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A COMICIDADE PRESENTE NOS PERSONAGENS PÍCAROS E MALANDROS
Eliliane Santos Ferreira
Graduanda em Letras da Universidade Federal de Sergipe
Bolsista no Programa de Iniciação Cientifica (COPES/UFS)
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Jacqueline Ramos (DLI/UFS)
INTRODUÇÃO
Desde o início dos tempos a humanidade faz piadas das situações em que vivem, dos
costumes, até das deformidades físicas. Um bom exemplo disso é a figura do bobo da corte,
geralmente anão ou aleijado, o qual tinha o objetivo de fazer o rei rir. Com o passar do tempo,
a figura do bobo parte para o teatro e no final do século XVIII para os circos. Com a chegada
do cinema mudo, veio também um empecilho, como poderia se fazer comédia sem voz?
Problema que se resolve pelo pastelão, cuja graça está em erros visíveis como tropeçar e cair,
se disfarçar e ser descoberto, levar um soco sem merecer e várias outras situações. No século
XX, a comicidade está presente em toda parte, em programas de TV, como stand up, na
publicidade, na política, seja através da comicidade de palavras como os trocadilhos, duplo
sentido, paródia, entre outras, ou no cômico de situação centrado no enredo.
Usa-se o cômico para exorcizar medos, ansiedades e tensões, considerando-o um
exercício mental que permite escapar por um momento da realidade constante, sendo uma
manifestação de prazer, pode-se rir do outro devido a certo sentimento de superioridade, por
sentir-se melhor e mais esperto ou por alívio daquela determinada situação não ter acontecido
consigo. O riso é um agente importante nas relações, pode ser usado tanto para a inclusão,
quanto para a exclusão de um determinado indivíduo. Podendo ser associado ao poder, uma
vez que possui o apoio daqueles que se faz rir, e possuir a capacidade de expor ideias e
opiniões sem ser criticado ou punido.
O cômico para Aristóteles é uma desarmonia de pequenas proporções sem
consequências dolorosas, ou seja, personagens abstratos sem sofrer consequências, havendo
assim anestesia dos sentimentos. Segundo Kant, o cômico possui o elemento surpresa, é a
súbita redução de uma expectativa a nada. Já para Freud, o cômico é a revelação do obsceno,
do proibido, do que é reprimido. Bergson afirma que o cômico resulta na superposição do
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mecânico ao vivo. E as teias de teóricos e estudos dirigidos ao cômico se estendem por vários
caminhos, meios e sentidos.
O plano do trabalho está centrado na comicidade encontrada nos personagens pícaros e
malandros, os quais foram encontrados no livro Um ninho de mafagafes cheio de
mafagafinhos, mais específico nos contos “Em rio de piranha macaco bebe água em canudo”
e “Mataram meus sonhos a pau” do autor José Cândido de Carvalho, o qual participou do
Movimento Modernismo, começando assim a escrever em 1930, durante a revolução, quando
se tornou revisor no jornal “O Liberal”. Foi advogado, escritor e autor, filho de lavradores
portugueses, começou a trabalhar cedo. Seu primeiro romance foi publicado em 1939 Olha
para o céu, Frederico. Sua obra de maior destaque é O coronel e o lobisomem publicado em
1964, em 1974 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Morreu perto dos 74
anos, quando trabalhava em seu terceiro romance, O Rei Baltazar.
Muitas vezes a comicidade se manifesta em personagens cômicos, como o bébado, o
louco, o bobo, o pícaro, o malandro, etc. Nossa análise se ocupará da presença do malandro
nos dois contos citados. Além das teorias do cômico, nos apoiaremos também no texto
“Dialética da malandragem” de Antônio Candido.
SOBRE O CÔMICO
Iniciam-se os estudos das teorias por Bergson, o qual introduz a sua pesquisa
defendendo que o cômico seria o mecânico calcado ao vivo, ou seja, só será cômica uma
determinada situação se ela estiver relacionada à figura humana ou ao próprio homem. O
cômico está presente em tudo que se refere ao homem, pois não se ri de uma paisagem vazia.
