INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO
EDUARDO BELO VIANNA VELLOSO
Velhos e Novos Dilemas da Cidadania no Brasil: a dignidade na encruzilhada
Rio de Janeiro 2007
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
EDUARDO BELO VIANNA VELLOSO
Velhos e Novos Dilemas da Cidadania no Brasil: a dignidade na encruzilhada
Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Sociologia. Orientadora: Maria Alice Rezende de Carvalho
Rio de Janeiro 2007
3
ÍNDICE
Resumo ................................................................................................................................04 Introdução... .........................................................................................................................05
Capítulo 1 - Evolução da Cidadania.....................................................................................07
Capítulo 2 – Cidadania e as modernidade central e periférica.............................................22
2.1 – Indivíduo, Sociedade e Estado.............................................................................22
2.2 – O Processo de Juridificação.................................................................................34
2.3 – Tendências Modernas do direito: formalismo, materialização e
responsividade.....................................................................................................41
2.4 – Uma Utopia Pós-Moderna....................................................................................50
Capítulo 3 - Modernidade Periférica – O caso brasileiro.....................................................56
Capítulo 4 – Cidadania no Brasil.........................................................................................81
4.1 – A dimensão política da cidadania.........................................................................81
4.2 – Direitos sociais e sua interface com o quadro político.........................................86
4.2.1 – A emergência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)......................87
4.2.2 – Da ‘cidadania regulada’ à ‘americanização perversa’ da cidadania.............91
4.3 – A Informalidade ontem e hoje..............................................................................97
4.4 – A cidadania na cidade.........................................................................................101
Considerações Finais..........................................................................................................111
Anexo.................................................................................................................................124
Bibliografia.........................................................................................................................125
4
Resumo
Na presente dissertação, examinamos alguns dos dilemas antigos e atuais da
cidadania no Brasil, a partir da elaboração teórica de T. H. Marshall (1967), então
apresentada e criticada.
A análise da modernidade central permite identificarmos as afinidades entre
os aspectos da sociedade moderna e os traços adquiridos pela cidadania, como definida por
Marshall. Igualmente, são as mudanças que se abatem sobre a modernidade que nos
revelam os dilemas que atingem aquele marco conceitual, ou seja, os novos dilemas, os
quais afetam também os países periféricos.
Quanto aos velhos dilemas, mostramos que a cidadania marshalliana
configura-se como um padrão específico aos países centrais (especialmente à Inglaterra) e,
portanto, nunca se configurou plenamente no Brasil. Nesse sentido, ao abordarmos nosso
processo de modernização, mostramos que um pressuposto básico da cidadania aqui se
desenvolveu apenas parcialmente: o reconhecimento de um senso mínimo de igualdade.
Por isso, as demandas por dignidade, resolvidas de modo razoável pelo Welfare State em
países centrais, constituem um velho dilema brasileiro, como provam a evolução dos
conteúdos e do alcance social dos direitos de cidadania, a informalidade e a ordenação do
espaço urbano em nossas grandes cidades.
Velho e novo firmam relações complexas que, de um lado, minam o padrão
ideal de cidadania que residia na concepção marshalliana concretizada empiricamente nos
países centrais e, de outro, não nos permitem ter claro qual o caminho a seguir para
construirmos uma sociedade democrática, onde a liberdade, a igualdade e o respeito se
conjuguem e sirvam de esteio à dignidade dos cidadãos.
Palavras-chave: cidadania – direitos – modernidades central e periférica – dignidade –
liberdade – igualdade – reconhecimento – democracia.
5
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo analisar os dilemas atuais da cidadania
moderna. Adotando como referência a clássica concepção de T. H. Marshall (1967),
defendemos que a emergência de uma miríade de problemas impõe a redefinição de seus
termos. Ademais, verificaremos a adequação desse modelo ao caso brasileiro e a forma
como aqui se manifestam as novas questões debatidas.
Note-se que apresentaremos problemas ‘objetivos’, como mudanças no
mundo do trabalho ou as novas formas de interação entre os espaços local, nacional e
global; e teóricos, como as lutas por reconhecimento (dignidade e autenticidade), às quais a
literatura sociológica e política não conferia a devida atenção, ou reflexões sobre a
materialização da justiça, com temas como a responsividade do direito.
Entendemos que, se as sociedades não enfrentarem praticamente os
problemas sociais apontados, e se a cidadania não for redefinida teoricamente, ela poderá
perder sentido ou adquirir tantos que não se saberá mais do que falamos. Ainda, se o
escopo e a efetividade da cidadania não forem ampliados, ela poderá ver minada sua
capacidade de promover a integração social, como o fez, sobretudo nos países centrais,
baseando-se na noção de igual valor e de um mínimo comum.
No primeiro capítulo, mostraremos como a cidadania, entendida como um
status concedido aos membros integrais de uma comunidade política, se desenvolveu
historicamente. Analisando a eclosão dos direitos civis, políticos e sociais, abordaremos
pontos como as relações igualdade-liberdade e igualdade-desigualdade, mudanças no
escopo da atuação estatal e problemas de integração social. Serão apontados ainda temas
contemporâneos que indicam o esgotamento do padrão marshalliano de cidadania.
No segundo capítulo, traçaremos o entrelaçamento entre as características da
modernidade e a evolução observada pela cidadania. O complexo de relações entre
indivíduo, sociedade e Estado nos permitirá identificar as condições institucionais, morais
e societais para a configuração e o exercício da cidadania, bem como prospectar seus
desenvolvimentos futuros. Também será abordada a relação entre conflito social e a
emergência de direitos, sobretudo os políticos e sociais. Com efeito, a aparente resolução
daquele, com a emergência do Welfare State no século XX, permitiu a Marshall
6
desenvolver sua concepção de cidadania. A erosão desse quadro institucional e a reflexão
sobre fenômenos que caracterizam uma pós-modernidade (surgimento de novos valores,
fracionamento de identidades, questões ecológicas, mudanças no regime de acumulação, e
lutas por reconhecimento) afetam aquelas concepções, demandando nosso esforço
reflexivo. Nesse contexto, merece atenção, igualmente, o desenvolvimento do sistema
jurídico moderno.
No terceiro capítulo, a partir do quadro geral sobre a modernidade central,
ressaltaremos as peculiaridades que marcaram nosso desenvolvimento sócio-histórico.
Temas presentes há muito no pensamento social brasileiro serão debatidos através de
autores consagrados. Escravidão, clientelismo, autoritarismo, dependência externa,
industrialização, crescimento econômico e desigualdade serão fatores levantados para
compreendermos as razões por que não logramos alcançar os níveis de cidadania e de bem-
estar de países centrais. Veremos que o problema da difusão de um sentido de igualdade
mínima acompanhou nossa modernização. E sobressai da análise de todos os autores, por
vezes valendo-se de categorias sobremaneira diversas, que os benefícios da modernização
acabaram confluindo para uma minoria.
No quarto capítulo, à luz do processo de modernização brasileiro,
analisaremos as características que a cidadania assumiu em nosso país. Mostraremos os
contornos que aqui assumiu a dimensão política da cidadania, bem como a evolução dos
direitos sociais e a sua interface com o quadro político. Dado nosso foco privilegiado sobre
as demandas por dignidade, refletiremos como, no passado e nos dias atuais, a
informalidade impacta o exercício da cidadania. Por fim, nos remetermos ao exemplo das
favelas cariocas para problematizar a configuração da cidadania nas cidades brasileiras.
Em nossas Considerações Finais, faremos um apanhado dos principais
temas apresentados ao longo do trabalho. Sem a pretensão de fornecer respostas,
levantaremos algumas questões que se impõe a todos que prezam pela igualdade, liberdade
e fraternidade.
7
Capítulo 1: Evolução da Cidadania
A cidadania moderna desenvolveu-se através da paulatina integração de
setores da população que tiveram reconhecidos novos direitos e a capacidade legal de
usufruí-los. Esse processo não ocorreu de modo linear, sofrendo recuos e avanços em meio
a tensões políticas e sociais. Além disso, variou de acordo com as especificidades dos
diversos países e, no interior de cada qual, com as diferenciações locais e regionais.
No período medieval havia íntima ligação entre posições hereditárias ou
espirituais, o controle sobre a terra e o exercício da autoridade pública. Ademais, os
direitos e liberdades aplicavam-se a grupos e corporações, com a representação nos corpos
judiciários e legislativos materializando-se por meio de estados. Para Bendix (1996),
romperam esse sistema a Revolução Francesa (política) e a Revolução Industrial inglesa 1.
Emergiu um novo padrão de relações de classe, onde a antiga dependência foi substituída
por relações de autoridade individuais, erigidas num contexto de direitos iguais para todos
os cidadãos. Se no período medieval a autoridade soberana limitava-se aos grandes homens
do reino, no Estado Moderno cada cidadão relaciona-se diretamente à autoridade soberana
do país. Esse processo relacionou-se à construção do Estado-nação e envolveu a
codificação de direitos e deveres dos adultos considerados cidadãos, conforme uma
classificação mais ou menos inclusiva. Inicialmente restrita a poucos notáveis, estendeu-se
gradualmente a cidadania até tomar proporções de massa.
Bendix analisa essa evolução recorrendo a um par de princípios: o
funcional, relativo a direitos e deveres peculiares a um grupo; e o plebiscitário, decorrente
da destruição de todos os poderes (estados, corporações, ...) entre o indivíduo e o Estado.
Para o autor, as leis e codificações que tornaram nacional a cidadania envolveram
acomodações entre esses dois princípios. E, para melhor comparar o desenvolvimento dos
vários direitos de cidadania, Bendix considera útil a tipologia de Marshall.
Entendemos que, além de fundamental para compreendermos a evolução da _________________________________________________________________________________________________ 1 O autor ressalta que a industrialização e a democratização são dois processos distintos. Embora estritamente vinculados na Inglaterra, as idéias democráticas e os direitos de cidadania espalharam-se pelo mundo, mesmo em lugares onde a estrutura política não sofria maciços impactos oriundos de mudanças socioeconômicas. Mas se o princípio de direitos iguais para todos foi formulado no bojo do Iluminismo e do despotismo esclarecido, a industrialização auxiliou a sua divulgação; e notaremos que, no Welfare State, estabeleceu-se um vínculo entre o gozo de direitos sociais e o desempenho da economia.
8
cidadania moderna, a concepção apresentada por T. H. Marshall (1967), em 1949, é chave
para identificarmos as fissuras que acossam a cidadania nos dias atuais. O autor a definiu como
“um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade” (Marshall,
1967: 76) e esquematizou o desenvolvimento histórico dos direitos de cidadania na
Inglaterra. Assim, no século XVIII, este país observou o desabrochar dos direitos civis,
entendidos como os necessários à fruição da liberdade individual (direito de ir e vir;
liberdade de imprensa, de pensamento e de fé; direito à propriedade e a firmar contratos
válidos e o direito à justiça). Já os direitos políticos ligam-se à possibilidade de participar
do exercício do poder político e, em verdade, não eram direitos novos, mas prerrogativas
que foram estendidas a novos setores da população durante o século XIX. Por fim, no
século XX, os direitos sociais foram incorporados ao status de cidadania, compreendendo
um mínimo de garantias contra a pobreza, fornecido por serviços sociais implementados
pelo denominado Welfare State (Estado de Bem-Estar).
Com efeito, o autor preocupou-se com a igualdade. Afirmou que, associada
à participação integral na comunidade, há uma espécie de igualdade humana básica que,
enriquecida e investida de um conjunto de direitos, tem sido identificada ao status de
cidadania. A igualdade de cidadania, desde que reconhecida, admite a desigualdade do
sistema de classes sociais, mas impede que se instaure um sistema onde as culturas de
classe não desfrutem de um mínimo comum. Ao contrário, torna possível, embora não de
todo satisfatório, medir os diferentes níveis de bem-estar econômico por referência a um
padrão de vida comum. As diferenças de classe não se fixam em leis e costumes, mas em
fatores como educação, propriedade e estrutura da economia nacional. Sobre o ‘status’
uniforme da cidadania a estrutura de desigualdade pode ser edificada.
Marshall enfatiza que os direitos civis, embora reconhecidos nos séculos
XVIII e XIX, não funcionavam na prática.
As barreiras entre os direitos e remédios eram de duas espécies: a primeira se originava nos preconceitos de classe e parcialidade; a segunda, nos efeitos automáticos da distribuição desigual de renda que opera através do sistema de preços. Os preconceitos de classe que, indubitavelmente, caracterizavam a distribuição da justiça no século XVIII, não podem ser abolidos por leis, mas somente pela educação social e a edificação de uma tradição de imparcialidade. Este é um processo difícil e moroso que pressupõe uma mudança no modo de pensar nos escalões superiores da sociedade. Mas é um processo que ocorreu (...)” (Marshall, 1967: 80).
O autor afirma que este processo se consumou e a tradição de
imparcialidade (em relação às classes) está presente na justiça civil inglesa, dada “a difusão
em todas as classes, de um sentido mais humano e realista de igualdade social” (idem:81).
9
O sociólogo também atentou para a relação liberdade-igualdade. Nas cidades
inglesas livres do século XVII, liberdade e cidadania se confundiam. A expansão do foro
local para o nacional significou a universalização da liberdade, transformando-a numa
instituição nacional.
O primeiro passo foi a igualdade perante a lei. Afastando privilégios
herdados, cada qual pôde agir como uma unidade independente. Conforme a definição
legal, observou-se a extensão dos direitos civis a setores inarticulados da população,
conferindo um significado libertário e positivo ao reconhecimento legal da individualidade.
Mas se a lei firmou a capacidade legal, não considerou a habilidade dos cidadãos em usá-
las, num contexto em que extintas as proteções do sistema hierárquico medieval. Além
disso, como já referido, os preconceitos de classe e as desigualdades econômicas impediam
o gozo de direitos pelas classes populares. Por conseqüência, o apelo contra as iniqüidades
legais surgiu como uma nova dimensão dos distúrbios sociais durante os séculos XVIII e
XIX e ocupou os debates políticos sobre a construção da nação, na Europa.
A questão envolvia os graus de desigualdade ou insegurança toleráveis e os
métodos para debelar os limites considerados intoleráveis. Os defensores do laissez-faire
propugnavam uma solução conforme a estrutura legal de direitos. Nesse sentido, as
primeiras leis de segurança no trabalho destinaram-se apenas a crianças e mulheres, pois
não eram reconhecidas legalmente como cidadãos. Já os adultos do sexo masculino, como
cidadãos livres, poderiam engajar-se no esforço econômico e cuidar de si próprios. Na
verdade, “direitos formalmente garantidos beneficiam o afortunado e, mais
esporadicamente, aqueles que são definidos legalmente como desiguais, enquanto toda
uma carga de rápida mudança econômica cai sobre o ‘pobre trabalhador’, fornecendo,
desse modo, uma base para a agitação, muito em breve” (Bendix, 1996: 113).
Bendix enfatiza que essa agitação foi desde o início política. De fato, a
proteção legislativa da liberdade de contrato era acompanhada pela proibição dos
sindicatos. Os direitos civis atuavam como base da economia de mercado, onde cada
indivíduo seria uma unidade independente e igualmente capaz de defender seus interesses.
Nesse contexto, reconhecer aos trabalhadores o direito de reunião para efeito de
negociação coletiva ante o empregador negaria tal princípio. Qual a contradição? Os
direitos civis não se restringem aos direitos de propriedade e de contrato, mas incluem a
liberdade de palavra, pensamento e confissão, bem como a de juntar-se a outras pessoas na
busca de fins privados (direito de associação).
10
O declínio do sistema de guildas e o progresso econômico fomentaram a
necessidade de novas regulamentações das relações patrão-empregado e das associações de
artífices. Esquematicamente, três foram as políticas fixadas pelos países europeus: (1) o
tipo escandinavo e suíço preservou o direito de associação segundo os moldes tradicionais
de organização dos ofícios. A liberdade aproximou-se de privilégios, reforçando
estatutariamente os arranjos existentes; (2) o tipo absolutista encontrou exemplo na
proibição prussiana de todos os tipos de associação de trabalhadores, destruindo todos os
poderes entre o rei e os súditos; (3) a política liberal, presente na Inglaterra, tentava superar
os privilégios de associação do período medieval assegurando o direito de associação, mas
mantinha elementos absolutistas quando vedava o direito de reunião aos trabalhadores.
Bendix nota que o direito de associação combina os princípios funcional e
plebiscitário. Enquanto este último reside no direito reconhecido formalmente a todos os
cidadãos que gozam da capacidade de agir; o primeiro tem por base os interesses comuns,
diversamente dos estados medievais, que gozavam de privilégios coletivos.
Com o posterior reconhecimento da legitimidade dos sindicatos, a cidadania
começou a ampliar seu escopo, pois então se utilizou o direito de reunião para vindicar
pretensões básicas de justiça social. “Em outras palavras, os direitos civis são aqui usados
para habilitar as classes baixas a participar mais efetivamente do que de outro modo
aconteceria na luta econômica e política sobre a distribuição da renda nacional” (Bendix,
1996: 121). Mas, para o autor, se o direito de reunião beneficiou os trabalhadores
organizados em sindicatos, impulsionando seus interesses econômicos, deixou
desamparada a parcela das classes populares que não conseguiu dele se valer para auferir
os mesmos benefícios, ou ainda foi bloqueada por expedientes exclusivistas ou
neocorporativos dos sindicatos estabelecidos.
No século XIX, os direitos políticos eram um subproduto dos direitos civis.
Dessa forma, o cidadão, exercendo sua liberdade e gozando de seus direitos civis, poderia
receber remuneração e adquirir propriedades que o habilitariam ao gozo dos direitos
políticos. Só no início do século XX associaram-se diretamente os direitos políticos à
cidadania, promovendo sociedades políticas mais inclusivas (Marshall, 1967).
O exercício dos direitos políticos demandou a alteração da cultura política.
Se o voto secreto diminuiu a intimidação das classes inferiores pelas superiores, demorou
para entre elas se dissipar a noção de que os membros do governo deveriam ser recrutados
entre as elites. Nesse sentido, a quebra do monopólio de classe na política foi decisiva.
11
Foco de tensão, a universalização dos direitos de participação política teve
como pré-requisito a unificação do sistema de representação nacional. No fim da Idade
Média a representação era por estados, que possuíam assembléias em separado e enviavam
seus representantes à autoridade territorial central. A Revolução Francesa alterou esse
quadro, tornando o cidadão individual a unidade básica, estabelecendo ainda uma
assembléia nacional unificada de legisladores, em lugar de corpos funcionais separados.
A democracia representativa difundiu-se pela maior parte da Europa 2, mas
cada país seguiu um caminho, observando-se ao menos cinco critérios reguladores do
direito de voto durante o período de transição (principalmente século XIX): (1) critério de
estados tradicionais, cabendo o voto a chefes de família dentro de grupos de status
delimitados; (2) regime censitário, com restrições baseadas no valor da terra, capital ou
renda; (3) regime de capacidade, exigindo as habilidades de ler e escrever ou certo nível de
educação formal; (4) critério de responsabilidade familiar, restringindo o voto a chefes de
família de acordo com requisitos determinados; e (5) critérios de residência, como as
exigências de registro e tempo de domicílio.
O regime censitário conformava-se à ascensão do capitalismo comercial e
industrial segundo o argumento de Benjamin Constant de que os negócios da comunidade
nacional competiriam aos que tinham interesses “reais”, ou seja, proprietários e
investidores. O princípio da capacidade era uma aplicação dessa idéia aos que investiram
em sua capacitação. “A noção implícita é que apenas esses cidadãos podem fazer
julgamentos racionais das políticas a serem seguidas pelo governo” (Bendix, 1996: 131).
A independência intelectual era o centro das disputas entre liberais e
conservadores acerca da organização do sufrágio. Enquanto os primeiros defendiam o
regime censitário e temiam as possíveis manipulações eleitorais advindas da extensão do
voto a cidadãos economicamente dependentes; os conservadores defendiam a
universalização do voto porque acreditavam que os dependentes votariam nos notáveis
locais, mantendo o poder em bases locais. Com efeito, o autor, recorrendo ao caso alemão,
firma que na área rural as extensões de sufrágio tendiam a reforçar os conservadores. Mas
as conseqüências da ampliação do direito de voto eram diversas nas áreas urbanas, onde
crescia uma classe de assalariados independente politicamente dos empregadores e que
lutava pela universalização do sufrágio.
_________________________________________________________________________________________________ 2 Só a Inglaterra manteve a representação territorial, onde a Câmara dos Comuns era formada por representantes das localidades do reino (os condados e os burgos) (Bendix, 1996).
12
Problemas de administração das eleições emergiram, como o desenho dos
distritos eleitorais, ou o peso dos votos. O ponto mais interessante referia-se à salvaguarda
da independência eleitoral individual, ou seja, o sigilo do voto. Nessa questão, Bendix
identifica um princípio nacional e plebiscitário de integração cívica. Com o voto secreto, o
indivíduo é colocado ante uma escolha pessoal e livre dos constrangimentos do ambiente
circundante; “na cabine de votação, ele pode ser um cidadão nacional”, em outros termos,
“as disposições para o sigilo isolam o trabalhador dependente não só de seus superiores,
mas também de seus pares” (Bendix, 1996: 134).
Logo, a extensão da cidadania às classes populares envolveu tendências
simultâneas à igualdade e à instauração de uma autoridade governamental de âmbito
nacional. O Estado-nação atuou como origem dos direitos de cidadania, e estes são um
símbolo da igualdade na esfera nacional. Mas esse sistema não bloqueou a diferenciação
social e a ação de grupos de interesse que modificam o princípio plebiscitário e
estabelecem novas desigualdades que, por sua vez, podem gerar contramedidas em prol do
princípio igualitário plebiscitário. Em comparação ao antigo regime, reduziu-se a
solidariedade social, que antes se assentava sobre grupos secundários. Antes não havia a
cisão que agora há entre sociedade e Estado. A solidariedade passou a fluir da
estratificação econômica da sociedade, combinada à igualdade formal e ao processo
eleitoral. Portanto, dá-se “(...) um hiato entre as forças que conduzem à solidariedade ou ao
conflito social independentemente do governo e as forças que respondem pelo exercício
contínuo da autoridade na comunidade política nacional” (idem: 173). Com isso,
compreende-se que “um alto grau de consenso no nível nacional pode ser totalmente
compatível com uma decrescente habilidade para alcançar acordo em questões de políticas
nacionais. Exceto em emergências, o consenso no nível nacional possui, portanto, uma
qualidade impessoal que não satisfaz ao persistente anseio por fraternidade ou sentimento
de solidariedade” (idem: 171). É que o governo nacional moderno representa um princípio
relativamente autônomo de tomada de decisão e de implementação administrativa (aqui é
chave o domínio burocrático).
A universalização da cidadania expandiu as demandas sociais e, por
conseqüência, as atividades governamentais. As desigualdades sócio-econômicas
tornaram-se alvo de políticas redistributivas hábeis a assegurar o exercício de direitos e
deveres de cidadania. As atividades do governo então se desenvolveram para satisfazer
demandas públicas, encorajando “(...) a formação de grupos baseados nos princípios do
interesse comum e na capacidade de organização, mais do que no privilégio herdado”.
13
(Bendix, 1996: 164). Tanto partidos políticos de massa como grupos de interesse diversos
se formaram e se tornaram ativos como causa e conseqüência da proliferação do governo.
Note-se que, ao final do século XIX, a cidadania contribuiu pouco para
reduzir a desigualdade social, mas ela foi fundamental para disseminar uma concepção de
igual valor dos homens, não limitada aos direitos naturais. E assim ela serviu de cimento
para as políticas igualitárias do século XX. Enfim, ela promoveu a integração social.
A cidadania exige um elo de natureza diferente, um sentimento direto de participação numa comunidade, baseado numa lealdade a uma civilização que é um patrimônio comum. (...) Seu desenvolvimento é estimulado tanto pela luta para adquirir tais direitos quanto pelo gozo dos mesmos, uma vez adquiridos (Marshall, 1967: 84).
Os direitos sociais convergem com princípios de justiça social. Destinam-se
a ampliar para muitos nacionais os componentes de uma vida civilizada e culta, antes
restrita a poucos, alterando o padrão de desigualdade social. Marshall questionou-se sobre
os limites da tendência a uma maior igualdade social e econômica, bem como sobre a
possibilidade de se combinar num só sistema princípios de justiça social e de preço de
mercado. Afinal, os “direitos sociais, em sua forma moderna, implicam uma invasão do
contrato pelo status, na subordinação do preço de mercado à justiça social, na substituição
da barganha livre por uma declaração de direitos” (Marshall, 1967: 103).
Marshall aponta ainda a necessidade de se descobrir os efeitos combinados
de três fatores. O primeiro consiste em compreender a escala de distribuição de renda. O
segundo refere-se à grande extensão da área de cultura comum e experiência comum. E,
por fim, “o enriquecimento do status universal de cidadania, combinado com o
reconhecimento e a estabilização de certas diferenças de status principalmente através dos
sistemas relacionados de educação e ocupação. Os dois primeiros tornaram o terceiro
possível” (idem: 108).
Maria Lúcia Werneck Vianna (2000) ressalta que o entrelaçamento
reconhecido por Marshall entre os direitos políticos e sociais torna estes últimos (sociais)
um complemento da cidadania, ante um quadro onde o Estado age como protetor da esfera
pública, espaço de conquista e luta pelos direitos, e não como um benfeitor.
Se fizemos referência aos direitos de cidadania nos moldes propostos por T.
H. Marshall, vale destacarmos certas relações e diferenças de “natureza” entre eles.
Marshall firma que, antes da era moderna, os direitos sociais decorriam da
participação em comunidades locais e associações funcionais. Com o desenvolvimento da
economia capitalista competitiva, eles foram associados à velha ordem, dando lugar à
14
emergência dos direitos civis. Um passo inicial e importante para seu ressurgimento foi a
implantação da educação primária pública durante o século XIX, embora só no século XX
foram de fato incorporados à cidadania, gerando impacto sobre a desigualdade social.
Quanto à educação básica, para Bendix (1996), ela é precondição para o
exercício de outros direitos. O direito à educação básica tornou-se mesmo um direito-dever
nas sociedades ocidentais, de modo que os pais são obrigados por lei a providenciar que os
filhos freqüentem a escola, variando apenas o grupo etário conforme o país.
Provavelmente, essa extensão da educação às classes populares foi resultado da ação do
absolutismo esclarecido, recorrendo o autor aos exemplos da Dinamarca e da Prússia.
Depois, os trabalhadores industriais passaram a vindicar maior educação, pois percebiam
que ela podia aumentar suas chances na vida, ou de seus filhos, além de contribuir para o
êxito de suas demandas. Os conservadores temiam o desgoverno de um povo que não
tivesse os rudimentos de instrução, enquanto os liberais consideravam que um Estado-
nação requer cidadãos educados por órgãos estatais. Estabeleceu-se então um sistema
nacional e compulsório de ensino, em luta com a Igreja e congregações religiosas, nos
países onde essas instituições ofereciam oportunidades educacionais a seus adeptos.
Já Cabral (2003) firma que, onde reconhecidos, os direitos civis tendem a
ser usufruídos passivamente, sem que os beneficiários precisem se mobilizar. O mesmo se
aplica aos direitos sociais fundados no bojo do Welfare State, pois os serviços e benefícios
sociais são disponibilizados àqueles que reúnem as condições legais. Para o autor, os
direitos políticos (cidadania política) assumem um caráter específico, porque, ao contrário
dos direitos civis e sociais, seus atributos não são automáticos, dependendo do exercício
ativo do indivíduo para se efetivarem. As liberdades políticas precisam ser, não só
garantidas, mas também exercidas 3.
Outra singularidade notada pelo autor é que, mais do que os direitos civis e
sociais, os direitos políticos vinculam-se à nacionalidade, excluindo os imigrantes, o que, a
seus olhos, configura uma discriminação contestável à luz dos direitos humanos.
Deve-se ter em conta, porém, que em cada sociedade os direitos políticos
são exercidos em diferente extensão pelo conjunto da população. Não se pode prescindir,
igualmente, das vicissitudes históricas e sociais da conquista e/ ou concessão desses
direitos. Nessa esteira, Bogeá-Câmara (2004) defende a necessidade de se cotejar a relação
Estado/ sociedade compreensivamente. Combate o formalismo de teorias como a de R. Dahl, _______________________________________________________________________________________ 3 Por outro lado, Cabral (2003) ressalta que o voto obrigatório revela certo caráter contraditório, pois confere conteúdo passivo à cidadania política.
15
pois, ao associarem certas precondições institucionais a uma conseqüente disposição dos
sujeitos para o exercício da cidadania política, velam um hiato entre o “cidadão abstrato” e
o “real”. Complementando o argumento de Cabral (2003), o autor ressalta que o exercício
dos direitos políticos exige mais do que o cumprimento das prerrogativas legais, já que
“não esgota a multiplicidade de atributos e de requisitos concernentes à pletora da vida
política nas sociedades democráticas liberais” (Bogeá-Câmara, 2004: 114). Participar do
sufrágio, embora relevante para a consolidação da democracia, não é suficiente para
configurar uma cultura cívica democrática.
Quanto à análise de Marshall, para Bogeá-Câmara (2004), embora ela sirva
de referência, merece os devidos cuidados. Seu modelo se aplica à Inglaterra, de modo que
a seqüência historicamente linear de direitos civis, políticos e sociais não pode ser
automaticamente estendida a outros países. Mesmo nos modernos Estados da Europa
Ocidental, a cidadania foi construída por avanços e retrocessos que marcaram a relação
entre Estado-nação e sua sociedade. Em cada Estado, a cidadania observou vicissitudes
específicas que tornaram maior ou menor a extensão de direitos e a incorporação política
dos cidadãos. Nesse sentido, em cada país, a cultura cívica e as características da esfera
pública geraram distinções qualitativas e desiguais desempenhos das instituições
democráticas contemporâneas (e a confiança nelas depositadas).
Bendix (1996) acrescenta que, se o reconhecimento das classes populares
como iguais participantes na comunidade política inglesa foi fruto de uma luta prolongada,
essa incorporação cívica provavelmente foi facilitada pela preeminência da Inglaterra
como uma potência mundial e pelo compartilhamento de uma prática religiosa comum na
sociedade. Esses elementos tornam o desenvolvimento da cidadania inglesa mais uma
exceção do que um modelo de evolução dos direitos de cidadania.
Lavalle (2003) atenta que o elemento dinâmico (linearidade histórica) da
concepção marshalliana, de resto aplicável ao caso inglês, não é o mais importante. Vale
sim extrair dela as características constitutivas da cidadania moderna:
(1) universalidade – status atribuído em termos de direitos universais a categorias
sociais formalmente definidas, e não a estamentos com qualidades substantivas inerentes;
(2) territorialização – o território (nacional) como critério horizontal para a atribuição
de direitos, ao invés de critérios corporativos;
(3) princípio plebiscitário (individualização) – vínculo direto entre o indivíduo e o
Estado como forma legítima de reconhecimento e subordinação política;
16
(4) índole estatal-nacional – vínculo constitutivo entre cidadania e edificação do
Estado-nação, graças ao desenvolvimento histórico concomitante de um poder centralizado
único num território e à concepção de identidade cultural ou nacional encarnada num
Estado, a partir de uma população constituída como comunidade política.
Frise-se que a concepção marshalliana de cidadania figura cognitivamente
como conceito sintético-descritivo, e não normativo, sem comportar, portanto, qualquer
afirmação sobre a substância ou dever ser da cidadania. Marshall (1967:76) acrescenta que
“não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão,
mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criaram
uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em
relação à qual a aspiração pode ser dirigida”. No entanto, não é raro a cidadania aparecer
revestida de carga normativa nos debates contemporâneos (Lavalle, 2003).
A preocupação desse autor recai sobre as forças desestabilizadoras da
cidadania no mundo atual. Nesse sentido, reconhece dois conjuntos: um abrange as
mudanças socioculturais e a diferenciação social, tornando carente de plausibilidade
simbólica a linguagem universal dos direitos e gerando o descrédito de categorias
totalizadoras. Nesse contexto, ampliam-se as reivindicações por novos princípios de
representatividade e proliferam políticas de alteridade. Não obstante, o autor considera que
a universalização processada sob condições de heterogeneidade não constitui um obstáculo
intransponível ao desenvolvimento da cidadania. O risco maior reside na “desestruturação
dos pressupostos macroinstitucionais ou estatais que viabilizaram politicamente a
ampliação efetiva desse status” (Lavalle, 2003: 90/91). Dentro desse segundo conjunto de
forças localiza-se o problema da eqüidade. O Estado encontra-se sob constrangimentos que
reduzem a sua capacidade de absorver as demandas e de efetivar os direitos, provocando a
heterogeneização da “substância” da cidadania entre a população.
Essas observações convergem com a análise de Kowarick (2003), que,
pesquisando a vulnerabilidade socioeconômica e civil nos Estados Unidos, na França e no
Brasil, afirma que suas “reflexões não ignoram que os grupos, as categorias e as classes
sociais se movimentam no sentido de se mobilizarem e lutarem pela conquista de seus
direitos. [Suas reflexões] Enfatizam, simplesmente, que, no cenário atual de nossas
cidades, estão em curso vastos processos de vulnerabilidade socioeconômica e civil que
conduzem ao que pode ser designado de processo de descidadanização” (idem: 78).
Com efeito, o desenvolvimento da cidadania coincide com o
desenvolvimento capitalista. Sua configuração mais acabada contempla os direitos civis,
17
políticos e sociais e encontrou guarida no Welfare State dos países capitalistas avançados,
com características institucionais diversas. No plano internacional, institucionalizados tipos
de Welfare em dados países, suas inovações difundiram-se sobre outros. No plano interno,
o desenvolvimento socioeconômico, a mobilização da classe operária e o desenvolvimento
institucional (extensão do sufrágio, características do regime político) tanto produziram
efeitos que explicam a emergência do Welfare como a diferenciação entre seus tipos. Vale
mesmo trazer à baila a tipologia de Esping-Andersen (1987), sintetizada por Vianna
(2000). A partir do grau de democratização do capitalismo alcançado por cada Welfare
State, aquele autor os divide nas modalidades liberal, conservadora e social-democrata.
No primeiro caso (liberal), também chamado de residual, o Estado só
intervém quando o mercado impõe demasiadas penas a determinados segmentos sociais e
onde o esforço individual, a família, o mercado e as redes comunitárias mostram-se
insuficientes para satisfazer as necessidades. O mercado atua como espaço de distribuição.
Esse modelo é dominante nos EUA, Austrália, Canadá e em parte na Suíça.
O tipo meritocrático ou conservador vincula a ação protetora do Estado ao
desempenho dos grupos protegidos, usualmente os que contribuem para a riqueza nacional
e/ ou inserem-se como legítimos no cenário social. O direito aos benefícios diferencia-se
conforme o trabalho, o status ocupacional, a capacidade de pressão,... Trata-se de um
padrão hierarquizante e segmentador, presente na Alemanha, Áustria, França e Itália.
O padrão social-democrata (ou modelo Beveridge) tem caráter institucional-
redistributivo, onde bens e serviços extramercado são garantidos a todos os cidadãos em
moldes igualitários. Foi implantado na Inglaterra e nos países nórdicos 4.
Mas o Welfare State atravessa uma crise que se apresenta de, pelo menos,
três ângulos 5: (1) crise econômica, manifesta em termos de recessão, redução do PIB e
aumento do desemprego; (2) mudanças demográficas, com diminuição relativa da
população ativa frente à inativa, tornando mais pesados os encargos previdenciários; e (3)
crise política, expressa na insatisfação frente à ação estatal. As necessidades advindas da
nova divisão internacional do trabalho vis-à-vis o movimento de globalização da
economia promovem um descompasso entre a economia do bem-estar e os processos sociais
vigentes nas economias desenvolvidas (Vianna, 2000). Note-se que países emergentes não se _______________________________________________________________________________________ 4 Descabe aqui nos reportarmos às configurações sócio-históricas que permitiram a emergência diferencial desses modelos. A menção aos mesmos justifica-se apenas para marcarmos brevemente a evolução que a cidadania sofreu e vem sofrendo no Brasil.
5 Note-se que esses processos se apresentam do ponto de vista estrutural, não afastando a possibilidade de conjunturas favoráveis.
18
encontram imunes a tais processos. Ao contrário, eles são mais vulneráveis, como já
ressaltado através das reflexões de Kowarick (2003).
Diante desse quadro, merece destaque o processo de informalização, por
guardar relação com a crise da sociedade salarial (Castel, 1998). Este autor reporta-se à
“questão social”, que envolve o grau de coesão de uma sociedade e a sua luta por conjurar
os riscos de fratura societal, e investiga tanto a desqualificação social sofrida pelos
rejeitados do processo produtivo, como a desinserção, que é fator de esgarçamento dos
laços sociais e de promoção de identidades estigmatizantes que conduzem à rebeldia ou à
resignação (Castel, 1998; Kowarick, 2003) 6.
Outro ponto que abala as estruturas do Welfare State, e mais amplamente do
Estado-nação, encontra guarida nas reflexões de Habermas, ao esclarecer conceitualmente
alguns pontos normativos sobre a relação entre cidadania e identidade nacional, à luz de
três movimentos históricos recentes na Europa: (1) o papel do Estado nacional, dada a
unificação alemã, e os conflitos de nacionalidade observados nos Estados do leste europeu
após liberados da tutela soviética; (2) a relação entre democracia e Estado nacional, face à
progressiva integração econômica da Europa; e (3) tensões entre princípios universalistas,
identidade nacional e culturas particulares, desencadeadas pelos maciços fluxos
migratórios direcionados à Europa.
Segundo o autor, com o Estado nacional conformou-se uma infra-estrutura
administrativa organizada pelo direito, oferecendo um espaço livre às ações individuais e
coletivas. Mas a democratização assentou-se sobre uma homogeneidade cultural e étnica
(nacionalismo), que em boa medida oprimiu minorias culturais. Assim, a consciência
nacional moderna é uma manifestação de integração cultural. E ela só pôde eclodir quando
a população foi mobilizada e individualizada por meio dos processos de modernização
econômica e social que a liberaram do antigo regime. Nesse contexto, o nacionalismo
representa uma consciência formada a partir de filtros reflexivos que se apropriaram de
tradições culturais e se espraiaram pelos canais da moderna comunicação de massas. Ele
comporta, portanto, “características artificiais, tornando-o presa fácil do abuso e da
manipulação através de elites políticas” (Habermas, 1997: 282).
Habermas ressalta que, na terminologia dos juristas, “cidadania” esteve por muito
tempo restrita ao sentido de nacionalidade ou pertença a um Estado. No entanto, atualmente,
além desta conotação, ela é utilizada para caracterizar direitos e deveres daqueles que têm o _______________________________________________________________________________________ 6 No quarto capítulo reportaremos como a questão ganhou contornos diferenciados segundo países centrais e periféricos.
19
status de cidadão. O autor nota aqui a presença do modelo republicano, centrado na auto-
organização da comunidade política a partir do exercício cidadão dos direitos de
participação e comunicação. Fazendo uso reflexivo dos direitos democráticos, o cidadão
pode modificar sua situação jurídica material, influenciando o campo de ações concretas
do Estado. Por seu turno, o modelo comunitário elucida algumas condições para tanto: a
autonomia política deve ser um fim em si mesmo, e redes igualitárias de reconhecimento
mútuo devem estruturar a posição jurídica do cidadão. Essas condições não podem ser
impostas pela legislação. O direito serve para garanti-las, mas elas não se viabilizam sem
um pano de fundo concordante (intersubjetivo), sem a cooperação fundada numa prática
cidadã. “Por isso, os comunitaristas insistem no fato de o cidadão ter que identificar-se
‘patrioticamente’ com sua forma de vida” (Habermas, 1997: 288).
Essa conclusão não vincula conceitualmente republicanismo e nacionalismo.
Firma apenas que os princípios universalistas inscritos no Estado democrático de direito
demandam um fundo político-cultural. Trata-se aqui de uma cultura política comum que
habilite inclusive indivíduos portadores de tradições e histórias nacionais diferentes a
interpretar similarmente os mesmos princípios jurídicos.
Passemos então ao segundo ponto: a relação entre cidadania e identidade
nacional à luz das tensões que acompanham a integração européia.
