica. Creuzer ainda oferece uma distinção entre símbolo e alegoria18
, que no entanto
precisará ser ainda desenvolvida por Benjamin, que busca ajuda em Görres. Em
Creuzer, o símbolo é entendido hegelianamente como um processo de corporificação da
ideia em sua forma sensível. Ele é visível, inteiro, imediato, instantâneo.
A partir de um delineamento mais claro do conceito de símbolo na ordem do
belo, Benjamin pode iniciar a construção do conceito de alegoria, como manifestação
diferenciada do símbolo, ainda se apoiando em Creuzer. Se o símbolo é visível, inteiro,
imediato e instantâneo, a alegoria seria “apenas uma conceito geral, ou uma ideia,
16
O “círculo do simbólico” constituiria a ideia de um indivíduo perfeito, inteiro como o próprio
símbolo – como será comentado mais a frente. 17
Entende-se a apoteose barroca como a revelação do indivíduo que não pode ser pleno na
medida em que se apresenta em conflito, não tendo apenas uma dimensão e uma afirmação
como a é a ideia de símbolo para os românticos. Ao contrário do Romantismo, a apoteose
barroca é dialética (BENJAMIN: 2004, 174). 18
Para Creuzer, há uma distinção entre a representação alegórica e simbólica, em que a primeira
“significa apenas um conceito geral ou uma ideia, diferentes dela mesma, enquanto aquele (o
símbolo) é a própria ideia tornada sensível, corpórea.” (BENJAMIN: 2004, 179)
37
diferentes dela mesma” (BENJAMIN: 2004, 179), que se entende aqui como algo não
plasmado, não corporificado. Entretanto, a percepção da ideia de alegoria é ainda
aprofundada por Benjamin, com o auxílio de Görres, autor que busca traduzir a relação
entre símbolo e alegoria sob a ótica das Ideias (PEREIRA: 2007, 49). Para Görres, de
acordo com Benjamin, o símbolo seria o signo das Ideias e a alegoria seria sua
reprodução, numa relação em que o símbolo permanece o mesmo, enquanto a alegoria,
como cópia, pode se por em movimento ao longo da história (BENJAMIN: 2004, 179).
Não aposto muito na hipótese distintiva que diz que o
símbolo é e a alegoria significa...Basta-nos a explicação
do primeiro como signo das ideias – autárquico, compacto
e entrincheirado em si mesmo –, e da segunda como
figuração das mesmas em progressão contínua,
acompanhando o fluxo do tempo, dramaticamente móvel,
torrencial. (GÖRRES apud BENJAMIN: 2004, 179)
É a partir desse aprofundamento de Görres que Benjamin prossegue em sua
argumentação e consegue apresentar a dinâmica da alegoria, como noção que se revela
profícua em significações. Há uma inegável relação dialética entre símbolo e alegoria,
uma vez que o primeiro representaria a plenitude e inteireza que se manifesta na
experiência simbólica em instante místico, em que o símbolo recebe seu significado
profundo e enigmático; e a alegoria, também em uma relação dialética semelhante, cuja
significação não se daria apenas pela sua “autossuficiência indiferente”, mas por um
processo dialético que se dará pelo mergulho da alegoria no abismo entre o ser figural e
a significação (BENJAMIN: 2004, 180) do momento em que está e guarda.
Embora, sem trazer a autossuficiência presente no símbolo, a alegoria revela
novas possibilidades de significação, que surgem pelo esforço interpretativo da mesma.
De acordo com Pereira:
É da impossibilidade de conhecimento deste fundo escuro
e enigmático do símbolo – que remete a uma outra
dimensão na qual entrecruzam espaço e tempo sagrados –
38
o lugar onde nasce o esforço interpretativo da alegoria.
(PEREIRA: 2007, 49)
A alegoria traria, portanto, uma busca: a interpretação, a procura de alguma
compreensão que, embora se valha do símbolo, não se apresenta em sua inteireza
enigmática, pontual e instantânea, mas na calma contemplativa, para retomar a
expressão benjaminiana. Uma calma contemplativa que permite a existência do esforço
interpretativo e a explosão de significados.
Nesse ponto, é importante focalizarmos a compreensão do autor de Origem do
drama trágico alemão sobre o Trauerspiel, sobretudo na sua exegese da relação entre o
histórico e a forma artística, algo que, pontualmente, é de interesse extremo para a
reflexão em torno da obra Pessach: a travessia na medida em que esclarece como se
pode perceber o romance enquanto uma alegoria da passagem, na qual há um
aproveitamento do conteúdo material histórico na criação ficcional a representar a
imagem de uma passagem existencial. Na ótica de Benjamin, há um objeto para a crítica
filosófica que residiria na busca em revelar a função da forma artística. Aqui, vale
observar a reflexão benjaminiana em sua inteireza:
O objeto da crítica filosófica é o de demonstrar que a
função da forma artística é a de transformar em conteúdos
de verdade filosóficos os conteúdos materiais históricos
presentes em toda obra significativa. Esta transformação
do conteúdo material em conteúdo de verdade faz do
declínio da força de atração original da obra, que
enfraquece década após década, a base de um
renascimento no qual toda a beleza desaparece e a obra se
afirma como ruína. Na estrutura alegórica do drama
barroco, sempre se destacaram, como uma paisagem de
ruínas, essas formas da obra de arte redimida.
(BENJAMIN: 2004, 198)
Na obra de arte que serve de objeto de investigação benjaminiana, na estrutura
alegórica do drama barroco, descrita como uma paisagem em ruínas, fragmentada,
39
encontrar-se-ia a obra de arte que se redime de seu declínio a partir do momento em
que, ao se valer da história dentro de uma estrutura alegórica necessariamente lacunar e
fragmentada, ela se afirma em toda a sua força e vigor de arte reconfigurada de per si,
redimindo-se de sua própria ruína pela passagem do tempo, algo que dialoga com o
conceito benjaminiano de História, especialmente desenvolvido na tese IX sobre a
história, em que vemos a descrição do quadro de Klee, O anjo da história, em que o
anjo é a imagem alegórica atônita do ser diante do passado e sendo tragado pelo futuro:
(...) o anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto
para o passado. A cadeia de factos que aparece diante de
nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que
incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança
aos pés. Ele gostaria de acordar os mortos e reconstituir, a
partir de seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do
paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas,
(...) arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que volta as
costas. (...) Aquilo a que chamamos o progresso é este
vendaval. (BENJAMIN: 2010, 14)
Se para Benjamin, como vimos em citação anterior, a história é matéria da
criação artística, torna-se mais clara a relação entre alegoria, ruína e passagem de
tempo. Nesse sentido, a não inteireza da alegoria está marcada em seu caráter
fragmentário de ruína: diferente do símbolo que se apresenta em uma inteireza
enigmática e acabada, a alegoria seria o fragmento, em relação dialética, sem dúvida,
com o símbolo, trazendo em si a temporalidade não contínua, mas em sua imagem da
história como paisagem primordial petrificada, fragmentos de ruínas que compõe a
história contemplada pelo anjo, sempre em movimento.
Percebe-se, portanto, o símbolo visto como um fenômeno manifestado em uma
semântica do eidos; a alegoria, por sua vez, remete-se a um contexto mais amplo, e não
40
a uma figura centralizada e fechada. O caráter alegórico é, pois, o contraponto
especulativo19
, de onde emerge a reflexão propriamente dita.
A ótica benjaminiana compreende a História, como estrutura moderna,
representada através da configuração da alegoria, elemento expressivo do Barroco em
função de seu caráter antinômico. Este, por sua vez, é um item inerente à estrutura que a
própria realidade apresenta na dialética de sua composição. Sendo assim, interessa
expor a alegoria enquanto categoria estética, pois se refere à atualidade contínua da
fenomenologia histórica, diferentemente do símbolo – apesar de todo o discurso
contrário da tradição do Romantismo. A partir da mediatização da imagem pela
alegoria, há, portanto, o caráter especulativo que promove a reflexão ao aduzir uma
realidade de fragmentos in perpetuum mobile, em contínua progressão. De modo
antagônico, o símbolo apreende uma totalidade instantânea e enclausurada em si
mesma.
A alegoria é paisagem, contexto, o background de um amálgama entre natureza
e história20
, no qual a especulação é a indicação para as veredas do ethos e o ato de
refletir gerado pelo caráter alegórico é chave de acesso do indivíduo moderno. Seguindo
essa lógica, é possível dizer que Pessach: a travessia é a história da redenção do sujeito
de seu “poço estéril” 21
, do vácuo causado pela ausência de delimitações nítidas de
destino em quarenta anos de deserto.
Ao retornar à obra literária, objeto da presente dissertação, observamos que os
personagens Paulo, Macedo, Vera e mais alguns companheiros de guerrilha chegam a
Pelotas, mais precisamente em uma aldeola denominada “Capão Seco”. Ao chegar
19
BENJAMIN, W. “Alegoria e drama trágico”. In: Origem do drama trágico alemão. Lisboa:
Assírio e Alvim, 2004. p. 174. 20
Para Benjamin, a expressão alegórica teria nascido “de uma curiosa combinação de natureza e
história”. Cf. Idem, p. 181. 21
Cf. CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 26.
41
nesse vilarejo, o protagonista percebe que se encontra com um sujeito que, certamente,
pertence ao escalão superior ao de Macedo. Este, por sua vez, diz ao próprio que ele
está livre, não é mais uma espécie de prisioneiro de Macedo - em função do perigo que
poderia representar. Os testes já haviam sido feitos e Paulo Simões não representava
mais nenhum tipo de elemento delator daquele sistema sui generis. Entretanto, diante da
perspectiva de retornar à sua vida sem objetivos traçados, sem incumbências vitais,
Paulo desconversa e diz, levianamente, que permanece por conta de sua curiosidade.
Em uma noite de vigília forçada no quarto que lhe foi destinado no cativeiro
montado pelos guerrilheiros, Paulo apresenta, pela primeira vez durante a narrativa, uma
exposição consciente de sua real situação psicológica em sua realidade, elaborando um
brainstorm interior que corrobora os indícios de sua travessia para a auto-libertação.
Justamente no momento em que a personagem principal reflete sobre a sua existência
antes de optar por sua definitiva permanência no grupo da luta armada, Paulo Simões
faz a seguinte consideração:
A vigília forçada me obriga a pensar em tudo, em minha
vida, em meus quarenta anos. Faço o balanço interior
sumário de minhas possibilidades, agora que me atolava
na intrincada rede de loucos: meia dúzia de livros que não
me satisfazem, uma filha a quem o mundo e os trancos da
vida vão tornando distante, algumas recordações, e, talvez,
um futuro. Tenho mesmo um futuro? Quando saí do
Rio, meu futuro era escrever a história de um judeu
assimilado – no fundo, eu sabia que jamais escreveria
sobre o bidê, complacente ou não. Talvez, desejasse
vingar o pai. Mas o pai já se vingara, tornava inútil
qualquer vingança minha. Prolongo o balanço interior até que o sono é mais forte do
que as minhas preocupações e o ronco do motorista.
Consigo dormir, descobrindo que minha decisão está
tomada, tal como a podia tomar, nos únicos termos em que
a aceitaria: uma soma de circunstâncias que me tornam
humilde mas obstinado. Fraco, mas, pela primeira vez,
forte o bastante para ser capaz de uma escolha.
(CONY: 2007, 278. Grifos meus)
42
No trecho acima, percebe-se a reflexão do protagonista entremeada por termos
como “possibilidades”, “futuro”, “decisão”, “escolha”. O os quatro termos se fazem,
portanto, a base de sua elucidação filosófica para si mesmo. A Pessach do indivíduo,
pois, inicia-se, de modo delineado e lúcido em direção à própria redenção, elaborando a
sua diáspora do niilismo.
Em primeiro lugar, é importante esclarecer o significado não só nominal mas
também estritamente conjuntural do vocábulo Pessach: em âmbito morfológico, a
palavra pode ser traduzida do ídiche por “passagem”, “passagem por cima”, referindo-
se ao Anjo da Morte que passa sobre as casas hebréias e a transição entre a escravidão e
a liberdade dos judeus. Algumas análises também compreendem o sentido de Pessach
inserido na passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho liderados por Moisés na fuga do
Egito.
O mês de Abib – ou Nissan, de acordo com a nomenclatura babilônica – abrange
três grandes festividades: a Pessach, o Chag Hamatzot – a festa dos pães ázimos –, e o
Yom HaShoah – o dia da lembrança da Shoah. Todos referidos à temática da libertação
e inseridos cronologicamente no mesmo mês de março, em correspondência ao
calendário gregoriano.
Curiosamente, a Páscoa judaica se dá no dia 14 de Abib (março) – exatamente no
dia do aniversário de quarenta anos de Paulo Simões, isto é, no dia em que se inicia o
processo da travessia da individualidade sem rumos definidos ao engajamento pela
pátria em um grupo de guerrilheiros.
O diálogo inicial entre Sílvio e Paulo é um grande painel da estruturação real do
pensamento acerca de si deste último a partir de um bilhete de rememoração anotado em
sua mesa de trabalho: “resolver o caso de Sílvio”. Tendo, a priori, o objetivo de
solucionar uma pendência – que Paulo desconhecia até então – da alteridade – no caso,
43
Silvio –, a questão a ser resolvida era própria do protagonista. A sua passagem só pode
ser efetivada a partir do momento em que ele volta-se para o outro, inserindo-se,
portanto, em suas questões particulares da existência. O adjunto adnominal “de Sílvio”
é apenas um invólucro no qual Paulo Simões assimila-se. Sílvio, na realidade, é o
estopim da travessia da personagem ao dialogar com ele sobre a possibilidade de
reverter o vácuo do homem, promovendo o engajamento, a incrustação do mesmo no
êxodo de sua excessiva neutralidade em relação a tudo e a todos, exceto a si,
corroborando a sua ideia de que “a coisa mais inglória da vida é a gente ser livre e não
ter nada o que fazer com a liberdade” 22
:
Para os crentes, eu era hipócrita. Para os hereges, era
quase crente. Ficava assim onde queria; no meio.
Sozinho. (CONY: 2007, 11. Grifo meu)
A pátria exige sacrifícios de todos nós!’ A frase que posso
ouvir novamente, vinte anos depois, da boca de Sílvio, que
daqui a pouco estará aqui. Tanto o coronel como Sílvio
são patriotas, à sua maneira. Eu continuo o mesmo:
sozinho. (CONY: 2007, 13. Grifo meu)
Paulo Simões mantém-se, no início da narrativa, em seu vácuo existencial, na
solidão protegida pelo mascaramento da personalidade e da origem, com o medo de que
alguém o surpreenda na saída de um banho contínuo, “nu assim, sem as máscaras que
(...) protegem.” 23
O gabinete em que se enclausurava para escrever seus romances não o
julgaria, não o interpelaria acerca do curso de sua vida, não o despertaria para a
vinculação necessária para sair de sua neutralidade que buscava passar por cima das
vicissitudes, dos conflitos polarizados e das escolhas essenciais do indivíduo. Ao
receber Silvio em sua residência – o casulo de suas resignações irrefletidas – Paulo
22
Cf. Idem, p. 222.