Definindo o riso como um trote social e coletivo, o qual tem a finalidade de corrigir de
alguma determinada maneira, o autor apresenta os procedimentos cômicos que podem ser nas
situações, nos atos e nas palavras. Para o filósofo, o alívio do cômico seria a vaidade, muitas
vezes manifestada no avarento que acumula dinheiro excessivamente, do ciumento que age
pelo impulso e do guloso que come mesmo que não tenha fome. Enfim, o cômico é dado por
Bergson como uma forma de correção de atos e das vaidades perante a sociedade, mostrando
que é necessário ser atento e sempre vigilante ao que ocorre em volta, para que não se torne
objeto do riso alheio. Bergson ressalta que não há comicidade apenas naquilo que não é
humano, para ser cômico é necessário que seja vivo e represente ou assemelhe-se de alguma
forma ao ser humano. Para que uma cena seja cômica, é necessário que haja insensibilidade,
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uma anestesia momentânea do coração, o calar da emoção e ouvir puramente a inteligência,
deve-se por um momento calar a afeição e a piedade para achar a ocasião cômica.
Ri-se da rigidez mecânica e inflexibilidade do ser humano que, eventualmente, devido
a seus movimentos repetidos, tropeça e cai, sem desviar de um obstáculo ou tem seus objetos
de costume posto em outro local. É cômica a situação em que o personagem acaba por
desviar-se dos seus objetivos ou de suas vontades de forma natural. Quanto mais natural e
distraída a cena, mais cômica. O vício não deixa de ser um objeto cômico, o diferencial em
relação à tragédia, que na tragédia o vício não fala por si só, já na comédia o personagem
deixa de ser ele e passa a representar o seu vício, mas o vício nunca deixará de conservar sua
existência e independência simples. “O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é
uma atenção constantemente vigilante, a discernir os contornos da situação presente, é
também certa elasticidade do corpo e do espirito, que nos dê condições de adaptar-nos a ela.”
(BERGSON, 2007, p. 7). O cômico castiga os costumes, fazendo assim a correção de posturas
diante da vida e da sociedade, mantendo-se em constante vigília, motivando a ser flexível e
atento aos costumes e vícios.
A imitação representada por gesto será risível devido ao efeito de mecânico que se
vincula às operações simples. A repetição remete à produção em série, à mecanização, por
isso é cômico a figura de dois rostos iguais juntos, por exemplo, gêmeos quando separados
são pessoas normais, quando juntos causam riso. Esse efeito de repetição os torna cômico.
Pode encontrar o cômico em certas formas, atitudes, ação, palavras e gestos, referentes
ao homem, no entanto, o homem é cômico, logo, Bergson pega por base o caráter. Assim, o
cômico começa com um enrijecimento da vida social, o riso ocorre para acertar esse desvio. O
autor considera o riso como sendo um trote social, um tanto quanto humilhante para quem é
objeto do riso, que serve para correção pelo menos exterior.
O cômico é a inteligência pura, pois não se une à emoção. Essa é a condição para que
um vício se torne cômico. Um autor isola o sentimento e a alma do personagem. Duas
condições essenciais da comédia é a falta de sociabilidade do personagem e a insensibilidade
do espectador, é essencial ainda o automatismo, resultado das ações involuntárias e das
palavras inconscientes do personagem, quanto mais sutil mais risível. Rigidez, automatismo,
distração, insociabilidade, tudo isso consiste na comicidade de caráter.
