JOSÉ OLIVIR DE FREITAS JUNIOR
O DISCURSO DE MEMÓRIAS FICCIONALIZADO EM HERANÇAS, DE SILVIANO SANTIAGO
CURITIBA
2011
JOSÉ OLIVIR DE FREITAS JUNIOR
O DISCURSO DE MEMÓRIAS FICCIONALIZADO EM HERANÇAS, DE SILVIANO SANTIAGO
Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica II como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras – Ênfase em Estudos Literários do curso de Letras, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Prof.ª Dra. Marilene Weinhardt
CURITIBA
2011
À minha querida mãe, Rosilda (in memoriam), que sempre está presente em tudo que faço e teria lido orgulhosa este trabalho.
Agradeço aos senhores Paul Ricoeur, Luiz Costa Lima, Linda Hutcheon, Perry Anderson e Stuart Hall, entre outros, pela preocupação e insistência em me manter longe das tentações mundanas a que um acadêmico fica exposto quando tem que se preparar para escrever uma monografia.
Aos meus irmãos, Marina e Ricardo, que acham que eu sou inteligente, ainda que eu insista no contrário.
Aos meus amigos cujos nomes todos não mencionarei para não correr o risco de esquecer de alguém e causar comoção generalizada.
Ao trio Andressa D'Ávila, Luiza Souza e Marina Legroski, que me acompanhou até aqui e que, confio, continuará together alone comigo sempre.
À Professora Marilene Weinhardt, que me deu seu voto de confiança e acreditou na minha capacidade. Espero ter feito jus.
O leitor sensível, inteligente, sempre conseguirá ver as relações estreitas entre aquilo que está lendo e a possibilidade de transformação, seja da realidade imediata, a realidade do mundo, seja ainda e, sobretudo, a de si próprio.
Silviano Santiago.
Que saberíamos do amor e do ódio, dos sentimentos éticos, e em geral de tudo o que chamamos de si mesmo, se isso tudo não tivesse passado à linguagem, articulado pela literatura?
Paul Ricoeur
SUMÁRIORESUMO.......................................................................................................................6ABSTRACT..................................................................................................................7APRESENTAÇÃO........................................................................................................81. FICÇÃO HISTÓRICA CONTEMPORÂNEA.......................................................112. RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO EM HERANÇAS..........................163. MEMÓRIA: USOS E ABUSOS.............................................................................294. AUTOBIOGRAFIA E IDENTIDADE...................................................................36
4.1 A AUTOBIOGRAFIA.....................................................................................364.2 A IDENTIDADE.............................................................................................38
REFERÊNCIAS..........................................................................................................43
5
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar do romance Heranças, de
Silviano Santiago. Dentre as possibilidades análise, escolhemos quatro
aspectos da narrativa: a possibilidade de leitura da obra enquanto ficção
histórica (aqui as referências serão a obra O Romance Histórico (20111), de
Georg Lukács, o livro Poética do Pós-Modernismo (1991), de Linda Hutcheon e
o ensaio Trajetos de uma forma literária (2007), de Perry Anderson); o uso do
discurso de memórias como procedimento narrativo no romance (tendo por
referência as obras Tempo e Narrativa (2010) e A História, a Memória, o
Esquecimento (2007), do filósofo Paul Ricœur); o procedimento discursivo do
romance sob a perspectiva do trabalho de Philippe Lejeune a respeito das
narrativas (auto)biográficas (O Pacto Autobiográfico, de 2008); e a figuração do
sujeito da “modernidade tardia” no romance (conforme afirmação de Stuart
Hall, no ensaio A identidade cultural na pós-modernidade, de 2006).
Palavras-chave: Heranças, de Silviano Santiago. Ficção histórica
contemporânea. Discurso de memórias.
1Ano de publicação da edição em língua portuguesa. Esta será a referência de todas as demais obras indicadas neste trabalho.
6
ABSTRACT
The present work aims to analyze the Silviano Santiago’s novel Heranças.
Among the possibilities of approach, we chose three aspects of the narrative:
the possibility of reading it as a work of historical fiction (in this part we use as
reference Georg Lukács’ work O Romance Histórico (20112), Linda Hutcheon’s
book Poética do Pós-modernismo (1991) and Perry Anderson’s essay
Trajetória de uma forma literária (2007)); the use of memories discourse in the
novel as a narrative procedure (with support of Paul Ricœur’s works A História,
a Memória, o Esquecimento (2007) and Tempo e Narrativa (2010)); the
identification of the novel (or not) according to the work of Philippe Lejeune on
(auto)biographical narratives (O Pacto Autobiográfico (2008)); and the figuration
of the subject of the late modernity (as afirms Stuart Hall, in his essay A
identidade cultural na pós-modernidade, from 2006).
Key-words: Silviano Santiago’s Heranças. Contemporary historical fiction.
Memories discourse.
2Year of publication of the Brazilian edition. This will be the reference of all the other works mentioned in this monograph.
7
APRESENTAÇÃO
Gostaria de apresentar este trabalho com um depoimento. O primeiro
passo para chegar a este trabalho monográfico aconteceu em 2009, quando
desisti de uma disciplina optativa de Sintaxe para cursar Tópicos Especiais em
Literatura Brasileira. Deixemos de lado o motivo da minha troca. O que
interessa é que a docente da nova opção que fiz era a Professora Marilene
Weinhardt, pesquisadora que trabalha com as relações entre ficção e história.
Depois desta disciplina, meu olhar sobre o curso que estava fazendo mudou
drasticamente. A princípio eu pensava em terminá-lo o mais rapidamente
possível, já que tinha passado por três anos de estudo em três diferentes
instituições. Mas, depois das aulas daquela disciplina, cujo tema era a
reescritura ficcional da obra de Machado de Assis e a ficcionalização dele
próprio, tive certeza de que eu estava no caminho certo. O “caminho certo” a
que me refiro são os estudos que abordam a produção literária do fim do
século XX, especialmente aquela produção que se relaciona com a História,
seja por interesse revisionista, seja por parodiar seus conceitos e formas de
apresentação. Naquele semestre estudamos alguns autores daquele período,
sempre tendo em vista sua relação com os escritos de Machado e, inclusive, o
próprio escritor enquanto personagem de ficção.
Após o fim da disciplina, me sentindo desafiado e preparadíssimo para
encarar uma pesquisa, procurei a Professora Marilene para pedir que me
orientasse e, nas palavras dela mesma, depois de uma “longa história, cheia de
confetes”, ela aceitou. Entretanto, nem tudo eram flores. Claro que, em
seguida, assumi também todos os encargos que isso acarretaria. Perpassei
boa parte dos estudos recentes de Teoria da História, ensaios sobre as
relações entre a Literatura e a História, além de “petiscar” muitos livros de
ficção. Em algumas ocasiões, tive medo de não corresponder ao esperado (e
confesso que ainda tenho), mas sempre fui alertado pela paciente orientadora:
“Não precisa ler tanta coisa de uma vez só, vai com calma, se não você vai
fazer confusão”. De todas as anotações e fichamentos que fiz, consegui extrair
boa parte do que precisaria para a monografia. O desafio seguinte seria
8
colocar em ordem todo o material que recolhi dos meus próprios “passeios pelo
bosque da ficção”. Para mim, a parte mais complicada era “costurar” uma
variedade de propostas teóricas que dessem conta de explicar o objeto a que
me dedicava, sempre tomando o cuidado de não mesclar correntes
conflitantes.
Bem, esta apresentação me pareceu necessária para deixar claro que,
antes de qualquer coisa, fiz diversas escolhas antes de chegar ao produto da
pesquisa: este estudo monográfico. Dentre elas, a primeira foi a obra de ficção
a analisar. Escolhi por antecipação o romance Heranças, de Silviano Santiago,
do qual eu não tinha muita informação, mas estava no rol de obras
selecionadas pela orientadora no seu projeto de pesquisa, intitulado “O uso do
discurso de memórias na ficcionalização do passado recente 2001-2010”, em
que me inscrevi como participante. Havia aí uma garantia: Heranças figurava
na lista de obras que poderiam ser lidas como ficção histórica. Depois de lê-lo,
percebi que o romance, sem dúvida, apresentava muitos aspectos que se
encaixam no que, outra escolha minha, resolvi chamar aqui de “ficção histórica
contemporânea”.
***
Este trabalho tem por objetivo analisar o romance Heranças (2008), de
Silviano Santiago. O trabalho será dividido em cinco capítulos. No primeiro,
apresentaremos o percurso teórico realizado acerca da ficção histórica e de
que modo o romance de Santiago pode ser incluído neste tipo de narrativa. O
segundo capítulo será dedicado à análise das circunstâncias históricas
presentes na narrativa. Indicaremos estas circunstâncias tendo em vista sua
importância para a construção do enredo e do tempo narrado. O procedimento
narrativo “discurso de memórias”, utilizado na tessitura do romance, é o objeto
de apreciação do terceiro capítulo. Neste, trataremos dos aspectos do discurso
de memórias, como a rememoração, o esquecimento (e suas diferentes
motivações) e a “reinvenção” do passado, que se dá pelo preenchimento das
lacunas da memória com o uso da criação. Os termos apresentados serão
explicados seguindo os escritos de Paul Ricœur em A História, a Memória, o
9
Esquecimento. O quarto capítulo investigará se o romance pode ser lido como
forma de discurso identitário, usando a terminologia e os conceitos elaborados
por Stuart Hall em A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Por fim, o quinto
capítulo avaliará de que maneira o romance se apresenta enquanto uma das
formas de biografia descritas por Philippe Lejeune em O Pacto Autobiográfico.