23 Cf. Idem, p. 17.
44
principia a saída do meio-termo, a fim de, paulatinamente, construir a inauguração de
seu renascimento: “o importante é ter um destino, iniciar a travessia.” 24
A noção de nascimento, potência de morte e renascimento são inerentes à
fruição da narrativa. Ao findar o diálogo com Silvio e começar a se preparar para visitar
a filha no colégio interno, Paulo diz que está pronto, finalmente: “são onze horas e são
quarenta anos quando fecho a porta e entro no mundo.” (CONY: 2007, 42). Diante desta
assertiva, percebe-se que o verbo “fechar”, disposto dialogicamente com o verbo
“entrar”, é responsável pela alegoria da finalização do indivíduo em seus antigos
moldes, encerrando a sua disposição na neutralidade e permanente atopia. Ao entrar no
mundo, Paulo Simões inicia o seu processo redentor pela busca de um engajamento em
uma luta que seja imbuída de vitalidade e propósitos. Eis, assim, o início da
mortificação do antigo pelo renascimento do sujeito.
Uma cena significativa na obra é o momento em que, chegando à residência dos
pais por conta de seu aniversário – e os mesmos esquecem-se da data –, Paulo Simões
encontra o médico que tenta convencer a mãe do escritor que ela não apresenta nenhum
quadro excessivamente sério. Paulo conversa com o médico, que tenta explicar o que
acontece na realidade: o útero de sua mãe está atrofiado e pesa insistentemente em sua
região, “cuja flacidez é irrecuperável”.
Nesse sentido, o útero, responsável pela formação do zigoto – o embrião
humano –, encontra-se em estado de atrofia. O órgão imbuído de gerar e desenvolver o
indivíduo degenera-se, mortifica-se paulatinamente em um processo de definhamento.
Paulo saíra de um útero em pleno funcionamento e, aos quarenta anos, reencontrava-o,
através de um desenho mal traçado oriundo das mãos do médico, em degeneração.
Caído, pesando com insistência de sua mãe, atrofiado. O seu espaço de origem fora
24
Cf. Idem, p. 111.
45
mortificado. O que gerou, o que promoveu o seu nascimento, caminha para o fim de sua
atividade, nas veredas da potência de morte.
Paulo Simões, em um momento anterior à decisão pela luta armada, encontra-se
em um impasse sobre a temática de seu próximo escrito: a virgindade através da ótica
de um bidê ou o episódio do Êxodo:
O esboço do romance é razoável, mas pretensioso. (...)
Evidente, sentia – como sinto ainda – a beleza do episódio
em si: o povo escravizado, mas alimentado, decide partir
para a aventura no deserto, liderado por um tipo suspeito
como Moisés. (...) Aí está, mais ou menos, o núcleo do
romance: o episódio do Êxodo, cujas evidências sociais,
políticas e religiosas são claras, nasceu de motivação
estritamente pessoal. (...) E o povo inteiro, certa noite,
escolheu a liberdade. (...) O povo partia para um destino,
fundava uma posteridade. Em termos de povo – termos
coletivos – aquela noite foi uma noite existencial, embora,
mais tarde, tenha sido também um grande fato social e
político. (CONY, 2007: 227-228)
De acordo com o desenvolvimento da narrativa, é perceptível que a estrutura da
evolução da personagem é diretamente ligada ao ímpeto de seu objeto de escrita. Paulo
Simões é, concomitantemente, o narrador do episódio do Êxodo e o agente do seu
próprio Êxodo em relação à liberdade, em uma estrutura limpidamente construída em
mise en abyme.
Em relação ao condutor dessa espécie de “diáspora subjetiva”, há a figura do
personagem Macedo. Inicialmente, causando medo e espanto, o personagem em questão
inicia o seu processo de tranquilização e encorajamento de Paulo: “Não sei por que, essa
visão me tranquiliza e fortalece” (CONY: 2007, 269). Na parte final da obra, período
em que, finalmente, Paulo se engaja por completo na guerrilha, Macedo fulgura como a
alegoria messiânica do enredo, lembrando ao protagonista a passagem do mar vermelho:
Macedo, “Moisés esculpido em carne”, conduz o escritor em direção à sua travessia, à
saída da margem indefinida ao ponto de chegada de seu fado, à sua Terra da Promissão.
46
A morte de Macedo – cena de cunho retumbante e sacrificial – é a guinada final
relativa ao renascimento de Paulo, no momento em que aquele atira duas granadas em
direção aos soldados que se encontram próximos. O líder cai de braços abertos,
assemelhando-se ao símbolo mor cristão. Paulo decide, enfaticamente, atravessar a
região dos pampas gaúchos até a fronteira, o outro lado que contém o nada. O
protagonista uroboriza um círculo de desconhecimento: do início de sua vida até o dia
dos seus quarenta anos o mesmo vivencia o deserto, a inexistência de sentido vital; a
partir do encontro com o grupo de Vera, Silvio e Macedo, Paulo experimenta o
empenho por um nítido objetivo até o momento em que chega a poucos metros da
fronteira, tornando-se, portanto, “um novo corpo que surge, afinal obstinado, lúcido” 25
mas que por fim opta por retornar à margem, desistir da covardia do exílio que em nada
pode assemelhar-se ao herói problemático lukácsiano que deu origem ao pequeno herói
épico construído não mais em vistas de um destino unicamente pessoal, mas também
comunitário a partir do momento em que o seu próprio processo de vida passa a
preencher a ação da obra.
Paulo Simões não segue a finalização de sua diáspora rumo ao exílio. A sua
Terra Prometida é ele mesmo em seu próprio território, com a lucidez de um indivíduo
não mais assimilado em uma vida inessencial e sem rumo, mas com a obstinação de
quem consegue realizar a passagem por cima e encontra a aurora que nasce para si e
para ela caminha.
25
Cf. Idem, p. 332.
47
2.2. Paulo Simões: a travessia do indivíduo problemático lukácsiano ao herói de sua
própria epopeia.
Carlos Heitor Cony, ao estruturar o protagonista de Pessach: a travessia,
parece trabalhar com uma série de questões elencadas por Georg Lukács, encontradas
em A teoria do romance 26
. Em resumo, para Lukács a vida pode tornar-se algo
estritamente essencial no decorrer da trajetória romanesca. A essenciabilidade vital do
indivíduo romanesco só pode ser encontrada a partir da delimitação de um objetivo
nítido de seu percurso, isto é, do engajamento em si próprio de alguma forma. Este, por
sua vez, depende da necessidade de reflexão do sujeito remetendo-o ao, talvez, estado
de melancolia. De acordo com Georg Lukács, isso pode ser considerado a aura do
autêntico romance:
Esse ter de refletir é a mais profunda melancolia de todo
o grande e autêntico romance. A ingenuidade do escritor –
uma expressão positiva somente para o mais intrinsecamente
inartístico da pura reflexão – é aqui violada, invertida no
contrário; e o contrapeso desesperadamente conquistado, o
equilíbrio oscilante de reflexões que se suprimem umas às
outras, a segunda ingenuidade, a objetividade do romancista,
é para tanto um simples sucedâneo formal: ele torna possível
a configuração e arremata a forma, mas a própria maneira do
remate indica com um gesto eloquente o sacrifício que se
teve de fazer, o paraíso eternamente perdido que foi buscado
mas não encontrado, cuja busca infrutífera e desistência
resignada dão fecho ao círculo da forma. (LUKÁCS: 2007,
86. Grifo meu.)
A partir da reflexão lukacsiana, compreende-se o momento em que Paulo
Simões opta por continuar no grupo de guerrilheiros como uma desesperada tentativa da
personagem encontrar o seu caráter essencial em sua rotina automatizada, mecânica e
26
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2007.
48
inerte. Nesse sentido, Paulo busca algo, problematizando-se em suas reflexões e
almejando encontrar-se como próprio.
É interessante perceber como Paulo, Vera e Macedo estabelecem um corpo
triádico que representa a coletividade e, mesmo com a morte dos dois últimos no
confronto com os soldados da fronteira, este corpo continua a representar os mesmos
interesses. O protagonista, ao chegar à fronteira e optar pelo retorno à pátria, alegoriza
todo um conjunto imerso em um único indivíduo: os objetivos da comunidade e os
objetivos do próprio sujeito finalmente encontrado são colocados de forma equânime na
passagem de Paulo Simões – de per si e pelo todo.
O personagem em tela perpassa três estágios em sua configuração. No primeiro,
Paulo Simões vivencia a alienação de um destino opaco, sem referências e envolto em
neutralidade. No segundo, o escritor passa por uma série de movimentações
aparentemente involuntárias que o retiram de sua inércia, demonstrando,
paulatinamente, a sua condição de animaduerto27
. Por fim, o terceiro estágio do
protagonista revela-se, após o reconhecimento de suas diretrizes próprias traçadas, na
reconfiguração do caráter individual stricto sensu na parte integrante do todo. Desse
modo, é possível traçar um contínuo reversivo entre o indivíduo problemático
romanesco e traços constitutivos do herói de uma microepopeia, em que, segundo
Lukács:
O herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde
sempre se considerou traço essencial da epopeia que seu
27
Do latim animaduerto, -is, -ti, -sum, -ere: de animus e aduerto. O verbo-cerne de
animaduerto é aduerto, composto de preposição ad e do verbo uerto, cuja acepção é “voltar,
virar para”. Animus,-i, por sua vez, é o substantivo cuja tradução para língua portuguesa é
bastante ampla, porém simplificaremos aqui. Animus, -i, portanto, pode ser traduzido pelo
princípio espiritual da vida intelectual e moral do homem, princípio vital, vida, alma, espírito.
Dessa forma, animaduerto trata-se de vocábulo latino composto de um substantivo e outro
verbo, ligando-se, assim, ao léxico filosófico, que significa a revelação do espírito em direção à
ambiência valorativa exterior. Em termos gerais e filosóficos, animaduerto poderia ser
traduzido por “virar, voltar o espírito, a alma para fora”.
49
objeto não é um destino pessoal, mas o de uma
comunidade. (LUKÁCS: 2007, 67. Grifo meu)
Tal percepção merece uma reflexão acerca do trânsito da personagem Paulo
Simões, uma vez que parece um paradoxo haver, ao mesmo tempo, em uma única
personagem a caracterização de um herói problemático – necessariamente um indivíduo
voltado para as suas próprias idiossincrasias – e o herói da epopeia, ligado ao destino
coletivo. A personagem central do romance em tela seria o indivíduo em processo de
modificação, que pode ser melhor compreendido ainda pela teorização de Lukács:
O romance é a forma da aventura do valor próprio e da
interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a
campo para conhecer a si mesmo, que busca aventuras
para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a
sua própria essência. (LUKÁCS: 2007, 91)
É certo perceber como o protagonista passa pelo processo de encontro de sua
própria essência. Entretanto, há algo mais para além daquilo que diz respeito à
existência particular de Paulo Simões: o surgimento de um indivíduo não mais passivo
diante do cenário político de seu país; um indivíduo que, ao não atravessar o rio,
completa a travessia e abraça um ideal pela coletividade, podendo ser observado, nesse
sentido, também como um herói pelo coletivo.
Essa percepção dupla da personagem pode ser melhor compreendida, se
considerarmos o protagonista como um indivíduo constituído por duas dimensões: a
primeira, mais aparente, revelaria um indivíduo que, ao ser inserido em uma
comunidade política, tornar-se-ia atrelado ao coletivo, às responsabilidades de ação e
reação de um todo, apesar de inicialmente o gesto não ser voluntário. É no processo da
primeira dimensão de Paulo que se inicia, de forma inconsciente, a travessia para si
mesmo, algo a ser revelado na segunda dimensão do protagonista. Ou seja, será a partir
dessa camada mais superficial e voltada para o coletivo que será dado o primeiro passo
50
para um processo mais profundo de individuação, ou seja, para a constituição de uma
dimensão individual e reflexiva do protagonista.
Nesse sentido, acredita-se poder perceber em Paulo Simões a dimensão mais
profunda e individual do herói problemático do romance e, em paralelo, traços do que
constituiria um elemento referente ao coletivo em uma microepopeia.
Após o processo de “alienação do homem em relação às suas estruturas” 28
,
Paulo Simões passa a reconhecer as necessidades supra-pessoais do dever-ser a partir da
ausência de objetivos concedidos de forma imediata. Segundo Lukács, o caráter
romanesco da obra é disposto como algo em processo, em um devir essencialmente
problemático.
O caráter problemático do indivíduo romanesco se dá em função de sua
necessidade de reflexão diante do desconcerto do mundo – devidamente imperfeito.
Essa relação vincula diretamente o mundo ao sujeito, de modo que tal desconcerto do
universo exterior passa a ser, também, o desconcerto da realidade interior do indivíduo.
Eis, dessa forma, o sujeito problemático romanesco, cujo ethos encontra-se
fragmentado, em indelével confronto com o mundo em produtivo diálogo com a sua
interioridade.
Espectador solitário da manhã que chega, sigo pouco a
pouco. O riacho abre-se a meus pés. Macedo tivera sorte
em escolher aquele trecho, vejo do outro lado a fácil
margem. Lavo o rosto naquela água que corre, sinto a
aspereza e o calor do homem que há em mim. (CONY:
2007, 331)
No referido diálogo com a sua interioridade, a margem da fronteira em relação
ao território brasileiro que finda é um elemento relevante nessa discussão: o outro lado
é composto pelo nada, pelo desconhecido – pelo Paulo de outrora. A nulidade do outro
extremo parece remeter o protagonista ao seu condicionamento anterior à própria
28
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, 2007. p.65.
51
travessia de lucidez. Nesse sentido, ele opta por permanecer em seu espaço no qual há
raízes, reconhecimento: o locus de contínua busca e luta por determinações não mais
somente individuais, mas sim políticas, isto é, coletivas em nome de seu povo e de sua
nação. A ideia de deixar a “terra” soa como um abandono de causa. O individual passa a
dar lugar ao todo, relembrando a estrutura semântica e conceitual do verso épico, no
qual imperam, segundo Lukács, a totalidade e a grande ausência do sujeito por si só.
Em termos estruturais, Lukács identifica a forma interna do romance como a
“peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo” 29
. Paulo Simões é a
representação direta dessa ideia no romance estudado. Em sua realidade apenas
existente – mas não vivificada – há a nulidade de sentido em relação ao sujeito. O
protagonista encontra-se, pois, no autorreconhecimento diante das intempéries a partir
da configuração de sua individualidade engajada no estabelecimento exitoso do
coletivo.
Ao elaborar o autorreconhecimento através da causa coletiva, Paulo estabelece
uma espécie de percurso épico. Lukács, ainda n’ A teoria do romance, postula que a
epopeia caracteriza-se pela “origem ou o desenlace de grandes tensões”.30
. O nosso
personagem, por sua vez, tem a origem e o desenlace de suas tensões a partir do
momento em que ele se une a um pequeno grupo coletivo em prol de uma grande
coletividade: a pátria. Percebe-se, assim, a relação da alma com seu destino –
característica da épica – na qual a loucura não tem espaço. O animus, o dínamo do
sujeito é a sua própria alma, sendo a porta pela qual aquele se insere em si: o homem,
como experiência subjetiva, torna-se estado de ânimo.
