UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS
GENILSON DE AZEVEDO FARIAS
AUTA DE SOUZA, A POETA DE PELE CLARA, UM MORENO DOCE:
Memria e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte
NATAL
2013
GENILSON DE AZEVEDO FARIAS
AUTA DE SOUZA, A POETA DE PELE CLARA, UM MORENO DOCE:
Memria e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte
Dissertao apresentada como requisito parcial
para obteno do ttulo de mestre, pelo
Programa de Ps-Graduao em Cincias
Sociais, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
Orientadora: Prof Dr Ana Laudelina Ferreira
Gomes
NATAL
2013
Catalogao da Publicao na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Farias, Genilson de Azevedo.
Auta de Souza, a poeta de pele clara, um moreno doce: memria e
cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte /
Genilson de Azevedo Farias. 2013.
191 f.: il.
Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes.
Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais, Natal, 2013.
Orientadora: Prof. Dr. Ana Laudelina Ferreira Gomes.
1. Souza, Auta de - 1876-1901. 2. Negros Rio Grande do Norte
Histria. 3. Memria coletiva. I. Gomes, Ana Laudelina Ferreira. II.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.
RN/BSE-CCHLA CDU 316.7
minha av Ana Barboza de Farias, ou Nana
como era carinhosamente chamada. A minha Dindinha, de quem me lembrei deveras ao escrever
este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Ao trmino do processo de feitura da dissertao, inicia-se o delicioso, porm
cuidadoso, exerccio de rememorar todas as pessoas que, de uma forma ou de outra,
contriburam para a finalizao desse trabalho. Nas falas do historiador Eric J. Hobsbawn, a
funo do historiador lembrar daquilo que os outros esquecem, sendo assim, neste
momento, como historiador que sou, pretendo lembrar daquelas pessoas que me foram
fundamentais nesses ltimos anos, seja estando comigo efetivamente ou cruzando
rapidamente meu caminho.
Deixaram a lembrana saudosa de suas presenas amenizando a rotina solitria e
estafante causada pela escrita do trabalho. Neste espao, declaro publicamente o meu amor,
carinho, admirao e afeto por cada uma dessas pessoas abaixo enumeradas, sem vocs, o
sonho dessa dissertao e do ttulo de MESTRE recebido por mim jamais teria se tornado
real.
Inicialmente agradeo aos meus amados pais, que j pelo dom da vida que me
deram sou imensamente grato. Mas tambm sou grato por todo amor que me ofertaram
durante toda a minha vida, pelo companheirismo e pelo total apoio dado aos meus sonhos,
deixando de lado muitos sonhos pessoais. Conhecendo-os, aprendi de fato o significado da
palavra doao. Por tudo isso e por muito mais coisas que excederiam pginas e pginas no
sou apenas grato, mas feliz por t-los conhecido.
Agradeo a minha tia Francisca Francinete de Azevedo que, desde que eu era
criana, me serviu de inspirao para que eu seguisse a mesma carreira que ela. Lembro-me
das vezes que eu me via encantado em meio s estantes abarrotadas de livros quando eu ia
passar frias em sua casa. Mas tambm lhe sou grato por ter sustentado muitos dos meus
sonhos. Alm disso, em diversos momentos, fez dos meus sonhos os seus prprios, animando-
me e encorajando-me.
Agradeo a alguns professores que alm de exmios pesquisadores que so,
tambm foram dedicados docentes e que amavam transmitir o que sabiam fazendo da sala de
aula um espao rico de aprendizado. minha primeira orientadora acadmica Denise Mattos
Monteiro, a querida Ftima Martins Lopes por suas lies sobre os ndios no Rio Grande do
Norte. Dedico tambm um abrao fraterno s professoras Francisca Aurinete Giro Barreto,
Maria Emlia Monteiro Porto e a professora Flvia de S Pedreira por suas contribuies
valiosas em minha banca de qualificao.
Nas Cincias Sociais, rea que me acolheu nestes ltimos trs anos, dedico um
agradecimento mais que especial aos professores Jos Wilington Germano, Homero Costa,
Lizabete Coradini, Maria da Conceio de Almeida, Jos Antnio Spinelli, por terem dividido
comigo um pouco dos seus conhecimentos. Mas sobretudo, gostaria de deixar aqui registrado
o meu carinho pela professora Roseli Maria Porto que me abriu as portas para os apaixonantes
estudos de gnero e sexualidade. Tambm agradeo sobremaneira s contribuies e
incentivos dados pelo professor Hermano Machado Ferreira Lima em minha banca de defesa.
Tambm no poderia deixar de agradecer grandemente s professoras que juntas
me orientaram nesses anos de mestrado. A querida historiadora Juliana Teixeira Souza que
com sua anlise rigorosa me ensinou que eu deveria ir alm e com quem muito aprendi sobre
o Brasil oitocentista. Agradeo tambm a professora Ana Laudelina Ferreira Gomes que abriu
a possibilidade para que eu me aproximasse dos estudos de Auta desde a leitura de sua tese,
fato que me fez apaixonar pelos estudos de mulheres escritoras oitocentistas.
No poderia tambm deixar de citar pessoas que me so bastante caras e que
durante esses dois anos estiveram do meu lado dividindo sonhos e angstias. Primeiramente
citarei Knia Almeida, que me amparou com seu vasto conhecimento sociolgico em diversos
momentos, mas sobretudo, lhe sou imensamente grato por dispensar a mim sua amizade.
Tambm no poderia deixar de falar de Rodrigo Viana, meu grande amigo de orientao,
Mikelly Gomes, Mara Leal, Jssica Messias, Emanuel Freitas, Arkeley Xnia, Maria Pscoa
e tantos outros colegas que se tornaram e que possivelmente no encontrarei mais no dia-a-
dia.
Outra amiga que esteve comigo nesses anos foi a historiadora e Cientista das
religies Danielle Ventura Bandeira de Lima. A voc que com seu conhecimento, amizade e
companheirismo esteve comigo, mesmo com a distncia existente entre a Paraba e o Rio
Grande do Norte, ajudou-me a levar as dificuldades da vida acadmica. Agradeo tambm a
minha egiptloga favorita, Josiane Gomes da Silva, com quem dividi momentos nicos de
intenso aprendizado. Tambm gostaria de agradecer a Luana Gabriela Fernandes que durante
dois meses em que estive viajando por So Paulo e Rio de Janeiro, esteve comigo, ligando-me
diariamente e mandando-me mensagens ajudando a minorar a solido da pesquisa de campo.
Desde que iniciei meus estudos sobre Auta em 2010, muitas pessoas
representando instituies de pesquisa cruzaram minha vida, no apenas facilitando o acesso a
documentos que eu necessitava, mas cedendo-me parte de suas experincias, do seu otimismo
e do seu saber. Agradeo de incio ao historiador Anderson Tavares, por ter aberto as portas da
sua biblioteca e do seu arquivo pessoal para que eu pudesse pesquisar. Obrigado por ter me
possibilitado ter acesso rica documentao da Casa Comercial Paula Eloy & CIA, sem a
qual possivelmente nossa pesquisa no teria avanado o tanto que avanou. Outro admirvel
pesquisador que contribuiu positivamente para o xito deste trabalho foi William Pinheiro,
mostrando-me o caminho para que eu encontrasse jias preciosas, as quais configuram-se
enquanto pilares da nossa pesquisa.
Tambm no poderia deixar meu abrao fraterno a todas as pessoas que me
acolheram e que contriburam comigo durante dois meses em que estive pesquisando em
instituies de renome dentro do pas. De incio, gostaria de agradecer professora Adriene
Baron Tacla, pelo acolhimento na Universidade federal Fluminense - UFF e por ter me
indicado aos cuidados da professora Larissa Viana, que discutiu comigo pontos importantes
da minha pesquisa. Esta por sua vez, me encaminhou para as professoras Rachel Soihet e
Sueli Gomes Costa, de quem tive o enorme prazer de ser aluno durante um ms na disciplina
Microhistria, memria e Histria Oral: estudos de gnero em foco que fora ministrada
por elas.
Na Universidade de So Paulo - USP, devo um agradecimento ao amigo Tiago
Alves Dias e ao seu professor orientador Rodrigo Ricupero, por todo o acolhimento
dispensados a mim. Deixaram-me saudades bibliotecrios e funcionrios dos acervos da UFF,
da UFRJ, do Museu Nacional, da Fundao Biblioteca Nacional, da Biblioteca Florestan
Fernandes e no Instituto de Estudos Brasileiros na USP, em especial, gostaria de destacar
Mrcia Pilnike, Maria Clia Amaral, Ktia M. Bruno Ferreira, Alice Virgilio, Charles
Campos, Ana Cristina Guimares, Milton Fbio Bougartner. Hoje tenho certeza que fiz
amigos. Aos queridos Otnio Revoredo e Jeferson, secretrios do PPGCS-UFRN, que tiravam
minhas dvidas e resolviam todos os problemas que estavam ao seu alcance. Valeu pelos
conselhos e encorajamentos.
A Renan Alves e Danilo Farias, meus primos queridos que chegavam barulhentos
no meu quarto e que me desligavam do trabalho acadmico para me contarem sobre suas
vidas, especialmente das corridas de cavalos. s minhas lindas Maria Clara, Daniele e Maria
Rita que, cada uma com uma personalidade distinta, povoaram meu quarto com suas alegrias
infantis, em especial a Maria Rita que sempre deixava um bilhetinho ou um desenho em cima
da minha mesa quando eu no estava. Tenho todos guardados. Alm deles, no poderia deixar
de agradecer a Rayla Alves e Rayssa Alves, primas, amigas, confidentes, cmplices e
companheiras em tantos sonhos que juntos sonhamos.
O trabalho acadmico, embora prazeroso, me separou de algumas pessoas
queridas, entre elas destaco as amigas Lays Luz de Menezes, Ana Ceclia Nga e Priscila
Farias, com quem me encontrava para conversar e me distrair. Tambm no poderia deixar de
um grande abrao fraterno para a minha irm de alma Islndia Marisa e a Diana Arajo, a
minha amiga imperial.
Agradeo tambm a minha prima-irm Roseane Alves de Farias, que nos ltimos
anos esteve ao meu lado dando-me foras em momentos em que as minhas fracassavam. Voc
que to diferente de mim, mas que no deixa de ser especial por isso, gostaria de dizer o
quanto sou grato por todas s vezes em que ligou para mim e se importou em saber como eu
estava, ou como estava o andamento do trabalho.