Outro pensador que se ocupou longamente do cômico foi Freud em seu livro Os
chistes e sua Relação com o Inconsciente. O cômico é a revelação do obsceno por baixo do
simbólico, mostrado por palavras de aparência inocente, considerando esse enunciado como o
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Chiste, o qual não passa de uma pequena ou série curta de palavras, imaginadas, faladas ou
escritas com a intenção de fazer rir o leitor/ouvinte, ou seja, o receptor. Para Freud, o chiste
nos dá acesso aos conteúdos reprimidos e escondidos em nosso inconsciente. Ao tentar
decifrar os chistes depara-se com o cômico. “A primeira impressão derivada da literatura é
que é bem impraticável tratar os chistes, a não ser em conexão com o cômico.” (FREUD,
1950, p. 21).
No decorrer do livro, nota-se que o cômico para o autor é considerado uma válvula de
escape, objeto de libertação do prazer e satisfação. Assim, os chistes acabam por revelar os
desejos e expressões do inconsciente através de palavras carregadas de sentido.
Na parte Analítica, Freud analisa a questão referente ao chiste e nos apresenta três de
suas características, sendo elas, a brevidade, o desconcerto e o esclarecimento. A brevidade
consiste em agregar muito sentido em pouco recurso, ou seja, dizer muito em poucas palavras.
O desconcerto é aquilo que não se enquadra ao padrão habitual, já o esclarecimento pode ser
considerado como a revelação de algo oculto ou disfarçado. O efeito cômico vem com o
esclarecimento desse enigma, com a solução e a compreensão da palavra ou expressão que
causou estranhamento.
O autor divide os chistes em duas técnicas, sendo a primeira “técnica dos chistes
verbais” exemplificado como a condensação acompanhado de formação de substituto e a
segunda “técnica dos chistes conceptuais” dado pelo deslocamento, raciocínio falho, absurdo
e representação pelo oposto. A condensação e o deslocamento são peças importantes na
construção e compreensão dos chistes. Podemos entender que condensação é uma
determinada fusão e sobreposição de vocábulos, um mecanismo de representação única que
está ligada às várias cadeias associativas. Já o deslocamento consiste na substituição de um
enunciado, dando o sentido de mudar de lugar, deslocar um determinado conteúdo ou palavra,
mostrando a impressão que o mesmo esteja descentrado e estranho. Para Freud, o inconsciente
cria dois mecanismos para representar um determinado contexto e através dele organizar
elementos soltos do inconsciente.
Freud ainda divide os chistes em tendenciosos e os não tendenciosos. Os chistes
tendenciosos são utilizados especialmente para crítica agressiva direcionada contra pessoas
em posições elevadas que possui o exercício da autoridade. Considera que faça parte dos
chistes tendenciosos, os chistes obscenos (desnudadores), os chistes cenicos (blasfemos,
críticos), chistes agressivos (hostis). Os chistes não tendenciosos ou então chamados de
chistes inocentes e abstratos. Esse tipo de chistes opera com jogos de palavras e semelhanças
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fônicas, considerado assim como chistes verbais. Os chistes inocentes são colocados em sua
forma mais pura, já que não corremos o risco de sermos confundidos. Eles retiram no máximo
do ouvinte um leve sorriso de satisfação, devido a sua simplicidade e característica é
considerado os mais conhecidos e populares.
Na parte Teórica, Freud observa os processos utilizados na técnica dos chistes,
mostrando uma relação entre os processos de elaboração onírica, os processos de elaboração
dos chistes e dos sonhos. A condensação e o deslocamento são as duas principais relações que
se pode atribuir à elaboração dos sonhos e dos chistes, tendo também a transformação como
um de seus processos.
“Partimos do fato de que as técnicas dos chistes indicam os mesmos processos
conhecidos como peculiaridades da elaboração onírica.” (FREUD, 1905, p. 190) Os quais são
a condensação, o deslocamento e a representação indireta. O autor diz que o chiste é uma
noção que ocorre ‘involuntariamente’, não sabe quem em determinado momento irá fazer um
chiste, apenas veste ele em palavras.