Desta feita, Paulo Simões – ou Paulo Goldberg Simon –, Silvio, Vera, Macedo e
os demais personagens coadjuvantes do enredo amalgamam-se em um “grande
29
Cf. Idem, p. 82.
30 Cf. Idem, p. 84.
52
complexo vital orgânico, de um povo ou de uma estirpe” 31
em prol de uma totalidade,
participando de um conjunto articulado de aventuras que corroboram a ideia de um
destino universal que acaba por conferir um conteúdo a esses acontecimentos.
Paulo vincula seu destino a essa totalidade comunitária após encontrar-se com a
sua própria essência, em um movimento lukácsianamente reverso: do romance à
constituição de uma protoepopeia diante de um todo unívoco e indissolúvel. O
indivíduo que se encontra definitivamente nos braços da coletividade para que, assim,
possa guiar a aurora em direção ao “novo corpo que surge, afinal obstinado, lúcido” 32
na grande epopeia burguesa.
31
Cf. Idem, p. 67.
32 Cf. CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia. Rio de Janeiro, 2007. p. 332.
53
A aurora, agora atrás de mim, esquenta com a vertigem e o clamor de sua luz vermelha
um novo corpo que surge, afinal obstinado, lúcido.
(CONY: 2007, 332)
54
3. Processos de individuação: contribuições de Walter Benjamin e Søren
Kierkegaard
Uma vez trabalhadas as estruturas alegóricas de acordo com as perspectivas
benjaminianas, bem como a constituição de Paulo Simões como personagem da
modernidade, na acepção de Lukács, pretende-se no presente capítulo direcionar o foco
de reflexão para a representação do protagonista como indivíduo em trânsito através de
proposições retiradas de Benjamin e Kierkegaard.
3.1. Do restitutio ao novum: perspectivas benjaminianas
Na coletânea portuguesa de artigos de Walter Benjamin, O anjo da história, há
um ensaio intitulado “Experiência e indigência” 33
em que ele disserta sobre o
apagamento da experiência a partir da geração de 1914-1918, da Primeira Guerra
Mundial, um dos acontecimentos mais catastróficos da história universal.
A época é entendida por Benjamin como se caracterizando por uma intensa
propagação da técnica, gerando uma espécie de nova indigência daqueles que
depositaram suas esperanças em um terrível e caótico renascimento 34
. Essa pobreza de
experiência configura-se como uma metonímia da grande pobreza que adquiriu um
novo rosto: irrompe, então, um tipo de “nova barbárie”, entretanto vinculada a um novo
matiz conceitual, positivo.
Senão vejamos aonde esta nova pobreza leva o bárbaro.
Leva-o a começar tudo de novo, a voltar ao princípio, a saber
viver com pouco, a construir algo com esse pouco, sem olhar
nem à esquerda nem à direita. (BENJAMIN: 2010, 74)
33
No Brasil, o artigo foi traduzido com o título “Experiência e pobreza” e está inserido no
volume I das Obras escolhidas – magia, técnica, arte e política, traduzida por Sergio Paulo Rouanet. 34
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010. p. 74.
55
É possível dizer que Paulo Simões, protagonista de Pessach: a travessia,
representa, de certa forma, essa barbárie positiva ao construir algo com esse pouco, em
sua, a priori¸ perda de experiência a partir de uma rotina automatizada, uma dormência
que ele prefere alongar em uma desorientada e fragmentada vida privada, na qual
valores sociais são estritamente reificados. Essa conjuntura se dá do início até
aproximadamente o meio da narrativa, quando Paulo vilipendia o pedido de Silvio para
que ele entrasse para a guerrilha. Contudo, a partir do momento em que o escritor –
guiado pelo mercado, pelo editor, pela técnica capitalista, opta, mesmo que não
assumidamente, pela luta armada, essa situação é revertida: a ação coletiva reconfigura
a alienação à barbárie. Veremos esse processo ao longo do presente capítulo.
Paulo Simões e seu grupo de guerrilheiros, incluindo o messiânico Macedo,
estão a serviço da transformação da realidade, da saída da inércia da humanidade.
Mesmo com ilusões enfraquecidas, há um processo amplo de identificação com a
mesma. A transformação suplanta a descrição. De um lado, há a crise: a ditadura militar
brasileira – a barbárie em sua semântica negativa. De outro, os positivamente bárbaros
que estão, pari passu, adquirindo a tão necessária experiência. Estes, conforme
Benjamin:
(...) estão do lado daqueles que desde sempre fizeram do
radicalmente novo a sua causa, com lucidez e capacidade
de renúncia. Nas suas construções, nos seus quadros, nas
suas narrativas, a humanidade prepara-se para, se
necessário for, sobreviver à cultura. E o que é mais
importante: faz isso a rir. Talvez esse riso soe aqui e ali a
bárbaro. Seja. Desde que cada indivíduo de vez em
quando ceda um pouco de humanidade àquelas massas que
um dia lha devolverão com juros acrescidos.
(BENJAMIN: 2010, 78)
56
3.1.1. As teses sobre a História e a história de Pessach: a travessia.
Michael Löwy, em Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses
“Sobre conceito de história” 35
, elabora uma excelente leitura crítica sobre as teses
benjaminianas sobre a história. Na tese I, Benjamin ressalta a importância da teologia
para o desenvolvimento do materialismo histórico, mencionando a alegoria do pequeno
anão escondido na máquina, em decorrência da leitura de “O jogador de xadrez de
Maelzel”, um conto-ensaio de Edgar Allan Poe traduzido por Baudelaire. A teologia,
por sua vez, é o animus messiânico sem o qual não há a possibilidade do triunfo do
materialismo histórico: o anão é a força revitalizadora ativa que permite a ação
revolucionária.
Tanto para o teórico de Frankfurt quanto na narrativa de Cony a teologia é
visível, apesar de sua intrínseca sutileza: no romance estudado, a iniciativa de Paulo
Goldberg Simon em relação à entrada para o grupo clandestino de guerrilheiros é
linearmente acompanhada por símbolos e alegorias judaicos: uma das representações
alegóricas mais interessantes é a figura de Macedo. Tal personagem é o dínamo
propulsor da ação revolucionária de Paulo que, segundo o próprio, apresenta-se como
um “Moisés esculpido em carne” que contribui significativamente para a passagem por
cima, para a travessia da barbárie à ação. Além disso, os símbolos judaicos – como
exemplo, a Menorá – presentes no texto atuam como elementos de alguma espécie de
revelação, seja ela qual for. Outros itens já mencionados no presente estudo colaboram,
de igual modo, para o desenvolvimento da escrita de Pessach, tal como a significação
do próprio título para o romance, a busca por uma espécie de Terra da Promissão, o
35
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o
conceito de história”. São Paulo: Boitempo editorial, 2005.
57
Anjo da Morte, os quarenta anos de deserto – tanto para o povo hebreu quanto para o
próprio Paulo Simões.
Nesse sentido, é possível compreender a ideia de que a teologia, para Benjamin,
é uma confluência entre rememoração (Eingedenken) e redenção (Erlösung). Em
relação à Erlösung, a tese II postula uma passagem gradual da esfera individual dessa
redenção à reparação coletiva no âmbito da história. É o que ocorre em Pessach: a
travessia: Paulo Simões, ao entrar para a luta armada, passa primeiramente por sua
redenção particular, em que o seu destino próprio toma uma determinada forma, um
sentido, uma validação. Após esse processo, o indivíduo problemático, ao se
transformar em um herói de uma microepopeia, contribui para a reparação de uma
coletividade, uma comunidade: eis, assim, a entrada alegoricamente teológica – e
profana, a revolução – para o campo da história, em busca da emancipação dos
oprimidos.
No âmbito da rememoração (Eingedenken), é interessante observar a elaboração
do personagem do pai de Paulo Simões e sua construção discursiva. A partir da história
do pai, o protagonista escreve um esboço de romance sobre a questão judaica
enquadrando-a na passagem do Êxodo: a crônica de um judeu assimilado. Ao expor o
seu medo quase esquizofrênico ao filho, o pai constrói uma estrutura rememorativa em
referência ao passado que, em sua ótica, poderia ser a constatação do presente: ontem
foram os judeus a serem perseguidos; hoje, isto é, durante a ditadura militar, os
comunistas.
Ao relembrar a barbárie negativa dos campos de concentração depois de anos
renegando por medo a origem, o pai de Paulo passa por um processo curioso: antes de
revelar ao filho que, mesmo escondido da família, ele sempre celebrava o Yom Kippur –
assim como o avô do protagonista, de acordo com o seu relato, havia a perda da
58
experiência a partir do momento em que se buscava voluntariamente uma aniquilação
da memória: o encobrimento da origem e do viver de seus dias a partir de sua condição
– judaica, no caso – e, dessa forma, o impedimento do trânsito de relatos e narrativas
entre os membros dessa comunidade assume uma forma significativa de degradação da
Erfahrung, na qual o silêncio impera.
3.1.2. Mnemosýne em vias de recuperação
Entretanto, no instante em que o pai de Paulo assume ao filho a sua origem, a
sua tradição, o seu pertencimento a uma coletividade própria, há uma recuperação da
experiência a partir de tal relato de costumes judaicos outrora encobertos, tentando
revelar ao filho uma espécie de existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos 36
.
E Paulo Simões – agora, mesmo ainda relutando em assumir depois de tanto tempo
oculto e incógnito, Goldberg Simon – passa a descobrir qualquer vestígio do tesouro 37
,
em uma aliança inquebrantável entre rememoração e redenção.
– Você precisa ler o capítulo 16 do Levítico. É a descrição
do Arrependimento, base da festa do Yom Kippur. Vou
confessar uma coisa: nunca deixei de celebrar o Yom
Kippur.
– Nunca tinha percebido isso. Mesmo em minha infância? – Sim. Fazia-o às escondidas, não queria que sua mãe
nem você suspeitassem. Você nunca desconfiou, não? – Não. Sinceramente, nunca.
– Pois é um alívio saber disso. Quando eu era criança,
vivia num lar como o seu: meu pai, judeu assimilado,
também decidira não ser judeu. Fui educado na ignorância
da lei judaica. Um dia, em minha infância, entrei em seu
quarto, encontrei-o vestido de branco, voltado para a tarde
que caía. Recitava em voz baixa o cântico que mais tarde
vim a saber que era o “Kol Nidre”, o hino da aflição da
alma. Fiquei quieto, no meu canto. Quando o pai acabou,
36 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 2008. p. 114. 37
Cf. Idem.
59
deu comigo. Perguntou se eu estava ali há muito. Disse
que sim. Não esqueço o tom de sua voz quando me pediu:
‘Não diga nunca a ninguém que me viu fazer isso.’
(CONY: 2007, 91)
Ainda que não seja possível desenvolver de modo adequado, no curto espaço do
presente texto, a questão do tempo e toda a sua gama de significações, em Pessach: a
travessia, vale ressaltar a sua importância na cena em que Paulo, Macedo e Vera
encontram-se perto dos onze soldados que estão do outro lado da fronteira. Observe-se a
pergunta do protagonista:
Há quanto tempo estou fora de casa? Há quantos anos eu
fiz quarenta anos? Fiz mesmo quarenta anos ou não tenho
mais tempo, sou eterno? (CONY: 2007, 324)
Nesse sentido, é válido lembrar que Benjamin postula, em seu artigo de 1916,
publicado com o título de “Sur le Trauerspiel et la Tragédie” 38
, a ideia de que o tempo
histórico não pode ser confundido com o tempo mecânico dos relógios. O tempo da
história estaria repleto de temporalidade messiânica; em contrapartida, o tempo dos
relógios seria mecânico e vazio. Pouco tempo mais tarde, em 1919, Benjamin elabora
essa ideia em dois conceitos inseridos na tese, O conceito de crítica de arte no
romantismo alemão 39
, contrastando “o infinito temporal qualitativo” do messianismo
romântico com o “infinito temporal vazio”, inerente às ideologias do progresso,
conforme as palavras de Löwy.
38
BENJAMIN,W. “Sur le Trauerspiel et la Tragédie”, 1916, Furor, nº 2, outubro de 1982, p. 7-
8 apud LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o
conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 125. 39
BENJAMIN, W. Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik, 1919, cit., p. 86-7
apud LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito
de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 125.
60
Além disso, com as suas fontes imersas na tradição do messianismo judaico, ele
ainda comenta que o tempo, em relação à percepção dos hebreus, não era uma categoria
vazia, abstrata e linear, mas de caráter absolutamente conteudístico. É exatamente o que
verificamos na passagem supracitada do romance de Cony: um tempo que não se prende
a uma arbitrariedade linear, mas sim o tempo da experiência construído a partir da
significação real, e não de um pêndulo mecânico que rege as calendas e, além disso, os
prazos de regimento e gestação dos textos a serem escritos por Paulo Simões segundo as
determinações de seu editor e, por consequência, do mercado. O protagonista e todos
aqueles engajados na luta – seja ela em prol da libertação de si mesmo e/ou da
coletividade – atacam, através do tempo histórico da revolução, o tempo mecânico do
pêndulo: o qualitativo supera o quantitativo sem significância maior.
Da redenção, fez-se a travessia. Da restitutio, fez-se o novum em espasmos
ativos de absolvição individual e coletiva do processo de alienare: a constante e
inexorável Pessach.
3.2. Kierkegaard e a inteireza paradoxal do indivíduo
A obra intitulada O desespero humano, de autoria do filósofo e teólogo
dinamarquês Søren Kierkegaard, é de grande valia para uma exegese mais cuidadosa e
sutil da obra de Carlos Heitor Cony. No capítulo cujo título é “Do desespero
considerado não sob o ângulo da consciência, mas apenas quanto aos fatores da síntese
do eu”, o autor trabalha a questão do desespero de acordo com a ótica da dupla
categoria do finito e do infinito.40
Segundo Kierkegaard, a síntese dialética estabelecida
40
É importante lembrar que “desespero” e “angústia”, para Kierkegaard, são dois conceitos distintos. Segundo Jonas Ross, em seu artigo intitulado “Kierkegaard e a antropologia entre a
angústia e o desespero”, o primeiro, desenvolvido na obra O desespero humano (doença até a
61
no eu consciente entre infinito e de finito, a consciência da infinitude e da finitude é
uma particularidade inerente ao sujeito humano, segundo a qual o infinito consistiria no
campo de possibilidades, manifesta pela capacidade reflexiva, abertura do ser finito,
condição inicial do ser, ao infinito.
A questão que nos interessa nesse ponto é como o indivíduo torna-se ou é capaz
de se tornar “próprio”. É possível tornar-se definitivamente próprio na finitude e/ou na
infinitude do sujeito? É possível tornar-se sujeito absoluto e concreto? Kierkegaard
negativa essa interrogação, colocando em pauta o fato de que o processo de “tornar-se si
próprio” é tornar-se concreto, algo irrealizável na esfera do infinito e do finito, tendo em
vista a concretude do indivíduo como uma questão de síntese, sendo, portanto,
impossível de se amalgamar por inteiro nessa dupla categoria.