10
1. FICÇÃO HISTÓRICA CONTEMPORÂNEA
Com o advento da discussão sobre as tendências e práticas que
ocorrem após o período costumeiramente chamado Modernismo e da ficção
altamente politizada dos anos 1960/1970, os estudiosos da literatura têm tido
especial interesse na interseção entre a literatura e a história. Essa discussão,
antes de ser comparativa, concentrou-se em rever o caráter da narrativa
histórica e da narrativa de ficção enquanto “reprodução da realidade”, de modo
a compreender que tipo de ligação entre o passado e o presente se configura
nas duas narrativas. Uma preocupação que é maior para os estudos literários
do que para os estudos históricos, já que a ficção não é necessariamente o
objeto da pesquisa do historiador, é a caracterização de uma figuração do
passado, empírico ou não, que vise à compreensão do presente (narrativo) ou
que se utilize para a tessitura da narrativa com os mais diversos objetivos.
Vejamos quais são eles.
Não é atual a vertente literária que trata de circunstâncias históricas.
Georg Lukács publicou, em 1937, o estudo “O Romance Histórico”3, que trata
da narrativa histórica “clássica”4, inaugurada pelo escritor Walter Scott. Para
Lukács, o romance histórico configurava uma narrativa que buscasse a
figuração da história através da apreensão do passado pela narrativa, de modo
que aquela demonstrasse os motivos e circunstâncias passadas que deram
origem ao presente da escrita. (LUKÁCS, 2011, p.117-136). Por outro lado, o
crítico húngaro afirmava que a narrativa ficcional que representasse o passado
não deveria ter ligação com o tempo de vida do autor, isto é, o romance tinha
que tratar do passado distante, não presenciado pelo escritor, como na
narrativa épica (LUKÁCS, 2011, p.282-306).
Mas não é sobre o romance histórico de Scott que trataremos. É preciso
citar Lukács para poder rever sua análise do romance histórico, que condenava
3Traduzido para o português em 2011, publicado pela Boitempo Editorial.4“Clássico” é o termo que Lukács usou para falar do romance que, ao tomar as circunstâncias históricas como pano de fundo, lida com personagens fictícias no eixo principal, mas pode trazer figuras históricas à narrativa, tanto de um modo secundário quanto por ter sido a figura histórica (empírica) que participou de determinados momentos chave na história não-ficcional tomada como base para a ficção.
11
à morte este tipo de narrativa, já que as narrativas realistas e naturalistas
procediam ao oposto do modelo ideal apresentado pelo crítico. O período que
se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial (de 1945 em diante) revelou uma
produção literária bastante plural a partir do procedimento dito “vanguardista”
que o Modernismo consagrou. Interessa-nos neste trabalho avaliar, em
especial, os romances do período que abrange o fim do século XX, essencial
para apreensão da ficção do início do século XXI, ainda que se dê para o
recorte temporal citado a definição genérica de “contemporaneidade”.
Os romances contemporâneos apresentam as mais diversas
configurações. Entre narrativas fantásticas e relatos quase biográficos,
encontramos a ficção que se realiza através do entrelaçamento entre a ficção e
as circunstâncias históricas5, um entrelaçamento, diga-se, diferente daquele
que Lukács percebeu no romance histórico clássico. Marilene Weinhardt
destaca que
não se pode negar que, na literatura contemporânea, há uma linhagem significativa de romances voltados para o passado, ainda que as expressões mais criativas já não se conformem aos padrões de excelência lukacsianos. O romance histórico contemporâneo não se confunde com o de Walter Scott, nem com o de Flaubert, respectivamente modelo e antimodelo para Lukács. (WEINHARDT, 2011, p.42)
O que apreendemos é que, seguindo uma tendência à pluralidade de
discursos nas narrativas contemporâneas, o romance histórico se configura de
maneira diversa do que Lukács descreveu. A nova configuração é objeto de
estudo de vários críticos, incluindo alguns que negam a existência de um
romance histórico6. No âmbito da investigação sobre como se dá a escrita da
ficção histórica, Weinhardt indica:
5Entendemos que “circunstância” é mais adequado, tendo em vista que “fato” e “acontecimento” são termos que, para o trabalho do historiador, podem não representar exatamente o sentido do trabalho de narrar o passado, isto é, não há uma única história, construída por fatos ou acontecimentos verificáveis, mas várias versões da história, apresentadas sob diferentes pontos de vista. Mas não é objetivo deste trabalho abordar as questões inerentes à busca da verdade histórica, mas sim a investigação do uso da história na tessitura da narrativa de ficção.6 Fredric Jameson apresenta conferência em 2004 (publicada pelo CEBRAP na revista Novos Estudos) defendendo a tese de que o romance histórico tem seu lugar no passado e que na contemporaneidade o que se produz é outra coisa, que não faz a ligação ou o enlace crítico entre a história e seus desdobramentos até o presente, mas trabalha com o questionamento da noção de “verdade” que a história tradicional (disciplina) tinha para si antes.
12
[...] para situar o lugar da narrativa que comporta o cruzamento dos dois campos discursivos, é possível formular uma conjectura: se é um dado empírico que existem narrativas ficcionais que não são históricas, narrativas históricas e, entre essas duas formações discursivas, narrativas de ficção histórica, pode-se entender estas últimas como uma necessidade resultante de uma carência na escrita da história, não porque a historiografia como tal não dá conta da tarefa que lhe é própria, mas porque há carências em que cabe à arte investir, e só a ela, porque pode indagar sobre verdades sem a expectativa de uma resposta conclusiva (WEINHARDT, 2011, p.51).
Percebemos então que, no campo da História, a investigação concentra-
se na questão da narrativa histórica quando atribuído o valor de “verdade” em
relação ao passado, isto é, aquilo que estava posto é reavaliado, discutido, de
modo a perceber outras perspectivas. Na Literatura, a mesma questão se
funda na ficcionalização de tal verdade, ainda que não haja nenhuma
necessidade de a Literatura responder, checar ou obter respostas às
demandas históricas. Além da interseção entre as duas áreas, ocorre também
um diálogo. A narrativa ficcional recorre à História para se concretizar enquanto
discurso que requer confirmação ou efetivação do seu caráter indagador. A
História, por sua vez, eventualmente usa dos recursos da Literatura para se
realizar enquanto discurso, tendo em vista a dificuldade em completar as
lacunas que se abrem entre a documentação remanescente e a verdade
histórica deixada no passado.
A produção literária brasileira das últimas duas décadas do século XX
recebeu significativa contribuição de autores para a ficção histórica. Em
decorrência disso, também se intensificou a produção de estudos a respeito
deste “subgênero”7, conforme explica Weinhardt:
Nas últimas décadas, a abundância de títulos ficcionais que dialogam com a história, provocou correspondente intensificação nos estudos críticos, não exclusivamente sobre escritores brasileiros. Eventualmente envereda-se para reflexões mais generalizantes sobre ficção contemporânea e sobre aspectos teóricos, mas sem proposta de tratamento mais demorado de uma perspectiva teórica. (WEINHARDT, 2011:39)
7 Consideramos o romance contemporâneo, talvez até o romance de um modo geral, um gênero abrangente e diversificado a ponto de ter subgêneros.
13
Devemos considerar também que, por se tratar de período muito
recente, é relativamente pequeno o número de estudiosos que se lançam a
procurar características gerais e conceitos, formulando teorias a respeito da
produção literária corrente, sobretudo em relação ao subgênero citado.
Merecem destaque alguns teóricos da literatura que realizam uma
caracterização da narrativa histórica, ainda que de modo específico e tratando
apenas de parte da produção literária ocidental, mas que apresentam
significativa conceituação sobre a produção recente.
Linda Hutcheon, em sua Poética do Pós-Modernismo, propõe o conceito
de metaficção historiográfica para designar a parte da produção ficcional que
se apropria da história. Na introdução do estudo, ela diz:
com este termo [metaficção historiográfica] refiro-me àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo são intensamente autorreflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos (HUTCHEON, 1991, p;21).
Em seguida, a autora detalha o conceito:
[...]. A metaficção historiográfica incorpora todos esses três domínios (literatura, história e teoria), ou seja, sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. (HUTCHEON, 1991, p. 22).
Weinhardt sintetiza o postulado de Hutcheon da seguinte maneira:
“[metaficção historiográfica] se distingue da ficção historiográfica por comportar
uma aguda autoconsciência de seu processo de constituição” (WEINHARDT,
2011, p.44). A pesquisadora brasileira completa com as palavras da própria
Hutcheon que “[romances metaficcionais historiográficos] não só identificam no
passado causas para o que veio depois, mas também investigam o processo
pelo qual, lentamente, essas mudanças começam a produzir seus efeitos.”
(HUTCHEON apud WEINHARDT, 2011, p. 44).
Perry Anderson acredita que o romance histórico é uma das
manifestações romanescas contemporâneas. Entretanto, a avaliação do crítico
ruma para a configuração de um romance histórico da contemporaneidade
14
diverso do “clássico” descrito por Lukács. Em vez de enredar a narrativa com
um pano de fundo que remete à história (incluindo aí personagens e
acontecimentos históricos), o romance histórico “reinventado para pós-
modernos”
pode misturar livremente os tempos, combinando ou entretecendo passado e presente; exibir o autor dentro da própria narrativa; adotar figuras históricas ilustres como personagens centrais, e não apenas secundárias; propor situações contrafactuais; disseminar anacronismos; multiplicar finais alternativos; traficar com apocalipses. (ANDERSON, 2007, p.217)
Baseados na afirmação acima e no conceito cunhado por Linda
Hutcheon, passaremos, no próximo capítulo, à análise do romance enquanto
obra que pode ser lida, conforme dissemos na apresentação, como ficção
histórica contemporânea.