Ele diz que o método para tornar as pessoas cômicas é expô-la em uma situação
cômica, o disfarce, o desmascaramento, a caricatura, a paródia, o travestismo privando-a de
reivindicar sua dignidade e autoridade. A caricatura leva a cabo a degradação, exagerando
algo que não é cômico em si mesmo. A paródia e o travestismo destroem a unidade existente
entre o carácter de uma pessoa, substituindo as figuras eminentes ou suas enunciações por
outras inferiores. O desmascaramento se aplica somente onde alguém se apropriou de
dignidade e autoridades através de trapaças, sendo então despojado destas.
O terceiro texto teórico de que nos valemos é o capítulo sobre "O chiste" do estudioso
Jolles em seu livro Formas Simples, o chiste é algo que serve pra desmontar lógicas e
remontá-las de uma forma diferente, ele dá o exemplo de jogos de palavras, uma vez que, a
palavra pode ser empregada em um determinado contexto sem possuir o seu sentido original,
mas com o mesmo som, obtendo assim o duplo sentido. “Começaremos assim por dizer que o
chiste, onde quer que se encontre, é a forma que desata coisas, que desfaz nós.” (JOLLES,
1930, p. 206).
Afirma que são inúmeras as possibilidades que o cômico possui através da linguagem,
para desatar ao invés de atar. “Basta tirar partido do concreto, quando se utilize uma
abstração, ou retornar ao sentido literal, quando se trate de sentido figurado, para que se
obtenha esse desenlace espirituoso.” (JOLLES, 1930, p. 207). O mesmo acontece com a ética,
vê-se o exemplo do homem sentado em baixo do carvalho, se perguntando por que aquela
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árvore tão grande produzem frutos tão pequenos, enquanto um pé de abóbora que fica no chão
produz frutos tão grandes. Quando ele fazia essa reflexão, cai uma bolota em sua cabeça.
Usando a lógica, é fácil a comparação entre uma bolota e uma abóbora, pois possuem
o mesmo formato. Vê-se também o padre que estava a passear no campo, quando é acertado
em sua careca pelo coco de um pardal, ele dá graças a Deus por não ter dado asas as vacas,
observa-se que a comparação entre animais completamente diferente não tem nenhuma
lógica. “O chiste recorre igualmente à inconveniência; se o absurdo significa que a lógica
filosófica é desfeita, a inconveniência significa o desenlace das regras prescritas pela moral
prática, pelos bons costumes e pelas conveniências sociais.” (JOLLES, 1930, p. 208).
Segundo Jolles, para que uma determinada construção seja desfeita, é necessário
encontrar sua insuficiência ou o repreensível, dá-se a esse processo o nome de zombaria. São
duas as formas que constitui esse procedimento sendo a sátira e a ironia, sendo a primeira
destrutiva e a segunda educativa. “A sátira é uma zombaria dirigida ao objeto que se
repreende ou se reprova e que nos é estranho.”; “A ironia, por sua vez, troça do que
repreende, mas sem opor-se-lhe, manifestando antes simpatia, compreensão e espírito de
participação. Por isso é que ela se caracteriza pelo sentido de solidariedade.” (JOLLES, 1930,
p. 211). O chiste ainda é o único e melhor meio de alívio das tensões causadas pela vida e o
pensamento. Pode-se considerar esse alívio de tensão como sendo um gracejo, uma vez que o
cômico se refira a um estado geral, perdendo o sentido de zombaria.
“Esse universo do Chiste só pode ser entendido como um todo na unidade dualista da
zombaria e do gracejo. Para defini-lo, uma vez mais, diremos que o universo do cômico é um
universo em que todas as coisas as atam, ao desfazer-se ou ao desatarem-se.” (JOLLES, 1930,
p. 215).