É interessante perceber que, no âmbito da síntese do sujeito em relação à sua
concretude, é perfeitamente plausível pensar na impossibilidade de se fundir como
“próprio” e “concreto”. Entretanto, vale considerar o fato de que até o sujeito alcançar o
nível de síntese, ele perpassa uma autotransição comportamental não estática, mas
gradativa e escalonada. O nível de gradação e escalonamento relativo à autotransição
comportamental do sujeito pode variar, dependendo do estopim individual de cada caso,
entretanto não pode se tratar de algo irrealizável em âmbito de se tornar próprio, tendo
morte), é oriundo da má relação da síntese consigo própria, isto é, quando é um desequilíbrio na
síntese do indivíduo. Nas palavras do filósofo, “o ser humano é uma síntese de infinito e de
finito, do temporal e do eterno, da liberdade e da necessidade, em resumo, uma síntese” (KIERKEGAARD: 2010, 25) que, mal feita, gera o “desespero”. Já a “angústia”, relacionada à
ideia do “pecado original”, situa-se na esfera de uma discussão ético-antropológica. A angústia
está no ato de efetivar a própria possibilidade em relação ao desconhecido, colaborando para a compreensão de que o sujeito tem um papel ativo na constituição de seu próprio ato de
desesperar-se: o princípio da eliminação do desespero é a “conscientização” deste como algo
que é oriundo do próprio sujeito em sua própria individualidade, e não por algum quesito
externo. O que é ontológico no ser é a angústia, e não o desespero. O desespero caracteriza-se pelo salto responsável pelo desequilíbrio na síntese; a angústia rodeia, gira no entorno desse
salto.
62
em vista a complexidade da síntese e de seus desdobramentos tanto pessoais quanto
socio-comportamentais.
Nesse sentido gradativo, aproximamo-nos do pensamento teórico de
Kierkegaard sobre a “evolução” do eu, procedimento este que consiste, para ele, no
afastamento ilimitado e indefinido de si próprio, em uma espécie de “infinitização” do
indivíduo. Dessa forma, aproximamos nossa hipótese descrita anteriormente em relação
ao caráter gradativo e escalonado do processo de apropriação do sujeito, cada vez mais
concreto e definido de acordo com os seus preceitos e suas normas para consigo e em
relação a outrem: eis o afastamento indefinido rumo à infinitização do eu, cada vez mais
afastado de si e, exatamente por esse motivo, mais perto dos degraus mais altos de
evolução quanto à hermenêutica de si.
Evidentemente, pelo título aplicado ao escrito, Kierkegaard pretende trabalhar
com a compreensão do desespero humano. Nesse sentido, o autor diagnostica os
sintomas de um ente desesperado, que ele tenha consciência disso ou não: é aquele que
não se torna ele próprio. Observemos o verbo empregado: “tornar-se”. Um verbo que,
naturalmente, assume um caráter passivo e ativo concomitantemente. Através da ação e
passividade do sujeito, somente ele e, sobretudo, somente através de sua própria
intervenção em si, é possível retirar-se do estado anterior de inércia natural. É o sujeito
que age e sofre pela ação própria que, caso não venha a restituir-se de si, permanecerá
em estado de desespero latente, sem galgar a evolução de suas próprias sinapses críticas
e fundamentais para o desenvolvimento de si, do próprio, do particular. Enquanto não
há possibilidade de se tornar próprio, o eu não é ele próprio, todavia não se constituir
como próprio é a caracterização do desespero, proveniente da síntese estabelecida do eu
consigo próprio. O desespero é a ausência de delimitações sine qua non para a harmonia
63
vital do indivíduo, sendo, portanto, a grande impossibilidade da travessia obstinada de
per si.
3.2.1. Tornar-se si próprio ou o desafio da subjetivação
O que muito nos interessa na teoria de Kierkegaard para a compreensão do
romance de Cony é o entendimento da configuração do eu e toda a sua trajetória no
processo de “tornar-se” efetivamente próprio. Retorno, portanto, à questão da síntese do
indivíduo segundo os apontamentos do dinamarquês. A partir dessa leitura, observa-se
que o homem mantém-se numa espécie de linha divisória de dois termos, não
necessariamente antagônicos. A síntese é feita de dois elementos: de finito e de infinito,
de temporal e de eterno, de absolvição e liberdade e de necessidade. De acordo com
essa teoria de Kierkegaard, o eu, a formação individual ainda inexiste.
É interessante perceber que o eu é uma entidade de relação que não se amalgama
e estabelece com algo diferente e alheio a si, mas somente com ele próprio, consistindo,
dessa orientação, a sua interioridade não configurada “em si”, mas voltada sobre si e em
sua própria compreensão em seu estabelecimento. Caso haja o conhecimento de si
próprio, há o terceiro termo da síntese, fundamental para o surgimento efetivo e
consciente do eu. Na obra de Cony, a real conscientização própria do eu é limitada,
inicialmente, pelo estágio primeiro de neutralidade de Paulo Simões, elemento
dificultador e empecilho no que diz respeito ao surgimento consciente e efetivo do eu,
dificultando a compreensão da sua interioridade.
Nesse sentido, a individuação do protagonista revela-se em potência e em
latência, tendo em vista a sua inicial inexistência real, sendo somente no instante futuro
do tornar-se. Enquanto não há meio de conseguir tornar-se próprio, o processo de
64
individuação não se concretiza, o eu não se configura como próprio: eis o desespero de
não ser próprio, sendo uma síntese de finito delimitador e de infinito ilimitador.
Sendo uma relação orientada sobre si, ela tem de ter sido estabelecida
exatamente por si. É nesse aspecto que a Pessach trabalha com a passagem e com o
indivíduo reconfigurado a partir de seu caráter inessencial em direção ao caráter
essencial, “passando por cima” de seu caráter problemático, inerte e niilificado. Paulo
Simões – ou Paulo Goldberg Simon – é o grande agente e transformador de sua história
em vias de libertação de si mesmo, tornando-se ele próprio – cada vez mais próprio –,
retirando-se de seus quarenta anos de deserto interior, de desespero inconsciente pela
ruptura da síntese de sua personalidade, indo em direção ao oásis do descobrimento de
suas verdadeiras terras férteis de convicções e liberdades por si mesmo cultivadas.
Desse modo, o personagem dá início ao processo de solidificação do eu,
deixando de lado o seu anterior estado de evaporação paulatina, até não se configurar
mais, finalmente, na impessoalidade de sua esfera sensível. Há, então, uma saída
consciente – mesmo que inicialmente forçada e involuntária – de sua existência abstrata,
disforme, carente de morfocaracterização, caminhando a passos relativamente lentos em
direção à significação de personagem-agente de seus anseios, vontades e, por fim, a um
destino delineado por seus próprios traços.
Um item fundamental para o início da saída de sua inércia como indivíduo é o
caráter imaginário. De acordo com a interpretação de Kierkegaard para o pensamento de
Fichte:
O que há de sentimento, conhecimento e vontade no
homem depende em última análise do poder da sua
imaginação, isto é, da maneira segundo a qual todas as
faculdades se refletem: projetando-se na imaginação. Ela é
a reflexão que cria um infinito, por isso, o velho Fichte
65
tinha razão quando via nela, mesmo para o conhecimento,
a origem das categorias. Assim como o eu, também a
imaginação é reflexão; reproduz o eu e, reproduzindo-o,
cria o possível do eu; e a sua intensidade é o possível de
intensidade do eu. (...) É o imaginário em geral que
transporta o homem ao infinito, mas afastando-o apenas de
si próprio e desviando-o assim de regressar a si próprio.
(KIERKEGAARD: 2010, 47)
Percebe-se, na argumentação de Kierkegaard, como a imaginação seria a origem
das categorias e, assim como o eu, a imaginação também seria reflexão. Sendo reflexão,
haveria a possibilidade de reproduzir o eu e, em tal processo de reprodução, acabar-se-ia
criando não exatamente o eu, mas a possibilidade deste eu. E o fator que regula o
possível de intensidade do eu é a própria intensidade da capacidade reflexiva e, por
consequência, de acordo com a percepção kierkegaardiana, imaginativa. Cabe ressaltar
que imaginação e reflexão são articuláveis, mas não constituem sinonímia, como uma
leitura rápida poderia denotar. Para Kierkegaard, a imaginação é uma espécie muito
particular de reflexão – quiçá uma protorreflexão -, uma vez que “não é uma faculdade
como as outras... mas, por assim dizer, é o seu proteu”41
, ou seja, ela é a reflexão que se
baseia “no sentimento, no conhecimento, na vontade”42
e que é o agente da infinitização
por conta de guardar em si “um sentimento, um conhecimento, um querer
imaginários”43
. Ao lançar mão da imagem de proteu, o filósofo remete ao ser que sabe o
porvir e se metamorfoseia infinitamente. Assim, é possível perceber, nessa imaginação
infinita, a capacidade do homem de ser síntese de finito e infinito, por sua capacidade de
múltiplos desvelares com o propósito de voltar-se sobre si próprio.44
41
Cf. KIERKEGAARD, S.O desespero humano. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 47 42
Cf. Idem. 43
Cf. Idem. 44
Cf. Idem, p. 25.
66
Um fator de extrema importância quando o foco discursivo é a exegese do
desespero e do desesperado é a categoria e o ângulo crítico da consciência. A natureza
da consciência não se faz muito relevante em nossa discussão, tendo em vista os seus
níveis distintos de diferenciação. Todavia, o conceito da consciência se estabelece
sempre do mesmo modo. Daí não se pode concluir, pois, que o desesperado tenha a
consciência de se constituir como tal. Desta feita, a consciência interior é caráter
determinante e decisivo para o estabelecimento do sujeito. Ao se tratar do eu, a
consciência interior torna-se fundamental e mister para a sua real significação de si e
para si: a consciência fornece a linha tênue da medida do processo interno de
individuação, sem haver a possibilidade da desmedida caótica dos gregos antigos:
consciência e existência do eu são diretamente proporcionais.
Pode-se distinguir abstratamente as diversas
personificações do desespero perscrutando os diversos
fatores desta síntese que é o eu. (...) Quanto mais
consciência houver, tanto mais eu haverá; pois que, quanto
mais ela cresce, mais cresce a vontade, e haverá tanto mais
eu quanto maior for a vontade. Em um homem sem
vontade, o eu é inexistente; mas quanto maior for a
vontade, maior será nele a consciência de si próprio.
(KIERKEGAARD: 2010, 45)
No âmbito da relação entre desespero e consciência como conceito e fator
decisivo em tal correspondência, é interessante observar a caracterização do pai de
Paulo Simões na narrativa estudada. Em uma conversa entre pai e filho durante uma
visita deste último à residência dos pais, Paulo Goldberg Simon dialoga com o médico
da família acerca do estado de saúde de sua mãe. Ela, mediante os seus oitenta e seis
anos de existência, passa a sofrer um processo de desgaste natural do corpo, uma
espécie de consumpção generalizada por motivos estritamente etários. Entretanto, seu
pai, já com uma neurastenia natural acarretada pela idade, nada mais compreende –
67
mesmo que de forma errônea – a suposta existência de um câncer em sua esposa.
Apesar das inúmeras tentativas elaboradas por Paulo e pelo médico a fim de explicar
que não se tratava de um carcinoma, mas sim de uma autofagia do próprio organismo,
os pais não compreendem e insistem na possibilidade infundada do tumor maligno. A
partir de tal diálogo aparentemente desconexo, Paulo e seu pai iniciam uma discussão
sobre as suas próprias origens judaicas.
No momento em que Kierkegaard teoriza que “em um homem sem vontade, o eu
é inexistente; mas quanto maior for a vontade, maior será nele a consciência de si
próprio” 45
, é absolutamente plausível pensar na construção narrativa de Joaquim
Goldberg Simon46
em relação ao item vontade anteriormente citado. No pequeno e
breve diálogo estabelecido entre Joaquim e Paulo – pai e filho –, é possível perceber a
coerência de sua psyché por detrás da aparente neurastenia causada supostamente pelo
Holocausto47
: Joaquim sempre se encontrara em sua condição de judeu, apesar de fazê-
lo muitas vezes às escondidas da própria família. Joaquim nunca deixara de celebrar o
Yom Kippur e nunca o filho havia percebido tal feito. Desta feita, verifica-se a
complexidade da personagem em questão e a sua polaridade em relação ao protagonista:
enquanto Paulo é a personificação da ausência da vontade e engajamento e, além disso,
niilifica a condição de se tornar próprio na síntese entre liberdade e necessidade durante
45
KIERKEGAARD, S. O desespero humano. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 27. 46
Ao fazer referência ao sobrenome do personagem em questão, opto por reverter ao seu nome
judaico de origem, na medida em que ele passa a reconhecer-se em sua identidade judaica.
Nesse sentido, a concepção de Joaquim como indivíduo é estabelecida através do ato voluntário
de sua consciência interior e vontade. Assim, a sua origem é reconhecida em diversos fatores,
como o hábito atrelado à identidade, ao caráter, ao modo de ser, pensar ou sentir (o ‘έθος
estritamente ligado ao ‘ήθος) e, nesse caso, no sobrenome “Goldberg Simon” como alternativa
ao “Simões”. 47 No capítulo 4 da presente dissertação, o conceito de holocausto será revisado a partir da
percepção teórica de Giorgio Agamben, sendo que, a partir daí, tal termo será substituído
veementemente pelo vocábulo Shoah, devido ao caráter etimológico pejorativo que a palavra
holocausto guarda.
68
longos e infrutíferos anos – no âmbito de consciência pessoal e personativa –, a
configuração do personagem Joaquim revela-se ao contrário: trata-se de um homem
imerso em sua vontade, no engajamento de si próprio tornando-se concreto na aceitação
do seu verdadeira individualidade escolhida.
(...) O velho fala pausadamente, sem raiva dele mesmo,
mas sem pena. Meditara naquelas palavras. Palavras que,
por acaso, com algumas variantes, estão escritas dentro da
pasta que Laura me devolvera pouco antes. Lembro
perfeitamente: havia coisas de dez anos, iniciara um
romance. Tomara, como exemplo, o próprio pai, o homem
que traíra suas origens. A ideia não fora avante, eu
esboçara algumas páginas, algumas situações – e
esquecera tudo. Ficara apenas a ideia central, que um dia
pretendia retomar, aproveitando e ampliando a temática
central, enquadrando-a dentro da passagem do Êxodo, a
noite em que todo um povo resolve abandonar o cativeiro
às margens do Nilo e partir para o deserto, para as pedras e
as montanhas do deserto. Essa noite, que decidiu a história
de um povo – e foi, até certo ponto, a noite mais
importante do mundo –, seria diluída em acontecimento
menor, individual: um homem escolheria a árdua
caminhada pelo deserto, em busca de uma terra que jamais
alcançaria. Seria essa a sua passagem, a sua travessia:
conquistar a liberdade – ou a paz – e o importante não era
a conquista em si, mas a travessia, a busca – os pães não
fermentados – e repudiar o cativeiro, a passividade
escrava, o grilhão.