15
2. RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO EM HERANÇAS
2.1LEITURA CRÍTICA DO ROMANCE
Heranças, publicado em 2008, é o oitavo romance de Silviano Santiago.
Sua produção artística é tão vasta quanto a acadêmica, já que o autor é
também estudioso de Literatura8. Apesar do risco a que nos expomos ao
associar dados biográficos à produção literária do autor, podemos dizer que,
em alguma medida, suas inúmeras viagens ao exterior tiveram reflexo na sua
escrita ficcional. As obras Keith Jarret no Blue Note (contos, 1996) e Stella
Manhattan (romance, 1985), por exemplo, podem ter reflexos da temporada do
autor nos Estados Unidos e Viagem ao México (romance, 1993) pode ter
ligação com o fato de o autor ter estado por algum tempo no país que aparece
no título. Mas, reiteramos, são apenas suposições. Por outro lado, há uma
estreita relação entre o trabalho ensaístico e acadêmico do autor e a sua
produção artística. Esta relação se dá porque, voluntariamente ou não, os
trabalhos ficcionais apresentam muito da reflexão acadêmica de Santiago
sobre Literatura. Aí podemos incluir a maioria dos seus trabalhos ficcionais,
com destaque para o romance Em Liberdade (1981), que parodia a voz autoral
de Graciliano Ramos através do pastiche9. Neste e nos demais textos
ficcionais, percebemos o constante diálogo com a literatura já produzida e com
os escritos críticos sobre esta. Prova disso é a ficionalização do autor de
Memórias do Cárcere no Em Liberdade. Ali, Santiago transpõe à voz do
escritor consagrado o contexto social brasileiro à época da escrita do romance
(lembremos que o romance foi publicado em fins do período ditatorial
brasileiro) e, ao mesmo tempo, coloca em diálogo o cânone literário, ao inserir
8Silviano Santiago é professor aposentado pela Universidade Federal Fluminense. Além disso, trabalhou no exterior como professor visitante. Ao longo de sua carreira, inclusive até o presente, Santiago também se dedicou a atividades como tradutor, crítico literário, ensaísta e poeta.9Aqui, nos referimos a pastiche como o procedimento de “colagem” ou aproveitamento do texto de outrem como parte do próprio de modo a dar outro sentido ao escrito original. Santiago apresenta um Graciliano ficcionalizado, mas não é só isso, já que a escrita de Santiago é comparável à do próprio Graciliano, em termos de procedimentos estéticos e narrativos.
16
Claudio Manuel da Costa como interlocutor, especialmente sobre o tema do
cárcere.
Inferimos do conjunto de textos literários10 de Santiago que, em grande
medida, o diálogo com outros textos – literários ou não –, particularmente com
as circunstâncias históricas que permeiam a narrativa ficcional, são uma
constante. O diálogo é inevitável, se avaliarmos que a criação literária
referencia-se por outras obras, de modo que o texto nunca é novo, mas um
trabalho que pode tanto ratificar, quanto questionar textos anteriores. Sobre
isso, Genette (1982) diz que o diálogo entre o hipotexto (ou texto primordial do
qual surgem todos os demais) e o hipertexto (o texto que faz referência ao
hipotexto) se dá através da “transtextualidade, ou transcendência textual do
texto, que definiria já, grosso modo, como “tudo que o coloca em relação,
manifesta ou secreta com outros textos””(1982, p.8). Neste sentido, o romance
que analisaremos também pode ser lido como uma figuração hipertextual de
diferentes narrativas que o precederam, de modo que sua constituição se dá
tanto pelo enfrentamento ou negação do “padrão” estilístico quanto pela
validação da realização estética de escritos anteriores. O procedimento
descrito acima serve como base para a apresentação das leituras realizadas
do romance, que seguem no próximo parágrafo.
A primeira leitura do romance Heranças nos mostra uma narrativa de
ficção em primeira pessoa, em que o narrador é protagonista. Num olhar
preliminar, sem pretensões analíticas mais profundas, a ideia que vem à
cabeça do leitor é de que se trata de uma “autobiografia ficcional”11, isto é, o
narrador (que não é o autor empírico, como constatamos quando vemos
discrepância entre o nome que aparece na capa do livro e aquele com que o
narrador se autodenomina) conta a história da própria vida. A segunda leitura,
mais atenta e com objetivo de encontrar traços e marcos específicos, mostra
que estamos diante de um romance em que, diferentemente da listagem de
acontecimentos na vida de uma personagem (comum às biografias e
10 Insistimos em usar “texto literário” ou “produção ficcional” para as obras de Santiago para não haver confusão com a produção acadêmica do autor. Neste trabalho não abordaremos atentamente esta última, muito embora a consideremos importante elemento na trajetória do ficcionista e a citemos en passant no decorrer do nosso trabalho.11 Sobre o conceito de autobiografia dedicaremos, mais adiante, uma parte deste trabalho à discussão sobre as relações entre ficção e a autobiografia.
17
autobiografias não ficcionais), há uma análise crítica do “narrador-autor” em
relação aos próprios atos e aos “acontecimentos” - presentes e passados – que
marcaram a sua “existência”.
A “visão crítica” do narrador aponta para uma reflexão sobre a própria
narração do fato. Em diversas passagens do texto o narrador cita seu
“relacionamento” com a escrita – e consequente exposição – sobre si mesmo:
“A copeira bate à porta do escritório e interrompe bruscamente o diálogo que
mantenho comigo na tela do computador. Ainda nos estranhamos todos. Os
dedos e o teclado. As palavras e a tela” (p.12). Temos então a primeira parte
do “binômio” hutcheoniano: a metaficção. A segunda parte do binômio tem
lugar quando a relação que o texto estabelece com outros anteriores se
apresenta com maior evidência. No caso de Heranças, uma das fontes de
referência é a obra de Machado de Assis, mais particularmente pelo
“empréstimo” dos recursos discursivos do consagrado autor, como o tom
irônico, os desvios no plano do enredo através de digressões e as constantes
alterações do tempo da narrativa pelo uso de analepses e prolepses. Outras
fontes, menos explícitas e mais ligadas aos procedimentos linguísticos
adotados na escrita e no formato da narrativa, serão abordadas mais adiante.
2.2METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA
A narrativa romanesca não deve fidelidade à realidade, ao mundo
empírico. A memória é um “ente” volátil, por isso pode trazer consigo outros
aspectos da história na construção do texto de ficção, como o imaginário e a
supressão de determinados “fatos” que talvez não sejam interessantes para a
narrativa. De fato, construir uma narrativa que se atém ao relato de
acontecimentos tal qual eles ocorreram não parece uma opção sedutora ao
escritor, que vai além do corriqueiro, do trivial, para atrair o leitor. Partindo
deste pressuposto, concluirmos que o narrador de Heranças parece estar mais
interessado em apresentar “como” do que “quando e onde” os acontecimentos
da sua vida tiveram lugar.
18
Imbricada no tempo cronológico da narrativa, há uma série de
evocações a acontecimentos direta ou indiretamente ligados à trajetória
individual do narrador, mas que tiveram destaque no tempo histórico, isto é, no
período do tempo empírico em que a narrativa se baseia. Por primeiro, temos a
descrição do presente da narrativa, ano de 2007. A personagem é um magnata
do mercado imobiliário de Minas Gerais já aposentado. Logo nas primeiras
páginas ele se apresenta como tal; ao mesmo tempo em que descreve o
ambiente em que se encontra (um apartamento confortável, à beira-mar, no
Rio de Janeiro). Também nesse “primeiro ato”, já indica a que veio: está a
escrever a própria “biografia”. Tece algumas considerações sobre o estágio de
vida em que se encontra, parecendo estar cansado de viver, considerando que
até escolheu o cemitério em que quer ser enterrado: “Elegi a cidade, escolhi o
cemitério. Decidi passar os últimos anos de vida no Rio de Janeiro e ser
enterrado no S. João Batista” (SANTIAGO, 2008, p.07). Em seguida, inicia a
trajetória de retorno ao passado através da lembrança de sua vida na Belo
Horizonte desde a década de quarenta. As memórias, no decorrer da narração,
são cuidadosamente apresentadas pelo narrador e surgem em ordem
relativamente cronológica, ainda que não haja marcos temporais constantes.
Intercaladamente às memórias, comparecem à escrita algumas considerações
do narrador sobre estas, num trabalho de autoavaliação.
Não é por acaso que o narrador foi apresentado até agora como
incógnito, nomeado como apenas “narrador”. Como se trata de uma narrativa
em primeira pessoa e o narrador, como já dissemos, trata da própria vida, o
designamos como narrador autodiegético. Entretanto, em algumas passagens,
esse narrador, que se chama Walter, sai da posição de protagonista para
assumir o encargo de contar outras histórias que direta ou indiretamente
assumem papel importante na sua história. Entre estas, incluímos as das várias
amantes que Walter manteve e a de Filhinha, irmã falecida em um controverso
acidente automobilístico.
Nas primeiras páginas do romance, Walter indica que pretende contar
ao “possível leitor” toda a sua história, para que este leitor saiba como e por
que o rico empresário da construção civil aposentado chegou ao patamar
19
social em que se encontrava no momento da escrita, no ano de 2007. Portanto,
a narração começa in medias res. Interessa-nos aqui o procedimento de
alternância entre a rememoração do passado e a autoanálise do narrador,
enquanto faz estas incursões pela memória. Mas este assunto (a memória)
será discutido mais adiante.
