Download - Vânia Lúcia de Morais Ribeiro
VNIA LCIA DE MORAIS RIBEIRO
A famlia e a criana/adolescente com TDAH: relacionamento social e intrafamiliar
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS BELO HORIZONTE
2008
VNIA LCIA DE MORAIS RIBEIRO
A famlia e a criana/adolescente com TDAH: relacionamento social e intrafamiliar
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de mestre em Cincias da Sade. rea de concentrao: Sade da Criana e do Adolescente Orientadora: Profa. Dra. Janete Ricas. Co-Orientador: Prof. Dr. Jos Carlos Cavalheiro
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS BELO HORIZONTE
2008
Ribeiro, Vnia Lcia de Morais. R484f A famlia e a criana/adolescente com TDAH [manuscrito]: Relacionamento social e intrafamiliar. /Vnia Lcia de Morais Ribeiro. Belo Horizonte: 2008.
174 f. Orientadora: Janete Ricas. Co-orientador: Jos Carlos Cavalheiro da Silveira.
rea de concentrao: Sade da Criana e do Adolescente. Dissertao (mestrado): Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Medicina. 1. Transtorno da Falta de Ateno com Hiperatividade. 2. Relaes Familiares. 3. Violncia. 4. Educao. 5. Cincia Cognitiva. 6. Criana. 7. Adolescente. 8. Dissertaes acadmicas. I. Ricas, Janete. II. Silveira, Jos Carlos Cavalheiro da. III. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Medicina. IV. Ttulo. NLM: WS 350.8
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Programa de Ps-Graduao em Cincias da Sade rea de Concentrao em Sade da Criana e do Adolescente
Reitor: Prof. Ronaldo Tadu Pena
Vice-Reitora: Profa. Heloisa Maria Murgel Starling
Pr-Reitor de Ps-Graduao: Prof. Jaime Arturo Ramirez
Pr-Reitor de Pesquisa: Prof. Carlos Alberto Pereira Tavares
Diretor da Faculdade de Medicina: Prof. Francisco Jos Penna
Vice-Diretor da Faculdade de Medicina: Prof. Tarcizo Afonso Nunes
Coordenador do Centro de Ps-Graduao: Prof. Carlos Faria Santos Amaral
Subcoordenador do Centro de Ps-Graduao: Joo Lcio dos Santos Jr.
Chefe do Departamento de Pediatria: Profa. Cleonice de Carvalho Coelho Mota
Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Sade - rea de
Concentrao em Sade da Criana e do Adolescente: Prof. Joel Alves Lamounier
Subcoordenador do Programa de Ps-Graduao em Medicina - rea de
Concentrao em Pediatria: Prof. Eduardo Arajo de Oliveira
Colegiado do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Sade rea de Concentrao em Sade da Criana e do Adolescente
Prof. Joel Alves Lamounier
Prof. Eduardo Arajo de Oliveira
Profa. Ana Cristina Simes e Silva
Prof. Francisco Jos Penna
Profa. Ivani Novato Silva
Prof. Lincoln Marcelo Silveira Freire
Prof. Marco Antnio Duarte
Profa. Regina Lunardi Rocha
Ludmila Teixeira Fazito (Repr. Disc. Titular)
Dorota Starling Malheiros (Repr. Disc. Suplente)
Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Medicina
Programa de Ps-Graduao em Cincias da Sade
Dissertao intitulada A famlia e a criana/adolescente com TDHA: relacionamento
social e intrafamiliar, de autoria da mestranda Vnia Lcia de Morais Ribeiro,
aprovada pela banca examinadora constituda pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Bruno Jos Barcellos Fontanella
Profa. Dra. Juliana Gurgel Gianetti
Prof. Dr. Eduardo Carlos Tavares
Prof. Dra Janete Ricas
Prof. Dr. Jos Carlos Cavalheiro da Silveira
Belo Horizonte, 30 de maio de 2008.
Prof. Dr. Joel Lamounier Coordenador do Programa de Ps-Graduao
da Faculdade de Medicina da UFMG
Ao Fernando, ao Ivo e ao Rafael,
que alimentam com sua doura o meu desejo
de contribuir para a construo de um mundo melhor.
s crianas, aos adolescentes e aos adultos
que convivem com o TDAH e com os desafios
de crescer e viver no nosso tempo.
.
AGRADECIMENTOS
professora Janete Ricas, por ter acolhido e guiado com segurana e sabedoria os
meus primeiros passos no mundo da cincia. Mais do que orientar, ela participou
ativamente do processo de aprendizagem e de produo, que gerou este trabalho,
fazendo deste um caminho compartilhado e construdo na interao. Obrigada
Janete, pela confiana, por partilhar seu conhecimento com abertura, curiosidade,
reflexo e empenho. Estas caractersticas, somadas sua inteligncia e sua
disponibilidade afetiva, a tornam, alm de uma cientista exemplar, uma pessoa
adorvel. A voc dedico a minha admirao e o meu carinho.
Ao professor Jos Carlos Cavalheiro, pelo apoio e pelo incentivo, que me trouxeram
de volta Universidade depois de quase vinte anos de dedicao clnica. As idias
que semeou como coordenador do curso de especializao em terapia cognitiva
acordaram em mim o desejo e a possibilidade de, no apenas executar a arte do
processo teraputico, mas tambm contribuir para a gerao de idias e a produo
de conhecimento.
Corinna Schabbel, por muitas razes. Atravs dela conheci a Terapia Cognitiva e
o Construtivismo e, da sorte de ser sua aluna, nasceu o privilgio de ser sua amiga.
Generosamente ela despendeu seu tempo na leitura dos meus textos e em longas
conversas, me estimulando a conhecer e a pensar sob o enfoque construtivista.
Alm de ser uma amiga muito querida, a combinao de firmeza e suavidade,
conhecimento e simplicidade, honestidade e gentileza fazem dela uma referncia
como terapeuta e professora.
equipe do AMBDA, que apoiou o meu projeto de pesquisa e aos pacientes que
dele participaram.
Aos colegas e professores da Ps-Graduao em Cincias da Sade da Faculdade
de Medicina da UFMG, pela partilha de momentos de crescimento pessoal e
intelectual.
A todos os meus pacientes, que me ensinam a cada dia um novo modo de ver a vida,
de constru-la e de reconstru-la, enfrentando o mau tempo e aprendendo a compor
com palavras novas histrias, novas chances, novos caminhos por onde pode
passar a vida com seus inumerveis sentidos e direes.
Jnia, minha irm querida, que no poupou esforos para cuidar de todas as
tarefas e tomar todas as providncias que estavam ao seu alcance para que eu
pudesse me dedicar aos livros e pesquisa. Sem sua ajuda carinhosa eu no teria
conseguido fazer este trabalho.
Aos meus amigos que, ao manifestar suas saudades, alimentam meu ensejo de
desfrutar o bom da vida. Agradeo especialmente Carla, que me mostrou a
importncia da ps-graduao, ao Paulo, pela interlocuo sempre inteligente, e
Gabriela por sua disponibilidade carinhosa para ouvir e ajudar.
Aos meus pais, por seu apoio amoroso e incondicional em todos os momentos da
minha vida.
Continua,
apesar de todos esperarem que abandones.
No deixes que se enferruje o ferro que h em ti.
Madre Teresa de Calcut
RESUMO
O quadro sintomtico do indivduo com Transtorno de Dficit de Ateno/ Hiperatividade (TDAH) resultado de mltiplos fatores biolgicos e ambientais que interagem e se influenciam mutuamente, levando a um padro nico de funcionamento. A dinmica entre as variveis familiares e o TDAH da criana sofre a influncia das caractersticas genticas compartilhadas entre pais e filhos e a disfuno familiar tem sido um fator evidenciado nas pesquisas com estas famlias. Realizou-se um estudo descritivo no qual utilizou-se a metodologia qualitativa a fim de analisar o discurso das famlias de crianas e adolescentes portadores de TDAH, com o objetivo de identificar as crenas e as atitudes dos pais para com seus filhos, visando compreender melhor a maneira como este transtorno percebido pela famlia e como isso interfere em suas atitudes para com as crianas/ adolescentes. A amostra constituiu-se de 18 pais/mes de crianas e adolescentes com TDAH em atendimento no Ambulatrio de Dficit de Ateno (AMBDA) no Hospital das Clnicas da UFMG e a coleta dos dados foi realizada atravs de grupos focais e entrevistas semi-estruturadas, entre junho e agosto de 2007. Para a anlise dos dados foram utilizados recursos da Anlise do Discurso e a interpretao dos dados foi realizada sob o enfoque construtivista. Como resultado, encontramos que as muitas dificuldades enfrentadas no cotidiano destas famlias geram em seus membros distores e crenas disfuncionais que tm grande impacto em sua sade psquica, assim como em suas relaes afetivas e sociais, agravando os sintomas do transtorno. Identificamos tambm a ocorrncia de maus tratos fsicos, abuso emocional e negligncia contra as crianas dentro e fora da famlia. Entre os fatores que contribuem para o agravamento da problemtica familiar destacam-se o despreparo dos sistemas de sade e educao para dar atendimento adequado a esta populao. Como medidas de atendimento e de preveno violncia contra estas crianas recomendamos orientao e tratamento para os pais, treinamento das equipes de sade que lidam com esta populao, especialmente os pediatras, e interveno junto s escolas visando informar e preparar os profissionais de educao para lidar com o TDAH.
Palavras-chave: : 1. Transtorno da Falta de Ateno com Hiperatividade (TDAH). 2. Relaes Familiares. 3. Violncia. 4. Educao. 5. Cincia Cognitiva. 6. Criana. 7. Adolescente.