Por fim, agradeo tambm a Andr Luiz Irineu Ferreira, meu amigo desde os
tempos do colgio. Voc que teve pacincia durante esses anos, tendo que lidar com minhas
ausncias e com minhas desistncias repentinas sempre que aparecia, de ltima hora, um
trabalho ou um texto para eu fazer ao que reagia com desnimo, mas que acabava
compreendendo, penso eu. Sei que muitas horas foram roubadas do nosso convvio, mas
mesmo na distncia, fomos companheiros.
Obrigado por tudo!
Os tristes dizem que a vida
feita de dissabores
E a alma verga abatida
Ao peso das grandes dores
No acredito que seja
Assim como dizem, no... Ai daquele que deseja
Viver sem uma iluso!
Se h noites frias, escuras,
Tambm h noites formosas;
H risos nas amarguras,
Entre espinhos nascem rosas. [...]
Auta de Souza
RESUMO
Na primeira metade do sculo XX diferentes grupos de intelectuais estiveram engajados na
busca de um ideal de brasilidade. Nisso, duas correntes so percebidas. A primeira foi
marcada por um vis saudosista em relao ao passado, sendo formulada pelos intelectuais da
regio que ento gestava-se como Nordeste. Esse grupo de intelectuais ressaltava valores e
tradies da aristocracia agrria da regio que perdia visibilidade no cenrio poltico e
econmico do Brasil. J a outra corrente, de carter mais moderno e industrial, foi formada
pelos intelectuais da regio Sudeste que em detrimento da primeira, estava em ascenso. Este
grupo por sua vez, objetivava dar um novo rosto ao Brasil bem como romper com as razes
do nosso atraso que na viso deles estavam ligadas ao nosso passado agrrio. Isso resultou em
diferentes percepes e interpretaes sobre nosso passado histrico, e na construo de
diferentes perfis para o brasileiro. Nesse sentido, nosso trabalho busca entender como se
produziu uma escrita que silenciava a ancestralidade mestia de Auta de Souza (1876-1901)
haja vista a posio que ela deveria ocupar dentro do projeto dos intelectuais que ficaram a
cargo da formao de uma memria para o nosso estado. Auta enquanto personagem histrica
relevante nesse projeto dos intelectuais potiguares foi alada condio de mulher modelo e
elegida no panteo das poetas mais amadas do Rio Grande do Norte, todavia, para que
pudesse ocupar tal posio teve sua ancestralidade racial escamoteada nos escritos que esses
mesmos intelectuais fizeram sobre ela, o que, por sua vez, se estendeu em lugares de memria
e em rituais de carter religioso e cvico.
Palavras-Chaves: Auta de Souza; Negros; Memria coletiva.
ABSTRACT
In the first half of the twentieth century different groups of intellectuals were engaged
in the pursuit of an ideal of Brazility. Thereon, two currents are perceived. The first
was marked by a nostalgic bias about the past, being formulated by intellectuals from
the region that was turning as Northeast. This group of intellectuals emphasized values
and traditions of the agrarian aristocracy of the region that was losing visibility in the
political and economic Brazil scene. Already the other current has a more modern and
industrial feature, was formed by intellectuals from the Southeast that in detriment of
the first, was rising. This group, on the other hand, was intended to give a new face to
Brazil and break with the "roots" of our delay that in their view were linked to our
agrarian past. This resulted in different perceptions and interpretations of our historical
past, and the construction of different profiles to the Brazilian. Accordingly, our work
seeks to understand how was produced the writing that silenced the mixed ancestry of
Auta de Souza (1876-1901) considering the position that she should occupy in the
intellectuals projects who were in charge of forming a memory for our state. Auta as
a relevant historical character in this project of potiguares intellectuals, she was raised
to the condition of a model woman and elected in the pantheon of the most beloved
poets of Rio Grande do Norte, however, to occupy such prestigious position she had
her racial ancestry concealed in the writings that these same intellectuals had written
about her, what is still spreaded in memory and rituals places of religious and civic
features.
Keywords: Auta de Souza (1876-1901); Black people; Collective memory.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Banner do Evento Auta de Souza: Vida Breve... Obra
Aberta....
16
FIGURA 2 Auta de Souza (1876-1901)..
27
FIGURA 3 A posio de Macaba no seio do sistema hidrogrfico do Rio e
das principais reas de produo agropastoril..............................
30
FIGURA 4 rvore genealgica da famlia de Auta de Souza.........................
39
FIGURA 5 Prdio onde serviu de residncia famlia Castriciano de Souza
na ento Rua do comrcio em Macaba........................................
60
FIGURA 6 Eloy de Souza e Henrique Castriciano de Souza, irmos de
Auta..............................................................................................
67
FIGURA 7 Lus da Cmara Cascudo..
69
FIGURA 8 Eloy Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina de Paula
Rodrigues, pais de Auta de Souza................................................
75
FIGURA 9 Vaqueiro........................................................................................
81
FIGURA 10 Eloy de Souza...
88
FIGURA 11 Vendedoras de po de l...............................................................
108
FIGURA 12 Uma senhora brasileira em seu lar................................................
111
FIGURA 13 Auta de Souza, ilustrao de David Ossipovitch Widhopff
(1867-1933) para a segunda edio do Horto...............................
118
FIGURA 14 Capa da Revista A Mensageira de 15 de junho de 1898..............
134
FIGURA 15 Notcia sobre a publicao do Horto............................................
136
FIGURA 16 Necrologia.................................................................................... 145
FIGURA 17 Capa do Opsculo memria de Auta de Souza.........................
147
FIGURA 18 Biblioteca Auta de Souza............................................................. 148
FIGURA 19 Bandeira do municpio de Macaba..............................................
152
FIGURA 20 Imagem de Auta de Souza pintada pelo artista Welington
Potiguar.........................................................................................
153
FIGURA 21 Busto erguido em homenagem a Auta de Souza..........................
157
FIGURA 22 Fotografia da atriz Tas Arajo interpretando Auta de Souza
para o vdeo da srie de Tv Heris de Todo Mundo...................
160
FIGURA 23 Fotografia da atriz Marinalva Moura interpretanto Auta de
Souza no documentrio Noite Auta, cu risonho de 2008............
162
FIGURA 24
Desenho de Auta de Souza........................................................... 164
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Porcentagem de escravos na populao total...............................
33
SUMRIO
1 INTRODUO..
16
2 AUTA DE SOUZA (1876-1901): CONHECENDO NOSSA
PERSONAGEM.............................................................................................
27
2.1 A Provncia do Rio Grande do Norte e Macaba nos Oitocentos: o
cenrio da nossa histria...............................................................................
29
2.2 Escravido, Trabalho e ascenso social: retratos de famlia......................
33
2.3 As idias cientificistas da segunda metade do sculo XIX e os
Castriciano de Souza.....................................................................................
47
2.4 Auta de Souza: uma trajetria de vida........................................................
56
2.5 Narrativas sobre Auta: Henrique Castriciano de Souza, Eloy de Souza
e Cmara Cascudo e a escrita de uma memria para o Rio Grande do
Norte................................................................................................................
64
3 A FAMLIA CASTRICIANO DE SOUZA: O SILENCIAMENTO DA
COR E A FORMAO DE UMA REPRESENTAO
ARISTOCRTICA.......................................................................................
75
3.1 Imagem e auto-imagem da famlia Castriciano de Souza..........................
77
3.2 As mulheres da famlia: Dindinha, Tat Cosma, Chiquinha, Cordina,
Zulina e Henriqueta.......................................................................................
91
3.3 Os escravos e agregados da famlia..............................................................
104
4. AUTA DE SOUZA: A FORMAO DE UMA IMAGEM E A
MEMRIA PERPETUADA.........................................................................
118
4.1 A formao de uma imagem para Auta de Souza.......................................
120
4.2 Lugares de memria e as tradies inventadas: a cristalizao de uma
representao..................................................................................................
144
5 CONSIDERAES FINAIS
167
FONTES E BIBLIOGRAFIA...
173
16
1 INTRODUO
Magrinha, calada, era com o mano Irineu, de pele clara, um
moreno doce vista como veludo ao tacto. (CASCUDO, 1961, p. 33, grifos nossos).
FIGURA 1: Banner do Evento Auta de Souza: Vida Breve... Obra Aberta1.
Quando iniciamos os estudos acerca da escritora Auta de Souza (1876-1901) no
mbito da Iniciao Cientfica, tivemos acesso a todo um manancial de informaes que
complementaram os conhecimentos adquiridos na graduao, fato este que nos fez pensar na
possibilidade de estend-los a outras pessoas sob a forma de palestra. Nesse sentido,
organizamos em co-parceria um mini-curso destinado a pensar e discutir a atuao dessa
poeta, bem como a sua contribuio intelectual para as letras femininas do pas2.
1 Retirado do arquivo pessoal do autor.
2 O mini-curso foi intitulado: Auta de Souza: Vida Breve... Obra Aberta teve a co-participao e
elaborao de Claudia Juliette Nascimento Arajo e coordenao da Professora Ana Laudelina
17
No referido mini-curso explorvamos diversos aspectos de suas vivncias e a
amplitude que sua imagem e obra alcanaram como tambm sua vinculao post-mortem com
o espiritismo kardecista. Nesse nterim, um detalhe na nossa fala mexeu com a ateno de
alguns participantes que assistiam s apresentaes realizadas: o fato de Auta ser negra ou
como mais comum hoje a utilizao do termo afrodescendente3. Muitos questionavam: Auta
era negra? De onde vem esta ligao? A Auta no esta moa branca que aparece no banner
do evento? (FIG. 1) 4
. Foram indagaes como esta que foram determinantes para se pensar
em realizar um estudo mais detalhado a respeito desta ancestralidade.
Acreditamos que esse espanto provocado se deu pelo fato de ns estarmos
ressignificando um mito h muito tempo cristalizado na memria coletiva do estado do Rio
Grande do Norte e cuja imagem passou a ser discutida a partir da tese da professora Ana
Laudelina, intitulada: Auta de Souza: representaes culturais e imaginao potica5.
Acreditamos que este trabalho rompe com as construes biogrficas e representaes at
ento formadas sobre Auta6.