COMICIDADE EM JOSÉ CANDIDO DE CARVALHO
O autor tem uma característica de como escrever contos curtíssimos carregados de
sentido e de intensa presença de comicidade, podemos notar o cômico em suas palavras,
personagens, emenda, etc. Em um dos contos escolhidos para análise, poderemos ver a
esperteza e a astúcia sendo usadas para benefício próprio e sacrifício alheio, no outro veremos
a presença da miséria e desigualdade social tentando reverter a situação. Mostrando, assim, a
diferença entre um personagem pícaro e um malandro.
“EM RIO DE PIRANHA MACACO BEBE ÁGUA EM CANUDO”
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“Com o olho estilhaçado e o nariz empenado a socos, deu entrada na Farmácia Santa Marta,
em Curupati do Arrozal, um certo Nequinho Pires. Aconteceu que Negrinho saiu de
parceirada com o seu compadre Chico Araújo para um mafuá do Largo da Retiro. Foi nesse
entrementes que encalhou perto de Chico uma mulatona de lindos apanhados, com dois
alpendres de macios confortos.
A língua de Chico, depois de pular dentro da boca em jeito de chocalho de cascavel, varejou o
ouvido da moça umas sinalefas que ela não apreciou. Logo aparece um boiadeiro para limpar
a honra daquela natureza bem lançada. O sujeitão, que parecia um carro de boi cruzado com
um trem de ferro, já veio soltando fogo pela folga do dente de ouro:
– Vou dar um educativo nesse deletério.
Rapidinho, Chico, meio encolhido por trás de Nequinho Pires, disse:
– Compadre, passo para o seu encargo esse responso e se tu apanhar pensa que sou eu que
estou apanhando. São Lifôncio que te ajude, compadre. Não teve São Lifôncio que ajudasse
Nequinho. Logo no primeiro foguete que tomou, voou nariz, voou óculos, voou boné de
Nequinho e atrás desses pertences seguiu Nequinho levando na mão a carteira de sócio
remido da banda 21 de Abril.
Quando voltou a deliberar, a primeira pessoa que viu foi seu compadre Chico Araújo, que
olhou os estragos, fez o sinal-da-cruz e falou:
– Virgem Nossa! Como eu apanhei!
Afundou o boné na cabeça e foi embora.”
Vamos começar pelo título, que logo de início, já remete ao riso. O autor resume no
título e o enredo do conto como se fosse uma moral da história, como o cone nas fábulas
tradicionais. “Em rio de piranha macaco bebe água em canudo”, a frase logo nos leva a
imaginar um macaco tomando água em um rio cheio de piranhas, para não ser devorado, ele
recorre ao uso do canudo. Essa esperteza humana aproximada ao macaco é associada à astúcia
do malandro Chico Araújo, personagem que usa a sua inteligência para escapar de uma surra,
jogando para seu compadre Neguinho todas as consequências.
Com o olho estilhaçado e o nariz empenado a socos, deu entrada na Farmácia Santa Marta, em Curupati do Arrozal, um certo Nequinho Pires. Aconteceu que Negrinho saiu de parceirada com o seu compadre Chico Araújo para um mafuá do Largo da Retiro. Foi nesse entrementes que encalhou perto de chico uma mulatona de lindos apanhados, com dois alpendres de macios confortos.
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No primeiro trecho, nota-se que o narrador inicia o desfecho do conto, o estado físico
de Neguinho Pires, Compadre de Chico Araújo, estado que é decorrente de um fato, fato esse
ainda desconhecido e que instiga a curiosidade de ler o conto e saber o que aconteceu com a
personagem. A Farmacia Santa Marta é um termo usado para expressar o hospital. A palavra
parceirada leva a entender que Nequinho e Chico saíram em parceria, um apoia, ajuda e
colabora com o outro, um elo de amizade e companheirismo. Vê-se que mafuá em seu sentido
original significa que foram para um parque de diversão com música ruidosa, segundo o
dicionário Aurélio. Quando usa mulatona, aumentativo de mulata, que já guarda na cultura o
sentido de beleza e sensualidade, levando a imaginar esse estereótipo da mulher brasileira
ampliado, imagina-se uma mulher grande farta de curvas e beleza natural. O cômico de
palavras presente em apanhados e alpendres instiga a imaginar com humor o corpo da
mulher, como sendo seus seios e nádegas. Apanhados em seu sentido original significa
apanhar e juntar, ou seja, um deslocamento.