ABSTRACT
The symptomatic view of an individual with Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder
(ADHD) is a result of multiple biological and environmental factors that interact and
influence themselves mutually, resulting on a unique function standard. The dynamic
between family variables and the child's ADHD is under the influence of genetic
characteristics shared among parents and their infants and the familiar dysfunction
has become evident on the research conducted with the families. This is a descriptive
study that used the qualitative methodology in order to analyze the speech of families
who have either children or teenagers with ADHD. The proposal is to identify parent's
beliefs and attitudes regarding their children as a mean to understand better how the
ADHD disorder is perceived by the families and how this interfere in their attitudes
with the children and/or teenager. The sample includes 18 fathers/mothers of children
with ADHD that were attended in the Clinics Hospital's Deficit Attention Ambulatory
(AMBDA) from UFMG. The data was collected using focal groups techniques as well
as semi-structured interview process, between June and August 2007. In order to
analyze all the data collected during the research this paper will focus on the Speech
Analysis techniques and the interpretation of the data was done under the
Constructivist approach. As a result, this study came to the conclusion that many
difficulties undertaken by the families related to ADHD in the day life generate great
distortions and dysfunctional beliefs that have an impact in their physical and mental
health, as well as in their social and emotional relations. Therefore, the families
studied in this paper showed that they tend to worsen the symptoms of the disease.
During the research it was evident that ADHD children were emotionally harassed,
physically abused and also neglected in and outside of the families' boundaries. After
observing the reality of the families with ADHD, we can say that an important factor
that contribute to aggravate the ADHD familiar problematic is the disarrangement of
the health and also the education system, which are not prepared to deal with this
specific population/demand. As an intervention measure and a way of prevent
violence against children with ADHD we recommend that the parents start to get
orientation about the disorder as well as special care/treatment. On the other hand, it
is also necessary to invest on instruction to prepare the healthy team to do the right
diagnose and to offer the proper treatment to the population with ADHD. We would
like to stress that the pediatrics are the ones that should be better trained. Another
recommendation is related to the education system. We suggest an intervention in
the schools in order to prepare and inform both parents and teachers how to deal
with ADHD. Finally, we propose school mediation as a strategy to develop abilities to
deal with conflicts through dialog and consensus, in a way that we can achieve a
positive environment for the children's development, preventing violence and
promoting cooperation and peace.
Key words: 1. Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder (ADHD). 2. Family relationship. 3. Violence. 4. Education. 5. Cognitiv science. 6. Children. 7. Adolescent.
SUMRIO
1. INTRODUO ......................................................................................... 16 2. O TDAH..................................................................................................... 27
2.1 DEFINIO......................................................................................... 27
2.2 ETIOLOGIA ......................................................................................... 27
2.3 DIAGNSTICO .................................................................................. 29
2.4 CO-MORBIDADES.............................................................................. 31
2.5 TRATAMENTO......................................................................................32
3. REFERENCIAL TERICO........................................................................ 35
3.1 O CONSTRUTIVISMO ........................................................................ 38
3.2 AS INTERAES SOCIAIS E FAMILIARES SOB O ENFOQUE
CONSTRUTIVISTA ................................................................................... 39
3.3 A ANLISE DO DISCURSO ............................................................... 44
4. OBJETIVOS.............................................................................................. 47 5. METODOLOGIA ....................................................................................... 48
5.1 DESENHO DO ESTUDO .................................................................... 48
5.2 COLETA DOS DADOS....................................................................... 50
5.3 GRUPO FOCAL ................................................................................. 54
5.4 ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA ................................................ 57
6. RESULTADOS.......................................................................................... 60
6.1 CARACTERIZAO DA AMOSTRA................................................... 61
6.2 DETERMINAO DOS SENTIDOS DAS FALAS.............................. 61
6.2.1 A influncia das condies materiais do setting dos grupos focais
e das entrevistas .................................................................................................62 6.2.2 As restries impostas pelo contrato e gnero do discurso e pelo
quadro das instituies em que se produz.........................................................64 6.2.3 As representaes imaginrias que os interactantes fazem de
suas prprias identidades e do outro .................................................................68
6.2.4 As visadas: as intenes dos interlocutores .............................................69
6.2.5 Os determinantes sociais, econmicos e histricos dos discursos .......... 69
. 6.3 ANLISE DOS RESULTADOS .......................................................... 73
TEMAS, CATEGORIAS E SUBCATEGORIAS........................................ 74
TEMA A. DIFICULDADES ENFRENTADAS PELAS FAMLIAS............. 75
A.1 No tratamento ........................................................................... 75
A.2 Nas relaes com a criana...................................................... 78
A2.1 Dificuldades em colocar limites e estabelecer disciplina............................78
A2.2 Dificuldades de relacionamento afetivo......................................................82
A.3 Nas relaes com a escola ....................................................... 84
A3.1 Cobranas e abusos dos professores ........................................................84
A3.2 Discriminao pela escola ..........................................................................86
TEMA B. IMPACTO DO TDAH SOBRE A FAMLIA E SOBRE AS RELAES
FAMILIARES ............................................................................................. 89
B.1 Sobre as relaes intrafamiliares ................................................ 89
B.2 Sobre as relaes sociais da famlia ........................................... 94
B.3 Sobre a sade emocional dos pais/ cuidadores .......................... 97
TEMA C. DIFICULDADES ENFRENTADAS PELAS CRIANAS .................. 100
C.1 Relativas escola e aprendizagem ...................................... 100
C1.1 Recriminao social e familiar da criana pelo fracasso ..........................100
C1.2 Rejeio pelos colegas..............................................................................102
C.2 Na interao com outras crianas ............................................. 103
C2.1 Dificuldade em participar de atividades conjuntas ...................................104
C2.2 Rejeio....................................................................................................104
C.3 Nas interaes intrafamiliares ................................................... 106
TEMA D. PERCEPO DAS CARACTERSTICAS DOS FILHOS PELOS
PAIS ..................................................................................................... 108
D.1 Caractersticas positivas............................................................ 108
D.2 Caractersticas negativas .......................................................... 111
D.3 Semelhanas com familiares..................................................... 116
D3.1 Justificam o comportamento do filho ........................................................116
D3.2 Ajudam na lida com os sintomas..............................................................117
D3.3 Dificultam a vida familiar...........................................................................119
TEMA E. ATITUDES DOS PAIS PARA COM OS FILHOS ..................... 121
E.1. Atitudes de suporte................................................................... 121
E.2. Atitudes punitivas .................................................................... 132
E.3. Complacncia, Desistncia, negligncia .................................. 144
E.4. Atitudes antes e depois do diagnstico .................................... 146
6.4 DISCUSSO DOS RESULTADOS......................................................... .. 150
CONSIDERAES FINAIS.............................................................................. 159
REFERNCIAS................................................................................................. 163
ANEXO I - Ficha de identificao do participante AMBDA
ANEXO II - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
ANEXO III - 14 princpios para criar uma criana com TDAH
APENDICE - Roteiro para entrevistas e grupos focais.
INTRODUO
Somos como somos em congruncia com nosso meio
e nosso meio como em congruncia conosco.
Humberto Maturana
O transtorno de dficit de ateno e hiperatividade (TDAH) tem sido alvo de muito
interesse dos pesquisadores na ltima dcada, que investigam suas bases
genticas, bioqumicas, prevalncia e persistncia dos sintomas, comorbidades
psiquitricas, fatores de risco e outros tantos aspectos relacionados sndrome.
Tem sido, tambm, tema de muitas controvrsias, tanto no meio cientfico quanto
entre leigos. Por um lado, h grupos organizados, formados principalmente por
leigos, que negam e combatem a validade do diagnstico defendendo que os
sintomas atribudos ao TDAH so parte de um extremo de um contnuum do
desenvolvimento normal e alegam que existe uma conspirao da indstria
farmacutica para promover o diagnstico de TDAH com a finalidade de aumentar
o mercado de seu produto, o metilfenidato; alm disso, divulgam dados e
opinies sobre os efeitos colaterais deste medicamento. Por outro lado, a
comunidade cientfica defende a validade da classificao deste conjunto de
manifestaes comportamentais e cognitivas como um transtorno do
desenvolvimento normal.
Descrito pela primeira vez em um jornal mdico em 1902 por George Still, os
comportamentos instveis deste grupo de crianas foram associados aos
sintomas de encefalite letrgica, conduzindo designao do quadro inicialmente
como leso cerebral mnima. Em resposta refutao da hiptese de leso
cerebral e associao dos sintomas de desateno, hiperatividade e
impulsividade (tpicos da sndrome) a disfunes em vias nervosas, foi cunhado,
na dcada de 1960, o termo disfuno cerebral mnima ((PLISZKA, 2004). Em
1968 o DSM-II trouxe o termo reao hipercintica da infncia. Em 1990 o
DSM-III trouxe grandes mudanas: inclui o diagnstico de TDAH como
transtornos da infncia; passa a adotar critrios diagnsticos sintomticos e
omite termos associados etiologia na definio; admite a possibilidade do
17
transtorno de dficit de ateno sem hiperatividade e a possibilidade de uma
forma adulta (MATTOS et al., 2006)
Inmeros estudos e publicaes posteriores documentaram a ocorrncia de
TDAH sem a presena de hiperatividade e a presena do TDAH em adultos. Os
sistemas classificatrios modernos utilizados em psiquiatria utilizam nomenclatura
diferente, embora as diretrizes diagnsticas sejam similares. classificado como
transtornos hipercinticos na Dcima Reviso da Classificao Internacional de
Doenas e de Problemas Relacionados Sade (CID-10) como transtorno de
dficit de ateno/ hiperatividade -TDAH- no DSM-IV, que utilizado na maior
parte dos estudos atuais.
possvel reconhecer os sinais da hiperatividade na criana, mediante a
inquietude constante que a impele a escalar mveis, correr pela casa, quebrar
objetos, falar sem parar, no se fixar em lugar algum nem se ater em nenhuma
atividade. No adulto este sintoma costuma ser mais ameno, mas se mantm no
comportamento inquieto e nos pensamentos acelerados. A desateno faz com
que as pessoas com TDAH vivam no mundo da lua: so presas do
esquecimento constante, perdem objetos, se perdem nos trajetos, distraem-se
com qualquer estmulo, so desorganizados no tempo e no espao. Tanto na
criana quanto no adulto, a impulsividade se manifesta em comportamentos
irrefletidos s vezes arriscados, na impacincia, na dificuldade em adiar a
gratificao. Criam conflitos, discutem e rompem facilmente os vnculos afetivos
que conseguem, com esforo, construir.