Habermas lembra que, na era moderna, a economia e a administração
desenvolveram uma lógica sistêmica própria, que concorre com a integração social
mediada pelo mútuo entendimento. Um dos aspectos da integração social é a integração
política informada pela cidadania democrática. Como Bendix, Habermas não vincula
democratização e modernização capitalista. Assim, se a União Européia teve início como
uma união alfandegária de mercados (união de economias), os direitos dos cidadãos ainda
não ultrapassaram o quadro do Estado nacional. O autor preocupa-se menos com as
soberanias nacionais, e sim com os processos democráticos ainda restritos aos contextos
nacionais, levando-nos a indagar sobre as possibilidades de configuração de uma cidadania
européia. Mas adverte Habermas (1997: 291): “Ao referir isso, eu não tenho em mente as
possibilidades da ação política coletiva, que ultrapassam as fronteiras, mas a consciência
que sente obrigações para com o bem comum europeu”.
Ao analisar as chances de uma cidadania européia, o autor lembra que é
restrita a concepção de que os direitos de cidadania resultaram da luta de classes, pois
outros movimentos como guerras e migrações contribuíram para a sua institucionalização
no âmbito do Estado nacional. Nesse sentido, Habermas acredita que elementos como a
20
mobilidade horizontal advinda da integração de mercados, as migrações oriundas do Leste
europeu e de países pobres do Terceiro Mundo, bem como movimentos sociais de tipo
novo (ecológico, feminista, pela paz, ...), contribuirão para fortalecer temas públicos afetos
ao mundo da vida 7.
Enquanto a União Européia não enfrentar problemas efetivos de
legitimação, as esferas públicas nacionais poderão continuar isoladas. Mas problemas e
movimentos como os acima referidos contribuem para o desenvolvimento de uma cultura
política comum, em nível europeu, que, respeitando as diversas histórias nacionais e sem
recorrer a origens comuns de uma Idade Média européia, forme uma nova autoconsciência
política, adequada à Europa do século XXI. Para esse processo têm papel capital, segundo
Habermas, as elites culturais e a mídia, ao contribuírem para fomentar um patriotismo
constitucional europeu, lastreado por princípios universalistas de direito e alimentado por
distintas interpretações assentadas nas tradições nacionais.
O terceiro ponto da presente reflexão habbersiana aprofunda os dilemas
advindos da maciça imigração rumo à Europa. Tanto os refugiados como aqueles que
migram por razões econômicas levantam a questão atinente à possibilidade de se priorizar
obrigações referidas à pertença a um Estado, em detrimento de obrigações universais.
Habermas (1997) desenvolve então o argumento normativo de que os
Estados europeus devem promover, conjuntamente, uma política liberal de imigração,
baseada no direito democrático à autodeterminação, mas entrelaçando uma cultura política
comum aberta aos influxos de variadas formas de vida. Esse desenho se compatibiliza com
uma cidadania mundial, cujos contornos começam a se configurar nas comunidades
políticas. De acordo com o autor: “O estado de cidadão do mundo deixou de ser uma
simples quimera, mesmo que ainda estejamos muito longe de atingi-lo. A cidadania em
nível nacional e a cidadania em nível mundial formam um continuum cujos contornos já
podem ser vislumbrados no horizonte” (idem: 305). Isso o autor apreende das
comunicações políticas de nível mundial. No entanto, trata-se de uma afirmação polêmica,
que, de fato, encontra correspondência com os movimentos do mundo, embora muitos
achem que, “a despeito de ocupar vasto espaço na agenda de muitos movimentos alternativos,
a idéia de uma “cidadania global” ainda não ultrapassou os limites de uma postulação fortemente
_________________________________________________________________________ 7 O mundo da vida é o espaço social em que a ação comunicativa permite a realização da razão comunicativa, assentada no diálogo e na melhor argumentação em contextos interativos livres de coação. Já os sistemas (economia e Estado) referem-se à reprodução material da sociedade; neles a linguagem é secundária, predominando a ação instrumental ou estratégica (Freitag-Rouanet, 2004; Habermas, 1987).
21
normativa” (Nogueira, 2001: 97/98). O certo é que a globalização nos obriga a repensar em
novos moldes a cidadania.
O breve esboço apresentado serve para nos revelar os flancos que, ante as
características do mundo contemporâneo, levam a um redimensionamento, ou mesmo
crise, da cidadania moderna. Dessa forma, se o reconhecimento da igualdade formal entre
os indivíduos permitiu a universalização de direitos e pôs fim à hierarquização estamental,
mascarou desigualdades materiais e diferenciações de gênero e de raça. Essa
universalização teve ainda caráter restrito, porque atendeu apenas aos nacionais de cada
Estado, conformando um tipo de cidadania que apresenta limitações cada vez maiores
frente ao processo de globalização. Suas insuficiências também são evidenciadas por lutas
pelo direito de viver num ambiente não poluído, ou por questionamentos acerca dos efeitos
da pesquisa biológica que permitirá a manipulação do patrimônio genético de cada pessoa,
compondo, respectivamente, o que Bobbio (1992) denominou de direitos humanos de
terceira e de quarta geração.
22
Capítulo 2: Cidadania e as modernidades central e periférica
Nesta parte, deslindaremos o complexo de relações que envolve o indivíduo,
a sociedade e o Estado. As múltiplas interfaces que entre eles se estabelecem permitem-nos
visualizar tanto as características da modernidade como algumas de suas tendências. Esse
esforço de análise envolve, por excelência, a compreensão e o reconhecimento das
condições institucionais, morais e societais para o exercício da cidadania.
2.1 – Indivíduo, Sociedade e Estado
Inicialmente, reportamo-nos às relações entre emancipação política e
emancipação humana, traçadas por Marx em A Questão Judaica, texto editado em 1844.
Na Alemanha, àquela época, como o Estado adotava o cristianismo, a não atribuição de
direitos aos judeus assumia caráter teológico. Como Marx (1991; 2002) considera a
religião um defeito ou falsa consciência, o autor cita o exemplo norte-americano para
demonstrar a problemática relação entre emancipação política e emancipação humana, pois
lá o Estado tornou-se laico (emancipação política da religião), mas os homens não se
emanciparam da religião (não se consubstancou a emancipação humana), confinando-a à
esfera privada.
Do mesmo modo, a supressão do aspecto riqueza para o direito ativo e
passivo de sufrágio implica a supressão ideal da propriedade, mas essa mesma anulação
política da propriedade a pressupõe de fato. Frente ao Estado foram anuladas as diferenças
de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, proclamando todo o povo, em
bases igualitárias, como co-partícipe da soberania popular. No entanto, o Estado permitiu a
atuação de fato desses mesmos elementos. Mais ainda, “longe de acabar com estas
diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político
e só faz valer sua generalidade em contraposição a estes elementos seus” (Marx, 1991: 25).
Segundo o autor, quando o homem se reconhece como um particular, um
indivíduo, vislumbra os outros homens como meios, negando assim seu caráter genérico.
Já, perante o Estado, é considerado como ser genérico, mas sem qualquer referência à sua
vida individual real, o que implica uma generalidade irreal e uma soberania imaginária.
23
Criticando os direitos humanos, o pensador afirma que neles a vida genérica
e a sociedade aparecem como elementos exteriores aos indivíduos, em sua tentativa de
preservar os interesses particulares. Restam como nexos com a sociedade e elementos de
coesão a necessidade e o interesse particular. A comunidade política vê-se rebaixada à
conservação dos direitos humanos, e o cidadão torna-se um servo do homem egoísta.
A base do Estado Moderno é a sociedade burguesa composta pelo indivíduo
independente e ligado aos demais pelo interesse particular. Essa configuração societal
desenvolveu-se historicamente, e o Estado moderno, produto dessa sociedade burguesa,
apenas reconheceu nos direitos gerais do homem a sua base natural.
No mundo moderno, cada qual é a um só tempo escravo e membro da comunidade. É precisamente a escravidão da sociedade burguesa, na aparência, a sua maior liberdade. E isto ocorre por ser aparentemente perfeita a independência do indivíduo, que toma o movimento desenfreado dos elementos alienados de sua vida – inteiramente desvinculados quer dos nexos gerais, quer do homem; por exemplo, o movimento da propriedade, da indústria, da religião, etc. – por sua própria liberdade, quando se trata justamente de sua sujeição e de sua falta de humanidade acabadas. O privilégio é substituído, aqui, pelo direito (Marx, 1991: 99).
A crítica marxiana visa restaurar a unidade entre Sujeito e Objeto (S – O),
pois, em sua concepção filosófica, o ser só se realiza caso se reconheça no que faz. No
comunismo primitivo, havia a unidade S – O no seio da comunidade, mas o homem vivia
premido pela necessidade. No capitalismo, criam-se as condições para superação desta; no
entanto, com o desenvolvimento de forças produtivas exteriores ao homem, dá-se a cisão S
– O (o homem se torna escravo do movimento das coisas). O problema se resolverá, então,
no comunismo, onde, além de superada a escassez, restaura-se a unidade S – O, liberando
o indivíduo para realizar suas potencialidades no seio da espécie.
O par liberdade-igualdade também atravessa o pensamento de Tocqueville.
Nos termos de sua análise, a relação entre Estado e sociedade é marcada pela progressiva
democratização, por isso o autor preocupa-se com a compatibilidade entre essa marcha
para a igualdade e a preservação da liberdade, construindo seus argumentos a partir da
oposição aristocracia versus democracia (Tocqueville, 2001; Furet, 1998; Jasmin, 1997).
Em sua obra A Democracia na América, três são os eixos causais para a
manutenção da democracia americana: as causas físicas, as leis e os costumes. Entre eles
há uma ordem de importância, onde “as leis servem mais à manutenção da república
democrática nos Estados Unidos do que as causas físicas, e os costumes mais que as leis”
(Tocqueville, 2001:359).
24
Na América, algumas instituições ajudaram a temperar a maioria, como o
poder judiciário, protegendo o indivíduo contra arbitrariedades, a periodicidade das
eleições, que também modera a combatividade da minoria, e a descentralização
administrativa, que divide a vontade popular. Esses elementos pressupõem a disseminação
de direitos civis e políticos entre os cidadãos, tornando possível, v. g., a formação de
associações e a liberdade de impressa. Ambas, ao agregarem vários sujeitos em torno de
opiniões e interesses específicos, além de servirem como elos intermediários frente ao
poder central, afastam as pessoas do privatismo promovido pelo individualismo moderno.
Este deve ser moderado através da difusão da doutrina do interesse bem compreendido,
que faz coincidir o interesse individual com o interesse geral, servindo como fonte de
cultura cívica.
Com efeito, individualismo (privatismo), gosto pelo bem-estar material e
desejo de galgar posições, oriundo da constante mobilidade, são tendências modernas, a
juízo de Tocqueville. Vale moderá-las através de instituições políticas e civis e da
promoção de certos costumes e modos de pensar, como foi o caso da religião na América.
Assim, se a experiência religiosa não pode ser generalizável, ela indica que qualquer
transformação da sociedade não pode ser fruto apenas da razão, mas sim da prática e dos
costumes, ou seja, da razão temperada pelos costumes. A nova ciência política, ao elucidar,
não deve descurar deste princípio que os homens do antigo regime pareciam desconhecer
quando tentavam reformá-lo: “(...) pensam que a total e repentina transformação de uma
sociedade tão antiga e tão complicada pode ser realizada sem abalos com a única ajuda da
razão e sua eficiência” (Tocqueville, 1979: 138).
Portanto, se o processo histórico conduziu à democratização, é preciso
considerar, a partir da igualdade, o melhor meio de preservar a liberdade. Da combinação
desses termos devem sair as instituições políticas adequadas ao bom funcionamento da
democracia. Para tanto, o poder social deve estruturar-se “de baixo para cima”, emergindo
a partir dos indivíduos e seus interesses e conforme as condições sociais presentes.
Já Weber (1993) indagou-se sobre as conseqüências do processo de
democratização (entendido aqui como eleições de massa) dos meios e das formas
organizacionais do embate político. Massificação e burocratização são processos
concomitantes que, presentes nas sociedades modernas, podem promover irracionalidades,
por comportarem tendências que minam o acesso de dirigentes políticos responsáveis ao
poder e favorecem o controle emocional das massas por demagogos.
25
O autor descreve um quadro em gestação de burocratização das estruturas
partidárias, onde ascende o político profissional e declinam personalidades honoríficas.
Progressivamente, quem decide os rumos da tática partidária é o funcionário do partido, e o
eleitor comum fica afastado de qualquer atividade.
Também a burocracia estatal observa grande crescimento, daí a necessidade
de um órgão independente e hábil a controlá-la, como o parlamento. Em Estados
parlamentaristas, onde os cidadãos só escolhem os partidos dirigentes, o voto pode educar
politicamente os cidadãos, se a transparência e o controle administrativo habituá-los à
observação contínua de como são administrados os seus negócios.
Como organismo de controle do funcionalismo e da informação ao público sobre a administração, como meio de desligamento de funcionários incompetentes em funções dirigentes, como instância de dotação orçamentária e como agente de condução de acordos partidários, o parlamento é indispensável também nas democracias eleitorais (Weber, 1993: 125).
Merece ser assinalado que efetivos órgãos de representação favorecem a
continuidade política, entendida como não ruptura da ordem civil pelo respeito a garantias
legais. Diversamente, o poder cesarista é mais suscetível à ascensão, declínio ou queda em
momentos conturbados. Para Weber, o parlamento opera três funções salutares para o bom
funcionamento das democracias: (1) controla a administração pública; (2) promove o
necessário consenso entre as correntes de interesse e de opinião; e (3) permite, via
representação política, a manifestação da vontade popular.
A Inglaterra aparece como um modelo em que dirigentes políticos se
destacam, sem ficarem submersos sob a burocratização administrativa e partidária e sem se
sujeitarem ao caráter emocional e irracional das massas. Qual a fórmula? Um parlamento
forte e partidos parlamentares organizados e responsáveis. Assim, torna-se possível
elaborar uma política consistente, funcionando o parlamento como órgão de recrutamento e
aperfeiçoamento de líderes de massas transformados em dirigentes de Estado.
Se, nas modernas sociedades de massas, Tocqueville propõe meios de evitar
a tirania da maioria e o isolamento privatista dos indivíduos; Weber aposta no controle das
tendências autonomizantes da burocracia estatal e na seleção de dirigentes políticos
responsáveis; Durkheim sugere uma reforma corporativa, condição primeira para remediar
o malaise instaurado nas relações entre Estado e sociedade.
O mal deriva do desmedido desenvolvimento da vida econômica, que ocupa
lugar central na vida social, em detrimento de outras dimensões. Vige então um estado de
anomia, caracterizado por uma rudimentar e imprecisa moral profissional, onde não há
26
claros limites entre o permitido e o proibido, o justo e o injusto, e os conflitos são
resolvidos pela subordinação dos vencidos. O estado anômico mina o exercício da
liberdade individual. Esta, para Durkheim, só é justa quando é fruto de regulamentação.
Só posso ser livre na medida em que outrem é impedido de tirar proveito da superioridade física, econômica ou outra de que dispõe para subjugar minha liberdade, e apenas a regra social pode erguer um obstáculo a esses abusos de poder (Durkheim, 1999: VIII).
Para o autor, a nova regulamentação poderá ser promovida pelas corporações
(grupos profissionais), desde que vinculadas ao órgão central e coordenador: o Estado.
A importância das corporações liga-se à questão mais geral: a ação moral
que as associações (as corporações são um tipo) promovem. Gerando um sentimento do
todo e de união, as associações são uma fonte de vida moral, onde o interesse individual
subordina-se ao interesse coletivo. Elas geram coesão e evitam a anarquia geral, já que é
mais fácil regrar as atividades de grupos. São boas para o indivíduo, pois, a partir do
momento em que socializado à regra e à vida no seio do grupo, tornam-se para ele uma
fonte de alegrias e evitam tensões oriundas de estados de desordem e desconfiança mútua.
Atente-se que também Tocqueville enfatiza, além do papel das associações como corpos
intermediários, o fato de elas retirarem os cidadãos do privatismo a que tendem os
indivíduos na modernidade. Ademais, elas permitem realizar obras e negócios impossíveis
de serem feitos isoladamente, agindo como substitutos funcionais da aristocracia, já que
nesta a ação de cada nobre tinha atrás de si uma cadeia de pessoas vinculadas.
Durkheim nota uma irresistível tendência à ampliação das funções do
Estado. Conferindo menor atenção à guerra, ele se volta para o interior, regulando os
direitos individuais. Aliás, tal tendência afina-se ao desenvolvimento da personalidade
individual no mundo moderno, que perdida de início no seio da massa social, dela se
destaca. O círculo da vida individual, restrito e pouco respeitado no começo, se estende e
se torna o objeto eminente de respeito moral. Por isso, “se o indivíduo é a realidade moral,
ele é que deve servir de pólo, tanto para a conduta pública quanto para a conduta
particular; e é a revelar-lhe a natureza que deve tender o Estado” (Durkheim, 1980: 52).
Mas deve-se observar que, se o indivíduo passa a ser a realidade moral a
servir de base às instituições políticas e sociais, os direitos do indivíduo não são dados, ou
seja, não são inerentes a este; eles são reconhecidos e instituídos pelo Estado. A atividade
deste longe de constranger o indivíduo o libera.
Ora, que a história autorize, efetivamente, a admitir essa relação de causa e efeito entre a marcha do individualismo moral e a marcha do Estado, é o que brota, com evidência, dos fatos. Tirante casos anormais, dos quais
27
teremos ocasião de falar, quanto mais forte o Estado, tanto mais o indivíduo é respeitado (Durkheim, 1980: 53).
Explorando o tema da individualidade, Habermas (1987a) a identifica como
um fenômeno gerado socialmente, ou seja, fruto de um processo de socialização. E lembra
que G.H. Mead e Durkheim entendem a identidade pessoal como uma estrutura forjada
pela adoção de expectativas de comportamento socialmente generalizadas.
A partir das reflexões de Durkheim, Habermas aponta que um grupo social
estabiliza sua identidade coletiva e sua coesão projetando uma imagem idealizada de sua
sociedade. Foi como pensamento coletivo (religioso) que o pensamento impessoal se
revelou à humanidade. Na semântica sacra subjaz um consenso normativo partilhado pelos
membros do grupo sob a forma de um acordo idealizado que transcende as mudanças
espaço-temporais. Este acordo constitui o modelo de todos os conceitos de validez e da
idéia de verdade, decorrentes, portanto, de ideações imanentes à identidade coletiva.
Para Habermas, a “linguicização” do consenso normativo básico garantido
pelo rito gera o desencantamento do sagrado, liberando o potencial de racionalidade
presente na ação comunicativa. A força vinculante do acordo moral de base sagrada vê-se
substituída por um acordo moral que expressa racionalmente o mesmo simbolismo
sagrado: a universalidade do interesse subjacente. Assim, a força obrigatória do interesse
geral reside em seu caráter imparcial e impessoal.
O autor aponta que, para Durkheim, os Estados Modernos, em lugar de
fundamentos sagrados de legitimidade, adotaram uma vontade geral comunicativamente
formada e ilustrada discursivamente no seio de uma opinião pública política. Nesse
contexto, a obrigatoriedade da lei advém de um sistema jurídico legitimado, em última
instância, pela formação da vontade política. O direito evolui em conexão com a mudança
na forma de integração da sociedade, configurada por uma passagem de uma solidariedade
mecânica à uma orgânica segundo três planos: a racionalização das imagens do mundo; a
universalização das normas morais e jurídicas; e a progressiva individualização dos
sujeitos. Compreende-se, então, no direito moderno, a emergência dos direitos subjetivos
individuais e a força vinculante derivada do caráter legal do contrato privado.
Para Durkheim (1980), a democracia é a forma de governo apropriada à
sociedade moderna, face às alterações do meio social (complexidade a demandar maior
reflexão) e às idéias morais emergentes (individualismo, que é refratário a formas
impositivas). Mas o autor não aprova nem o mandato imperativo, nem eleições diretas.
Enquanto nestas os escolhidos são escravizados pelas massas, o que pode ser moderado
28
com mais de um grau eleitoral, aquele impede a “reflexão estatal”, pois o “dever do Estado
é servir-se de todos esses meios, não, simplesmente, para extrair o que pensa a sociedade,
mas para descobrir o mais útil à sociedade” (Durkheim, 1980: 84). Nesse quadro, os
grupos territoriais poderiam servir como elo entre o indivíduo e o Estado, mas, segundo a
tendência moderna, os mais adequados para tanto seriam os grupos profissionais.
Pode-se concluir que no pensamento durkheimiano a garantia da ordem
social reside na moralidade, entendida como um conjunto de regras de conduta que: são
dirigidas ao grupo (impessoais); sua obrigatoriedade incide sobre os indivíduos, mas é
também por eles desejada; e comportam como sanção uma interdição social (Araújo, 2000).
Dumont (2000) também enfatiza o papel da obrigação moral, a qual
substitui a subordinação que regia a ordem anterior à moderna. É a obrigação moral que
impede a degeneração da liberdade em desregramento. Comparando valores holistas e
individualistas, o autor firma que a maioria das sociedades prioriza a ordem em termos
holistas, ou seja, onde cada elemento conforma-se ao todo. Já a sociedade moderna
valoriza o ser humano individual, considerando-o como a encarnação da humanidade
inteira e, como tal, livre e igual a qualquer outro indivíduo – trata-se do individualismo.
É uma revolução nos valores que diferencia a sociedade moderna das
tradicionais. Dumont supõe então que, na obra Dois Tratados do Governo, Locke só pôde
conceber a sociedade como justaposição de indivíduos abstratos, porque ele substituiu os
vínculos concretos da sociedade por uma moralidade hábil a aglutinar os indivíduos
sempre sob o olhar de Deus. “Em outros termos, suponho que, neste caso, a substituição do
homem como ser social pelo homem como indivíduo foi possível porque o cristianismo
garantia o indivíduo como ser moral” (Dumont, 2000: 92).
Ainda em Locke, o econômico é hierarquicamente superior ao político;
hierarquia fruto da transição do holismo, onde predominavam as relações entre homens,
para o individualismo, onde prevalece a relação entre homens e coisas – a propriedade.
Dumont (2000) ressalta que igualdade e liberdade são valores gerais,
englobantes; distintos, portanto, de um simples traço ou idéia restritos a um plano da
sociedade. Deve-se ainda considerar que, embora a igualdade seja um valor predominante
nas sociedades modernas, em todo sistema social ela se combina com a hierarquia.
Note-se que, para o autor, o avanço ilimitado do sistema individualista de
valores apresenta efeitos deletérios à sociedade. O individualismo extremado, ao ponto de
recusar toda e qualquer hierarquia, pode limitar a manutenção da ordem ao uso de coerção.
Por seu turno, a ênfase na igualdade pode limitar a percepção das diferenças (limitando-a a
29
uma operação de exclusão), o que implicaria, ao cabo, na negação dos valores
individualistas de igualdade e liberdade. Desse modo, aflora a necessidade de um consenso
mínimo de valores, o que impõe a aceitação de algum tipo de hierarquia (Araújo, 2000).
Serve como complemento a essas reflexões a preocupação de Inglehart
(2000) com o exercício da democracia nas últimas décadas. Valendo-se de rico material
empírico, o autor investiga as precondições culturais e axiológicas contemporâneas.
Para o autor, o desenvolvimento econômico é o promotor de dois processos:
o de modernização e o de pós-modernização. Construindo sua teoria a partir da hierarquia
das necessidades humanas, elaborada por Abraham Maslow (psicólogo), Inglehart defende
a tese de que, desde o fim da 2ª Guerra Mundial, a cultura (sobretudo a cultura política)
dos países ocidentais industrializados (especialmente os centrais) sofreu radicais
transformações que estariam redirecionando essas sociedades para uma ênfase crescente
em valores não-econômicos e imateriais (Souza e Hoellinger, 2000).
A chave do novo padrão cultural encontra-se numa mudança geracional
observada. A emergência do Welfare State e o declínio do senso de vulnerabilidade,
associados às inovações tecnológicas e ao aumento generalizado dos níveis educacionais,
remodelaram o panorama político, as orientações religiosas, as relações de gênero e os
hábitos sexuais. O senso de segurança ampliou as orientações pós-modernas, voltadas para
a auto-expressão individual, especialmente nos segmentos da população cuja socialização
primária ocorreu nos períodos de segurança 8.
Em síntese, para Inglehart, as avançadas sociedades industriais sofrem
mudanças em suas trajetórias sócio-políticas segundo dois eixos: (1) no sistema de valores
– se a modernização foi possibilitada pela crescente ênfase nas realizações econômicas
individuais, na pós-modernização, enfatiza-se cada vez mais a qualidade de vida; (2) na
estrutura institucional – atinge-se limites ao desenvolvimento de organizações burocráticas
hierarquizadas que contribuíram para criar a sociedade moderna. Esses limites referem-se à
sua efetividade funcional e à sua aceitação pelas pessoas.
No novo quadro, os movimentos sociais requerem pouca institucionalização,
de modo a privilegiar as preferências individuais dos participantes. Ademais, o elemento
cognitivo passa a ser predominante em lugar da manipulação emotiva e sentimental, ponto
que, para Souza e Hoellinger (2000), conflui com as reflexões de Habermas sobre o
potencial emacipatório da livre argumentação na esfera pública. Mas os autores criticam o _________________________________________________________________________________________________ 8 Em contextos tradicionais, o senso de segurança advinha da religião e das normas culturais de caráter absoluto.
30
“economicismo filosófico” de Inglehart, consubstanciado na adoção da auto-preservação
material como o princípio básico condicionante do comportamento dos agentes, ou seja, só
quando estes são libertos das amarras das necessidades aflorariam às suas consciências
questões imateriais ou pós-materiais, vagamente definidas por Inglehart. O estímulo
fundamental advém, portanto, da necessidade econômica e não da sua transformação
simbólica em valores e normas.
Embora firme o sucesso empírico da perspectiva de Inglehart, Araújo (2000)
ressalta sua insuficiência teórica, na medida em que não consegue prospectar nada além da
linearidade modernização/ pós-modernização (materialismo/ pós-materialismo).
Sobremaneira formal e descritiva, a análise é incapaz de explicar o caso brasileiro.
Outra dimensão fundamental para a compreensão do exercício da cidadania
democrática refere-se às reivindicações de respeito. Vidal (2000, 2003) a considera
primordial atualmente, ressaltando que problemas de acesso à cidadania das camadas
populares brasileiras podem ajudar a compreender certas formas de necessidade de
reconhecimento nas sociedades do Norte.
Vale então nos reportamos a Honneth (2003), que, em sua obra Luta por
reconhecimento, propõe-se investigar: (1) se a hipótese hegeliana de uma seqüência
ordenada de etapas de reconhecimento pode resistir a considerações empíricas; (2) se é
possível atribuir às formas de reconhecimento recíproco experiências correspondentes de
desrespeito social; e (3) se há comprovações históricas e sociológicas para a idéia de que
essas formas de desrespeito social servem como fonte motivacional de confrontos sociais.
Segundo o autor, o uso da psicologia social de G.H.Mead permite tornar as
idéias do jovem Hegel o fio condutor de uma teoria social de teor normativo, cujo
propósito é esclarecer os processos de mudança social reportando-se às pretensões
normativas estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco.
As análises de Mead e Hegel convergem ao apontar que a reprodução da
vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento recíproco, porque os sujeitos
só podem chegar a uma auto-relação prática quando aprendem a se conceber, da
perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais. Essa
tese demanda a inclusão de um elemento dinâmico, qual seja o de que os indivíduos só
podem conferir expressão social às pretensões de sua subjetividade através da deslimitação
gradual do conteúdo do reconhecimento recíproco. Assim, o processo de individuação,
transcorrendo no plano da história, liga-se ao pressuposto de uma ampliação simultânea
das relações de reconhecimento mútuo. Mas essa hipótese evolutiva, para se configurar
31
como uma teoria da sociedade, remete a processos no interior da praxis da vida social, pois
são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, ou seja, sua tentativa coletiva de
estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, o
que promove a transformação normativamente gerida das sociedades.
As teorias de Hegel e de Mead distinguem três formas de reconhecimento
recíproco: (1) a dedicação emotiva, como a identificada nas relações amorosas e de
amizade; (2) o reconhecimento jurídico e (3) o assentimento solidário. Note-se que a estas
correspondem três esferas distintas de interação.
Sem adentrarmos nos resultados de pesquisas científicas de que Honneth
(2003) se vale para ratificar essas formas de reconhecimento, apresentaremos algumas de
suas conclusões sobre o reconhecimento jurídico e a estima social. Ambas centrais
(especialmente a primeira), a nosso juízo, para o deslinde da cidadania democrática. Não se
deve perder de vista, porém, que o autor considera a dedicação emotiva – oriunda das
relações amorosas – um suporte para as outras duas formas de reconhecimento.
Na análise das propriedades estruturais do reconhecimento jurídico sob
condições modernas destacam-se dois pontos: (1) a emergência de um tipo de respeito que
exige uma operação de entendimento puramente cognitiva e que, se deve desligar-se de
sentimentos de simpatia e afeição, deve ser hábil a dirigir o comportamento individual; e
(2) o direito moderno deve apresentar uma abertura estrutural a ampliações e precisões
gradativas, dada a indeterminidade do que constitui o status de uma pessoa imputável.
Sobre o plano do reconhecimento jurídico confluem duas operações de
consciência. Perante pessoas autônomas, faz-se mister um prévio saber moral sob as
obrigações jurídicas. Por outro lado, só a interpretação empírica da situação permite inferir
se o defrontante reúne os requisitos para a aplicação das normas jurídicas. Dessa forma, na
estrutura do reconhecimento jurídico, constituída em moldes universalistas sob as
condições modernas, está inscrita a tarefa de aplicação específica à situação, e é nessa zona
de interpretação da situação que as relações jurídicas modernas constituem um dos lugares
em que pode suceder uma luta por reconhecimento.
Do reconhecimento da pessoa enquanto tal se distingue a estima por um ser
humano. Nesta não entra em jogo a aplicação de normas gerais, mas sim a avaliação
gradual de propriedades e capacidades concretas. Portanto, a estima pressupõe um sistema
referencial valorativo que informa sobre o valor de tais traços de personalidade.
Honneth (2003) reporta-se à tentativa de T. H. Marshall de reconstruir o
nivelamento histórico das diferenças sociais de classe, considerando-o um processo gerido
32
de ampliação de direitos individuais fundamentais. Importa, para Honneth, demonstrar que,
na “imposição” de cada nova classe de direitos fundamentais, encontram-se argumentos
referidos implicitamente à exigência de ser membro com igual valor da coletividade
política. Da análise de Marshall extrai-se como a ampliação sucessiva dos direitos
individuais ligou-se ao princípio normativo que, desde o início, atuava como idéia diretriz:
todo enriquecimento das atribuições jurídicas do indivíduo pode ser entendido como um
passo além no cumprimento da concepção moral de que todos os membros da sociedade
devem poder ter assentido por discernimento racional à ordem jurídica estabelecida e deles
deve-se esperar a disposição individual à obediência. Então, o respeito fundado no
reconhecimento jurídico só pode manifestar-se caso o sujeito goze do nível mínimo de vida
necessário para adquirir a capacidade abstrata de orientar-se por normas morais.
Partindo do princípio de igualdade inscrito no direito moderno, Honneth
(2003) distingue dois fios evolutivos no esquema histórico de Marshall: o status de uma
pessoa de direito ampliou-se pelo acúmulo de novas atribuições (conteúdo material); e ele
foi estendido a um número sempre crescente de membros da sociedade (alcance social). O
autor acrescenta que tanto Mead quanto Hegel identificam um prosseguimento da luta por
reconhecimento no interior da esfera jurídica, pois os confrontos práticos, advindos do
reconhecimento denegado ou do desrespeito, representam conflitos em torno da ampliação
do conteúdo material e do alcance social do status de uma pessoa de direito.
Quanto à estima social, depende dos objetivos éticos predominantes na
sociedade, variáveis historicamente. Atente-se que, à medida que os objetivos éticos se
abrirem a diferentes valores, e a ordenação hierárquica ceder espaço a uma concorrência
horizontal, mais a estima social assumirá um traço individualizante e criará relações
simétricas. Ademais, com a modernidade, observa-se uma transição do conceito de honra,
medida pelo valor previamente fixado de propriedades atribuídas a grupos inteiros
(tipificados), para as categorias de prestígio ou reputação social, cuja ênfase recai no
sujeito, considerado uma grandeza biograficamente individualizada.
O prestígio, ou reputação, refere-se ao grau de reconhecimento que o
indivíduo merece para sua forma de auto-realização, porque esta de algum modo contribui
para a implementação prática dos objetivos da sociedade, abstratamente definidos. Na nova
ordem individualizada do reconhecimento, tudo depende, portanto, de como se determina o
horizonte universal de valores, que, ao mesmo tempo, deve estar aberto a formas distintas
de auto-realização e servir a um sistema predominante de estima.
33
Dessa forma, as idéias diretrizes, tornadas abstratas, nos impedem de medir
o valor social de determinadas propriedades e capacidades sem primeiro realizar
interpretações culturais complementares. Dá-se, assim, uma praxis exegética secundária
que configura um conflito cultural de longa duração, já que as relações de estima social
ficam sujeitas a uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com os
meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o valor das capacidades
associadas à sua forma de vida. Ademais, como as relações de estima social estão
acopladas indiretamente aos padrões de distribuição de renda, os confrontos econômicos
pertencem constitutivamente a essa forma de luta por reconhecimento (Honneth, 2003).
A contraface do reconhecimento é a experiência de desrespeito. Como a
auto-imagem normativa de cada ser humano (seu Me) depende da possibilidade de um
resseguro constante no outro, a experiência do desrespeito pode gerar uma lesão capaz de
destroçar a identidade da pessoa. Mas o desrespeito, ou a ofensa, como na linguagem
corrente, pode envolver graus diversos de profundidade na lesão psíquica de um sujeito.
No caso dos direitos, estes são pretensões individuais com cuja satisfação
social uma pessoa pode contar de maneira legítima, por participar como membro de igual
valor da ordem institucional da sociedade. Por isso, denegar ao indivíduo pretensões
jurídicas socialmente vigentes implica lesá-lo na expectativa intersubjetiva de ser
reconhecido como sujeito capaz de formular um juízo moral, levando à perda de auto-
respeito, ou seja, a uma perda da capacidade de referir-se a si mesmo como parceiro em pé
de igualdade na interação com todos os próximos. Essa forma de desrespeito também varia
historicamente e, ao analisá-la, deve-se considerar que, dadas as variações da
imputabilidade moral promovidas pelo contínuo desenvolvimento das relações jurídicas, a
experiência de precariedade de direitos deve ser medida tanto pelo grau de universalização
quanto pelo alcance material dos direitos institucionalmente garantidos.
Em relação ao desrespeito, Honneth (2003) levanta a questão de como essa
experiência, ancorada nas vivências afetivas dos sujeitos humanos, pode gerar, no plano
motivacional, o impulso para a resistência social e para o conflito, isto é, para uma luta por
reconhecimento. Com efeito, para o autor, na experiência de desrespeito de pretensões de
reconhecimento reside a possibilidade de que a injustiça sofrida se revele cognitivamente
ao sujeito, motivando-o à resistência política.
34
2.2 - O Processo de Juridificação
Para fazer uma aproximação empírica do que denomina de colonização do
mundo da vida, Habermas (1987b) utiliza, como exemplo, a juridificação de áreas de ação
comunicativamente estruturadas. Trata-se de analisar o desenvolvimento do direito,
demonstrando, analiticamente, o vínculo entre efeitos reificadores e tipos específicos de
juridificação, divididos em quatro movimentos, conforme a relação entre mundo da vida e
sistemas econômico e político-administrativo 9.
Durante o período absolutista, deu-se o primeiro desenvolvimento europeu
do direito, com a institucionalização das mídias que serviram à diferenciação da economia
e do Estado em sistemas. Naquele contexto, as fontes de legitimação do Estado eram
extraídas do mundo da vida. O segundo movimento correspondeu ao Estado constitucional
burguês. Em termos analíticos: aos indivíduos seriam conferidos direitos civis que
poderiam ser opostos ao soberano, embora sem participarem da formação de sua vontade.
A terceira onda referiu-se ao Estado constitucional democrático forjado
durante a Revolução Francesa e objeto da teoria política desde Kant e Rousseau até o
presente. A democratização seguiu o curso da constitucionalização. O mundo da vida
afirmava-se contra os imperativos da estrutura de dominação que desconsideravam as
relações concretas de vida. Mas assim a mídia poder enraizou-se mais no mundo da vida.
Na quarta etapa emergiu o Welfare State. Seguiu-se a linha do Estado
constitucional democrático, com uma juridificação assecuratória da liberdade e a
institucionalização legal de relações sociais fundadas numa estrutura de classes.
Habermas (1987b) considera que os efeitos negativos do Welfare State
resultam do modo de juridificação, ou seja, os próprios meios de garantir a liberdade
ameaçam a liberdade dos beneficiários. O problema consiste no fato de a juridificação em
tela não permitir reações apropriadas, especialmente preventivas, direcionadas às causas
que promovem as demandas por compensação. A introdução de uma estrutura legal
condicional (benefícios exigem o preenchimento de certos pré-requisitos) acrescenta um
elemento estranho às relações sociais, separando-as dos mecanismos consensuais de
coordenação da ação e as substituindo pelas mídias poder e dinheiro (incapazes de garantir
a reprodução simbólica do mundo da vida). As formas concretas de vida são submetidas a
um violento processo de abstração, não só para serem subsumidas à lei, mas, igualmente, para
_________________________________________________________________________ 9 Sobre o mundo da vida e os sistemas, confira-se a nota nº 07.
35
que possam ser administradas. Dessa forma, quanto maior a intervenção estatal para
pacificar o conflito de classe expresso na esfera produtiva, maiores são os efeitos
patológicos da juridificação, dada a maior burocratização e monetarização do mundo da
vida. A discussão envolve aqui os aspectos que garantem a liberdade e os que a restringem.
Nesse sentido, para o autor, os que a garantem são os relativos a uma atuação negativa do
Estado, ao passo que a sua atuação positiva levaria às conseqüências perversas em comento.
Outro critério pode ser utilizado para ampliar esse debate, qual seja a
classificação das normas legais segundo a forma de legitimação que obedecem: se apenas
através de procedimentos; ou se abertas a justificativas de teor substantivo. Neste trilha, o
autor distingue duas formas assumidas pelo direito (ou pela lei). Uma refere-se ao direito
como instituição, implicando que, além do procedimento, as normas legais, para serem
legítimas, devem possuir conteúdos substantivos, cujas bases normativas dependem dos
mecanismos de mútuo entendimento que deitam raízes no mundo da vida. São exemplos:
os fundamentos de direito constitucional, princípios de direito criminal, normas sobre
padrões morais (estupro, aborto, assassinato,...). A outra forma trata-se do direito como
meio, servindo para organizar os subsistemas governados pelo dinheiro e poder, caso em
que o procedimento é critério suficiente de legitimação. Essa divisão do direito exemplifica
o que Habermas (1987b) chama de desacoplamento entre mundo da vida e sistema.
Note-se que o problema da liberdade coloca-se da perspectiva do mundo da
vida e tem relação apenas com o direito como instituição, pois, atuando como um meio,
importa se ele é funcional aos sistemas. Nesse quadro, as garantias de compensação social
do Welfare representam um problema, porque, embora conforme a instituições jurídicas,
sua implementação ocorre quando o direito é utilizado como um meio. Desse modo, as
normas legais do Welfare são ajustadas para servir a mecanismos sistêmicos, mas se
aplicam a situações do mundo da vida marcadas por relações não formais.
As políticas de bem-estar são apenas um exemplo da tese da colonização
interna do mundo da vida pelos subsistemas tornados mais complexos com o crescimento
capitalista. As ambivalências encontradas na legislação de bem-estar também marcam a
juridificação do direito de família e a regulação da educação escolar; áreas envoltas em
processos formativos objeto de ações comunicativas. Com a juridificação, surgem
controles administrativos e judiciais que, não só suplementam os contextos socialmente
integrados às instituições jurídicas, como os transformam num meio de consecução do
direito, gerando distúrbios. As pessoas tornam-se mais sujeitos subordinados aos
procedimentos do que participantes deles, argumenta Habermas (1987b: 370):
36
Em quase todos os casos pode-se ver quão pouco o juiz é hábil a acompanhar a contenda com seus meios especificamente jurídicos, sempre que está em jogo uma questão de comunicação relativa à criança e que é essencial para os procedimentos, ou de entendimento de fatores importantes para o desenvolvimento da criança. É o meio da lei em si que viola as estruturas comunicativas da esfera que foi juridificada.