Walter se autodenomina um “filhinho de papai” ou, com uma expressão
francesa que ele repete muito, um parvenu, isto é, seu estilo de vida teve uma
mudança drástica depois da morte do pai e da irmã, seus únicos parentes
vivos. Os dois trabalhavam numa loja de aviamentos para costura no centro de
Belo Horizonte, na época que vem antes do surgimento das grandes lojas de
departamento. A loja rendeu uma considerável fortuna a Walter, que a vendeu
quando as lojas de departamento começaram a espocar aos montes, em lugar
dos refinados ateliês de costura. O protagonista nunca precisou trabalhar, já
que era sustentado financeiramente pela família. Como o pai tinha boa
reputação no comércio, o jovem conviveu com pessoas da alta sociedade belo-
horizontina, aproveitando a não necessidade de trabalhar para aprimorar a joie
de vivre enquanto o pai e a irmã trabalhavam.
A respeito da peripécia do jovem burguês, destacamos suas incursões
pelo submundo da cidade, onde começou seu percurso de virilidade (aqui cabe
lembrar que o narrador dedica um capítulo às “princesas venéreas”
(SANTIAGO, 2008, pp.69-73) que passaram por sua vida). Chama a atenção
outro detalhe: se, por um lado, Walter apresenta o percurso de sua vida até o
tempo presente, por outro, o narrador nos apresenta flashes do
desenvolvimento da cidade onde viveu, do país e do mundo. Na verdade, o
que acontece é que a construção da narração se dá em um “meio do caminho”
entre a personalidade do indivíduo que narra e as circunstâncias históricas em
que, de alguma maneira, este indivíduo esteve envolvido. Por enquanto,
deixaremos de lado este assunto, pois será o tema do capítulo 4 (“Identidade”).
Além do texto propriamente dito, chamamos à atenção para os
paratextos12. Aqui cabe retomar o que dissemos acima a respeito da
12 É o conjunto de informações, textos e outros detalhes que não estão no texto diretamente, mas podem exercer influência neste. Gerard Genette diz que o paratexto não se encontra no interior nem no exterior do texto principal, mas no limiar entre o texto impresso e a interpretação desse texto.
20
transtextualidade. O leitor identifica o texto como romance porque é a marca
premente da capa do livro, logo abaixo do título. São duas epígrafes advindas
de provérbios populares. A primeira tem relação direta com o que o leitor
encontrará a respeito da relação entre Walter e Filhinha: “quem tem irmão não
precisa ter inimigo”. A segunda epígrafe, um provérbio espanhol, apresenta o
instrumento de armazenamento da escrita (papel) como o herói do livro, já que
o que vem nele escrito é comparável a outras coisas que fazemos com este
tipo de material, inclusive a higiene pessoal: “el papel todo lo aguanta; hasta
que se limpien con él”. Cada um dos provérbios apresenta a síntese de uma
parte do conteúdo dentro do livro. O que aparece primeiro sumariza o meio
pelo qual Walter obteve sua fortuna, ainda que na narrativa não tenhamos um
mea culpa explícito sobre a morte da irmã. O segundo, supomos, deixa claro
que nem tudo que é escrito é bom, podendo esta afirmação ser estendida à
própria narrativa que vem em seguida.
No primeiro subtítulo deste capítulo indicamos que uma das “fontes de
referência” para Heranças é a obra de Machado de Assis. Citamos que no
romance de Santiago podemos encontrar o “empréstimo” de recursos
discursivos do outro autor. Fica clara, então, a noção de transtextualidade, se
compreendermos que o texto anterior molda o novo, mas ao mesmo tempo o
texto novo transgride regras, revê e transforma o anterior. Isso vem ao
encontro do que Anderson alinhavou a respeito do romance histórico. O
entretecimento de diferentes planos temporais se dá, não somente pela
alternância entre o passado e o presente narrados, mas também pela
introdução das características discursivas de Machado, que é um dos
elementos-chave na construção da metaficção historiográfica descrita no início
do nosso trabalho.
As marcas do pastiche da narração machadiana presentes na narrativa
de Santiago contribuem não somente para a construção do texto do último
como narrativa que dialoga com o passado, mas também com a caracterização
do narrador autodiegético. Exemplo do uso dos recursos machadianos é a
digressão. Apesar de o romance ser constituído por muito menos capítulos do
que normalmente os de Machado tinham – são apenas trinta e três –, são
21
inúmeros os exemplos de “desvios” que o narrador usa entre uma parte da
narrativa e outra, particularmente quando muda o plano temporal. Dos vários
exemplos, o transcrito abaixo é bastante peculiar. Além de parodiar o processo
de digressão, há também a “conversa com o leitor”, outro elemento
característico da obra machadiana:
Compete ao primeiro leitor, que é também autor, saber se se deve deixar que bom senso e autocensura se abracem. Prometo ao que me acompanhou até aqui. Se porventura vier a refugar vocábulos, passagens ou páginas deste manuscrito, deixarei escrito neste exato lugar:Algumas passagens foram censuradas pelo autor.Promessa é promessa. É dívida. Embora não a possa pagar na hora da leitura, já que estarei na cova espiritual, onde o vil metal não conta. (SANTIAGO, 2008, p.110)
O citado pastiche, que envolve o uso ou recorrência ao texto referencial,
não serve como modelo único. A narrativa de Santiago não apenas pratica o
mesmo tipo de procedimento, mas também trabalha com a apropriação desse
procedimento, referendando o original e reconhecendo sua importância. Daí o
uso do procedimento discursivo de outro autor não implicar necessariamente
na ridicularização ou na tentativa de romper com o modelo. Por isso, o efeito
produzido pelo referendo cabe em outra nomenclatura: a paródia. Na acepção
tradicional, dicionaresca, paródia é a apropriação que, em lugar de referendar o
modelo, o subverte, de modo que o que se configura é a crítica, a ironia. No
romance, como dissemos, o que se percebe é o endosso do texto anterior. A
dubiedade da afirmação é explicável. Linda Hutcheon, no estudo intitulado
Uma teoria da Paródia, afirma que a paródia é a
repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo. Versões irônicas de “transcontextualização” e inversão são os seus principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso à homenagem reverencial (HUTCHEON, 1989, p. 54)
Notemos que a autora atribui à paródia mais do que apenas os
conceitos de ironia e quebra de paradigmas. A “versão” do texto predecessor
pode tanto favorecê-lo quanto arruiná-lo. Aí a ironia serve como ferramenta
para a segunda opção. Identificamos que a ironia, entretanto, é o objeto de
22
“cópia” por parte da narrativa de Santiago. Então, a primeira opção é a mais
adequada em relação à “aplicação” do procedimento machadiano no romance,
especialmente porque, em vez de satirizar ou ironizar o referencial, o texto
absorve a ironia (que, junto com a digressão e a conversa com o leitor, é
característica essencial de Machado de Assis) e a apresenta nos mesmos
moldes do texto de referência, como no trecho abaixo, em que o narrador
transforma em objeto de análise “sociológica”, obviamente irônica, o modo com
que a genitália masculina se torna responsável pelas escolhas do homem:
Bem, a honestidade no caráter é consequência da falta de largueza de Nossa Senhora dos Partos na confecção da genitália masculina. O bom crédito na praça e a opção pelo casamento monogâmico são efeito da parte baixa masculina, e não, como se divulga, consequência da personalidade masculina, moldada pela tradição familiar e a formação religiosa e educacional (SANTIAGO, 2008, p.131)
2.3HISTÓRIA RECONTADA
Certamente que reconstruir a história tal qual ela ocorreu não é o intento
original da ficção. Entretanto, a narrativa ficcional pode servir como meio de
revisão, confirmação ou interpretação do pensamento e do fazer histórico.