A prtica clnica tem mostrado e a literatura na rea tem confirmado que as
limitaes impostas por esta condio, hoje classificada como um transtorno
neurobiolgico, trazem muito sofrimento para o sujeito. Junto a isso, o
reconhecimento do seu impacto sobre a famlia e sobre a escola no apenas tem
tido o efeito de elev-lo categoria de problema de grande relevncia, mas
tambm tem ocupado estudiosos de diversas disciplinas.
Entretanto, pessoas com comportamentos e funcionamento cognitivo hoje
classificadas como portadoras de TDAH provavelmente sempre existiram,
18
assim como tantas outras modalidades de diferentes configuraes das funes
cerebrais. Essas pessoas eram conhecidas na maioria das vezes como eltricas,
rebeldes, lerdas, irresponsveis, impetuosas", adjetivos que apontavam para
caractersticas de personalidade ou, at mesmo, defeitos de carter. Algo parece
ter acontecido para que esse conjunto de caractersticas gradativamente venha se
tornando foco de preocupao da cincia, tendo passado do status de variao
das normas comportamentais e cognitivas para ser alado ao status de doena.
Os pais esto confusos, as escolas no sabem o que fazer com as crianas, e os
profissionais se sentem despreparados para lidar com o problema.
Algumas hipteses podem ser levantadas para explicar o aumento de interesse, a
mudana de viso e o enfoque social e acadmico sobre essa antiga questo:
O avano cientfico na rea da sade sobretudo na rea do diagnstico
biomolecular e por imagens, na rea da gentica e na rea da teraputica
farmacolgica tem levado classificao de antigos problemas como
enfermidades, na expectativa da soluo fcil e eficaz no encontrada em
outras reas acadmicas nem no conhecimento acumulado do senso
comum.
As mudanas no olhar social, acadmico e jurdico sobre a criana e o
adolescente, que levaram ao reconhecimento de seus direitos, tm inibido
solues antes usadas pelas escolas e pelas famlias para o controle e o
enquadramento dos desviantes (internatos, castigos severos, disciplinas
muito rgidas, expulso da escola e da famlia, etc.). A famlia e a escola
tinham, na maioria das vezes, recursos aceitos e permitidos pelas normas e
valores da poca para dar limites a essas crianas e coloc-las nos trilhos.
Entretanto, as posturas e os conceitos sociais sobre a criana tm mudado
no sentido da proteo e da cidadania levando os pais a no se sentir
legitimados para o uso dos recursos que eram (e ainda so em grande
medida) considerados educativos. Diante da condenao e interdio das
antigas solues, instauram-se o caos e a busca de novas formas de
abordagem do problema.
19
Este conjunto de manifestaes apresentadas pelos portadores de TDHA
no constitui em si mesmo um problema, mas torna-se problema diante das
novas organizaes sociais, que implicam exigncias que ultrapassam as
possibilidades de adequao do sujeito. Crianas traquinas e desatentas
sempre existiram, mas no causavam tantos problemas para si mesmas e
suas famlias, nem para as escolas e outras instituies. A relao com
tempo e com o espao existente na organizao urbana atual diferente e
exige das crianas muito esforo de adequao. Da mesma forma, as
atribuies das crianas mudaram: hoje no h mais espao nas agendas
das crianas para brincadeiras, sobretudo para aquelas que possibilitam
atividade fsica livre, como correr, pular, gritar, cair, subir. Especialmente as
crianas criadas nos grandes centros urbanos passam seus dias ocupados
com aulas, cursos e atividades programadas por seus pais e so obrigadas a
se submeter desde muito cedo corrida por um lugar ao sol. So exigidas
e estressadas pelas interminveis demandas que chegam atravs dos pais,
da escola, da TV, das outras crianas e so punidas, por no atend-las,
com a excluso e pesadas ameaas de um futuro de fracasso. Se antes ser
desatento era um defeito a ser corrigido, hoje uma sentena. Ao lado da
acelerao de todos os processos relacionados informao, da crescente
presso pelo bom desempenho, da diminuio das oportunidades do
mercado de trabalho e do conseqente aumento da competitividade, h a
promessa de um futuro nada promissor, que acena como conseqncia de
uma performance mediana. Nesse contexto, algum que tenha tendncia ao
pensamento desorganizado, dado a devaneios e sem habilidades de
planejamento em direo a metas, passa a ser uma pessoa discriminada e
no-competitiva no mercado cuja mercadoria somos todos ns que vivemos
sonhando estar nas prateleiras junto aos mais eficazes, os mais cobiados
profissionais do mercado de trabalho. A hiptese de que o TDAH possa
representar uma conseqncia das condies de vida atuais tem encontrado
respaldo em pesquisas acadmicas. Em um estudo com 450 crianas e
jovens entre 5 e 18 anos de idade, Kuo e Faber (2004) e sua equipe de
pesquisadores do Laboratrio de Paisagem e Sade Humana da
Universidade de Illinois (EUA), constataram uma reduo significativa dos
20
sintomas em crianas com TDAH, quando expostas a ambientes naturais.
Segundo Kuo, viver na cidade, massacrados por barulhos, trnsito, conflitos
e exigncias, nos torna irritados e impulsivos. Portadores de TDAH eram
antes crianas comuns, que se tornavam adultos no raro incomuns,
criativos, quando havia espao e tempo no mundo para isso. Hoje estamos
confinados em espaos cada vez menores e no mais temos tempo, ao
contrrio, somos refns dele.
Somos todos diferentes em nossas habilidades e padres de funcionamento
cerebral. Isso s se torna um problema quando a diferena dificulta ou
impede de seguir as normas estabelecidas. Aquele que se adqua s
normas normal; o que no consegue anormal, por isso precisa ser
normalizado. Na nossa poca a cincia contribui para essa normalizao. A
Medicina e a Psicologia so chamadas e, por meio da rotulao dos
anormais em patolgicos, fazem intervenes para restaurar-lhes a sade,
que assim se torna sinnimo de normalidade. Esta tirania do normal,
segundo Leslie Fiedler (1996), pode levar a conseqncias extremas como
foi o caso dos campos de extermnio na Alemanha de Hitler e sustentada
pela vergonha imputada queles que esto fora da norma e, a partir da,
buscam todos os recursos disponveis para ficarem iguais. Ele cita os
negros, que foram levados a buscar produtos que branqueassem sua pele e
alisassem seus cabelos; as judias que quiseram diminuir o nariz, bem como
o culto magreza e juventude, que leva hoje a absurdos excessos de
jogging, dietas e anfetaminas populares ou remoo, com a ajuda de
cirurgias plsticas, daquelas marcas do tempo e da experincia antes
consideradas dignas de reverncia (FIEDLER, 1996).
O homem atento, controlado, focado em metas, capaz de lidar com o
estresse e reter informaes, produtivo e bem-sucedido o modelo
idealizado de homem do nosso tempo e para o futuro das nossas crianas.
Diante dessa hiptese, algumas questes se colocam com relao aos
sintomas constituintes do TDAH: seria a desateno razo de sofrimento
para o desatento ou o que o molesta a necessidade imposta de estar
21
atento mesmo quilo que no o interessa? Seria um problema a
impulsividade ou a imposio de viver conforme determinadas regras que
ditam como e quando se pode dizer e fazer as coisas? Seria a
hiperatividade motora e mental geradora de desconforto para quem a tem ou
este seria decorrente da falta do espao fsico e de competncia social para
lidar com a inquietao onde a norma adequar, homogeneizar,
especializar?
possvel que haja uma relao de complementaridade entre as hipteses
levantadas, e no de contradio: um problema, um sofrimento individual e social
causado ou acentuado pela organizao e pelas demandas sociais atuais no
mais encontra respostas em antigas tcnicas disciplinares e educacionais,
levando busca de novos conhecimentos, entre eles, o conhecimento da
Medicina e da Psicologia, o que implica em enquadr-lo no rol das enfermidades.
A grande questo que se coloca, entretanto, que essa classificao e atribuio
de causa indicam um caminho que aponta para a responsabilizao e a
interveno no indivduo, e no na organizao social. Escolhemos tratar os
indivduos com TDAH para que se adqem ao nosso tempo.
De qualquer maneira, fato que os sinais e sintomas do TDAH trazem hoje um
sofrimento ao qual a sociedade no d resposta na atualidade, a no ser por
intermdio do conhecimento cientfico, que comea a responder, embora
parcialmente e de forma ainda no-consensual, a algumas demandas das escolas,
das famlias e dos prprios portadores do transtorno. Para o tratamento do TDAH,
a cincia dispe de alternativas psicolgicas, pedaggicas e medicamentosas.
Quando tratamos e medicamos as crianas e os adolescentes, estamos
atendendo as demandas das famlias, que esto incumbidas de educ-los e
prepar-los para o futuro, bem como as das escolas, que precisam de recursos de
controle das turmas cada vez maiores nas salas de aula. Os professores,
sobrecarregados e pressionados pelas exigncias dos pais e das escolas, sem as
condies adequadas para uma ateno individualizada aos alunos, identificam
os mais difceis e os encaminham aos profissionais de sade para ver o que h
de errado com essa criana. No caso do adulto, a necessidade do tratamento
22
pode ser uma escolha do prprio indivduo (o que tem suscitado discusses
relativas utilizao do medicamento a fim de obter um incremento da
performance cognitiva), mas no caso das crianas, os adultos que escolhem por
ela. As motivaes dos pais podem ser o cansao, sua expectativa de
performance dos filhos e/ou o sofrimento das crianas como conseqncia de
suas limitaes.
Diante da impossibilidade de deciso e escolha da criana, uma questo tica
importante se coloca para o profissional que recebe a demanda de tratamento e
que deve decidir qual interesse atender: dos pais e da escola ou da criana. Por
um lado essas crianas tm direito de no ser medicadas, sobretudo com uma
droga com modo de ao ainda no desvendado, que pode causar dependncia e
provocar conseqncias desconhecidas (BREGGIN, 1999) e de no ser
obrigadas a uma performance para a qual no esto biologicamente preparadas.
Por outro lado, os pais tm o direito de buscar para seus filhos as oportunidades
de desenvolvimento de habilidades ausentes e necessrias em sua poca e de
recorrer cincia para lidar com a educao e a disciplina de crianas para as
quais suas referncias culturalmente construdas no mais se aplicam. Alm disso,
com seus comportamentos desadaptados, essas crianas trazem problemas para
suas famlias, para a escola e, conseqentemente, para si mesmas (JOHNSON;
MASCH, 2001).