Ferreira Gomes. A iniciativa de desenvolver esta atividade se deu em decorrncia da inteno de proporcionar aos alunos do Ensino Mdio da rede pblica e privada uma maior aproximao com a
escritora e sua obra, haja vista que o Horto, nico livro escrito por Auta, foi contemplado para ser
uma das obras literrias obrigatrias do vestibular da UFRN no binio de 2009/2010. 3 Segundo Livio Sansone, o termo negro s comeou a adquirir uma conotao diferente e positiva
aps comear a ser empregado pelos primeiros etngrafos da cultura negra no Brasil, a saber: Manuel
Quirino, Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson Carneiro e Gilberto Freyre. Alm do termo
negro, estes estudiosos tambm utilizaram o termo afrodescendente ou afro-brasileiro para transmitir a idia de que se tratava, de um componente da cultura brasileira de influncia africana.
Esses termos se popularizaram a partir da atuao da Frente Negra Brasileira, organizao de forte
representatividade do incio da dcada de 1930. A partir desse momento diversas organizaes negras incorporaram o termo negro em seu nome tais como o Teatro Experimental do Negro, do Movimento
Negro Unificado e da Pastoral do Negro da Igreja Catlica. Atualmente, tanto o termo negro quanto,
afro-descendente e afro-brasileiro esto ligados a uma conotao positiva. Na auto-identificao da cor, o termo negro conota orgulho pela negritude e , implcita ou explicitamente, uma categoria
poltica [...] (SANSONE; 2004: 74). Tanto que este antroplogo salientou que muitos dos
entrevistados em sua pesquisa se auto-identificavam negros, mesmo sendo eles facilmente rotulados
pelo entrevistador como preto, escuro, sarar, mestio, moreno e at moreno claro (SANSONE; 2004: 74) 4 A utilizao num primeiro plano da imagem A Leitora do pintor francs Jean-Honor Fragonard
(1732-1806) foi intencional, haja vista que acreditamos que esta pode ser eleita como a principal representao visual existente no imaginrio social do Rio Grande do Norte acerca de Auta. Alm
disso, nesse imaginrio, a escritora representada como sendo uma moa de traos brancos, catlica,
de gostos e comportamentos aristocrticos e que nada a conecta ao universo afro-descendente.
5 O conceito de memria coletiva, ou em outros termos, memria social, que utilizamos nesta pesquisa
foi tomado de emprstimo do autor Maurice Halbachs em seu trabalho A Memria Coletiva (1990).
Em linhas gerais, a memria coletiva tal qual formulada por ele est ligada construo, partilha e transmisso pelo grupo ou pela sociedade que a referida memria faz parte. 6 Neste trabalho, passamos entender as representaes sociais enquanto uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prtico, e que contribui para a construo de uma
18
Aps leituras mais acuradas chegamos concluso que o desconhecimento da
ancestralidade negra de Auta estava atrelado a um outro processo que objetivava invisibilizar
deliberadamente da memria coletiva do nosso Estado e do nosso pas o legado cultural de
indivduos vistos como subalternos. E dentro dessa realidade inclui-se os descendentes de
africanos, especialmente aqueles que trouxessem as marcas da raa negra7 de forma
acentuada, sobretudo na cor da pele8.
Vale deixar claro, que no contexto oitocentista o processo de marginalizao desses
grupos sociais no se fazia apenas nos discursos, mas tambm nas polticas do imprio e no
dia-a-dia ganhando fora, sobretudo com as idias cientificistas que passaram a vigorar a
partir da dcada de 1870, momento em que a poltica de dominao saquarema, que
delimitava limites bastante rgidos entre os grupos sociais daquele contexto, rua por causa da
desagregao da escravido (MATTOS, 2004). Nesse momento, Auta e seus irmos nascem,
passando nas dcadas posteriores a assumir cargos de realce no espao da poltica e da
intelectualidade, espaos antes de predomnio de uma elite que se via branca.
Alm disso, as imagens que ligavam os negros a um mundo subalterno ganhou
respaldo com as novas ideias cientificistas que foram trazidas da Europa tais como o
Darwinismo social e a Eugenia. Elas surgiram como busca de uma forma necessria de
reforar a dominao da ento classe burguesa que ainda movia-se orientada por um
realidade comum a um conjunto social (JODELET, 2001: p. 22). Ao longo de um sculo, toda uma
fortuna crtica foi produzida em torno de Auta e de sua obra por muitos intelectuais norte-riograndenses e de outras partes do Brasil. Cada um a seu modo, ajudou a formular uma determinada
representao da escritora que a qualifica como mulher-modelo como foi salientado acima. 7 Lvio Sansone, coloca que o conceito de raa est ligada a um determinado fentipo sendo tal
categoria bastante discutida nos crculos acadmicos sobre sua aplicabilidade ou no nos trabalhos
antropolgicos, discusso esta que no pretendemos estender aqui. Assim ele coloca: parece cada vez
mais difcil opor a essa fora de raa a afirmao moral [...] de que no existem raas verdadeiras
mas apenas raa humana [...] (SANSONE, 2004, p. 16). Para Phillipe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart, a categoria raa est ligada ao conjunto de indivduos que possuem em comum um
determinado tipo de caracteres fentipos hereditrios. A raa, segundo eles s tem importncia quando
ela sentida subjetivamente como caracterstica comum e constitui uma fonte da atividade comunitria, ou seja, a raa noo de raa passa pela percepo das diferenas fsicas, pelo fato de
elas terem uma incidncia sobre os estatutos dos grupos e dos indivduos e as relaes sociais
(POUTIGNAT; STREIFF-FENART; 1998, p. 41). 8 interessante observarmos que no caso do Rio Grande do Norte atualmente se utiliza o termo
moreno para se referir aos afrodescendentes ao passo que no se v a utilizao de negro, crioulo,
mulato ou outra categoria semelhante. Segundo Lvio Sansone, o termo moreno enfrenta objeo dos
militantes negros que o vem como encarnando a ambigidade e a hipocrisia da classificao racial no Brasil. O termo ganhou ampla popularidade por sua utilizao nas letras das msicas de
cunho popular no Brasil, ele [...] refere-se a uma combinao de coisas, que vo desde o mestio at
uma idia de todos os brasileiros, ou at o resultado da mistura de todos os brasileiros de cores diferentes [...] (SANSONE, 2004, p. 86).
19
sentimento aristocrtico, frente massa de homens pobres e livres (SCHWARCZ, 1993).
Indicativo dessa poltica foi a ideia de civilizar o pas branqueando-o, o que se estendia aos
registros que se faziam de homens e mulheres tidos como mestios que ocupavam posies de
destaque9. Acreditamos que Auta e sua famlia passaram por esse processo, tanto que nos
escritos que se fizeram sobre eles, raros so aqueles que sequer tocam nesse assunto.
Parece-nos tambm que foi no esforo de difuso de uma memria centrada nas
glrias passadas de uma regio marcada pelas tradies sertanejas que se produziu o silncio a
respeito da presena de negros e ndios no Rio Grande do Norte. Acreditamos que o silncio
na escrita da memria acerca das experincias e papis desempenhados pelos subalternos
configura-se enquanto uma outra excluso. Acreditamos que este silncio se estendeu cor de
Auta enquanto uma das marcas de sua afro-descendncia ao passo que no seio do projeto dos
intelectuais norte-riograndenses, deu-se visibilidade a um ideal de mulher que Auta
aparentemente correspondia bem: a moa de fervorosa devoo catlica que sofre e morre
imaculada.
Mas ela tambm quebrou paradigmas, uma vez que as escritoras no perodo
oitocentista sofriam grande carga de preconceitos (TELLES apud. PRIORE, 2004). Auta
rompeu com as amarras do espao privado, atitude tpica mais entre mulheres abastadas da
poca que gozavam de alguma independncia financeira, e ganhou o espao pblico atravs
da imprensa (GOMES, 2000). Alm de ser afro-descendente, o fato de querer se integrar aos
crculos intelectuais predominantemente masculinos tambm pesava contra ela. No entanto,
sua trajetria foi bem aceita, talvez por seus escritos no combaterem os valores masculinos
de forma aberta, como fizeram outras escritoras, abrindo caminho para que ela fosse tida
como a poeta mais amada do estado10
.
Imbudos da necessidade de eternizar a imagem da poeta, intelectuais e grupos
polticos da poca renderam-lhe muitas homenagens e condecoraes que estruturam a
memria coletiva do Rio Grande do Norte em torno da memria de Auta. Alm disso, foram
construdos lugares de memria, espaos investidos de um carter funcional, material e
simblico, que intencionam eternizar a sua imagem (NORA, 1993). A memria de Auta foi 9 Por mestiagem, Lvio Sansone salienta que seja um fenmeno ocorrido em toda a Amrica Latina
pautado nas relaes intertnicas e na racializao dos grupos sociais segundo um padro comum.
Esse padro se caracteriza por uma tradio de casamentos mistos, muito difundidos entre pessoas de fentipos diferentes, por um continuum racial ou de cor [...] (SANSONE; 2004, p.19). 10
Logo aps a morte de Auta, foram publicados muitos discursos e homenagens na imprensa escrita
que consolidaram uma determinada imagem a seu respeito. Estes textos apresentam a posio de
dezenas de intelectuais, jornalistas, poetas e pessoas ligadas esfera poltica do Rio Grande do Norte da poca, sobre eles, indicamos o captulo 4: Controvrsia em torno de representaes: comentando
comentadores da tese de Ana Laudelina (GOMES, 2000).
20
to disputada pela intelectualidade da poca tanto que sua imagem foi cristalizada chegando a
se confundir, muitas vezes, com a memria do seu estado11
.
Essa perspectiva mostra que o espao no apenas geogrfico e fsico, pois ele
tambm imaginrio e pode ser percebido e construdo atravs dos valores e crenas dos
grupos que o constitui. Nossas indagaes visam entender como e porque um indivduo
excepcional, no caso Auta, silenciado enquanto afro-descendente em funo da construo
de uma memria que se queria eternizar. Memria esta em que a cor de alguns personagens
desta narrativa deveria ser escamoteada pelo fato dela no corresponder ao iderio que o
grupo dominante projetava sobre o seu passado. Indicativo disso, so os espaos construdos,
sobretudo em Macaba, em que o nome e imagem de Auta de Souza se fazem presentes, mas
nada os ligam quilo que Lvio Sansone chamou de cultura negra (SANSONE, 2004).
Para este antroplogo, por cultura negra, entende-se que seja a subcultura especfica
das pessoas de origem africana dento de um sistema social que enfatize a cor, ou a
ascendncia a partir da cor, como um critrio importante de diferenciao ou segregao das
pessoas (SANSONE, 2004, p. 23).