Dessa análise, Habermas (1987) extrai a conclusão cujo teor normativo se
afigura evidente, e que informa em boa medida as tarefas de sua teoria crítica. Trata-se de
“proteger áreas da vida que são funcionalmente dependentes da integração social através
de valores, normas e formação de consensos, para preservá-las de serem aprisionadas pelos
imperativos sistêmicos dos subsistemas econômico e administrativo que crescem segundo
dinâmicas próprias” (idem, 372/373). Importante é que a esfera pública se reproduza
autonomamente, sem ser submetida a imperativos sistêmicos.
Na esfera pública, as associações são centrais para a formação de opiniões.
Mas sua criação (de associações), reprodução e influência depende da existência de uma
cultura política liberal e igualitária espraiada por uma sociedade de cidadãos ativos e
sensíveis aos problemas da coletividade. Habermas (1997b) preocupa-se em não
sobrecarregar moralmente os cidadãos com um ethos republicano tão caro a Rousseau.
Os cidadãos não precisam ser virtuosos, mas ativos e sensíveis aos problemas coletivos. Esse
relaxamento da virtude é possível, pois a formação procedimental da vontade se dá em
fragmentos e sem sujeitos definidos. Basta que a sociedade mantenha-se “animada”.
Torna-se mais fácil também compatibilizar o interesse próprio e a moral do cidadão (afinal,
a formação da vontade depende de processos intersubjetivos, e não mais centrados nos
sujeitos).
Já Boaventura de Sousa Santos (2001), identificando uma crise do
paradigma moderno, propõe-se elaborar uma teoria crítica pós-moderna e especula sobre o
paradigma emergente: o de um conhecimento prudente para uma vida decente. Sustenta que
só a partir da modernidade será possível transcendê-la 10, recorrendo a suas representações
10 Para o autor, modernidade e capitalismo são dois processos históricos diferentes e autônomos. O primeiro surgiu antes do segundo, entre o século XVI e o fim do século XVIII, e, provavelmente, desaparecerá antes de o capitalismo perder sua posição dominante.
Esquematicamente, o paradigma da modernidade assenta sobre dois pilares: o da regulação e o da emancipação, cujos desenvolvimentos harmoniosos e recíprocos se traduziriam numa completa racionalização da vida coletiva e individual e na consecução de valores sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça e autonomia, solidariedade e identidade, igualdade e liberdade. Cada pilar é informado por três princípios ou lógicas. O da regulação observa os princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Já a emancipação constitui-se por “três lógicas da racionalidade definidas por Weber: a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-prática da ética e do direito” (idem: 50).
37
mais abertas e inacabadas, que então se apresentam como horizonte de soluções possíveis.
Para o autor, essas representações “são, no domínio da regulação, o princípio da
comunidade e, no domínio da emancipação, a racionalidade estético-expressiva” (Santos,
2001: 74/75).
Quanto à racionalidade estético-expressiva, o autor considera-a “tão
permeável e inacabada como a própria obra de arte e, por isso, não pode ser encerrada na
prisão flexível do automatismo técnico-científico” (idem: 76).
No caso das comunidades, não se sujeitaram à especialização e à
diferenciação técnico-científica que serviu à racionalidade cognitivo-instrumental para
colonizar os demais princípios de regulação (o mercado e o Estado). Na verdade, isso só
ocorreu parcialmente, como em duas dimensões do princípio da comunidade: a
participação e a solidariedade. Quanto à primeira, a teoria política liberal tentou
circunscrevê-la rigidamente com a cidadania e a democracia representativa, mas ela se
manteve como uma competência não especializada e indiferenciada da comunidade em
outras esferas da vida social que não a política. Em relação à solidariedade, a colonização
se deu pelas políticas sociais do Welfare State, mas esse desenvolvimento, além de
incompleto, observou a permanência da solidariedade comunitária não especializada,
especialmente em Estados periféricos. Ao contrário do colonialismo, a solidariedade
envolve a reciprocidade e a incapacidade de conceber o outro como um objeto.
Atualmente, com a desterritorialização das relações sociais não cabe
confinar a comunidade ao imediato, ou ao local. Com efeito, como se fazem presentes
nexos locais-globais e imediatos-diferidos, a comunidade deve ser entendida como “um
campo simbólico em que se desenvolvem territorialidades e temporalidades específicas que
permitem conceber o nosso próximo numa teia intersubjetiva de reciprocidades” (Santos,
2001: 81). Assim, vale mais a reciprocidade (intersubjetiva) do que a identidade. Além
disso, observam-se redes de comunidades, de modo que é possível perscrutar os
elementos e pontos de vista comuns entre elas. O autor denomina esses tópicos comuns de
topoi gerais. Neste sentido, uma política epistemológica emancipatória deve voltar-se para
a formação de um senso comum emancipatório, o que ocorrerá “quando os topoi
emancipatórios desenvolvidos numa dada comunidade interpretativa encontrarem tradução
adequada nos topoi de outras comunidades e se converterem, assim, em topoi gerais”
(idem: 110).
Frise-se ainda a necessidade de reformar o princípio da responsabilidade que
informa a ética liberal moderna. Para o autor, hoje não se podem assentar direitos
38
exigindo-se os correspondentes deveres. Nesse sentido, cabe invocar um princípio pós-
moderno de responsabilidade, onde a natureza e o futuro têm direitos sem ter deveres.
Difícil aqui é definir o sujeito de responsabilidade que não pode ser estritamente
individualista, sob pena de não comportar a responsabilidade por conseqüências coletivas
presentes e futuras; nem uma coletividade indiferenciada a ponto de impedir a atribuição
de responsabilidade.
No campo jurídico, a tensão entre regulação e emancipação remonta à
recepção do direito romano na Europa, durante o século XII. A sociedade feudal abrigava
um pluralismo jurídico incompatível com as demandas por liberdade e garantias contratuais
da classe emergente. Nesse contexto, a recepção do direito romano, ao propor uma
racionalização jurídica da vida social, servia aos propósitos emancipatórios da classe
emergente, ou seja, as exigências de regulação, além do aspecto técnico-instrumental,
comportavam uma nova ética política e social afim aos novos ideais de autonomia e
liberdade. No entanto, gradativamente os dispositivos de emancipação foram absorvidos
pela regulação, até que no século XIX, reduziu-se a um formalismo técnico a complexa
simbiose entre autoridade, racionalidade e ética que era característica do direito romano.
Também as teorias do contrato social representaram uma manifestação da
tensão entre regulação e emancipação na origem do campo jurídico moderno, ao ligarem a
universalidade da obrigação jurídico-política às pretensões de verdade da ciência moderna.
Isso aparece mais em Hobbes do que em Rousseau, este crítico da ciência moderna, dada a
incapacidade desta em resolver os problemas éticos e políticos da época, sintetizados na
primeira frase de O Contrato Social: “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se
a ferros” (Rousseau, 1997: 53). A questão era fundar a obrigação política na liberdade. A
idéia de contrato social era a solução iluminista. Mas em que termos fixar o contrato? Para
Rousseau, a solução era o exercício da soberania indivisível e inalienável por meio da
vontade geral. Segundo Boaventura, Rousseau concebe a vontade geral como uma síntese
da tensão entre regulação e emancipação, donde o par de idéias: “só obedecer a si próprio”
e “ser forçado a ser livre”. Mais do que o número é o interesse comum que une a vontade,
por isso “a fundação do corpo político assenta numa obrigação política horizontal, de
cidadão para cidadão, em relação à qual a obrigação política vertical, do cidadão para o
Estado, é necessariamente secundária ou derivada” (Santos, 2001: 131). Direito e educação
cívica formam uma síntese, sobrelevando a racionalidade prático-moral. Tem-se um
projeto de racionalização das vidas individual e coletiva, onde se equilibram liberdade e
igualdade, autonomia e solidariedade, razão e ética, autoridade e consentimento.
39
Enquanto em Rousseau a soberania estatal é derivada e precária, em Hobbes
ela é absoluta, por este autor entender que, quando o povo a renuncia ao Estado, importa a
garantia da paz 11. Se em Hobbes não há proteção contra a tirania, em Locke o governo age
por consentimento, merecendo destaque dois momentos: quando o povo decide abandonar
o estado de natureza e fundar a sociedade civil, e outro quando ele incumbe o governo de
regular a sociedade civil de acordo com a regra da maioria. Aqui, o direito vincula o governo
e serve de garantia contra os abusos de poder e a tirania.
Cada um desses autores representou “uma dimensão arquetípica de um
projeto revolucionário global. O princípio do Estado (Hobbes), o princípio do mercado
(Locke) e o princípio da comunidade (Rousseau) são constitutivos, em pé de igualdade, de
um novo paradigma social que, para estar à altura das suas promessas, tem de assegurar o
desenvolvimento equilibrado dos três princípios” (Santos, 2001: 137). Mas não foi isso que
se observou no “mundo real”, após a associação entre o paradigma da modernidade e o
capitalismo. Delinearam-se então três períodos: o do capitalismo liberal (século XIX); o do
capitalismo organizado, iniciado ao final do século XIX e cujo auge se deu no período entre-
guerras e no pós-guerra; e o terceiro período, correspondendo ao capitalismo desorganizado,
que se estende do final dos anos 1960 aos dias atuais.
No primeiro período, desenvolveu-se o Estado Constitucional. Ideais éticos
e promessas políticas foram ajustadas às necessidades regulatórias do capitalismo liberal.
A ordem positivista procurava garantir a previsibilidade e o controle da natureza e da
sociedade. Instaurou-se uma dominação jurídica racional, baseada num sistema de leis
universais e abstratas emanadas do Estado, aplicado segundo a racionalidade lógico-
formal. O direito estatal, então considerado desvinculado de conteúdos sociais e políticos,
liberava as relações sociais dos vínculos e hierarquias do antigo regime 12.
Durante o capitalismo organizado veio a lume o Welfare State (Estado-
Providência, ou de Bem-Estar), onde a obrigação política horizontal entre os cidadãos
tornou-se uma dupla obrigação vertical: entre os contribuintes e o Estado; e entre os
beneficiários das políticas sociais e o Estado. Note-se que, à medida que o Estado passou a
_______________________________________________________________________________ 11 Boaventura esclarece que a elaboração teórica do estado de natureza pelos contratualistas é um artifício lógico para justificar a institucionalização da sociedade civil. Por isso, as diferentes concepções de estado de natureza entre esses autores são simétricas às concepções de sociedade civil após a “celebração” do contrato social. Nesse sentido, confira-se Macpherson (1979). 12 Não se deve olvidar, porém, que o século XIX, além do positivismo jurídico e científico, aprofundou o idealismo romântico do século XVIII e observou a emergência do socialismo como movimento político, além de diversos projetos utópicos.
40
gerir processos econômicos e sociais, o direito estatal foi se tornando menos formalista e
abstrato, ganhando ênfase o equilíbrio e o compromisso entre interesses conflitantes
visando à materialização do direito. Dava-se curso à politização do direito, sobrevelando
seu papel distributivo na promoção da integração social e política. Enquanto no Estado
liberal a racionalidade jurídico-formal era fonte e princípio de legitimação, a
instrumentalidade do direito durante o capitalismo organizado transferiu a função de
legitimação para o desenvolvimento econômico e para as formas de sociabilidade que o
Estado-Providência procurava fomentar.
A juridicização da prática social significou a imposição de categorias, interacções e enquadramentos jurídicos estatais, relativamente homogêneos, nos mais diversos e heterogêneos domínios sociais (família, vida comunitária, local de trabalho, esfera pública, processos de socialização, saúde, educação, etc.). A manejabilidade do direito estatal pressupunha a maleabilidade dos domínios sociais a regular juridicamente. Sempre que a prática social não pôde validar este pressuposto, o resultado foi o que Habermas designou por ‘colonização do mundo da vida’, isto é, a destruição das relações sociais sem a criação de equivalentes funcionais jurídicos adequados. Sempre que tal aconteceu, o benefício jurídico do Estado-Providência converteu-se num bem humano condicional. Condicional pelo facto de poder destruir as dimensões eventualmente benéficas das relações sociais a serem reguladas, sem garantir a sustentabilidade da benevolência jurídico-estatal, dada a dependência desta em relação às necessidades variáveis de reprodução do capital (Santos, 2001: 151).
No terceiro período (capitalismo desorganizado), presenciamos a ruína das
estruturas do período anterior e a impossibilidade de discernir o perfil das novas formas
organizativas. As promessas de distribuição justa de benefícios sociais e de sistemas
políticos estáveis e democráticos erodiram-se, sendo muitas as evidências:
(...) desigualdades sociais crescentes, aumento alarmante da pobreza, aparecimento de “Terceiros Mundos interiores”, redução dos recursos e do âmbito das políticas sociais, deslegitimação ideológica do Estado facilitador, novas formas de exclusão social e de autoritarismo sob a capa de promoção de autonomia e de liberdade, “patologias” da participação e da representação no processo político, novo populismo e clientelismo na política, etc. Além disso, os dois paradigmas políticos da transformação social disponíveis no início do segundo período – revolução e reforma – parecem estar ambos igualmente esgotados (idem: 154).
O princípio do mercado tem se sobressaído, com a interligação mundial de
mercados e de sistemas de produção minando a capacidade estatal de regulação. Cada vez
mais se interligam o local e global sem a intermediação do espaço nacional. A erosão do
princípio do Estado ainda se manifesta na perda de protagonismo estatal nas políticas sociais.
Num contexto de crescente desigualdade entre o Norte e o Sul, os países
periféricos são acossados por determinações do capital financeiro e industrial
41
transnacional, determinações essas comumente estabelecidas por organizações
internacionais controladas pelos países centrais. Não raro essas diretivas são revestidas por
uma combinação de liberalismo econômico e proteção dos direitos humanos.
Boaventura conclui que todas essas alterações nos princípios do mercado e
do Estado fragilizaram as políticas de classe reinantes durante o capitalismo organizado.
Também contribui para tanto a transformação da estrutura de classe, fruto de fatores como
a “segmentação nacional e transnacional dos mercados de trabalho, a crescente
diferenciação interna da classe operária industrial, o aumento do desemprego e do
subemprego, qualquer deles estrutural, a expansão do setor informal no centro, na periferia
e na semiperiferia, o extraordinário aumento dos serviços, tanto dos qualificados como dos
não qualificados, a difusão da ideologia cultural do consumismo” (Santos, 2001: 156).
Embora esses elementos fragilizem a solidariedade horizontal base do
princípio da comunidade, o autor aponta indícios de sua reativação mais autônoma, ou seja,
não mais centrada e derivada do Estado. Serve de exemplo o crescimento de um terceiro
setor entre o Estado e o mercado, organizando a reprodução social com base em
movimentos sociais e ONG’s que atuam em nome de uma solidariedade ditada por novos
riscos, contra os quais nem o mercado nem o Estado oferecem uma ação eficaz.
O autor conclui que, no primeiro período, as exigências regulatórias
preponderaram sobre a emancipação, confinada esta a reivindicações de movimentos anti-
sistêmicos. Durante o capitalismo organizado, a regulação estatal dos países centrais tentou
integrar essas demandas, mas, de fato, subordinou os projetos emancipatórios à regulação,
conforme exigido pela dinâmica capitalista. No terceiro período, com o declínio da
regulação fordista, observa-se uma mútua desintegração da regulação e da emancipação,
embora se trate ainda de um período em aberto.
2.3 - Tendências modernas do direito: formalismo, materialização e
responsividade
Weber (1999) reconhece como tendências modernas do desenvolvimento do
direito uma maior especialização de seus conteúdos e, associado a esse incremento técnico,
o crescente desconhecimento pelos leigos das questões jurídicas. Há ainda a tendência de
maior abertura do direito a reivindicações materiais, tornando-o cada vez mais permeável a
fins racionais, mesmo que em detrimento da lógica formalista.
42
Na exposição do clássico autor transparece o seu pesar ante esse processo.
Para Weber, as pressões por justiça material minam o edifício formal e racional do direito
positivo, incutindo elementos perturbadores e hábeis a tornar irracional seu funcionamento.
Observaríamos, destarte, uma involução no processo de racionalização formal do direito.
Vale então reportamos os parâmetros do direito formal:
1) que toda decisão jurídica concreta seja a “aplicação” de uma disposição jurídica abstrata a uma “constelação de fatos” concreta; 2) que para toda constelação de fatos concreta deva ser possível encontrar, com os meios da lógica jurídica, uma decisão a partir das vigentes disposições jurídicas abstratas; 3) que, portanto, o direito objetivo vigente deva constituir um sistema “sem lacunas” de disposições jurídicas ou conter tal sistema em estado latente, ou pelo menos ser tratado como tal para fins da aplicação do direito; 4) que aquilo que, do ponto de vista jurídico, não pode ser “construído” de modo racional também não seja relevante para o direito; 5) que a ação social das pessoas seja sempre interpretada como “aplicação” ou “execução” ou, ao contrário, como “infração” de disposições jurídicas (...) (Weber, 1999: 13).
Dentre os elementos que aos olhos de Weber ameaçam a racionalização
formal do direito, vale nos referirmos, primeiramente, aos direitos particulares ou especiais
aplicáveis a certas classes profissionais ou econômicas. Por um lado, essa
compartimentalização não contradiz o direito formal e decorre da crescente diferenciação
econômica e profissional que, conforme a pressão dos interesses, exige tribunais e
procedimentos específicos mais adequados para tratar de assuntos jurídicos especializados
(daí a emergência de novos ramos do direito positivo). Mas essa particularização se faz
acompanhar pelo anseio de alcançar uma resolução rápida e adequada ao caso concreto, em
detrimento dos rigores de procedimentos jurídicos formais, ou seja, interesses materiais
tentam minar o formalismo jurídico.
Outras tendências de dissolução do direito formal, embora de caráter
estritamente técnico, encontram-se no princípio da “livre apreciação das provas”, ou em
categorias éticas como “boa-fé” e “bons costumes comerciais”, que, por pressões advindas
do intercâmbio econômico, invadiram a ceara jurídica.
O autor menciona também que os interessados na aplicação do direito
orientam-se no sentido econômico ou prático, mas a lógica jurídica não raro os frustra, o
que, segundo Weber, não se trata de uma insensatez da jurisprudência moderna, mas sim
de uma “conseqüência inevitável de ser a legalidade intrínseca à lógica de todo
pensamento jurídico formal inconciliável com as ações juridicamente relevantes dos
interessados e com seus acordos, fechados para obter efeitos econômicos orientados em
expectativas economicamente qualificadas” (Weber, 1999: 146). Em outros termos,
43
podemos concluir que, embora constate o desenvolvimento de demandas por maior
responsividade do direito, como descrevem Nonet e Selznick (1978), Weber defende aqui,
implicitamente e de forma normativa, o direito positivo e sua aplicação dogmática.
Os conflitos de classe são uma ameaça, pois potencializam demandas materiais
dos trabalhadores frente ao direito. Conjuga-se a esta ação o trabalho de ideólogos do
direito que defendem um direito lastreado por postulados éticos de justiça e dignidade
humana. São pressões por justiça material em lugar da legalidade formal.
As formulações de operadores do direito também reivindicam a atividade
criativa do juiz ao aplicar o direito ao caso concreto. Ou sustenta-se a superioridade dos
precedentes judiciais ante normas objetivas fixadas racionalmente, ou ainda a prevalência
de interesses concretos, segundo uma racionalidade quanto a fins, em detrimento das
normas jurídicas. Weber entende que essas idéias contrárias ao direito formal representam
a resistência dos operadores do direito a uma situação de autômatos ou simples intérpretes
de parágrafos e contratos. São frutos da própria racionalização crescente da técnica jurídica.
Note-se que, para o autor, o direito formal refere-se ao direito legislado,
representando a codificação o ápice da racionalização formal. Essa observação é relevante,
pois confirma que as demandas por justiça material caracterizam uma tendência moderna e
não especificamente econômicas ou capitalistas. Prova disso, para Weber, é que o
pensamento jurídico inglês continuava como uma arte empírica “apesar de toda a
influência pela exigência cada vez mais rigorosa de uma instrução científica (...) Além
disso, [nele] conservou-se, de forma sensível, o genuíno caráter carismático da aplicação
do direito (...). Na prática, os precedentes judiciais têm peso extremamente diverso, e não
apenas, como ocorre por toda parte, segundo a posição hierárquica da instância, mas
também segundo a autoridade pessoal do juiz individual” (Weber, 1999: 149) 13.
Além de motivos de ordem política e de cunho profissional, há outros que
infundem critérios “irracionais” de julgamento em meio ao direito formal, como é o caso
do tribunal do júri, composto por leigos. Mas ainda outra ameaça pesa sobre uma justiça
profissional criminal, conquanto procedimentos racionais podem esbarrar na incapacidade
técnica de outras ciências, como a psiquiatria, inviabilizando a consecução de um veredito
conforme ao direito formal.
Se já falamos de tendências e interessados na racionalização material do direito,
por que e a quem interessaria a manutenção do direito e da justiça estritamente formalistas? _______________________________________________________________________________________ 13 Sobre as tendências contemporâneas de convergência entre os sistemas de direito romano e de Common Law, confira-se Cappelletti (1993).
44
Weber (1999) firma que a justiça formal, preocupada com meios de prova racionais e com
uma fundamentação lógica da sentença, comporta uma luta regulamentada de interesses
das partes, com probabilidade ótima de averiguar a verdade. Mas o caráter abstrato do
formalismo jurídico, ao deixar liberadas as desigualdades de poder econômico, pode
resultar em violações de ideais materiais de justiça. No entanto, a justiça formal constitui
obstáculo tanto a poderes autoritários, já que reduz a dependência do indivíduo frente à
graça e ao poder arbitrário de autoridades, como à democracia, já que diminui a
dependência prática dos indivíduos ante seus concidadãos. Assim, se os economicamente
poderosos podem ter interesse no formalismo jurídico, também o terão “todos os portadores
ideológicos de tendências que pretendem justamente a ruptura da sujeição autoritária ou
dos instintos irracionais das massas, em favor do desenvolvimento das possibilidades e
capacidades individuais, [pois] costumam ver precisamente neste caráter abstrato uma
vantagem decisiva da justiça formal, e na justiça não-formal, ao contrário, apenas a
possibilidade de um arbítrio absoluto e de inconstância subjetivista” (Weber, 1999: 103)
Igualmente, terão interesse todas empresas econômicas e políticas de caráter racional
interessadas na constância e calculabilidade proporcionadas pelos procedimentos jurídicos
alheios a ingerências “irracionais”.
É certo que o direito formal pode potencializar as liberdades e gerar
calculabilidade e constância. Weber parece muito preocupado com movimentos
autoritários ou manifestações de massa perturbadoras da liberdade individual e da
racionalidade que ele gostaria de ver regendo a sociedade. Weber oscila entre, de um lado,
uma defesa do formalismo jurídico como mecanismo de proteção da liberdade e, de outro,
o ceticismo, ao reconhecer que o formalismo não mina a manifestação de poderes coativos,
mesmo que de natureza diversa daquela do “Antigo Regime”.
Analisemos então a opinião de Durkheim. Para esse autor, a conformação do
direito tem íntima relação com a realidade moral que serve de base às instituições políticas e
sociais modernas: o individualismo. A proteção ao indivíduo não se limita à sua integridade
física e psíquica, mas se aplica às coisas com as quais ele trava relações legítimas, pois o
individualismo é inviável se não acompanhado de uma esfera material de ação.
Se na pessoa residem os caracteres fundadores da propriedade, como o
caráter sagrado da pessoa pode ser transmitido às coisas? Para responder, Durkheim se
reporta às duas principais formas de aquisição da propriedade: o contrato e a herança.
Enquanto o primeiro afina-se ao mundo moderno, a segunda é uma reminiscência da
propriedade coletiva, destinada a perder importância.
45
As obrigações contratuais provinham, em tempos antigos, não da
manifestação de vontade, mas sim de determinadas solenidades ou da tradição da coisa.
Embora o progresso econômico exigisse o contrato consensual, observou-se uma lenta
evolução até alcançá-lo. As solenidades paulatinamente foram reduzidas e substituídas por
outros meios eficientes de manter a declaração empenhada, até se perfazer o lastro legal
que a torna irrevogável. Destarte, o contrato não tem a mesma força obrigatória do contrato
solene de antanho, mas é exatamente sua pouca rigidez e agilidade na celebração que mais
se adaptam à vida econômica moderna.
Vale lembrar que os contratos real (tradição da coisa) e solene
correspondem a uma fase em que os direitos individuais eram parcamente respeitados,
figurando a manutenção da autoridade pública como elemento mais importante:
o laço preciso, presente no contrato, não possuía caráter moral muito pronunciado; só veio a adquiri-lo no contrato consensual, por isso que, nesse contrato, é ele o tudo na relação formada. A sanção dos contratos consiste, então, essencialmente, não em vingar a autoridade pública da desobediência, como no caso do devedor recalcitrante, mas em assegurar, às duas partes, a plena e direta realização dos direitos adquiridos (Durkheim, 1980: 182).
A estrutura interna dos contratos também se modificou, já que, em lugar da
forma, prevalece a vontade das partes. Contratos consensuais exigem a boa fé dos
contratantes. No entanto, Durkheim reconhece que a tendência moderna mais recente
sobrepõe cada vez mais uma condição ao contrato consensual: a eqüidade. Não basta nos
certificarmos do estado subjetivo das partes ao manifestarem sua vontade, a validade dos
compromissos depende das conseqüências objetivas (ou materiais) que deles decorrem.
Logo, se o contrato consensual sucedeu ao solene, o eqüitativo sucederá ao consensual.
Durkheim (1980) lembra que, de certo modo, sempre estamos sujeitos a
certo grau de coerção, daí ser difícil estabelecer quando manifestamos livremente nosso
consentimento. “Premido pela doença, sou obrigado a recorrer a médico cujos honorários
são muito altos; fico tão constrangido a aceitá-lo quanto se tivesse a faca no peito. Seria
possível multiplicar os exemplos” (idem: 190). Ademais, o autor sustenta que a
condenação de contratos obtidos mediante violência não reside na supressão da livre
volição de um dos contratantes, mas na lesão imerecida e injusta a que submetido. Por isso,
prefere o contrato eqüitativo, pois com ele não só as injustiças decorrentes de atos de
violência são condenáveis, mas também expedientes e situações desfavoráveis que
impliquem trocas injustas, segundo o estado de opinião corrente na sociedade.
46
Em seu tempo, o autor reconhece que esses juízos de justiça e eqüidade
pouco influíam no direito positivado, tendo ainda caráter moral. Legalmente eram
repudiados contratos de usura, mas a pressão dessas aspirações morais dirigia-se contra
contratos perversos e tendia cada vez mais a positivar-se. Os novos direitos então fixados,
pensa Durkheim, não necessariamente promoveriam maior eficácia nos processos de
trabalho ou maior ordem social, mas seriam tentativas de combater situações iníquas.
Há quem proteste e diga que assim se conferem ao operário verdadeiros privilégios. Em certo sentido, nada de mais verdadeiro; são esses privilégios, todavia, destinados a contrabalançar, em parte, os privilégios contrários, dos quais goza o patrão, e que o poriam em condições de depreciar, à vontade, os serviços do trabalhador. Não examino, aliás, a questão de saber se esses processos têm a eficácia a eles atribuída: pode dar-se não sejam os melhores, ou, até, vão contra o objetivo proposto. Não importa, baste-nos constatar as aspirações morais que os sugeriram, e das quais provam a realidade (Durkheim, 1980: 193).
Exige-se cada vez mais o equilíbrio contratual, porque os sentimentos
igualitários ganham força progressivamente. Segundo o autor, conforme os preconceitos do
passado forem se esvaindo, seremos mais sensíveis às dores humanas; e às privações e
sofrimentos daqueles considerados mais nobres não será conferido peso tão maior do que o
conferido aos padecimentos das classes inferiores. Portanto, Durkheim reconhece um
processo social que é condição para a universalização da cidadania. Um processo que não
será curto, nem simples, mas que merece nosso empenho no sentido de encontrarmos a
mais equilibrada proporção, de acordo com o nosso atual senso de justiça 14.
Durkheim pontua alguns elementos nesse processo. Assim, reconhece a
herança como um grande obstáculo, pois introduz desigualdades que não decorrem do
mérito, viciando de início todo o regime contratual. Afinal, enquanto ricos de nascença
podem celebrar contratos em busca do viver melhor, os pobres de nascença podem ser
forçados a aderir a contratos apenas para viver. Instauram-se, na base, condições leoninas.
Mas reforça a convicção de Durkheim o próprio avanço do individualismo, pois, se a
propriedade individual começa e acaba com o indivíduo, a transmissão testamentária é
contrária ao espírito individualista. A família tem mesmo se decomposto ao longo de
gerações, tendendo a tornar-se órgão secundário. O autor vislumbra que as corporações
profissionais poderão se tornar os grupos mais competentes para administrar as riquezas
individuais, pois não se encontram tão distantes do indivíduo como o Estado.
_______________________________________________________________________________ 14 Lembre-se a opinião negativa de Durkheim sobre o princípio majoritário. Desse modo, esse senso de justiça refere-se a algo presente na consciência coletiva, filtrada reflexivamente pelo Estado, com o auxílio das corporações.
47
Note-se que o ideal de sociedade de Durkheim não se restringe a um mundo
que só tenha espaço para desigualdades de mérito. O autor reconhece na moral humana
deveres de justiça (distributiva e retributiva) e deveres de caridade. Nos primeiros, exige-se
que o indivíduo não seja obrigado a dar mais do que recebe e não se considera a existência
de desigualdades de origem não social (como a diferença de inteligência). Aceitam as
desigualdades de mérito. Mas os deveres de justiça são insuficientes, haja vista que, se
apagam desigualdades fortuitas como o nascimento, não afastam, no nosso exemplo,
desigualdades de inteligência, que também comportam diferentes sortes individuais. Com o
dever de caridade mesmo as desigualdades de mérito se apagam e prevalecem os sentimentos
de fraternidade humana. Mas a prevalência desse ideal, que poderia conduzir a um
igualitarismo completo, é impossível em seu tempo, adianta Durkheim (1980).
Nonet e Selznick (1978) desenvolvem um quadro analítico-comparativo das
experiências “sócio-legais” da modernidade ocidental. Assim, apontam três configurações.
Uma primeira em que a lei serve a um poder repressivo; outra em que a lei se diferencia
em instituições hábeis a controlar a repressão e proteger a integridade legal; e uma terceira
onde a lei promove maior responsividade às aspirações e demandas sociais. Constituem-se
como concepções abstratas, cujos referenciais empíricos não são facilmente apreensíveis.
Além de distinguir esses três tipos de direito (configurações sócio-legais),
repressivo, autônomo e responsivo, os autores defendem que cada qual constitui um
estágio de evolução do direito face à ordem social e política. Logo, reconhecem uma
pluralidade de experiências legais e fixam como estratégia analítica, uma concepção
evolutiva. O direito contemporâneo contém, portanto, elementos de cada um dos tipos de
direito, o que não afasta a identificação de uma linha evolutiva.
O direito repressivo foi o primeiro, pois lidou com o problema da fundação
da ordem política. A partir desse estágio o direito autônomo pôde se desenvolver no
sentido de controlar o poder repressivo pelo “governo das leis”. E sobre os fundamentos
desse segundo estágio, o direito responsivo emergiu a fim de criar mecanismos de
autocorreção das instituições jurídicas, atendendo às demandas sociais, ainda que em
detrimento do formalismo jurídico (Nonet e Selznick,1978; Eisenberg, 2003).
Essa evolução não significa que, por exemplo, o direito responsivo seja
inerentemente preferível ao direito repressivo, ou ao autônomo, pois o modelo de direito,
para ser funcional, deve ser compatível com os valores e características gerais da
organização sócio-política em que atua. Mas ele será sim preferível numa sociedade que
experimenta um alto grau de modernização e democratização.
48
No direito repressivo, é máxima a fragilidade (ou mesmo ausência) de
integridade do direito, pois este se encontra integrado à política. O direito serve como um
instrumento, uma ferramenta flexível ao sabor dos impulsos de conservação do poder das
autoridades, à garantia de privilégios e à vontade dos vencedores. Mas o direito tem uma
capacidade limitada de assegurar a legitimidade do poder, pois se encontra maculado na
base pela subordinação: o poder repressivo é o que de fato atua.
Essa configuração não se torna problemática enquanto é grande a passiva
aquiescência aos ditames do poder. No entanto, quando a estabilidade da ordem social
passa a depender mais do consenso e são ampliadas as demandas por controle do poder,
emerge o direito autônomo para suprir as fragilidades do direito repressivo.
Tem-se a primeira transição: do direito repressivo ao direito autônomo. Este
surge como um recurso para controlar o poder repressivo, satisfazendo aspirações políticas
e legais. Emergem instituições legais especializadas e com relativa autonomia para
vindicar sua supremacia dentro de certas esferas de competência previamente definidas.
O direito autônomo conforma de fato uma estratégia de legitimação. Ao
passo que restringe o exercício do poder, também o protege de revoltas e de críticas
potenciais, visto que fornece fundamentos para aquele exercício e transfere para
instituições especializadas a certificação da legitimidade, assentando-se assim o papel
revisional das Cortes. O direito separa-se da política. O sistema judiciário se torna
independente, estabelecendo-se uma clara demarcação entre as funções judiciais e
legislativas 15. Girando sobre o arcabouço legal, o direito autônomo confere independência
às instituições jurídicas, mas se subordina às políticas inscritas na ordem legal. Se não atua
mais como uma massa amorfa a serviço das autoridades, converge com o direito repressivo
por permanecer firmemente identificado ao Estado. Pode-se concluir que, no direito
autônomo, a integridade do direito é máxima (ou maior), enquanto é muito restrita sua
abertura às demandas sociais, canalizadas para as instituições políticas representativas.
Ocorre que, restringindo a autoridade dos governantes e fixando as
obrigações dos cidadãos, o direito autônomo acaba encorajando posturas críticas que
tendem a minar o “governo da lei”. Uma série de pressões, expectativas e oportunidades
passam a ser vislumbradas, atuando no sentido de quebrar a autonomia e reintegrar o
direito à política e à sociedade. A longo prazo, configura-se uma dinâmica de mudança, dando 15 No direito autônomo os reclames por justiça substantiva não assumem o primeiro plano; justiça e regularidade consubstanciadas no formalismo jurídico merecem a ênfase da ordem jurídica. A obediência à lei firmada pelo direito positivo serve de norte, enquanto as críticas às leis devem afluir para o processo político. “Procedimento é o coração da lei” (Nonet e Selznick, 1978: 54).
49
curso a expectativas de que o direito (e a lei) possa responder flexivelmente aos novos
problemas e demandas sociais (maior abertura do direito). O direito responsivo emerge
como possibilidade de abertura institucional e legal hábil a satisfazer de forma mais eficaz
e eficiente os reclames sociais.
Conforme o modelo de direito responsivo, a boa lei, mais do que promover
um procedimento justo, também precisa ser competente para auxiliar na definição do
interesse público e no compromisso a dar lastro à concretização da justiça substantiva. A
contrapartida negativa pode ser a perda de integridade do direito, consubstanciada na
incapacidade da lei em restringir o poder das autoridades e fixar as obrigações e a
obediência dos cidadãos. Esse resultado perverso seria fruto do enfraquecimento das
normas procedimentais e da excessiva problematização das regras em geral. Pode então
instaurar-se um estado onde cada qual faz o quer, com o perigo de um estado de natureza
hobbesiano, ou de regredir-se à repressão desmedida e sem controle.
Como dito, o direito responsivo, mais que preso ao formalismo jurídico,
atém-se aos fins substantivos. “Ele percebe as pressões sociais como recursos de
conhecimento e oportunidade para autocorreção” (Nonet e Selznick, 1978: 77). Esse
centramento promove maior racionalidade ao pensamento jurídico. Contudo, torna-se mais
difícil distinguir a análise legal da análise política, ou a racionalidade legal de outras
formas sistemáticas de construir decisões. Mas isso não deve degenerar para uma confusão
entre política e direito, como no período repressivo. A integridade deve ser mantida.
Para a finalidade ganhar autoridade tanto afirmativa quanto crítica, a lei precisa ser hábil a elaborar, à medida que se generaliza [devido à abertura], os mandatos das instituições legais. Portanto, uma fase crítica do direito responsivo é a definição de missão, isto é, a tradução do fim geral em objetivos específicos (Nonet e Selznick, 1978: 83).
Outro ponto fundamental para os fins substantivos refere-se à existência de
recursos, sem o quê a produção normativa por si só é insuficiente. Aqui se torna ainda mais
patente a necessária combinação entre autoridade legal e vontade política. Os autores
conjugam a eficácia e efetividade do direito responsivo a uma ética da responsabilidade,
além do já referido alto e crescente grau de democratização da sociedade. Pode-se então
afirmar que sem uma cultura cívica espraiada pelo tecido social parece impossível o
sucesso do direito responsivo. Por seu turno, ele promove civilidade. “O direito voltado
para os fins contribui para a civilidade porque ele é informado por uma ética da
responsibilidade, e não por uma ética da convicção” (Nonet e Selznick, 1978: 91).
50
Ademais, nos termos do direito responsivo, hábil a fundar a lei só aspirações
mais gerais, o que afasta a observância de normas de conduta específicas (paroquialismo).
E as crises ou desafios à ordem pública fornecem os parâmetros que podem fortalecer a
integração social. Essa sensibilidade o direito responsivo compartilha com o repressivo
(diferentemente do direito autônomo). “Direito repressivo e responsivo estão mais
interessados nos resultados, e, portanto, mais prontos para dispor de recursos políticos”
(Nonet e Selznick, 1978: 93). Mas, enquanto no direito repressivo a ordem legal é conquistada
pela subordinação, no direito responsivo ela é negociada. De fato, com maior
democratização, torna-se possível um maior compartilhamento de obrigações. Aqui se acentua
sua distinção frente ao direito autônomo, centrado nas normas e no modelo burocrático e
concebendo a ordem legal como hierárquica e unitária. Ao contrário, o direito responsivo
conjuga aos fins substantivos uma pluralidade de motivos, ou seja, uma multiplicidade e
ampla difusão de recursos para a produção de direitos. Um efeito do direito plural é o de
multiplicar as oportunidades para participação no processo legal de construção do direito.
Os autores citam o exemplo da advocacia social nos Estados Unidos. Os
advogados invocaram a autoridade e fóruns legais como uma alternativa de participação
política. Levantando questões sociais candentes, buscavam não uma manifestação de
vontade política, mas sim uma proclamação (entitlement) legal dos direitos. Tem-se uma
participação não através dos mecanismos representativos inscritos no Poder Legislativo,
mas via Poder Judiciário, podendo dirigir-se também ao Poder Executivo.
Esse quadro exige instituições competentes, conforme um modelo pós-
burocrático de organização, menos rígido, mais aberto à participação, e que transforme as
demandas em recursos para atingir resultados. Mas há aí novos perigos. A participação
ampliada pode tornar precária e problemática a definição e proteção do interesse público,
na medida em que as instituições tornam-se “(1) mais vulneráveis aos desequilíbrios de
poder na sociedade e (2) mais facilmente recaem num foco estreito de preocupações
específicas” (idem: 102). A abertura pode, mais uma vez, minar a integridade, e a
responsividade transformar-se em oportunismo e/ ou repressão arbitrária.
2.4 - Uma Utopia Pós-Moderna
Para Santos (2001), as sociedades capitalistas são formadas por constelações
políticas, jurídicas e epistemológicas, cada qual dividida em seis modos de produção de
51
poder, de direito e de conhecimento 16. Assim, o autor apresenta um mapa de estrutura-ação
dividido em seis espaços: doméstico, de produção, de mercado, da comunidade, da
cidadania e mundial. A distinção e a autonomia estrutural dos seis espaços decorreram de
um longo processo histórico, diferenciado segundo o centro, a periferia e a semiperiferia
do sistema mundial. Esse quadro não afasta a centralidade do poder do Estado, do direito
estatal e da ciência moderna, mas reconhece que eles funcionam em articulação com formas
de poder e de direito não estatais e formas de conhecimento não científico.
O autor sustenta que, embora seja consensual a interpretação de que, ao
reivindicar o controle exclusivo sobre um território, o Estado moderno fundiu os espaços
da cidadania e da comunidade, este último se manteve autônomo como locus de relações
sociais, em especial nas sociedades periféricas. Menciona inclusive que “Nos Estados
islâmicos, organizados segundo a lei islâmica, a Shari’a, pode até afirmar-se que, em
oposição à experiência ocidental, foi o espaço da comunidade que absorveu o espaço da
cidadania” (Santos, 2001: 276).