Dados de pesquisas apontam que os portadores de TDAH so punidos mais
severamente e com maior freqncia que os no-portadores. Estudos sugerem
que so abusados fsica e emocionalmente desde muito cedo, geralmente pelos
pais (BLACHNO et al, 2006; ALIZADEH et al, 2007). Na escola tambm sofrem
maus-tratos1 atravs de comparaes, humilhaes, desqualificaes por parte
de professores e colegas. Deixar que estas crianas e adolescentes atravessem
todos esses dramas sem intervir, em nome de seu direito de ser quem so, pode
ter como conseqncia quadros depressivos, ansiosos, de dficit de auto-estima, 1 GALEOTTI (2004, p. 11) define como um comportamento em relao a uma outra pessoa, o
qual (a) extrapola as normas de conduta e (b) acarreta risco substancial de causar danos fsicos
ou emocionais". Pode consistir em aes ou omisses, tanto intencionais como involuntrias e
classifica-se em (1) abuso fsico, (2) abuso sexual, (3) negligncia e (4) abuso emocional.
23
entre outros, desenvolvidos como conseqncia de uma extensa lista de perdas e
frustraes colecionadas ao longo da vida.
Por outro lado, simplesmente normalizar sem levar em conta as formas ou os
meios seria dar-lhes a chance de ser iguais, mas talvez roubar-lhes a chance de
ser diferentes, de desenvolver suas prprias habilidades incomuns e trazer de
dentro si o novo, que sempre encantou o mundo e empurrou o conhecimento em
direes antes no imaginadas. Ana Beatriz Barbosa Silva (2003) aventa a
possibilidade baseada na hiptese de hipofuncionamento do lobo frontal direito de
que, diminuda a funo moduladora dessa estrutura, os estmulos
somatossensoriais, emocionais e cognitivos chegam em maior nmero e com
maior intensidade a essa regio do crebro, gerando muitos pensamentos
alternativos, que do ao indivduo com TDAH uma viso de mundo particular,
qual a autora atribui a capacidade imaginativa e a criatividade encontrada em
algumas pessoas com TDAH. De acordo com a autora, a desorganizao das
informaes no plano mental do indivduo uma condio na qual o novo est
sempre prestes a surgir. Criar juntar as mesmas peas de um jeito novo, e isso
no seria nada difcil para quem vive s voltas com uma avalanche de
informaes desprovidas de ordem, hierarquias ou prioridades. No livro Mentes
inquietas, Silva (2003) aponta algumas personalidades geniais que, segundo ela,
teriam apresentado comportamentos indicativos de TDAH: Albert Einstein: Tinha
hiperfoco, utilizava as fantasias e caminhos inesperados e assertivos que o
conduziam a descobertas cientficas; Fernando Pessoa: Era inquieto,
desorganizado, hiperconcentrado, dado a devaneios, tinha humor instvel e
dificuldade de seguir regras; Leonardo da Vinci: Pintor, arquiteto, botnico,
urbanista, cengrafo, cozinheiro, inventor, gegrafo, fsico, msico, era inquieto e
instvel; Wolfgan Amadeus Mozart: Inquieto, impulsivo, resistente s normas
estabelecidas, desorganizado.
O custo de tentar assegurar o sucesso no futuro das nossas crianas por meio de
drogas que possibilitem o controle do comportamento nos coloca diante de uma
questo que diz respeito liberdade das crianas e deixa uma tnue delimitao
da fronteira entre o que teraputico e o que controle parental e social. O
bioeticista Kass, L. R.(2003), posiciona-se favoravelmente ao uso dos
24
medicamentos nos casos de real necessidade, mas alerta para o abuso dessas
drogas para se alcanar mudanas no comportamento e na performance,
independentemente de uma doena, apenas com o objetivo de produzir crianas
melhores. O desejo de ter crianas comportadas, ajustadas, com alta
performance e felizes o desejo de qualquer pai e me adequados, mas a
questo de pais e professores lanarem mo de drogas para intervir diretamente
na neuroqumica das crianas, quando elas se comportam de maneira que
desafia as normas de conduta, levanta importantes questes em relao
liberdade das crianas. Medicar as crianas vem se tornando uma necessidade
social, e o perigo est no controle exercido pelos pais para mold-las conforme
seus prprios padres. Segundo ele, reforar a normalidade diminuir as
possibilidades da diversidade de temperamentos humanos.
A indstria farmacutica fatura bilhes de dlares vendendo estimulantes. As
escolas usam o sucesso das crianas para fazer seu marketing e obter lucros. As
pessoas vo criando um ideal de homem referenciado na eficcia e no sucesso. A
cincia e a tecnologia fornecem os meios para isso. E o mercado os comercializa.
Assim, a tecnologia nos vai permitindo criar e recriar o homem de acordo com a
convenincia de quem dita a norma, e a vida humana vai sendo dirigida e
manipulada em funo de interesses nem sempre claros e gerando novos dilemas
ticos.
A discusso sobre os significados pessoais e sociais do TDAH e suas implicaes
em todos os mbitos da vida das pessoas envolvidas uma questo complexa,
que envolve muitas e diferentes facetas. Tentamos aqui introduzir uma reflexo
sobre o assunto, abordando alguns dos temas relevantes que atravessam esta
problemtica, expondo, assim, a importncia de se pesquisar os aspectos
psicossociais envolvidos, cuja compreenso se faz necessria para a tomada de
posies benficas e ticas relativas a essa populao.
A famlia do portador de TDAH, como o primeiro ncleo responsvel pela
preparao desses indivduos para a vida social, para o mundo e para o futuro,
o alvo da nossa ateno neste estudo. Para a sua realizao, nossa principal
motivao foi conhecer as percepes e as atitudes dos pais para com os filhos
25
portadores de TDAH a fim de compreendermos as razes que movem suas aes.
O interesse em fazer esta investigao surgiu da observao da pesquisadora em
situaes de atendimento psicoterpico de crianas, adultos e famlias, de um
intenso abuso fsico e emocional nas interaes familiares na presena do TDAH,
dos pais para com os filhos e/ou dos cnjuges entre si.
Este um tema de interesse crescente da comunidade cientfica, e alguns dados
de pesquisas demonstram sua relevncia:
Algumas pesquisas encontraram nveis significativamente mais altos
de abuso em crianas com TDAH (BLACHNO et al., 2006,
RUCKLIDGE, 2006; BRISCOE & HINSHAW, 2006). Elas so
punidas mais freqentemente e mais severamente pelos pais do que
as crianas sem TDAH e sofrem rejeio por parte de pais,
professores e colegas (BRISCOE & HINSHAW, 2006).
Vasconcelos et al. (2005) constataram que as crianas que
vivenciaram situaes familiares de brigas conjugais no passado
esto sob risco 11,66 vezes mais alto de manifestao do TDAH.
A associao entre violncia 2 domstica e TDHA ainda no
esclarece se a exposio violncia um fator de risco para o
TDAH ou se o TDHA um fator de risco para a violncia ou, ainda,
se ambas as possibilidades ocorreriam. De acordo com Spencer &
Biederman (2007), existem muitas razes tericas para se examinar
essa associao. O autor argumenta que a exposio violncia
pode provocar mudanas permanentes no crebro em
desenvolvimento com base no impacto de sua exposio
prolongada a hormnios esterides.
Outros pesquisadores chamam a ateno para a superposio entre
os sintomas de TDAH e transtorno de estresse ps-traumtico
2 Neste trabalho utilizamos os termos "violncia", maus-tratos e abuso como sinnimos.
26
(TEPT). Para eles a sintomatologia de TDAH, em algum grau, talvez
possa ser atribuda ao TEPT advindo de experincias de abuso
(fsico ou emocional) e lembram que as intervenes adequadas
para o TDAH podem no ser adequadas para o tratamento de
trauma (RUCKLIDGE et al., 2006).
Entendemos que o quadro sintomtico do indivduo com TDAH resulta de
mltiplos fatores biolgicos e ambientais, que interagem e se influenciam
mutuamente, levando a um padro nico de funcionamento para cada indivduo.
A dinmica da famlia, inclusive a relao com a criana portadora, alm de outros
fatores sociais e psquicos, sofre a influncia das caractersticas genticas,
freqentemente compartilhadas entre pais e filhos. Para Johnston & Mash (2001),
possvel que a disfuno familiar seja um fator de risco, podendo sua interao
com a predisposio gentica exacerbar a apresentao e a continuidade dos
sintomas. Por outro lado, o contexto psicossocial e as influncias familiares no-
genticas so, de acordo com Harknett & Butler (2007), variveis criticas, que tm
sido pouco valorizadas nas pesquisas.
Conhecer melhor a experincia da vivncia do TDHA sob o ponto de vista dos
pais nos possibilita uma reflexo em maior profundidade sobre as formas de
interao das famlias. Conhecer suas dificuldades no cotidiano, suas crenas,
seus valores, suas atitudes e tendncias, suas percepes e as atribuies de
significados no relacionamento intrafamiliar pode nos ajudar a compreender
melhor o fenmeno crescente do TDAH em nossa sociedade. Com base nas
informaes fornecidas pelas pessoas que convivem cotidianamente com esse
problema, talvez possamos pensar sobre o significado do TDAH na nossa cultura
e como essa nosologia vem sendo construda no mbito individual, no familiar e
no social. Buscando tambm compreender melhor a dinmica familiar geradora
de violncia, esperamos produzir conhecimentos que possam subsidiar medidas
para preveno de abusos e de suas conseqncias contra essas crianas e
esses adolescentes.
27
2. O TRANSTORNO DE DFICIT DE ATENO E HIPERATIVIDADE (TDAH)
2.1 Definio
O TDHA definido como um transtorno do desenvolvimento infantil, cujos
sintomas surgem na infncia, persistem na vida adulta em mais da metade dos
casos e resultam em dificuldades nos mbitos da vida pessoal, acadmica,
familiar, social e profissional do indivduo portador, alm de provocar forte impacto
na vida das pessoas com quem se relaciona cotidianamente (Rhode et al. 2003).