Todavia, nos ltimos anos vemos uma mudana bastante significativa no campo da
historiografia norte-riograndense e de outras reas das cincias humanas tais como
antropologia, mudana esta que vem privilegiando temas e problemas que antes tinham pouca
ou nenhuma visibilidade. A escravido negra no Rio Grande do Norte, por exemplo, foi um
tema eclipsado at bem pouco tempo. S recentemente que vemos a emergncia de
trabalhos que tem possibilitado a discusso, questionando velhas imagens e trazendo novos
elementos para se pensar a experincia escravista e tambm ps emancipao no Rio Grande
do Norte12
.
11
Em relao necessidade de legitimar uma dada imagem sobre a poeta interessante observarmos a
discusso de Cascudo com Henrique sobre a lpide de Auta. Ela expressa justamente o conflito entre
eles sobre a representao de Auta que cada um queria que fosse preservada. Sobre isso, ver captulo: Quem foi Auta de Souza? da tese de Ana Laudelina Gomes (2000). 12 Indicativo desse movimento foi o I Simpsio Internacional de Estudos sobre a Escravido Africana no Brasil, realizado pelo Departamento e Programa de Ps-Graduao de Histria da UFRN em junho
de 2010. Eventos cientficos em outras reas do saber humano tambm vem se destacando, vale ressaltar o GRIOTS: II Colquio de Culturas Africanas, promovido pelo Departamento e Programa de
Ps-Graduao de Letras em maio tambm na UFRN. Nesse sentido tambm vale salientar o trabalho
do Prof. Muirakytan Kennedy do Departamento de Histria (CERES-UFRN) e dos seus orientandos que desde 2007 vem trabalhando com temas relacionados escravido negra na regio Seridoense do
Rio Grande do Norte. Atualmente, o Prof. Muirakytan Kennedy desenvolve o projeto de pesquisa As
astcias da suavidade - a escravido negra nos sertes do Rio Grande do Norte. Alm deste vale
ressaltar a atuao de outros professores da UFRN, s que neste caso, do Departamento de Antropologia, onde o debate acerca da presena dos afro-descendentes no Rio Grande do Norte mais
forte. De incio, podemos citar Luiz Carvalho de Assuno que desde a dcada de 1980 vem dando
21
A lacuna sobre a presena escrava em terras potiguares, por exemplo, se explica por
causa da idia de que a escravido negra no Rio Grande do Norte foi insignificante, quase
inexistente, imagem que foi cristalizada, com os estudos Histria do Rio Grande do Norte
(1984) e Histria da Cidade do Natal (1980) do folclorista, historiador e pensador da cultura
Lus da Cmara Cascudo, sendo reiterada em pesquisas como Formao do Mercado de
Trabalho no Nordeste (2005), de Denise Mattos Monteiro. No entanto, devemos ter em
mente que, embora a presena de escravos africanos tenha diminudo drasticamente no sculo
XIX, muitos negros e mestios permaneceram como escravos ou libertos, engrossando a
massa de homens pobres livres da regio (MONTEIRO, 2005).
Neste trabalho primamos por um vis diferenciado, um olhar mais crtico interligando
histria e antropologia. Buscamos tambm entender melhor o Imprio e sua passagem para a
Repblica no sob um vis poltico, mas atravs da articulao entre uma histria social da
cultura juntamente com autores dentro dos estudos de gnero13
e etnicidade14
.
A importncia desta pesquisa tambm est em pensar a trajetria da poeta Auta de
Souza e a sua memria construda posteriormente, enquanto uma janela capaz de nos mostrar
todo um contexto social em que descendentes de africanos e de ndios foram marginalizadas e
tiveram que burlar diferentes amarras de um contexto altamente desigual e excludente para
nfase s comunidades quilombolas bem como a religiosidade das populaes de matriz africana num contexto estadual. Em seguida temos tambm a pesquisadora e professora Julie Antoniette Cavignac
que desde 2000 tambm vem se debruando sobre questes afetas aos afro-descendentes e indgenas
no estado, sobretudo questes relacionadas memria e a identidade destas populaes. Por fim
salientamos tambm a atuao e pesquisas do professor Carlos Guilherme Octaviano do Valle que dentre outras reas, tambm desenvolve pesquisas em comunidades negras e remanescentes ndias
rurais tendo ele participando entre os anos de 2006 e 2007 junto com os dois antroplogos citados
anteriores de um projeto de dimenses maiores fruto de convnios celebrados entre a UFRN (FUNPEC) e o INCRA. O projeto, em linhas gerais, buscava realizar relatrios antropolgicos de
caracterizao histrica, econmico e sociocultural, visando identificar e delimitar territrios de
remanescentes das comunidades quilombolas no Rio grande do Norte.
13A respeito da discusso do gnero enquanto uma categoria de anlise que busca entender os papis
sociais desempenhados pelos indivduos nas diferentes sociedades, veja-se (SCOTT, 1995). Outro
texto bastante relevante que levanta a emergncia do interesse em se estudar o tema Mulher e desenvolver algumas reflexes sobre o feminismo : (FRACHETO, CAVALCANTI,
HEILBORN,1981). Como estudos de gnero, entendemos ainda que sejam a nfase nas relaes entre
homens e mulheres, mas tambm as relaes entre mulheres-mulheres, homens-homens num determinado espao/tempo, ou seja, no entendemos tal categoria enquanto o estudo da mulher em
detrimento do homem unicamente. Mesmo assim, tal categoria d visibilidade a um sujeito que
historicamente sempre esteve submetido a uma condio inferior em relao a outro. 14
Os estudos sobre etnicidade buscam entender o conjunto de traos culturais expressos atravs das
crenas, valores, smbolos, ritos, regras de conduta, lngua, cdigo de polidez, prticas culinrias e de
vesturio que so transmitidos de gerao em gerao na histria do grupo. A etnicidade tem por
principais caractersticas o fato de estar em constante mutao e tambm a temporalidade provocando aes e reaes entre este grupo e os outros em uma organizao social que no cessa de evoluir
(POTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998).
22
obterem alguma visibilidade. Ao mesmo tempo, pensamos nestes indivduos e na forma em
que foram silenciados em funo de um ideal de brasilidade nos estudos que se fizeram sobre
o Rio Grande do Norte e do Brasil.
Outra coisa importante na nossa pesquisa entender a trajetria de Auta de Souza, dos
seus familiares e tambm da literatura que produziram, enquanto um exemplo da
expressividade do povo negro num contexto ps-dispora transnacional. Tal como proposto
por Paul Gilroy em seu livro O Atlntico Negro (2001), aps a disperso dos povos africanos
pelos continentes, foi necessrio que eles produzissem a partir das mltiplas vivncias que
tiveram novas expresses culturais. Sendo assim, a literatura produzida por Auta deve ser
entendida a partir da sua posio no seio do mundo moderno e das experincias travadas com
ele.
Alm disso, pensamos a partir da perspectiva de Paul Gilroy, que buscou rever a
histria da modernidade atravs da tica de indivduos negros que vivenciaram o novo mundo
numa posio marginalizada, momento este em que a escravido racial dividiu os negros
africanos pelos continentes, abrindo assim a possibilidade para eles vivenciarem mltiplas
experincias (GILROY, 2004). Ainda, para que esses indivduos pudessem fugir dessa
posio tiveram que se valer de estratgias. Nesse sentido, na nossa pesquisa trazemos
tambm histrias de lutas e resistncias.
A necessidade de trazer tona estas vivncias se torna mais forte sobretudo quando
nos debruamos sobre biografias, textos de cunho literrio, jornalstico e potico escritos
sobre Auta de Souza onde vemos um silncio sobre o assunto. Alm da biografia escrita por
Cascudo, alguns compndios literrios, artigos de jornais e trabalhos de cunho acadmico
pontuam a questo mesmo no sendo o seu mtier de anlise. J outros, apenas tocam,
mencionam superficialmente a ancestralidade.
Estes textos so bastante emblemticos no sentido da formao e cristalizao das
representaes acerca de Auta de Souza, indo desde Eloy de Souza (SOUZA, 1975), Henrique
Castriciano (CASTRICIANO, apud. SOUZA, 2009), Cmara Cascudo (CASCUDO, 1961),
passando por outros estudados por Ana Laudelina em sua tese (GOMES, 2000) e que
passamos a conhecer atravs de leituras do captulo: Controvrsia em torno de
representaes: Comentando Comentadores15
.
S algumas apontam para essa ancestralidade: umas questionam a sua insero no
panteo dos intelectuais negros haja vista salientarem que Auta no se afirma negra atravs da
15
(FIGUEIREDO, s.d.; ARAJO, s.d.; LINHARES, s.d.; Jos Valdivino, s.d., entre outros, apud
GOMES, 2000).
23
sua escrita; outras, mais atuais com objetivos bem especficos, a exaltam como smbolo de
uma escrita negra e feminina como, por exemplo, no vdeo elaborado pela TV Escola (Heris
de Todo mundo - A cor da cultura) em que Auta representada pela atriz Tas Arajo se auto-
afirmando negra (HERIS de todo mundo, v. 9).
Nesta mesma linha, tem o encarte Heris Negros da Revista Caros Amigos (BUZZO,
v. 10), onde Ana Laudelina Gomes concedeu uma entrevista sobre Auta, para o fascculo
intitulado Mulheres Negras. Nesse sentido, passamos a entender estas escritas a partir do lugar
de fala de quem produziu o discurso histrico (CERTEAU, 2007).
importante colocarmos que grande parte dos intelectuais que publicaram sobre Auta,
literatos, jornalistas, membros de instituies culturais e crticos literrios no deram a nfase
que a meu ver a questo da afro-descendncia merecia. Ana Laudelina sinalizou para a
importncia de estudar o assunto, mas disse que no iria faz-lo j que fugia aos objetivos de
sua tese. Apesar disso, foi ela que desde a nossa orientao na Iniciao Cientifica sinalizou-
nos sobre esta lacuna em termos de pesquisa.
Mais tarde, Monique Adelle Callahan (CALLAHAN, 2011) problematizou a questo e
atravs de um estudo comparativo trouxe Auta e sua poesia juntamente com mais duas outras
escritoras que ela denominou de afro-americanas, a saber: a cubana Cristina Ayala (1856-
1936) e a norte-americana Frances Harper (1825-1911). A partir desse referencial, podemos
situar esta acadmica como a iniciadora dos estudos que enfocam esta ancestralidade no que
se refere Auta16
.