Enquanto o espaço da cidadania é organizado pela obrigação política
vertical (relação Estado/ cidadão), o espaço da comunidade usualmente observa obrigações
políticas horizontais (relação cidadão/ cidadão, família/ família, clã/ clã), firmadas na
identidade de seus membros. Como a identidade opera segundo o dualismo inclusão x
exclusão, ou seja, envolve o poder de definir o “outro”, compreende-se a existência de
lutas entre definições imperialistas e definições subalternas de identidade. Não raro se dá
uma atribuição de significado determinista a características particulares de grupos sociais,
levando ao racismo e a discriminações diversas (etnocentrismo, xenofobia, sexismo,...).
No espaço da cidadania, a dominação é a forma de poder. Refere-se ao
poder político, nos termos das teorias liberal e marxista. É a forma de poder mais
institucionalizada, mais auto-reflexiva (pois se “vê” como forma de poder) e mais “espalhada”
entre as demais constelações de poder.
Se o autor fala em formas de poder, também distingue formas de direito:
doméstico, da produção, da troca, da comunidade, territorial (estatal), e sistêmico 17. Para
Santos (2001: 171), “o direito estatal, por muito importante e central, foi sempre apenas uma _______________________________________________________________________________________ 16 Confira-se o quadro no Anexo, onde são discriminadas as diferentes formas de direito, de poder e de conhecimento, segundo o modelo analítico de Boaventura de Sousa Santos (2001). 17 Entende-se como direito “um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados justificáveis num dado grupo social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a sua resolução através de um discurso argumentativo, articulado com a ameaça da força” (Santos, 2001: 290).
52
entre as várias ordens jurídicas integrantes da constelação jurídica da sociedade; embora as
diferentes constelações do sistema mundial variassem muito do centro para a periferia,
combinaram sempre as ordens jurídicas estatal, supra-estatal e infra-estatal”. Mas, dado o
amplo aceite na cultura jurídico-política e no senso comum da associação direito/ Estado,
propor um pluralismo jurídico equivale, nos termos do autor, a des-pensar o direito;
esforço que demanda novos instrumentos analíticos hábeis a superar o dualismo Estado/
sociedade civil.
As diferentes formas de direito se articulam e se hibridizam, assumindo uma
configuração específica em cada ordem jurídica. Assim, por exemplo, na periferia do
sistema mundial, a intervenção jurídica do Estado no agregado doméstico foi mais fraca e
menos diversificada que nos países centrais. Boaventura acrescenta que, atualmente, dada a
crise do Estado regulador, observa-se um relativo enfraquecimento do direito estatal
acompanhado pelo fortalecimento dos demais tipos de direito, especialmente do direito da
produção, com a “desregulamentação” das relações trabalhistas, e do direito doméstico, já
que a redução e a degradação de serviços e prestações sociais levaram a retrair o alcance e
a intensidade da penetração jurídica do Estado no espaço doméstico.
O direito territorial ou estatal é o direito do espaço da cidadania. Central nas
sociedades modernas, seu caráter arbitrário inicial foi-se dissipando ao longo dos últimos
duzentos anos, invadindo o cotidiano dos indivíduos e de diferentes grupos sociais. Seu
valor é estratégico exatamente por ter se disseminado através dos diferentes espaços
estruturais. Vale ainda mencionar o direito sistêmico, a forma de direito do espaço
mundial, constituído pelas regras que organizam a hierarquia centro/ periferia e as relações
entre os Estados-nação no sistema inter-estatal. Nesse sentido, as lutas emancipatórias
transnacionais pelos direitos dos grupos sociais oprimidos de todo o mundo voltaram-se
contra essa forma de direito, que, afinal, regula a troca desigual. Por isso, conclui o autor,
um direito cosmopolita precisa ser um direito anti-sistêmico.
O quadro teórico proposto por Santos (2001) tem implicações políticas.
Dadas as diversas constelações, o autor firma a autonomia de lutas específicas (feminismo,
sindicalismo, minorias,...), mas, em razão da interação entre as diferentes constelações,
apregoa que as lutas emancipatórias devem estruturar-se em rede. Essa é a condição para
viabilizar um projeto de radicalização da democracia.
Reconhecer a existência de constelações de direitos que aprofundam a vulnerabilização de certos grupos sociais é de extrema importância, quer sociológica, quer politicamente, pois assinala a necessidade de a resistência contra exercícios de poder duplamente legitimados dever exercer-se contra
53
todas as ordens jurídicas envolvidas. (...) Além disso, o reconhecimento das constelações de direitos equivale a reconhecer que as práticas e as lutas emancipatórias têm também de se articular em rede e de se constelar se quiserem ser bem sucedidas. Caso contrário, uma luta isolada contra uma dada forma de regulação pode, involuntariamente, reforçar outra forma de regulação (Santos, 2001: 303).
Boaventura reconhece que, como forma de poder, a dominação presente nas
sociedades democráticas liberais é a menos despótica, já que sujeita a regras e controles
democráticos, a partir de direitos civis, políticos e sociais assegurados constitucionalmente.
O problema é que, a partir do século XIX, o ímpeto democratizante teve de ceder aos
imperativos do capitalismo, convertido no motor de desenvolvimento das sociedades
modernas. Então, muitas relações sociais não puderam ser reguladas conforme as
demandas democráticas radicais da modernidade. Ao contrário, em certos âmbitos as
relações sociais tornaram-se ainda mais despóticas, como no espaço da produção. O caráter
universal das exigências democráticas não sucumbiu, mas se aplicou apenas a um campo
relativamente restrito de relações sociais: o espaço da cidadania. “Daí que o despotismo
[das outras] formas de direito e de poder tenha permanecido invisível enquanto despotismo
jurídico e político e que, conseqüentemente, não tenha podido ser comparado ou
confrontado com o caráter relativamente democrático do direito e do poder do espaço da
cidadania” (Santos, 2001: 315). Para o autor, as sociedades capitalistas são pouco
democráticas não porque o direito de cidadania seja pouco democrático, mas porque ele
convive com outras formas de direito mais despóticas e essenciais ao funcionamento
dessas sociedades.
Vislumbrando um quadro de transição paradigmática, o autor formula
utopias para reinventar mapas de emancipação social e subjetividades com capacidade e
vontade de usá-los. Nesse contexto, o espaço da cidadania é fundamental para se travar
lutas que garantam experiências emancipatórias. A luta envolve, portanto, uma reinvenção
do Estado, pois exige que este, ao invés de impor formas de sociabilidade, crie condições
para que sociabilidades alternativas sejam experimentadas em cada um dos seis espaços
estruturais. Apresentaremos alguns componentes do horizonte utópico do autor.
No espaço doméstico, há contradição e competição entre o paradigma
dominante da família patriarcal e o emergente das comunidades domésticas cooperativas,
onde a autoridade é partilhada, em termos de sexo e geração, e o direito doméstico é
democratizante. O Estado deve atuar promovendo as últimas.
54
No espaço da comunidade, o embate ocorre entre o paradigma de
comunidades-fortaleza e o paradigma das comunidades-amiba. No primeiro caso, têm-se
comunidades exclusivas, agressiva ou defensivamente, ou seja, fechadas ao exterior a
partir de critérios de identidade. Comunidades indígenas servem como exemplo defensivo,
enquanto sociedades colonizadoras de exemplo agressivo. As comunidades-amiba, ao
contrário, são marcadas por uma identidade múltipla e inacabada e um constante processo
de construção e reinvenção. Por isso, são inclusivas e permeáveis a contatos interculturais.
São exemplos movimentos de defesa dos direitos humanos em todo mundo, movimentos
populares latino-americanos, bem como comunidades eclesiais de base. Nesse caso, o
Estado deve atuar para garantir a proliferação de comunidades-amiba, para o que uma
primeira medida de experimentação social pode ser erigir o multiculturalismo como
princípio base de toda a atividade estatal.
A democracia radical caracteriza o paradigma emergente e envolve a
democratização global das relações sociais, observando tanto a obrigação política vertical
cidadão/ Estado, como a obrigação política horizontal entre cidadãos e associações. Nesse
sentido, a democratização do espaço da cidadania só assume contornos emancipatórios se
conjugada à democratização de todos os demais espaços estruturais, e mais: a cidadania só
é sustentável caso transcenda o espaço da cidadania. “O paradigma emergente constitui,
portanto, uma ampla expansão e dispersão do direito democrático, dos direitos humanos e
da cidadania. Por exemplo, os direitos e os deveres consagrados pelo direito do espaço
doméstico não se confundem com os direitos e os deveres consagrados pelo direito estatal
da família, mas o potencial democrático de cada um dos tipos de direitos e deveres resulta
da articulação entre eles” (Santos, 2001: 340).
Ademais, a democracia deve abranger os espaços-tempo local, nacional e
transnacional e tanto no tempo presente como em relação às gerações futuras. Para efetuar
essa transição, ao Estado compete transferir prerrogativas suas a associações e instituições
não-estatais que, por seu compromisso com a democracia e com a participação política,
promovam espaços públicos não-estatais, propícios às formas emergentes de sociabilidade.
No espaço mundial, em lugar do desenvolvimento desigual e da soberania, o
paradigma emergente deve pugnar por soberanias permeáveis e pelo fim da hierarquia
Norte-Sul, com uma globalização contra-hegemônica baseada no cosmopolitismo.
Instâncias parciais de governança transnacionais e governos articulados em rede podem
contribuir para que novas formas de sociabilidade internacional aflorem.
55
Frise-se que, à luz das propostas utópicas, a competição entre os paradigmas
moderno e pós-moderno não se afina a rupturas revolucionárias. Ademais,
deve-se ter sempre em mente que a experimentação social não é levada a cabo por vanguardas que representem algo mais para além de si próprias. É antes levada a cabo por grupos sociais inconformados e inconformistas que, por um lado, se recusam a aceitar o que existe só porque existe e, por outro, estão convictos que o que não existe contém um amplíssimo campo de possibilidades. Na transição paradigmática, o inconformismo é, em si mesmo, uma mera semi-legimitidade que se vai completando com a ampliação do círculo do inconformismo (Santos, 2001: 343).
56
Capítulo 3: Modernidade Periférica – O caso brasileiro
Após deslindarmos os contornos da modernidade central, cumpre ressaltar
as peculiaridades que marcaram nosso desenvolvimento sócio-histórico. Afinal, serão esses
elementos que explicarão em grande medida o desenvolvimento diverso observado pela
cidadania no Brasil, em comparação aos países centrais.
Inicialmente, vale trazermos à baila Raízes do Brasil, obra originalmente
publicada em 1936, onde Sérgio Buarque de Holanda (2002) destaca a presença de raízes
ibéricas em nossa formação. Cultura da personalidade, ausência de espírito associativo,
falta de hierarquia organizada e de coesão, todos são elementos que se conjugam na
evolução dos povos ibéricos e, por conseqüência, do brasileiro.
Entre espanhóis e portugueses, hierarquias baseadas em privilégios,
sobretudo hereditários, tinham menos valor que o prestígio pessoal. “Nunca [espanhóis e
portugueses] se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a
responsabilidade individuais não encontrassem pleno reconhecimento” (Holanda, 2002:
37). A valorização da pessoa e da autonomia individual conformava uma cultura da
personalidade pouco propícia a formas associativas fundadas em laços solidários ou a
estruturas racionalmente hierarquizadas. Prevalecia a frouxidão organizacional, e o
privatismo anárquico figurava como elemento congênito à nossa formação societal, sendo
inútil buscar ordem na “tradição”. À falta da racionalização da vida gerada pelo
protestantismo, o governo agiu como princípio unificador, forjando uma “organização
política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos,
encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares” (idem: 38).
Para o autor, a solidariedade fundada em relações de interesse promove
ordem. Mas entre os ibéricos a solidariedade advinha da vinculação de sentimentos, o que,
somada à autarquia individual e ao culto da personalidade, minava a eclosão de
compromissos fundados em interesses, os quais têm relação com o esforço humilde e
anônimo característico de uma ética do trabalho. Por isso, a produção de um bem maior
não raro exigia dos ibéricos a renúncia à própria personalidade. Nesse sentido,
mandonismo e obediência são características antitéticas que convivem entre si. “Não existe
(...) outra sorte de disciplina perfeitamente concebível, além da que se funde na excessiva
centralização do poder e na obediência” (Holanda, 2002: 39). Ora, num mundo moderno,
57
que demanda crescentemente ações e relações racionalizadas, a obediência “cega” afigura-
se indesejável como princípio de disciplina.
Na esfera dos negócios, não se podia chegar a uma adequada racionalização.
As preferências se erigiam contra aplicações regulares de normas de justiça e de
prescrições legais. Ainda, os empreendedores não se mostravam capazes de se associarem
livre e duradouramente. É certo que trabalhos coletivos existiam, mas ocorriam em razão
de sentimentos e emoções coletivos, como em festas religiosas, ou em práticas como a do
mutirão, que não se liga à cooperação disciplinada e constante, mas sim à prestância, onde
importa mais o benefício que uma parte faz à outra. Nesse caso, o objetivo material do
trabalho vale menos que o vínculo entre os indivíduos. São vínculos de pessoa à pessoa.
Aqui vale reportar a cordialidade. Influência de padrões de convívio
forjados no meio rural e patriarcal brasileiro, trata-se de uma forma de expressão carregada
de emotividade, manifesta, v.g., na hospitalidade e generosidade que impressionam
estrangeiros. Para o autor, a civilidade contém algo de coercitivo, expresso em sentenças e
mandamentos. Por isso, a polidez serve ao indivíduo como reserva ante o social. Já a
cordialidade tem efeito reverso, pois nela o individualismo aparece “focalizado de outro
ângulo e se manifesta como relutância em face da lei que o contrarie. Ligada a ele, a falta
de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior” (Cândido, 2002: 17).
Para Holanda (2002), a distinção entre Estado e sociedade reside na
circunscrição de um espaço público, onde predominam aspectos coletivos e não interesses
pessoais assentados em laços íntimos ou familiares. Mas foram estes os que marcaram a
evolução de nosso sistema político-administrativo, caracterizado de patrimonial pelo autor,
em oposição ao moderno modelo burocrático weberiano firmado em laços formais e
abstratos. Mesmo quando instituições democráticas, assentadas em princípios neutros e
abstratos, regeram a sociedade, “as relações que se criam na vida doméstica sempre
forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós” (idem: 146).
Esses não são resíduos a-históricos, nem está em pauta um retrato estático.
O autor, em 1936, indicava que o processo de urbanização exigia atitudes que
transcendiam a mentalidade circunscrita ao meio patriarcal. Tendência que aumentava com
a ampliação da influência das cidades, não sem promover desequilíbrios sociais. Em
verdade, Holanda fala de uma sociedade em transição, dados os impactos da modernização
e indaga-se sobre a possibilidade dela lograr o êxito de países centrais.
A transição iniciou-se com a vinda da família real portuguesa em 1808. O
crescente cosmopolitismo do convívio citadino abria novos horizontes e assim firmava-se
58
gradualmente a distância entre a parcela culta e a massa da sociedade, fato evidente em
todos os momentos significativos da vida nacional (Holanda, 2002). Aliás, o autor nota que
os movimentos aparentemente reformadores sempre correram de cima para baixo.
Mas a abolição da escravatura, em 1888, foi o verdadeiro marco para a
eclosão da revolução brasileira, pois abriu caminho para o declínio do predomínio agrário e
a ascensão de um novo sistema baseado nos centros urbanos. Trata-se de uma revolução
lenta, ainda em curso em 1936, mas de rumo seguro, apontando para a modernização do
Brasil e a conseqüente mudança de nossa estrutura social. Dessa maneira, o iberismo, que
se confundia com o agrarismo, vê-se gradativamente reduzido, enquanto ascende a
influência americana, que, contudo, ainda não fora capaz de ocupar nossa “alma”.
Para o autor, essa revolução só terá êxito se compatível com a democracia.
Para isso, mais que a dissolução da sociedade agrária, devem ser extirpados os elementos
personalistas e aristocráticos de nossa sociedade. Só quando eliminadas as sobrevivências
arcaicas da velha ordem colonial e patriarcal, colheremos os frutos de nossa revolução,
quais sejam as conseqüências morais, sociais e políticas de uma modernização completa.
Por que eliminar o personalismo? Porque ele afina-se às conveniências
particulares, em detrimento das coletivas; e gera o predomínio do emotivo sobre o racional,
limitando a solidariedade a círculos restritos, compatíveis com uma ordem oligárquica. Nas
modernas sociedades de massa, ao contrário, a solidariedade deve assentar-se no interesse
econômico que une um grande número de indivíduos e permite a formação de partidos. Daí
nunca ter aqui vigido uma democracia efetiva, ao menos até 1936.
Portanto, o autor conjuga uma mudança cultural à reorganização política em
moldes democráticos. Trata-se de deixar aflorar relações de interesse, impessoais e neutras,
associadas à conformação de uma esfera pública livre dos privatismos e personalismos de
um regime oligárquico. Aí pode ter curso uma revolução vertical que, pela democratização
do poder, poderá trazer ao governo os elementos mais vigorosos do povo. Não se trata,
note-se, de adotar princípios exóticos ou teorias alienígenas e promover revoluções
horizontais, ou seja, manobras de cúpula, como freqüente na América Latina. “As formas
superiores da sociedade devem ser como um contorno congênito a ela e dela inseparável:
emergem continuamente das suas necessidades específicas e jamais das escolhas
caprichosas” (Holanda, 2002: 188).
Para o autor, é possível encontrar algumas características de nossa formação
nacional favoráveis à revolução moderna e democrática: a recusa a hierarquias ou
organizações que minem a autonomia individual; a irresistível urbanização, trazendo
59
influências cosmopolitas e modernas, usualmente aliadas de idéias democrático-liberais; e
a “relativa inconsistência” de preconceitos de raça e de cor 18. Esses aspectos não afastam a
liquidação das raízes como um imperativo histórico, cujo rumo era traçado pela
“civilização urbana e cosmopolita, expressa pelo Brasil imigrante [e] que há quase três
quartos de século vem modificando as linhas tradicionais” (Cândido, 2002: 20).
Já utilizada por Sérgio Buarque de Holanda (2002), também Raymundo
Faoro recorre à noção weberiana de patrimonialismo para explicar a conformação do
Estado e sociedade brasileiros. Mas se o primeiro autor identificou as raízes ibéricas e um
processo de modernização que as superava gradativamente, o segundo plasmou a idéia de
estamento, o qual se apossou do Estado e se reproduziu como sobrevivência a-histórica,
embora com roupagens diversas conforme o período 19.
Remontando à Revolução de Avis de 1383, o Estado patrimonialista 20 que
então se desenhava exigia um quadro administrativo, já que, além de arrecadar receitas, era
preciso administrar os negócios do Estado (ou melhor, da Coroa), que se incrementavam
ao ritmo do comércio marítimo. A Administração conformou uma corporação de poder,
que se estruturava em uma comunidade: o estamento.
Enquanto a classe, numa explicação de forte matiz weberiano, está
relacionada à agregação de interesses econômicos, segundo a situação de mercado; o
estamento compreende uma distribuição de poder, conforme a estratificação social, que,
para Faoro (2000), embora economicamente condicionada, não resulta na absorção do
poder pela economia. Enquanto os estamentos governam, assemelhando-se a órgãos do
Estado, as classes negociam, fixando-se como categorias sociais (de feição econômica).
A situação estamental consubstancia-se no prestígio e na honra social que
uma camada infunde sobre toda a sociedade. Esta consideração social é correlata a um
modo ou estilo de vida. Para um indivíduo se integrar ao estamento, ele deve possuir certas
qualidades, cunhadas em sua personalidade e que lhe conferem certo perfil. Assim, o
estamento tem na desigualdade social seu lastro, e o seu fechamento de comunidade provoca
_______________________________________________________________________________ 18 Nessa “relativa inconsistência” merece acento o “relativa”.
19 Schwarzman (2003) sustenta que essa visão a-histórica de Faoro o afasta em parte de uma interpretação propriamente weberiana.
20 Faoro esclarece que, na monarquia patrimonial portuguesa, o rei era senhor da riqueza territorial e dono do comércio, conduzindo a economia como empresa sua, elevando-se sobre todos os súditos. Nesse sistema, ao contrário da rigidez dos privilégios e obrigações feudais, os servidores prendem-se numa rede patriarcal, em que representam a extensão da casa do soberano. Os auxiliares formam quase que uma nobreza própria, competindo com a nobreza territorial. Assim, economia e administração conjugam-se na propriedade rural, ansiosa esta de se livrar das teias reais.
60
a apropriação de oportunidades econômicas, que pode se extremar no monopólio de
atividades lucrativas e de cargos públicos. Segundo Faoro, o estamento, além de impedir o
mercado de expandir sua virtualidade de negar as distinções pessoais, prima pela
estabilidade, pois transformações técnicas ou sociais podem enfraquecê-lo.
O autor nota que, no sistema colonial português, a burguesia comercial
desenvolveu-se sob o controle e dependência do Estado. A unidade do governo assentava
sobre dois feixes de funções públicas, mantendo a centralização e contendo as forças locais
autonomistas: o funcionário de origem cortesã e o agente local, ambos exercendo suas
atribuições em nome do rei. O cargo atraía todas as classes, pois infundia autoridade e
conferia acesso ao estamento, desiderato também partilhado pela burguesia.
Já independente o Brasil herda o domínio do estamento. Tanto o predomínio
da Coroa, baseado no Poder Moderador, como o voto manipulado, não seriam as teias
constitutivas do sistema político, e sim o estamento, em movimento renovador da tradição
e atropelando as teorias modernizadoras e liberais importadas. Ele, o estamento, se armou
por sobre as classes, mantendo o controle do Estado, burocratizando-se, dentro de um
quadro em que o emprego público conferia poder e glória. Além disso, o patrimonialismo
atuava na confusão entre público e privado que subjazia às leis e medidas administrativas.
À época, configurou-se um paradoxo que ainda nos auxilia a compreender a
cultura política brasileira. Segundo o autor, o Estado imperial firmou-se como entidade
superior e alheia ao povo, transmitindo-lhe a sensação de que o indivíduo nada podia,
enquanto ele, Estado, afigurava-se onipotente. A lógica era inversa ao ideal democrático de
que a soberania deveria fluir de baixo para cima. A camada dominante contrariava tal
ideal, sob o argumento de que a sociedade brasileira seria incapaz de governar a si mesma.
Firmava-se um círculo vicioso: “o povo não tem capacidade para os negócios porque o
sistema lhe impede neles participar” (Faoro, 2000a: 444).
Note-se que o domínio estamental guarda relação com a preponderância do
poder central. No entanto, mesmo na República Velha não houve autonomia local. O
principal era o comando estadual, sólido quando apoiado pelo Presidente da República,
conforme à política dos governadores. O governador tinha domínio das eleições
municipais, pois controlava os meios financeiros dos quais dependiam os municípios. Os
chefes locais, os coronéis, eram obedientes ao governador, o qual, além de intermediar,
quando o caso, favores entre a União e as comunas, valia-se da milícia estadual para
manter a ordem estabelecida. Faoro cita as palavras de João Pinheiro, governador em 1907,
orientando um chefe político: “Diga sempre que é solidário com o governo. Tudo se reduz
61
a obedecer. Obedeça e terá politicamente acertado. Do contrário, o senhor sabe, estou eu
aqui com o facão na mão para chamar à ordem aqueles que se insurgirem. A minha missão
principal é essa: manobrar o facão, ou em cima, quando se trata de política federal, ou em
baixo, quando da estadual. O nosso meio de orientação é esse. Portanto, olho no facão, não
esqueça e faça boa viagem” (Faoro, 2000b: 251).
A sucessão presidencial era deliberação exclusiva dos chefes estaduais,
revelando mordaz assimetria no plano mais alto da pirâmide, consubstanciada na
hegemonia dos grandes estados, que, no desenho da política dos governadores, eram os
responsáveis de fato pela escolha do Presidente da República.
Eclode a Revolução de 1930 e depois o Estado Novo. Qual a explicação do
autor para a emergência de um Estado forte sob o comando de um chefe ditatorial? Trata-
se do hiato entre Estado e nação, dirigida esta por um organismo alheio: o estamento. Era o
legado português: a “túnica rígida do passado” (idem: 381), recorrente e sufocante.
As instituições não poderiam obedecer ao moldes da Constituição de 1934.
O novo regime propôs-se modernizar a nação, gerando o desenvolvimento econômico e
agradando industriais, operários e os anseios tenentistas. Ele dispensou a participação
popular, mas não dominou a sociedade. Era autoritário, mas não totalitário. Nele não teriam
predomínio as oligarquias e sufocado seria o coronelismo. Só a burocracia se instalaria
entre o povo e o ditador, unidos estes sob o carisma do líder, gerando o populismo de
cunho autoritário. Vigia um esquema administrativo de vestes tecnocráticas, sem observar
o corporativismo da nova Carta de 1937. A ditadura pessoal era o mote do poder e o meio
de tentar conciliar os grupos em conflito, denunciando a crise que o abateria.
Em Faoro, sempre fica patente a inatividade do povo na ordem política. O
povo aparece como corpo inorgânico, a ser protegido ou temido. Não se conforma também
uma esfera pública onde possam ser contrapostos os desígnios autoritários da camada
dirigente estamental. Esta coopta os interesses presentes na sociedade civil, impedindo que
a justiça social prevaleça, perpetuando a desigualdade. Público e privado se confundem
dentro da máquina estatal, impedindo a formação de um verdadeiro Estado de Direito
liberal-democrático. Carecemos de uma ordem social aberta à organização da sociedade
em classes, onde liberdades econômicas são garantidas pelo Estado de direito, pondo em
xeque a irracionalidade formal característica do patrimonialismo (Silveira, 2006).
Nesse sentido, Campante (2003), ao discutir a noção de patrimonialismo em
Faoro e Weber, entende que ela informa parte dos argumentos que, nos anos 1990,
satanizaram o Estado, pretendendo refundá-lo sobre bases pretensamente modernas.
62
Segundo o autor, o liberalismo clássico não continha a democracia como vetor
indispensável. Inicialmente, a liberdade era conferida aos indivíduos proprietários como
proteção frente ao arbítrio do Estado. Foi com a pressão das camadas populares que se deu
a aliança liberalismo/ democracia. Ocorre que, no Brasil, a pressão popular teve menor
intensidade. Enquanto nos países centrais aquela associação deu curso a direitos universais
e garantias fundamentais, aqui ela assumiu o caráter de uma promessa a ser cumprida num
futuro moderno. Seguindo a trilha de Faoro, para Campante (2003) temos um
patrimonialismo disfarçado de modernidade, dada a precariedade do Estado de direito, com
uma tensa e incessante disputa entre normas firmadas em bases universalistas e normas,
por vezes implícitas, da cultura do favor. Deu-se “uma modernização do país, que se opõe
à verdadeira modernidade e a recobre – na primeira, o benefício é auferido apenas pelos
setores dominantes; na segunda é que ocorre, como nos EUA e na Europa Ocidental, uma
revitalização de toda a sociedade, revitalização ausente e/ ou tolhida no Brasil” (idem: 185/
186).
A nosso juízo, o acentuado exagero de Faoro no papel do Estado como
garante da ordem jurídica formal, intervindo menos na esfera econômica, talvez se
justificasse em razão do momento coberto pelo autor. É certeira a necessidade de preservar
as liberdades políticas e concretizar um Estado democrático de direito. Mas as
preocupações do autor acabam projetando um quadro que diminui o papel do Estado como
promotor de desenvolvimento não só econômico, mas também social, ou seja, onde a
cidadania não se limite a liberdades negativas.
Vale também reportar a perspectiva de Schwartzman (1982) sobre o sistema
político brasileiro, outro autor que recorre à categoria “patrimonialismo”. Assim, firma
que, em nossa história 21, as elites regionais do Centro, Nordeste e mesmo do Sul do país se
preocuparam menos com a representação de seus interesses no centro político nacional do
que com seu acesso a posições de poder e prestígio em um regime político centralizado.
Nesse contexto, os esforços de autonomia local são cooptados pelo centro, ou suprimidos
pelas elites locais apoiadas pelo governo central.
O autor esclarece que, se um regime político baseado na centralização de
poder e na cooptação de setores mais ativos tende à excessiva burocratização e à política de
distribuição de recursos entre clientelas eleitorais, uma política de tipo representativo tende
_______________________________________________________________________________ 21 Nossa referência do trabalho Bases do Autoritarismo Brasileiro, de Simon Schwartzman, foi editada em 1982. A análise então desenvolvida tem por termo final o período de abertura democrática (fim do regime militar) na década de 1980.
63
a responder de forma mais direta e explícita às demandas de seus constituintes e, por isso, a
ser mais clara na definição de objetivos e políticas governamentais. Schwartzman (1982)
pensa estas categorias como integrantes de um processo em curso no Brasil. Desse modo, a
política cartorial e clientelística deve ser vista como uma resposta de uma administração
centralizada de base patrimonialista a uma demanda crescente de participação por parte de
grupos antes excluídos dos benefícios do poder.
Cabe ainda considerar o papel da administração central frente ao
desenvolvimento sócio-econômico do país. Embora o Estado brasileiro tenha sido,
historicamente, o centro de onde emanam o clientelismo político e a ineficiência, é certo
que a sua estrutura deu curso a alguns objetivos importantes e de longo prazo. Em que
pese, igualmente, o fato de a representação política e a descentralização relacionarem-se
historicamente à política de interesses privatistas, elas têm sido úteis para garantir a
vigência de alguns valores básicos de liberdade e pluralidade e, com isso, aumentar cada
vez mais o leque de beneficiários presentes e futuros do desenvolvimento.
Ante esse quadro, Schwartzman (1982) aponta o duplo trabalho a ser
desenvolvido: (1) transformar as estruturas e atitudes políticas presentes nas divisões
regional e ideológica do país; e (2) desburocratizar a ação estatal, tornando-a menos
autoritária e clientelística.
Um autor ainda hoje centro de ferrenhas polêmicas é Gilberto Freyre. Se
isso já é suficiente para consultá-lo, suas obras trazem reflexões sutis sobre detalhes não
raro despercebidos da vida social brasileira. No presente trabalho, exploraremos a obra
Sobrados e Mucambos, destacando alguns elementos que, a nosso juízo, são relevantes
para compreendermos o processo de modernização de nossa sociedade.
A vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, foi o marco inicial de
nosso processo de modernização. Ali tomou impulso a modificação das antigas
características coloniais, tendo curso uma reestruturação social, econômica e cultural que
ganharia os contornos de uma reeuropeização. Como se trata de um marco, é certo que as
tendências modernizantes já se manifestavam anteriormente, sobretudo desde a descoberta
das minas, e que seus desdobramentos, pode-se dizer, ainda não se esgotaram.
Na narrativa de Freyre (2000), o sobrado e o mucambo são símbolos
opostos da modernidade que tomou conta do século XIX, substituindo a casa grande e a
senzala. Representavam uma mutação nos processos de subordinação e de acomodação
entre as classes, as raças e as culturas. Retratavam o declínio que, a partir do século XVIII,
sofreu o patriarcado rural. Sob a batuta deste prevaleciam os processos de acomodação,
64
num regime onde claramente delimitado o topo hierárquico. O filho, a mulher e os
escravos encontravam-se sob a autoridade do senhor rural, que, sem adversários, “reinava”
em seus domínios, protegendo de modo paternal seus subordinados, ao mesmo tempo que
suas ações despóticas não encontravam resistência. Na época da casa grande e da senzala, a
prevalência dos processos de acomodação era a única forma de se manter o equilíbrio do
sistema, evitando que a subordinação se convertesse em rebeldia.
Quando uma série de poderes começou a se intrometer entre o senhor e seus
subordinados, o poder patriarcal, paternal e despótico, iniciou seu declínio. Os
antagonismos se acentuaram. Às atitudes paternais decorrentes do vínculo pessoal entre
senhor e escravos corresponderam então relações impessoalizadas, aflorando de modo
mais cru a exploração do trabalho sem uma correlata atitude de proteção. Nas relações
entre filho e senhor, antes marcadas por uma subordinação incondicional do primeiro,
ganha força um novo fator: a “intrusão” de instituições educacionais. A educação recebida
pelos filhos, sobretudo com a ascensão dos bacharéis, representou um elemento de reforço
do antagonismo entre o senhor rural e o novo bacharel. Este se mostrou uma figura mais
adaptada aos influxos modernizantes e europeus, legando gradativamente ao ostracismo o
rústico senhor. Mas, até que esse processo se complete, ambos se aliam no plano político22.
Instituições e serviços também se interpuseram entre o senhor e sua esposa,
diminuindo o controle totalitário sobre esta. Com os sobrados, a Igreja se fez presente de
forma mais autônoma que a antiga capela construída dentro dos limites da fazenda. Se o
padre passou a cuidar de modo mais exclusivo da vida espiritual da mulher, o médico o fez
de seu corpo. Ademais, toda uma sorte de divertimentos, como teatros, parques e hábitos
ligados à vida urbana, contribuiu para a mulher ter mais contato com a rua, liberando-se do
claustro da casa. Decisiva ainda a influência européia, que, se incentivava o individualismo
dos filhos, alimentava a independência feminina. Esta de caráter relativo, posto comparada
à rígida submissão do tempo colonial.
Ao descrever os elementos emergentes com a modernização, Freyre sempre
releva pontos que considera degradantes. Se era positivo o afrouxamento da subordinação
ao senhor, aumentavam os antagonismos e reduzia-se a proteção paternal. Assim, o domínio
assumia conteúdo mais impessoal, diminuindo o esforço de acomodação e potencializando
os antagonismos. Daí a referência de Freyre ao aumento das revoltas de escravos, onde os
senhores começaram a tratá-los de modo mais impessoal. Longe de ser uma vantagem, o novo _______________________________________________________________________________________ 22 Note-se que a só remissão do autor ao termo aliança já indica a ausência da subordinação, antes obsedante no âmbito familiar, e o antagonismo latente entre as duas figuras.
65
quadro exigia que os escravos trabalhassem como máquinas sem os temperos de qualquer
proteção patriarcal.
(...) foi um período de diferenciação profunda – menos patriarcalismo, menos absorção do filho pelo pai, da mulher pelo homem, do indivíduo pela família, da família pelo chefe, do escravo pelo proprietário; e mais individualismo – da mulher, do menino, do negro – ao mesmo tempo que mais prostituição, mais miséria, mais doença. Mais velhice desamparada. Período de transição. O patriarcalismo urbanizou-se (Freyre, 2000: 51).
Houve um declínio dos laços de solidariedade. Nos tempos patriarcais de
colônia, eles recaíram sobre a família e, mais amplamente, sobre o parentesco e a
identidade religiosa. Daí a dificuldade de, nos novos tempos, ampliar seu escopo e formar
associações defensivas de direitos.
Outro ponto importante liga-se às possibilidades de ascensão social
advindas com a ordem urbana. Freyre descreve um processo de diferenciação social, onde
uma gama de objetos e serviços povoa o cenário. A introdução de novas tecnologias e
máquinas alterou a economia e fez-se acompanhar por mudanças na estrutura social. Trabalhos
mecânicos e técnicos demandavam artífices hábeis a desempenhá-los. Os cargos que
surgiam tinham status intermediário. Considerados degradantes pela aristocracia
ruralmente formada, revelaram-se uma possibilidade de ascensão aos negros forros e
mulatos das cidades que se esmeraram em aprender e concorrer com os estrangeiros
pioneiros na introdução das máquinas e técnicas. Assim, a grande distância social entre o senhor
e seus escravos, seus filhos e sua esposa observou uma miríade de papéis que minou o seu
poder autoritário e ofereceu alternativas de ação aos indivíduos. E, ainda, poderes
suprapatriarcais ofereceram resistência aos patriarcas, como a Igreja e o Estado.
Houve uma mudança ética, onde o trabalho começou a se impor. Como
Fernandes (1981) ressaltou, no mercado passaram a residir, cada vez mais, os critérios de
estratificação social. Mas vale a ênfase de Freyre na simbiose entre o antigo e o adventício,
pois, na nova ordem, os agentes emergentes pela via do trabalho e das profissões liberais
esmeravam-se em adquirir os usos patriarcas rurais ainda dominantes.
Freyre distingue a organização patriarcal implantada na colônia brasileira do
sistema feudal europeu pelas flutuações sociais e étnicas que aqui tiveram curso. Na
sociedade brasileira, dois processos se interpenetraram, raramente entrando em choque
violento. Um se refere à integração, amadurecimento e desintegração da forma patriarcal
de organização da família, da economia e da cultura. Embora nunca tenha dominado
inteiramente a realidade social, nunca foi inteiramente ultrapassada. O outro tem relação
com o amálgama de culturas e de raças que nos forjou, atuando como dissolvente de
66
limites entre raças, classes e indivíduos. Por isso, o autor fala em processos de acomodação
e subordinação de uma raça à outra, de uma classe à outra, de uma cultura à outra.
Ademais, para Freyre (2000), não é possível compreender os processos de
subordinação presentes na sociedade brasileira se nos remetermos apenas à dominação de
classe. Aqui raça e classe se interpenetraram de tal modo que seriam incompletos critérios
analíticos adotados em paragens européias. Igualmente, descabe falar apenas em domínio
de uma raça sobre a outra. Chave nesta questão é a miscigenação. O elemento mestiço
tornou maleáveis as fronteiras sociais. Na sociedade em urbanização, essa maleabilidade
era potencializada pelos novos canais de ascensão aos indivíduos mestiços, como as carreiras
de militar, de bacharel e as atividades técnicas e industriais. O mestiço, como elemento
intermediário, podia se passar por branco para conquistar a confiança de estratos superiores,
ou por pardo para cativar elementos subordinados na ordem social. “De modo que não era
só de ‘raça parda’ que se passava arbitrariamente á ‘branca’; também da branca se passava
do mesmo modo, à ‘parda’, contanto que o deslocamento correspondesse à conveniência,
para o indivíduo, de interesse político ou social de domínio” (idem: 638).
Mas essa acomodação não era suave, como evidenciavam manifestações de
inquietação e de mal estar de bacharéis mulatos que se sentiam desprezados pela elite
branca e preconceituosa. Freyre atribui a esses sentimentos algumas participações
destacadas desses indivíduos em revoltas. “Mulatos que tendo se bacharelado em Coimbra
ou nas Academias do Império foram indivíduos que nunca se sentiram perfeitamente
ajustados à sociedade da época: aos seus preconceitos de branquidade, mais suaves que
noutros países, porém não de todo inofensivos” (idem: 616).
Destacaremos um último apontamento do autor. Para a compreensão da
sociedade brasileira, além da classe e da raça, deve-se sempre considerar a situação
regional 23 dos indivíduos ou grupos. Destarte, são imprudentes generalizações que
desconsiderem a imbricação destes três elementos – classe, raça e região 24 –, que se combinam
de diversas maneiras. Não que seja impossível firmar generalizações ou a prevalência de
certas características, mas é preciso submetê-las a esses filtros.
23 Note-se que região é aplicada pelo autor em sentido lato. Assim, reconhece diferenças regionais dentro de um mesmo estado, bem como entre regiões do país (Centro-Oeste, Norte, Nordeste, ...).
24 A nosso juízo, essa noção continua válida e seria interessante compreender mais extensamente como ela se configurou de diferentes formas ao longo de nossa história, o que transborda o escopo dessa dissertação. Vale lembrar que um dos elementos que compõem a dupla articulação, apontada por Florestan Fernandes (1981), em nosso processo de modernização dependente, refere-se à diferenciação regional, cujas características são diversas daquelas presentes no período histórico coberto por Gilberto Freyre. De todo modo, firma-se mais uma vez a importância das diferenciações regionais, sem esquecermos que somos uma República Federativa.
67
Passemos então à análise do trabalho de Florestan Fernandes (1980), que,
sob prisma diverso, busca explicar a desigualdade social e os parcos termos do Estado
democrático de direito no Brasil. Com efeito, o autor investiga como se concretizou a
Revolução Burguesa brasileira, entendida como o conjunto de transformações econômicas,
tecnológicas, sociais, psicoculturais e políticas que só se realizam plenamente quando o
desenvolvimento capitalista alcança o ápice da evolução industrial, consolidando a
dominação burguesa.
No Brasil, esse processo iniciou-se sob a hegemonia oligárquica imperial.
Não houve uma ruptura com o passado. Aliás, no desenvolvimento capitalista brasileiro
observa-se que os setores dominantes não romperam a associação dependente aos centros
hegemônicos capitalistas; não promoveram a desagregação completa das formas pré-
capitalistas de produção, troca e circulação; nem se empenharam de fato em superar o
relativo subdesenvolvimento evidente na concentração social e regional da riqueza.