2.2 Etiologia
Numerosos estudos vm sendo realizados nas ltimas dcadas, a fim de
investigar aspectos neurobiolgicos, genticos, clnicos e epidemiolgicos do
TDHA. Suas causas precisas ainda no so conhecidas, mas h fortes indcios e
ampla aceitao na literatura de que seja relacionado a alteraes neuroqumicas
de origem provavelmente gentica com contribuio de fatores ambientais ao seu
desenvolvimento. uma sndrome heterognea e complexa, com conseqente
complexidade etiolgica e fisiopatolgica. Os achados de pesquisa indicam
envolvimento das catecolaminas, em especial da dopamina e da noradrenalina
(HARKNETT; BUTLER, 2007; PLISZKA, 2004 e RHODE; HALPERN, 2004).
A teoria anatomofuncional inicial sobre o funcionamento neurobiolgico do TDAH,
extensamente pesquisada em estudos neuropsicolgicos de neuroimagem
funcional e de neurotransmissores, descreve o TDAH como um fraco controle
inibitrio frontal sobre as estruturas lmbicas (RHODE; HALPERN, 2004).
Estudos com tomografia computadorizada e ressonncia magntica encontraram
evidncias de anormalidades estruturais nos crebro de pacientes com TDAH, e
os achados mais comuns so volumes menores do crtex pr-frontal, no cerebelo
e nas estruturas subcorticais (CASTELLANOS, F. X. et al. 2005). Estudos de
imagem tambm mostraram haver uma influncia do cerebelo e do corpo caloso
na patofisiologia do TDAH e incluem ao sistema atencional anterior, um segundo
sistema atencional posterior noradrenrgico (RHODE; HALPERN, 2004).
28
As investigaes dos fatores genticos encontram dados consistentes que
confirmam a participao da hereditariedade no TDAH: o risco para o TDAH at
oito vezes mais alto nos pais das crianas afetadas do que na populao em geral
(SPENCER & BIEDERMAN, 2007); o risco para irmos de 32% (PLISZKA,
2004); entre gmeos a herdabilidade alta e ultrapassa 0,70 (ROHDE; HALPERN,
2004). O risco biolgico de TDAH entre parentes de primeiro grau de 25 a 33%
(BARKLEY, 2003), e a prevalncia de TDAH entre pais biolgicos trs vezes
maior em comparao a pais adotivos (THAPAR et al.,1999).
Alm das questes genticas, fatores biolgicos, como traumatismos neonatais e
muito baixo peso ao nascer, tabagismo e etilismo da me na gravidez, so
tambm correlacionados ao TDAH (SILVA, 2003). Fatores psicossociais tm sido
recentemente pesquisados, e encontram-se correlaes significativas entre o
surgimento e a manuteno do TDAH e adversidades psicossociais como
desentendimentos familiares, psicopatologia paterna ou materna, classe social
baixa, colocao em lar adotivo (ROHDE; HALPERN, 2004). Alguns estudos tm
demonstrado forte correlao do TDAH com os conflitos familiares crnicos, a
falta de coeso familiar e a exposio psicopatologia parental (JONHSON;
MASCH, 2006, BRISCOE & HINSHAW, 2006). As prticas parentais no
aparecem como causas do TDAH, mas podem exacerbar os sintomas, e algumas
vezes os padres de interao familiar so vistos como conseqncias do TDAH
na famlia (BIEDERMAN, 2005; HARKNETT; BUTLER, 2007).
Diferenas de gnero tambm foram associadas ao transtorno. Embora muitos
estudos encontrem prevalncia significativamente maior em meninos (9%) do que
em meninas (3%), alguns estudos vm encontrando resultados divergentes.
Alguns autores atribuem a menor proporo encontrada em meninas menor
freqncia de sintomas de agressividade/impulsividade e baixas taxas de
transtorno de conduta, sintomas que levam maior procura de atendimento pelos
meninos (HARKNETT; BUTLER, 2007).
29
2.3 Diagnstico
Os sintomas tpicos da sndrome so desateno, hiperatividade e impulsividade,
que devem ocorrer em freqncia acima do comum, estar presentes desde a
infncia e em diferentes contextos, alm de causar comprometimento funcional ou
social (MATTOS et al. 2006).
So descritos na literatura trs tipos de TDAH:
TDAH com predomnio de desateno, no qual podem existir alguns poucos
sintomas de hiperatividade, mas o predomnio do quadro de desateno.
TDAH com predomnio de hiperatividade no qual, ao contrrio, podem existir
alguns sintomas de desateno, mas o predomnio do quadro de
hiperatividade e impulsividade.
TDAH combinado de desateno e hiperatividade.
O DSM-IV estima a sua prevalncia entre 5 e 13% das crianas, e cifras
semelhantes foram encontradas em culturas distintas, o que, segundo Rohde et al.
(2003), atestaria que o TDAH no est relacionado cultura nem educao
recebida.
Embora os exames de neuroimagem e testes neuropsicolgicos sejam
extensamente utilizados nas pesquisas e a avaliao neuropsicolgica seja um
recurso importante para se evitar a banalizao do diagnstico, estes no so
ainda utilizados pela maioria dos clnicos. O diagnstico fundamentalmente
clnico com base nos seguintes critrios estabelecidos pelo DSM-IV, como mostra
o Quadro 1.
30
Quadro 1 - Critrios diagnsticos do TDAH segundo o DSM-IV
A. Ou B (1) ou (2) (1) Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de desateno persistiram por pelo menos 6 meses, em grau
mal-adaptativo e inconsistente com o nvel de desenvolvimento: Desateno a) Freqentemente deixa de prestar ateno a detalhes ou comete erros por descuido em atividades
escolares, de trabalho ou outras. b) Com freqncia tem dificuldades para manter a ateno em tarefas ou atividades ldicas. c) Com freqncia parece no escutar quando lhe dirigem a palavra. d) Com freqncia no segue instrues e no termina seus deveres escolares, tarefas domsticas
ou deveres profissionais (no devido a comportamento de oposio ou incapacidade de compreender instrues).
e) Com freqncia tem dificuldade para organizar tarefas e atividades. f) Com freqncia evita, antipatiza ou reluta a envolver-se em tarefas que exijam esforo mental
constante (como tarefas escolares ou deveres de casa). g) Com freqncia perde coisas necessrias para tarefas ou atividades (por exemplo, brinquedos,
tarefas escolares, lpis, livros ou outros materiais). h) facilmente distrado por estmulos alheios s tarefas. i) com freqncia apresenta esquecimento em atividades dirias. (2) Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade persistiram por pelo menos 6 meses, em
grau mal-adaptativo e inconsistente com o nvel de desenvolvimento: Hiperatividade a) Freqentemente agita as mos ou os ps ou se remexe na cadeira. b) Freqentemente abandona sua cadeira em sala de aula ou outras situaes nas quais se espera
que permanea sentado. c) Freqentemente corre ou escala em demasia, em situaes nas quais isso inapropriado (em
adolescentes e adultos, pode estar limitado a sensaes subjetivas de inquietao). d) Com freqncia tem dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de
lazer. e) Est freqentemente a mil ou muitas vezes age como se estivesse a todo vapor. f) Freqentemente fala em demasia. Impulsividade g) Freqentemente d respostas precipitadas antes de as perguntas terem sido completadas. h) Com freqncia tem dificuldade para aguardar sua vez. i) Freqentemente interrompe ou se mete em assuntos de outros (por exemplo, intromete-se em
conversas ou brincadeiras). B. Alguns sintomas de hiperatividade/impulsividade ou desateno que causaram prejuzo estavam
presentes antes dos 7 anos de idade. C. Algum prejuzo causado pelos sintomas est presente em dois ou mais contextos (por exemplo, na
escola [ou trabalho] e em casa). D. Deve haver claras evidncias de prejuzo clinicamente significativo no funcionamento social,
acadmico ou ocupacional. E. Os sintomas no ocorrem exclusivamente durante o curso de um transtorno invasivo do
desenvolvimento, esquizofrenia ou outro transtorno psictico e no so mais bem explicados por outro transtorno mental (por exemplo, transtorno do humor, transtorno de ansiedade, transtorno dissociativo ou um transtorno da personalidade).
Codificar com base no tipo: 314.01 - Transtorno de Dficit de Ateno/Hiperatividade, Tipo Combinado: Se tanto o critrio A1
quanto o critrio A2 so satisfeitos durante os ltimos 6 meses. 314.01 - Transtorno de Dficit de Ateno/Hiperatividade, Tipo Predominantemente Desatento: Se o
critrio A1 satisfeito, mas o critrio A2 no satisfeito durante os ltimos 6 meses. 314.01 - Transtorno de Dficit de Ateno/Hiperatividade, Tipo Predominantemente Hiperativo-
Impulsivo: Se o critrio A2 satisfeito, mas o critrio A1 no satisfeito durante os ltimos 6 meses.
31
2.4 Co-morbidades
Estima-se que 65% das crianas com TDAH tm uma ou mais condies co-
mrbidas. As associaes mais comumente relatadas so os transtornos anti-
sociais, especialmente o transtorno de conduta e o transtorno opositivo desafiador
(TOD) e tambm, de acordo com Harknett & Butler (2007), os problemas de
aprendizagem e do desenvolvimento, os transtornos de humor, os transtornos de
ansiedade, os transtornos de personalidade, o transtorno obsessivo compulsivo
(TOC). O TDAH tambm tem sido relacionado com prejuzo de habilidades sociais,
distrbios do sono, enurese, baixa escolaridade, tiques, abuso de drogas
((SPENCER & BIEDERMAN, 2007).
Rohde et al. (2003) indica uma prevalncia de 35 a 65% de ocorrncia do TOD ao
lado do TDAH, variando de acordo com o sexo, e a co-morbidade
significativamente maior nos meninos do que nas meninas. A co-morbidade com o
TOD varia tambm de acordo com o tipo de TDAH e est mais fortemente
associada ao tipo hiperativo (100%), seguido pelo combinado (85%) e, por ltimo,
pelo desatento (33%) segundo estudo realizado em 1998 por Lalonde et al. A
combinao de TDAH e TOD intensifica os comportamentos de desobedincia
ativa ou passiva a autoridades, o que resulta em respostas de raiva, punies e
crticas por parte do adulto e acessos de raiva por parte do portador. Esse padro
gera danos auto-estima, ao rendimento escolar, mais agressividade e
impulsividade e est associado a um mau prognstico na vida adulta. O
tratamento para o TDAH tende a melhorar os sintomas de TOD (ROHDE et al.,
2003).