16
Vale colocar que a questo da afrodescendncia relativamente recente, mais ou menos trinta anos, no entanto, segundo Lvio Sansone (2004), a histria do movimento negro brasileiro um pouco mais
ampla e se divide em trs momentos. O primeiro, se deu ainda nos anos vinte at meados da dcada de
1930 que intitulava-se Frente Negra, todavia, a organizao foi desarticulada pelo ento presidente
Getlio Vargas. Em 1945, o ator Abdias Nascimento, funda o Teatro Experimental do Negro (TEN) que evoluiu progressivamente para um grupo de discusso e ao sobre a desigualdade racial. O
segundo momento corresponde ao do nascimento de diversas organizaes negras durante os anos da
ditadura militar, entre elas o Movimento Negro Unificado (MNU), que ainda atuante no pas. A Pastoral do Negro (que liga-se por sua vez Igreja Catlica) outra organizao importante nasceu da
Teologia de Libertao, sendo ainda bastante atuante no Brasil. O terceiro momento, inicia-se em
1992, momento que se inicia a formao de uma rede de organizaes No Governamentais que so conduzidas por equipes profissionais e no por ativistas mais exaltados. Essas ONGs negras
concentram-se em problemas ligados, por exemplo, ao controle pr-natal, aos cuidados com a sade
reprodutiva, a preveno do uso de drogas e aos direitos da mulher etc. Peter Frey (2005) a seu turno,
reflete sobre o fato deste movimento no ser unificado e levantar posicionamentos divergentes, sobretudo em relao s cotas raciais nas universidades do pas destinadas aos negros enquanto uma
poltica de ao afirmativa que visa minorar os efeitos legados da escravido racial.
24
Essa reflexo ganha fora, sobretudo quando percebemos que ainda hoje bastante
expressivo o nmero de comunidades remanescentes quilombolas no Rio Grande do Norte17
.
A presena do negro escravo e indgena em terras potiguares se fez presente, mas no
podemos afirmar a quantidade. Para se afirmar isso, necessrio estudos mais aprofundados
na perspectiva da demografia. Salientamos, entretanto, desde j a relevncia de tais estudos
que no faremos neste momento por fugirem aos objetivos desta dissertao.
Ressaltamos que no podemos desmerecer uma srie de fatores que foram
preponderantes para a reduo destas presenas, pois muitos foram os negros libertos que
junto aos indgenas passaram a engrossar as massas de homens livres pobres nos nossos
sertes ao longo do sculo XIX, legando-nos uma populao hbrida. Foi justamente de
homens e mulheres desta (s) origem (ens) que Auta de Souza, bem como seus irmos herdou a
cor da pele e os traos negrides que lhe eram peculiares.
Nesse sentido, e pensando a partir da epgrafe de Cascudo, Magrinha, calada, era com
o mano Irineu, de pele clara, um moreno doce vista como veludo ao tacto. (CASCUDO,
1961, p. 33, grifos nossos), Auta de Souza foi apenas mais uma entre tantos intelectuais
afrodescendentes da virada do sculo XIX para o sculo XX que tiveram sua origem racial
escamoteada nos escritos em funo da construo de uma imagem, de uma memria para o
nosso pas. O apagamento do legado dos povos de matriz cultural africana, bem como
indgena no processo de construo de uma identidade nacional em torno da figura branca
apresentada pelo colonizador europeu. Dessa forma, sobre a produo deste silncio que o
nosso trabalho busca versar trazendo novos elementos para se pensar a experincia afro-
descendente em terras norte-riograndenses.
Lvio Sansone por sua vez, aborda em seu estudo que os elementos da cultura negra
esto sendo progressivamente aceitos e incorporados na Bahia e pelos brasileiros enquanto
smbolos da brasilidade, fato este impensado h algumas geraes passadas (SANSONE,
2004). Segundo ele, diversos movimentos ativistas foram responsveis pela onda de auto-
17
Acerca da presena de comunidades remanescentes quilombolas no Rio Grande do Norte, indicamos
o trabalho do professor Luiz Assuno, intitulado: Jatob, ancestralidade negra e identidade (ASSUNO, 2009). Nesta pesquisa, ele atenta para a invisibilidade da presena da populao
africana e afro-descendente na nossa historiografia muito embora exista uma srie de evidncias, que
atestam para a importncia de um olhar mais atento sobre esta questo. Aponta tambm para o significativo nmero de comunidades negras rurais no estado cerca de 60. Deste total, 15 receberam
o certificado de reconhecimento como comunidade quilombola pela Fundao Cultural Palmares e
6 tem processo aberto no INCRA/RN com fins a demarcao das terras ocupadas. Para maiores
informaes sobre esta temtica e de outras que envolvem a cultura e histria da populao africana e afro-descendente no Brasil como um todo, veja-se: . Indicamos
tambm: . Ambos acessados em: 05 jun. 2012.
http://www.palmares.gov.br/http://www.acordacultura.org.br/
25
afirmao da cor que tem avanado no Brasil nos ltimos anos, algo complicado nos
oitocentos, se pensarmos que um indivduo auto-afirmar-se negro neste momento era estar
fadado marginalizao social pelo fato dele estar declarando publicamente sua relao com
uma cultura de menor valor.
A metodologia ser pautada na anlise das falas dos autores que juntos contriburam
para a formao de representaes para a escritora e para a sua famlia. Alm disso, tambm
faremos a anlise das fontes primrias que levantamos, sobretudo em alguns jornais onde
Auta publicou poemas e onde tambm intelectuais publicaram sobre ela. So eles: os
peridicos potiguares Revista do Rio Grande do Norte, Revista Osis de Natal e os jornais A
Repblica e a Tribuna. Num circuito fora do Rio Grande do Norte temos por exemplo a
revista literria feminina paulistana, A Mensageira, dentre outros.
No primeiro captulo, trazemos baila o cenrio do Rio Grande do Norte no sculo
XIX, identificando um pouco da histria da escravido negra e as estratgias para obteno de
liberdade e ascenso social de homens e mulheres negros e ndios para poder entender que foi
dessa populao vista como marginal que personagens da famlia de Auta de Souza, os
Castriciano de Souza so oriundos. Perfazemos esse caminho para poder entender de onde os
irmos, incluindo a poeta, herdam os traos fsicos negrides e quais os subterfgios
utilizados por esses ancestrais para obterem visibilidade no seio de uma sociedade
escravocrata e patriarcal. Alm disso, neste primeiro captulo apresentamos um pouco das
vivncias cotidianas da famlia e de Auta, bem como as falas dos irmos Castriciano e de
Cascudo na escrita da histria da escritora.
No segundo captulo, buscamos entender as representaes formuladas sobre a famlia
e tambm a memria posta em prtica pelos Castriciano de Souza e Cascudo as quais
supomos estar associado com algumas ideias de Gilberto Freyre, o qual buscava resgatar os
valores e tradies da aristocracia rural do Brasil que perdia poder nas primeiras dcadas do
sculo XX. Com esse intento, Henrique, Eloy e Cascudo tambm contriburam para a
formao de uma imagem aristocrtica da famlia Castriciano de Souza como uma
representao de Auta que a eleva a um padro normativo de mulher enaltecido pelas elites
supostamente brancas e masculinas da poca.
No terceiro captulo, procuramos observar a forma como a poeta Auta de Souza foi
representada nos escritos de Henrique Castriciano, Eloy de Souza e Cmara Cascudo e outros
intelectuais que a ligaram a um modelo de mulher louvado pelas elites conforme j
salientamos. Tambm buscamos entender como, ao longo dos anos, essas mesmas
representaes saram do plano das idias, se estenderam e se cristalizaram em lugares de
26
memria, como monumentos e em tradies como hinos, eventos de cunho cultural e
religioso.
27
2 AUTA DE SOUZA (1876-1901): (RE) CONHECENDO NOSSA
ESCRITORA
Propor novo arranjo trama das representaes, tecer,
articulando, dados, ideias e teorias na composio de um enlace onde histria e a cultura se matizam naquilo mesmo que
particulariza Auta de Souza enquanto objeto de estudo.
(GOMES, 2000, p. 26).
FIGURA 2: Auta de Souza (1876-1901) 18
.
A epgrafe que utilizamos na abertura deste primeiro captulo, de autoria de Ana
Laudelina Ferreira Gomes (2000). Como podemos observar, a cientista social alude forma
como buscou representar a poeta norte-riograndense em seu trabalho doutoral levando em
considerao toda uma fortuna crtica produzida por literatos, jornalistas e membros de
18
Retirado de: GURGEL, 2001, p. 128.
28
instituies culturais e religiosas ao longo de um sculo19. Acreditamos que o seu trabalho
figura enquanto divisor de guas, uma vez que traz um estudo sobre Auta que inova em
diferentes aspectos. Nele, mostra uma Auta humanizada e que teve que romper com diferentes
amarras sociais para poder aparecer no seleto espao da literatura oitocentista. Alm disso,
inova tambm de forma a problematizar a representao hegemnica, dissociando a escritora
das imagens que a ligavam a um iderio de santidade crist e de sofrimento que foi formulada
e perpassada por muitos intelectuais e que ainda hoje recorrente no imaginrio social do Rio
Grande do Norte.
Nesse sentido, tal como Ana Laudelina Gomes (2000), neste captulo, buscamos
tambm trazer uma Auta diferente da que est h muito tempo cristalizada no imaginrio
social do estado do Rio Grande do Norte. Nesta dissertao como um todo, Auta intelectual
e afro-descendente e tal qual outras escritoras que tinham essa mesma condio, a saber: Rosa
Maria Egipcaca de Vera Cruz (?-?), Maria Firmina dos Reis (1825-1917), Luciana de Abreu
(1847- 1880), Antonieta de Barros (1901-1952), tambm tiveram que romper barreiras de raa
e de gnero para poder se fazer presente no espao da escrita literria (MOTT, 1988).
A organizao deste captulo aparece da seguinte maneira: primeiramente
comentaremos sobre o Rio Grande do Norte na segunda metade do sculo XIX, momento em
que Macaba, cidade bero de Auta ocupava posio de destaque dentro da Provncia e onde
os ancestrais de Auta atuaram. Mostramos tambm as estratgias de sujeitos tidos como
subalternos que emergiram naquela sociedade que enaltecia os valores do branco e da
aristocracia rural do Nordeste brasileiro, as vivncias de Auta e dos Castriciano de Souza.