Segundo Florestan, a primeira fase do desenvolvimento capitalista brasileiro
correspondeu à eclosão de um mercado capitalista moderno e estendeu-se da abertura dos
portos até meados ou à sexta década do século XIX, com a crise irreversível do regime
escravista. A passagem de uma satelitização colonial para outra, baseada em mercados,
demandava a articulação institucional entre a economia interna e a de nações hegemônicas.
Para tanto, era preciso absorver as estruturas econômicas capitalistas e assim atuou o
mercado capitalista interno, ao emergir sob o influxo modernizador externo. Com isso, a
cidade destacou-se como centro de reaplicação do excedente econômico e de integração do
mercado interno. No entanto, o regime escravista persistiu, dado que o setor agrário não
dispunha de base material para alterá-lo, e os novos grupos econômicos concentraram-se
nas oportunidades que surgiam com o advento do mercado capitalista moderno.
Na segunda fase, deu-se a formação e expansão do capitalismo competitivo.
Entre o fim da fase anterior e a primeira transição industrial significativa, na década de
1950, implantou-se uma nova infra-estrutura e diferenciaram-se e expandiram-se o
comércio, a agricultura e a produção manufatureira. O mercado interno extrapolou os
limites das cidades-chave, interligando gradualmente territórios descontínuos e distantes
entre si, conferindo uma nova função unificadora nacional ao desenvolvimento capitalista.
Note-se que o capitalismo dependente observou transformações semelhantes
às ocorridas nas economias hegemônicas, embora com intensidade e ritmo diversos. Com
efeito, no plano econômico, o mercado atuou como agente de intensificação e
diferenciação da vida econômica. No plano institucional (sociedade, cultura e Estado), o
68
mercado engendrou uma formação societária nova, fundada em relações competitivas, e
desagregou a ordem escravista. A estratificação social começou a ter por referência o
mercado, o que então significaria o fim da escravidão e a consolidação do trabalho livre.
Desse modo, “no Brasil a ‘crise do antigo regime’ lança aí suas raízes. Forma-se e difunde-
se, aos poucos, uma nova mentalidade econômica, social e política, que serve de pião à
irrupção do Povo na cena histórica” (Fernandes, 1981: 239).
Mas relatamos o desenvolvimento de uma economia duplamente articulada.
No plano interno, articulavam-se os setores arcaico e moderno. No plano externo, o
complexo agrário-exportador e as economias capitalistas centrais. A dupla articulação
caracterizou a orientação dos empresários. Preocupados em extrair o máximo de
vantagens, aceitaram que o setor arcaico assim se mantivesse, desde que isso favorecesse a
acumulação originária de capital, e vislumbraram a articulação às economias centrais como
alternativa para acelerar a industrialização e o desenvolvimento econômico interno 25.
No desenvolvimento da economia competitiva brasileira, o Estado teve
papel destacado. Como em outros países de economia articulada, desencadeou-se aqui um
intervencionismo econômico, destinado a sustentar e fomentar o desenvolvimento
capitalista. A atuação estatal compartilhou responsabilidades com os agentes privados
nacionais e estrangeiros, os maiores beneficiários do intervencionismo.
Florestan ressalta que o crescimento populacional explosivo, o intenso ritmo
de concentração urbana e as tendências de universalização das relações capitalistas de
mercado atenuaram os efeitos inibidores da articulação interna. Mas o crescimento do
mercado interno e os fluxos com a economia agropecuária não impediram a persistência de
práticas pré-capitalistas. Nenhuma reforma agrária foi seriamente instituída. Por seu turno,
manteve-se a depressão dos salários dos trabalhadores urbanos. Com isso, o mercado
caracterizou-se como socialmente comprimido e seletivo. “Na verdade, continuava a
prevalecer a extrema valorização econômica de diferentes idades coetâneas e de formas de
desenvolvimento desiguais, como expediente de acumulação originária de capital ou de
intensificação da expropriação capitalista do trabalho” (Fernandes, 1981: 246).
Quanto à articulação externa, a economia dependente brasileira continuaria
exposta a pressões muito fortes não controláveis a partir de dentro. A transformação econômica
ocorria sem romper o padrão dependente e limitada a dar saltos a partir de impulsos
atrelados ao dinamismo das economias centrais. _______________________________________________________________________________________ 25 Florestan considera que decorrem da dupla articulação econômica as inconsistências e consequências negativas que comumente são atribuídas ao processo de substituição de importações.
69
A terceira fase corresponde à emergência do capitalismo monopolista.
Embora já presentes tendências suas antes dos anos 1950, elas se acentuaram ao final dessa
década, adquirindo caráter estrutural durante a ditadura militar. Sua eclosão exigia índices
relativamente altos de concentração demográfica ao longo de um vasto mundo urbano
comercial e industrial. Demandava: índices consideráveis de renda, ao menos da população
incorporada ao mercado de trabalho e, em especial, dos estratos médios e altos das classes
dominantes; diferenciação e integração em escala nacional; modernização tecnológica; e
estabilidade política, com o controle do Estado pela burguesia nativa, donde os interesses
hegemônicos internos convergirem com as influências externas. Tratava-se de “modernizar
com segurança”, ou seja, logrando estabilidade política via repressão de protestos contra as
iniqüidades econômicas, sociais e políticas. Dessa forma, enquanto nos países centrais
conciliou-se democracia, capitalismo e autodeterminação; aqui, elementos igualitários,
democráticos e cívico-humanitários foram relegados ao segundo plano e entendidos como
obstáculos à transição para o capitalismo monopolista. Para Fernandes (1981: 262),
como sucederia no Brasil, no México e em outros países da América Latina, o estilo de dominação da burguesia reflete muito mais a situação comum das classes possuidoras e privilegiadas, que a presumível ânsia de democratização, de modernização ou de nacionalismo econômico de algum setor burguês mais avançado. Por isso, ele antes reproduz o ‘espírito mandonista oligárquico’ que outras dimensões potenciais da mentalidade burguesa.
Desenvolvimento econômico e desenvolvimento político dissociaram-se.
Teve curso um padrão capitalista racional e modernizador de desenvolvimento econômico,
conjugado a medidas contra-revolucionárias que, ao invés de atrelar o Estado à clássica
democracia burguesa, fomentaram uma versão tecnocrática de democracia restrita,
denominada por Florestan de autocracia burguesa 26.
Nas economias periféricas, o capitalismo monopolista, induzido de fora, se
superpõe às estruturas modernas ou arcaicas pré-existentes, criando um nicho específico
para si, onde pode crescer e então talvez se irradiar para toda economia. Na verdade,
aquelas formas econômicas não raro são funcionais ao padrão capitalista-monopolista
periférico, servindo como fontes de acumulação originária de capital, delas se extraindo
parte do excedente econômico que financiou a modernização econômica,
tecnológica e institucional, além de recursos materiais ou humanos.
Nas economias centrais, antes da fase monopolista, houve extensos períodos
de acumulação de capital, de invenção tecnológica, de expansão do mercado de massas, de
_______________________________________________________________________________ 26 O autor se refere ao período dos governos militares, pós-1964.
70
modernização institucional e democratização do poder, de elevação dos níveis de escolaridade
e dos padrões de vida. No Brasil, como a transição foi induzida de fora e sem que esses
fatores estivessem suficientemente desenvolvidos, não só permaneceu a dupla articulação,
como seus efeitos tornaram-se mais perversos.
A dependência se aprofundou e o crescimento acelerado infundiu distorções
estruturais e dinâmicas no processo de acumulação, manifestas em compressões
conjunturais dos salários e no uso de desinflatores e técnicas que ampararam os que tinham
capacidade de poupar. Com isso, um pequeno círculo da população gozou da prosperidade
e teve acesso aos bens duráveis e a artigos de luxo. Mas, se o acesso a tais bens poderia se
estender ao grosso da população, o problema maior consistia no fato de que “a transição
para o capitalismo monopolista impõe tendências de concentração social da riqueza que
não podem ser nem transitórias nem atenuadas com o tempo” (Fernandes, 1980: 273).
Ademais, ele traz consigo um tipo de articulação econômica às nações hegemônicas e ao mercado
mundial hábil a tornar indestrutível a dependência das economias periféricas.
O processo intensificou o fluxo migratório do campo para as grandes
cidades; afinal, não se realizou a reforma agrária, nem se universalizaram as relações de
mercado ao campo. Por outro lado, o desenvolvimento industrial ampliou as oportunidades
de trabalho, donde o crescimento do proletariado urbano e operário. Dessa forma, tanto o
poder burguês se recompôs, como o povo mudou de configuração estrutural e histórica.
Para Florestan, esse fato era central, sinalizando um quadro favorável aos movimentos
operários e hábil a modificar o panorama da sociedade brasileira. O autor identificava uma
tendência de aumento da participação popular, a partir do dinamismo da economia de
consumo em massa e da elevação constante do padrão de vida médio dos assalariados 27.
Florestan também aponta a tendência de irradiação do desenvolvimento
capitalista rumo a pequenas cidades dispersas no mundo rural, de modo que a participação
econômica pode servir de base a maior participação social, cultural e política de setores
urbanos e rurais.
Merece referência igualmente a alteração da origem social dos indivíduos de
classe média. Se antes advinham preponderantemente de famílias tradicionais ou de classes
possuidoras decadentes, a nova configuração social estende as chances de mobilidade a uma
_______________________________________________________________________________ 27 A obra em comento data de 1981. Como se poderá verificar pela exposição de p. 98, as conclusões do autor afinam-se a um quadro de crescente assalariamento formal que se estendeu até o início dos anos 1980. A partir daí, o mercado formal retrocedeu, ampliando-se o desemprego e condições precárias de trabalho, o que minou o “ritmo” de melhora no padrão de vida dos estratos populares e gerou conseqüências perversas sobre a capacidade de ação coletiva dos trabalhadores.
71
forte massa de indivíduos pobres.
Florestan conclui que a forma “intramuros” de resolução de conflitos das
classes dominantes tende a se erodir cada vez mais. Tanto as soluções dentro da ordem, como
as revoluções “de cima para baixo” são inviabilizadas pela pressão do meio operário e dos
estratos mais baixos das classes médias. “Isso forçará as classes dominantes e suas elites a
procurarem aliados fora de suas fronteiras e a se colocarem os ‘problemas’ econômicos,
sociais e políticos também à luz dos interesses das classes baixas, pondo-se um fim ao
‘monolitismo’ que tem impedido qualquer evolução efetivamente nacional e democrática
do regime republicano” (Fernandes, 1981: 286). De certo modo, a gama de direitos sociais
reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 é desdobramento desses fenômenos. A
tensão que os marcou também serve de evidência, posto que, embora reconhecidos, carecem
em boa medida de efetividade, dada a escassez de meios e recursos a eles destinados 28.
Já Wanderley Guilherme dos Santos (1994) identifica no Brasil dificuldades
governativas, cuja fonte precípua é um híbrido institucional, caracterizado
simultaneamente por uma morfologia poliárquica 29 e por um hobbesianismo social pré-
participatório e estatofóbico.
A poliarquia brasileira é frágil, porque só é efetiva em relação à pequena
parcela da população. A sociedade é plural, dados os múltiplos grupos de interesse, mas as
instituições poliárquicas não mobilizam os supostos interessados. A explicação reside no
hobbesianismo social. O indivíduo típico de nossa sociedade não adere à poliarquia,
vivendo isolado e sem congregar-se em laços de solidariedade. Assim, o refrear dos
conflitos, que, conforme a doutrina poliárquica, seria possibilitado pelo pertencimento a
múltiplas associações, ou não existe, ou é insuficiente para reduzir as hostilidades
intergrupos. E então Santos (1994: 80) conclui: “Por isso a poliarquia brasileira restringe-se a
pequena mancha institucional circunscrita por gigantesca cultura da dissimulação, da
violência difusa e do enclausuramento individual e familiar”. Há uma avalanche regulatória que,
dado o híbrido institucional, é ineficaz. O governo age no vazio, sem controle democrático,
sem expectativas e sem respeito cívico que emanem da sociedade.
Desde a década de 1930, o Brasil se modernizou. O eleitorado se expandiu, 28 Por fim, assinale-se que o período coberto pela análise de Florestan era marcado pela bipolaridade (bloco socialista-soviético versus sistema capitalista) no plano internacional, de modo que os caminhos trilhados pelo embate entre as classes sofriam os influxos dessa dinâmica externa. 29 Poliarquias são regimes onde institucionalizadas uma ampla competição pelo poder (com contestação pública) e uma extensa participação política (inclusividade). A coexistência dessas características é assegurada por direitos, como o de “associação, liberdade de expressão, formação de partidos, igualdade perante a lei e, afinal, controle da agenda pública” (Santos, 1994: 80).
72
organizações se multiplicaram, aumentou a competição partidária e há uma correlação
positiva entre educação, renda e participação. Mas, apesar de erguidas as instituições
formais e cumpridos os requisitos apregoados pela teoria de Dahl, o hobbesianismo social
impediu-nos de auferir os benefícios poliárquicos.
Santos (1994) explica que, se não reformados os meios tradicionais pelos
quais se opera a política, o próprio funcionamento de uma poliarquia ameaça os seus fins.
Assim, a inclusividade da competição política pode converter-se em alternativa para a
acumulação de riqueza privada. A maior presença estatal regulatória e os maiores escopo e
impacto das políticas públicas podem incentivar a captura de burocracias por grupos
privados. Enfim, a politização da sociedade pode redundar na multiplicação de focos de
corrupção, em tentativas persistentes de compra de mandatos (então encarecidos), na
manipulação da política em favor de certos segmentos (clientelismo) e no financiamento de
campanhas políticas por “clientes”. Ademais, grupos de interesse pressionam o governo
para angariar benefícios, difundindo os custos pela sociedade.
A manutenção do hobbesianismo social mina o êxito das instituições
poliárquicas, prevalecendo políticas clientelistas e a escassez de racionalidade econômica e
social: “o cenário é o da continuidade do que já vem ocorrendo de maneira crescente na
face poliárquica do sistema brasileiro: abundante e contínua legislação regulatória dando
lugar a todo tipo de ineficiências por via de subsídios, privilégios, credenciamentos, além
da criação de barreiras à entrada” (Santos, 1994: 93).
Embora vivam em contínuo estado de hobbesianismo social, os cidadãos
(não-poliárquicos) negam a existência de conflitos. Trata-se de uma estratégia de
autopreservação, a fim de manter, por meios próprios, um mínimo de dignidade pessoal, o
que revela a descrença na eficácia estatal e as reduzidas taxas de demandas e de
participação dos cidadãos. Tem-se “uma cultura cívica que se estrutura extralimites
institucionais da poliarquia, cuja expectativa quanto à eficácia elementar do Estado é
próxima de zero” (idem: 98/99). Essa evasão face aos mecanismos poliárquicos atinge a
ricos e pobres em todas as regiões do Brasil. E toda a população transita cotidianamente
entre os dois universos: o das instituições poliárquicas e o das não-poliárquicas.
Para o autor, ilustra tal asserção o fato de o mesmo cidadão agir conforme as
regras poliárquicas quando vota e não poliarquicamente por não noticiar à polícia que o
tênis de seu filho foi roubado. Este permanente trânsito característico do híbrido
institucional brasileiro tem repercussões deletérias para a cultura cívica e para a
probabilidade de êxito das políticas governamentais. Ante tal quadro, não há estímulo à
73
formação de laços solidários, ao fomento da arena pública, ou à convivência social. Ao
contrário, reina o isolacionismo e a reclusão familiar, único recanto seguro. Com efeito, “o
privado se sobrepõe ao público” (Santos, 1994: 109).
O quadro hobbesiano acentua-se em contextos de transição social, como, no
exemplo do autor, no período de consolidação democrática, quando aplicados sucessivos
planos econômicos. Face à ausência de normas universalmente aceitas, o resultado é a
maior imprevisibilidade do mundo social, proliferando códigos privados compartilhados
por pequenos segmentos dentro da macro-sociedade. Surgem então as subculturas do
crime, da corrupção e das drogas, cada qual com suas normas e linguagens próprias.
Pena aleatória, impunidade e mecanismos descentralizados de extorsão de
renda, todos são exemplos de instituições sociais não-poliárquicas que, como parte de uma
cultura cívica predatória, impelem os indivíduos à desconfiança e ao isolacionismo.
Uma cultura cívica predatória é o que se pode esperar quando a população é composta por indivíduos que se consideram um ao outro: destruidor, acomodado, esperto, mal-educado, irresponsável, preguiçoso, impaciente e desonesto (pesquisa da Soma, Opinião e Mercado, em Isto é/ Senhor, 27/3/91). Em tal selva, é natural que se considere aceitável: deixar alguém guardando lugar na fila para ganhar tempo, chegar atrasado a compromissos, colar nas provas, estacionar em local proibido, parar carro em cima de calçadas e gramados, subornar para conseguir algum serviço (Santos, 1994: 114).
Ante tal quadro, o exercício do poder político assume função primordial.
Dada sua centralidade e visibilidade, ele “pode contribuir para gerar os valores que
restabelecem a solidariedade e confiança sociais” (idem: 110). Esse exercício do poder não
significa repressão 30. Ao contrário, essa pode reforçar os códigos privados, gerando a
sensação de que são os que se impõe, por quaisquer meios, os que sobrevivem 31.
Também Souza (2003a) realiza um interessante esforço interpretativo de nossa
evolução sócio-histórica, tendo por principais marcos teóricos as obras de Bourdieu e Charles
Taylor. Nesta trilha, afirma que as obrigações e os direitos que configuram e organizam nossa
relação com os outros são estipulados por uma ordem moral. Por sua vez, é o ‘imaginário
social’ que nos permite a “pré-compreensão” imediata de práticas cotidianas e possibilita
um senso compartilhado de legitimidade da ordem social. O imaginário social é tanto factual
_______________________________________________________________________________ 30 Segundo o autor, o autoritarismo político do período militar só aumentou a tendência ao isolamento, ao erigir a coação como base da obediência às regras públicas.
31 Seguindo a trilha de Santos (1994), Bogeá-Câmara (2004) firma que, além das precárias bases de confiança assecuratórias de ações coletivas, estas encontram entraves na frágil rede proteção social, dado esta não garantir padrões toleráveis de dignidade nos casos de fracasso. Desta sorte, a ação coletiva, especialmente no caso das classes populares, precisa conviver com a assunção de que o ruim pode piorar. Tem-se aí um dos obstáculos para o exercício da cidadania política entre nós.
74
quanto normativo e caracteriza-se como uma pré-compreensão inarticulada abstrata e
geral; um “mapa social” que guia implicitamente nossa conduta.
Seguindo as lições de Weber e Taylor, o autor destaca que, nas sociedades
da modernidade central, as idéias são anteriores às práticas institucionais. Já no caso
brasileiro, as “práticas” modernas são anteriores às “idéias” modernas. Com efeito, durante
o período colonial havia uma cultura material e simbólica rasteira e pouco articulada.
Quando o mercado e o Estado foram paulatinamente importados com a europeização da
primeira metade do século XIX, inexistia o consenso valorativo que acompanhou o mesmo
processo na Europa e na América do Norte. Nessas logrou-se homogeneizar um tipo
humano transclassista; um desiderato perseguido de forma consciente e decidida, não
relegado a uma suposta ação automática do progresso econômico.
Para Souza (2003a), a especificidade de sociedades constituídas como a
brasileira resulta da ação do poder pessoal, aqui liberado da proteção que, em outras
sociedades tradicionais, o costume e a tradição garantiam aos dominados, possibilitando-os
constituir sua auto-estima e ter reconhecimento social por meios independentes da vontade
do senhor.
Havia grande contigüidade entre as visões do escravo 32 e a do dependente
formalmente livre. Ambos formaram a “ralé” dos imprestáveis e inadaptados ao novo
sistema impessoal que chegou de fora para dentro por meio de práticas institucionais não
precedidas pelo arcabouço ideal que, nas sociedades centrais, foi o estímulo último para a
homogeneização do tipo humano contingente e improvável que, atingindo inclusive as
classes subalternas, serve de base à economia emocional burguesa. Só quando este
processo alcança algum êxito pode-se almejar que a lei abstrata, substrato da noção de
cidadania, torne-se realidade efetiva.
Para identificar o quadro geral da pirâmide competitiva no momento posterior
à abolição, o autor recorre a Florestan Fernandes, em seu Integração do negro na sociedade
de classes. Assim, o seu topo era ocupado por antigas famílias proprietárias, constituindo
uma zona de preservação de poder, onde era mínimo o espaço aberto à competição. Logo
_______________________________________________________________________________ 32 Para o autor vigeu uma escravidão muçulmana na sociedade colonial brasileira. Analisando a obra Casa Grande e Senzala, Souza (2003a: 106) afirma que
Em Freyre, a visão sobre a especificidade da escravidão brasileira alterna entre uma ênfase no tema do sadomasoquismo e uma concentração no tema da mestiçagem. O tema do sadomasoquismo está ligado ao tema da “escravidão muçulmana”. A estratégia de domínio, que é a substância do que ele irá chamar de escravidão muçulmana, permite uma expansão e durabilidade da conquista inigualáveis, na medida em que associa o acesso a bens materiais e ideais muito concretos à identificação do dominado com os valores do opressor.
75
abaixo, havia uma nova esfera aberta e em expansão, onde prevaleciam ideais
individualistas e liberais. Esse espaço seria ocupado pelo estrangeiro imigrante. Para o
negro preservar a dignidade de homem livre restavam os interstícios e as franjas
marginais do sistema: o mergulho na escória proletária, no ócio dissimulado, ou, ainda, na
vagabundagem sistemática e na criminalidade fortuita ou permanente.
A semente da marginalização continuada de negros e mulatos encontrava-se
nas dificuldades de adaptação à nova ordem competitiva, pois lhes faltava uma pré-
socialização específica. O problema estava nas condições psicossociais da personalidade:
(1) a inadaptação do negro para o trabalho livre; e (2) a sua incapacidade de agir segundo
os modelos de comportamento e personalidade da sociedade competitiva, sendo esta
segunda uma condição de possibilidade da primeira. Para o esclarecimento desses pontos,
um tema central refere-se à ausência de unidade familiar como instância moral e social
básica, característica contígua à política escravocrata brasileira, que sempre procurou
impedir qualquer forma de organização familiar ou comunitária pelos escravos 33.
As precondições sociais explicam a situação de marginalidade. Nesse
quadro, a cor da pele age como uma ferida adicional à auto-estima do sujeito, mas o núcleo
do problema é a combinação de abandono e inadaptação, destinos que atingiam tanto os
negros como os dependentes ou agregados despossuídos, brancos ou de qualquer cor.
Segundo Souza (2003a), a pauperização, fruto da inadaptação social, e a
anomia, oriunda da organização familiar disfuncional, condicionam-se mutuamente. Ademais,
essa fusão de vida familiar desorganizada e pobreza produz um tipo de individuação ultra-
egoísta e predatória.
Em síntese, a chave explicativa encontra-se no modo como a transição do poder 33 Sem polemizar as colocações de Souza (2003a) sobre a realidade histórica da desagregação de famílias negras, a desarticulação das estruturas familiares parece, de fato, um importante elemento promotor de situações de marginalidade (confira-se menção ao problema por Zaluar (1997)). Queremos, porém, destacar a incompletude do argumento do autor. Incluindo na “ralé” estrutural brasileira os ex-escravos e antigos dependentes (dotados do mesmo tipo psicossocial dos primeiros), localiza na pobreza e na organização disfuncional familiar os motivos principais de sua inadaptação social. Se apresenta um argumento plausível para a destruturação de famílias negras (a política escravocrata), nada menciona sobre a organização familiar dos dependentes. No entanto, não deixa de estender a estes aquelas causas primordias. De todo modo, apresenta um interessante argumento para compreender a desestruturação familiar e psicossocial, mas seria preciso identificar se as causas de hoje são as mesmas do passado, se existe relação de continuidade entre ambas e em que medida. Deveria também apontar se os problemas de desestruturação familiar atuais afetam (e em que medida) famílias carentes e de classe média e quais as causas para tanto. Parece pertinente destacar os renitentes comentários de colegas minhas que lecionam no ensino fundamental em escolas públicas da Baixada Fluminense e de subúrbios cariocas sobre o problema representado para o processo de escolarização a precariedade das estruturas de famílias carentes (material e cultural, digamos).
76
pessoal para o impessoal alterou as possibilidades de classificação ou desclassificação
social, tornando imprestáveis os segmentos responsáveis pela manutenção do regime
econômico anterior. Ante esse diagnóstico, o autor interpreta os depoimentos coligidos por
Florestan Fernandes, onde os informantes reiteradamente entendiam por “ser gente” as
pré-condições para a formação de um habitus adequado aos imperativos institucionais da
nova ordem.
Tal quadro impõe o esclarecimento de duas questões: (1) a reconstrução da
hierarquia contingente e historicamente construída que, de forma opaca e inarticulada,
serviu à legitimação da desigualdade nas condições modernas centrais e periféricas; e (2) o
seu modo específico de ancoragem institucional nas condições da modernização periférica.
Para analisar a primeira questão, Souza (2003a) desenvolve um tópico sobre
a “ideologia espontânea” do capitalismo tardio e a construção social da desigualdade.
Recorre ainda ao conceito de habitus, que se refere à incorporação nos sujeitos de
esquemas avaliativos e disposições de comportamento a partir de uma situação
socioeconômica estrutural. Dessa maneira, a mudanças fundamentais nesta estrutura
devem corresponder alterações qualitativas importantes no tipo de habitus para todas as
classes sociais envolvidas de algum modo nesse processo.
A partir das reflexões de Charles Taylor, Souza (2003a) divide o conceito de
habitus, formulado por Bourdieu 34, em: primário, secundário e precário. O primeiro
refere-se à generalização das precondições sociais do sujeito reconhecido como útil,
“digno” e cidadão. O habitus precário seria o limite do habitus primário para baixo,
representando, em uma sociedade moderna e competitiva, um tipo de personalidade e de
disposições que, marcando um indivíduo ou grupo, não atende às demandas objetivas por
produtividade e utilidade, elementos geradores de reconhecimento social. O habitus
secundário parte da homogeneização dos princípios que marcam o habitus primário para
então instituir critérios de distinção social com base no que Bourdieu chama de “gosto”.
Para abordar o segundo ponto, a ancoragem institucional das desigualdades
sociais nas condições modernas centrais e periféricas, Souza (2003) analisa a ideologia do
desempenho, fundada esta na tríade meritocrática: qualificação, posição e salário. O primeiro _________________________________________________________________________________________________ 34 Souza (2003) critica Bourdieu por não ter tematizado adequadamente o processo histórico de aprendizado coletivo, cujo índice reside na “dignidade” compartilhada por classes que lograram homogeneizar, em termos significativos, a economia emocional de todos os seus membros. Dessa “dignidade” comum depende a eficácia social da regra jurídica da igualdade e, portanto, a da cidadania. Em outras palavras, a regra da igualdade só é legalmente eficaz quando internalizada a percepção da igualdade no plano da vida cotidiana, processo que demanda a existência de um consenso valorativo transclassista.
77
desses elementos condiciona os demais. Trata-se de uma ideologia, ainda segundo o autor,
porque ela não apenas estimula e premia a capacidade de desempenho objetivo, mas
legitima o acesso diferencial a chances de vida e de apropriação de bens escassos. É pela
combinação daquela tríade que o indivíduo torna-se um “sinalizador” efetivo do “cidadão
completo”. É a tríade, igualmente, que torna compreensível por que só a categoria
“trabalho” pode assegurar identidade, auto-estima e reconhecimento social 35.
De acordo com o poder legitimador da “ideologia do desempenho”, os
sujeitos e grupos sociais carentes dos pressupostos mínimos para uma competição bem-
sucedida serão excluídos de plano e objetivamente da competição e padecerão de não-
reconhecimento social e de ausência de auto-estima. Ela, a ideologia do desempenho,
funciona como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano, refletindo a
eficácia de princípios funcionais ancorados em instituições opacas e intransparentes como
mercado e Estado. Intransparentes por aparecerem à consciência cotidiana como efeitos de
princípios universais e neutros, abertos à competição meritocrática.
Um ponto importante na análise de Souza (2003) acerca da diferenciação
entre gente e subgente refere-se à ausência de intencionalidade que a marca. Trata-se de uma
dimensão objetiva, subliminar, implícita e intransparente. É implícita por não demandar
mediação lingüística ou articulação simbólica. Com efeito, existem acordos e consensos
sociais mudos e subliminares, cuja eficácia advém da articulação, por meio de fios invisíveis,
de solidariedades e preconceitos profundos e opacos.
Como ressaltado, o habitus primário refere-se à introjeção da dignidade
do agente racional, configurando-se como um índice de produtividade e de cidadania plena.
35 Consideramos um ponto sensível na análise do autor a referência central (ou a sua não problematização) à categoria trabalho, como elemento assecuratório de identidade, auto-estima e reconhecimento social. Para enriquecer a questão, vale lembrar a distinção operada por Inglehart (2000) entre valores materialistas (modernidade) e pós-materialistas (pós-modernidade). Ambos os valores funcionando como articuladores das ações individuais e coletivas. No quadro tecido por Inglehart, por conseqüência, a referência à categoria trabalho perde, em boa medida, seu poder de agregar e definir identidades. Por seu turno, Burgos (2005) sustenta que, no caso do Rio de Janeiro, a cultura*, mais do que o trabalho, foi um elemento definidor de identidades e um fator de coesão social. Nessa cidade, diferentemente de São Paulo, o industrialismo teria sido um fenômeno culturalmente marginal se comparado a manifestações religiosas, festas (como o carnaval) e mesmo o futebol. Sem concordarmos inteiramente com esses argumentos e sem encerrarmos o debate, resta saber se o habitus ainda se estrutura (ou se um dia se estruturou) por referência à produtividade, dada a suposta centralidade da categoria trabalho.
Vale também a referência a Boaventura de Sousa Santos (2001). Esse autor apresenta um mapa de estrutura-ação das sociedades capitalistas no sistema mundial, dividido entre os espaços doméstico, de produção, de mercado, da comunidade, da cidadania e mundial. Apenas no espaço da produção o trabalho tem papel central, juntamente com o capital. E, para uma defesa da centralidade da categoria trabalho, confira-se Antunes (2002). * Burgos não a define, mas a exemplifica pela mídia, religião, futebol, ...
78
Enquanto sua disseminação efetivou-se em sociedades avançadas, relegando à
condição de fenômenos marginais os casos de habitus precário; em sociedades periféricas
como a brasileira, o habitus precário é um fenômeno de massa. Aliás, para o autor, esses
dois tipos de sociedade distinguem-se exatamente pela produção social de uma “ralé
estrutural” nas sociedades periféricas. Esse fato não afasta a existência, nas duas
sociedades, de uma luta pela distinção baseada no habitus secundário.
O autor ressalta que relações pessoais são importantes na definição de
carreiras e chances individuais de ascensão social em ambos os tipos de sociedade. Mas,
se, em ambos, os capitais econômico e cultural são estruturantes, o mesmo não ocorre com
o capital social derivado de relações pessoais. Portanto, mesmo aqueles grupos sociais não
abrangidos pelo impacto modernizador, como os ex-escravos e os dependentes rurais e
urbanos de qualquer cor, foram englobados como desclassificados pela lógica totalizadora
do novo padrão simbólico e institucional instaurado com a modernização da sociedade
brasileira. Desse modo, a versão moderna dessa “ralé” não é mais oprimida por relações de
dominação pessoal. No contexto impessoal moderno, o lugar social dos indivíduos vê-se
determinado por redes invisíveis de crenças sobre o valor relativo de indivíduos e grupos,
as quais são compartilhadas pré-reflexivamente, ancoradas institucionalmente e
reproduzidas de forma rotineira pela ideologia simbólica subpolítica incrustada nas práticas
do dia a dia. Essas redes não eliminam as relações de dependência, mas lhe dão um novo
conteúdo e dinâmica, envolvendo tanto os doadores de favores como os receptores de
proteção em um quadro de referência que ultrapassa a ambos.
A contradição de interesses de classe manifesta-se mais no contraste entre
uma “ralé” de excluídos e todos os estratos incluídos, sejam trabalhadores, técnicos ou
empresários, do que na oposição entre burgueses e operários. A inclusão no mercado, a
percepção dos benefícios do Estado e a entrada com voz autônoma na esfera pública
tornam os setores antes marginais em incluídos privilegiados.
Nesse quadro, cumpre papel específico a noção de homem cordial,
entendido como o brasileiro de todas as classes, que tem sua vertente tanto subjetiva, na
noção de personalismo, quanto uma dimensão institucional, na noção de patrimonialismo.
Para Souza (2003), essa noção compõe uma ideologia explícita que se articula com o
componente implícito da ‘ideologia espontânea’ das práticas institucionais importadas e
operantes na modernidade periférica, construindo um contexto de obscurecimento das
causas da desigualdade, tanto para os privilegiados quanto para as vítimas. Esse o ponto
central da questão da naturalização da desigualdade na sociedade brasileira.
79
Por fim, vale reportarmos algumas considerações de Souza e Hoellinger
(2000) sobre modernização e desenvolvimento da cidadania. Segundo os autores, Weber e
Taylor identificam a retirada do mediador do sagrado, a Igreja, como elemento detonador
da sacralização da vida cotidiana e comum 36. Os protestantes rejeitaram as vocações
monásticas fora do mundo cotidiano e, por conseqüência, a hierarquia social a ela
vinculada. A nova concepção de mundo encontrou suporte social nas classes burguesas de
Inglaterra, EUA e França, disseminando-se depois. No âmbito do trabalho, valorizou-se
mais o como se faz e não o quê se faz, e o tipo contratual apresentou-se como vínculo
social mais adequado às relações interpessoais. Confluindo com a análise de Honneth
(2003), os autores ressaltam a perda de lugar da honra pré-moderna, que assentava na
distinção e no privilégio, e a ascensão da dignidade oriunda do reconhecimento universal
entre iguais, consubstanciado, v.g., nos direitos individuais.
Esse é o terreno da cidadania, pois essa visão de mundo consagrou-se sob a
forma de direitos subjetivos, definidos universalmente consoante a tendência igualitária.
“A própria sucessão histórica dos direitos de T.H.Marshall seria incompreensível sem essa
pré-história que mostra porque sua efetivação progressiva, em um contexto crescentemente
democrático, se deu de forma irresistível” (Souza e Hoellinger, 2000: 184).
Nos países centrais, o processo de autonomização e diferenciação interna da
esfera jurídica foi correlato à conquista de dimensões crescentes de cidadania. Ao
subordinar influências políticas e econômicas a critérios próprios, a autonomização do
jurídico permitiu a generalização inclusiva da população no direito. No entanto, essa
autonomia da esfera jurídica não se manifestou em países de modernidade periférica. No
caso brasileiro, verifica-se uma divisão entre sobre-cidadãos e subcidadãos. Como não se
operou uma reciprocidade entre direitos e deveres, aos subcidadãos faltam condições de
exercer a dimensão positiva dos direitos fundamentais, embora sejam obrigados a arcar
com os deveres impostos pelo Estado.
_______________________________________________________________________________ 36 Santos (2000) sustenta que, durante o Brasil-Colônia, os ideais católicos foram funcionalmente substituídos por uma magia primitiva que serviu adaptativamente à realidade (a produção de mercadorias via escravidão). Isso implicou uma quase ausência de caráter reflexivo das “idéias” religiosas presentes na sociedade. O autor levanta a instigante hipótese de que “existe uma relação causal entre a presença de valores e normas culturais que se originam e se desenvolvem no seio de crenças religiosas de tipo mágico e certa orientação heterônoma e intolerante de pensamento” (Santos, 2000: 93), o que seria um complicador para a institucionalização de um princípio de dignidade forjado no reconhecimento universal entre iguais. Mas a análise peca ao tentar identificar traços de pensamento mágico na sociedade brasileira atual sem desnudar o desenvolvimento das instituições e ideais modernos no país. Afinal, a referência mais recente do autor é o século XVII.
80
A sua ‘integração’ ao sistema jurídico dá-se como devedor, indiciado, réu, etc. Nesse sentido, a subintegração das massas é apenas a outra face da sobreintegração do sobrecidadão que tem a ‘escolha’ de lançar mão, ou não, do estatuto jurídico para suas finalidades, estando nesse sentido, de certa forma, ‘acima da lei’, sendo a impunidade a forma mais conspícua de sobreintegração (Souza e Hoellinger, 2000: 219).
Portanto, a dimensão da dignidade (reconhecimento universal entre iguais)
não se institucionalizou. Com isso, o direito atua como um mecanismo reprodutor do
padrão valorativo e normativo desigual então vigente. Os autores não deixam de temperar
esse quadro pessimista, citando demandas por dignidade, no sentido de universalização de
direitos, presentes em nossa história recente, como o movimento de Diretas Já e o
movimento pelo impeachment do presidente Fernando Collor. Para os autores, “apenas a
institucionalização do princípio da ‘dignidade’ pode possibilitar o encurtamento do fosso
social e cultural que dilacera nossa sociedade” (idem: 220).
81
Capítulo 4: Cidadania no Brasil
Ante o quadro de modernização brasileiro, cumpre-nos firmar as bases
sócio-históricas dos direitos de cidadania em nosso país. Para tanto, deslindaremos o
desenvolvimento dos direitos políticos. Depois, apresentaremos a eclosão dos direitos
sociais, focando as legislações trabalhista e previdenciária. Por fim, levantaremos temas
que diferenciam o escopo da cidadania entre nós do manifesto em países centrais. Nesse
sentido, os problemas da informalidade e das favelas são a materialização dos contornos do
processo de modernização e da conseqüente evolução da cidadania no Brasil.
4.1 - A dimensão política da cidadania
Após séculos de colonização, cujo sentido residiu no empreendimento
comercial da monocultura exportadora, baseada em latifúndios e na mão-de-obra escrava,
fundou-se aqui uma sociedade política independente. Outorgada a Constituição de 1824, a
cidadania hierarquizou os cidadãos, ao invés de atribuir idêntico status pelo
reconhecimento universal de direitos. Mattos (1994) destaca dois elementos fundamentais
nessa hierarquização: a liberdade e a propriedade. De plano, foram excluídos da sociedade
civil os escravos, pois não gozavam de liberdade, eram não-cidadãos. Então, dividiu-se a
sociedade entre os que só possuíam a liberdade e os que a ela acresciam a propriedade de
escravos. Hierarquizavam-se os cidadãos não-ativos, o “povo miúdo”, e os ativos, os
proprietários. A capacidade eleitoral censitária era a materialização legal da hierarquia.
Carvalho (2003) questiona o critério censitário como elemento de restrição
dos direitos políticos, afirmando que ele não excluía de fato a população pobre, dado o
pequeno volume de recursos exigido para ser votante, e lembrando, ainda, que os
analfabetos votavam 37. Essa situação durou até 1881, quando uma reforma eleitoral
restringiu o direito de voto.
O ponto mais importante reside no sentido atribuído aos direitos políticos.
Segundo o autor, a maioria da população não compreendia o significado de um governo _________________________________________________________________________________________________ 37 Segundo Carvalho (2003, 2004), o ponto chave reside nas condições para o exercício do direito político em tela. Com efeito, elas eram marcadas pelo quadro colonial, onde os escravos estavam apartados da sociedade civil e à população livre e pobre faltavam condições para o exercício de direitos. Dependente dos grandes proprietários para morar, trabalhar e defender-se contra o arbítrio do governo e de demais proprietários, essa população carecia ainda de suporte educacional. Ademais, os senhores ignoravam o sentido de cidadania, consubstanciado na igualdade de todos perante a lei, e absorviam, no âmbito local, funções estatais, minando a constituição efetiva de um poder público hábil a garantir direitos eventualmente concedidos pela lei.
82
representativo e de escolher alguém como representante político. O voto adquiria o sentido
de uma ação relativa a lutas locais. As eleições eram relevantes nas disputas locais, pois
envolviam prestígio e cargos públicos. Mas entrava em disputa o domínio do poder local e
não o exercício de um direito de cidadania. Vencia a eleição quem mobilizava maior
número de dependentes. Violência e fraudes eram recursos corriqueiros.
Ao analisar o sistema eleitoral e os partidos políticos imperiais, Carvalho
(2004) aponta as três diretrizes da regulamentação eleitoral: (1) a definição de cidadania,
ou seja, de quem pode votar e ser votado; (2) a garantia de representação da minoria, de
forma a evitar a ditadura de um partido ou facção; e (3) a verdade eleitoral, a fim de
eliminar influências espúrias, seja da parte do governo, seja da parte do poder privado.