A co-morbidade com transtorno de conduta (TC) de 20 a 50% dos casos. A
possibilidade de a desadaptao crnica causada pelo TDAH ter forte influncia
para o surgimento de TC nesses pacientes sugerida por Faraone et al. (1991).
O abuso de drogas tambm ocorre com freqente simultaneidade com o TDAH,
especialmente naqueles que apresentam transtorno de conduta. Hallowell et al.
(1999) sugere que as drogas so utilizadas pelos portadores de TDAH como uma
tentativa de controle dos sintomas e defende que o tratamento precoce do TDAH
32
pode evitar o abuso de drogas na adolescncia e vida adulta para esse fim. A
tendncia de se envolver em situaes arriscadas coloca os indivduos com
TDAH e no-tratados em risco 3 a 4 vezes maior de abuso de drogas em
comparao aos tratados. Os pacientes medicados com estimulantes apresentam
risco similar aos do grupo de controle nas pesquisas, o que evidencia que o
tratamento altamente recomendado (HARPIN, 2005).
A depresso encontrada em 15 a 75%, e o transtornos de ansiedade em 30 a
40% dos pacientes portadores de TDAH. A depresso e a ansiedade podem ser
resultantes das dificuldades, dos desafios, das frustraes e da desmoralizao
decorrente dos sintomas de TDAH (ROHDE et al. 2003).
O transtorno de humor bipolar est presente em 10% dos pacientes portadores de
TDAH, e os transtornos de tiques, embora menos pesquisados, tambm so
comuns. Rohde et al. (2003) aponta tambm co-morbidade significativa do TDAH
com transtornos de aprendizagem (com taxas que variam de 10 a 95%) e com
transtornos de linguagem (transtornos de leitura, transtornos de escrita e de
competncia comunicativa).
2.5 Tratamento
Devido complexidade e heterogeneidade de suas manifestaes, o tratamento
do TDAH deve ser multimodal, ou seja, deve combinar farmacoterapia,
psicoterapia e orientao pedaggica. Os medicamentos de primeira escolha so
os estimulantes, amplamente estudados e com sua eficcia demonstrada em
dezenas de estudos controlados e bem conduzidos. Apesar disso, os cientistas
discutem os indicadores que sugerem que os estimulantes afetam o crescimento
da criana, embora isso acontea apenas durante o tratamento e no haja
comprometimento do crescimento final. Os antidepressivos tricclicos e a
bupropiona so tambm eficazes e utilizados no tratamento do TDAH na
presena de co-morbidades ou na ausncia de resposta aos estimulantes. No
Brasil, o metilfenidato o nico estimulante disponvel no mercado (ROHDE;
HALPERN, 2004). Mudanas nos sistemas noradrenrgico e dopaminrgico
33
parecem necessrias para a eficcia do tratamento do TDAH. Drogas
serotoninrgicas tm um efeito leve nos sintomas centrais do transtorno
(BIEDERMAN, 2005).
As conseqncias do TDAH no-tratado se estendem dos danos vida pessoal
do portador at a vida familiar e chegam sociedade na forma de
comportamentos anti-sociais. Entre os portadores de TDAH, mais elevado o
nmero de acidentes e estes esto mais propensos a ter danos severos. O custo
mdio anual de sade de jovens com TDAH o dobro do de jovens sem TDAH
(LEIBSON et al. 2001).
Alm disso, o TDAH representa um risco para abuso de substncias e foi
constatada maior utilizao dos servios de sade pelos familiares, especialmente
devido aos altos ndices de problemas de sade mental decorrentes do estresse
na famlia desses pacientes. O transtorno tambm foi relacionado ao risco
aumentado para depresso e problemas com lcool entre os familiares (HARPIN,
2005).
O papel do tratamento de vital importncia para a melhoria da qualidade de vida,
assim como na preveno dos riscos para todos aqueles envolvidos com o TDAH.
Estudos mostram que, quando as crianas so submetidas ao tratamento com
estimulantes, suas interaes com pais, professores e colegas se tornam mais
positivas e menos estressantes (BARKLEY, 2002). Tambm est demonstrada
para os nveis da populao normal, uma queda no risco para o abuso de
substncias, nos indivduos tratados.
O tratamento multidisciplinar o mais indicado para o TDAH. A psicoterapia til
para o desenvolvimento do autocontrole, a recuperao da auto-estima e o
desenvolvimento de habilidades de resoluo de problemas. As crianas que
apresentam lacunas no aprendizado so beneficiadas com os recursos da
Psicopedagogia; quando h problemas de linguagem deve-se lanar mo tambm
da Fonoaudiologia. Para a eficcia do tratamento, muito importante o
envolvimento da famlia, da escola e da prpria criana. Enfim, fundamental
informar o paciente e sua famlia sobre o transtorno, bem como dar-lhes
34
orientaes sobre as estratgias de manejo dos sintomas (ROHDE; HALPERN,
2004).
Apesar das evidncias cientficas da validade da classificao desse quadro
cognitivo-emocional como um quadro nosolgico, algumas questes precisam
ainda ser esclarecidas. Como importantes aspectos a ser esclarecidos em futuras
pesquisas, Spencer & Biederman (2007) apontam: a definio de critrios
diagnsticos apropriados em adolescentes e adultos, considerando as
caractersticas prprias do desenvolvimento nessas faixas etrias; o impacto do
sexo/gnero na expresso dos sintomas; e os fatores de proteo que possam
ser teis para prevenir ou amenizar o TDAH, bem como seus prejuzos funcionais.
35
3. REFERENCIAL TERICO
Se vi mais longe
foi por estar sobre os ombros de gigantes.
Isaac Newton
O conhecimento cientfico, de acordo com a teoria de Thomas Kuhn (1970), no
cresce de forma cumulativa, como resultado de novas formulaes e relaes
estabelecidas entre os velhos conceitos. Ao contrrio, a teoria da cincia de Kuhn
enfatiza o carter revolucionrio do progresso da cincia, segundo o qual o
desenvolvimento cientfico se d atravs de saltos qualitativos, que acontecem
como resultado de crises dentro do paradigma vigente. Segundo Chalmers (1993,
p.124), um paradigma composto de suposies tericas gerais e de leis e
tcnicas para sua aplicao adotadas por uma comunidade cientfica.
O paradigma orienta a observao e a interpretao dos fenmenos e dirige e
coordena as investigaes do cientista, que trabalha resistindo e tentando
remover qualquer dificuldade que questione suas bases. Quando no possvel
remover algum desses problemas, esse pode ser o incio de uma crise do
paradigma, que se aprofunda quando surge um paradigma novo, incompatvel
com o primeiro, que redefine os problemas e as incongruncias, propondo
solues novas e convincentes. A adeso da maioria dos cientistas ao paradigma
emergente vai transform-lo, ao longo do tempo, no paradigma vigente, at que
ocorra uma nova crise que desemboque em uma nova revoluo. De acordo com
a teoria de Kuhn (1970), isso representa um grande golpe na proclamada
objetividade e neutralidade da cincia moderna. As razes pelas quais os
cientistas aderem a um ou outro paradigma so explicadas melhor pela Sociologia
e pela Psicologia do que pela Lgica, contendo aspectos subjetivos, irracionais e
ligados ao momento histrico (CHALMERS, 1993; KUHN, 1970).
O paradigma cientfico vigente na modernidade esteve pautado na busca da
verdade, na descoberta das leis universais que regem a natureza. Esse foi um
ideal frutfero, dominante na cincia at recentemente e atravs do qual muitos
avanos foram alcanados nas cincias naturais. Mas desde Kant, no final do
36
sculo XVIII, os pressupostos do modernismo foram questionados, por sua
postulao da mente como criadora de significados. Gradativamente os
conceitos de verdade e de conhecimento passaram por uma transformao na
Filosofia, na Fsica, na Biologia, na Psicologia, na qual a cincia comeou a se
interessar por processos que envolviam a imprevisibilidade e as relaes mais
complexas do que a linearidade de causa e efeito. Essas transformaes e esses
questionamentos deram origem ao paradigma filosfico ps-moderno, que se
contrape idia tradicional, da modernidade, da existncia de uma realidade
objetiva, que pode ser observada e descrita por uma mente individual (dualismo
sujeito-objeto) em favor de uma concepo do mundo como uma construo da
qual fazem parte tanto o observador quanto o objeto observado (GRANDESSO,
2000).
Conforme a teoria de Kuhn (1970), j que os vrios paradigmas partem de
premissas diversas, seus argumentos podem ser convincentes ou no de acordo
com as premissas aceitas pelo cientista que o julga, no sendo possvel
demonstrar logicamente a superioridade de um paradigma em relao a outro.
Isso faz com que paradigmas rivais convivam durante um perodo de crise, que
costuma ser longo, at que um se sobreponha ao outro (CHALMERS, 1993).
Podemos observar que a perspectiva moderna, caracterizada pela busca por
desvendar os mistrios da natureza e descobrir as verdades universais,
predomina ainda hoje nas cincias naturais, apoiando-se nos parmetros da
realidade objetiva para validar o conhecimento. Por outro lado, a viso ps-
moderna alastra crescentemente sua influncia pelos diversos campos da cincia,
trazendo a perspectiva do conhecimento como uma construo compartilhada,
que se faz nas relaes entre as pessoas atravs da linguagem. Nessa
perspectiva o conhecimento no tem a pretenso de corresponder a uma verdade
de existncia independente do sujeito que a descreve/observa (SEXTON, 1997).