Neste sentido, a ficção tem a capacidade de dar conta daquilo que a história
não pode “contar”, seja por não ter subsídios comprobatórios suficientes, seja
por não ter liberdade para tal. Na segunda opção reside a supressão citada no
início do subtítulo anterior, ainda que lá elejamos a escolha do autor como
principal causa para a “falta” de informações e o lugar da supressão seja a
ficção, não a história. Transportando o termo para a história, veremos que a
“escolha” não se dá por conveniência da narrativa, mas pelo efeito que o
suprimido pode ter sobre o leitor da narrativa histórica (não-ficcional) em sua
época de escrita. Ricoeur, no estudo Tempo e Narrativa (2010), explica o
caráter libertador da ficção sobre a história, no sentido de que aquela pode
trazer à luz aquilo que esta não pôde ou não conseguiu:
Embora seja verdade que uma das funções da ficção, misturada com a história, é liberar retrospectivamente certas
23
possibilidades não realizadas do passado histórico, é por meio de seu caráter quase histórico que a própria ficção pode exercer a posteriori sua função libertadora. O quase-passado da ficção torna-se assim o detector dos possíveis escondidos no passado efetivo. O que “poderia ter acontecido” - o verossímil segundo Aristóteles – abarca tanto as potencialidades do passado “real” como os possíveis “irreais” da pura ficção. (RICOEUR, 2010c, p.327)
Inferimos que a verossimilhança e o “poderia ter acontecido” são duas
partes fundamentais na leitura da ficção histórica, de modo que até mesmo as
narrativas “irreais”, isto é, aquelas que, sob o ponto de vista histórico, têm
pouca ou nula chance de ter acontecido podem de alguma maneira representar
uma possibilidade de elucidação dos “escondidos do passado efetivo”. Em
seguida, o filósofo também indica que
Essa profunda afinidade entre o verossímil da pura ficção e as potencialidades não realizadas do passado histórico talvez explique, por sua vez, porque a liberação da ficção das imposições da história – imposições resumidas na prova documentária – não constitui […] a última palavra no que concerne à liberdade da ficção. (RICOEUR, 2010c, p.327)
Concluímos, então, que a ficção de fato não deve nem precisa figurar a
história do modo com que já enunciamos no início deste subtítulo. Ricoeur
declara que reside na verossimilhança o caráter de dar vazão às
“potencialidades não realizadas” do passado histórico, sem obrigatoriamente
usar a prova documental como confirmação de seu discurso. Na visão do
filósofo, não há somente um uso pela ficção da potencialidade não realizada,
mas inclusive um uso pela própria história do que a ficção deixa de lado. Sobre
isso, Ricoeur afirma que
[…] o entrecruzamento entre história e ficção na refiguração do tempo repousa, em última análise, nessa sobreposição recíproca, com o momento quase histórico da ficção trocando de lugar com o momento quase fictício da história. (RICOEUR, 2010c, p.328)
Partindo desta afirmação tecemos aqui alguns comentários sobre a
sobreposição que Ricoeur afirma existir entre o passado histórico e a figuração
ficcional deste passado, particularmente sobre o nosso objeto de análise. Em
Heranças, o entrelaçamento entre o que é ficção e o que é histórico acontece
24
muito subjetivamente, isto é, podemos perceber que existe ligação entre os
acontecimentos do passado ficcional e o passado histórico. Mencionamos
anteriormente que o narrador realiza um retorno ao passado através da
lembrança ocasionada por fatos do presente da narrativa. Dentre lembranças
de cunho pessoal ou familiar, vez ou outra aparecem lembranças que não
estão exatamente enquadradas numa memória individual, mas na coletiva.
Para poder contar sobre a experiência da passagem da fase juvenil para a
adulta, Walter evoca a própria história do seu local de crescimento, traçando,
ainda que não intencionalmente, um paralelismo entre a sua trajetória de vida e
o desenvolvimento urbano da ainda jovem Belo Horizonte. É evidente na
narrativa o estabelecimento do paralelismo, especialmente quando o narrador
apresenta a maneira com que a cidade cresceu. Por exemplo, onde antes era
um bairro dormitório13 (Walter cita alguns bairros, como Funcionários, Lourdes
e Savassi, locais empíricos que, conforme o relato ficcional, eram bairros
limítrofes da cidade e, com o crescimento do perímetro urbano, tornaram-se
bairros centrais), num tempo futuro (mas ainda passado em relação ao
presente da narrativa), se tornaria um centro comercial e residencial de classe
media alta.
Consideramos necessária uma contextualização, ainda que bastante
pontual, do passado histórico da capital mineira para podermos traçar mais
claramente o paralelismo entre o passado narrado e o passado histórico que
serve de pano de fundo à ação do narrador. A partir de fontes históricas
documentais14 sabemos que a capital de Minas Gerais foi uma das primeiras
cidades brasileiras a ter um planejamento anterior à sua construção. O
processo de criação da nova capital, que sucedeu Ouro Preto como cidade
sede do governo mineiro, começou em fins do século XIX, quando a recém-
instalada República ainda estava em vias de consolidação enquanto regime de
13Denominação comum no jargão do Urbanismo e da Geografia, bairro ou cidade dormitório é o local em que o comércio é incipiente e há uma hierarquia demográfica que privilegia a residencia, especialmente porque os moradores trabalham em região prioritariamente industrial ou comercial. 14Dados pesquisados no sítio eletrônico da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (queira ver a referência no final do trabalho), indicam que Belo Horizonte não surgiu de uma cidade preexistente, mas que foi criada para ser a capital. Como veremos em seguida, a cidade teve local e projeto de construção definidos de modo que a nova capital ficasse numa região central do Estado. Também utilizamos como fonte para esta contextualização a tese sobre demografia da região de BH, defendida em 2008 por Joseane de Souza na Faculdade de Economia da UFMG.
25
governo no Brasil. Como forma de demonstrar o progresso que o regime
republicano traria à nação – ideia esta advinda do pensamento positivista
trazido da Europa – o governo encampou a bandeira da modernização. Não
por acaso, esta modernização também apagava – ou pretendia apagar – as
marcas que o período monárquico deixou, inclusive no planejamento urbano do
país. Em Minas Gerais, o esforço dos republicanos se concentrou na mudança
da capital para uma cidade totalmente nova, de modo que nem Ouro Preto,
cidade com configuração tradicional e ao estilo imperial, nem outras cidades
mineiras com origem parecida poderiam ser capital, senão uma nova cidade,
projetada para ostentar o poder inovador e modernizador da república, em
detrimento do “atraso” do regime anterior. O projeto e a construção da nova
cidade foram encabeçados pelo engenheiro Aarão Reis entre os anos de 1894
e 1897. O engenheiro esperava que a população da cidade não crescesse em
número superior a cem mil habitantes em cem anos. A população da nova
capital, que não era maior que 12.000 habitantes em 1897 (SOUZA, 2008,
p.42), cresceu a ponto de chegar a 140.000 habitantes trinta e três anos depois
(setenta anos antes do previsto por Reis, portanto). Esse crescimento se deu
de forma descontrolada, o que resultou na desfiguração do plano original da
cidade. A partir da década de 1940, a explosão demográfica e a expansão do
perímetro urbano para muito além da “Avenida do Contorno”15.
Sobre o termo “modernização”, vemos que as décadas seguintes a 1940
foram marcadas por sucessivas alterações no cenário urbano de BH, como o
surgimento dos bondes elétricos, a construção do complexo arquitetônico da
Pampulha, o espocar de vários arranha-céus no centro da cidade, entre outras.
É natural que uma cidade em crescimento invista na adequação de seu espaço
para comportar um novo status quo. Chamamos à atenção para esta condição
porque é daí que parte a perspectiva do narrador quando trata das etapas da
sua vida. Este é o ponto de encontro entre o passado narrado individual e o da
coletividade. Entre um e outro sumário sobre a adolescência do narrador, são
feitas longas descrições dos bairros e da cidade, dos edifícios e do quotidiano
15A Avenida do Contorno era o marco proposto por Aarão Reis para demarcar um “cinturão” que delimitava a cidade e a separava da área rural. No entanto, com o crescimento acelerado, logo a Avenida foi engolida pela metrópole nascente.
26
das ruas de BH, entremeadas por comentários sobre a situação econômica da
época e dos anos seguintes. Este procedimento é frequente e dele também
vêm outros traços do passado histórico.
Como dissemos na breve contextualização acima, Aarão Reis é um dos
fundadores de Belo Horizonte. Não é por coincidência, portanto, que o primeiro
negócio próprio de Walter tome por empréstimo o nome do engenheiro. É claro
que o fato de a empresa ser uma construtora também é muito relevante para
tal escolha, sobretudo porque é na mesma cidade projetada por Reis que o
parvenu mineiro vai enriquecer às custas da especulação sobre imóveis. Neste
caso, Walter se torna o próprio Aarão Reis, com poderes de modelar a cidade
ao seu prazer. Não podemos nos esquecer das descrições do bairro da
juventude de Walter: Lourdes. O narrador apresenta o bairro em duas épocas
diferentes, mostrando a discrepância entre o passado e o presente, falando
sobre os antigos casarões de tradicionais famílias (período equivalente às
décadas de 1940 a 1960) e a “floresta de concreto” (da década de 1970 em
diante) que se armou sobre os escombros daquelas casas, em especial a da
própria família.
A adolescência de Walter é tema bastante explorado no romance. No
início deste capítulo citamos as “princesas venéreas”, que representam a parte
menos glamourosa da vida sexual do narrador. Mas também havia uma
contraparte. O jovem, assim como outros da sua época, cobiçava as moças
“casadoras”, mas ele não tinha a mesma intenção, como vemos no trecho
abaixo:
Depois de ter transladado aos trancos e barrancos o núcleo familiar para a vida urbana, o patriarca sobrevivia na competição com os filhos de estrangeiro e com os estrangeiros naturalizados. Durante a Segunda Grande Guerra e a partir dela, os estranhos ao solo ferruginoso é que emprestaram novo e inédito movimento a Belo Horizonte. A metrópole se modernizava hierarquicamente. De contrapeso, como dizem os açougueiros, o patriarca era acompanhado da prole numerosa e exigente. Com o capital interiorano à míngua e com o trabalho mal remunerado de funcionário público, com os filhos presos às despesas escolares ou à procura de profissionalização, o que o pai de família podia oferecer em troca à generosidade dos enricados pela modernização? […] Na sala de visitas, à janela ou no alpendre, havia uma
27
preciosidade, a que os maldosos companheiros de juventude chamavam de mariposa e os poetas românticos, de flor. Mariposa ou flor, a pedra preciosa era guardada a sete chaves dentro das paredes do lar e, quando exposta ao público em roupagem de donzela virgem, tornava-se atraente aos olhos desvirginados e injuriados pela Princesa Venérea da Vida. Passei a adquirir na capital do estado o delicado e precioso produto comercial, manufaturado e embalado senhorilmente nas cidades do interior. Eu dava uma mãozinha ao patriarca em apuros. (SANTIAGO, 2008,pp.120-21)
Aqui, podemos perceber o entrelaçamento entre o passado individual e
o histórico claramente. O interesse do jovem era pela moça, mas o senhor que
narra esta experiência percebe a “negociata” que o falido patriarca do interior
se obriga a fazer para não cair nas graças da penúria. A filha tornava-se objeto
de barganha para a sanha do jovem abastado, que queria “experimentar”
outros quartos, para além dos seus conhecidos na região do meretrício. Além
disso, o trecho selecionado sintetiza perfeitamente um processo pelo qual o
país inteiro no período histórico que se inicia com o alavancamento da
industrialização e que teve por consequência o êxodo de boa parte da
população rural para as cidades. Isso obviamente aumentou a procura por
imóveis nas cidades, o que corrobora com a perspectiva mercadológica
apresentada pelo narrador, que lucra com o aumento da demanda imobiliária e
também com a decadência do modelo político antes forte dos antigos senhores
das fazendas do interior, que perderam o prestígio de outrora para os
industriais.