Mais tarde, compromissos imediatos me obrigaram a
escrever outras coisas, só a ambição ficou. É possível que
algum dia, distraidamente, tenha falado do plano ao pai,
ou a algum amigo. Hoje, não me sinto motivado para o
tema. Mesmo porque a grande motivação – cortar os
grilhões – fora superada no plano pessoal. Rompera meus
grilhões interiores – (tanto Laura – dourada algema) – e se
não chegara a terra alguma, pelo menos me sentia livre.
- Está prestando atenção, meu filho?
O velho continuara falando, eu não o ouvira. Digo que sim
com a cabeça e me concentro na conversa. Ele conclui
uma espécie de confissão:
- Não queria terminar meus dias sem me dar conta disso.
Você sabe, cada judeu decide de si mesmo. Ele é quem
escolhe se será ou não um judeu. Eu tinha decidido não ser
69
judeu, e assim vivi. Agora, que sinto o fim próximo, ao
lado de sua mãe, uma ruína, sem mais futuro, quero
incorporar-me à minha raça. No fundo, queira ou não
queira, é também a sua raça.
- O senhor decidiu ser judeu. Está certo. Pois eu decido
não ser judeu, e também estou certo.
O pai não ouve. Continua no mesmo tom:
- Você precisa ler o capítulo 16 do Levítico. É a descrição
do Arrependimento, base da festa de Yom Kippur.
- Nunca tinha percebido isso. Mesmo em minha infância?
- Sim. Fazia-o às escondidas, não queria que sua mãe nem
você suspeitassem. Você nunca desconfiou, não?
- Não. Sinceramente, nunca.
- Pois é um alívio saber disso. Quando eu era criança,
vivia num lar como o seu: meu pai, judeu assimilado,
também decidira não ser judeu. Fui educado na ignorância
da lei judaica. Um dia, em minha infância, entrei em seu
quarto, encontrei-o vestido de branco, voltado para a tarde
que caía. Recitava em voz baixa o cântico que mais tarde
vim a saber que era o “Kol Nidre”, o hino da aflição da
alma. Fiquei quieto, no meu canto. Quando o pai acabou,
deu comigo. Perguntou se eu estava ali havia muito. Disse
que sim. Não esqueço o tom de sua voz quando me pediu:
“Não diga nunca a ninguém que me viu fazer isso.”
- Pois o senhor pode ficar tranquilo. Eu nunca o vi fazer
isso.
O pai está arquejante. Aquilo lhe custara um esforço difícil
e compenetrado. Toma o copo de cerveja, aos goles, como
se fosse remédio.
- O senhor também obedece aos jejuns, aos alimentos
proibidos?
- Quando posso. Tenho a obrigação de ser judeu, mas sou
casado com uma cristã. Espero que ela morra primeiro...
- E se o senhor for antes dela?
Ele faz o gesto com a mão, como se a hipótese fosse
absurda:
70
- Ela vai primeiro. Eu sei o que digo. A menos que ocorra
uma perseguição. Então, farei questão de ir para as ruas
com a estrela-de-davi nas costas. Ou, conforme o caso,
não deixo que ninguém bote a mão em mim e nela: vamos
juntos, na mesma morte. (CONY: 2007, 89-91)
No trecho acima, o diálogo entre o pai, Joaquim, e o filho, Paulo, pode ser
perceber uma relação dialética entre os indivíduos ligados por sua gênese em comum,
mas incompatíveis na esfera de suas próprias epistemologias: enquanto Joaquim
Goldberg Simon leva seriamente em consideração a sua condição judaica, Paulo, por
sua vez, é um assimilado e renega as suas origens. Nesse sentido, os dois personagens
são configurados na dialética da relação, em que um se estabelece como o contrário um
do outro no que diz respeito à consciência e compreensão de uma origem semita em
comum, apesar da união intrínseca de sua idiogênese. Joaquim elaborara a travessia, a
busca, os pães não fermentados fundamentais no repúdio do cativeiro de si, cortando os
grilhões e os libambos que o impediam de se tornar próprio e concreto.
Kierkegaard, ainda no capítulo “Do desespero considerado não sob o ângulo da
consciência, mas apenas quanto aos fatores da síntese do eu”, afirma que o
conhecimento vai de par com a consciência.48
Em caso contrário, em que a consciência
não esteja alinhada em um processo simbiótico com o conhecimento, este, em sua
aparente progressão, cria-se como um conhecer monstruoso que o indivíduo utiliza para
acabar por malbaratar o eu durante a sua edificação movediça: constrói-se um eu fake
para que, a curto ou médio prazo, ele seja diluído em bases que não sejam sólidas
exatamente pela ausência fundamental da consciência: eis a pseudo concretização do eu
em vias de simulacro vital. À medida que se incorpora o caráter consciente ao
conhecimento de si, o sujeito passa a ter as suas bases sólidas para a real experiência – a
48 KIERKEGAARD, Søren. “Do desespero considerado não sob o ângulo da consciência, mas
apenas quanto aos fatores da síntese do eu”. In: O desespero humano. São Paulo: Editora
Unesp, 2010. p. 48.
71
Erfahrung benjaminiana – e desconstituir a monstruosidade kierkegaardiana de um
conhecimento aparente, volúvel e sem significação a longo prazo, sem haver, portanto,
o desperdício do eu – “um pouco como o desperdício de vidas humanas para construir
as pirâmides ou vozes nos coros russos só para produzir uma nota, uma única.” 49
A partir do momento em que o indivíduo não tem a consciência atrelada ao
conhecimento de sua objetivação vital – prendendo-se apenas a diferenças pífias sem
que reconheça a sua única necessidade no autoprocesso de travessia e busca de si
próprio –, ele passa ao estado de indigência, de estreiteza humana pela falta e/ou perda
do eu, disperso, assim, em sua clausura do finito ao invés de dissipar suas moléculas
particulares na esfera do infinito: em vez de se tornar único, o indivíduo retém-se no
âmbito do “mais um” – uma eterna e cíclica repetição do nada pelas vias do simulacro.
Kierkegaard ainda afirma que “a nossa estrutura originária está, com efeito,
sempre disposta como um eu que deve tornar-se ele próprio; e como tal, é certo que um
eu tem sempre ângulos, mas daí apenas se conclui que é preciso dar-lhes resistência, e
não limá-los”.50
. Em hipótese alguma o indivíduo deve abdicar de ser próprio ou não
aceitar sê-lo por razões temerárias em relação à alteridade: é preciso ser o estandarte da
originalidade de si na qual reside a plenitude do ser, tendo em vista o fato de que
“tornar-se é partir, mas tornar-se si próprio é um movimento sem deslocação” 51
, isto é,
a consciência do ato real de existir é um processo idiossincrático e silencioso, no qual
somente o sujeito é capaz de interpretar a configuração de si em uma constante e cíclica
renovação de sua busca em espasmos de (re)descobertas do eu.
49
Cf. Idem. 50
Cf. Ibidem. p. 50. 51
Cf. Ibidem. p. 53.
72
No instante da transformação em direção à sua originalidade, ele encontra o
possível e a necessidade como itens essenciais para o tal processo, levando em
consideração a fundamental existência da liberdade de si para si: o desespero, portanto,
ocorre tanto pela ausência do possível quanto pela ausência de necessidade. Sem eles,
não há busca, não há travessia, não há renovação: apenas corrobora-se um devir sem
sentido e sem direção, inerte em sua significação maior e ampla caminhando, cada vez a
passos mais largos e com grilhões mais pesados, para o vácuo do homem.
Pessach: a travessia possui, de forma até mesmo um tanto quanto natural, uma
estruturação de enredo dividida em três partes, de modo geral: a primeira, em que Paulo
Simões ainda não fora despertado da inércia individual e, portanto, não iniciara o longo
e doloroso processo de travessia, de passagem por cima; a segunda, em que há o
diálogo de importância notabilíssima entre Joaquim Goldberg Simon e Paulo, além da
existência de uma série de decisões – aparentemente – involuntárias que começam a
surgir a partir de seu “recrutamento compulsório” no grupo da guerrilha de Sílvio e
Vera; e, por fim, a terceira, na qual o protagonista se insere na autocompreensão de seu
ser, mergulhando no nível da categoria de consciência interior atrelado à necessidade da
busca de tornar-se próprio.
Em um estágio primeiro, é possível considerar o protagonista da obra de Carlos
Heitor Cony, Paulo Simões, como uma espécie de homem do espontâneo. Segundo a
teoria de Søren Kierkegaard, esse tipo de imediatismo relativo ao ser refere-se à esfera
do mundo material, físico, prático, sendo o homem do espontâneo algo que não
ultrapasse a passividade, “sem outra dialética que não seja a do agradável e do
desagradável, nem outros conceitos além dos de felicidade, infelicidade, fatalidade”52
. O
espontâneo não permite, pois, o fluido devir, mas sim o sobrevir irreflet ido que
52
Cf. Ibidem, p. 71
73
promove o desespero de alguém que, de per si, não tem a capacidade de produzir a
reflexão.
Nesse sentido, adentramos a órbita do desespero-fraqueza kierkegaardiano
quando se faz referência à primeira fase de Paulo Simões, na qual este não se quer ser
próprio e, por sua vez, vive na sombra de si. Tudo o que vivencia é espectro,
representação de algo inexistente de fato e que só subsiste na espontaneidade
superficial. A estrutura profunda não pode ser descoberta a partir do momento em que o
conhecimento não está amalgamado à consciência: o que há, portanto, é apenas uma
vivência fugaz e irrefletida que não é capaz de gerar os árduos processos de genuínas
experiências. Esse é o desespero do imediato, no qual o indivíduo não almeja ser si
próprio ou, ainda de forma mais complexa, não quer ser um eu. Talvez caiba a
possibilidade de desejar ser um outro em um processo de alienare, aniquilando o seu ser
pois a espontaneidade não possui individuação, não possui conhecimento de seu
psiquismo interior:
Desespera, portanto, e o seu desespero consiste em não
querer ser ele próprio. (KIERKEGAARD, 2010:76)
Um dos vocábulos mais característicos do homem do imediato é a passividade.
O indivíduo que retém o seu caráter irrefletido em seu espírito é, de forma absoluta, de
uma extensa fragilidade e instabilidade e qualquer fato que o queira transformar em ato
a partir do movimento da reflexão acaba levando-o ao desespero irracional e
injustificável, dificultando a possibilidade do regresso. É interessante perceber como a
questão da perda do aspecto temporal está inserida no caráter passivo do homem do
imediato: a partir do momento em que o indivíduo se concentra irrefletidamente no hic
et nunc, na instantaneidade das ações carentes de consciência real impregnadas de
Erlebnis de superfície, o quesito “tempo” evapora na volatilidade desse imediatismo,
74
sem que, na maioria das vezes, o sujeito se dê conta do mesmo. A falta de um passo a
mais na trajetória de saída de tal passividade faz com que esse indivíduo considere-se
desesperado na sombra de si mesmo, entregue à sua imobilidade.
Imóvel procuro compreender o que se passou. Vera cobre
o seu corpo – até então ela estava nua e eu nem reparara.
Próximo ao leito, do outro lado, a cara congestionada de
Macedo, as estrias vermelhas e ferozes. Na mão, o
revólver. (CONY: 2007, 203. Grifo meu.)
Percebemos, no trecho acima, o que foi descrito no parágrafo anterior: a questão
da imobilidade do homem do espontâneo frente à sua inércia reflexiva de si próprio e
em relação à alteridade que o rodeia. Nesse sentido, corrobora-se a ideia de indigência
desse indivíduo, da fraqueza espiritual – no sentido do animus latino – que o impede,
nesse momento, de fruir a lei de progresso do eu haja vista a incapacidade, por falta de
vontade, de consciência real dificultando a construção da experiência e perpetuando as
constantes recepções de simulacro. Quando se tem a imobilidade do eu, a representação
é o estágio máximo ao qual o ser pode atingir.
(...) Tudo isso me confunde, não sofro, é verdade, mas não
posso dormir. Também não é uma hora para mais uma vez
refletir. Há quantos anos eu fiz quarenta anos? Fiz
mesmo quarenta anos ou não tenho mais tempo, sou
eterno? Quem sabe se não morri, massacrado também
em Capão Seco, e minha alma vagueia nessas estradas
frias, enlouquecida e penada, sem coragem de aceitar a
realidade da morte? (CONY: 2007, 324. Grifo meu)
(...) os anos, os calendários e os relógios são
escamoteações para os que vivem fora do tempo e, por
isso, precisam medi-lo.(CONY: 2007, 279)
Nos trechos de Pessach: a travessia evidenciados acima, percebe-se a questão
latente da temporalidade atrelada ao indivíduo em seu processo natural de
desenvolvimento, seja este apenas cronológico, isto é, objetivo; e/ou subjetivo – o
tempo que caminha não somente de acordo com a sincronia dos relógios, mas a noção
75
de tempo que age conjuntamente à interioridade e seus decursos idiossincráticos. Nesse
sentido, Carlos Heitor Cony trabalha, de modo magistral e extremamente articulado,
com o temporal e sua relação com a transformação de Paulo Simões. A narrativa é
iniciada exatamente no momento em que o protagonista completa quarenta anos de
vida, data esta que não o “irrita nem surpreende”, de acordo com as palavras do
personagem: o movimento interno de consciência de si ainda não fora iniciado,
corroborando a identificação de Paulo ao homem do imediato, aquele que nem sequer
possui um eu suficiente para o movimento ativo do almejar algo ou querer ter sido algo
que não fora, não reconhecendo a si próprio e somente chegando ao inicial seguimento
de reconhecimento fake de um eu voltado para as vias exteriores.
Entretanto, a partir do momento em que Paulo Simões se percebe engajado em
um processo inicialmente involuntário relativo à sua inserção na luta armada contra a
ditadura militar brasileira, todo esse processo passa, paulatinamente, a ser
reconfigurado. O personagem dá mais um passo, mesmo que lentamente, em direção à
real significação do seu éthos, isto é, da sua identidade cujo estopim forçado fora
fundamental para o despertar da consciência de seus quarenta anos de deserto –
quarenta anos sob a égide do apagamento de si no árido universo do desconhecimento
interior.
3.2.2. Ethos e a consciência reflexiva
A segunda fase do protagonista na obra estudada, isto é, o estágio em que Paulo
se direciona à significação de sua identidade a partir da conscientização de sua
existência, há uma determinada modificação do desespero-angústia tendo em vista, por
76
menor que seja, a liga entre reflexão e imediato – de acordo com a teoria
kierkegaardiana: o indivíduo, com o mínimo de consciência efetiva que seja do seu eu,
torna-se algo a mais ultrapassando a linha imaginária e subjetiva entre a passividade
completa e absoluta e o mínimo de ação e deslocamento relativos ao conhecimento de
suas próprias estruturas. Mesmo que ele fale estar em estado de desespero, já não será
mais algo absurdo e inerte. Uma parte da travessia já fora iniciada: a busca e, por
consequência, o progresso.