Na Psicologia podemos observar a trajetria dos pressupostos epistemolgicos,
partindo do comportamentalismo com sua busca pela objetividade, que entra em
declnio por volta de 1970, quando fica claro que a relao de causa e efeito no
era suficiente para explicar o comportamento. As idias de Vygostsky e Luria de
37
que havia algo que fazia a mediao entre o estmulo e a resposta
comportamental foram ganhando destaque e, assim, foi ficando claro que esse
mediador era a interpretao que as pessoas faziam do estmulo. No sendo
possvel observar os processos subjetivos, acessveis apenas atravs da
narrao/interpretao da prpria pessoa, os mtodos cientficos da modernidade,
baseados sobretudo na medio e na observao visual, no eram aplicveis. Por
outro lado, a admisso da interferncia do observador/pesquisador no fenmeno
observado conduz as investigaes antes focadas no objeto para as relaes
entre estes. O estudo da subjetividade, ento, passa a ser aceitvel e vivel
atravs do acesso, no experincia em si, mas ao significado a ela atribudo
pelas pessoas, exteriorizado atravs do discurso (ABREU et al., 2003).
A introduo dos conceitos cognitivos pensamentos e crenas terapia
comportamental d origem terapia cognitivo-comportamental. Essa abordagem
considera as explicaes dadas pela pessoa e suas interpretaes das
experincias vividas como construes de significados que do sentido e
coerncia s experincias, atravs de sua organizao em um sistema de
crenas, que serve de referncia para a atribuio de sentidos, a tomada de
decises, a avaliao das experincias pessoais (HAWTON et al., 1997).
Na dcada de 1960, Aaron Beck e Albert Ellis foram os primeiros a postular que a
origem dos distrbios emocionais est em processos cognitivos disfuncionais,
lanando as bases da terapia cognitiva. Esses autores consideram que os
pensamentos, ou seja, a maneira como o sujeito organiza sua experincia,
determinam a emoo e o comportamento, tendo as crenas um papel central na
gerao dos pensamentos. Com base nessas premissas, a terapia cognitiva tem
por objetivo levar o paciente a compreender suas crenas (seus pressupostos
bsicos) como construes, para ento promover a modificao daquelas que
causam sofrimento e a construo de um sistema de crenas mais adaptativo
(BECK, A. et al., 1997). As pesquisas tm apontado a terapia cognitivo-
comportamental como a abordagem de maior eficcia no tratamento dos sintomas
do TDAH, pois suas tcnicas possibilitam colocar em xeque vrias construes
limitadas de significados (crenas disfuncionais) realizadas pelos indivduos
portadores com base nas dificuldades impostas pelo transtorno (KNAPP et al,
38
2002).
3.1 O Construtivismo
Entre os avanos culturais e cientficos impulsionados pelo movimento ps-
moderno no final do sculo XX, o construtivismo, com sua nfase no carter
criativo da cognio humana, encontrou um terreno frtil para seu
desenvolvimento. O pensamento construtivista comporta diferentes abordagens,
que podem ser percebidas como colocadas ao longo de um continuum de
orientaes que vo desde as que consideram o conhecimento e a realidade
como construes individuais e limitadas pela natureza do organismo, intituladas
construtivistas radicais, at as construcionistas sociais, que colocam o foco no
processo interpessoal como base da construo do conhecimento (SEXTON,
1997). Essas abordagens convergem no entendimento de que os seres humanos
conhecem e mudam o conhecimento de forma ativa e contnua no curso da
existncia, esto sempre em processo de criar novas e alternativas realidades,
considerando-se que existncia e conhecimento so inseparveis. Sob esse
enfoque, o fenmeno psicolgico caracterizado pelo processo de construo
ativa do significado, e a compreenso do comportamento humano depende da
compreenso do sistema interpretativo usado pelo indivduo para construir e
expandir os significados de suas experincias (SEXTON; GRIFFIN, 1997).
Segundo Guidano (1994), a linguagem que transforma a experincia imediata
da vida, em uma circularidade incessante entre a experincia e a explicao que
damos a ela. O significado a forma pela qual o existir se torna compreensvel
para cada um de ns. No enfoque construtivista, o mundo que experienciamos
depende de nossa estrutura biolgica e das nossas interaes, que abarcam
linguagem, conhecimento, raciocnio, emoo. As narrativas so sistemas de
significao intencionais que operam em um contexto dialgico e so localizadas
no espao interindividual (Maturana; Varella, 2001). As narrativas tambm esto
presentes no discurso interno, onde tm a funo de organizar e estruturar a
experincia e de estabelecer a continuidade do significado das experincias do
indivduo (NEIMEYER; MAHONEY, 1997).
39
Em contraste com a concepo modernista de um self individual como um
elemento central da experincia humana uma essncia final e estvel da
identidade , os construtivistas o definem como um processo em contnuo
movimento. Esse processo se produz atravs da experincia (que entrelaa uma
realidade externa com uma viso de mundo particular), da explicao (distines
auto-referidas na prpria atividade interna) e da compreenso (reestruturao da
percepo imediata, em um processo circular, mediante o exerccio da linguagem)
(GUIDANO, 1994). Os significados, nessa concepo, no esto no estmulo nem
so fruto da razo ou do pensamento, mas gerados a partir da percepo corporal
produzida pelo estmulo, que se traduz em emoes, a partir das quais ser
atribudo um significado realidade externa (processamento vivencial).
Sob essa perspectiva, as emoes no so racionais nem irracionais, mas
adaptativas. Elas nos advertem dos perigos e sinalizam a maneira como nos
sentimos em determinados contextos. De acordo com esse enfoque, ao se fazer a
sntese da experincia vivida (o sentimento) com a interpretao daquele evento
(o pensamento), se houver inconsistncia ou incongruncia entre os dois
processos, haver desequilbrio e sofrimento. Os sintomas psicopatolgicos so
entendidos como tentativas possveis de garantir para aquele indivduo e
naquele momento a integridade emocional diante de uma dificuldade de
organizar a experincia em uma narrativa coerente. As condutas inadequadas, ao
invs de serem vistas como patolgicas, so entendidas como uma condio de
estagnao ou impasse imposta por um descompasso no processo de elaborao
da experincia (ABREU et al., 2003). As abordagens teraputicas construtivistas,
portanto, esto menos interessadas em investigar se as crenas so verdadeiras
ou representam uma distoro da realidade, colocando seu foco, em vez disso,
nas conseqncias de se ter esta ou aquela crena, no nvel tanto pessoal quanto
social (NEIMEYER; MAHONEY,1997; NEIMEYER; RASKIN, 2006).
3.2 As interaes sociais e familiares sob o enfoque construtivista
Um pressuposto fundamental do construtivismo que somos seres sociais e
dependemos dos outros indivduos e das comunidades das quais participamos
40
para o nosso desenvolvimento e nosso bem-estar (GUIDANO, 1997). Conforme
Maturana (1997), os sistemas sociais so formados por indivduos que interagem
de forma coordenada e recorrente, e cada sistema social organizado de uma
forma particular na qual existe um tipo de configurao entre seus componentes,
que define a identidade daquele sistema. A famlia um sistema social e, como
tal, ser definida pela forma de interao legitimada entre seus membros, cujas
caractersticas e propriedades no so intrnsecas, mas sim, emergem da
composio do sistema.
Maturana (1997) compara o sistema social a um jogo de futebol: definido por
regras, que determinam o papel que cada jogador deve cumprir. Qualquer
mudana no comportamento de um dos jogadores desconfigura o jogo e, se essa
mudana persiste, ento, o jogo deixa de ser futebol. Ser membro de uma
sociedade (ou de uma famlia), portanto, significa ter uma conduta dentro das
normas que a definem. A mudana social acontece quando o comportamento
individual dos integrantes provoca uma transformao na configurao das aes
no sistema, e a mudana define uma nova identidade para esse sistema
(MATURANA, 1997).
Os indivduos desenvolvem, no convvio familiar, uma viso de mundo que
contm tanto elementos oriundos das famlias de origem dos progenitores quanto
aspectos moldados a partir do convvio familiar. Esses conjuntos de regras e
crenas, ou seja, os esquemas familiares, comportam crenas sobre o que uma
famlia saudvel e as atribuies de cada membro, comportam idias sobre como
deve ser um relacionamento conjugal, os custos e os benefcios do casamento,
comportam idias sobre quais devem ser as conseqncias pelo fracasso em se
adequar aos papis ou cumprir responsabilidades, comportam crenas sobre si,
sobre o mundo, sobre o futuro e sobre a famlia (DATTILIO; FREEMAN, 1995).
As crenas centrais sobre relacionamentos so moldadas a partir da famlia de
origem. Muitos indivduos mantm o padro de interao que aprenderam ao se
relacionar em famlia ou observando as interaes dos pais. Essas crenas so
muitas vezes disfuncionais para sua vida atual, no seu tempo, na sua cultura e na
relao com um parceiro, sendo necessrio um processo teraputico para que
sejam revistas e reestruturadas. (DATTILIO; PADESKY, 1998).
41
A perspectiva construtivista do desenvolvimento entende que os indivduos e as
famlias se relacionam dialeticamente, co-construindo uma viso de mundo que
agir como um filtro, que seleciona suas percepes e orienta a atribuio de
significados e a avaliao de suas experincias. (SEXTON; GRIFFIN, 1997). Os
relacionamentos, as percepes, os comportamentos dos membros de uma
famlia influenciam-se mutuamente, e a dialtica indivduo-ambiente vista como
fator fundamental no desenvolvimento e na adaptao do indivduo (DATTILIO;
FREEMAN, 1995).
A linguagem o mecanismo fundamental de interao dos sistemas sociais
humanos, possibilitando a reflexo, a autoconscincia e a conscincia do outro
(MATURANA; VARELLA, 2001). A linguagem, mais do que um sistema semntico,
uma ao que aproxima ou afasta as pessoas e a aprendizagem de uma lngua
a insero em um mundo de prticas compartilhadas (SCHABBEL, 2002).
O convvio familiar e o tipo de relaes sociais que a se estabelece so muito
importantes na construo da identidade. A criana vai estruturar seu mundo a
partir dos dilogos estabelecidos na famlia, na escola e na comunidade.
Interaes que portam julgamentos, desqualificaes, ordens, lies de moral,
geram insegurana, criam barreiras comunicao e ao desenvolvimento.
Ameaas so formas de comunicao que fazem prevalecer o ponto de vista de
um dos interlocutores impedindo a construo de novos significados e rebaixam a
auto-estima, geram ressentimento e inibem a habilidade de resoluo de
problemas, podendo resultar em conformismo (SCHABBEL, 2002).