Notemos que, desde o princípio de nossa análise, fica evidente que o
processo de narração enfatiza um discurso baseado na lembrança, na
memória, ainda que saibamos que é uma memória criada, fictícia. Até agora,
afirmamos que é possível fazer muitas relações entre a narrativa e o passado
histórico. Apresentamos, é claro, apenas algumas das possíveis relações.
Todavia, cremos que o que apresentamos é suficiente para das subsídio ao
que trataremos no próximo capítulo: o discurso de memórias.
28
3. MEMÓRIA: USOS E ABUSOS
Este capítulo será dedicado a tratar do discurso de memórias enquanto
procedimento narrativo em Heranças. Dissemos no capítulo anterior que o
romance apresenta na sua tessitura relações com o passado histórico. Entre os
modos de abordar a história na narrativa de ficção, a opção neste romance foi
pela exposição das lembranças do narrador na medida em que ocorria a
escrita, ou melhor, o que lemos é um relato da personagem sobre sua vida,
mas não de maneira prescritiva ou baseada em elementos verificáveis em
documentos. Observemos, porém, que o tipo de narrativa que se utiliza com
mais frequência deste procedimento é a narrativa autobiográfica, que pode ou
não ser ficcional. Philippe Lejeune (2008) indica dois modos de encarar a
memória enquanto discurso:
existem duas atitudes diametralmente opostas em relação à memória. Sabe-se que ela é uma construção imaginária, ainda que seja pelas escolhas que faz, sem falar de tudo que inventa. Alguns optam por observar essa construção (fixar seus traços com precisão, refletir sobre sua história, confrontá-la a outras fontes...). Outros decidem continuá-la. (LEJEUNE, 2008, pp. 105-106)
Apreendemos desta afirmação uma distinção muito específica entre
ficção e não-ficção, no que se refere à narrativa memorialística. Na ficção não
há um contrato com a verdade, com a confirmação da realidade. Não
arriscaremos dizer que acontece o contrário na autobiografia não-ficcional, até
porque Lejeune não diz isso. Diz, na verdade, que o contrato da autobiografia é
com a reflexão a respeito do passado, ainda que a (re)construção dele não
seja possível na sua totalidade. Enfim, temos aqui uma confirmação do caráter
volátil da narrativa que pretende dizer o passado, exatamente o que Ricoeur
dissera sobre o passado histórico. Também não arriscamos dizer que a ficção
não possa exercer a mesma função da autobiografia, no sentido de guardar (no
texto escrito) o passado individual, mesmo que este passado não possa ser
resgatado na sua totalidade. Neste sentido, Paul Ricoeur (2007) corrobora com
o conceito de parcialidade da memória na tentativa de expressar o passado:
29
se podemos acusar a memória de se mostrar pouco confiável, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para significar o caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar. (RICŒUR, 2007, p.40)
A pouca confiabilidade reside justamente no fato de não podermos
alcançar a totalidade do passado. A memória, da mesma forma, encontra na
ficção a possibilidade de preencher lacunas que a visão parcial do passado
deixa, assim como acontece com a ficção que figura o passado histórico. Por
outro lado, também existe falta de confiabilidade na narrativa histórica não-
ficcional, exatamente pelo fato de esta também não abranger uma totalidade,
mas apenas um ponto de vista.
Para além do caráter parcial, existem outras maneiras de definir a
memória. Ricoeur, no estudo A Memória, a História, o Esquecimento, declara
que é preciso entender a memória não somente como um “reservatório de
lembranças”, mas como uma forma de representação do passado e da
experiência do sujeito. Essa representação é capaz, seja em qual forma
estiver, de fazer do seu próprio ato de enunciação uma maneira de significar as
coisas, apresentar a realidade para os outros. A memória pode trazer o
conteúdo mnemônico (aquilo que é passado), ausente no presente, novamente
à luz, mas sempre de modo a repensar este passado, ressignificá-lo. Ricoeur
diz que o ato de memorizar é a economia de um reaprender tal coisa
novamente, mas isso exige do sujeito um trabalho penoso de treinamento da
sua memorização, de modo que o que está sendo memorizado não caia em
esquecimento.
Para falarmos de todas as acepções de memória, precisaríamos fazer
um trabalho dedicado exclusivamente a isso. No nosso caso, decidimos por
escolher, do trabalho do filósofo francês, dois aspectos específicos do estudo
ricoeuriano e concentrarmos neles a nossa análise do romance de Santiago: os
“usos” e os “abusos” da memória.
No primeiro deles (uso), trabalhamos com o conceito de rastros de
memória, largamente estudado por Ricoeur no capítulo “A condição Histórica”
(RICOEUR, 2007, p.297-462) do trabalho supracitado. Os rastros de memória
se constituem por três diferentes condições: o apagamento, a distorção e a
30
permanência. A condição de apagamento é aquela em que, por motivos outros,
faz com que o sujeito simplesmente não tenha lembrança de algo que de fato
aconteceu. O apagamento pode ser tanto patológico quanto por escolha.
Quando é por escolha, ele carrega o esforço do indivíduo em esquecer ou, pelo
menos, não lembrar. A distorção, por sua vez, é a maneira encontrada pelo
sujeito para dissimular, seja por amenização, seja por culpa, a lembrança,
muito embora também seja possível que a distorção venha pelo viés da
memória coletiva, que, de uma maneira ou outra, subtrai conteúdos da
memória da comunidade por interesse da própria coletividade. A permanência,
ao contrário das outras duas condições, é a que se faz pela persistência da
lembrança sobre o esforço empreendido pela tentativa de distorção ou
apagamento.
No romance por nós estudado encontramos pelo menos um exemplo de
cada forma de rastro de memória. O apagamento, obviamente, é mais
recorrente, seja porque o sujeito, conforme dissemos, não pode nem consegue
lembrar de tudo, seja porque a seleção da memória a constar na narrativa é
sempre selecionada, então o que a escrita acolhe é o que o autor (aqui refiro-
me a Walter, já que não são as memórias de Silviano Santiago as que estão no
romance, segundo a perspectiva adotada no processo de criação) escolheu
para figurar a sua memória. A distorção aparece por um processo muito
semelhante ao apagamento, mas tem outras razões. Neste caso, o exemplo
mais significativo é o episódio da morte de Filhinha. O modo com que Walter
narra as circunstâncias do acidente é que evidencia a distorção:
[...] seria ridículo privilegiar uma das versões que explicam o
acidente automobilístico na BR-3. Mais ridículo seria apadrinhá-
la. Se tomada isoladamente, versão alguma elucida a contento
a morte de Filhinha. É tolice partir do fato acontecido e
caminhar para o exame de hipótese única. Quando muito, a
tática levará a excluir essa ou aquela situação como
improvável, fantasiosa ou fanfarronesca. Até aí morreu Neves.
A avaliação final dos fatos advirá da soma de todas as versões.
Quero trabalhar todas as versões explicativas do acidente,
31
assim como quis as duas Princesas Venéreas. Excluir
simplifica. Empobrece. Nada é simples nesse mundo, a não ser
a frágil casca de ovo de galinha. Ninguém é pobre nas
intenções. Não me dou trégua, tampouco a transmito ao leitor.
Ao trabalho! (SANTIAGO, 2008, p.125)
Observemos que o narrador não se esquiva da responsabilidade pelo
acidente, mas também não a assume. O esfumamento da lembrança para
mantê-la como incerta é a característica fundamental da distorção. Em
contrapartida, a permanência da lembrança sustém aquilo que a distorção
tenta mudar e o apagamento tenta afastar. Por outro lado, é a permanência a
responsável pelo ato de lembrar, isto é, o exercício da memória se dá pela
persistência da lembrança em estar presente. Em Heranças a trama é
sustentada em grande medida pela rememoração do passado, portanto o
principal recurso é o da lembrança, enfatizado pela permanência que, de toda
maneira, é capaz de trazer ao presente o vulto do passado, seja qual for o
caráter deste vulto.
A respeito dos abusos da memória16 - o segundo aspecto que
escolhemos – são sistematizadas por Ricoeur outras três características da
memória. A primeira delas, “memória impedida”, é o estado em que o sujeito
não tem condições de acesso à memória. O impedimento se dá pela via
patológica, de modo que não é uma escolha, mas uma impossibilidade do
sujeito de ter a lembrança trazida ao presente por meio do exercício de
lembrar17. Não é o caso do nosso objeto de estudo.