Trazemos tambm um pouco do debate racial que se travou nos centros de poder intelectual,
exatamente com a queda da escravido e de como esse iderio repercutiu no cotidiano do
Brasil da poca.
Por fim, mostramos a atuao dos irmos Castriciano de Souza e de Cmara Cascudo
no seio de suas trajetrias intelectuais na passagem do sculo XIX para o sculo XX, bem
como o lugar de fala desses intelectuais que se incubiram de fazer registros sobre a trajetria
de vida de Auta que se tornaram os mais marcantes na memria coletiva do Rio Grande do
Norte. No seio desse projeto de passado traado por eles, de cunho conservador no sentido de
manter as estruturas sociais inalteradas, apologtico e aristocrtico, acreditamos que
contriburam sobremaneira para a cristalizao de uma imagem de Auta que, por sua vez,
distante de suas razes afrodescendentes e supostamente tambm indgenas.
19
A referida tese ser publicada neste ano de 2013 com o ttulo Auta de Souza: a noiva do verso.
29
2.1 A Provncia do Rio Grande do Norte e Macaba nos Oitocentos: o cenrio da nossa
histria
Para se compreender a trajetria de Auta bem como o lugar social ocupado por sua
famlia necessrio conhecermos a movimentao comercial vivenciada pela Provncia do
Rio Grande do Norte e o lugar de Macaba a partir da segunda metade do sculo XIX. Falar
de Macaba, ou na vila do Coit como era denominada inicialmente, tambm rememorar
lutas de intensa violncia pela posse das terras brasileiras e que se estenderam s paragens da
ento Capitania do Rio Grande, sobretudo com os contatos entre portugueses e indgenas e o
advento da Invaso Holandesa e posterior expulso.
Esse foi to somente um momento em que diferentes vises acerca de si e acerca do
outro falaram mais forte e que justificaram a opresso de uma cultura sobre as outras, quando
comportamentos etnocntricos resultaram tambm em apreciaes negativas dos padres
culturais de povos diferentes. Prticas de outros sistemas culturais so catalogadas como
absurdas, deprimentes e imorais (LARAIA, 2004, p. 74). Esse tambm foi o momento em
que o cruzamento inter-tnico (entre africanos, americanos e europeus) gestou nossa
populao de cultura sincretizada (GOMES, 2000, p. 26) 20
.
Segundo (GOMES, 2000), as origens desta localidade, que dista apenas 18 Km de
Natal, capital do Rio Grande do Norte, estiveram intrinsecamente ligadas aos antepassados de
Auta de Souza. Ligao estreitada entre o seu bisav paterno, o pernambucano Francisco
Bandeira de Melo e o genro deste, Fabrcio Gomes Pedroza ambos vindos de provncias
vizinhas e que eram radicados na regio, possuindo negcios relacionados agropecuria e ao
comrcio.
At a primeira metade do sculo XIX, Coit foi um stio de terras frteis de plantar e
criar gado cuja grande parte era de propriedade do av de Auta. A partir da dcada de 1850,
as provncias nortistas passaram por muitas mudanas no aspecto econmico devido a
20
Sobre esses eventos na histria do Rio Grande do Norte indicamos: as pesquisas de Ftima Martins Lopes (1999/2005) centradas no processo de aldeamento e nas misses da Capitania do Rio Grande do
Norte. Elas nos fornecem informaes importantes sobre a situao das populaes indgenas aldeadas
bem como as formas de resistncia nativa. Sobre o processo de conquista do territrio sertanejo e da
resistncia implementada pelos povos indgenas ao longo do processo de colonizao indicamos o trabalho de Pedro Puntoni (2002), de Denise Mattos Monteiro (2009) e de Muirakytan K. de Macedo
(1998).
30
conflitos blicos nos Estados Unidos que cortaram o abastecimento de algodo para as
fbricas txteis europias (MONTEIRO, 2009)21
.
Os efeitos desta crise externa ressoaram de forma positiva no Rio Grande do Norte, o
qual passou a exportar a preciosa matria-prima para os mercados ingleses, momento este em
que a vila do Coit, futura Macaba passou a atuar como entreposto comercial por estar
localizada no centro das estradas que se destinavam aos grandes centros produtores de
algodo, cereais e de acar (MONTEIRO, 2009), conforme podemos visualizar na figura
abaixo:
FIGURA 3: A posio de Macaba no seio do sistema hidrogrfico do Rio e das
principais reas de produo agropastoril22
.
21
Entre os anos de 1860 e 1865, ocorreram conflitos nas ex-colnias inglesas deflagrando a Guerra de Secesso. Com este conflito, a produo norte-americana se desestruturou, cortando o abastecimento
para a indstria txtil europia, sobretudo a inglesa, crise esta denominada cotton hunger. Ela foi
determinante para que ocorresse grandes modificaes no ambiente rural do Nordeste brasileiro,
favorecendo em grande medida a produo algodoeira a qual se adequou perfeitamente ao clima e solo desta regio (TAKEYA, 1985). 22
Retirado de: (RODRIGUES, 1993, p. 130).
31
A posio ocupada por ela atraiu a migrao de muitos negociantes e famlias inteiras,
famlias estas que vinham das provncias vizinhas esperanosas de melhorarem de vida
atravs dos empreendimentos que a cidade proporcionava, dentre eles merece meno mais
uma vez, Fabrcio Gomes Pedrosa, paraibano de Brejo de Areia (RODRIGUES, 2003). No
mapa anterior, possvel se ver a bacia hidrogrfica do Rio Potengi, as estradas por onde
escoavam, em lombo de animais, os gneros agrcolas bem como o lugar de Macaba no seio
desse sistema.
Conforme Meneval Dantas:
Dava gosto ver comboios de dezenas de mulos, cavalos e at jumentos
chegando, cada qual com dois fardos de algodo ou couros nos costados, arriando-os no cais a beira do rio, com os botes, diariamente levando-os para
Natal, de onde por sua vez vinham carregados de toda sorte de mercadorias,
a tambm apanhados pelos mesmos tropeiros e animais, que as conduziam para reas de onde trouxeram os outros produtos (DANTAS, 1985, p. 57).
Em pouco tempo, a vila do Coit atingiu visibilidade dentro da Provncia, passando a
se chamar Macaba por sugesto de Fabrcio Gomes Pedrosa, tendo ele tambm fundado a
cidade, o qual neste contexto j estava adquirindo posio de liderana (RODRIGUES, 2003).
Dessa forma, Macaba oferecia uma srie de fatores positivos ao desenvolvimento do
comrcio, mesmo assim, a profundidade do Rio Jundia no permitia a atracao de navios de
maior calado.
Pensando nisso, foi que Fabrcio instalou em 1858 uma firma importadora-exportadora
de produtos num ponto estratgico s margens do Rio Potengi, na localidade de Guarapes
(RODRIGUES, 2003), at porque o porto da sua capital, Natal, tambm no dispunha de
condies satisfatrias navegao, dificultando a atracao dos navios de maior porte no
cais alm de ser envolta em dunas o que tambm servia de entrave ao desenvolvimento
econmico do Rio Grande do Norte23
.
23
O emprio de Guarapes era uma empresa exportadora-importadora que vendia para o mercado europeu, sobretudo Inglaterra, produtos tais como algodo, acar, peles, couros e sal. Da Europa a
empresa importava produtos manufaturado como tecidos e artigos de luxo. Sobre o referido
estabelecimento comercial nos diz Wagner Rodrigues: O local reunia caractersticas geogrficas que o colocava como importante entreposto comercial. O ancoradouro do seu porto era quase to extenso e
profundo quanto o de Natal, chegando a dar calado a embarcaes de at 500 toneladas, sem falar que
se posicionava alm das dunas que circundavam a capital. O comerciante investiu em uma estrutura
slida para drenar o escoamento das zonas circunvizinhas, construindo armazns na parte baixa, prximos ao ancoradouro, alm de escritrios, almoxarifados, capela, escola e sua casa na parte alta
(RODRIGUES, 2003, p. 27-28).
32
Foi a partir dessas dificuldades que os presidentes da nossa Provncia mais se
questionavam sobre a possibilidade de mudana da capital para a localidade de Guarapes,
chegando inclusive a afirmar que a Provncia do Rio Grande do Norte era um corpo sem
cabea conforme disposto no Relatrio do Presidente de provncia e comendador Henrique
Pereira de Lucena, futuro baro de Lucena, de 05 de Outubro de 1872:
Eis senhores, o que me cumpria dizer-vos com referncia a um assumpto de
tanta magnitude, e a que se liga to estreitamente o futuro da provncia. Considerai, que so j decorridos 273 anos que Natal a capital da
provncia, no entanto seu perfil de uma villa insignificante e atrasadssima
do interior. Considerai, que a provncia um corpo sem cabea, e que devido exclusivamente a esta circunstancia que ella se conserva retaguarda
de todas as suas irms. [...]. (Relatrio do Presidente de Provncia de 05 de
Outubro de 1872).
Todavia, o projeto de mudana da capital com o tempo foi deixado de lado. Mas o fato
que por muitos anos, Macaba gozou de status de capital honorria e econmica da
Provncia, atraindo distintas famlias, personalidades como Francisco de Paula Rodrigues,
futuro av materno de Auta e o interesse de empresrios das localidades vizinhas. Estes se
instalaram em torno de seu porto de guas fluviais e do seu comrcio de acar e algodo.
Conforme nos diz Eloy de Souza:
[...] onde se encontravam lojas de fazenda e armarinho muito mais sortidas que aqui [Natal], os responsveis pela direo dos negcios pblicos. As
figuras prestigiosas do Partido Liberal ali residiam e, j pela liberdade,
gozavam da autoridade sem par [...] (SOUZA, apud. LEIROS, 1985. p. 30).
Enfim, ao tomar-se conhecimento das mudanas ocorridas na Provncia do Rio Grande
do Norte, bem como na cidade de Macaba a partir da dcada de 1850 sob a gide do contexto
internacional, preciso entender que em termos culturais esta sociedade era fortemente
marcada pelo domnio masculino representado pelo poder e autoridade inquestionveis do
pai-senhor. Alm disso, pautava sua forma de pensar e agir baseado numa pretensa
superioridade branca.
Sendo assim, importante deixar claro que foi nessa sociedade em que sujeitos
marginalizados emergiram sendo relevante traz-los tona. Vale salientar que suas atuaes
se deram sobretudo, num contexto em que as amarras da escravido no Brasil se rompiam
paulatinamente. Todavia, a excluso contra os remanescentes africanos e ndios e seus
33
descendentes permanecia e ganhava fora respaldada em teorias cientificistas de cunho racial
trazidas da Europa como veremos mais adiante.