(...) O progresso, neste caso, no puro imediato, está em
que o desespero já não provém sempre de um choque, de
um acontecimento, mas pode se dever a essa reflexão
sobre si próprio, e não é então uma simples submissão
passiva a coisas exteriores, mas, em parte, um esforço
pessoal, um ato. (KIERKEGAARD: 2010, 74)
Há, portanto, a manifestação de um determinado nível interno de reflexão, e,
assim, um efetivo regresso à condição reflexiva do eu: tal começo de ato reflexivo inicia
a ação de escolha através da qual a concretização do si próprio é realizada pela
percepção da diferença entre a esfera interior e exterior, fato que também legitima a
influência dessa escola sobre a questão do eu ao assumir-se como tal. Nesse processo de
assumir-se como tal, tendo em vista a imperfeição do eu seja ele de qual tipo for,
qualquer dificuldade ou choque maior fará com que ele recue aterrorizado ou, então, um
fato que venha a existir vem para evidenciar uma ruptura profunda entre o eu e o
homem do imediato – ou, talvez, o caráter imaginário do indivíduo descobrindo a esfera
da possibilidade que, ao acontecer, seria responsável pela separação do sujeito em
relação ao seu vínculo com o imediato.
Há, desta feita, uma dupla categorização do desespero: a primeira, em que ele é
considerado desespero-fraqueza – indicando a passividade do eu –; e a segunda, na qual
ocorre a manifestação contrária ao seu movimento de afirmação a partir da inserção do
77
elemento consciência, e a reflexão de si próprio faz com que este indivíduo consciente
de si próprio diferencie-se do espontâneo puro relativo ao sujeito desprovido de
consciência real e de reflexão ativa, chegando à defesa do eu. Quanto à segunda
categorização do desespero:
(...) Compreende que a perturbação causaria o abandoná-
lo, e a sua meditação ajuda-o a compreender que se pode
perder muito, sem contudo se chegar ao ponto de perder o
eu; faz concessões e está em estado de as fazer, tendo
sabido distinguir o eu de qualquer exterioridade, e
pressentindo vagamente que nele deve existir uma parcela
de eternidade. (KIERKEGAARD: 2010, 75)
(...) Todo o problema do eu, do verdadeiro, se torna como
que uma porta condenada no mais fundo da sua alma. Sem
nada por detrás, ele toma sobre si, mas inclinando-se para
o exterior, para aquilo a que se chama a vida, a vida real, a
vida ativa; não mantém senão prudentes relações com o
pouco de reflexão que ainda conserva, receando que
reapareça o que se escondia lá no fundo. Pouco a pouco
consegue esquecê-lo; com o tempo chega a acha-lo quase
ridículo, principalmente quando está em boa sociedade,
entre homens de valor e de ação, desses que têm amor à
realidade e estão em bons termos com ela.
(KIERKEGAARD: 2010, 76)
Nesse aspecto, é possível verificar que a partir da inserção da consciência real e
reflexão ativa do indivíduo, este passa a considerar o exterior como um dos reflexos de
seu interior, possibilitando, dessa forma, a sua inclinação para a vida efetiva e nominal –
eis o início da Erfahrung benjaminiana na realidade do eu após a verificação de si
próprio e do eu concreto. O desespero relativo ao elemento do temporal é o tipo mais
inconspícuo do desespero, principalmente em sua segunda forma, ou seja, na forma em
que há o imediato acrescido do caráter reflexivo sobre o eu. Nas palavras de Søren
Kierkegaard, “quanto mais o desespero se impregna de reflexão menos é visível, ou
78
menos fácil é de encontrar. Tão certo é que a maior parte dos homens não aprofunda
muito o seu desespero, o que não prova que o não tenham.”53
Tal segunda forma do desespero passa a ser um progresso significativo:
enquanto a primeira forma caracterizava-se pelo desespero-fraqueza, o indivíduo, em
sua forma posterior, provido da qualidade reflexiva e consciente desespera da sua
fraqueza – a forma primeira não transpunha a consciência, o entendimento da fraqueza;
já na segunda forma, a consciência vai além e sintetiza-se em uma nova categoria dela
mesma: a consciência da sua fragilidade: “(...) o desesperado vê por si só que a fraqueza
é dar tanto valor ao temporal, que a fraqueza é desesperar.” 54
(...) Mas há luz à minha frente, a aurora que nasce para
mim – e para ela caminho.
Espectador solitário da manhã que chega, sigo pouco a
pouco. O riacho abre-se a meus pés. Macedo tivera sorte
em escolher aquele trecho, vejo do outro lado a fácil
margem. Lavo o rosto naquela água que corre, sinto a
aspereza e o calor do homem que há em mim.
O dia clareia, avermelhado e rude. O sol daqui a pouco
pulará no horizonte, expulso do ventre da terra
amanhecida. Dou alguns passos em direção à outra
margem. Estou deixando a terra e penetrando num
estranho espaço, sem raízes. Faço uma volta em torno de
mim mesmo, contemplo o que ficou atrás, mundo de chão
e céu. O sangue da madrugada torna fantástico aquele
território imenso, feito não apenas de chão e céu, mas de
dor e de gente, de águas e claridades, de prantos e afagos.
Estou no vértice do enorme triângulo irregular. Do outro
lado, está o nada, que é pior do que a morte.
Sinto uma alegria selvagem quando abandono a travessia e
retorno à margem. A aurora, agora atrás de mim, esquenta
com a vertigem e o clamor de sua luz vermelha um novo
corpo que surge, afinal obstinado, lúcido.
53
Cf. Ibidem, p. 77. 54
Cf. Ibidem, p. 83.
79
Desenterro a metralhadora – e volto. (CONY, 2007: 331-
332)
Assim ocorre a configuração dessa segunda forma de desespero – o progresso
considerável do indivíduo, levando em consideração a mudança do seu ponto de vista
cada vez mais consciente do seu desespero e, portanto, responsável por elaborar, através
do esforço pessoal que sai da inércia intelectual levando-o à esfera da concretização das
próprias escolhas relativas ao seu eu – na narrativa de Carlos Heitor Cony em relação à
composição do protagonista Paulo Simões, o homem consciente de um novo corpo e um
novo espírito que irrompem através da obstinação e da sua lucidez.
80
Espectador solitário da manhã que chega, sigo pouco a pouco. O riacho abre-se a
meus pés. Macedo tivera a sorte em escolher aquele trecho, vejo do outro lado a fácil
margem. Lavo o rosto naquela água que corre, sinto a aspereza e o calor do homem
que há em mim.
(CONY: 2007, 331)
81
4. Pessach: travessia e deslocamento
Perpassadas as aporias que permanentemente constituem o indivíduo cindido
aqui notadamente representado na figura da personagem Paulo Simões, passa-se a uma
reflexão em que o ethos da subjetividade individual entra em confronto com o elemento
judaico que, mesmo de modo escamoteado, insinua-se na constituição identitária do
protagonista. Entra em cena a reflexão sobre Paulo Simões – cuja constituição étnica
original, mesmo que fora do âmbito de sua aquiescência, nomeia-o Paulo Goldberg
Simon – e sua delicada relação com o pai, absorto em uma aparente neurastenia do
testemunho.
4.1. Vestígios de almas que vagueiam na estrada fria
O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha de Giorgio Agamben pode
prestar-nos um relevante auxílio na compreensão da escrita de Carlos Heitor Cony em
Pessach: a travessia no que diz respeito ao núcleo judaico da trama. Ou seja, para
compreendermos Paulo e Joaquim Goldberg Simon - o primeiro, que nega as suas
origens semitas; o segundo, que mesmo passando grande parte de sua vida sem
confessar o seu éthos judaico, assume a sua identidade para o filho depois de quarenta
anos de seu nascimento.
Agamben recupera o valor do testemunho, a partir da incapacidade de falar
daqueles que foram testemunhas diretas ou indiretas do sistema nazista de Adolf Hitler.
A significação do testemunho encontra-se precisamente naquilo que falta, naquilo que
não é visível e material – na ausência de enunciação provocada pela linha fronteiriça
entre o que é humano e o que se torna inumano a partir dos campos de extermínio e de
82
suas consequentes adjacências epistemológicas quanto à ética, culpabilidade, inocência,
julgamento, absolvição e reconhecimento – grande parte das categorias de base religiosa
e/ou moral têm como base tais fundamentos do direito. 55
O filósofo italiano relembra a dupla etimologia latina do vocábulo da língua
portuguesa, testemunha. O primeiro, testis, significa “aquele que se põe como terceiro”,
cuja lexia em língua latina já havia sofrido alteração morfológica de terstis para testis.56
O segundo, superstes, anuncia aquele que vivenciou determinado fato de modo direto
perpassando-o de início ao fim, sendo capaz, dessa forma, de testemunhar sobre o que
viveu. Nesse caso, portanto, daremos ênfase à significação do primeiro termo, terstis >
testis, tendo em vista a configuração literária – e, portanto, da nossa tentativa de estudo
e verificação teórica – das duas personagens de Cony já mencionadas anteriormente. A
testemunha de recepção, isto é, aquela que absorve o relato a partir da narrativa da
alteridade, não vivenciando o fato em questão, acaba se pondo como terceiro elemento
55 A qualidade de autorreferência do julgamento tem, como uma de suas consequências – de acordo
com S. Satta –, o fato de que a pena não é a consequência do julgamento, mas ele próprio configura-
se como penalidade, segundo uma das máximas do Direito Penal que se revela pela sentença Nullum
iudicium sine poena. Mediante a teoria de Salvatore Satta, “poder-se-ia dizer até que a pena
completa está no julgamento; que a pena infligida – o cárcere, o carrasco – interesse apenas
enquanto for, por assim dizer, prolongamento do julgamento (pense-se no termo justiçar).” (SATTA,
S. Il mistero del proceso. Milano: Adelphi, 1994. p. 26 apud AGAMBEN, Giorgio. O que resta de
Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III); trad. Selvino J. Assman. São Paulo:
Boitempo, 2008. p. 29). O mesmo jurista e escritor menciona que isso significa, também, que “a
sentença de absolvição é a confissão de um erro judicial”, que cada um é intimamente inocente, mas
que o único verdadeiro inocente não é quem acaba sendo absolvido, e sim quem passa pela vida sem
julgamento” (AGAMBEN: 2008, 27).Caso se confirme a ideia, e o sobrevivente tem a plena
convicção de que ela é verídica, então adentramos no campo da possibilidade dos processos serem os
incumbidos pelo enleio das inteligências que durante muito tempo obstruiu as vias de pensamento
sobre a realidade de Auschwitz e dos demais campos de extermínio. É inquestionável, em termos
pragmáticos, o caráter necessário dos processos – como, por exemplo, os julgamentos de Nuremberg
que foram responsáveis pela abertura dos primeiros processos contra os vinte e quatro principais
considerados criminosos da Segunda Guerra Mundial –, entretanto a sua aparente suficiência pode
ter sido responsável por difundir uma falsa ideia de que toda a problemática já estivesse resolvida a
partir de uma burocracia que não traduz toda a complexidade dos campos e dos testemunhos. 56
A etimologia de testemunha é retirada por Giorgio Agamben do clássico de Émile Benveniste, O vocabulário das instituições indo-européias, volume II, capítulo 7. Campinas: Unicamp, 1995, p.
275-280.
83
entre o opressor direto e o oprimido direto. É, portanto, o indivíduo que estabelece o
vínculo com o testemunho indireto a partir de experiências relatadas pelo outro.
Todavia, no caso em que nos detemos, o outro é um ente diretamente ligado à
testemunha em questão: Joaquim Goldberg Simon.
Nesse sentido, é interessante verificar a complexidade da personagem Joaquim
Goldberg Simon. Se o protagonista Paulo Simões configura-se como "testis", uma vez
que ele não passa pela experiência do campo de concentração em momento algum,
Joaquim transita de “testis” a “superstes” na medida em que em um primeiro momento
ele observa o relato sobre as violências do genocídio judaico em sua família e, em um
segundo momento, a partir do retorno ao seu locus originário - a aldeia natal de seus
pais -, ele experimenta tudo o que ouvira em relato, tornando-se, desta feita, uma
espécie de “superstes”, ou seja, há um processo de transição de testemunha indireta à
testemunha direta, finalizando, portanto, em um retorno do mesmo aos ritos judaicos e a
recuperação de sua identidade judaica pós-Shoah, ao contrário de Paulo que não conta
com essa experiência para transitar entre um estado e outro, permanecendo na esfera do
“testis” como judeu assimilado.
– Já vi muita coisa, filho. E, como judeu, vi mais ainda.
Meus parentes, por parte de pai, foram trucidados em
Dachau, Treblinka e Sobibor. Depois da guerra, quando
fiz aquela viagem de negócios, fui ver o que restava de
minha aldeia, terra do meu avô. Tive dois irmãos em
Treblinka, meu pai, que conseguiu fugir antes, escapou do
campo de concentração, mas teve fim pior: morreu
agoniado, acho que sua morte foi provocada por ele
mesmo. Como judeu, membro de uma raça antiga,
conheço muitas espécies de Treblinka. São dois mil anos
de Treblinkas. E aqui, por que não? Por que aqui é
diferente? A Polônia, no início da Idade Média, era
diferente. Para lá fugiram todos os judeus da Europa. E
depois? Você conhece a história.
Lembrava-me dessa viagem, vinte anos atrás, ele
trabalhava para ume escritório de representações
84
comerciais, maquinaria pesada, o Plano Marshall investia
fundo na Alemanha Ocidental, ele fizera bons negócios lá.
Voltara um pouco diferente. Mas não dei importância,
primeiro porque ele tinha suas manias, segundo porque eu
estava mais interessado na minha própria vida. (CONY:
2007, 92)
No diálogo entre Paulo e Joaquim, algumas passagens nos chamam a atenção. O
pai, Joaquim, ao dirigir-se a Paulo diz: “Já vi muita coisa, filho. E, como judeu, vi mais
ainda.” Na referida frase, é possível perceber a questão do olhar: este, por sua vez, é o
encarregado do páthos da alma, administrando toda uma eficácia sobre o
reconhecimento do indivíduo para si – em uma atitude passiva – e para a alteridade –
em uma atitude necessariamente ativa, mínima que seja. Em sua indiscutível força
latente, o olhar é o sustentáculo da manifestação – instrumento e símbolo da epifania e
da revelação a partir de sua faculdade de percepção integral. Assim, há uma relação
comparativa de intensidade do olhar mediante duas circunstâncias: a primeira, como o
fato de ver algo no âmbito da experiência e percepção; a segunda, como a questão do
mesmo ver algo, todavia impregnada pela tal relação comparativa de intensidade a
partir de sua condição como judeu: “como judeu, vi mais ainda”. Há, portanto, uma
relação entre a identidade semita e um maior grau perceptivo de entendimento e
revelação a partir do momento em que ser judeu e, por consequência, ser testemunha
amplia a área de percepção de sua Erfahrung benjaminiana. Joaquim Goldberg Simon
encontra-se em uma situação idiossincrática: ao mesmo tempo em que é o “terstis >
testis” por ter recebido a carga vivencial de seus parentes “trucidados em Dachau,
Treblinka e Sobibor”, a personagem está, também, vinculada à sua condição de
“superstes”, levando em consideração a ida à aldeia – chamada de minha aldeia por
Joaquim – na qual residiu a ala paterna dos Goldberg Simon, com foco em seu avô.