Em relação à definição de cidadania, houve uma involução, com um
constante movimento de restrição da participação. A manutenção do envolvimento popular
em níveis baixos era justificada pela qualidade do voto e pela lisura nas eleições. Alegava-
se que a participação ampliada, sobretudo a do analfabeto, potencializaria a corrupção
eleitoral, pois os populares careceriam de condições de entendimento e de independência
para exercer a função do voto, resultando daí a manipulação e o falseamento das eleições.
Os proprietários rurais também tinham interesse na redução do eleitorado. Em Congresso
Agrícola de 1878, argumentavam que o “alto” nível de participação onerava o processo
eleitoral, pois se viam obrigados a manter sob sua proteção grande número de votantes que
não lhes interessava como mão-de-obra. Portanto, a restrição à cidadania baseava-se, de
um lado, em preocupações com a lisura do pleito e com a autenticidade da representação e,
de outro, no interesse econômico dos grandes proprietários travestidos de chefes políticos.
Estava em pauta o dilema político imperial: como vincular o governo aos interesses da
classe proprietária rural, mantendo, porém, seu papel de árbitro dos conflitos entre setores
desta mesma classe.
Nas eleições, havia uma lógica de ferro que levava os partidos no poder a
intervir no processo, derrotando em parte os esforços de reforma que eles mesmos
empreendiam. Em Teatro de Sombras, o autor conclui que a causa principal do círculo
vicioso não estava no Poder Moderador, mas nas eleições. Se havia tensão, mas não
crise, era porque o Poder Moderador apoiava-se em razões políticas para agir. De fato, o
próprio Imperador queixava-se da dificuldade de aferir a opinião pública devido à natureza
das eleições, o que o forçava a recorrer a outros indicadores para definir sua ação, como a
imprensa e as lideranças políticas.
83
Ademais, a interferência do Poder Moderador funcionava como um
facilitador da representação da minoria, pois tornava temporária a derrota de um dos
partidos, viabilizando o bipartidarismo e um conflito regulado. Sem o Poder Moderador, o
conflito seria extralegal ou suprimido por arranjos de dominação como os da República
Velha, quando criados partidos únicos estaduais. Haveria a perpetuação de um grupo no
poder, entremeada de revoltas e golpes de Estado, como era comum na América Latina
(Carvalho, 2004). Por isso, “a redução do arbítrio do Poder Moderador pelas leis eleitorais
e pelo fortalecimento dos partidos redundou em maior conservadorismo político, em maior
afastamento entre o poder e a nação. A tentativa de transformar em realidade a ficção
parlamentar acabou por transformar em ficção a representatividade dos partidos” (idem:
413). Fenômeno levado a curso com a reforma de 1881, estendeu-se pela República Velha.
Carvalho (2003) nota que, mesmo após a abolição da escravatura, não se
instalou aqui o sentido de igualdade de cidadania. Os valores da escravidão, disseminados
por toda a sociedade, minavam o desenvolvimento de uma consciência de direitos tanto
pelo senhor como pelos escravos.
O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de muitos (Carvalho, 2003: 53).
Escravidão, grande propriedade e comprometimento entre poder privado e
poder público deixaram marcas, limitando, de forma duradoura, a generalização do
reconhecimento universal de direitos.
Até 1930, houve uma cidadania negativa. Com a participação política
limitada a pequenos grupos, o povo só agia politicamente quando se deparava com atos
que considerava arbítrio das autoridades. Logo, não ingressou no sistema político,
assistindo-o curioso e desconfiado.
Na década de 1930, puderam-se observar ensaios de participação política,
com movimentos políticos de maior amplitude e organização, a exemplo da Aliança
Nacional Libertadora (ANL). A cidadania política avançou com o voto secreto, a justiça
eleitoral, o voto feminino e mesmo com uma tentativa de representação classista. Todavia,
de 37 a 45, o processo foi refreado, instalando-se uma ditadura civil, garantida pelas forças
armadas. Órgãos técnicos substituíram o Congresso, o governo legislava por decreto,
manifestações políticas foram proibidas e tentou-se adotar o corporativismo, forma de
84
rejeição do conflito social e de apostar na cooperação entre trabalhadores e patrões, sob
supervisão estatal.
Durante o período varguista (1930/45), os trabalhadores urbanos (sobretudo
a classe operária) foram incorporados à sociedade por leis sociais. E isso não como
resultado de uma ação sindical e política independente. Ao contrário, os direitos sociais
vingavam num momento de restrições civis e políticas. Promoviam ainda a dependência ou
lealdade pessoal aos líderes, sendo vistos como um favor do governo. Afim à cultura
política do povo, sobretudo aos migrantes rurais que seguiram para o meio urbano,
desenvolvia-se uma cidadania passiva e receptora (Carvalho, 2003).
Com o fim da ditadura, houve significativos avanços na cidadania política.
Promulgada uma Constituição em 1946, foram mantidos os direitos sociais e ampliados os
civis e políticos. O percentual e o número absoluto de votantes cresceram. Também se
ampliou a ação política organizada em partidos, sindicatos, ligas camponesas e outras
associações. A urbanização acelerada favorecia eleições mais limpas, ao diminuir a
vulnerabilidade do eleitor ao aliciamento. A contrapartida era o populismo, que, de todo
modo, envolvia certa reciprocidade entre líderes e trabalhadores, além de assumir um
dinamismo responsável pelo fortalecimento dos partidos populares e pelo aumento da
independência e discernimento dos eleitores, frutos de paulatino aprendizado democrático.
Analisando o período 1946/ 64, Schwartzman (1982) identifica os aspectos
de seu sistema eleitoral: a cooptação de líderes políticos; o paternalismo; e o isolamento
político do centro econômico e dos núcleos urbanos. Esse sistema não resistiu à crescente
mobilização e à nacionalização da política, que conferiram a São Paulo peso eleitoral
decisivo nas vitórias de Jânio Quadros e João Goulart, em 1960. Ao final desse período,
para estancar a progressiva mobilização das massas urbanas, tentou-se utilizar a cooptação
política, mas esse intento fracassou por falta de apoio econômico, militar e internacional.
Como alternativa, adotou-se a restrição forçada da participação política, concentrando o
poder no Executivo, insulando-o do processo eleitoral. A participação limitou-se ao
Legislativo, onde formas tradicionais de controle do eleitorado ainda prevaleciam.
De fato, teve início uma ditadura militar que se estendeu de 1964 a 1985.
Como era maior a mobilização e mais desenvolvidos os meios de controle, a repressão
política foi mais extensa e violenta do que a do Estado Novo. No entanto, durante esse
período houve intenso crescimento do eleitorado, levando Carvalho (2003) a questionar-se
sobre o significado do direito político de votar para os milhões de cidadãos que o
85
adquiriram justo quando os órgãos de representação, como os partidos e o Congresso, eram
aviltados e serviam como instrumentos do hipertrofiado Poder Executivo.
Durante o período de maior repressão ocorreu o milagre econômico. Dessa
forma, a expansão da economia mantinha a renda familiar, restando despercebida a crescente
desigualdade social. Além disso, às custas do cerceamento de direitos civis e políticos,
ampliaram-se os direitos sociais, a exemplo da unificação e universalização da previdência.
No entanto, na segunda metade da década de 1970, emergiram diversos
movimentos populares reivindicatórios, que apontavam para alterações na cultura política
brasileira, ao abrigar lutas por direitos e cidadania. Nesse sentido, pode-se mencionar o
novo sindicalismo, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a expansão de associações
profissionais de classe média e movimentos sociais urbanos como os de favelados e
associações de moradores de bairros de classe média. O fim do regime militar foi marcado,
inclusive, por grande mobilização popular, cujo auge foi o movimento Diretas Já, em 1984.
Carvalho (2003) conclui que a intensa participação popular ao final do
regime militar comprova que, em comparação ao Estado Novo, a concessão de direitos
sociais conjugada à restrição de direitos civis e políticos, foi menos perniciosa para efeitos
de mobilização política. Mas outros fatores também criaram condições para a ampla
mobilização e organização sociais, como o aumento dos mercados de consumo e de
emprego e o grande crescimento urbano do período.
Com a redemocratização e a promulgação da Constituição Federal de 1988
(CF/88), uma série de direitos civis foi restabelecida e ampliada. Daí então, suas maiores
deficiências residem no acesso diferencial, já que as populações empobrecidas dos meios
urbano e rural vêem precarizados esses direitos, seja pela deficiência dos serviços públicos
ofertados, seja pelo déficit educacional (que tem relação com os serviços) 38 que lhes mina
o pleno exercício da cidadania.
Com efeito, se os direitos sociais de caráter universal ampliados pela CF/ 88
promoveram melhoria da qualidade de vida, não se evitou a deterioração dos serviços
públicos, especialmente os usufruídos pela população mais pobre. Por sua vez, os direitos
políticos adquiriram amplitude nunca antes observada no país. Não obstante, como
a democracia política frustrou expectativas, ao não resolver graves problemas sociais e
38 Carvalho (2003) enfatiza a relação positiva entre educação e fruição de direitos. Também Bendix (1996: 122) afirma que “dois atributos da educação básica transformaram-na num elemento da cidadania: o governo tem autoridade sobre ela, e os pais de todas as crianças de um certo grupo etário (geralmente dos 6 aos 10 ou 12 anos) são obrigados por lei a providenciar para que os filhos frequentem a escola”. Sobre a relação entre escolaridade e valores propícios às instituições democráticas, confira-se Araújo (2000), a partir de pesquisa empírica realizada no Distrito Federal.
86
econômicos, v. g. a desigualdade e o desemprego, não se pode considerá-la estabilizada.
Vianna (2000) levanta a hipótese de que a ineficácia de um sistema de
proteção social pode residir nas distorções presentes na seqüência e forma de incorporação
dos atores ao cenário político. No caso brasileiro, ao invés de se organizarem em partidos
políticos, os grupos mais fortes se fizeram representar dentro do Estado, inviabilizando a
formatação de um referencial (um “nós”) inclusivo (as regras gerais promovem privilégios
para uns e penalidades para outros). Com isso, o Estado pode aparecer como benfeitor, mas
se afigura, de fato, incapaz de exercer as funções de produtor e distribuidor de bens
públicos. Para a autora, sem uma esfera pública inclusiva, onde obrigações e direitos
formais erijam um mínimo de solidariedade social, não é possível que os conflitos
inerentes às sociedades de classe resolvam-se favoravelmente para “os de baixo”.
Para Carvalho (2003), a prevalência conferida aos direitos sociais 39,
surgidos em contexto de restrições civis e políticas, inibe a eficácia da democracia, sendo
efeitos seus: a excessiva valorização do Poder Executivo, resultando numa ação política
voltada mais para o Estado do que para a representação (“Estadania”); efeitos correlatos
são a expectativa de emergência de um messias político e a desvalorização do Legislativo.
Segundo o autor, a cultura política estatista liga-se ainda a uma visão corporativista dos
interesses coletivos, onde cada grupo tenta garantir direitos e privilégios junto ao Estado,
como ocorreu durante a Constituinte de 1987/88. Conclui então que
A ausência de ampla organização autônoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. A representação política não funciona para resolver os grandes problemas da maior parte da população. O papel dos legisladores reduz-se, para a maior parte dos votantes, ao de intermediários de favores pessoais perante o Executivo. (...) Cria-se uma esquizofrenia política: os eleitores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais (idem: 223/224).
4.2 - Direitos sociais e sua interface com o quadro político
Neste tópico deslindaremos como vieram à tona os direitos sociais e qual o
escopo que assumiram até os dias atuais. Para efetuarmos tal análise, fixamos duas partes.
Na primeira, abordaremos a emergência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), à
luz do quadro político e da modernização e industrialização que tomou impulso a partir da
Revolução de 1930. A segunda terá contornos mais amplos, partindo da denominada “cidadania
39 Para averiguar a identificação entre direitos sociais e cidadania, confira-se ‘Lei, Justiça e Cidadania’. Trata-se de pesquisa realizada no Rio de Janeiro pelo CPDOC/ ISER, onde um dos temas inquiridos foi a percepção da população carioca acerca desse tema.
87
regulada” (Santos, 1998) até alcançar o tempo presente, onde direitos universais são
acompanhados por uma “americanização perversa” da cidadania (Vianna, 2000).
4.2.1 – A emergência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
A emergência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) resultou de um
processo desencadeado a partir da Revolução de 1930. Para compreendermos a nova
configuração econômica, política e social que então se desenhou é salutar entendermos o
significado da crise vivida ao final dos anos 1920, que, para Werneck Vianna (1999),
residia em pressões vindas de baixo (das camadas médias urbanas e da classe operária) no
sentido de democratizar o liberalismo excludente em vigor. Movimento interno à
sociedade, não tinha condições de ser comandado pela burguesia agro-exportadora à época
dominante, já que vinculada à dinâmica externa. Era preciso um Estado hábil a satisfazer
os interesses dos vários grupos sociais, através de um projeto universalizador e
modernizante.
Havia que atender-se a atividade agroexportadora, politicamente derrotada, mas vital economicamente para o estabelecimento da nova ordem, diversificá-la, estimular a produção agrícola para consumo interno, consultar as reivindicações dos industriais, elevar o standard de vida das camadas médias urbanas e encaminhar a “questão social” (Vianna, 1999: 170).
O autor firma a tese da revolução pelo alto, onde sobreleva a importância do
setor agrário não exportador. Mas o influxo modernizador conjugou industrialização e
expansão do mercado interno, donde a íntima articulação entre a grande propriedade
agrária e o centro urbano-industrial. Por seu turno, o formato corporativo dos canais de
participação, controlado e manipulado pelo Estado, encobria o caráter excludente do
sistema político, impeditivo da livre movimentação dos grupos na sociedade. Para o autor,
o elemento característico do corporativismo implantado a partir de 30 residia na busca da
“paz social”, não através da pura violência, como antes ocorria, mas sobre um amplo
consenso que obrigasse politicamente os trabalhadores.
Enquanto as camadas médias urbanas eram cooptadas para o exercício de
funções públicas, a força de trabalho era submetida à rígida disciplina inscrita na legislação
trabalhista. Com efeito, durante a Primeira República a hostilidade dos industriais à
implementação de leis sociais encontrava fundamento em sua adesão aos postulados
liberais de tipo fordista. Atraía-lhes nestes a sua face autoritária, em que a hegemonia
projetava-se a partir da fábrica, sem regulação do Estado. Contudo, a nova postura estatal
88
de submissão tutelar dos trabalhadores ganharia rapidamente o apoio empresarial,
condicionado à possibilidade de postergação, ou mesmo de retificação, da aplicação de
certas leis sociais.
Diferentemente de Werneck Vianna, para Weffort, embora o setor agrário
não exportador tenha se associado às camadas médias para empreender a Revolução de
1930, depois eclodiu uma circunstância de compromisso, onde nenhum dos grupos sociais
conseguia ter o predomínio político. Como o compromisso não era capaz de legitimar o
Estado, recorreu-se às massas populares urbanas como fonte de legitimação possível.
Atender às aspirações populares era um meio de os revolucionários manterem e mesmo
ampliarem sua liberdade de ação. Assim é que,
Através de Getúlio, o Estado criará uma estrutura sindical que controlará [as massas urbanas] durante todas as décadas posteriores, ‘doará’ uma legislação trabalhista para as cidades (atendendo assim à pressão das massas urbanas, que manipula, sem molestar os interesses do latifúndio), estabelecerá, através dos órgãos oficiais de propaganda, a ideologia do ‘pai dos pobres’. Enfim legalizará a ‘questão social’, ou seja, reconhecerá para as massas o direito de formularem reivindicações (Weffort, 1978: 51).
Se as massas populares não tiveram papel ativo no movimento
revolucionário, depois foram incorporadas politicamente, face à instabilidade de equilíbrio
do novo regime. Dessa forma, para o autor, tanto o movimento de 1930 resultou de uma
alteração de estrutura de poder operada “de cima”, como a posterior participação daquelas
massas no jogo político ocorreria “de cima para baixo”. Essa era a condição histórica do
regime inaugurado e do populismo que teria curso nas décadas seguintes. De todo modo,
Para as massas populares a legislação do trabalho significará a primeira forma através da qual elas verão definida sua cidadania, seus direitos de participação nos assuntos do Estado, e será também um dos elementos centrais para entendermos o tipo de aliança que passarão a estabelecer com os grupos dominantes através dos líderes populistas. (idem: 66).
Em sua análise, Werneck Vianna confere ênfase ao caráter desmobilizador
do sindicalismo corporativo anterior a 1935. O decreto nº 19.433/ 1930 estabelecia o
sindicato único, definido como órgão de colaboração com o poder público. Havia o claro
objetivo de harmonizar o conflito entre capital e trabalho. “Quanto a fins econômicos,
visava-se disciplinar o trabalho como fator de produção; quanto a fins políticos, vedar a
emergência de conflitos classistas, canalizando as reivindicações dos grupos sociais
envolvidos para dentro do aparato estatal” (Vianna, 1999: 184).
O reconhecimento sindical pelo Ministério do Trabalho demandava uma
série de exigências que acabava expurgando os sindicalistas orientados para a defesa dos
interesses classistas dos trabalhadores. Embora facultativa a sindicalização, estimulava-se a
89
adesão, limitando aos sindicalizados o direito às férias (Decreto nº 23.768/34) e a
possibilidade de formular reclamações junto às Comissões de Conciliação e Julgamento
(Decreto nº 23.768/34). Ademais, os contratos coletivos obrigavam a todos, já que os
sindicatos eram definidos como órgãos delegados do poder público. O Estado garantia-lhes
o controle de toda categoria e canalizava para o seu interior quaisquer reivindicações
operárias, cujo âmbito era definido pelo próprio Estado. “Desmobilização, despolitização e
desprivatização, eis o tripé que informava a nova sistemática oficial” (Vianna, 1999: 186).
O autor aponta que, de 1935 a 1937, o Estado Novo só aguardava ratificação
constitucional, dado o fechamento de sindicatos autônomos e a prisão de seus líderes. Os
empresários, por seu turno, acabaram se apropriando do corporativismo para aumentar seu
esforço de acumulação, defendendo seus interesses junto ao aparato estatal. Saiu a
ideologia de cooperação entre as classes e vingou um Estado autoritário e modernizante.
Contudo, o plano de controle esbarrava na tendência de esvaziamento da
estrutura sindical pelas massas assalariadas. A lei sindical tentava refrear isso atribuindo
funções assistenciais e colaboracionistas aos sindicatos, mas a tendência persistia entre os
empregados, ao passo que o patronato ampliava o número de suas entidades classistas
oficiais 40. A estrutura sindical centralizada e verticalizada e a conversão dos interesses
econômicos de classe em matéria jurídica, objeto da Justiça do Trabalho, tornavam inócuos
os sindicatos, afastando os trabalhadores. Além de não cumprirem a tarefa de mediadores
entre o Estado e a classe, vazios os sindicatos havia o risco de as classes subalternas
intentarem organizar entidades paralelas. Assim, ao tempo em que o governo lançava
campanha massiva em favor da sindicalização, criava o imposto sindical (Decreto-lei nº
2.377/ 1940), obrigando todos os empregados, independentemente de filiação, a pagarem
ao sindicato o valor de um dia de trabalho por ano. Com isso, instrumentalizavam-se as
entidades sindicais a cumprirem as funções colaboracionistas que lhe atribuíra a lei sindical
de 1939. “A mobilização para os sindicatos se fará em torno da prestação de serviços
diversos, de interesse freqüentemente vital para os assalariados” (Vianna, 1999: 290).
Outra medida que teve curso em 1940 foi a criação da primeira tabela do
salário mínimo. Observou-se a fórmula do mínimo vital ou biológico: “resultante do
somatório das despesas diárias de um trabalhador adulto em alimentação, habitação,
vestuário, higiene e transporte” (idem: 295).
Os valores fixados não elevaram o padrão de vida do operariado industrial, _______________________________________________________________________________________ 40 Vianna (1999) ressalva que o colaboracionismo era facultativo para as classes proprietárias, evidenciando, ainda mais, o desigual tratamento conferido às classes pelo Estado Novo.
90
já que obedeceram à remuneração média dos centros urbanos, apesar de ligeiramente
depreciada. Por outro lado, o salário mínimo teve fundamental importância, pois passou a
ser utilizado como norte pela Justiça do Trabalho, nos casos de dissídio coletivo. Proibidas
as greves, era usual as reivindicações salariais escoarem para aquela esfera. Regulado o
salário mínimo a partir do indispensável para a reprodução biológica da força de trabalho,
tê-lo como parâmetro significava aviltar a remuneração do trabalhador qualificado, o que
representava grande vantagem para o esforço acumulativo industrial.
Essa conseqüência foi observada por Francisco de Oliveira (1972), autor
que explica a transição brasileira do modelo agro-exportador para o urbano-industrial,
segundo a lógica de acumulação do capital e tendo a dinâmica interna da economia como
fator preponderante. Também compõe sua análise a dinâmica política, figurando, além do
Estado, as diferentes forças políticas que buscavam hegemonia.
Para o autor, a transição supramencionada significou a mudança de um modelo
onde o processo de acumulação se dava no plano externo, para outro em que ele passou a
ocorrer internamente. Se antes a elite agro-exportadora era a hegemônica, agora a elite
industrial ocupou esta posição. Do mesmo modo, o Estado passou a atender
predominantemente aos seus desígnios. No entanto, a revolução burguesa brasileira não foi
completa, já que não destruiu o modelo agro-exportador e sua elite. Por isso, Oliveira
(1972) fala em unidade de contrários. No Brasil, o novo alimentou-se dialeticamente do
velho, daí a impertinência de teorias dualistas que opõem atrasado versus moderno.
O Estado assumiu importantes papéis, dentre eles merece destaque a
regulamentação dos fatores de produção, com o advento da legislação trabalhista, e,
especialmente, com o estabelecimento do salário mínimo.
O salário mínimo possibilitou que demandas específicas de mão-de-obra
(ocupações que exigiam habilidades determinadas) não ficassem estritamente sujeitas à
oferta de mercado para fixação do preço. Ou seja, ele homogeneizou a força de trabalho, a
depreciando na média, gerando então maior acumulação de capital.
A questão agrária também foi fundamental, contribuindo de três maneiras: o
setor agro-exportador gerou as divisas essenciais à aquisição de bens de capital, matérias-
primas, combustíveis,...; e o setor interno forneceu alimentos baratos, ajudando a não
elevar o custo de reprodução da força de trabalho urbana. A terceira forma consistiu na
liberação de mão-de-obra do campo para a cidade, o que propiciou uma abundância de
mão-de-obra urbana (“exército industrial de reserva”), rebaixando os salários.
A abundância de terras e de mão-de-obra permitiu à agricultura manter-se
91
arcaica, promovendo a acumulação pela super-exploração da mão-de-obra. Explica-se,
assim, por que a legislação trabalhista não foi implementada no campo. Esse quadro
reduzia os custos dos alimentos destinados ao setor urbano e mantinha as altas rendas das
elites agro-exportadoras. Em síntese, a “associação” entre campo e cidade foi possível,
porque a manutenção de uma exploração extensiva do campo permitiu manter baixo o
custo de reprodução social da força de trabalho urbana.
Retomando a questão do salário mínimo, Vianna (1999) alerta que,
ressalvado o caso do operariado industrial, ele representou uma melhora efetiva para os
demais assalariados urbanos, fato que atendia os clamores industriais pela ampliação do
mercado interno. O efeito político de tal operação residia na criação da massa popular que,
incorporada parcamente ao mercado, forneceria a base de apoio do populismo.
Depois, em 1943, as normas tutelares do trabalho foram sistematizadas num
todo orgânico e coerente, abarcando a legislação edificada desde a Revolução de 1930. No
dia 1º de maio daquele ano, editava-se o Decreto-lei nº 5.452, a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT). Embora cada uma de suas partes constituísse um subsistema, os sindicatos
eram o núcleo de sua estrutura, cujo conjunto convergia para reduzir a autonomia das classes
subalternas, minando a eclosão de conflitos entre o capital e o trabalho. Por outro lado,
Os direitos elementares do trabalho, encorpados com a legislação do salário mínimo e com os benefícios da previdência social, beneficiando em massa os assalariados, correspondiam à contraprestação ‘outorgada’ pelo Estado à ‘contenção sindical’. Em razão disso, o Estado se revestia da conotação de benefactor, e não à toa que o inspirador dessa política chegou a ser conhecido como o ‘pai dos pobres’ (Vianna, 1999: 300/301)
4.2.2 – Da ‘cidadania regulada’ à ‘americanização perversa’ da cidadania
Santos (1998) analisa como, no Brasil, ocorreu a transição entre uma ordem
liberal, onde o Estado não assegurava qualquer proteção social e entregava ao mercado a
resolução dos desequilíbrios sociais produzidos no processo de acumulação, para outra em
que os direitos sociais seriam conferidos conforme o reconhecimento estatal, através da
regulamentação de profissões.
Durante o século XIX, exceto pelo problema do trabalho escravo, o Brasil
alinhava-se ao liberalismo vigente, adotando o princípio da não-regulamentação das
profissões. Ausente qualquer proteção social, havia somente associações beneficentes
privadas por ofício. Enfim, o autor localiza entre 1888 e 1931 o período de vigência do
laissez-faire brasileiro, ressaltando, porém, (1) o descompasso entre as áreas rural e urbana
92
quanto à vigência das leis de mercado, de forma que o laissez-faire restringiu-se à última; e
que (2) a produção de leis sociais, durante a década de 1920, não invalidava o laissez-faire,
mas já indicava a fragilidade dos automatismos de mercado.
Em 1923, criou-se, através do Decreto-lei 4682 (Lei Eloy Chaves), a Caixa
de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários, fixando um esquema contratual, onde
contribuíam os empregadores, o Estado e os empregados. Ao invés de um direito de cidadania
atribuído aos membros de uma comunidade, tratava-se de um compromisso privado e
restrito à dimensão de uma empresa. Mas esse modelo se difundiu amplamente até 1933.
Se as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs) apenas compensavam as
debilidades distributivas do processo de acumulação, este receberia regulação efetiva após
a Revolução de 1930. Vargas ampliou a legislação trabalhista e, sobretudo, implementou
meios para o seu cumprimento, criando o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
em 1931. A política previdenciária, para o autor ligada à eqüidade, recebeu atenção do
governo em 1933, quando criado o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos,
que cobria esta categoria profissional, diferentemente das CAPs (organizadas por empresas),
e, embora estruturado em colegiado paritário, tinha um presidente nomeado pelo Estado.
A forma estatal dos IAPs expandiu-se por várias categorias que desfrutavam
então de serviços de extensão e qualidade proporcional à “força” do respectivo instituto, o
que, por seu turno, vinculava-se à contribuição da categoria para o esforço acumulativo.
Portanto, unificou-se, sob a jurisdição estatal, os problemas de acumulação e eqüidade. É
nesse sentido que Santos (1998) formulou o conceito de cidadania regulada, como aquela
definida de acordo com um sistema de estratificação ocupacional legalmente estabelecido,
ao invés de respeitar um código de valores políticos. Com efeito, no pós-30, a extensão da
cidadania foi tributária da regulamentação das profissões, preterindo-se a pertença à
comunidade política como valor-base para a expansão de direitos. Assim, os que, apesar de
participarem do esforço acumulativo, tinham ocupações difusas para efeitos legais, como
os trabalhadores rurais, as empregadas domésticas e variada gama de trabalhadores
urbanos, caracterizavam-se como pré-cidadãos.
Os direitos de cidadania derivavam, então, dos direitos profissionais. A
carteira profissional funcionava como uma certidão de nascimento cívico, pois, mais do
que comprovar o vínculo empregatício, representava um “contrato” pelo qual o Estado
garantia a cidadania regulada ao indivíduo. Por outro lado, abria-se um conflito político e
intraburocrático, já que, cabendo ao governo administrar os benefícios sociais, estes
deixavam de ser alvo de demandas específicas (saúde, saneamento, habitação, ...) e
93
assumiam caráter difuso, pois as reivindicações gravitavam em torno do reconhecimento
profissional, que, ademais, se transformava em condição prévia para o ingresso na arena
política. Por conseguinte, o Estado definia quem seria cidadão, e os sindicatos
desempenhavam o papel de órgãos de colaboração. Consolidou-se a vinculação entre
acumulação e eqüidade: os benefícios sociais atrelavam-se à contribuição das categorias
profissionais para o crescimento, observado o controle estatal. À estratificação na esfera da
produção correspondia a estratificação dos benefícios previdenciários e da assistência
médica. Além disso, os IAPs mais poderosos eram os das categorias melhor aquinhoadas,
dado o caráter tripartite de contribuição. A burocracia sindical integrou-se otimamente ao
sistema estratificado de cidadania, com as lideranças mantendo-se submissas ao controle
do Ministério do Trabalho a fim de gozar os postos de mando do sistema previdenciário.
Santos (1998) ressalta que durante o limitado período democrático
observado entre o fim do Estado Novo e o movimento militar de 1964, a regulamentação
de profissões continuou sendo o principal critério de expansão da cidadania. Nesse
período, só abalou a cidadania regulada a Lei Orgânica de Previdência Social (LOPS), de
1960. Sem unificar, ela uniformizou os benefícios previdenciários, rompendo o vínculo
entre estes e a capacidade contributiva das respectivas categorias profissionais. Mas os
trabalhadores rurais, as domésticas e os autônomos continuaram sem cobertura.
Durante a década de 1950, com o incremento das taxas de crescimento
econômico, de urbanização e de inflação, aumentou a diferença entre os benefícios
previdenciários reservados às diversas categorias ocupacionais. As disputas internas das
oligarquias sindicais acirraram-se à medida que aumentou o seu poder burocrático. Essas
‘oligarquias’ tiveram uma ação de natureza dúplice: na esfera da acumulação,
pressionavam o Estado em prol de seus representados, cristalizando suas posições; e, na
esfera da eqüidade, opuseram-se às propostas de uniformização e unificação de serviços.
A maior competitividade política, mesmo que restrita, permitiu que novos e
velhos grupos sociais, não reconhecidos para efeito de cidadania regulada, iniciassem
movimentos reivindicativos de direitos, como as ligas camponesas. De modo geral,
aumentaram as ações coletivas vindicando maior participação na riqueza produzida. A
radicalização de demandas e a intolerância política dos atores sociais, associadas à
incapacidade estatal de administrar os conflitos e distribuir os recursos, geraram um quadro
de paralisia governamental, permeada pela ausência de instituições hábeis a conjugar o
processo de acumulação com os parâmetros de eqüidade. “Após pouco menos de 20 anos
de prática de democracia relativa, esta revelou-se incompatível com uma ordem de
94
cidadania regulada” (Santos, 1998: 113). Esta a interpretação conferida pelo autor ao
episódio de 1964. Reordenaram-se, por via autoritária, as instituições que davam esteio ao
esforço de acumulação e às políticas compensatórias.
Em 1964, o governo autoritário que tomou o poder aumentou o ritmo de
expansão da cobertura previdenciária. Pelo Decreto nº 76/ 66, criou o Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS), unificando administrativamente todos os IAPs, excetuado o
IPASE. Aumentava-se a racionalidade e o controle sobre o sistema, mas o afastamento dos
interesses privados da gestão diminuiu o controle público, gerando o aumento de
corrupção, conjugado à perda de qualidade dos serviços.
O autor enumera várias medidas implementadas até 1974: o FGTS (1966); o
Prorural (1971), que, definindo recursos, foi o primeiro dispositivo previdenciário efetivo
destinado aos trabalhadores rurais; as leis nº 5.859/ 72 e 5.890/73, estendendo a
previdência social às domésticas e aos autônomos; e o Ministério da Previdência e
Assistência Social (MPAS), em 1974. A partir de então, verifica-se, segundo Santos
(1998), a progressiva desproteção social, com o crescimento do mercado informal e a
insuficiente institucionalização de medidas hábeis a administrar os desequilíbrios sociais
oriundos da esfera econômica.
Como complemento a esse diagnóstico, vale nos reportarmos à obra de
Maria Lúcia Werneck Vianna (2000), que investiga a trajetória do sistema de seguridade
social brasileiro, desnudando os fatores de natureza política que impedem a concretização
do modelo universalista inscrito na Constituição Federal de 1988.
Segundo a autora, no Brasil, inexistem os formatos neocorporativos de
organização de interesses que viabilizam o Welfare State nas sociais-democracias
européias. Nossa situação assemelha-se mais à americana, onde interesses fragmentados
competem entre si para influenciar os processos decisórios. Por conseqüência, não se
configuram as bases de apoio e solidariedade propiciadoras de um Estado de Bem-estar de
contornos universalistas. “Assim, como ocorre nos EUA, as políticas sociais brasileiras
acabam sendo políticas para os pobres, estimulando-se os assalariados formais e as
camadas médias à obtenção de seguridade no mercado” (Vianna, 2000: 08). Ou seja,
apesar de formalmente universais, as provisões públicas têm-se limitado progressivamente
aos pobres, enquanto a minoria mais aquinhoada recorre ao mercado para obter planos ou
seguros privados de melhor qualidade.
Portanto, na ausência de pactos estabilizadores (concerto entre
trabalhadores, empregadores e governos) dos sistemas avançados de Welfare State, no
95
Brasil uma “americanização” marcou a expansão das políticas sociais a partir da década de
1960. Utilizando como exemplo (generalizável a outras políticas sociais) o sistema
previdenciário brasileiro, a autora afirma que este,
montado durante o Estado Novo em moldes bastante próximos àquele instituído na Alemanha por Bismarck nos anos 80 do século passado, embora tenha sido reformado à inglesa pela Constituição – no espírito universalista da social security – vem se americanizando a passos largos. Ou seja, as provisões públicas ficam para os pobres (que em geral têm baixa capacidade de expressar o desagrado com a negligência que os prejudica) e o mercado se encarrega da oferta de proteção – a preços e qualidade variáveis de acordo com o bolso do cliente – aos que dispõem de alguma renda para comprá-la (Vianna, 2000: 14).
O impulso universalizador ocorreu durante a ditadura militar, quando a
Previdência alcançou, formalmente, trabalhadores rurais, empregados domésticos e
autônomos. Mas se o sistema não se expandiu seletivamente, hierarquizando a cidadania, a
nivelou num plano inferior. Ademais, obstruiu os canais corporativos de participação que
antes permitiam canalizar, ao menos parcialmente, as demandas dos trabalhadores.
Deve-se atentar também que o regime militar enfeixou uma intensa
modernização econômica. Daí resultou a expansão do parque industrial, a diversificação da
estrutura ocupacional e a eclosão de múltiplos interesses. Esses elementos, associados às
medidas firmadas nos parágrafos precedentes, conduziram à superação do modelo varguista
implantado a partir da década de 1930.
Maria Lúcia ressalta os diferentes métodos de condução das políticas
econômica e social no período em comento. Enquanto as primeiras eram elaboradas e
decididas no âmbito de agências governamentais permeáveis aos interesses empresariais,
ainda que de forma fragmentária; as políticas sociais eram regidas por sistemas
centralizados e tecnocraticamente administrados, sem nenhuma participação dos cidadãos.
Fechamento dos canais de expressão – partidos políticos minimizados, Parlamento enfraquecido, sindicatos controlados, movimentos sociais sob suspeita, etc. – e despolitização das relações sociais foram, por outro lado, ingredientes fundamentais na materialização de mais um aspecto negativo da política social brasileira sob o regime autoritário: sua ‘politização distorcida’. Mantida a aparência constitucional, com a realização de eleições e câmaras legislativas em funcionamento, a política social transformou-se, através das imensas máquinas burocráticas que a operavam, dos cargos disponíveis e dos serviços prestáveis, no reino da política clientelista, eleitoreira e fisiológica (idem: 144/145).
No entanto, o efeito mais profundo foi atrelar o sistema a uma lógica
privatizante, com a adoção irrestrita de critérios de mercado ou de eficiência empresarial
na gestão de programas sociais, e com a terceirização, contratando serviços de particulares
sem expandir os investimentos da rede pública. Essas contratações serviram de base para a
96
posterior consolidação de uma rede privada de serviços voltada à parcela da população
com renda suficiente para comprá-los.
Esse processo foi reforçado pela crescente lógica lobbista de organização
dos interesses, o que, segundo a autora, se manifestou claramente durante a Assembléia
Constituinte. No período democrático, os instrumentos e os canais de comunicação entre
segmentos da sociedade, principalmente empresariais, e o Congresso diversificaram-se.
Acompanhou este movimento a fragmentação de interesses.
Maria Lúcia explica que, por terem caráter multifacetário, os lobbies
inviabilizam acordos de maior abrangência, base de robustos sistemas de proteção. Por isso
não houve um concerto hábil a impedir uma perversa complementariedade entre o público
e o privado, conforme uma lógica de universalização excludente: aos cidadãos são
conferidos direitos universais, mas seu exercício é estratificado de acordo com a capacidade
do cidadão-consumidor. A autora ressalta que, pautados por discursos universalistas, os
sindicatos de trabalhadores atuam de forma pulverizada, reforçando esse movimento e
inviabilizando amplos concertos que pudessem fundar um pacto de solidariedade
abrangente, como no Welfare State.
No Brasil, os que não têm acesso a tais formas de ação reivindicativa são muitos milhões que não podem ser descartados do discurso (pelo menos) das centrais sindicais, tanto porque votam nas eleições gerais, como porque representam o ‘lado’ historicamente oprimido cuja defesa as lideranças oriundas do mundo do trabalho sempre encamparam. Daí o paradoxo (aparente) entre a retórica publicista (às vezes bastante radical, como ocorreu durante a trajetória da reforma sanitária) da CUT, por exemplo, e as estratégias particularistas do sindicalismo a ela vinculado (Vianna, 2000: 192).
Daí a conclusão da autora:
Diante de tal quadro, remota é, portanto, a perspectiva de que arranjos social-democratas venham a prevalecer no Brasil. Fragmentação e confronto consistem nas formas dominantes de articulação e relacionamento dos interesses, o que resulta numa base estreitíssima de sustentação para políticas redistributivas (idem: 194).
Além desses aspectos, observamos contemporaneamente novas tendências,
como o estancamento do crescimento em gastos sociais; a gradual inserção de mecanismos
de seletividade, transmutando o eixo das políticas públicas de escopo universal para
programas focalizados onde especificados os públicos-alvo; ou ainda à transferência de
serviços da órbita estatal para entidades privadas, mas geralmente mantendo a regulação e
o financiamento públicos, criando então novos compósitos público-privados.
Vianna (2000) defende a preservação da concepção universalista inscrita na
CF/ 88, embora firme a necessidade de novos arranjos público-privados como estratégia
97
para a consecução das políticas sociais. A autora enfatiza, porém, que nessa combinação o
Estado não pode se furtar de seu papel de regulador e deve agir eficazmente de modo a
evitar que tenham curso fenômenos como o da “americanização perversa” da cidadania.
4.3 - A informalidade ontem e hoje
Já destacamos as demandas por autenticidade e por dignidade como desafios
contemporâneos para o acesso e o exercício da cidadania. Entre as primeiras encontram-se
tensões entre universalismo e particularismo, como as dirigidas contra discriminação de
gênero ou de raça, ou ainda movimentos de minorias étnicas ou de imigrantes. Entre as
segundas é chave a capacidade de o Estado promover a integração sócio-política de seus
cidadãos, num quadro onde sua capacidade de regulação vê-se progressivamente erodida.
E é nesse segundo conjunto que se enquadram as reflexões sobre a informalidade no
Brasil, tanto no passado como atualmente.
Nesse contexto, é válida a indagação de Vidal (2000) acerca da aplicabilidade
ao Brasil de categorias como “desfiliação” e “vulnerabilidade em massa”, utilizadas por
Castel (1995) ao analisar o caso francês. De fato, a profunda desigualdade social brasileira
não observou o desenvolvimento de um regime salarial que englobasse a quase totalidade
da população. Já na França, o Estado Providência edificou-se sobre uma sociedade
assalariada, com um contínuo de posições sociais, se não iguais, ao menos comparáveis.
Se há dúvidas quanto à aplicabilidade das categorias de Castel ao caso
brasileiro, não ocorre o mesmo quanto à conclusão de que o novo ciclo de modernização
capitalista, anunciado pela crise do Welfare State e pelo processo de reestruturação
produtiva, deu curso, a partir dos anos 1970, a um progressivo desassalariamento, que se
faz acompanhar por “processos de inclusão-exclusão orientados por classificações sociais
que expressam novos poderes e hierarquias no mundo do trabalho” (Batista, 2003: 197).