A língua de Chico, depois de pular dentro da boca em jeito de chocalho de cascavel, varejou o ouvido da moça umas sinalefas que ela não apreciou. Logo aparece um boiadeiro para limpar a honra daquela natureza bem lançada. O sujeitão, que parecia um carro de boi cruzado com um trem de ferro, já veio soltando fogo pela folga do dente de ouro: – Vou dar um educativo nesse deletério.
A personagem machista ao ver a beleza da mulher se acha no direito de falar o que lhe
é conveniente ou lhe vem à mente, marca um pensamento vil. Por essa razão, a língua é
associada a um chocalho de cascavel, as palavras de Chico causam toda a confusão. O
boiadeiro é um homem que trabalha no campo, está acostumado a lidar com bichos e serviços
pesados. Quando o autor cita daquela natureza bem lançada, ele diz que a mulher é algo que
a natureza fez perfeitamente, uma obra prima. Sujeitão imagina-se um homem forte e
vigoroso. Um carro de boi cruzado com um trem de ferro une a imagem de dois meios do
transporte de cargas pesadas, mostrando assim a força do personagem. Soltando fogo pela
folga do dente, mostra a ira do animalesco com a atitude de Chico e também o fato de ter
detestado. Pode ver um determinado ego masculino, uma vez que um se acha no direito de
corrigir o outro, só porque elogiou ou falou alguma coisa referente à beleza da moça. A
palavra deletério remete ao personagem Chico.
Rapidinho, Chico, meio encolhido por trás de Nequinho Pires, disse: – Compadre, passo para o seu encargo esse responso e se tu apanhar pensa que
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sou eu que estou apanhando. São Lifôncio que te ajude, compadre. Não teve São Lifôncio que ajudasse Nequinho. Logo no primeiro foguete que tomou, voou nariz, voou óculos, voou boné de Nequinho e atrás desses pertences seguiu Nequinho levando na mão a carteira de sócio remido da banda 21 de Abril.
Nesse trecho, se encerra a parceirada dos dois, a partir daqui é cada um por si, ou
melhor, é tudo por conta do personagem Nequinho, o qual fica responsável por resolver um
problema que não era seu. O esperto do Chico Araújo joga a confusão que arrumou para seu
compadre e vai embora. O foguete é um fogo de artifício, mas no texto ele foi associado a um
soco ou tapa, devido à força e a intensidade. Chico Araújo entrega seu compadre apelando ou
tranquilizando-o com a proteção um santo que não existe. Na sequência, segue o fragmento:
“Quando voltou a deliberar, a primeira pessoa que viu foi seu compadre Chico Araújo, que
olhou os estragos, fez o sinal-da-cruz e falou: – Virgem Nossa! Como eu apanhei! Afundou o
boné na cabeça e foi embora.”
A primeira pessoa que Nequinho viu, quando voltou a si, foi o Chico Araújo, mas o
termo deliberar está no lugar de ter seus sentidos reestabelecidos, o qual pouco se importou
com o seu estado, pelo contrário agiu com ironia em relação à situação, vendo que era ele
quem deveria estar machucado e ferido. “Virgem Nossa! Como eu apanhei!” desfecho
inesperado, um substitui o outro, tem a ver com o papel do compadre. Vemos aqui a graça na
transferência no deslocamento.
Quando o autor fala mafuá no conto, ele apresenta essa palavra no sentido conotativo,
uma vez que no contexto dá a entender que eles foram à procura de diversão, mas acabam
arrumando confusão. Vê-se, então, certa ironia, pois eles acabam encontrando o contrário
daquilo que procurava.