85
Sob esse ponto de vista, percebe-se o ímpeto de Joaquim ao que diz respeito ao
ato de narrar, aproveitando a maior parte do tempo de visita do filho a fim de tentar
repassar a ele algum vestígio de sua experiência. A necessidade de transmissão dessa
experiência – talvez em uma tentativa inconsciente de redução da barbárie já iniciada de
forma considerável na geração da Primeira Guerra Mundial, em que foi possível
diagnosticar, segundo os termos de Benjamin, uma grande pobreza em termos de
experiências comunicáveis pelo fato dos combatentes voltarem silenciosos do campo de
batalha, impedindo a transmissão da Erfahrung – é quase um ponto de neurastenia por
parte da personagem: há o incessante ímpeto da passagem, da propagação retumbante
da narração de pai para filho, em uma espécie de tentativa de desvelamento das veredas
nas quais, caminhando, será possível encontrar os vestígios do tesouro, assim como já
indicara Esopo. Todavia, o tesouro maior descobre-se imaterial: é a saída da inércia do
indivíduo, transformando-o no cerne de suas próprias experiências. De acordo com a
ótica de Benjamin, a narração (Erzählung) é composta por dois elementos fundamentais
em sua configuração: a experiência (Erfahrung) e a memória (Erinnerung), itens
responsáveis pela transmissibilidade dessa tríade fundamental para a saída do limbo da
barbárie do indivíduo. No caso de Pessach: a travessia verifica-se a tentativa de
rememoração (Eingedenken) por parte de Joaquim Goldberg Simon ao relatar toda a
história da família mediante o sofrimento causado pela Shoah – os parentes trucidados,
física e psicologicamente, nos campos de Dachau, Treblinka e Sobibor; a fuga de seu
pai (avô de Paulo) do segundo campo de extermínio mencionado anteriormente – como
artefato de redenção do passado por meio de sua atualização através da passagem de tais
relatos ao filho, produzindo, portanto, uma experiência na qual seja viável ao sujeito
apoderar-se da atualidade de si próprio como fruto e substância de tal realidade
pretérita.
86
4.1.1. O aidós da sobrevivência: o duplo êxodo do deserto e a consciência do ethos
cindido
Em um momento anterior à confissão de Joaquim a Paulo relativa ao seu
cotidiano judaico oculto, é possível verificar um diagnóstico já estabelecido por
Agamben quanto ao sobrevivente57
: o sentimento de culpa e vergonha é um locus
clássico dos renascidos dos campos, configurando-se como o enleio daquele que
sobreviveu fisica e mentalmente. A vergonha passa a ser, então, um dos grandes
sintomas do conflito trágico da modernidade, indicando o perfil do culpado-inocente na
tênue linha da concomitância: ao mesmo tempo em que o indivíduo sente a culpa por ter
sobrevivido em detrimento do outro que não teve o mesmo destino na Shoah –
circunstância esta que interrogações do tipo “porque eu sobrevivi e ele, meu colega de
campo, não? Porque eu e não ele? Porque ele e não eu?” surgem na psyché embaraçada
do sobrevivente. No campo de extermínio, não há a possibilidade de individuação de
vida e morte: ninguém consegue sobreviver e/ou perecer em seu lugar próprio. De igual
modo, pari passu com o sentimento de culpa, vem à tona a pulsão de vergonha, no 57
Ao mencionar o termo sobrevivente, refiro-me a dois perfis do mesmo: o sobrevivente direto
– aquele que vivenciou a realidade dos campos de extermínio e toda a circunstância nazista da
Segunda Guerra – e o sobrevivente indireto – aquele que leva consigo toda a carga passiva da
mesma realidade, através das experiências repassadas por seus ascendentes próximos que, por
sua vez, estiveram presentes na Shoah (ou, em termo estabelecido pelo senso comum, porém
ignorante e insensível, Holocausto –, tendo em vista o fato de que tal termo não somente supõe
uma equiparação inaceitável entre altares e os fornos crematórios, todavia recebe uma herança
semântica precisamente antijudaica por toda a sua carga pejorativa e negativa mediante a
acepção latina do vocábulo holocaustum, oriundo do grego holókaustos – adjetivo este que tem
por acepção literal a expressão “todo queimado”, cujo substantivo é holohaústoma. Por trás de
toda a história semântica do termo, claramente cristã, há o fato de que os padres católicos
faziam uso dele com o fim de traduzirem, mesmo que de modo incoerente, a doutrina complexa
do sacrifício da Bíblia, principalmente em relação ao Levítico e aos Números. A partir da
herança da Vulgata, os padres latinos passam a utilizar o termo holocaustum para estabelecer a –
sua concepção de – exegese sobre os sacrifícios dos Hebreus, como podemos constatar em Hil.,
In Psalm. 65, 23 apud Agamben: Holocausta sunt integra hostiarum corpora, quia tota ad
ignem sacrificii deferebantur, holocausta sunt nuncupata – “Os holocaustos são os corpos
íntegros das vítimas (dos sacrifícios), pois todos são levados ao fogo do sacrifício; os
holocaustos são nomeados”. (AGAMBEN: 2008, 38. Tradução minha).
87
sentido da inabilidade absoluta de rompimento consigo próprio – na tentativa de fuga de
si há o encontro com a impossibilidade de evadir-se: “não se pode esconder o que
gostaríamos de subtrair ao olhar”.58
Nesse sentido, verifica-se um complexo processo de
envergonhar-se: o que se manifesta é, assim, o sujeito pregado a si mesmo em uma
absoluta incapacidade de fuga de si em direção ao esconderijo de si próprio, havendo,
portanto, uma inevitável e incômoda presença do eu diante de si mesmo.
Envergonhar-se significa: ser entregue a um inassumível.
No entanto, este inassumível não é algo exterior, mas
provém da nossa própria intimidade; é aquilo que em nós
existe de mais íntimo (por exemplo, a nossa própria vida
fisiológica). O eu é, nesse caso, ultrapassado e superado
pela sua própria passividade, pela sua sensibilidade mais
própria; contudo, esse ser expropriado e dessubjetivado é
também uma extrema e irredutível presença do eu a si
mesmo. É como se nossa consciência desabasse e nos
escapasse por todos os lados e, ao mesmo tempo, fosse
convocada, por um decreto irrecusável, a assistir, sem
remédio, ao próprio desmantelamento, ao fato de já não
ser meu tudo o que me é absolutamente próprio. Na
vergonha, o sujeito não tem outro conteúdo senão a
própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunha do
próprio desconcerto, da própria perda de si como sujeito.
Esse duplo movimento, de subjetivação e de
dessubjetivação, é a vergonha. (AGAMBEN, 2008: 110)
A vergonha é, pois, uma espécie de sentimento ontológico, que
encontra seu lugar próprio no encontro entre o homem e o ser;
tem tão pouco a ver com um fenômeno psicológico, que Heidegger pode escrever que o ser mesmo traz consigo a
vergonha, a vergonha de ser. (AGAMBEN, 2008: 110, 111)
É no grau em que o ser é entregue ao seu “inassumível” judaico – oriundo de sua
mais profunda intimidade – que figura a existência de Paulo Simões. O “inassumível”
judaico que, por sua vez, reverbera como um caráter “inassumível” holístico, completo,
tendo em vista o fato de que ao não se encarregar de sua identidade semita, ele, por sua
58
Agamben, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad. Selvino
J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 109.
88
vez, acaba por não se incumbir de sua caracterização total, influenciando a falta de
exegese sobre a própria vida até o marco da libertação: o seu aniversário de quarenta
anos, a visita de Sílvio, a privação involuntária na guerrilha até o instante de
compreensão de seus reais, vitais e fundamentais objetivos pessoais do eu próprio.
Desse modo, portanto, é possível verificar um inicial condicionamento de um ser
expropriado – isto é, aquilo que está fora de sua propriedade, sua condição como
indivíduo, nada mais sujeito de seus caminhos – e dessubjetivado. Sob a égide da
suprema e indomável presença do eu embaciado frente a si mesmo, o Paulo Simões
inicial – pré-quarenta anos, desprovido de sua compleição consciente, absorto na
maquinização irreflexiva de sua identidade como sujeito – insere-se em um processo no
qual a consciência é como areia que escapa por entre os dedos da criança na praia,
levada pelo vento em direção a lugar nenhum, escapando por todos os lados e seguindo
um rumo indefinido: concomitantemente, é solicitada de forma irrecusável a presenciar
ao auto-desmoronamento, ao fato de não haver tudo naquilo que deveria ser
absolutamente próprio.
Esse é, pois, um dos pontos de intersecção entre Paulo Simões e seu pai,
Joaquim Goldberg Simon: enquanto o primeiro, inicialmente – volto a frisar: o Paulo
inicial, pré-quarenta anos – é configurado como um ser expropriado e dessubjetivado
pela impossibilidade de assumir-se e pela ausência de consciência efetiva sobre os
traçados próprios de si mesmo, o segundo é tomado, até o momento da confissão ao
filho sobre a sua identidade hebreia, pela vergonha. É pela vergonha que o indivíduo é
tomado por nenhum outro conteúdo a não ser a própria dessubjetivação: trata-se,
portanto, de uma vergonha que não só se isenta de culpabilidade, mas já sem tempo –
absorta em uma intangível inaptidão para que seja efetivado o quebrantamento de si
mesmo, processo este no qual a evasão de si encontra o seu polo na mais absoluta
89
incapacidade de autoevasão: por estar cravado em si próprio e, por consequência,
impedido de sair dos grilhões e amarras do ego envergonhado, o sujeito perpassa a
encruzilhada da impossibilidade da fuga e do esconderijo – de tanto esconder-se, o eu se
perdeu no labirinto de suas próprias vicissitudes, na dupla categoria da vergonha em que
se assume um paralelo entre a passividade e a atividade: ser percebido e perceber são
protagonistas do autorretrato do expropriado, expondo-se como o tónos emotivo mais
particular da subjetividade.
A produção da consciência na presença do discurso é um dos caminhos no
processo labiríntico da subjetivação, na qual, de forma frequente, caracteriza-se por um
movimento traumático de que o indivíduo demora a libertar-se. Sendo assim, a
consciência configura-se em uma instável e quebradiça linha textual e subtextual – ou
seja, exteriorizada e interiorizada – desvelando-se e velando-se, concomitantemente:
nesse ínterim entre o mostrar-se e o guardar-se, o ser sugere a ruptura sobre a qual foi
edificado, isto é, revela - em um movimento quase erótico, de mostrar-se aos poucos,
retirando peça por peça de seu aparato intelectual e psíquico, para depois cobrir-se
novamente – a dessubjetivação essencial que está presente em toda subjetivação. Na
estrutura oculta da consciência e da subjetividade está a vergonha: por constar-se na
enunciação, a consciência possui de per si a consignação à “inassumibilidade” do
indivíduo.
Na circunstância familiar de Paulo e Joaquim Goldberg Simon, mesmo na
ausência da “assumibilidade” inicial de sua etnia intrinsecamente judaica por parte do
primeiro e na instabilidade da mesma pelo segundo – levando-se em consideração que
em apenas um momento da narrativa Joaquim assume a sua ritualística semita para o
filho, Paulo –, percebe-se a sobrevivência do homem após a sua aniquilação em suas
mais raízes particulares: isso não ocorre pelo fato de haver, em qualquer beco
90
existencial que seja, uma essência própria ao sujeito destinada à destruição ou à
salvação, mas sim em função do corte, da incisão, provocada no locus hominibus, isto é,
no lugar próprio do humano – este encontra-se cindido. Os seus lugares, tanto de Paulo
quanto de Joaquim, estão solidificados na ruptura entre o ser que vive e o ser que fala59
,
na linha divisória entre a inconsciência inumana e a consciência – característica
primordial humana.
Nesse sentido, o não-lugar de ambos os sujeitos caracteriza-se pela malograda
articulação entre o ser que vive e o lógos, sendo o homem o indivíduo faltoso em
relação a si próprio e cifrando-se nesse faltar-se e, por consequência, no desvio errante e
no abismo hiante patente em tal circunstância. Seguindo Giorgio Agamben em O que
resta de Auschwitz, é possível encontrar elementos interseccionais e, ao mesmo tempo,
dispersivos e antagônicos nas personagens Paulo e Joaquim Goldberg Simon. Em
relação aos elementos interseccionais entre ambos, o mais evidente é em relação ao fato
de o homem ser um elemento individual em potência e, no instante em que granjeia
reflexivamente a sua capacidade infinita de indestrutibilidade, ele acaba por acreditar
em estar concebendo, de fato, a sua essência.
No caso de Paulo, isso acontece pari passu, desde o momento da visita de Sílvio
e a proposta do mesmo em recebê-lo no grupo comunista da luta armada até o momento
final em que Paulo percebe que, em quarenta anos de existência, nenhum objetivo real
tivera sido traçado em função de sua extrema passividade e inconsciência perante a sua
vida e, assim, passa a ter um objetivo maior em relação ao Brasil, tornando-se, por fim,
si próprio e agente efetivo de sua própria subjetivação: trata-se, pois, de uma dupla
conversão a si mesmo – o judeu que se abstém de sua inconsciência e se assume como
59
AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad.
Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 137.
91
judeu – no caso, Joaquim Goldberg Simon –, e o apolítico que se assume como
engajado na circunstância da guerrilha: eis o caráter alegórico do romance. No caso de
Joaquim, por sua vez, tal procedimento ocorre no instante em que assume para o filho a
sua condição de judeu, revelando-se engajado na causa de sua etnia em sua família
como, por exemplo, no instante em que aconselha ao filho a leitura do capítulo 16 do
Levítico, que é caracterizado pela descrição do Arrependimento, a base da festa do Yom
Kippur. Durante o diálogo entre pai e filho, Joaquim diz: “Não queria terminar meus
dias sem me dar conta disso”. Dar-se conta disso é, portanto, a apreensão de sua própria
essência judaica, saindo do estágio da dessubjetivação e adentrando o espaço da
subjetivação, tornando-se ser falante por parte do ser vivo, e do tornar-se vivo por parte
do tão sofrível e custoso lógos: esses vetores que vão da dessubjetivação à subjetivação
e vice-versa – não coincidindo em um ponto central de intersecção – correspondem são
o lugar do testemunho.
Ao mesmo tempo em que os dois personagens estão em confluência quanto à
apreensão consciente de suas próprias essências a partir do fator sine qua non da
consciência subjetivadora, estão, também, dissonantes em relação à concepção do ethos
que os amalgama, querendo ou não, quanto à circunstância étnica e familiar: enquanto o
pai, depois de anos, assume a sua condição semítica do ponto de vista étnico e religioso,
o filho não se enxerga como tal e refuta qualquer possibilidade de inserção na esfera
judaica familiar. Apesar de diferentes potências individuais, ambos apreendem o real
entendimento de suas essências particulares e desvelam-se, finalmente, como sujeitos da
própria individuação. Legitima e conscientemente denominadas próprias, agentes de
sua história que ocupam o vão do ser outrora imerso em seu inerte umbral de si mesmo.
