Ao meu marido Nuno, porque é, e sempre será,
um exemplo para nós, um exemplo de coragem, trabalho e
felicidade. A nossa vida, contigo, com a tua calma
e simplicidade, é muito mais bonita!
Aos alunos e professores do Colégio de Campos,
de Vila Nova de Cerveira, e da Escola Básica e Secundária
de Caminha, que com muito carinho trabalharam
os livros desta coleção. Agradeço-vos tanto
as conversas que tivemos.
***
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis, in Odes
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Vicente Sou tão parvo…
Quando me vi na casa de campo da tia Luísa, onde
já não íamos há mais de cinco anos, achei que ia ter
as melhores férias da Páscoa de sempre! Os tios aca‑
badinhos de chegar de França, e de onde regressa‑
riam de vez no verão, e os nossos primos também
— haverá melhor notícia? Quer dizer, o João Pedro
entrou na faculdade em França, por isso ainda vai an‑
dar entre cá e lá, mas vamos vê ‑los mais vezes, isso
é certo e sabido.
Já não iriam voltar, como nos outros anos, para
Lyon em setembro. Viveram ali tanto tempo porque
o tio Pedro esteve a fazer um doutoramento numa
literatura qualquer, que tem um nome tão esqui‑
sito que quem precisa de um doutoramento para
Margarida Fonseca Santos
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perceber o que é sou eu! Contudo, já o acabou com
uma nota fantástica. O meu tio é um perito naquela
matéria. A tia Luísa iria retomar o seu trabalho em
Portugal aos poucos, e parecia sentir ‑se superentu‑
siasmada com a mudança. Estava tão contente com
isso que até se ofereceu para ficar connosco duran‑
te duas semanas. Parecia ser o início de umas férias
espetaculares.
Sou tão parvo…
Pintei o cenário ideal. Deve ser por eu ser infantil,
como diz o meu primo João Pedro quando nos quer
chatear:
— Vicente e Jorge, os miúdos mais infantis em
Portugal!
Não me ralo nada com isso. Eu e o Jorge temos
muito tempo para crescer, 12 anos é só um bocadi‑
nho de uma vida inteira, e muitos planos para con‑
cretizar (vários deles bastante infantis, é verdade, mas
isso não interessa). Ora o Jorge afina sempre com
o irmão e tenta discutir com ele, o que nunca deu
grandes resultados. Saímos sempre pior das cenas do
que quando fizemos a asneira do dia. O João Pedro já
tem 18 e é um génio da escrita em ascensão. Pelo me‑
nos é o que eu acho, pois já arrecadou dois prémios
literários, um no secundário e outro na faculdade
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e em francês. A minha irmã Matilde vê ‑o como um
herói, deve ser por ser rapariga.
Mas eu sou mesmo muito parvo. Não estava pre‑
parado para tantas revelações e mudanças, sobretudo
em tão pouco tempo. Bastaram quinze dias para pôr
as nossas famílias em transe. Quinze dias? Nada
disso! Aquilo rebentou logo nos primeiros dias e
esticou ‑se, esticou ‑se, esticou ‑se, e só não acabámos
todos em esparguete porque não calhou.
Bem, já estou a baralhar tudo. A minha professora
de Português também diz que eu tenho «pouca ma‑
turidade narrativa», o que se deve perceber bem só
de ler estas linhas. Não tenho jeito para contar coi‑
sas. Misturo tudo, até me baralho, e depois fica uma
treta… O melhor é começar do início, se bem que sei
que há montanhas de escritores que andam para trás
e para a frente no tempo. Sim, mas como eu não sou
escritor, vou contar as coisas arrumadinhas. Prepa‑
rem ‑se. E lembrem ‑se, íamos ficando esticadinhos
que nem esparguete...
***
Assim que pousámos as malas no chão, ouvimos
uma barulheira enorme. Era o som das escadas quando
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são descidas à pressa, e, logo a seguir, a voz da tia
Luísa a implorar, sem qualquer sucesso, que não des‑
cessem naquela correria. A porta abriu ‑se e ali esta‑
vam os dois, o João Pedro e o Jorge. Foi uma excitação
perfeita! Só depois chegaram os tios.