“MATARAM MEUS SONHOS A PAU”
“A moça veio sacudindo toda a Rua da Sagração com o seu andar de vaivém. E quando
raspou a porta da igreja de São Francisco, bem junto do aleijado Joãozinho Gamela, foi aquele
milagre. Joãozinho, atirando as muletas para o céu, saiu na poeira da moça bonita,
desempenado mais que menino novo. E atrás dos ondulados dela, Joãozinho Gamela pedia:
– Dona, uma esmolinha pelo amor de Deus! Carecendo de dinheiro, beijinho também quebra
o galho, dona!
A sem-vergonheira de Joãozinho Gamela pegou um sarrafo feio e forte, tão feio e forte que
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Joãozinho correu mais que o vento de agosto, da Rua da Sagração aos confins de São Mateus
de Marambaia.
Quando a cacetada que levou perdeu as forças, Joãozinho desabafou:
– Por causa dessa desbriada, de fundos de tanajura, perdi meu cargo de aleijado de carreira em
São Mateus de Marambaia. E logo agora que estava para ampliar os negócios com novas
melhorias e beneficiagens. Ia entrar na faixa de cego de esquina, que é o que mais rendimento
dá em cidade grande. Vale mais do que esse tal de desfalque.”
Vemos, portanto, como novamente o título remete à conclusão e funciona como síntese
da estória. Assim, na continuidade do texto:
A moça veio sacudindo toda a Rua da Sagração com o seu andar de vaivém. E quando raspou a porta da igreja de São Francisco, bem junto do aleijado Joãozinho Gamela, foi aquele milagre. Joãozinho, atirando as muletas para o céu, saiu na poeira da moça bonita, desempenado mais que menino novo. E atrás dos ondulados dela, Joãozinho Gamela pedia:
A palavra sacudindo está sendo usada no sentido conotativo, devido ao contexto pelo
qual foi apresentado, uma vez que é impossível pegar a Rua e atirá-la fora. Já o termo vaivém
diz que a moça passou levando todos da rua a acompanhar seu balanço. Raspou está dando
sentido de passar por perto. Milagre chega a ser uma ironia da parte do autor, porque o
“milagre” seria deflagrado pelo profano – a figura da mulher bonita e cobiçada – e também
em relação ao estado físico do personagem, uma vez que ele não era aleijado de verdade. O
autor diz que Joãozinho foi correndo atrás da moça, ou melhor, das nádegas dela sem muletas,
parecendo uma criança ou com o vigor físico de uma.
– Dona, uma esmolinha pelo amor de Deus! Carecendo de dinheiro, beijinho também quebra o galho, dona! A sem-vergonheira de Joãozinho Gamela pegou um sarrafo feio e forte, tão feio e forte que Joãozinho correu mais que o vento de agosto, da Rua da Sagração aos confins de São Mateus de Marambaia.
O personagem apela não apenas para ganhar um trocado, mas também por carinho e
atenção. A expressão ventos de agosto está ligada ao clima, uma vez que o mês de agosto se
encontra na estação inverso, onde seus ventos são muito fortes e frios, presença do cômico no
exagero do narrador. Quando ele fala aos confins quer dizer que o local era longe, sendo essa
palavra um termo popular, usado usualmente por uma determinada comunidade de fala.
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Quando a cacetada que levou perdeu as forças, Joãozinho desabafou: – Por causa dessa desbriada, de fundos de tanajura, perdi meu cargo de aleijado de carreira em São Mateus de Marambaia. E logo agora que estava para ampliar os negócios com novas melhorias e beneficiagens. Ia entrar na faixa de cego de esquina, que é o que mais rendimento dá em cidade grande. Vale mais do que esse tal de desfalque.