Nesse processo, reside o caráter alegórico do romance, proposto a partir da
compreensão benjaminiana do termo: há a alegoria da transformação da passividade à
92
ação, da negação à afirmação, da superficialidade à profunda compreensão das
individuações de Paulo e Joaquim.
93
4.2. Deslocamentos reais e metafóricos: a travessia como constitutio e (re)constitutio
(...) Depois da guerra, quando fiz aquela viagem de
negócios, fui ver o que restava de minha aldeia, terra de
meu avô. Tive dois irmãos em Treblinka, meu pai, que
conseguiu fugir antes, escapou do campo de concentração,
mas teve fim pior: morreu agoniado, acho que sua morte
foi provocada por ele mesmo. Como judeu, membro de
uma raça antiga, conheço muitas espécies de Treblinka.
(...).
(CONY, 2007, 92)
No trecho acima, é interessante perceber como, além da questão do duplo
deslocamento de Paulo Simões – o seu deslocamento geográfico em companhia dos
outros guerrilheiros imposto pelas diretrizes do sistema político vigente no Brasil, e o
seu deslocamento interior, epistemológico e consciente, em direção ao assumir-se como
si próprio nas vias da subjetivação, guiado pelas rédeas do seu caráter reflexivo galgado
de modo paulatino –, há, também, a questão do breve – mas efetivo – traço diaspórico
na constituição da personagem Joaquim Goldberg Simon. Após o término da Segunda
Guerra Mundial, Joaquim decide visitar o que restava da aldeia na qual residiu os seus
parentes aproveitando o ensejo de uma viagem de negócios. Nesse momento, a cultura
inerente ao seu caráter personativo torna-se apta a partir do movimento, uma cultura
deslocada de forma contínua, fazendo com que esse deslocamento passe a ser, de fato,
uma acepção cultural e não apenas um modesto ato de transferência ou extensão de
concepções móveis. Pelo contrário, o deslocamento pelo qual Joaquim Goldberg Simon
perpassara outrora – configurando-se como um vasto manancial de mobilidades físicas,
emocionais e, por consequência, hermenêuticas do próprio eu – foi de absoluta
relevância no fundamental processo de saída de sua “inassumibilidade” judaica em
direção ao seu ethos étnico e religioso. No território multifacetado do verbo diasporein,
94
que por si só seria a égide da deslocalização, eis que surge o indivíduo relocalizado em
si mesmo através da libertação dos libambos que, por sua vez, encontravam-se
sedimentados no negrume da inconsciência dessubjetivada do eu.
O termo diáspora, tendo sua origem no verbo grego diasporein, cuja semântica
fundamental está ligada à dispersão, foi bastante vinculado à história dos hebreus na
Antiguidade, a partir do exílio forçado em terras babilônicas no século VI a.C.
Entretanto, a modernidade foi, aos poucos, reformulando essa concepção fixa e
estagnada.
Os tempos modernos e pós-modernos, por mais que essa diferenciação entre
modernidade e pós-modernidade seja complexa demais para discutirmos em um espaço
tão sucinto como o presente escrito, diagnosticaram outros feixes de significação,
incluindo a questão do deslocamento nas recentes elaborações semânticas relativas à
realidade diaspórica.
Nesse sentido, alguns teóricos expuseram de modo bastante significativo
algumas teses sobre o referido tema. Elena Palmero González, em seu artigo
“Desplazamiento cultural y procesos literários en las letras hispanoamericanas
contemporáneas: la literatura hispano-canadiense”, expõe o fato de que James Clifford,
na sua obra intitulada Dilemas de la Cultura. Antropología, literatura y arte en la
perspectiva posmoderna (1995), postula uma exegese relativa ao tema central de como
é possível estudar uma cultura quando esta acaba tornando-se apta ao movimento. Desta
feita, portanto, o autor percebe a cultura como uma forma permanentemente deslocada,
revolvendo a ideia de que a residência é a base do coletivo e a viagem é o seu caráter
complementar, ou seja, Clifford teoriza a possibilidade de as práticas de deslocamento
configurarem-se como uma efetiva acepção cultural, e não somente o simples ato de
transferir ou estender suas concepções móveis.
95
O deslocamento, na visão de Clifford, é imbricado pelo quesito da identidade no
instante em que esta não necessariamente se vincula à continuidade fluida de tradições
ou culturas, mas sim no momento em que à identidade de per si se amalgama as ideias
de deslocalização e relocalização a partir da mobilidade de caracteres. Tal postura
remete ao conceito de cultura translocal, que superaria a ideia de global ou universal e
abrangeria os diversos pontos de encontro nos vários níveis em que pode haver
interpenetração cultural, tais como os locais, regionais e globais. Tal visão consegue
perceber melhor a profunda complexidade que essa mobilidade de múltiplos
deslocamentos pode trazer para a construção de cada indivíduo, levando,
evidentemente, a uma construção identitária ímpar e intercambial.
Dialogando com a visão de James Clifford, Stuart Hall propõe que as estéticas
diaspóricas – que implicam numa série de entrecruzamentos – são naturalmente impuras
na medida em que reorganizam e reconfiguram os materiais originais, atualizando e
modificando tanto as culturas de origem quanto as culturas de adoção. Nesse sentido,
como Palmero González ressalta, a diferença cultural precisa ser compreendida como
um jogo de significados “sempre postergados, relacionais e intercambiáveis.”
Ainda sob a condução elucidativa de Palmero González, é interessante recorrer à
teoria de Edward Said em The World, the Text and the Critics 60
em que o autor
explicaque há uma considerável diferença entre a noção de cultura como posse ou
pertencimento natural e a noção estática, pragmática e cartesiana de pertencimento
imposto, invariável. Nesse sentido, pois, Said estabelece uma distinção entre o conceito
de filiação e afiliação, ou seja, a primeira como um envolvimento infundido,
determinado, e a segunda como um processo voluntário.
60 SAID, Edward. The World, the Text and the Critics. Cambridge: Harvard University
Press, 1983.
96
Para a melhor compreensão do fenômeno do deslocamento, cito, abaixo, um
trecho do verbete preparado por Elena Palmero González para o Dicionário das
mobilidades culturais: percursos americanos61
, organizado por Zilá Bernd:
Pensar a noção de deslocamento no âmbito das ciências
sociais e especificamente na órbita dos estudos da cultura
significa remeter a diferentes formas de mobilidade, física, espiritual, linguística; a diversas práticas de emigração,
exílio, diáspora, êxodos, nomadismos, circulações humanas;
é pensar em translado e em trânsitos de todo o tipo, em
políticas do movimento e em economias da viagem.
Entendido como vivência e prática dos sujeitos, o
deslocamento é um conceito fundamental nos estudos sobre imaginário e memória cultural. Entendido como metodologia
de trabalho, converte-se em paradigma fundamental para
pensar processos culturais. (BERND: 2010, 109)
Em Pessach: a travessia, Paulo Simões vivencia uma curiosa realidade de
intelectual diaspórico em que é possível perceber um processo tríádico na constituição
deslocada do protagonista: em um primeiro momento, Paulo está afundado em sua
inércia existencial, preferindo “prolongar esta dormência”62
que assola sua vitalidade;
no segundo momento, Paulo, através de uma série de acontecimentos que o levam até a
luta armada contra a ditadura militar brasileira, passa a ter que, juntamente aos
companheiros de guerrilha, se refugiar dentro do próprio país em função da repressão
dos militares e buscas efetuadas pelo DOPS; no terceiro momento, mesmo estando a
poucos metros de uma das fronteiras do Brasil pelo Sul, Paulo Simões decide não
efetivar o canônico exílio.
A partir do momento em que o protagonista rompe com o seu estado de
dormência, dos seus próprios e intrínsecos “quarenta anos de deserto”, isto é, de sua
espécie de exílio interno para si mesmo, ele passa a uma outra espécie de deslocamento:
61 BERND, Zilá (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto
Alegre: Literalis, 2010. 62 CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 7.
97
o deslocar-se no trânsito da mobilidade imposta pelo regime militar dentro dos limites
geográficos do território nacional.
Percebe-se, então, dois tipos de condição exilada: no primeiro caso – o exílio
interno da personagem –, há um panorama estático e irreflexivo do sujeito, tendo em
vista, principalmente, as suas raízes judaicas adormecidas por uma memória que não
quer lembrar-se de sua origem, seja por medo imposto pelo pai, seja por sua própria
condição de alienado. No segundo caso, o deslocamento se dá pela própria movência
presente em sua atuação na sociedade: de escritor alienado à indivíduo atuante e prestes
a entrar para a guerrilha contra o status quo. O exílio em várias instâncias passa a
caracterizar Paulo Simões, posto que ele se dá conta do exílio de sua condição de judeu
– exílio esse coletivo, individual e familiar, concomitantemente – e nega, por fim, o
exílio que seria imposto pelo regime ditatorial na medida em que ele não cruza a
fronteira e retorna, ativo e armado, para construir seu país e sua subjetivação própria.
Do exílio interno e interior, imerso na prática póstuma da autorreflexividade
promovida pela atuação em qualquer causa determinada que seja – no caso, a luta
armada contra a ditadura militar –, ao deslocamento sine qua non para a sua própria
memória, vitalidade e cultura, eis a crise. Crise esta fundamental para o despertar inócuo
dos braços de Morfeu.
O trecho a seguir é retirado da cena em que Paulo Simões vai até o internato da
filha para visitá-la no dia em que ele completa quarenta anos. Vejamos um exemplo da
excessiva neutralidade do protagonista que caminha pelas veredas do alienare:
– De qualquer forma, a história fará justiça ao papa. Já
estamos habituadas ao ódio. - Os judeus também. - O senhor é a favor da causa deles? - Não. Não sou a favor de nenhuma causa. Nem contra. Sou
homem e sou neutro. (CONY: 2007, 46)
98
No trecho acima, verifica-se o estado de aparente indiferença de Paulo Simões
em relação ao quesito religião. Entretanto, a partir do excessivo incômodo demonstrado
ao longo da narrativa, percebe-se que há um processo paulatino de construção pessoal
do protagonista: processo este de saída de um discurso e de uma mentalidade
irreflexivos quanto a praticamente todos os acontecimentos de seus quarenta anos.
A partir da visita de Sílvio ao seu apartamento no dia de seu aniversário, uma
espécie de epifania passa a se manifestar nos minuciosos detalhes que virão a compor
seu cotidiano. No instante em que Paulo ajuda a levar um indivíduo que fora capturado
pelo DOPS e conseguira fugir, entretanto bastante ferido e debilitado, e, posteriormente,
é impedido de sair da fazenda utilizada como abrigo para os perseguidos políticos, o
deslocamento de Paulo Simões inicia-se mesmo que involuntariamente.
Quando o protagonista começa a se interessar pela situação imposta em vista que
ela passara a significar a sua existência, isto é, passara a reconstituir o seu ethos
particular, o processo de deslocamento constitutivo se faz: a sua diáspora pelo território
nacional efetiva um complexo processo de estabelecimento identitário do protagonista
em função do próprio deslocamento físico propulsor das fundamentais alterações
epistemológicas do sujeito. Nesse sentido, Paulo Simões atravessa duas espécies de
deslocamento concomitantes: um pragmático, físico, geográfico; outro, epistemológico,
subjetivo, emocional e, principalmente, constituidor de seus passos a caminho da
subjetivação.
Paulo Simões efetua a travessia, a passagem por cima de sua dormência
identitária. O deslocamento da inércia e passividade de outrora recompõe os fragmentos
perdidos nas veredas de um grande sertão de excessiva e acéfala neutralidade que fora
decomposta. Sua residência, o reconhecimento de sua própria persona foi feito em
viagem: viagem esta que é prova contundente de que o entre-lugar pode – e deve – ser o
99
locus da produção por rotas impuras que permitem alcançar o cerne da identidade. A
permanência pode ser a promissão.
100
Conclusão
A escrita de textos romanescos que lidam com temas da história recente corre o
risco de apresentar um caráter panfletário que pode comprometer, de modo irreparável,
a qualidade da obra. Definitivamente, esse não é o caso de Pessach: a travessia uma vez
que, como foi demonstrado nessa monografia, o contexto histórico-político, embora
presente,é apresentado entremeado por um recuo alegórico, que serve, de fato, como
ambientação para a travessia do indivíduo inserido em uma sociedade definida por ele
por seus antolhos e pela castração.
A construção da narrativa e das personagens que a permeiam dialoga
perfeitamente não apenas com o conceito do indivíduo problemático da modernidade,
mas, igualmente, com a própria falta de perspectiva e letárgica vivência em que o
sujeito pode se inserir.
Na dissertação, o conceito de alegoria benjaminiano – que, de fato, teria a sua
exegese dificultada sem o auxílio filosófico de Creuzer e Görres – apesar de ser
extremamente sutil e complexo, foi fundamental para a nossa concepção teórica acerca
de Pessach: a travessia. A alegoria, ao trazer em si o caráter da busca, da interpretação
e da calma contemplativa, faz com que exista o esforço interpretativo e a explosão
semântica necessários à compreensão significativa do passar dos tempos. Embora se
valha do símbolo, ela não retém o enigma e a instantaneidade que aquele possui: a
alegoria é a paisagem na qual residem em linhas pontilhadas – para que após uma
profunda observação, passe a fazer sentido em sua inteireza nunca estática – a natureza
e a História. Ao promover a reflexão, constitui-se. Revela-se de um modo distinto para
cada indivíduo que tenta interpretá-la. Complementar à ideia de alegoria para a
compreensão da obra, são os conceitos de Kierkegaard com os quais foi possível
101
constituir o caminho triádico de Paulo Simões na sua passagem ao longo da narrativa
até a chegada ao estado de consciência do desespero-angústia, motor sine qua non para
a conclusão da travessia, agora em início efetivo de caminhada.
Passagem, ou também deslocamento de condição, seja do pai que se assume
judeu perante o filho, seja do filho que assume a si mesmo diante de si. Retornado é
Paulo, não à condição de judeu, mas à condição de senhor consciente do si próprio.
Finda a passagem, travessia do ser perdido e encontrado em si mesmo através do
processo de reflexão de sua subjetivação, ele se constitui não apenas como herói
problemático, mas pelo paradoxo demonstrado com o auxílio de Lukács, um herói que
se volta para o coletivo nas reminiscências de um microepopeia.
Concomitantemente, ao falar da travessia do indivíduo Paulo Simões, fala-se da
travessia do homem alienado para a tomada de consciência de si mesmo através da
tomada de consciência do mundo. E é justamente esse caráter universal de sua narrativa
– mas ao mesmo tempo individual e local – que torna o romance de Carlos Heitor Cony
uma peça literária sui generis ao narrar uma espécie de odisseia contemporânea em que
o sujeito, perdido de si mesmo, reencontra o seu caminho de volta através de uma
pequena coletividade unida por objetivos próprios.
O retorno não é mais o ponto de partida da narrativa, mas sim o ponto de
chegada do sujeito que se perdera de si mesmo durante alegóricos quarenta anos.
102
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