A vida significada pelo indivduo atravs de um processo contnuo de
experienciar e explicar a experincia, que ordena constantemente o prprio
conhecimento em uma narrativa dando-lhe consistncia (MAHONEY,1997;
MATURANA; VARELLA, 2001). O desenvolvimento da identidade um processo
de reordenamento contnuo, que resulta em padres cada vez mais estruturados
e integrados de complexidade interna. A conscincia do si mesmo, dada pela
explicao que se faz da experincia em curso, tende a amplificar os aspectos
consistentes e inibir os discrepantes da auto-imagem estruturada pelo indivduo
at o momento (GUIDANO, 1997). A autoconscincia emerge de um auto-
42
reconhecimento, que possibilitado pela percepo que a criana tem de como
vista por seus cuidadores. Por meio da linguagem, que possibilita a experincia
da intersubjetividade, podemos fazer distines do si mesmo como sujeito que
experiencia (o eu) e como objeto, aquele que avalia a experincia (o mim)
(GUIDANO, 1994).
Um desenvolvimento adaptativo relaciona-se com estruturas flexveis e variadas
(mltiplas perspectivas para entender e operar no mundo) em contraste com as
estruturas rgidas que orientam o indivduo a partir de uma mesma perspectiva,
vlida para diferentes circunstncias (DATTILIO; FREEMAN, 1995).
Conforme a teoria de Maturana (1997), a estrutura biolgica de um indivduo o
resultado de todas as mudanas estruturais processadas ao longo de sua histria
de vida em conseqncia de sua dinmica interna e de suas interaes com o
meio. A congruncia da estrutura do indivduo com a de seu meio o que
determina sua adaptao e mantm sua organizao nesse meio, portanto sua
sobrevivncia. Quando a estrutura do indivduo muda, conseqentemente mudam
suas caractersticas e suas propriedades; logo, pode haver uma incongruncia
que inviabilize a vida desse indivduo naquele meio ou pode acontecer do sistema
social tambm mudar. Mas os membros de um sistema dependem dele e tentam
manter seu ambiente a fim de ter suas necessidades satisfeitas e, para esse fim,
operam selecionando com sua conduta a mudana estrutural de seus
componentes, portanto suas caractersticas. Isso acontece em qualquer
sociedade humana.
Para Maturana (1997, p. 205), no existe humano fora do social. A contradio
entre o individual e o social na nossa sociedade fruto de uma construo social,
que defende a competio pela sobrevivncia e a excluso daqueles que no
satisfazem as condies impostas pela sociedade para o pertencimento. A
competio nega o outro e, sob seu ponto de vista, uma conduta anti-social e
contrria cooperao e ao amor,3 que esto na base do desenvolvimento da
3 Maturana (1997, p. 301) define o amor como um fenmeno biolgico, emoo que especifica o
domnio de aes no qual os sistemas vivos coordenam suas aes de uma forma tal que acarreta
43
linguagem, da inteligncia e da constituio dos sistemas sociais humanos.
Embora as perspectivas objetivistas ainda predominem na Psicologia Cognitiva
contempornea, as abordagens construtivistas aprofundaram suas reflexes
tericas e ganharam a adeso de muitos terapeutas cognitivos, que construram
pontes entre essas abordagens (NEIMEYER; RASKIN, 2006). Hoje o escopo da
terapia cognitiva comporta correntes objetivistas, como a terapia cognitivo-
comportamental (que mantm o pressuposto filosfico da existncia de uma
realidade externa objetiva, que pode ser percebida de forma ou precisa, ou
distorcida), nas quais a nfase do tratamento est na avaliao dos contedos
dos pensamentos para a modificao daqueles pressupostos distorcidos e
desadaptativos. Comporta tambm aquelas mais alinhadas com o movimento
ps-moderno, como a abordagem cognitivo-construtivista, que enfatiza a validade
e a coerncia das formulaes que o indivduo faz sobre si e sobre o mundo, em
detrimento do valor de verdade que essas formulaes contenham. A
abordagem cognitivo-construtivista est mais interessada no processo de
produo de sentidos e de reparao construtiva das narrativas (DOBSON; DOZOIS, 2006).
Embora essa seja uma diferena terica fundamental, considerada por vezes
como um impedimento conceitual integrao dessas perspectivas, para este
trabalho nosso interesse repousa nas similaridades entre essas abordagens,
dadas pelo interesse no estabelecimento de um sistema cognitivo mais flexvel e
adaptativo e pelos pressupostos por elas compartilhados, ou seja, a mediao
cognitiva entre o indivduo e o ambiente, o entendimento de que a atividade
cognitiva pode ser acessada e alterada e de que pode provocar mudanas do
comportamento.
Como um processo interativo, do qual dependemos para atribuir significado aos
nossos atos e dar sentido nossa existncia, a linguagem tem um papel central
em qualquer uma dessas perspectivas (GRANDESSO, 2000). Os significados so
construdos e comportam inmeras vozes coletivas, que perpassam o discurso
a aceitao mtua. Tal operao constitui os fenmenos sociais.
44
individual, as variaes de significados dentro de uma cultura e a ressignificao
feita pelo indivduo no processo de comunicao.
Em sua busca de compreender como se d o processamento mental da
linguagem, a Lingstica tambm traz suas contribuies para o avano nos
estudos da cognio humana e ao entendimento do papel da linguagem nas
mudanas cognitivas (INGRAM; SIEGLE, 2006). Neste estudo optamos por
utilizar alguns princpios da Anlise do Discurso, uma das muitas abordagens
dentro da Lingstica, como uma ferramenta para a abordagem dos dados.
3.3 A Anlise do Discurso
A expresso Anlise do Discurso (AD) comporta uma variedade de enfoques, com
diferentes embasamentos tericos, e essas perspectivas tm em comum a viso
do discurso como central na construo da vida social, enquanto rejeitam a noo
de que a linguagem simplesmente um veculo neutro de transportar o
conhecimento, refletir ou descrever a realidade tal qual ela . Diferentes
abordagens dessa disciplina tm suas bases epistemolgicas no construtivismo
ou construcionismo, que compreendem o conhecimento como histrica, social e
culturalmente construdo (GILL, 2007).
Para a AD, o discurso conceituado como atividade de linguagem de sujeitos
inscritos em contextos determinados, portanto no deve ser confundido com a
lngua em abstrato, definida como sistema de valores virtuais (MAINGUENEAU,
1998). Alm disso, os discursos so representaes de valores que circulam em
um dado grupo social.
A AD visa compreender o que dito em um determinado texto (falado ou escrito),
reflete sobre as condies em que o texto foi produzido e apreendido e leva em
conta a interferncia social na construo desse discurso. Os interlocutores so
considerados como representantes de lugares sociais lugar de pai, lugar de
professor, lugar de pesquisador que se relacionam segundo as representaes
imaginrias que fazem de si mesmo e de seu lugar, assim como de seu
45
interlocutor e do lugar que ocupa. Esse jogo de imagens entre os interlocutores,
bem como os temas ali tratados, as modalidades de comunicao, as relaes
entre os discursos ali representados, so elementos das condies de produo
do discurso (CARDOSO, 1999).
O sentido de um texto dado pelo seu significado decorrente do texto mais uma
inteno ou conveno de uso dada pelo contexto. Dessa forma, o sentido de um
texto ou de uma palavra varia de acordo com o contexto, a poca e o lugar de
onde se fala. A nossa compreenso do discurso est condicionada relao do
que dito com algum domnio da vida daquele que fala. Segundo a teoria dos
atos de fala, toda forma de discurso serve a uma finalidade, que uma ao,
envolve aquele que fala (locutor), o destinatrio da fala (alocutrio) e a fora
envolvida na proposio, que mostra a maneira como o locutor age sobre o
mundo ou sobre o alocutrio (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004).
Uma condio necessria para que haja entendimento entre os interlocutores so
os universos comuns de referncias dos sujeitos e seus pressupostos culturais,
ou seja, o interdiscurso. A dimenso psicocognitiva do discurso a que expressa
as escolhas e significaes prprias de cada indivduo, fazendo nica sua prtica
discursiva, em um processo de re-significao do mesmo. Os indivduos usam
diferentes procedimentos para conseguir os efeitos de sentido desejados sem ter
nunca a garantia que seu interlocutor perceber suas intenes na comunicao
(DIAS, 1998).
De acordo com Charaudeau (2001), o discurso um jogo comunicativo, e os atos
de linguagem so construdos de forma a produzir uma encenao que seja
adequada a uma dada situao ou inteno comunicativa. O ato de fala
comportaria, para o autor, quatro sujeitos comunicacionais, os quais fazem parte
da troca linguageira: o eu comunicante e o tu interpretante, que so os sujeitos
situacionais externos; e o eu enunciador e o tu destinatrio, que so os sujeitos
discursivos. Ao se comunicar, o indivduo real (eu comunicante) aciona um eu
enunciador que se dirige a um interlocutor por ele imaginado/ ideal, sendo que a
sua fala ser interpretada por um indivduo real, isto , o tu interpretante.
(MACHADO, 2001). A relao entre esses sujeitos deve ser levada em conta na
46
determinao dos sentidos das falas.
Apesar das diferenas aqui apontadas entre as abordagens que fazem parte do
nosso referencial terico, h um acordo quanto construo pessoal e social dos
significados e quanto concepo da linguagem como um processo interativo
que d origem aos significados, em um processo que acontece entre as pessoas,
e no dentro delas. Esses pontos de convergncia nos interessam sobremaneira
e conferem coerncia e consistncia ao uso desses referenciais, considerando
que nossos objetivos no se referem discusso nem anlise de todos os
determinantes dos comportamentos e atitudes dos sujeitos envolvidos, mas
busca do seu sentido para o grupo e s determinaes sociais das crenas que
os determinam.
O enfoque construtivista guiou nosso olhar como pesquisadores, orientando as
reflexes e a interpretao dos resultados deste estudo. Fizemos uso de recursos
da AD para buscar o sentido das falas e, assim, aprofundar a compreenso do
que est sendo comunicado, levando em conta as condies de produo do
discurso. Utilizamos os referenciais da terapia cognitiv