2.2 Escravido, Trabalho e ascenso social: retratos de famlia
Segundo a professora Solange Rocha, na Paraba oitocentista, muitas foram as
experincias e as estratgias utilizadas pelos negros para viverem num contexto escravista.
Assim ela nos diz:
Uns viviam em cativeiro ou vivenciavam a experincia de ser quase libertos e lutavam para consolidar a liberdade; outros eram livres e tiveram acesso
propriedade privada, educao superior, com atuao poltica, respeito
pblico, mas, sem dvida, poucos conseguiram usufruir desta ltima condio social. A maioria de mulheres e homens negros, escravos e no-
escravos da Paraba teve de empreender inmeras estratgias para sobreviver
na sociedade escravista do sculo XIX. (ROCHA, 2009, p. 87).
Na Provncia do Rio Grande do Norte, podemos afirmar que tal realidade no diferiu,
a qual tambm passou pelo mesmo processo de diminuio da populao cativa ao longo do
sculo XIX, sobretudo a partir da segunda metade deste sculo.
PORCENTAGEM DE ESCRAVOS NA POPULAO TOTAL
ANOS TOTAL ESCRAVOS %
1805 49.250 5.768 11,7
1835 87.931 10.240 11, 6
1844 149.072 18.153 12, 2
1872 233.979 13. 020 5,6 TABELA 1: Porcentagem de escravos na populao total.
Na tabela acima possvel visualizarmos os nmeros acerca da populao escrava na
Provncia do Rio Grande do Norte em relao populao total24
. A partir dos nmeros,
percebemos que a populao escrava que havia diminudo por ocasio da seca de 1845,
aumentou nos anos de 1860, voltando a decair drasticamente no incio da dcada de 1870.
24
Fonte dos nmeros: Carta do capito-mor do Rio Grande do Norte Jos Francisco de Paula
Cavalcanti de Albuquerque ao Prncipe Regente D. Joo, em 1806, Projeto Resgate Baro do Rio
Branco; LYRA, A. Tavares de. Diccionrio histrico, geogrphico e ethnografico do Brasil, p. 471-
473; Resumo histrico dos inquritos censitrios realizados no Brasil, p. 144; MONTEIRO, Denise Mattos. Formao do mercado de trabalho no Nordeste: escravos e trabalhadores livres no Rio
Grande do Norte (MONTEIRO, 2009, p. 114).
34
Como indicadores deste decrscimento observamos, sobretudo,o fim do trfico internacional
frica-Brasil em 1850 e a intensificao do trfico interprovincial que destinava uma grande
quantidade de escravos das zonas canavieiras e algodoeiras nortistas para o trabalho nas
lavouras das outras provncias, sobretudo as de caf do Centro-Sul, atual regio Sudeste.
Com a grande seca ocorrida em 1877, o trfico aumentou ainda mais, uma vez que
muitos proprietrios rurais do Nordeste neste contexto de crise se desfizeram de seus ltimos
escravos. Alguns j bastantes idosos, doentes e debilitados para o trabalho braal e que
representavam mais perdas do que lucros dentro da realidade do trabalho compulsrio, fato
este que levou os senhores dos municpios sertanejos de Mossor (1883), Assu (1885),
Carabas (1887), e Augusto Severo (1887) a libertarem seus cativos antes da Lei urea
(MONTEIRO, 2005).
Com isso, houve uma nova configurao nas relaes de trabalho que passou a vigorar
nas propriedades dos grandes senhores de terra, de fazendas e de gado de forma geral. As
dificuldades dos senhores em obter mo-de-obra escrava para suas fazendas obrigaram-os a
tomar outras medidas para substituir e repor esses trabalhadores que se esvaiam para outros
portos de produo agrcola25
. Foi a adoo de homens livres pobres entre os quais incluam-
se os negros, ndios, mestios e toda uma parcela da populao marginalizada a medida mais
emergente encontrada pelos grandes fazendeiros.
No espao agrrio e pastoril em que o Rio Grande do Norte estava imerso na primeira
metade do sculo XIX foi que viveu e atuou Flix Jos de Souza, ou Flix do Potengi
Pequeno, o av paterno de Auta de Souza26
. Sobre ele, existem poucas informaes,
sobretudo documentais, o pouco que sabemos devemos a Eloy de Souza em seu livro
25
A respeito da movimentao do trfico interprovincial de escravos, bem como das novas
configuraes de vida que ele ensejava, das distintas experincias vividas pelos cativos, seus rearranjos familiares, de sociabilidade, anseios de liberdade e de trabalho, indicamos: Das cores do
Silncio de Hebe Maria Mattos (1998). Sobretudo o captulo 6, sob o jugo do cativeiro includo na
primeira parte, o qual baseado em processos crimes e cveis. 26
A maior dificuldade em reconstruir a trajetria de sujeitos provenientes das classes marginalizadas como afirmou Russel-Wood (2005) a escassez de documentao escrita ou material produzida por
eles tais como dirios, memrias, reminiscncias, dirios ntimos, cartas e relatos de famlia, e se
havia, o que pouco provvel, sucumbiu ao do tempo ou ao desapego e descuido daqueles que deles tinham a guarda. Alm disso, deve-se ter em mente que a documentao de origem oficial raras
vezes faz meno presena destes sujeitos e quando faz, de forma bastante sutil, quase sempre nas
pginas policiais como em alguns Relatrios de Presidente de Provncia. Por fim Russel-Wood (2005) tambm salienta para a tradio historiogrfica que sempre privilegiou a trajetria dos grandes
homens como polticos e renomadas figuras oriundas de famlias das elites colonial e imperial do
nosso pas. S h algum tempo, mais ou menos 30 anos que sujeitos comuns e sem visibilidade, vem
ganhando fora e nesse mbito incluem-se pessoas do povo, operrios, trabalhadores, soldados, humildes missionrios, mulheres, e no menos importante os indivduos de origem asitica, cigana,
judia, amerndia e negra.
35
Memrias (1975) que registrou e a Cmara Cascudo no livro Vida Breve de Auta de Souza
(1961) que divulgou muito do que Eloy j havia escrito antes, sem o publicar, e inseriu mais
elementos ao que Eloy j havia registrado27
. Segundo Cascudo, Jos Flix nasceu no engenho
Ferreiro Torto s margens do Rio Potengi.
Devido falta de documentos, no se sabe se Flix era negro, mestio, preto, pardo,
africano ou crioulo conforme a terminologia apresentada na documentao daquela poca
segundo o estudo da professora Hebe Maria Mattos (1998). Todavia, Cmara Cascudo o
caracteriza como escuro e possivelmente descendente de escravos fugidos do litoral como
tantos outros que se embrenhavam pelos sertes da poca onde se abrigavam e se dedicavam a
pastorcia (CASCUDO, 1980) 28
. Eloy de Souza, neto de Flix por sua vez, diz em suas
memrias que o av era negro.
Independente destas correntes, acreditamos que Jos Flix foi um homem pobre livre,
descendente de escravos e que conseguiu adquirir o respeito da comunidade em que vivia
assim como poucos dentro da sociedade brasileira da poca. Foi na pequena vila do Coit, que
seu exmio trabalho de vaqueiro chamou ateno dos senhores de fazenda e engenho.
Segundo Cascudo, Flix trazia o lote unido e manso no domnio do abio que se
desenrolava no ar como uma fita meldica de sugesto magntica. No coice ou na guia da
boiada ningum o igualava (CASCUDO, 1961, p. 23). Como sua atuao na lida com o gado
despertava admirao da comunidade em que morava, o vaqueiro Flix passou a trabalhar na
27
Vale deixar claro que, conforme salientou Ana Laudelina Gomes (2000), embora o texto mais
conhecido sobre Auta seja o de Cmara Cascudo (1961) , ele foi quase todo baseado no de Eloy de
Souza (1975). Ainda segundo a cientista social, cotejando os dois textos, visvel a presena da escrita
de Eloy no texto de Cascudo o qual foi publicado em 1961 seis anos antes que o de Eloy que foi publicado s em 1975. 28
De acordo Caio Prado Jnior (1996), A produo de gado vaccum se alastrou, recalcada para o
ntimo dos sertes, como resposta necessidade do consumo crescente de carne das zonas litorneas produtoras de acar e mais tarde das minas. Esta atividade obteve tamanha expressividade pela
facilidade de adaptabilidade s ridas paragens da regio, os baixos custos para se fixar as instalaes
sumrias de uma fazenda de criao e o reduzido nmero de pessoal para o trabalho, sendo mais
comum a mo-de-obra de mestios, de ndios, mulatos e pretos na terminologia da poca. Neste mbito vale ressaltar o trabalho do vaqueiro que recebia das crias do dono da fazenda depois de
decorridos cinco anos. Nesse sentido, o vaqueiro recebia uma soma considervel de animais, com os
quais poderia estabelecer um negcio prprio. As fazendas de gado tambm forneciam a carne-seca conhecida como carne do cear e ainda uma gama de subprodutos tais como leite, queijo de coalho,
manteiga e coalhada que eram consumidos pelo vaqueiro e sua famlia. Por fim havia tambm os
derivados do couro, tais como couros salgados, curtidos, solas, selas e vaquetas produtos estes que configuram-se nos nossos dias enquanto definidores da cultura e da histria do homem sertanejo. Para
maiores informaes sobre estas tradies no Rio Grande do Norte existem dois museus cujas
exposies remontam realidade do homem interiorano da regio intitulada de Serid, a saber: o
Museu do Serid e o Museu do Sertanejo. O primeiro localizado no centro de Caic RN, o qual conta com a posse e administrao do Centro Regional de Ensino Superior do Serid - UFRN e
segundo no centro de Acari- RN.
36
administrao das fazendas do coronel Francisco Bandeira de Melo onde passou a cuidar dos
rebanhos e a negociar com distintos senhores nas provncias do Piau, Cear e Pernambuco
(SOUZA, 1975).
Por sua destreza com as reses que levava pelas estradas-das-boiadas aos principais
pontos de comrcio e cuidado com o dinheiro que recebia dos negociantes na primeira metade
do sculo XIX fez o coronel Francisco Bandeira de Melo perceber que valia muito a pena
fazer daquele homem simples dos sertes, um membro efetivo de sua famlia (SOUZA,
1975).