A tia vinha a limpar as mãos ao avental, o que que‑
ria dizer que preparara os nossos pratos preferidos
para aquele almoço, o primeiro. Esperava que ela não
tivesse mudado para receitas francesas, que, descon‑
fiava eu, não teriam gracinha nenhuma, pois devem
ter sempre muito queijo e eu detesto queijo. Mas
o cheiro era excelente e fiquei logo com o estômago
a dar horas.
Viria a ser um almoço histórico, mas ninguém sa‑
bia disso ainda. Penso que nem a própria Matilde e
muito menos o João Pedro. Quando digo histórico,
quero dizer «o início do tal esticamento do espargue‑
te», já irão perceber.
Até nos chamarem para a refeição, passámos o
tempo a fazer as camas e a arrumar a roupa nos
armários. Sentia ‑me a viver um verdadeiro sonho!
Durante aqueles cinco anos que os tios passaram
em Lyon, nunca tínhamos conseguido fazer aquilo!
As férias eram sempre desencontradas (modernices
dos franceses) e as de verão raramente eram feitas em
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conjunto. Os meus pais adoram fazer praia no norte
do país, ou seja, vai ‑se para a praia apanhar frio, vento
e um mar sempre maldisposto.
— A minha camisola, Vicente? E as calças azuis?
As roupas da Matilde nunca cabiam na mala dela,
estavam na minha.
— Já pus de lado. Não as quero para nada.
— Ficas neste quarto com o Jorge, certo?
— Sim, a tia diz que vocês já têm idade para estar
cada um no seu quarto, em vez de ficarmos irmãos
com irmãos.
— Perfeito! Finalmente! Olha lá — perguntou a
minha irmã, falando num tom mais baixinho —, não
achas o João Pedro triste?
— Triste?! Não reparei. Por que raio havia de estar
triste, Matilde?
— Não sei. Pareceu ‑me, se calhar não é nada.
E a conversa parou ali, porque o Jorge entrou no
quarto carregado de lençóis e cobertores, a precisar
de apoio antes de os deixar cair. A minha irmã quis
ajudar ‑me a fazer a minha cama, e eu deixei, fingindo
não querer, pois nunca a faria tão bem como quando
ela dava o seu toque. Mas resmungou todo o tempo,
com aquela ladainha:
— Já tens idade para fazer isto sozinho.
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E daí? Preferia fazer render o tempo e dormir me‑
lhor mais uns meses… Mas não lhe disse nada, claro,
senão eu iria ficar, desde aquele segundo, responsável
por fazer sempre a cama sozinho. Lá agarrou na rou‑
pa dela e saiu, apressada.
— O que se passa com a Matilde?
Naquele instante, era o Jorge a perguntar ‑me coisas.
— Com a minha irmã? Nada, porquê?
— Não sei, achei ‑a muito carrancuda.
— Mais do que de costume? — brinquei.
O Jorge riu ‑se.
— Pois, talvez não.
Matilde Fechei ‑me no quarto a fingir que queria fazer a mi‑
nha cama em paz. Até aí, tudo bem. Não me apetecia
grandes conversas com os minorcas logo no momen‑
to da chegada. Nunca mais cresciam, não passavam
de bebés com ideias parvas sobre tudo e sobre nada.
Mas até não eram maus miúdos, não, eram só…
irmãos mais novos.
Quando ouvi bater ao de leve na porta, soube logo
que não era a mãe a controlar as arrumações, só podia
ser o João Pedro.
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— Posso?
— Claro! Os putos estão numa excitação. Parecem
histéricos!
— Como sempre — brincou o meu primo. — Es‑
tás bem? Não gosto nada de te ver assim trombuda.
E escusas de disfarçar. Pareces bastante chateada.
Estás com algum problema?
Hesitei. Podia contar ‑lhe tudo, eu sabia que sim.
O João Pedro era a pessoa mais fantástica que eu al‑
guma vez conhecera e tínhamos uma cumplicidade
de anos e anos. Sentei ‑me na cama. O peso que se
concentrava em cima de mim fez ‑me ficar sem forças.
— Então, Matilde? Conta lá, já percebi que estás
aflita com qualquer coisa, conta lá.
— Não sei o que faça. Não sei mesmo, percebes?
Os meus pais vão ‑se passar, João Pedro, nunca me
vão deixar mudar…
— Mudar o quê? Vais pintar o cabelo de verde, é?
Consegui rir ‑me e dar ‑lhe um encontrão, porque o
João Pedro estava fartinho de saber que só fico assim
quando o assunto é sério.