A segunda característica é a “memória manipulada”. Aqui tratamos da
memória enquanto produto de uma coletividade, mas que é representado num
indivíduo só. Esta representatividade só pode existir porque o sujeito a que nos
referimos não é empírico. Daí podermos atribuir a este sujeito a mesma noção
de memória que Ricoeur atribui a um coletivo. No caso do narrador de
Heranças, a manipulação é muito parecida com o que indicamos acima a
16Para esclarecimento: Ricoeur fala da memória enquanto prática coletiva. O caso do nosso trabalho é a interseção entre o individual e o coletivo através da caracterização de uma memória coletiva pela observação de um indivíduo que, por ser fictício, pode representar a coletividade a que o filósofo se refere.17Em outras palavras, é o estado de enfermidade que impede o acesso à memória.
32
respeito da distorção. Entretanto, ali é o caso de uma memória subjetiva
demais para ser ampliada ao coletivo. Um exemplo melhor para a manipulação
é a o tratamento dado pelo narrador a um período político brasileiro: a ditadura
militar. Não há menção direta a nenhum eventual benefício que Walter tenha
recebido do governo enquanto trabalhou com especulação imobiliária em BH.
Entretanto, há uma ênfase nas informações sobre o rendimento financeiro da
empresa de Walter no período que, no passado da narrativa, coincide com o
período histórico da ditadura no Brasil. A manipulação não reside nos negócios
da empresa de Walter com o regime, mas sim na – talvez proposital – não
menção de outros aspectos do mesmo período, como os que, na literatura
engajada da década de 1970 para cá, em larga escala eram abordados na
ficção, como a tirania dos militares, as guerrilhas, entre outros.
A “memória obrigada”, terceira característica do abuso da memória, não
é tão marcada no romance quanto as duas anteriores. Isso se dá porque a
ênfase do enredo de Heranças não é na exploração de coisas recorrentes em
outras narrativas sobre o mesmo período (em especial às escritas durante – e
não depois – o regime militar), mas em aspectos que, do ponto de vista do
leitor comum, nada têm de relação com a ditadura em si, mas que, se
observados a fundo, são uma crítica tão dura- senão mais – quanto aquela que
os romances de denúncia propunham a fazer. Nesses romances, a vontade de
se fazer presente um passado engavetado à força foi determinante para que se
desse visibilidade aos acontecimentos ocorridos no período histórico. Em
Heranças, a visão é duplamente crítica. Por um lado, o autor empírico
empresta do passado um tipo de indivíduo da classe social dominante, não
afeito a rebeldias de ordem política. Essa escolha é de claro cunho crítico à
própria classe social da personagem, considerando que esta classe era a que
apoiava o regime. Por outro lado, a personagem apresenta o passado sob o
ponto de vista da classe dominante, sem melindres para falar a posição
privilegiada em relação às circunstâncias históricas e sem se preocupar com
eventuais manifestações de aversão à sua versão. Aliás, a crítica ao “sistema”
está perfeitamente entranhada no comportamento do narrador, especialmente
na sua atitude perante as outras pessoas. As pessoas de poder aquisitivo
33
menor que o dele, a maioria das mulheres, os empregados e várias outras
personagens que representam classes sociais são descritas pelo narrador
através da ênfase nas características pejorativas. Por exemplo, Mariazinha, a
doméstica de Walter, é sempre mostrada como preguiçosa e pouco qualificada
para o emprego. Já as mulheres, de uma maneira geral, são tratadas pelo
narrador como objeto de troca, como mercadoria. Exemplo disso é o mesmo
trecho que selecionamos no final do capítulo 2. lá, percebemos que, depois de
conhecer a “princesa venérea da vida”, o interesse do jovem Walter se
deslocou na caça a mulheres que não tinham a experiência das que ele
pagava para ter.
[…] a pedra preciosa era guardada a sete chaves dentro das
paredes do lar e, quando exposta ao público em roupagem de
donzela virgem, tornava-se atraente aos olhos desvirginados e
injuriados pela Princesa Venérea da Vida. Passei a adquirir na
capital do estado o delicado e precioso produto comercial,
manufaturado e embalado senhorilmente nas cidades do
interior. Eu dava uma mãozinha ao patriarca em apuros.
(SANTIAGO, 2008,pp.120-21)
O narrador deixa claro que, em vez de seguir o protocolo social do
casamento, ele queria mesmo é continuar o que praticava nas suas incursões
noturnas, mas com mulheres que nada tinham de parecido com as anteriores,
à exceção do pagamento, que saía da mão dos cafetões para a mão do pai
das jovens.
Este sumário demonstra que, num jogo inverso à obrigação de lembrar
(dos desgostos causados pela ditadura, no caso), a narrativa faz o mesmo
trabalho de crítica, mas usa o algoz (classe social dominante) para criticá-lo
através de seu próprio discurso. A memória, aí, serve de elemento que
confirma a crítica, justamente pelas escolhas do uso da memória que o
narrador faz. A construção do discurso do narrador pelo processo de
rememoração do passado – somada à manipulação e o suposto esquecimento
de parte da história que se pretendia contar – corrobora para a efetivação do
34
que indicamos no capítulo 1 sobre a figuração do passado e para o que
falaremos sobre a autobiografia mais adiante.
35
4. AUTOBIOGRAFIA E IDENTIDADE
4.1 A AUTOBIOGRAFIA
Cumprida a etapa de análise do romance sob a perspectiva de Ricoeur a
respeito do discurso de memória, avaliaremos o romance de Santiago sob os
aspectos da narrativa biográfica, sem esquecer, é claro, de que estamos
tratando de uma obra de ficção. Philippe Lejeune, no livro O Pacto
Autobiográfico (2008) organiza em um sistema diferentes formas das
narrativas do eu. A primeira divisão é entre o romance (narrativa ficcional) e a
biografia. A biografia, primordialmente, é perceptível ao leitor através de uma
série de indicações extratextuais, como a relação entre o nome que consta da
capa do livro e o nome daquele que se diz autor ou narrador, por exemplo. O
estudioso francês dedica especial atenção àqueles livros que se apresentam
como “memórias de uma pessoa”, mesmo que esta pessoa não seja empírica.
Este tipo de narrativa, no sistema proposto, é um híbrido de romance com
biografia, pois está ao mesmo tempo nas duas categorias.
Sobre a biografia standard, Lejeune destaca que é o conjunto de obras
feitas por outrem sobre uma pessoa, geralmente uma figura histórica. Um outro
conjunto de biografias, mais específico, é aquele em que se encontram as
obras escritas por uma pessoa sobre si mesma, que são chamadas de
autobiografias. Vale lembrar que, para o autor, a autobiografia é uma “narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência,
quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Nessa perspectiva, autobiografias
fictícias não seriam possíveis, pois o suposto autor não é uma pessoa
empírica. Por isso, Lejeune inclui este tipo de narrativa na categoria da ficção.
Outras narrativas, especialmente as que são escritas por outrem, estão em
terceira pessoa e não têm indicação - paratextual ou não - de que se trata de
texto biográfico, também são incluídas na categoria da ficção.
Para organizar a aplicação dos conceitos formulados, o teórico defende
um sistema bastante rígido para classificar cada obra. Todavia, sua perspectiva
é de que, na medida em que a narrativa é a tentativa de expressão de uma
36
verdade, fica mais difícil agrupar algumas obras em uma ou outra categoria
apenas, sobretudo quando se trata de textos em que, mesmo não sendo
identificados como autobiográficos, há indícios de que o autor empírico
acrescenta sua voz no discurso. Sobre a busca por uma “verdade”, Lejeune
diz:
Certamente é impossível atingir a verdade, em particular a verdade de uma vida humana, mas o desejo de alcançá-la define um campo discursivo e atos de conhecimento, um certo tipo de relações humanas que nada têm de ilusório. A autobiografia se inscreve no campo do conhecimento histórico (desejo de saber e compreender) e no campo da ação (promessa de oferecer essa verdade aos outros), tanto quanto no campo da criação artística. (LEJEUNE, 2008, p.104)
Portanto, mesmo a autobiografia sendo uma escrita do “eu” empírico,
pode ser inscrita no “campo da criação artística”, já que a narrativa por si só é
tratada por este viés. Lejeune também demonstra como descobrir se uma
narrativa supostamente autobiográfica o é de fato, como é o caso de Heranças.
Para ele, o autor empírico deixa “pistas” para o leitor identificar a relação
autobiográfica. Uma das mais explícitas é quando, na narrativa em primeira
pessoa, o nome do autor (que aparece na capa do livro, geralmente) é
identificado como o mesmo que o do narrador e da protagonista. Não é,
obviamente, o que acontece no romance. O narrador, que se apresenta como
autor, não é a mesma pessoa que o autor empírico, embora não descartamos
a vivência deste último na construção do romance18, mesmo porque esta é uma
das possibilidades que Lejeune explora, mas no sentido inverso, isto é, o crítico
acredita que a narrativa não tem que necessariamente partir da vivência ou da
experiência empírica do autor, mas de uma construção da identidade narrativa
através da própria narrativa:
o que é impressionante é a dissociação esquizofrênica entre a autobiografia como valor (reivindicado) e como realidade (recusada). Por que seria, aliás, interessante ou necessário que uma ficção expressasse o eu profundo do autor? Essa afirmação não seria uma espécie de ilusão de recepção [...]? O que é recebido pelo leitor com intensidade e utilizado por ele
18 A discussão crítica sobre a influência da vivência do autor na construção da narrativa parece bastante tentadora. Mas, como há que se ter um objeto mais concreto e redutível ao estudo monográfico, sem fugir ao objetivo proposto inicialmente, deixaremos este tópico para outro estudo.