Segundo Eni de Mesquita Samara, j h anos que o campo de estudos da famlia vem
crescendo no Brasil. Para a estudiosa, este tema permaneceu restrito por muito tempo guisa
de antroplogos e socilogos sendo a partir da dcada de 80 que ele veio ser contemplado
com maior afinco por historiadores e profissionais de outras reas29
(SAMARA, 1983). No
nosso pas, o modelo de famlia que convencionou-se enquanto padro, foi o resultado da
transplantao da famlia portuguesa ao nosso contexto colonial. Modelo este denominado de
patriarcal sobretudo aps o clebre estudo do socilogo Gilberto Freyre Casa Grande &
Senzala (1998)30
.
Todavia este padro de famlia vem sendo questionado por estudos mais recentes,
os quais vm mostrando que este perfil que se convencionou hegemnico no nosso pas,
figurou a algumas poucas famlias do contexto colonial. A famlia de Auta, em sua matriz
genealgica, figurava enquanto um modelo de famlia patriarcal num contexto de tradio
tipicamente ruralista do Nordeste ligada ao idlio rural dos senhores de engenho e s relaes
de poder travadas por eles. Eloy de Souza, irmo de Auta registra:
Individualmente, guardo na memria recordaes que me despertam
saudades daqueles tempos j remotos. Foi ali que vi o primeiro engenho e os primeiros canaviais e escutei a msica de suas verdes desfolhas, levemente
agitadas pela brisa da tarde, quando em companhia de meus pais e irmos
29
Sobre o tema da famlia salientamos os trabalhos: Philippe Aris, Histria da criana e da famlia
(1981), LVI-STRAUSS. Estruturas elementares do parentesco (1982) e Famlia de F. Hernter
publicado na Enciclopdia Einaudi Parentesco (1989). Vol. 20. 30
O referido modelo de famlia tinha por principais caractersticas: o domnio centrado no poder
indiscutvel do pai; a submisso da mulher (esposa e filhas); famlia bastante numerosa com muitos
filhos, noras e genros. Alm disso, a este ncleo central se anexava escravos, serviais pobres livres, sobrinhos, afilhados que almejavam proteo em troca de trabalho e fidelidade. Os escravos por
exemplo, apareciam na obra freyreana como extenso da famlia senhorial, a partir do trabalho Na
senzala, uma flor (1999), do historiador Robert W. Slenes (SLENES, 1999), essa imagem revista e
a noo de que famlia no contexto escravista uma organizao exclusivamente branca cai por terra, Slenes apresenta-nos rearranjos familiares estabelecidos pelos escravos brasileiros dentro do universo
do cativeiro.
37
amos antiga vila assistir s festas de seu padroeiro. Minha recordao
mais viva, porm, das figuras que aos sbados eram assduas a nossa
casa em Macaba. Lembro-me que o mesmo feitio amvel nivelava velhos e moos. Excetuadas duas ou trs barbas brancas que, por mais
compridas e serradas, nos fundiam certo respeito a alegria comunicativa
de quase todos, contribuam para estabelecer entre ns e eles uma
intimidade travessa e buliosa. Embora rsticos, como agora os vejo, eram naturalmente maneirosos. No me recordo de t-los visto mesa paterna
vestidos com negligncia. A jaqueta de pano fino, colarinho alto e
amplamente aberto, enrodilhado por uma gravata de cetim lustroso, a cadeia de ouro ornamentava o colete de transpasso, dava-lhes um ar
austero que o riso franco logo convidava aproximao confiante e atrevida
das crianas. [...] (A ORDEM, 10 de Dezembro de 1951, Grifo nosso).
Assim, como o texto nos deixa antever, a famlia de Auta mantinha uma extensa
rede de influncia, sobretudo de poltica na Provncia congregando longas extenses de terra,
muitas cabeas de gado, alguns serviais e escravos. Alm disso, o trecho acima tambm nos
mostra um cenrio dominado pela presena dos homens cuja barba simbolizava o poder e
autoridade conforme atentado por Denise Monteiro (2009). Os homens detinham frente
famlia e a sociedade, poder e autoridade que eram exercidos, muitas vezes sob a fora de
violncia fsica31
. Alm da violncia fsica, outro tipo de violncia bastante utilizado era a
simblica32
.
A despeito desta sociedade de domnio masculino, outras foram estudadas pelos
antroplogos Bronislaw Malinowski e Margaret Mead cujo modelo de organizao social
permitia maior abertura para a atuao das mulheres de forma igualitria e em alguns casos
at superior33
. Entretanto, no Brasil oitocentista, e mais precisamente no Nordeste dos
31
Miguel Valle de Almeida em seu trabalho Senhores de si: uma interpretao antropolgica da masculinidade, buscou fazer uma anlise sobre a variedade das identidades masculinas ao mesmo
tempo em que buscou discutir e negar os efeitos da masculinidade hegemnica. A partir de um
trabalho de campo realizado numa aldeia Alentejana, a saber: aldeia dos Pardais, na experincia de vida partilhada com os seus homens, Almeida apresenta uma etnografia em dilogo com teorias das
cincias sociais que se pautam nas categorias de sexo e gnero. 32
A violncia simblica, conceito estruturado por Pierre Bourdieu que realizou seu estudo entre os
Cabila, tribo rabe e berbere do Norte da frica, na A dominao masculina (2007), descreve o processo pelo qual a classe que domina impe sua cultura aos dominados. Nesse processo o sujeito
dominado no se ope ao seu opressor, j que no se percebe enquanto vtima uma vez que, ao
contrrio, o indivduo oprimido considera a situao natural e inevitvel. Nas palavras de seu terico, a
violncia simblica doce e quase sempre invisvel (BOURDIEU, 2007a, p. 47) e pode ser exercida por diferentes instituies da sociedade: a famlia, o Estado, a mdia, a escola etc. 33
Malinowski em seu estudo A vida sexual dos selvagens (1983), busca entender as relaes entre
homens e mulheres a partir das anlises realizadas no seio de nativos das ilhas Trobiand, um
arquiplago de coral situado a nordeste da Nova Guin. Segundo suas impresses, os Trobiandeses formavam uma sociedade pautada na ideia matrilinear, em que o parentesco, a descendncia e todas as
relaes sociais eram fixadas legalmente tomando por referncia exclusiva a mulher-me. Nesta
sociedade, as mulheres tinham participao considervel na vida da tribo, a ponto de assumirem um
38
engenhos de acar, foi o homem a adotar a posio central e dominante das diferentes
instituies seja no mbito pblico ou privado. At mesmo os espaos e as atividades
desenvolvidas eram bastante definidos culturalmente segundo o sexo34
. Seja na famlia quanto
na vida social, econmica e poltica foi o homem o indivduo que manteve a gerncia do
sistema patriarcal, seja na posio de marido, de pai de irmo ou de senhor.
Foi assim que Flix de Souza, membro dessa estrutura, recebeu de seu patro uma de
suas filhas em casamento, Cosma Francisca Bandeira de Melo, carinhosamente chamada de
Tat e que Ana Laudelina Gomes (2000) supe ter sido filha ilegtima de Francisco Pedro,
tida como filha adotiva, para no reconhecer-se o fato. Seria filha ilegtima de Francisco
Pedro com quem? Com alguma ndia da regio? Com alguma escrava da famlia? Certamente
com alguma agregada da famlia de Francisco Pedro. Afinal ela nasce bem antes da Abolio,
sendo av de Auta, que nasceu em 1876. Na figura a seguir, possvel visualizarmos as
principais relaes de casamento estabelecidas entre os antepassados de Auta, gestando assim,
uma famlia de traos sincretizados.
papel preponderante em diferentes atividades, sobretudo econmicas, cerimoniais e mgicas
(MALINOWKI, 1983). Margaret Mead em Sexo e temperamento (1998), obra esta que se configura
enquanto pedra angular do movimento de libertao feminina, deteve seus estudos em torno de trs comunidades tribais da nova Guin, a saber: os Arapesh, Mundugumor e Tchambuli. Nelas, as
mulheres ocupavam posio de destaque diferentemente da cultura europia cuja autoridade pertencia
ao homem (MEAD, 1998). 34
A partir de um olhar pautado na antropologia poltica, a qual leva em considerao o ponto de vista
poltico da sociedade primitiva, Pierre Clastres buscou entender como os ndios Guayaki, de hbitos
nmades se organizavam scio, poltico e culturalmente. Nesta sociedade as tarefas entre homens e
mulheres eram bem definidas sexualmente, sobretudo ao que tange produo de alimentos. Os homens ocupavam a posio de produtores (caadores e coletores) e de sustento da comunidade, j as
mulheres, exerciam a funo de criar os filhos alm de formar cestos e vasos (CLASTRES, 2003).
39
FIGURA 4: rvore genealgica da famlia de Auta de Souza35
35
rvore elaborada pelo autor. Vale colocar que algumas informaes referentes ancestralidade
racial dos personagens elencados na rvore genealgica foram retiradas da memorialstica de Eloy de Souza (1975), da biografia escrita por Cmara Cascudo (1961) e da tese e Ana Laudelina Gomes
(2000) onde tambm encontrada uma rvore genealgica semelhante.
40
A filha legtima, Damiana Maria Bandeira de Melo, o influente senhor de terras deu
por esposa a Fabrcio Gomes Pedrosa, o maior empresrio nos idos dos oitocentos no Rio
Grande do Norte (CASCUDO, 1980). Nesse sentido, acreditamos que o av de Auta foi uma
exceo em meio grande massa de negros que habitavam o Brasil da poca, pois mesmo
supostamente sendo negro e pobre adquiriu visibilidade no espao social dominado pelos
grandes senhores de terra e gado. Segundo Eloy (1975) e Cascudo (1961) teria sido a
excelncia de seu trabalho que o fez adquirir notoriedade dentro da sua regio saindo da
penumbra a que estavam relegados a maior parte dos homens e mulheres que provinham da
mesma condio social e racial que ele.
Nessa realidade aristocrtica, paternalista e patriarcal podemos observar que o
casamento estava atrelado a interesses e expectativas mtuas, afinal de contas, no foi a
qualquer um que o senhor Francisco Bandeira de Melo deu em casamento suas filhas.
Francisco Pedro deu por esposa suas filhas a homens que estavam demonstrando perspectivas
de crescimento social e econmico e que vinham adquirindo prestgio por causa de suas
atuaes profissionais dentro daquela sociedade. Vale colocar que Flix, progressivamente foi
ascendendo, deixand