— Desbobina, que daqui a nada estamos afogados
em comida.
— Sabes como são os meus pais… Estão sempre
a dizer que eu sou excelente a Ciências, que vou ser
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uma bióloga extraordinária, ou então uma engenhei‑
ra fora de série, ou até médica! Eu, que fujo a sete pés
do cheiro dos hospitais.
— É mania. Dizem isso há séculos…
— Pois dizem, mas eu não quero! Não quero mes‑
mo, percebes?
— Não queres ir para Ciências?
— Não! E só falta um período para dizer que não
quero! Até tenho medo de que me inscrevam numa
área diferente da que me interessa. Sonho com isto
há tantas noites que até já lhes perdi a conta.
— Ui! Já entendi o drama. Mas os tios seriam inca‑
pazes de te inscrever contra a tua vontade… Sossega,
Matilde, eles não vão fazer isso.
— Achas? Não sei.
— Acho, são pessoas impecáveis.
— Eu quero seguir Humanidades, estás a ver?
Quero ser historiadora, ou antropóloga, quero estudar
as pessoas, as sociedades, é isso que me interessa!
— E os teus pais sonharam toda a vida que tu irias
para a área deles.
— Nem lhes passa pela cabeça que não seja assim!
— Imagino… No meu caso, essa parte até foi bas‑
tante simples.
— O quê?
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— Nada, nada. Estava só a dizer que essa parte foi
simples, gosto de escrever e o meu pai é um estudio‑
so de Literatura.
Percebi que o meu primo se calava. Soube nesse
instante que o momento também era difícil para o
João Pedro, mas não me atrevi a indagar nada. Algu‑
ma coisa na expressão do rosto me avisou que devia
respeitar o silêncio dele.
Agarrei ‑lhe na mão, e ele fez uma concha para
guardar a minha no meio das suas.
— Essa parte foi simples — repetiu, e eu desejei
poder ajudá ‑lo no que quer que fosse, mesmo a qua‑
tro anos de distância. Queria muito, mas não fazia
ideia do que estaria a preocupá ‑lo daquela forma.
Um grito despertou ‑nos. O tio Pedro chamava para
o almoço, prometendo que iríamos adorar. Levantámo‑
‑nos e fomos até à porta, mas, antes de sairmos, o João
Pedro deu ‑me um beijo no cabelo, e senti que ia preci‑
sar de guardar aquela sensação durante muito tempo.
Abracei ‑o. Juntos para o que aí viesse.
VicenteQue grande banquete. A tia Luísa fez aquele frango
no forno que só ela sabe fazer, uma salada de frutas
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e um cheesecake de limão, que desapareceram num
instante. Quando trouxe para a mesa o bolo de maçã,
gememos só de o ver: ninguém iria ser capaz de comer
mais nada. Ficou combinado guardar ‑se o bolo para o
lanche, se alguém tivesse fome depois daquele almoço.
Eu sentia que ia passar o resto do dia sem comer!
Os adultos começaram a tomar café, enquanto
a conversa ia avançando com as novidades de todos.
O tio Pedro é irmão da minha mãe, mas são tão opos‑
tos que até se podia julgar que eram de famílias dife‑
rentes. Só conseguem ser iguais numa ruga que lhes
divide a testa ao meio quando há problemas, só nisso.
E, na verdade, ninguém gosta de ver aquelas rugas.
— Estamos muito vaidosos com estes nossos fi‑
lhos — dizia a tia, enquanto o tio, a sorrir, concordava.
— E o João Pedro entrou na faculdade com imensa
facilidade, até parece que nasceu francês.
— Vá, mãe, não sejas exageradinha — pediu o
meu primo, um pouco corado.
— Pois, nós também não nos podemos queixar,
os miúdos são muito bons alunos — afirmou a nossa
mãe, orgulhosa de nós. — O Vicente tem sido um
aluno muito cumpridor — o que queria dizer que,
embora sem ter grandes notas, me portava den‑
tro dos parâmetros dos meus pais —, e a Matilde
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vai agora para Ciências, claro, área de que ela gosta
muito.
Adivinhei logo que vinha lá coisa séria, porque a
Matilde fez assim um gesto a afastar o cabelo que
é sempre mau sinal.