No Brasil, aumentou o desemprego ao longo dos anos 1990, dado o fraco
desempenho da economia e a destruição de postos de trabalho promovida pela
reestruturação produtiva, desencadeada, em grande parte, pela abertura comercial iniciada
naquela década. Dalbosco & Kuyumjian (1999) afirmam mesmo que as reformas
neoliberais implantadas durante os governos Collor & FHC geraram um “choque” de
produtividade. Contudo, sua ampliação, garantida pela tecnologia e pelos novos métodos
de gerenciamento, não foi acompanhada pelo nível de emprego. Houve uma rápida
mudança na composição do emprego, com a redução relativa de postos agrícolas e
98
industriais e o seu aumento nos serviços, comércio e transportes. Ainda, o incremento do
processo de subcontratação/ terceirização impulsionou a proliferação de micro e pequenas
empresas, trabalhadores autônomos e prestadores de serviços.
A informalidade encontra-se no centro desse debate, onde se entrecruzam
temas como reestruturação produtiva; flexibilização e precarização das relações de
trabalho; mudanças nos conteúdos e na cultura do trabalho; e a configuração de novos
padrões de consumo e de estilos de vida (Chinelli e Paiva, 1999).
Para melhor compreendermos o impacto que a informalização tem produzido
sobre o exercício dos direitos de cidadania, é preciso identificarmos tanto as formas de
inserção dos cidadãos no mercado de trabalho, como as características da economia informal.
Machado da Silva (2003) esclarece que a noção de informalidade surgiu nos
anos 1960 para dar suporte ao debate sobre os problemas de integração de crescentes
contingentes de trabalhadores que, nos países subdesenvolvidos, deslocavam-se do campo
para as cidades. Tratava-se de uma abordagem dual referida ao modelo de quase-pleno
emprego dos países desenvolvidos (Welfare State). Nesta perspectiva, considerava-se a
tendência à universalização do trabalho assalariado, cuja institucionalização asseguraria o
acesso aos direitos de cidadania. Tal enfoque analítico acabava desconsiderando, ou
minimizando, as eventuais continuidades entre os mercados formal e informal de trabalho 41.
Com o declínio do keynesianismo, circunstâncias como a desregulamentação,
a descentralização da produção e a multiplicação de pequenas empresas afloraram,
promovendo maior informalização e alterando as fronteiras e a interação entre os setores
formal e informal. “Ao invés de uma tendencial formalização estaríamos diante de uma
crescente informalização, com infração de leis trabalhistas, formas flexíveis de organização
e processos de produção profundamente enraizados em relações familiares e comunitárias”
(Chinelli e Paiva, 1999: 70). Esses autores destacam a importância da unidade doméstica
para a reprodução social. Nos tempos de capitalismo regulado, ou seja, durante a Era de
Ouro 42, os laços de solidariedade do núcleo familiar diminuíram de importância, dada a
extensa e progressiva proteção social via Estado. Contudo, o descenso do Welfare State
exige a restauração de tais laços, pois o aumento da informalidade demanda uma nova
combinação de relações monetárias e de padrões de reciprocidade, além da articulação e
crescente complementaridade entre o formal e o informal. 41 Sobre o continuum entre os mercados formal e informal de trabalho, confira-se Machado da Silva (1971). E sobre as conseqüentes complicações para as políticas contra o desemprego, confira-se Noronha (2003). 42 A expressão não foi utilizada pelos autores. Tomo-a de empréstimo a Hobsbawm (1997). Este autor utiliza-a para se referir ao período que se estende da década de 1950 até o início dos anos 1970, durante o qual as políticas Keynesianas atingiram seu ápice, conformando o Estado de Bem-Estar (ou Welfare State).
99
As transformações profundas que se operaram desde os anos 1970 (e, no
Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980, quando explode a crise da dívida externa
(Pochamann, 2000)) erodiram a confiança na possibilidade de pleno emprego e de
universalização da proteção social. Com isso, o modelo dual (formal/ informal) perde
capacidade analítica, já que o setor organizado (formal-assalariado) 43 sofre a disputa das
relações de trabalho informais, transformadas numa espécie de padrão de referência
concorrente, mesmo nos países europeus (Machado da Silva, 2003). “O assalariamento já
não reina sozinho como parâmetro inquestionável de relação salarial, o processo social
deixou de configurar-se segundo um dinamismo central, com hierarquização entre as suas
dimensões constitutivas, cedendo lugar à idéia de fragmentação e de ‘redes’ entrecruzadas”
(Machado da Silva, 2003: 152/153).
Nos anos 1980 e 1990, houve uma progressiva desestruturação do mercado
de trabalho brasileiro, com a redução do assalariamento com carteira e expansão do
desemprego e de ocupações do setor não organizado da economia. De fato, embora o regime
salarial, com registro, nunca tenha aqui se generalizado como nos países europeus,
seguíamos tal curso, passando de 12,1% da PEA, como assalariada registrada, em 1960,
para 49,2%, em 1980. Onze anos depois, retornamos para 36,6% e, em 1995, para 30,9%.
Em relação ao assalariamento (com ou sem registro), temos a seguinte evolução; 42%, em
1940; 62,8%, em 1991; e 58,2%, em 1995. Conclui-se que, sobretudo nos anos 90, houve
“um movimento de desassalariamento, provocado fundamentalmente pela eliminação dos
empregos com registro” (Pochmann, 2000: 75). Além do processo de dessalariamento, dá-
se a perda de qualidade dos empregos gerados. É o que ocorre com a redução do setor
secundário da economia, cujos empregos são muitas vezes substituídos por ocupações no
terciário, em menor quantidade, qualidade e remuneração.
O aumento do desemprego de longa duração e a proliferação de ocupações
atípicas, irregulares e parciais inviabilizam o padrão de integração social baseado no
emprego regular e de boa qualidade. Desenha-se um processo de vulnerabilização de
amplos contingentes populacionais e um distanciamento do patamar de cidadania por
tempos desejado. Por sua vez, as instituições sociais, como partidos, sindicatos e Estados,
mostram-se incapazes de oferecer suporte aos que sucumbem em meio ao processo social,
43 Termo utilizado por Pochamann (2000), recebe duras críticas, como as de Dalbosco & Kuyumjian (1999), que entendem inadequada a divisão entre um setor formal, estruturado e capitalista, e um setor informal, não estruturado e não regulamentado; pois o trabalho informal perpassa inclusive os setores dinâmicos do capitalismo formal. Embora, concordemos com os argumentos críticos, não se pode negar a capacidade analítica do termo utilizado por Pochamann, quando queremos visualizar o processo de informalização.
100
cuja marca, conforme os cânones neoliberais, consiste na crescente entrega ao mercado da
responsabilidade pela promoção do desenvolvimento, num momento de emergência de um
novo paradigma tecnológico (Pochmann, 2000; Pochmann, Amorim, Campos e Silva, 2004).
Uma questão-chave na discussão presente é a relação entre o Estado e a
economia informal, que, para Lautier (1997), envolve um problema político. Sua tese é de
que a tolerância estatal ante a ilegalidade de práticas econômicas informa um modo de
dominação política, este a razão principal da expansão da economia informal. Essa atitude
estatal geraria um grave problema de legitimação do Estado, por comportar um
fracionamento da cidadania, colocando mesmo em perigo a democracia.
Para o autor, a tolerância estatal frente à informalidade liga-se mais à
necessidade política que à funcionalidade econômica. A precariedade oriunda da situação
de ilegalidade gera dependência e individualização dos comportamentos, potencializando a
perpetuação de formas clientelistas de poder, como o exemplo de vendedores ambulantes
que precisam renegociar sua presença, seja com a autoridade policial (corrupção), seja
participando da clientela do prefeito. Abre-se, ainda, a possibilidade de manutenção de um
quadro onde a repressão não precisa ser justificada, por se autolegitimar 44.
Lautier atenta que a tradição “marshalliana” assimila uma “cidadania plena”
ao assalariamento, servindo este de garantia de direitos sociais. Ora, a economia informal
tem por marca o caráter parcial dos direitos sociais e de seus níveis de garantia, o que leva
o autor a indagar “se a cidadania na América Latina – assim como nas demais regiões –
deve ser definida por referência a esta ‘cidadania salarial’, muito ligada à história
européia” (Lautier: 1997: 86). Ademais, a fragilidade dos direitos sociais retroage sobre os
direitos políticos, reativando, por exemplo, relações clientelistas com caciques locais.
Assim, um quadro de precarização do trabalho e de vasta informalidade fragiliza não só os
direitos sociais, mas também os direitos políticos. “A informalização das sociedades de
terceiro mundo não é, portanto, apenas um problema de política econômica ou social.
Relaciona-se a uma questão maior que, de maneira um tanto otimista, pode ser denominada
de democratização destas sociedades” (Lautier, 1997: 89). Resta então saber se, para além
do emprego assalariado, há um estatuto social que possa suster a cidadania dos atores da
economia informal (ex: há os que propõem que tal referência poderia ser a propriedade). O
problema é que a existência de referências outras para a cidadania mina seu postulado base:
_______________________________________________________________________________ 44 Mas tal perspectiva parece-me simplificar os problemas afetos ao dinamismo das economias periféricas ou aos problemas recentes atinentes à reestruturação produtiva e à globalização, o que não afasta o acerto, ao menos parcial, da hipótese do autor.
101
a sua unidade, fragmentando-a.
Lautier (1997) observa que o “abandono” do modelo de “cidadania salarial”
como meio de integração do conjunto da população põe em pauta a necessidade de
restauração da capacidade de regulação institucional da economia pelo Estado, base para a
emergência de um novo tipo de cidadania hábil a unir, sob um mesmo estatuto, os
“formais” e os “informais”. Para o autor, a questão é saber se o Estado é capaz de
empreender tal projeto de regulação social.
Por fim, cumpre destacar que a progressiva fragmentação e diferenciação,
fruto da desestruturação do assalariamento, aumenta a heterogeneidade da experiência,
dificultando a formação da ação coletiva e tornando o conflito social descentrado. O
trabalho livre, mas protegido, baseava-se em princípios de solidariedade que limitavam e
organizavam os interesses individuais. Atualmente, a cultura do trabalho que servia de
suporte para tal desenvolvimento tem sofrido intenso desgaste, encontrando menos
condições de servir como orientação valorativa e de organizar as identidades e os conflitos
(Machado da Silva, 2003). Ademais, o desenvolvimento da individualidade beneficia-se da
existência de suportes objetivos e de proteções coletivas, de maneira que o processo de
individualização em curso no mundo atual comporta uma perigosa contradição, ameaçando
a sociedade de uma fragmentação, que a tornaria ingovernável, ou de uma polarização entre os que podem associar individualismo e independência, porque sua posição social está assegurada, e os que carregam sua individualidade como uma cruz, porque significa falta de vínculos e ausência de proteções (Castel, 1998: 608/610).
4.4 - A cidadania na cidade
A análise marshalliana firma que o status de cidadania comporta uma espécie
de igualdade humana básica. É a associação entre esse mínimo comum e a participação numa
comunidade que dá curso ao reconhecimento de direitos. Mas o desenvolvimento histórico
das favelas cariocas auxilia-nos a problematizar essa configuração da cidadania no Brasil.
No início do século XX, era a invisibilidade da favela aos setores dominantes
que assegurava sua permanência. Com o seu crescimento, elas substituíram os cortiços no
imaginário social, sendo à época consideradas fonte dos males da cidade e obstáculos à sua
modernização, além de para elas confluir o estigma de abrigarem vagabundos e moradores
102
marcados por um deficit moral. Tratava-se então de extingui-las. Nesse contexto, inexistia o
senso de igualdade e qualquer espaço para o reconhecimento jurídico dos favelados como
cidadãos. Eles apareciam como perturbadores da cidade, local dos cidadãos.
A visão da favela como problema não desapareceu, mas, a partir dos anos
1930, teve lugar a preocupação com as condições de vida de seus moradores. À extinção
das favelas deveria conjugar-se uma pedagogia civilizatória. Só após, os “pré-cidadãos”
estariam aptos a integrar a comunidade de iguais. Enquanto isso não acontecia, vigia um
sistema hierárquico reforçado pelo próprio estatuto legal.
Note-se que, na década de 1930, conforme a lógica da cidadania regulada, a
proteção legal aplicava-se à pequena parcela dos trabalhadores. Os direitos sociais
compreendiam ainda a assistência social, em especial a proteção à família brasileira. Se
esses direitos decorriam de leis federais, também diferenciava a cidadania a legislação
municipal de planejamento urbano e de regularização da propriedade fundiária, na cidade
do Rio de Janeiro. Enquanto os excluídos da legislação trabalhista e social perdiam uma
oportunidade ou benefício; no caso do planejamento da cidade e da lei de propriedade, a
perda era mais problemática. Sem a legalidade, os residentes não podiam requerer o acesso
a serviços públicos – água, esgoto, asfalto, ... – bases da cidadania urbana. A ausência de
reconhecimento legal ainda trazia como conseqüências: a insegurança permanente; a
expulsão de casas e de terras há muito cultivadas; a perda de investimentos no longo prazo;
e rupturas na família e na comunidade (Fischer, 2006).
De fato, o Código de Obras (1937) fixou rígidas exigências, inviabilizando a
legalização de favelas e loteamentos populares, sem impedir, porém, o seu vertiginoso
crescimento durante as décadas de 1930 e 1940. Mas as restrições geraram importantes
efeitos simbólicos, de resto os mesmos já produzidos em legislações de obras e sanitária de
1903/ 1904. Ao formalizar o espaço da cidade, marginalizava os direitos culturais e
econômicos dos mais pobres, quando, lastreado por meios autoritários, o mundo moderno
do direito começava a expandir seus domínios pela vida social. “Seus lares eram
concessão, não direitos, mantidos em constante insegurança por um regime legal que
criava um poder aleatório e não sancionava uma ordem pública” (Fischer,. 2006: 358).
Em geral, a luta pela permanência nos tribunais resultava em derrota. E,
“como os trabalhadores sem carteira de trabalho, as famílias sem certidões de nascimento e
os residentes sem o “habite-se”, os favelados cujos direitos eram negados nos tribunais
encontravam-se em um espaço indefinido entre a lei e a realidade social” (idem, 363).
103
Como opções restavam: resistir à remoção, fisicamente ou por intermediários como
políticos e grileiros poderosos; ou mudar para um novo espaço igualmente precário.
Com efeito, apesar da ilegalidade ou não formalização das favelas, na maioria
dos casos, elas permaneceram. Laços de dependência política serviam para evitar remoções
e atuavam como canais para o acesso a serviços públicos básicos. Assim, um padrão
mínimo de vida digna não advinha de direitos legalmente reconhecidos entre iguais, mas
de relações hierárquicas que eram o canal para esse mínimo e que, dada a insegurança
jurídica, mantinham sob controle os favelados. A própria situação de insegurança evitava
que os moradores investissem na melhoria de seus lares.
Se as relações pessoais serviam como meio para satisfazer, mesmo que
precariamente, as demandas dos moradores, a própria lei reproduzia as divisões sociais no
seio da modernização urbana, possibilitando a proliferação de relações de dependência
política. Observou-se a falta de um estatuto comum e inclusivo, carência esta que não era
da favela, mas do conjunto da sociedade. Afinal, aquela nunca esteve à margem da
estrutura urbana. Apenas sua inclusão não se deu pelos instrumentos jurídicos. E até hoje esse
debate persiste, servindo como tema exemplar a titulação da propriedade. Como enquadrar
o direito de laje? Quais normas de urbanismo devem reger as construções em favelas?
De todo modo, nas décadas seguintes, as favelas observaram um ritmo de
crescimento superior ao do resto da cidade, exceção feita à década de 1970, cuja
peculiaridade descabe aqui analisar. Em seu “itinerário”, elas sofreram mudanças
profundas, adquirindo características muito diversas das presentes em sua “definição
original”, impedindo que se responda à pergunta “o que é uma favela?” identificando-a
como um lugar de ausência, ou de carência 45. Entretanto, as representações estigmatizantes
ainda são hegemônicas e, para Silva e Barbosa (2005), influenciam sobremaneira a atuação
das forças policiais, além de minar a construção de uma cidade una e plural.
Ademais, o reconhecimento da cidadania é relativizado segundo a cor da
pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e o espaço de moradia. Expressa essa lógica o
grau de tolerância da sociedade quanto às diferentes manifestações de violência, dosado
segundo o alvo da agressão e não por referência ao ato. É diferenciada a postura da mídia e
_______________________________________________________________________________
45 Silva e Barbosa (2005) iniciam suas reflexões a partir da resposta que comumente a população fornece à pergunta: “o que é uma favela?”. Curiosamente, o quadro que encontram não difere muito da visão que se configurou no início dos anos 1960, retratado por Silva (2005). Independentemente das preferências religiosas ou das condições socioeconômicas dos entrevistados, a favela é definida pelo que não teria: infra-estrutura urbana, ordem, lei e moral, além de ser, no geral, miserável. Ignora-se a pluralidade de fato que se esconde sob o termo favela.
104
dos órgãos de segurança diante da violência sofrida por um morador de periferia (ou de
favela) ou por integrantes das classes médias. Remetendo-se a um conflito na Rocinha
noticiado pela imprensa, Silva e Barbosa (2005: 59) falam em hierarquia da violência: “um
número expressivo de articulistas e leitores dos principais jornais da cidade reivindicava, com
indignação e rancor, o ‘direito de ir e vir’ dos moradores da ‘cidade’ – espaço urbano no
qual não incluem a favela – e questionava o direito de existência daquela comunidade
[Rocinha], que abriga cerca de oitenta mil pessoas e se constituiu há mais de setenta anos”.
Já Valladares (2005) questiona a escolha metodológica que, no momento
atual, compara favela e não-favela segundo o grau de exclusão social (mais acentuado
naquela). Estudos sobre as transformações da segregação social na cidade mostram que
foram os bairros mais ricos que se afastaram da média dos outros, enquanto as favelas
tiveram evolução mais próxima a de bairros populares e “médios”. A autora acrescenta que
a miséria não é mais uma característica geral das favelas, assim como a precariedade dos
equipamentos urbanos deve ser relativizada. Com isso, as categorias “favela” e “favelado”
tornam difícil saber a que especificidade se referem. Ante a diversidade entre as favelas, no
interior das mesmas e entre elas e bairros populares (dificuldade tanto maior nas
periferias), a autora prefere a hipótese de a identidade da favela ligar-se ao contraste com
os bairros de classe média e alta que lhes são próximos ou mesmo vizinhos, e não às suas
supostas características. Tem-se proximidade espacial com distância social.
Enriquece esse debate o trabalho de Perlman (2006), baseado em um survey
longitudinal, em histórias de vida e em observação participante em três comunidades de
baixa renda na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, coletados pela autora em 1968/69
e entre 1999/2003.
Nas últimas três décadas, aumentou o consumo individual de bens
eletrodomésticos e o acesso a serviços públicos. Dessa perspectiva, melhorou a qualidade
de vida dos entrevistados. De fato, água, esgoto e eletricidade são agora quase universais
(para a amostra). Materiais de construção, como tijolo e argamassa, se generalizaram,
enquanto antes mais da metade tinha casas de madeira. Apesar disso, as pessoas sentem
que perderam status e que aumentou o hiato entre eles e o resto da sociedade. Mesmo
possuindo boa parte dos novos bens de consumo, sentem que não ganham suficientemente
para ter uma vida digna. Perlman (2006) explica que eles tiveram sua posição rebaixada
em termos relativos, mesmo ampliando seu estado em termos absolutos.
Ademais, embora os favelados não sejam mais considerados seres
marginais, as favelas, como territórios controlados por traficantes de drogas, são
105
percebidas como abrigo de “marginais” (bandidos), do “movimento” (i.e., traficantes de
drogas). Na favela, há a distinção entre “trabalhadores” e o “movimento”, mas fora se
ampliou o senso de que elas são a fonte do problema e não o lugar onde estão as maiores
vítimas, afinal, nelas a taxa de mortes violentas é muito superior à do resto da cidade.
Nesse contexto, faz sentido que, entre os entrevistados, a violência tenha figurado como o
motivo mais citado para o abandono/ saída das favelas. Pela comparação com a situação
em 1968/69, diminuiu a ocupação de espaços públicos, a participação em associações
comunitárias e o contato, por visitas, entre amigos e parentes, especialmente quando há
guerra entre comandos.
Nesse debate, Silva, Leite e Fridman, (2005: 02) lembram que a segurança
pública não é uma questão nacional, mas é um problema urbano que nas últimas décadas
atinge todas as grandes cidades, mesmo tendo especificidades locais. Firmam que, tal
como posto no presente, o problema da segurança pública impede a tematização da justiça
social e da desigualdade.
Os autores sustentam que observamos uma mudança de percepção coletiva,
onde o problema da segurança pública se autonomiza, limitando o debate, gradativamente,
à expansão do crime violento ligado direta ou indiretamente à economia das drogas, com
dois campos opostos: um defende a atuação “energética” do poder repressivo contra os
criminosos; e outro, com menor acolhida pela opinião pública, denuncia o excesso de força
empregado pelos policiais. Nessa arena pública erodida e desertificada, a linguagem
universal dos direitos vê-se fragilizada, e as ações coletivas, despojadas de organicidade.
Como contrapartida do crescente sentimento de insegurança e de medo do
crime violento, essa polarização é acompanhada pela dissolução da confiança, elemento-
chave para qualquer relação de alteridade. Por seu turno, a cognição produzida pelo medo
apóia-se em representações de um antagonismo difuso entre categorias sociais sem
fronteiras identitárias claras. Com isso, as ações coletivas esvaecem.
No Rio de Janeiro, o quadro delineado produz uma articulação indissociável
entre os “problemas” da “segurança pública” e das “favelas”. Se o primeiro estrutura-se
cada vez mais a partir de pressupostos e preconceitos que fomentam o aprofundamento e a
racionalização dos meios de repressão, as políticas sociais passam a ser compreendidas e
formuladas como políticas de segurança destinadas ao controle social dos focos de
pobreza. “Intencionais ou não, essas ações terminam por isolar as favelas do resto da
cidade, reduzindo-as a cidadelas do crime ou regiões liberadas do narcotráfico, agravando
106
a violência a que se encontram submetidos os moradores, com enormes danos à expressão
livre dos seus padecimentos e dos seus interesses” (Silva, Leite e Fridman, 2005: 29).
Vale então trazer à baila a discussão de Burgos (2005) sobre a possibilidade
de disseminação de uma cultura cívica orientada para a participação social e política na vida
citadina. O autor explora as fronteiras entre as cidades formal e informal 46, tomando por
referência (caso-limite de informalidade) as favelas do Rio de Janeiro, e sustenta que, mais
do que efeito, a favelização é causa da reprodução e aprofundamento da desigualdade
social nas democracias latino-americanas. A territorialização da cidade (sua divisão em
microcosmos sociais) limita a ação política das camadas populares.
A incorporação da favela à cidade observou um padrão hierarquizado, com
arranjos clientelistas em que intermediários políticos (líderes comunitários) traduziam as
demandas dos moradores por bens públicos proporcionados pela cidade. A autonomia
individual e coletiva dos moradores via-se então fragilizada. Em lugar da afirmação de
direitos e de luta por cidadania, a instrumentação da política: um sistema de troca de favores.
No entanto, esse quadro ruiu. Os arranjos clientelistas que integravam de
forma subordinada os territórios (favelas), promovendo uma hierarquia urbana
estabilizada, cederam espaço a um quadro de atomização territorial, onde, embora
permaneçam vivos os compromissos políticos para o alcance de benefícios tangíveis
(clientelismo), falta a dimensão de controle. Ademais, o maior acesso a serviços urbanos,
sobretudo a partir dos anos 1980, e a assimilação de uma noção de direitos tornaram mais
exigentes e crescentes as demandas sociais, valorizando o voto e o eleitor dos territórios.
_______________________________________________________________________________ 46 A dualidade apontada pelo autor é questionável (vide Marzulo (2006), Fischer (2005), Valladares (2005) ou Perlman (2006)). Ademais, Burgos entende que a categoria “favela”, mais que uma configuração ecológica, envolve um micro-sistema sócio-cultural específico, dotado de autoridades e instituições informais locais, bem como de identidades coletivas territoriais. Esses elementos servem de suporte à negociação política de acesso a bens públicos da cidade. Associado à favela existiria também um tipo de subjetividade: a do “favelado”, socializado em meio à ausência de referenciais da cidade*. No entanto, entendemos que as controvérsias que pesam sobre os pressupostos do autor não afastam o debate travado e que aqui damos curso.
Vale reportar também uma observação feita por Marzulo (2005). Este autor afirma que, ao definir as ‘favelas’, não devemos nos ater à situação jurídica ilegal, informal e/ ou irregular da ocupação e uso do solo, pois, na cidade do Rio de Janeiro, há uma plêiade de situações similarmente ilegais de condomínios verticais e horizontais de classes abastadas, além de existirem espaços periféricos ocupados por pobres que, embora normatizados juridicamente, apresentam condições espaciais e sociais similares à favela.
* Na análise do articulista, a cidade é entendida como o locus dos direitos universais, da igualdade e da liberdade, da cidadania, enfim.
107
Exsurge um problema de integração social. Como não existe um código de
conduta universalmente aceito, não se perfaz um espaço público compartilhado, e
prevalece um cenário fragmentado e sintetizado pelo autor na noção de “cidade escassa”.
Esta se refere à “falta de ordem e de lei, fruto da frágil universalização de regras e
valores e da incapacidade do Estado de fazer cumprir os direitos” (Burgos, 2005: 198).
Portanto, o desafio de integração envolveria a superação das fronteiras territórios-cidade,
pela emergência de um novo tipo de solidariedade, calcado na construção da cidadania e na
comunicação entre a participação social e política e a produção normativa.
Mas, como salientado, a criminalidade violenta associada ao tráfico de
drogas reforça o estigma e o isolamento das favelas. Ademais, o crescente sentimento de
insegurança e o medo do crime violento deslocam o conflito social rumo aos controles
institucionais assecuratórios das rotinas cotidianas. Aumenta o privatismo e diminui a
confiança, reduzindo a chance de se assentarem laços de solidariedade com o “outro”. É
nesse contexto que se reivindica a maior eficácia dos meios de repressão, apesar das
renitentes denúncias de sua atuação arbitrária, violando direitos da população das favelas.
Pauta o debate a manutenção da ordem, em detrimento da linguagem dos direitos.
Vale complementar essas reflexões com a análise de Vidal (2003). Esse
autor entende que precárias condições de vida, associadas ao problema de distribuição de
renda, minam uma participação ativa na vida política e favorecem a persistência de uma
representação holista da ordem social às custas da plena aceitação do ideal de igualdade da
democracia moderna. No entanto, em pesquisas empíricas realizadas em comunidades
empobrecidas de Recife e do Rio de Janeiro, o autor nota que os pobres valorizam mais o
sentimento de pertencer à humanidade do que a redução das desigualdades sociais. A
chave discursiva dos pobres contra a injustiça social reside no anseio por respeito, por
serem reconhecidos como membros legítimos da sociedade. Nessa trilha, o autor pretende
mostrar que reivindicações de respeito afinam-se a uma dimensão primordial do sentido de
cidadania democrática nas sociedades contemporâneas.
Há diversas formas de falta de respeito, como palavras carregadas com
sentido implícito, gestos de desconfiança e olhares esquivos, além do velado preconceito
racial. Todos humilham e revelam a inferioridade social de seus receptores.
Enquanto em sociedades tradicionais as hierarquias rígidas fixavam o status
de cada qual, conforme o pertencimento a um grupo social; nas sociedades modernas, a
identidade se constrói mediante um processo de afirmação do indivíduo com relação aos
papéis institucionais, ou seja, não é conferida diretamente pela estrutura social, daí o
108
sentimento de inferioridade tornar-se insuportável, convertendo-se em humilhação. A
exigência por respeito é pré-requisito para uma sociedade decente, noção que transcende a
de sociedade justa, baseada apenas no equilíbrio entre liberdade e igualdade.
Em sua análise, Vidal (2000, 2003) não conceptualiza a palavra respeito,
entendendo-a como a preocupação de ver a própria apresentação de si confirmada por
outrem, noção extraída a partir dos pedidos de respeito expressos no meio citadino pobre
brasileiro. A nosso juízo, embora tal uso dificulte o estabelecimento de comparações e o
seu balizamento por uma teoria social, não inviabiliza a análise sociológica. De todo modo,
o autor recupera analiticamente três configurações de respeito inscritas na subjetividade
dos atores. Elas convivem sem que qualquer delas consiga, por ora, eliminar as demais.
Uma primeira exprime a busca por relações hierárquicas, com o sentimento de
pertencimento social dos indivíduos em situação de inferioridade dependendo da proteção
dos dominantes. Trata-se de uma concepção que não tem base na idéia de igualdade. Esta
aparece numa segunda configuração, na qual convivem o reconhecimento de certa
igualdade entre os indivíduos e uma visão hierárquica do social. Este segundo ângulo tem
suporte na afirmação da humanidade comum de todos os membros do corpo social.
Por fim, a exigência de respeito traduz mais do que a humanidade comum, a
similitude das pessoas num sentido tocquevilliano, recusando-se em ato uma sociedade
hierárquica onde cada qual recebe seu lugar conforme as condições de nascimento. Nessa
última concepção repousam as esperanças de ascensão social nos quadros de uma
sociedade com ampla mobilidade. Para Vidal, é esta forma de igualdade que informa a
idéia de cidadania política nos tempos modernos, embora “o pleno reconhecimento social
que o status de cidadão exprime e garante [suponha] o reconhecimento da humanidade
comum de todos os membros do corpo social” (Vidal, 2000: 22).
Referindo-se ao trabalho de Axel Honneth, Vidal (2003) lembra que atitudes
morais e normas estão ligadas a formas de reconhecimento intersubjetivo. Com efeito, há
íntima ligação entre civilidade e cidadania, já que esta pressupõe um profundo sentido de
bem comum e de compromisso entre os cidadãos. Assim, Vidal aventa que a importância
conferida pelos entrevistados ao cumprimento de obrigações morais; vislumbrados como
fonte de dignidade e de reconhecimento, pode servir como base empírica aos textos
daquele autor. Afinal, a luta por reconhecimento se apóia principalmente em uma
gramática moral dos conflitos sociais. No caso dos meios pesquisados, o autor entende que
a referência à moralidade parece (...) antes de tudo um recurso essencial para a construção identitária nos meios populares, mesmo que ela também
109
reflita a interiorização das categorias das camadas superiores. Sob esse aspecto, a linguagem do respeito é uma resposta prática dada à dominação social. Essa resposta prática insiste na conformidade social dos que estão em situação de inferioridade, os quais, em nome dessa conformidade, reivindicam o reconhecimento de sua existência pelos dominantes e a melhora de suas condições de vida pelos governantes (Vidal, 2003: 278).
É assim que movimentos reivindicatórios urbanos justificam sua ação em
nome da dignidade e do respeito aos pobres, sentido captado por Burgos (2005: 213) na
frase de um cartaz exposto em manifestação de moradores de várias favelas contra a
violência policial: “Moro onde os meios de comunicação só chegam para contar os
mortos” 47. Carregada de revolta e indignação, ela revela a ausência de respeito e de
tratamento igualitário aos moradores de um território empobrecido: uma favela carioca.
Burgos (2005: 213) entende que esse protesto revela “de forma instantânea o significado
político e existencial de escassez de cidade, na medida em que denuncia a marginalização
do território e reivindica a ampliação da cidade representada no espaço público midiático”.
Nas representações colhidas, por Vidal (2000, 2003), chama a sua atenção a
ausência de qualquer menção à idéia de participação política como elemento de inclusão
social. Quando se referiam a “direitos”, os entrevistados não citavam o voto ou outra forma
de participação política, aludindo quase exclusivamente a direitos sociais (principalmente
ao trabalho) e ao de serem tratados como humanos. A garantia de acesso aos direitos, por
seu turno, decorreria do comportamento como humanos, como “gente”.
Ao realizar comparações com sociedades do Norte, o autor considera tal fato
uma especificidade brasileira. E, referindo-se à França, lembra que lá o direito de voto é
considerado um símbolo de vinculação social (inclusão) 48.
De fato, como já destacamos, na evolução da cidadania no Brasil, os direitos
sociais receberam maior ênfase que os demais. Além disso, eles foram implantados em
períodos de supressão de direitos civis e políticos. O impulso primordial surgiu em meio à
ditadura Vargas, líder político que adquiriu grande popularidade, recebendo, inclusive, a
alcunha de “pai dos pobres”. Por seu turno, o direito ao voto teve sua maior expansão
durante a ditadura militar, quando os órgãos de representação política tiveram
sobremaneira cerceada a sua atuação. Em relação aos direitos civis, base do esquema de
Marshall, continuam sendo de fruição precária para grande parte da população, em especial
_______________________________________________________________________________ 47 A matéria foi publicada em 17/04/2004, no Jornal do Brasil. 48 Essas reflexões confluem com o diagnóstico, exposto anteriormente, de Carvalho (2003) e de Vianna (2000), quando exploram a trajetória histórica dos direitos de cidadania no Brasil.
110
para os moradores de favelas. É assim que, com grande argúcia sociológica, Burgos
(2005), no exemplo reproduzido abaixo 49, capta o desrespeito aos mais básicos direitos
civis (inviolabilidade do lar), combinado com o alcance dos direitos sociais, no caso a
educação 50, expressa na camisa do garoto.
Figura 1: Flagrante de desrespeito
Em uma imagem tem-se a marca do desrespeito e do acesso precário aos
direitos de cidadania.
_______________________________________________________________________________ 49 Trata-se de foto publicada, em 07/11/2003, no Jornal do Brasil. Abaixo da foto, consta a legenda: “POLICIAIS se preparam para revistar uma casa no Morro do Querosene e são recebidos por jovem com uniforme escolar”. Burgos nota que a violência expressa na cena foi neutralizada pelos termos da frase, dirigida a leitores de classe média já habituados com esses despautérios. Assim, ‘invadir’ virou ‘revistar’, e um ‘menino’ virou um ‘jovem’. 50 Pela tese de americanização perversa das políticas sociais, os serviços públicos sociais apresentam crescente má qualidade e são relegados aos pobres (Vianna, 2000). Dessa forma, a camisa de uma escola pública completa um quadro de “subcidadania” – direitos civis violados, combinados a direitos sociais precários e direitos políticos relegados ao limbo e desacreditados.
111
Considerações Finais
Na concepção de Marshall, embora sem grande ênfase, aparece como base
de expansão dos direitos de cidadania, tanto em termos de conteúdo, como de quantitativo
populacional que a eles tem acesso, a difusão de um sentido de igualdade por todas as
classes sociais. Um consenso transclassista serve de suporte a direitos reconhecidos
universalmente aos cidadãos, considerados iguais perante a lei.
Falamos então de integração social, de sorte que, ao menos na modernidade
dos países centrais, os nexos entre os indivíduos transcendem à necessidade e ao interesse
particular, diferentemente do que afirmava Marx. De fato, se a igualdade abstrata da lei
não apaga as diferenças concretas entre os cidadãos, gerando um exercício diferenciado
dos direitos, não se pode olvidar do pano de fundo comum: o consenso transclassista
fundado na concepção de igual valor dos homens, e que aflorou nos tempos modernos.
Marshall reconhece mesmo que as desigualdades sociais tornam-se cada vez
mais aceitáveis, à medida que um patamar mínimo é garantido a todos, em decorrência da
igualdade de cidadania, assentada sobre a noção de um patrimônio comum – uma
sociedade política onde todos se reconhecem como iguais. Esse foi o resultado de um
moroso processo, onde, por exemplo, a justiça inglesa desenvolveu o instrumento da
imparcialidade, realizando os julgamentos sem ter em conta a classe de origem das partes.
Mas ainda assim Marshall indagava-se sobre as possibilidades de maior igualdade, quando
já desenvolvidos os direitos civis, políticos e sociais.
Impende reconhecer, porém, que, nas democracias modernas, os indivíduos
estão preocupados com seus próprios interesses. Sua autonomia quanto aos semelhantes e
os vários afazeres particulares impedem que as questões públicas componham sua pauta de
preocupações e reflexões. Esse fato, associado ao desejo de segurança, pode levá-los ao
isolamento e a confiarem exclusivamente ao Estado as matérias de ordem pública. No
entanto, o interesse particular não é necessariamente contrário ao civismo. Pelo menos foi
o que Tocqueville extraiu da democracia norte-americana, no início do século XIX. Lá
vigorava a doutrina do interesse bem compreendido, colocando em relevo os pontos de
coincidência entre o interesse particular e o interesse geral, ou seja, com “o público
[internalizando] a praxis do interesse de cada indivíduo” (Vianna, 1997: 98). Presente uma
base moral, o individualismo podia se manifestar sem degenerar. Ademais, as instituições
112
políticas e as leis, além de afinadas aos costumes, também agiam no sentido de
salvaguardar as liberdades e a democracia.
Tocqueville encontrou na América elementos que Durkheim julgava
necessários na era moderna. Este autor reconheceu o indivíduo como a realidade moral dos
novos tempos e a vigência de um estado anômico, dada a ausência de uma regulamentação
hábil a garantir a coesão social e a debelar coerções como as manifestas na esfera
econômica, onde valia a lei do mais forte. Nesse contexto, às associações caberia um
importante papel. Servindo como fontes de vida moral e vinculando os indivíduos, elas
poderiam agir como elos intermediários entre estes e o Estado, facilitando ainda a fixação
de uma regulamentação adequada. Ao Estado, ajustado à nova ordem, caberia menos se
preocupar com a guerra, e sim reconhecer e instituir os direitos individuais.
Honneth nos mostrou que a ampliação sucessiva dos direitos individuais
observou um princípio normativo que vinculava as novas atribuições jurídicas do indivíduo
à concepção moral de que os membros da sociedade devem assentir por discernimento
racional à ordem jurídica. Devem, portanto, ter a disposição individual à obediência. Tal
quadro afigura-se inviável se os sujeitos não puderem gozar de um mínimo que lhes
permita adquirir a capacidade abstrata de orientar-se por normas morais.
Em síntese, no direito moderno, inscreve-se um princípio de igualdade. E os
direitos atribuídos às pessoas evoluíram ampliando-se em termos objetivos e em número de
membros da sociedade que deles passaram a desfrutar. Conforme os diversos autores
citados ao longo do trabalho, dentre eles Jessé Souza, as obrigações e direitos que balizam
as relações sociais têm como fundo uma ordem moral.
Para esse último autor, a diferença básica entre sociedades centrais e
periféricas encontra-se no fato de, nas primeiras, as idéias modernas serem anteriores às
práticas 51. Nas últimas, ao contrário, o impulso modernizador não encontrou uma visão de
mundo articulada e hábil a promover um consenso valorativo, como o fez o
protestantismo nas sociedades centrais, ao impedir que a generalização de um tipo
humano transclassista ficasse sob a ação exclusiva do progresso econômico. Foi essa
generalização da dignidade, consubstanciada no reconhecimento universal entre iguais, que
tornou efetiva a igualdade expressa na lei abstrata.
No Brasil, embora instituições modernas (mercado e Estado) regulem a vida
_______________________________________________________________________________ 51 Esse ponto tem íntima relação com o surgimento de uma ralé estrutural em nosso país. Uma vasta camada da população não detém o habitus moderno, sendo então desclassificada socialmente. Já nos países centrais esse é um fenômeno residual.
113
social, uma hierarquia opaca e intransparente legitima a desigualdade entre os cidadãos. Na
verdade, formou-se uma “ralé” estrutural sem efetivo acesso aos direitos de cidadania. A
pauperização e a desestruturação familiar são elementos que se conjugaram na formação da
inépcia psicossocial de vastos contingentes populacionais à ordem competitiva moderna.
De outro lado, manifesta-se uma espécie de sobrecidadania, onde os seus detentores ficam
acima do respeito à lei. Em ambos os casos não se efetiva a igualdade da lei abstrata.
Esse quadro se faz presente na esfera política. Nossa evolução histórica
mostra a falta de cultura democrática tanto das elites quanto do povo. As reivindicações
democráticas partiram precipuamente da classe média, como Carvalho (2003) identifica ao
final da República Velha, ou em manifestações como as Diretas Já e o impeachment do
Presidente Fernando Collor, onde ela foi a principal, embora não exclusiva, aderente.
Atente-se que a cidadania política demanda um exercício ativo dos
cidadãos. Mas diversos autores reconhecem que a ordem de concessão dos direitos de
cidadania no Brasil foi um elemento impeditivo da participação política. Com a expansão
dos direitos sociais ocorrendo em ambientes de restrição ao exercício de direitos civis e
políticos, houve uma sobrevalorização daqueles. Não à toa as pesquisas apontam a pouca
atenção conferida à participação política, ao contrário de países centrais, onde, como na
França, o direito ao voto é um símbolo de inclusão na sociedade.