Fundos de tanajura lembra o animal, formiga que possui uma protuberância na parte
traseira, ou seja, por causa da mulher com uma bunda enorme, ele se deu mal. Nesse trecho
final, tem a ironia a serviço da crítica do autor em relação às mazelas e à pobreza da
sociedade. O aleijado não tinha esperanças de sair da miséria, ele tinha apenas o desejo de
mudar de função de pedinte, pensando que iria ganhar mais. Existindo nesse ponto uma
hierarquia, em que o aleijado estaria em nível hierárquico mais baixo que o cego, como plano
de carreira o cego ganha mais que o aleijado, mas devido a suas atitudes, a personagem acaba
tendo seus planos interrompidos. No conto, o autor denuncia as mazelas da sociedade onde
quem vive em condições precárias procura um meio para sobreviver, de mudar seu estado
atual.
CONCLUSÕES
O aleijado Joãozinho Gamela do conto, que de aleijado não tinha nada, representa a
imagem do personagem pícaro, vivendo ao sabor da própria sorte, inventando sempre alguma
forma para sobreviver. Esse tipo de personagem surge na Espanha, aproximadamente entre os
séculos XVI a XVIII, vindo de novelas picarescas. Pode-se olhar para o pícaro de duas
formas: sendo a primeira como o pobre coitado que foi abandonado no mundo e aprendeu a se
virar para sobreviver, independentemente se está mentindo ou enganando; a segunda como
sendo um personagem ingênuo que foi adquirindo astúcia e experiência nas dificuldades que
enfrentou. Em ambas, a personagem sempre estará à procura de ascensão econômica, em uma
sociedade corrupta e injusta, uma vez que se encontra em posição de exclusão social.
Geralmente, o pícaro não atinge seus objetos, ao se dar mal em determinadas situações, torna-
se, portanto, motivo de riso e piada. Assim, Cândido aponta:
Um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que leva à mentir, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das ‘picardias’. Na origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa” (CÂNDIDO,1970, p.318).
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Já o malandro, ao contrário do pícaro, mente, engana, trapaceia só por prazer ou por
diversão em reafirmar seu poder. A personagem já nasce com essa disposição, ele não precisa
mentir para sobreviver. Para Candido, “o primeiro e grande malandro que entra na novelística
brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais do que se costuma
dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil” foi Leonardo Pataca,
personagem do romance Memórias de um sargento de Milícia, do escritor Manuel Antônio
Almeida. Pode-se ver o personagem malandro presente na figura de Chico Araújo no conto
“Em rio de piranha macaco bebe água em canudo”, pois ele usa sua esperteza e astúcia, não
necessariamente para sobreviver, mas sim para se livrar de uma situação perigosa.
A comicidade dos contos é encontrada na forma de escrever e nas palavras. O uso
incomum da linguagem como desconcerto, inicialmente, mas a percepção do sentido proposto
leva ao esclarecimento, revelador das críticas à sociedade. Vimos na teoria de Freud, portanto,
a presença da brevidade que é usado para englobar muitos sentidos em poucas palavras,
característica encontrada em ambos os contos, e, também, característica do autor, uma vez que
ele escreve contos curtíssimos cheios de sentidos e críticas.
REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri, 1859-1941.O riso: ensaio sobre a significação da comicidade/ Henri
Bergson; tradução Ivone Castilho Benedetti. – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007. –
(Coleção tópicos). Título original: Le rire. 1. Riso 2. Comedia I. Título. II. Série.
FREUD, Sigmund, 1905; Os chistes e sua relação com o inconsciente; tradução do Alemão e
do Inglês sob direção-geral e revisão técnica de Jayme Salomão – edição Standard Brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – volume VIII. Imago Editoria Ltda. Rio
de Janeiro.
JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
CANDIDO, Antônio. “Dialetica da malandragem”, 1970.
CARVALHO, José Cândido de, 1914-1989, Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos:
contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil/ José Cândido de
Carvalho; notas de Gilberto Amado. - Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3ª. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.