— Não vou, não — arriscou a minha irmã,
deixando ‑nos suspensos. — Eu não quero ir para
Ciências, vou para Humanidades.
A voz falhou ‑lhe um pouco, mas todos puderam
ouvir a afirmação e sentir a convicção com que a
Matilde a disse.
— O quê? — gritou o meu pai, fora de si, largando
o guardanapo com espalhafato. — Desde quando?
— Desde sempre. Vocês é que nunca me pergun‑
taram o que eu quero ser.
A tal ruga apareceu logo na testa da minha mãe.
Caldo entornado…
— Mais vais perder tempo com essas coisas?
— A mãe nem se deve ter lembrado de que o nos‑
so tio Pedro estuda muito a sério Literatura, e a ruga
apareceu logo na testa do tio. Dois caldos entornados.
— Tu és brilhante a Ciências!
— Que disparate, mãe! Até tenho melhores notas
a Português! Vocês é que olham para tudo a pensar
em Ciências.
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— Nem pensar — rematou o meu pai. — Nem
pensar! Olha que esta… Isso é um disparate, Matilde,
um dis ‑pa ‑ra ‑te.
— Mas é o que eu quero!
— Nem pensar! Tem juízo, Matilde, era só o que
faltava. Nem pensar!
A Matilde levantou ‑se a chorar, e o João Pedro foi
atrás dela. Eu e o Jorge ficámos sem saber se devía‑
mos sair da mesa ou ficar, mas levámos tanto tempo
a decidir que ainda tivemos de ouvir mais um pouco
da discussão dos adultos.
— Esqueces ‑te que as Humanidades são uma área
do conhecimento tão válida como as Ciências, Teresa,
nem te estou a reconhecer — disse o tio Pedro.
— Oh…
A minha mãe adora fazer isto: encolhe os ombros
e desvia o olhar. Mas o tio Pedro não a deixou em
paz:
— Não querem que a Matilde siga a área que mais
a apaixona? Mas que ideia tão retrógrada! Então e eu?
Não faço nada de jeito?
— Não digas parvoíces — interrompeu a minha
mãe, sem olhar para o irmão e sem fazer grande sen‑
tido, pois ele era mesmo um especialista naquela tal
coisa com um nome terrível.
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— É tão importante estudar o que se gosta — lem‑
brou a tia Luísa, com doçura. — Imaginem que vos
tinham obrigado a seguir uma área que não queriam!
— Sei muito bem do que falo — disse o meu pai,
bastante zangado. Ficara verdadeiramente transtor‑
nado com aquilo. — Ainda hoje agradeço ao meu pai
ter ‑me forçado a seguir Ciências.
— Como podes dizer isso?! — indignou ‑se a mi‑
nha tia. — Que raio de razão é essa? Como fizeram
isso contigo, fazes o mesmo com a tua filha? Que
raios… Estás a vingar ‑te?!
— Que tolice, Luísa, tem juízo. Queria ver ‑vos na
nossa posição…
Olhei para o Jorge e concordámos que era a nossa
deixa para sair da mesa e da sala. Iam ficar os quatro
a ruminar naquilo. Fugimos depressa, sem sequer
pedir licença para nos levantarmos. Ninguém ligou.
No jardim, debaixo do pinheiro, a Matilde chorava
e o João Pedro tentava, sem conseguir, sossegá ‑la.
Restava ‑nos agarrar nas bicicletas e dar uma volta.
Não adiantava ficar perto daqueles seis.
Agora que conto isto, percebo que fomos um pou‑
co cobardes, mas estávamos tão atarantados que não
conseguimos fazer melhor. Pedalámos até ficar sem
fôlego.
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Matilde Fechei ‑me no quarto o resto daquela tarde. O João
Pedro tentou animar ‑me, mas podia jurar que tam‑
bém estava chocado com a reação dos meus pais. Fez
tudo para me alegrar, mas eu precisava de estar sozi‑
nha. Pedi ‑lhe desculpa, tinha de me recolher.
De repente, aqueles dias, que prometiam poder
ser muito bons, estavam a começar muito mal. Nem
eu pensara que teria de fazer rebentar aquela bom‑
ba logo no primeiro momento. Mas não podia deixar
que a conversa avançasse. Fora a minha deixa, vi a
oportunidade e agarrei ‑a. Senti que era naquele mo‑
mento ou nunca. Se calhar, se não o tivesse feito, iria
perder a coragem de o fazer depois.
Soube ‑me bem que os meus tios se pusessem do
meu lado, assim como o João Pedro, mas não me pa‑
recia que conseguissem levar os meus pais a ceder.
Estive sempre à espera que um deles, ou ambos, me
viessem sossegar ou tentar ajudar a pensar, uma des‑
tas hipóteses. Mas não, não apareceram, ninguém ba‑
teu à porta, nada. Encaravam a minha atitude como
uma birra. E isso era o que eu mais temia.
A tia Luísa veio ter comigo com um chá de limão,
pois somos as únicas que gostamos, e uma fatia de
bolo. Eram quase 7 horas da tarde.
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— Continuam todos zangados?
A minha tia sorriu e fez um gesto com a mão que
queria dizer «mais ou menos».
— Foi uma reação repentina, eles depois caem em
si e percebem a tua escolha. Tens de lhes dar tempo.
— Que tempo, tia? Não vês que já estou mesmo
no fim do ano? E se eles me inscrevem em Ciências?
— Os teus pais não te iam fazer uma coisa dessas!
— Não ouviste o meu pai? Que até agradecia ao
pai dele? Ouvi enquanto subia as escadas. Foi o que
o meu avô fez com ele. Sempre nos contou isso como
se tivesse sido horrível, mas agora acha que sou eu
que preciso do mesmo tratamento. O avô foi inscrevê‑
‑lo no outro curso e não deixou que ele fosse para
Direito, podem muito bem repetir a cena.
— O teu pai nunca nos contou isso…
— Pois não, e isso ainda me assusta mais. Porque se
foi lembrar agora, tia, porquê? Não achas esquisito?
Gosto muito da minha tia. É muito corajosa. Lar‑
gou as aulas de dança que dava em Portugal, fechou o
estúdio, agarrou nos filhos e foi para Lyon. Também
deu aulas por lá, mas nada que se comparasse ao rit‑
mo de trabalho de cá. Quis acompanhar os filhos na
escola. Bem precisaram! Acabávamos por saber falar
mais Inglês do que Francês, mas, se os meus primos
Margarida Fonseca Santos
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aguentaram a mudança, acho que foi graças à tia
Luísa. O João Pedro até entrou na faculdade em Lyon
sem vacilar!
Custava ‑me um pouco que a tia não me dissesse
mais nada. Estaria tão chocada quanto eu?
— O que é que eu faço, tia?
As suas costas endireitaram ‑se e pude ver uma
convicção, daquelas fortes, a chegar.
— Manténs a tua ideia e não desistes. Já decidiste
e, pelo que conheço de ti, pensaste muito antes de o
fazer. Se é Humanidades que queres, é isso que se‑
gues.
— Vou desiludi ‑los, tia…
— Não te preocupes com isso. Se formos por essa
perspetiva, eles também te desiludiram um pouco
hoje, não foi? Se calhar, nem devíamos dizer que se
trata de uma desilusão, é só um confronto de ideias.
O que nós pudermos fazer, faremos, conta connosco.
Deixou ‑me com o chá e a fatia do bolo, que só comi
a altas horas da madrugada, pois o sono não me quis
visitar. Lembrei ‑me de uma frase que li num livro de
Valter Hugo Mãe: «Esperaram pelo sono para se mu‑
darem para o dia seguinte.» Uma frase linda… Mas
eu não sabia bem se queria mudar ‑me para o dia se‑
guinte. E se fosse ainda pior?
S er Quem Sou
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Jantámos todos juntos, mas em silêncio, num am‑
biente completamente oposto ao da nossa chegada.
Falou ‑se do Governo e da situação económica, mas
todos sabiam que estavam a fazer conversa de cir‑
cunstância. Sentia ‑me tão mal. Tinha estragado as fé‑
rias aos oito, pelo menos era isso que sentia. Mas não
podia adiar mais. Precisava de desabafar, de expor as
minhas ideias, precisava de falar naquilo. Precisava
de ter a certeza de que podia seguir a minha vontade.
Afinal, não era só eu com coisas para contar. Nessa
noite, eu ainda achava que tinha um grande proble‑
ma para resolver. Sentia ‑me a pessoa mais infeliz do
mundo. Estava enganada. Havia dois problemas em
cima da mesa, dois, e o meu era, apesar de tudo, um
pouco mais simples.