37
para a construção de sua identidade narrativa parece-lhe não poder vir senão do eu profundo do autor. O intenso parece “verdadeiro”, e o verdadeiro só pode ser autobiográfico. (LEJEUNE, 2008, p.106)
No primeiro capítulo, citamos os elementos extratextuais (na
terminologia de Genette o termo é paratexto) para falar a respeito da referência
– direta ou não – que o texto pode vir a fazer a outros anteriores. Estes
elementos são elencados por Lejeune como comprobatórios da inscrição ou
não de narrativas nas categorias ficção ou biografia não-ficcional, de modo que
o romance de Santiago, cujo narrador se chama Walter, não pode ser uma
biografia não-ficcional.
4.2 A IDENTIDADE
Stuart Hall, no estudo A identidade cultural na pós-modernidade (2006),
realiza um breve estudo a respeito da configuração do sujeito nos tempos
atuais. O título do trabalho usa o termo ¨pós-modernidade¨ para se referir a
este sujeito, mas a discussão feita no corpo do trabalho usa o termo
¨modernidade tardia¨ para falar do mesmo período. A variação na terminologia
parece acompanhar a fragmentação que o autor atribui ao sujeito deste
período. Dos três tipos de sujeito que Hall estabelece no ensaio (sujeito do
Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno), trabalhamos com o
terceiro, já que o tempo abrangido pelo nosso trabalho não ultrapassa o início
do século XX. O sujeito do romance (ressaltamos que sempre temos em vista
que é o romance é uma representação do sujeito) pode ser incluído na
definição sujeito pós-moderno. A principal característica deste sujeito é a
fragmentação, no sentido de que, diferentemente do sujeito sociológico, que é
construído pelas relações deste com o outro, o sujeito pós-moderno não é
definido necessariamente por estas relações, tampouco pelo estático sujeito do
Iluminismo, mas pela indefinição, pelo deslocamento em relação aos dois tipos
anteriores. Hall afirma que
38
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que ternos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento—descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos — constitui uma "crise de identidade" para o indivíduo (HALL, 2010, p.9)
Esta crise de identidade se dá das mais diversas maneiras. Numa
figuração do discurso identitário no âmbito ficcional, como é o caso da narrativa
objeto de nosso estudo, há que se ter o cuidado de não perder de vista esta
condição de representação do sujeito. Em Tempo e Narrativa, Ricoeur
estabelece a diferença entre a identidade do eu e a identidade narrativa do eu:
O rebento frágil proveniente da união da história e da ficção é a atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade de uma identidade específica que podemos chamar de identidade narrativa. “Identidade” é tomado aqui no sentido de uma categoria prática. A história contada diz o quem da ação. Portanto, a identidade do quem não é mais que uma identidade narrativa. Sem o auxílio da narração, o problema da identidade pessoal está, de fato, fadado a uma antinomia sem solução: ou se supõe um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados, ou então se considera, na esteira de Hume e de Nietzsche, que esse sujeito idêntico não passa de uma ilusão substancialista, cuja eliminação faz aparecer tão somente um puro diverso de cognições, emoções e volições. O dilema desaparece se a identidade entendida no sentido de um mesmo (idem) for substituída pela identidade entendida no sentido de um si-mesmo (ipse); a diferença entre idem e ipse não é outra senão a identidade substancial ou formal e a identidade narrativa (RICOEUR, 2010c, p. 418-419).19
A partir desta consideração de Ricoeur, confirmamos que o sujeito não é
o mesmo quando é ficcionalizado, mas uma representação do sujeito empírico.
De qualquer modo, a fragmentação que Hall discute pode ser observada em
ambos os casos. O deslocamento se dá pela não estabilidade do sujeito na sua
19Grifos do autor.
39
identificação com todas as outras coisas do mundo. Hall enfatiza que não
existe um sujeito com identidade estável, imutável e é a temporariedade a
característica marcante:
Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu" (veja Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada unia das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente (HALL, 2010, p.13)
Heranças apresenta uma representação do sujeito tal qual Stuart Hall
descreveu como “pós-moderno”. Os nichos de identificação do sujeito, como
por exemplo o sexo, a raça, a posição social, são apresentados na narrativa
sob um viés dúbio, em constante mudança. Isso se dá, por exemplo, no modo
com que o narrador se posiciona enquanto participante de uma classe social
que se monstra como tendo determinado modus operandi em teoria, mas que
na prática tem outro. Mais ainda, o outro é atribuído a outra classe social,
geralmente de menor poder aquisitivo. É o jogo da inversão de valores que
mostra que o sujeito está numa arritmia entre o que é, o que gostaria de ser e o
que diz que é. A manifestação da crise de identidade se dá pelo fato de o meio
social em que se encontra o narrador ter concepções de moral, ética e
comportamento frente aos demais meios, mas se comporta de maneira
bastante diversa dessas concepções. É por isso que Walter se denominou um
parvenu enquanto jovem: porque sua atitude perante os membros do grupo
social ao qual ele se associou era oposta ao padrão de aceitabilidade imposto
pelo grupo, ainda que, na prática, ninguém conseguisse se adequar.
Foi doloroso chegar à conclusão de que a vida em sociedade – para ficar com uma única expressão – não pode ser apanhada entre os restos jogados pelo vizinho na lata de lixo, nem despenca dos céus como um dom de deuses e reis.
40
A alternativa encontrada pelo narrador foi a que poderia ter um efeito
amenizador do seu comportamento “desaprovável”: o dinheiro. Ele usou do
dinheiro para preencher o que lhe faltava em educação formal (um dos
constituintes do padrão). A falha do caráter, entretanto, permaneceu,
justamente porque o dinheiro virou o meio pelo qual o narrador se afirmava
enquanto parte de um grupo, mesmo que suas outras atribuições fossem
dignas de não inclusão dele neste grupo. O que o narrador nos conta é que ele
“subornou a moral” alheia por capricho seu:
Restava uma alternativa ao milionário orelhudo da colina de Lourdes. Dar fim útil e agradável à parte dos lucros que, desde a trágica morte de Filhinha, vinha engrossando as contas bancárias dos Armarinhos São José. Para bem compreender a vida em sociedade nada como compará-la a produto manufaturado. Como qualquer produto feito no Brasil ou no estrangeiro, a vida em sociedade poderia ser mercadoria no balcão comercial, bem ao alcance de minha bolsa. Custaria dinheiro ao jovem parvenu bronco, mas, em compensação, poderia render-lhe algumas moedas extras, de precioso valor na praça provinciana da vaidade. Nada como compartilhar lucros, desde que o ato de caridade trouxesse algum rendimento, digamos moral. (SANTIAGO, 2008, p. 118)20
É uma forma de fragmentação, de descentramento, este comportamento
do narrador. O sujeito é deslocado entre estar num grupo e não estar ao
mesmo tempo. O que o faz participar deste grupo também corrobora para a
afirmação: não há interesse por parte dele em ser bem-sucedido socialmente,
mas sim um desejo de demonstrar ter um status social com o qual teria
vantagens pessoais, de modo a não ter que prestar contas sobre suas ações,
especialmente numa circunstância histórica em que havia o favorecimento
daquele grupo social.
20Grifos do autor.
41
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentamos neste trabalho uma breve análise do romance Heranças, de
Silviano Santiago. A análise demandou a evocação de várias teorias,
obviamente porque uma narrativa de ficção não tem um tema único. Essa
demanda, entretanto, teve que ser recortada e ajustada para que pudéssemos
fazer uma sistematização dos temas abordados no romance. Sabemos que
ainda há muitos assuntos não abordados aqui, mas isso é trabalho para uma
pesquisa de maior fôlego, talvez com resultado em uma dissertação. Tentamos
explicitar a maneira como a história está representada no romance, tendo como
ponto de partida uma escolha teórica (a existência de uma ficção histórica
contemporânea e a inserção do romance estudado neste tipo de ficção).
Também vimos o procedimento narrativo do discurso de memórias, tendo como
desdobramento a configuração de uma narrativa que se constrói nos moldes da
biografia. Por fim, buscamos evidenciar o problema da identidade do sujeito
pós-moderno enquanto representado na ficção, buscando no comportamento
do sujeito ficcional a confirmação da fragmentação afirmada por Stuart Hall.
Não há uma conclusão sobre nenhuma das discussões feitas aqui,
principalmente porque elas foram desenvolvidas até determinado ponto.
Eventuais desdobramentos, não tratados aqui menos por falta de interesse que
por necessário recorte, certamente contribuirão para o aprofundamento do
debate dos temas expostos neste trabalho.
42
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.
ANDERSON, Perry. Trajetos de uma forma literária. Novos Estudos CEBRAP,
São Paulo, n. 77, p. 205-220, mar. 2007.
BAIRROS DE BELO HORIZONTE. Disponível em: http://bairrosdebelohorizon
te.webnode. com.br /news/a-classica-historia-de-bh-/. Acesso em 12/11/2011
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A,
2006.
HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio
de Janeiro: Imago, 1991.
________. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1989.
JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível? Novos Estudos
CEBRAP, São Paulo, n.77, p.185-203, mar. 2007.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. História de Belo Horizonte. Disponível
em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pId
Plc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=historia&tax=11794&lang=pt_BR&pg=578
0&taxp=0&. Acesso em 12/11/2011.
RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2007.
43
________. Tempo e narrativa. (tomo 1). São Paulo: WMF Martins Fontes,
2010a.
________. Tempo e narrativa. (tomo 3). São Paulo: WMF Martins Fontes,
2010c.
SANTIAGO, Silviano. Heranças. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
WEINHARDT, Marilene. Romance Histórico: Das origens escocesas ao Brasil
finissecular. In: _________ (Org.). Ficção Histórica: Teoria e Crítica. Ponta
Grossa: Editora da UEPG, 2011.
44