Mas a ordem de concessão dos direitos talvez seja só a manifestação do que
reinava na sociedade. Como mencionamos acima, inexistia entre nós um consenso
valorativo acerca da dignidade comum dos cidadãos: o reconhecimento do outro como um
igual. A escravidão contribuiu decisivamente para isso. Seus efeitos não se esgotaram com
a abolição da escravatura. E foi assim que as instituições modernas grassaram sem apoiar-
se naquele consenso transclassista (Souza, 2003).
Nesse contexto, não é o personalismo que ganha preeminência explicativa.
Para Sérgio Buarque de Holanda, o personalismo seria fruto de nossas raízes ibéricas,
vinculadas ao agrarismo colonial. Personalismo e privatismo comporiam o
patrimonialismo presente na formação do Estado brasileiro, instaurando a confusão entre o
público e o privado e minando a emergência de uma sociedade democrática e inclusiva,
onde viria à proa o respeito a normas abstratas e universais. Também Faoro utilizou a
categoria “patrimonialismo”, mas colocou ênfase no estamento que, encravado no Estado,
comandaria a sociedade, apropriando-se das oportunidades econômicas mais lucrativas,
donde público e privado se imiscuírem, e pugnando pela estabilização da desigualdade, em
prol de seus privilégios. Com isso, tornava-se inviável a vigência efetiva de um Estado
114
democrático de direito, posto que este pressupõe um senso de igualdade e a conformação
de uma esfera pública inclusiva, aberta às pressões de vários segmentos sociais.
À época da edição de sua obra (1936), Holanda (2002) sustentava que as
raízes estavam sendo superadas aos poucos com a modernização. A nosso juízo, o autor
enfatizou sobremaneira os resíduos passados do personalismo e da cordialidade como
explicação de nossas mazelas sociais, além de contrastá-los a um tipo idealizado de
modernidade que talvez não tenha ocorrido em lugar algum. Já Faoro produziu uma bela
análise do desenvolvimento histórico de nossa Administração Pública e de nossa
sociedade, mas transformou a categoria estamento num resíduo permenente e a-histórico e
a converteu em explicação última da tibieza de nossas instituições democráticas. De todo
modo, recebendo os devidos temperos, são importantes as contribuições desses autores.
Em Gilberto Freyre, W. G. Santos e Florestan sobreleva a interação entre
características pré-modernas e influxos modernizadores. O mesmo se diga de Souza,
embora este acentue a influência dos últimos na evolução da cidadania no Brasil.
Florestan identificou uma dupla articulação em nossa modernização, ou
Revolução Burguesa, como denomina o autor. No plano interno, os setores arcaico e
moderno se combinaram, e, no plano externo, os setores burgueses aqui dominantes
aliaram-se aos das economias capitalistas centrais. Na ausência de uma cultura democrática
e igualitária espraiada pela sociedade, o crescimento econômico foi colocado à proa,
enquanto a democracia e o combate a iniqüidades ficaram para depois, relegados a
epifenômenos da economia. Mas, no início dos anos 1980, o autor vislumbrava vários
indícios de uma evolução nacional e democrática que, potencializando pressões de baixo,
seria um impeditivo da antiga forma intramuros das classes dominantes resolverem seus
conflitos. O autor se referia à urbanização e ao desenvolvimento econômico que se
propagavam, interligando metrópoles, regiões urbanas diversas e áreas rurais; à
diferenciação no mercado de trabalho, com o crescimento das classes operárias; e ao
impulso à mobilidade social, com o aumento das classes médias a partir de indivíduos
extraídos do meio popular. Contudo, esses elementos não impediam um desenvolvimento
interno desigual, onde diferenças regionais e de classe atuavam vigorosamente 52.
W. G. Santos fala do híbrido institucional brasileiro, onde se combinam uma
morfologia poliárquica e um hobbesianismo social. Não se trata de um dualismo entre
antigo e moderno, mas de um híbrido que atinge todas as classes, donde todos os indivíduos _______________________________________________________________________________________ 52 Já no século XIX, Freyre observava que as desigualdades da sociedade brasileira devem ser compreendidas a partir da interação de fatores regionais, de classe e de raça.
115
transitarem cotidianamente entre as duas dimensões referidas. O resultado é o isolamento
privatista e a tibieza dos mecanismos e controles democráticos. Na ausência de uma cultura
cívica que permeie o tecido social, as instituições poliárquicas, embora edificadas ao
decorrer de nossa modernização, não lograram efetividade.
Complementa a análise de W. G. Santos a ponderação de Jessé defendendo
que no Brasil as práticas institucionais modernas, “importadas de fora”, antecederam as
idéias 53. Se Santos (1994) remete-se ao híbrido que perpassa todas as classes e indivíduos,
Jessé cita a tríade meritocrática como elemento hierarquizador de teor moderno que atua
em nossa sociedade e impede o reconhecimento de um denominador comum de dignidade
a todos os cidadãos. Assim, o isolamento privatista, que incentiva a formação de micro-
sociedades, e o desrespeito pelo outro se combinam, minando a vigência de direitos
universais e de uma esfera pública inclusiva. Enfim, o Estado democrático de direito não se
consolida de fato.
Constatamos então que, nas análises de todos esses intérpretes da sociedade
brasileira, por vezes valendo-se de categorias bem diversas, sobressai a concentração dos
benefícios da modernização sobre uma pequena minoria.
A forma de conquista dos direitos sociais ratifica essas interpretações de
caráter mais geral. Com efeito, aqui os atores políticos não se organizaram em partidos
políticos fortes e estruturados, e sim formaram grupos que pugnavam pelo reconhecimento
estatal a fim de receber os direitos. O Estado aparecia como benfeitor, mas não se
conformava uma esfera pública inclusiva, onde obrigações e direitos tivessem por lastro
um mínimo de solidariedade social.
A legislação trabalhista aplicou-se a uma pequena gama de trabalhadores
urbanos, limitado que foi a profissões regulamentadas. Trabalhadores rurais, empregadas
domésticas e autônomos diversos ficaram de fora. Mas, do ponto de vista individual, as
normas trabalhistas representaram, de fato, uma proteção e mesmo a definição do status de
cidadania. A Carteira Profissional tornou-se uma certidão de nascimento cívico. Os
benefícios tinham, porém, sua contrapartida. Satisfazendo as reivindicações há tanto tempo
levantadas pelos trabalhadores, o governo cobrava o seu enquadramento sindical. E não
hesitou em reprimir os sindicatos que preferiam seguir livres e independentes, defendendo
os desígnios de seus representados. Sob o discurso de cooperação entre as classes, bandeira
da retórica corporativista, plasmou-se a desmobilização das classes subalternas. 53 Nesse ponto, “importados de fora”, também afina-se, em parte, às análises de Freyre e Florestan.
116
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) veio a lume em 1943,
sistematizando e dando coerência às leis que dispersas podiam ter sua eficácia
comprometida. Ela concentrou os direitos sociais que melhoraram a qualidade de vida de
uma parcela limitada dos trabalhadores brasileiros e, para estes poucos, ela trouxe uma
limitada possibilidade de expressão coletiva de seus clamores e reivindicações.
Hoje, não vige mais a incorporação à moda da cidadania regulada que se
conformava à exposição supra, dado o escopo universalista da Constituição Federal de
1988. No entanto, Maria Lúcia Werneck Vianna (2000) nota que são os lobbies a principal
forma de defesa de interesses junto ao Congresso. Como eles têm caráter multifacetário e
fragmentado, impedem amplos acordos que, de um lado, viabilizassem a efetividade da
universalização de direitos previstos pela CF/ 88 e, de outro, impedissem a perversa
complementariedade que se instaurou entre o público e o privado, estratificando os direitos
conforme a capacidade financeira do cidadão-consumidor.
A perversa distribuição de renda brasileira é a um só tempo um potente
elemento mantenedor desse quadro de pouca participação e um efeito seu. À necessidade
de condições mínimas para as pessoas adquirirem a autonomia necessária à participação,
acrescente-se o alto custo da ação coletiva, onde o ruim pode ficar pior, dada a precária
proteção social brasileira. Nesse contexto, o aumento da informalidade e a precarização do
trabalho dificultam ainda mais o desenvolvimento de uma cultura cívica em nosso país.
No Brasil, a informalidade acompanhou o processo de modernização. Mas
ela é fenômeno recente em países centrais, agora acossados pelo desemprego estrutural
advindo da reestruturação produtiva e dos movimentos da globalização econômica. Esses
processos também atingiram nosso país, refreando e mesmo revertendo a formalização de
trabalhadores, cujo ápice ocorreu no início dos anos 1980 (cerca de 50% da PEA).
Como já destacado, o modelo marshalliano vinculava-se ao Welfare State,
assentado sobre o amplo assalariamento. Mas, em nosso país, a universalização dos
direitos sociais se deu a partir dos governos militares, sendo erigida a texto constitucional
em 1988. Justamente nesse interregno estancou o movimento ascendente de formalização
de vínculos empregatícios. E assim a universalização que observamos desde o regime
militar seguiu uma dicotomia perversa, onde serviços particulares de qualidade restringem-
se aos que podem pagar, e serviços públicos crescentemente precarizados destinam-se ao
resto da população que, no nosso caso, constitui a imensa maioria. Esse quadro se afina a
nossos valores hierárquicos, onde é parcial o ideal de reconhecimento universal de direitos
entre iguais.
117
O emprego formal continua ainda abrigando os trabalhadores melhor
remunerados 54, além deles terem uma gama de proteções legais que os informais não têm.
Mas se não há mais a expectativa de absorção completa dos trabalhadores pelo mercado
formal e há os que nunca o serão, dados fatores regionais e de qualificação, qual será o
suporte da igualdade de cidadania? As proteções contra o desemprego pressupunham uma
situação transitória. O que fazer quando ela se torna permanente? Será que políticas focais
serão o recurso para manter um padrão mínimo de dignidade? Ou se converterão num
assistencialismo permanente, mantendo relações de dependência política? Como notou
Castel, acompanha a informalidade a ameaça de fragmentação da sociedade, já que alguns
podem valer-se de suportes e proteções sociais para desenvolver sua individualidade,
enquanto outros, carentes dessa retaguarda, carregam-na como um fardo 55.
No caso das favelas cariocas, mostramos que elas são um exemplo da parca
disseminação do princípio da dignidade no Brasil. Elas se instalaram no início do século
XX, sem trazer preocupações enquanto eram invisíveis aos segmentos dominantes. Depois,
com seu crescimento, surgiram propostas de extingui-las e, logo em seguida, a idéia de aplicar
aos favelados uma pedagogia civilizatória, sem o quê assumiam um status de pré-cidadãos.
A legislação reguladora do espaço urbano, tornando as favelas ilegais, gerou
uma insegurança permanente a seus moradores. Na maioria dos casos, as favelas não foram
removidas graças a laços de dependência política que então se firmavam. Era a evidência
da falta de um estatuto comum e inclusivo, pois uma parcela dos cidadãos usufruía
“direitos” que não provinham de leis, mas de relações clientelistas que os subordinavam,
firmando uma hierarquia que os mantinha sob controle.
Atualmente, uma série de serviços urbanos chegou às favelas. Estas são
muito heterogêneas entre si e internamente e não se pode mais firmar a pobreza ou
precariedade como suas características peculiares. Parece-nos pertinente a colocação de
Valladares (2005) de que políticas de combate à pobreza não devem ter como exemplo as
favelas. Acreditamos que esse caminho pode contribuir para diminuir o estigma que sobre
elas pesa. No entanto, essa perspectiva não elimina a validade heurística da “categoria
favela”. Parece-nos que o estigma é o maior elemento distintivo das favelas, promovido pela
proximidade espacial com distância social. Daí seus moradores sentirem-se rebaixados em sua
dignidade. Afinal, se suas condições de vida melhoraram em termos absolutos, foram depreciadas
54 Malaguti (2000) aponta que são grandes os diferenciais de rendimento entre trabalhadores formais e informais na América Latina, variando de 30% a 80% e chegando, na média, a 60% no Brasil.
55 Durkheim, quando analisa o direito de propriedade no mundo moderno, nota exatamente a criação de uma normatividade destinada a regular uma esfera material necessária ao individualismo.
118
em termos relativos.
Ademais, a criminalidade violenta vinculada ao tráfico de drogas reforça o
estigma e o isolamento das favelas. O crescente sentimento de insegurança e o medo do
crime violento deslocam o conflito social rumo aos controles institucionais que garantam
as rotinas cotidianas. Aumenta o privatismo e reduz-se a confiança, erodindo a chance de
se assentarem os laços de solidariedade com o “outro”. Mina-se o senso de igualdade,
e a liberdade pode degenerar em ações invasivas à esfera do outro. Nesse contexto, o
“problema da segurança pública” é cada vez mais atribuído às favelas. E reivindica-se a
maior eficácia dos meios de repressão, em que pese as renitentes denúncias de sua atuação
arbitrária, violando direitos da população das favelas. O debate é regido pela manutenção
da ordem, em detrimento da linguagem dos direitos.
Atualmente, a integração da favela à cidade não segue mais um padrão
hierárquico. Como notou Burgos, arranjos clientelistas, onde os líderes locais agiam como
intermediários, garantiam a manutenção do equilíbrio citadino e possibilitavam um canal
de acesso aos serviços públicos, mesmo que precário. Esse equilíbrio rompeu-se,
emergindo um quadro de fragmentação. Aqueles arranjos ainda são um canal de acesso a
serviços, mas inseridos num ambiente de dispersão horizontal, onde a dimensão de
controle perdeu a eficácia anterior. O autor firma a necessidade de um código
universalmente aceito e que não seja mais de tipo hierárquico, e sim igualitário e de
participação. O caldo de cultura necessário ao estabelecimento deste tipo de configuração
societal ainda está em gestação e não há garantias de que ele vingará, sobretudo se não
houver empenho em implementá-lo.
Muitas variáveis entram em curso nesse processo. Pelos breves apontamentos
dessas considerações, são imperiosas: medidas hábeis a garantir um patamar mínimo de
qualidade de vida, inclusive gerando emprego e renda; melhorias no sistema de proteção
social e nos serviços públicos voltados para as áreas carentes, como as escolas e postos de
saúde; e o respeito aos direitos civis, a partir, por exemplo, de uma atuação mais eficiente
da polícia e mais imparcial do poder judiciário.
Esse processo, mesmo se conscientemente implementado, terá de conviver
com ambigüidades decorrentes da dinâmica social. Assim, no ideário de moradores de
regiões pauperizadas de Recife e da cidade do Rio de Janeiro, Vidal (2000,2003)
identificou diferentes configurações ideais de respeito que convivem e se conjugam. Se há
a noção de que o respeito liga-se à proximidade a pessoas superiores e potencialmente
garantidoras de proteção, nos moldes de uma sociedade holista; também tem lugar a recusa
119
a uma sociedade hierárquica onde cada qual teria uma posição de acordo com o nascimento,
enfatizando-se, ao revés, a humanidade comum e a possibilidade de ascensão social numa
sociedade onde haja livre mobilidade, ideário este matriz de um princípio de igualdade que
informa a cidadania política nas democracias modernas.
Serve de exemplo, ainda, o que Burgos (2005) chama de reforma intelectual
e moral promovida pelas igrejas neopentecostais, e cujos pilares são a igualdade, a
mobilidade social e o empreendedorismo. Se Zaluar (1997) ressalta a intolerância que
acompanha tal ideário, Burgos firma que o neopentecostalismo em si não contribui para a
formação de uma cultura política participativa, mas, ao fomentar a autonomia dos
indivíduos, cria condições potencialmente favoráveis para a afirmação de novos sujeitos na
esfera pública.
A literatura política e sociológica concorda que a capacidade de intervenção
estatal erodiu-se com a globalização. Processos econômicos, políticos, sociais e culturais
cortam os países, e os Estados não conseguem controlá-los, vendo minada sua capacidade
de regulação. Esse quadro não dispensa as políticas públicas, mas reforça a necessidade de
diálogo entre sociedade e Estado, cuja efetividade depende da disseminação de uma cultura
cívica democrática. Políticas inclusivas e de melhoria da qualidade de vida dos cidadãos
devem-se conjugar a elementos promotores de um consenso valorativo que assegure o
reconhecimento universal de direitos, ou seja, de uma dignidade comum. Isso envolve
processos de educação e de comunicação que perpassem todos os estratos sociais.
Atualmente, também devem ser consideradas as tensões entre universalismo
e particularismo, de modo que, no processo de disseminação dos valores da dignidade,
deve-se conjugar a possibilidade da autenticidade e do respeito à diferença, complementos
de um código valorativo por todos aceito. Sem o enfrentamento dessas questões não será
possível expandir de fato os direitos de cidadania entre nós.
O escopo da cidadania dependerá ainda dos contornos assumidos pelo direito.
Afinal, o Estado-nação compõe-se de uma infra-estrutura administrativa organizada pelo
direito. E os direitos civis e políticos, oferecendo um espaço livre às ações individuais e
coletivas, representaram garantias formais dos cidadãos ante o Estado. Já os direitos sociais
atenderam a demandas sociais, moderando os conflitos de classe. A efetividade deles
decorria em boa medida do desempenho da economia, erigida como fonte de legitimação
do Estado. Mas o fechamento das instituições às relações e fluxos presentes na sociedade
mostrou a insuficiente capacidade desse modelo satisfazer às demandas sociais, seja pela
120
sobrevalorização dos procedimentos, seja pela lógica sistêmica das burocracias e da
economia. Falamos da configuração sócio-legal denominada de direito autônomo 56.
Já no direito responsivo, a boa lei, além de assegurar um procedimento
justo, precisa ser competente, auxiliando a definir o interesse público e o compromisso que
deve lastrear a concretização da justiça substantiva. A contrapartida negativa desse processo
pode ser a perda de integridade do direito, consubstanciada na incapacidade da lei em
restringir o poder das autoridades e fixar as obrigações e obediência dos cidadãos. Esse
resultado perverso seria fruto do enfraquecimento das normas procedimentais e da
excessiva problematização das regras em geral. Com efeito, como o direito responsivo
combina autoridade legal e vontade política, só é eficaz e efetivo quando espraiado certo
grau de cultura cívica numa sociedade amplamente democratizada.
Se Nonet e Selznick enxergam traços desse tipo de direito no mundo atual,
Habermas investe na necessidade de descolonizar o mundo da vida, para o quê é preciso
manter a esfera pública auto-referida, fonte que é de influxos normativos firmados em
relações comunicativas livres de coerção. Nesse desenho há pouco espaço (ou nenhum) para
alterar a conformação dos próprios sistemas (a mudança seria indireta, fruto de influxos
advindos da esfera pública). Um modelo mais rígido, portanto, do que o daqueles autores.
No modelo de direito responsivo, a cidadania teria caráter mais dinâmico e
compatível com as especificidades da sociedade. Seriam necessários fóruns de participação
para além dos mecanismos representativos e instituições competentes, abertas aos influxos
da sociedade e recebendo-os como oportunidades de aprimoramento. Não bastaria enunciar
direitos, mas observar uma ética da responsabilidade, satisfazendo as demandas à
proporção em que existam recursos para todos. Conforma-se uma ordem negociada, com
maior racionalidade e visando à justiça substantiva. Mas aí a questão seria a de
compatibilizar um padrão mínimo de dignidade. Seriam mantidos os direitos civis,
políticos e sociais, conjugados a outras demandas pontuais? Ou as demandas dariam curso
a uma nova pauta de direitos que transcendem a classificação marshalliana? Ademais, foi o
Estado-nação que assegurou os direitos de cidadania, estes um símbolo da igualdade na
esfera nacional. Mas isso não impediu o curso da diferenciação social e da ação de grupos
de interesse. Então, deve-se atender a movimentos particularistas ou a fluxos comunicativos
56 O direito formal marca o que Nonet e Selznick (1978) chamam de direito autônomo. Os direitos sociais, na medida em que preocupados em combater iniqüidades, seriam um primeiro indício da transição ao direito responsivo. Este se preocupa com a justiça material, vetor em ascensão já à época de Weber e Durkheim. Mas se essa tendência representa um flanco no direito formal, não transborda o direito autônomo. Ao contrário, aumenta, v.g., as funções judiciárias e da burocracia, sem conformar as “instituições competentes” (pós-burocráticas) de que falam aqueles autores.
121
e/ ou relações de poder globais ? Hoje, ainda não parecem ser compatíveis as instituições
e as pautas normativas, impedindo a conjugação de todos esses fatores.
Em termos amplos, esse debate envolve a própria modernidade. E é dentro
desse quadro que deve ser entendida a obra de Habermas. Este autor apresenta uma teoria
normativa que julga a modernidade segundo o projeto moderno original. Trata-se de
esclarecer as condições sociais que o favorecem ou inviabilizam, trabalhando para que a
teoria seja continuada pela reflexão dos que buscam agir.
Já Boaventura propõe-se elaborar uma teoria crítica pós-moderna, a partir
dos problemas trazidos pelo desenvolvimento da modernidade e recorrendo aos projetos mais
abertos e inacabados do projeto moderno, para esboçar o paradigma emergente. Assim, o
autor aposta no princípio comunitário, defendendo que ele contém duas dimensões que
resistiram à especialização e ao domínio colonizador da razão instrumental: a participação
e a solidariedade. Como, atualmente, local, nacional e global interagem de múltiplas
formas, as relações sociais são crescentemente desterritorializadas. Descabe, então,
confinar a comunidade ao local e ao imediato. Mais que a identidade, de resto cada vez
mais descentrada e fracionada (Hall, 2002; Giddens, 1991), vale fixar a reciprocidade
intersubjetiva como alicerce das comunidades.
Tenha-se claro que nos referimos ao horizonte utópico de Boaventura.
Trata-se de apontar caminhos para a emancipação humana, de modo que o autor acaba
retornando ao projeto moderno original por meios “pós-modernos”, sem apostar numa via
“totalizadora” como o faz Habermas, com a esfera pública e a razão comunicativa. Mas
Boaventura refere-se também às pressões atuais que aumentam as iniqüidades nos planos
local, nacional e global, como a expansão da informalidade e o aumento do desemprego
em países centrais e periféricos, ou ainda como a crescente desigualdade entre o Norte e o
Sul, com a globalização financeira servindo para impor pesadas determinações sobre os
países periféricos, em diretivas que não raro combinam liberalismo econômico e proteção
dos direitos humanos.
Quando pensamos na relação entre democracia e cidadania, é frutífero um
trabalho como o de Boaventura. Mesmo os que não concordem com a noção de pluralismo
jurídico não podem se furtar de suas reflexões sobre a democratização de vastas dimensões
da vida social, como nas relações domésticas, ou interestatais, ou de produção. As
preocupações utópicas do autor dirigem-se ainda contra os automatismos burocráticos e da
economia, os quais, como Habermas apontou, teriam efeitos colonizadores sobre a vida
social. Nesse sentido, a democratização das sociedades políticas, ou a socialização da
122
política, como falou Gramsci (Coutinho, 1999), seria insuficiente. A democracia teria de
atingir tanto o que é público e regulado pelo direito positivo, como as relações sociais
privadas e o que está à parte daquele tipo de direito. Não se trata de confusão entre público
e privado, como no patrimonialismo, mas de laços solidários horizontais e verticais isentos
de relações despóticas por todo o tecido social. Daí então seria possível conformar novos
arranjos públicos e privados, segundo objetivos democraticamente firmados. Em verdade,
a utopia do autor conflui com certos traços do direito responsivo, embora perpasse a
sociedade de modo bem mais amplo que o último. Nesse quadro, a cidadania serve como
base às lutas emancipatórias que têm curso nas várias dimensões sociais. E a própria
cidadania só será plenamente democratizada quando a democratização pautar todos os
espaços da sociedade.
Vale ainda nos referirmos ao debate sobre os direitos humanos. Hoje,
pressões advindas do processo de globalização e mudanças no mundo do trabalho
impedem que a solidariedade tenha as mesmas bases do Welfare State. Ademais, questões
como o meio ambiente, migrações, racismo, manipulação genética são pontos que, embora
possam se manifestar localmente, transcendem as fronteiras e envolvem a humanidade.
Teríamos então a prevalência dos direitos humanos sobre a cidadania? Não cremos. A
cidadania foi a manifestação e concretização daqueles direitos no plano nacional. Só se as
soberanias nacionais fossem sobrepujadas por uma autoridade global tal se daria. Mesmo
que está se instaure ou que surjam blocos regionais com grande força e capacidade de
regulação, em nosso horizonte atual os Estados nacionais permanecerão, e a concretização
de direitos deles dependerá e observará as especificidades de cada país. Aliás, o presente
estudo só tem sentido porque a cidadania não teve um desenvolvimento universal e
homogêneo, mas sim peculiar, conforme a cultura política nacional, os padrões de
modernização e a inserção no plano internacional.
Mas hoje é imperioso refletirmos sobre os termos de uma cidadania global.
Seria a constituição de uma esfera pública e de uma opinião pública mundial suficiente
para tanto? Habermas já vê seus contornos, mas reconhece que, no caso mais avançado, o
da União Européia, ainda inexiste uma opinião (esfera) pública propriamente européia, e
sim várias esferas públicas nacionais. No entanto, o mesmo autor firmou “a falta de um
poder executivo que possa proporcionar à Declaração Universal dos Direitos Humanos sua
efetiva observância, inclusive mediante intervenções no poder soberano de Estados
nacionais, se for necessário” (Habermas, 2002: 205). Além disso, no caso da cidadania
nacional, mencionamos várias vezes que ela pressupunha uma ordem moral, o que não se
123
configura no plano global. Talvez pudéssemos pensar em camadas (ou graus) de
igualdade? Ou seja, um padrão mínimo de igualdade no plano global, convivendo com
padrões mais específicos no plano nacional.
Enfim, a clássica explicação marshalliana da cidadania não resiste às
pressões que se manifestam ao nível global, nem satisfaz desenvolvimentos específicos que
se manifestaram e ainda se manifestam no plano local, como são exemplos os temas da
informalidade e das cidades no Brasil. Não abriga também reflexões como as de uma
democratização radical (Boaventura) ou sobre novas formas de atribuição de
responsabilidade, onde temas ligados à natureza e às gerações futuras vêm a curso.
Vale lembrar que Marshall propôs um conceito de cidadania de teor
sintético-descritivo. O autor não reconhecia qualquer princípio universal a impor o escopo
dos direitos e obrigações dos cidadãos. E foram as pressões sobre esse escopo que
procuramos apontar. Marshall reconhecia, porém, que as sociedades em geral cultivam
uma concepção ideal de cidadania. E foi nessa esteira que refletimos sobre o pouco que
tivemos e o muito que almejamos; e sobre os problemas que precisamos enfrentar para
renovar um ideal de cidadania que nunca se consolidou, nem pode mais se configurar.
124
ANEXO
Mapa de estrutura-ação das sociedades capitalistas no sistema mundial
Espaços Estruturais Dimensões Unidade de
prática social Instituições Dinâmica de desenvolvimento
Forma de poder
Forma de direito Forma epistemológica
Espaço doméstico Diferença sexual e geracional
Casamento, família e parentesco
Maximização da afetividade Patriarcado Direito
doméstico Familismo, cultura
familiar
Espaço da produção
Classe e natureza enquanto “natureza
capitalista”
Fábrica e empresa Maximização do lucro e
maximização da degradação da natureza
Exploração e “natureza
capitalista”
Direito da produção
Produtivismo, tecnologismo,
formação profissional e cultura empresarial
Espaço de mercado Cliente-consumidor Mercado
Maximização da utilidade e maximização da
mercadorização das necessidades
Fetichismo das mercadorias
Direito da troca
Consumismo e cultura de massas
Espaço da comunidade Etnicidade, raça,
nação, povo e religião
Comunidade, vizinhança, região,
organizações populares de base, Igrejas
Maximização da identidade
Diferenciação desigual
Direito da comunidade
Conhecimento local, cultura da comunidade
e tradição
Espaço da cidadania Cidadania Estado Maximização da lealdade Dominação Direito
territorial (estatal)
Nacionalismo educacional e cultural,
cultura cívica
Espaço mundial Estado-Nação
Sistema inter-estatal, organismos e associações
internacionais, tratados internacionais
Maximização da eficácia Troca desigual Direito sistêmico
Ciência, progresso universalístico, cultura
global
Fonte: Santos (2001: 273)
125
BIBLIOGRAFIA
ANTUNES, Ricardo (2002), Adeus ao trabalho?: Ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. São Paulo, Cortez; Campinas, SP, Editora da Universidade Estadual de Campinas.
ARAÚJO, Caetano Ernesto Pereira de. (2000), “Entre o Holismo e o Individualismo: Tipos
Morais e Cultura Política no Brasil”, in J. Caetano Ernesto Pereira de Araújo... [et.al.] organizadores, Política e Valores. Brasília, Editora UnB.
BATISTA, Anália Soria (2003), “Os excluídos sociais: Regulação e desregulação”. In:
Ferreira, Mário César & Rosso, Sadi Del(orgs.). A Regulação Social do Trabalho. Brasília: Paralelo 15.
BENDIX, Reinhard (1996), Construção Nacional e Cidadania. São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo. BOBBIO, Norberto (1992), A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Editora Campus. BOGEÁ-CÂMARA, Vinicius. (2004), “Exercício da Cidadania Política e Capital Social:
Apontamentos para o Caso Brasileiro”. Cadernos de Sociologia e Política Nº 07. Fórum dos Alunos do IUPERJ (http://www.iuperj.br/pos_graduacao/forum_alunos.htm)
BURGOS, Marcelo Baumann. (2005), “Cidade, Territórios e Cidadania”. Dados – Revista
de Ciências Sociais, Vol. 46, nº 02. CAMPANTE, Rubens Goyatá. (2003), “Cidade, Territórios e Cidadania”. Dados – Revista
de Ciências Sociais, Vol. 46, nº 02. CABRAL, Manuel Villaverde. (2003), “O Exercício da Cidadania Política em Perspectiva
Histórica (Portugal e Brasil)”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Fevereiro, Vol. 18, nº 51.
CANDIDO, Antonio. (2002), O Significado de “Raízes do Brasil”, in HOLANDA, Sérgio
Buarque de, Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras. CAPPELLETTI, Mauro. (1993), Juízes Legisladores? Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris
Editor. CARVALHO, José Murilo. (2003), Cidadania: o longo caminho. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira. ______. (2004), A Construção da Ordem. Teatro de Sombras. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira.
CASTEL, Robert. (1998), As Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário. Petropólis, Editora Vozes.
126
CHINELLI, Filippina & PAIVA, Elizabeth (1999), “Emprego e Informalidade”.
Contemporaneidade e Educação, Ano IV, nº 06. COUTINHO, Carlos Nelson. (1999), Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. CPDOC-FGV/ ISER. (1997), Sinopse dos Resultados da Pesquisa “Lei, Justiça e
Cidadania: direitos, vitimização e cultura política na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”.Rio de Janeiro, CPDOC-FGV.
______. (1998), Sinopse dos Resultados da Pesquisa “Lei, Justiça e Cidadania: cor,
religião, acesso à informação e serviços públicos”.Rio de Janeiro, CPDOC-FGV. DALBOSCO, Eduardo & KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins (1999), “Os desafios de
compreender o trabalho informal”. Revista Ser Social, Jul./ Dez., nº 5. DUMONT, Louis. (2000), Homo Aequalis. São Paulo, TAQ Editores. DURKHEIM, Émile. (1980), Lições de Sociologia. São Paulo, TAQ Editores. _____. (1999), Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo, Martins Fontes EISENBERG, José. (2003), A Democracia depois do Liberalismo. Rio de Janeiro, Relume-
Dumará. FAORO, Raymundo. (2000a), Os Donos do Poder. Vol. 1. São Paulo, Globo: Publifolha. _____. (2000b), Os Donos do Poder. Vol. 2. São Paulo, Globo: Publifolha. FERNANDES, Florestan. (1976), A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar. FISHER, B. (2006), “Direitos por Lei ou Leis por Direito? Pobreza e Ambigüidade Legal
no Estado Novo” (capítulo de livro a sair pela Northewestern University Press). FREITAG-ROUANET, Bárbara. (2004), Habermas e a teoria da modernidade. Brasília,
Casa das Musas. FREYRE, Gilberto. (2000), Sobrados e Mocambos. Rio de Janeiro, Record. FURET, François. (2001), “O Sistema conceptual da Democracia na América”, in A.
Tocqueville, A Democracia na América: Leis e Costumes. São Paulo, Martins Fontes.
GIDDENS, Anthony. (1991), As Consequências da Modernidade. São Paulo, Editora da
Unesp.
127
HABERMAS, Jürgen. (1987a), The theory of communicative action. Vol. 01. Boston: Beacon Press.
_____. (1987b), The theory of communicative action. Vol. 02. Boston: Beacon Press. _____. (1997), Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. 02. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro. _____. (2002), A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. HALL, Stuart. (2001), A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A. HOBSBAWM, Eric J. (1997), Era dos Extremos: o breve século XX: 1914 – 1991. São
Paulo, Companhia das Letras. HOLANDA, Sérgio Buarque de. (2002), Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das
Letras. HONNETH, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos
social. São Paulo, Editora 34. INGLEHART, Ronald. (2000), Modernization and postmodernization: Cultural,
economical and political change in 43 societies. Princenton, Princenton University Press.
KOWARICK, Lúcio. (2003), “Sobre a Vulnerabilidade Socioeconômica e Civil: Estados
Unidos, França e Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Fevereiro, vol.18, nº51.
KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins (2003), “Descompasso entre lei e realidade:
Trabalho e proteção social”. In: Ferreira, Mário César & Rosso, Sadi Del (orgs.). A Regulação Social do Trabalho. Brasília: Paralelo 15.
JASMIN, Marcelo Gantus. (1997), Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro, ACCESS.
LAUTIER, Bruno (1997), “Os Amores Tumultuados entre o Estado e a Economia
Informal”. Contemporaneidade e Educação, Ano II, nº 01. LAVALLE, Adrián G. (2003), “Cidadania, Igualdade e Diferença”. Lua Nova: Revista de
Cultura e Política, nº 59. MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio (2003), “Mercado de Trabalho, Ontem e Hoje:
informalidade e empregabilidade como categorias do entendimento”. In: Santana, Marco Aurélio & Ramalho, José Ricardo (orgs.). Além da Fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo, Boitempo Editorial.
______. (1971), Mercados Metropolitanos de Trabalho Manual e Marginalidade.
PPGAS/UFRJ [Dissertação de Mestrado].
128
MALAGUTI, Manoel Luiz (2000), Crítica à Razão Informal: A imaterialidade do
salariado. São Paulo, Boitempo; Vitória, EDUFES. MARSHALL, T.H. (1967), Cidadania, Classe social e Status. Rio de Janeiro, Zahar. MARX, Karl. (1991), A Questão Judaica. São Paulo, Editora Moraes. _____ e ENGELS, Friedrich. (2002), A Ideologia Alemã. São Paulo, Martins Fontes. MARZULO, E. P. (2005), Espaço dos Pobres – Identidade e Territorialidade na
Modernidade Tardia. Tese de doutorado, IPPUR/ UFRJ. MATTOS, Ilmar Rohloff de. (1994), Tempo Saquarema: A formação do Estado Imperial.
Rio de Janeiro, Access. MACPHERSON, Crawford Brough. (1979), A teoria política do individualismo possessivo
de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro, Paz e Terra. NOGUEIRA, Marco Aurélio. (2001), Em Defesa da Política. São Paulo: Editora Senac
São Paulo. NONET, Philippe e SELZNICK, Phili. (1978), Law and Society in Transition. London/
New Brunswick, Transaction Publisers. OLIVEIRA, Francisco de. (1972), “A economia brasileira: crítica à razão dualista”.
Estudos CEBRAP, nº 02, pp. 03-82. PERLMAN, J. (2006), The Chronic Poor in Rio de Janeiro: What Has Changed in 30
Years? (a sair em The Journal of Human Development). ___. (s/d), Marginality: From Myth to Reality in the Favelas of Rio de Janeiro, 1969-2002,
cap. 5. ___. (2005), The Myth of Marginality Revisited: The Case of a Favela in Rio de Janeiro,
1969-2003. World Bank, Washington (www.worldbank.org/urban.urscd/papers/perlman.pdf)
ROUSSEAU, Jean-Jacques. (1997), in “Do Contrato Social”, in Os Pensadores. São
Paulo, Nova Cultural. POCHMANN, Márcio. (2000), O Trabalho Sob Fogo Cruzado: exclusão, desemprego e
precarização no final do século. São Paulo: Editora Contexto (Coleção Economia). _____; AMORIM, Ricardo; CAMPOS, André e SILVA, Ronnie. (2004), Atlas da exclusão
social no Brasil, volume 2: dinâmica e manifestação territorial. São Paulo, Cortez. SANTOS, Boaventura de Sousa (2001), A Crítica da Razão Indolente. Para um novo senso
comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo, Cortez.
129
SANTOS, Eurico A.G.C. dos. (2000), “Política e Magia (na Cultura Brasileira e) no
Distrito Federal”, in J. Caetano Ernesto Pereira de Araújo... [et.al.] organizadores, Política e Valores. Brasília, Editora UnB.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1994), Razões da Desordem. Rio de Janeiro,
Rocco. _____. (1998), “A Práxis Liberal e a Cidadania Regulada”, in Décadas de Espanto e uma
Apologia Democrática. Rio de Janeiro, Rocco. SILVA, J. S. e BARBOSA, J. L. (2005), Favela, Alegria e Dor na Cidade. Rio de Janeiro,
Senac. SILVA, L. A. M. da, LEITE, M. e FRIDMAN, L. (2005), Matar, Morrer, “Civilizar”: O
“Problema da Segurança Pública”. CD-Rom. Relatório Final do Projeto Mapas – Monitoramento Ativo da Participação da Sociedade.
SILVA, M. L. P. da. (2005), Favelas Cariocas, 1930-1964. Rio de Janeiro, Contraponto. SILVEIRA, Daniel Barile de. (2006), in http://sociologiajur.vilabol.uol.com.br/ (consulta
em agosto de 2006). SCHWARTZMAN, Simon. (1982), Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro,
Campus. _____. (2003), “Atualidade de Raymundo Faoro”. Dados – Revista de Ciências Sociais,
Vol. 46, nº 02. SOUZA, Jessé. (2003a), A Construção Social da Subcidadania. Belo Horizonte, Editora
UFMG. Rio de Janeiro, IUPERJ. _____. (2003b), “(Não) Reconhecimento e Subcidadania, ou o que é “Ser Gente” ?”. Lua
Nova: Revista de Cultura e Política, nº 59. _____ e HOELLINGER, Franz. (2000), “Modernização Diferencial e Democracia no
Brasil”, in J. Caetano Ernesto Pereira de Araújo... [et.al.] organizadores, Política e Valores. Brasília, Editora UnB.
TOCQUEVILLE, Alexis de. (2001), A Democracia na América: Leis e Costumes. São
Paulo, Martins Fontes. _____. (2000), A Democracia na América: Sentimentos e Opiniões. São Paulo, Martins _____. (1979), O Antigo Regime e a Revolução. Brasília: Editora UnB. VALLADARES, L. do P. (2005), A Invenção da Favela. Do Mito de Origem a
Favela.com. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas Editora.
130
VIANNA, Luiz Werneck. (1999), Liberalismo e Sindicato no Brasil. Belo Horizonte, Editora UFMG.
_____. (1997), “O Problema do Americanismo em Tocqueville”, in A Revolução Passiva:
iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/ IUPERJ. VIANNA, Maria Lúcia Werneck. (2000), A americanização (perversa) da seguridade
social no Brasil: Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro, Revan; UCAM – IUPERJ.
VIDAL, Dominique. (2000), “Reflexões acerca da contribuição da experiência brasileira
para a compreensão da cidadania democrática moderna”. Contemporaneidade e Educação, Ano V, nº 08.
_____. (2003), “A Linguagem do Respeito. A Experiência Brasileira e o Sentido da
Cidadania nas Democracias Modernas”. Dados – Revista de Ciências Sociais, Vol. 46, nº 02.
WEBER, Max. (1993), Parlamento e Governo na Alemanha Reordenada. Petrópolis,
Editora Vozes. _____. (1999), “Sociologia do Direito”, in Economia e Sociedade. Brasília, EditoraUnB,
vol. 2. WEFFORT, Francisco C. (1978), O Populismo na Política Brasileira. Rio de Janeiro, Paz
e Terra. ZALUAR, Alba. (1997), “Exclusão e Políticas Públicas: Dilemas Teóricos e Alternativas
Políticas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Fevereiro, Vol. 12, nº 35.
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo