d.preti a giria

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5/19/2018 D.PretiAGiria-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/dpreti-a-giria 1/10  1  O LÉXICO NA LINGUAGEM POPULAR: A GÍRIA Dino Preti RESUMO: A gíria é a marca característica da linguagem de um grupo social. Torna-se difícil analisar esse fenômeno sob um enfoque geográfico, embora possa afirmar- se que a gíria é predominantemente um vocabulário urbano. Mas, de qualquer ponto geográfico que possamos partir, a gíria estará sempre ligada a um grupo social diferente. Mas também é possível dizer que é na maior variedade das situações de interação da cidade que ela surge como um importante recurso de expressividade. Sendo um instrumento de agressividade no léxico, como se verá, a gíria está mais ligada à linguagem dos grupos socialmente menos favorecidos ou de oposição a um contexto social. PALAVRAS-CHAVE: gíria, linguagem de grupos, interação, expressividade. A gíria é a marca característica da linguagem de um grupo social. Torna-se difícil analisar esse fenômeno sob um enfoque geográfico, embora possa afirmar-se que a gíria é  predominantemente um vocabulário urbano. Mas, de qualquer ponto geográfico que  possamos partir, a gíria estará sempre ligada a um grupo social diferente. Mas também é  possível dizer que é na maior variedade das situações de interação da cidade que ela surge como um importante recurso de expressividade. Sendo um instrumento de agressividade no léxico, como se verá, a gíria está mais ligada à linguagem dos grupos socialmente menos favorecidos ou de oposição a um contexto social. Como acentuamos, a gíria pertence a um grupo e, por isso, seu estudo pressupõe, inicialmente, algumas considerações a respeito das relações entre língua e grupo social. Das muitas e discutíveis definições de grupo propostas pelos sociólogos a propósito desse fenômeno social, Horton & Hunt, na obra Sociologia, se referem ao conjunto de  pessoas que possuem a consciência da interação conjunta, não importa o tamanho do grupo. Essa consciência pode-se manifestar, entre outras marcas, pela língua.

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an article from linguist Dino Preti : O lexico na linguagem popular : a giria

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    O LXICO NA LINGUAGEM POPULAR: A GRIA

    Dino Preti

    RESUMO: A gria a marca caracterstica da linguagem de um grupo social.

    Torna-se difcil analisar esse fenmeno sob um enfoque geogrfico, embora possa afirmar-

    se que a gria predominantemente um vocabulrio urbano. Mas, de qualquer ponto

    geogrfico que possamos partir, a gria estar sempre ligada a um grupo social diferente.

    Mas tambm possvel dizer que na maior variedade das situaes de interao da

    cidade que ela surge como um importante recurso de expressividade. Sendo um

    instrumento de agressividade no lxico, como se ver, a gria est mais ligada linguagem

    dos grupos socialmente menos favorecidos ou de oposio a um contexto social.

    PALAVRAS-CHAVE: gria, linguagem de grupos, interao, expressividade.

    A gria a marca caracterstica da linguagem de um grupo social. Torna-se difcil

    analisar esse fenmeno sob um enfoque geogrfico, embora possa afirmar-se que a gria

    predominantemente um vocabulrio urbano. Mas, de qualquer ponto geogrfico que

    possamos partir, a gria estar sempre ligada a um grupo social diferente. Mas tambm

    possvel dizer que na maior variedade das situaes de interao da cidade que ela surge

    como um importante recurso de expressividade.

    Sendo um instrumento de agressividade no lxico, como se ver, a gria est mais

    ligada linguagem dos grupos socialmente menos favorecidos ou de oposio a um

    contexto social.

    Como acentuamos, a gria pertence a um grupo e, por isso, seu estudo pressupe,

    inicialmente, algumas consideraes a respeito das relaes entre lngua e grupo social.

    Das muitas e discutveis definies de grupo propostas pelos socilogos a propsito

    desse fenmeno social, Horton & Hunt, na obra Sociologia, se referem ao conjunto de

    pessoas que possuem a conscincia da interao conjunta, no importa o tamanho do grupo.

    Essa conscincia pode-se manifestar, entre outras marcas, pela lngua.

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    A lngua apenas uma entre outras formas de comportamento, um entre outros

    modos de realizao das atividades culturais praticadas pelo grupo. Como essas formas de

    comportamento, a lngua tambm varia no interior de uma sociedade, de tal maneira que os

    indivduos que possuem entre si laos mais estreitos de convvio, relaes de maior e mais

    durvel intimidade, apresentam, precisamente por isso, modos de falar muito semelhantes

    (ou quase idnticos) que os distinguem de outros indivduos.

    Quando esses comportamentos, essas marcas contribuem para a formao de uma

    conscincia de grupo; quando os indivduos fazem dessas marcas grupais uma forma de se

    auto-afirmarem na sociedade, dizemos que essas marcas constituem signos de grupo. Ex.: a

    moda caracterstica de grupos; a apresentao pessoal (cabelos etc.); o vocabulrio grio

    com que se comunicam.

    No caso especfico da lngua ou, mais precisamente, do lxico, damos o nome de

    gria de grupo ao vocabulrio de grupos sociais restritos, cujo comportamento se afasta da

    maioria, seja pelo inusitado, seja pelo conflito que estabelecem com a sociedade. Inusitados

    so, por exemplo, os grupos jovens ligados msica, s diverses, aos esportes, aos pontos

    de encontro nos shoppings, universidade; conflituosos, violentos so os grupos

    comprometidos com as drogas e o trfico, com a prostituio, com o roubo e o crime, com

    o contrabando, com o ambiente das prises etc. (Cf.Preti, 2004, p. 66)

    Quando esses grupos sociais restritos, pelo contato com a sociedade, vulgarizam seu

    comportamento e sua linguagem, perde-se o signo de grupo. No caso da gria, ela se

    incorpora lngua oral popular, tornando-se o que costumamos chamar de gria comum, ou

    segundo alguns estudiosos mais ortodoxos, simplesmente parte do vocabulrio popular.

    A gria uma das fontes expressivas da lngua e se dissemina no apenas entre as

    classes menos favorecidas ou entre os falantes jovens. Como vocabulrio de grupo ela

    surge tambm entre os mais diversos grupos sociais, desde que possa constituir uma marca

    identificadora desses grupos.

    Hoje, com a grande divulgao da informao, com a presena social atuante da

    mdia, a gria se vulgariza muito rapidamente, assim como rapidamente se extingue e

    substituda por novas formas. Essa efemeridade uma das caractersticas mais presentes no

    vocabulrio grio e, de certa maneira, identifica-o com a grande mobilidade de costumes da

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    poca contempornea. E, talvez por essa constante dinmica que a gria tornou-se to

    utilizada em nossos tempos.

    Nos ambientes em que a escola atua mais decisivamente, a gria tem reduzida a sua

    presena, pois os falantes procuram expressar-se mais dentro do vocabulrio culto. Mas,

    ainda assim, seria temerrio afirmar-se que a gria est ausente do vocabulrio dos falantes

    cultos, embora naturalmente esses estejam mais atentos adequao entre sua fala e a

    situao de interao, o que faz com que se substitua o vocbulo grio por um vocbulo

    culto ou menos estigmatizado.0

    Percurso semntico do vocbulo grio

    Na sua grande maioria, a gria uma alterao de sentido de um vocbulo j

    existente na lngua. E, muito comumente, o vocbulo original tomado em sentido

    contrrio. Quer dizer: a gria, em geral, uma etapa na histria do vocbulo.

    H um processo muito dinmico na renovao da gria que, quase sempre, muito

    efmera. Quando um vocbulo da gria de grupo se torna conhecido e, por isso, h

    necessidade de substitu-lo por outro, podem ocorrer trs possibilidades: 1) ele volta ao

    vocabulrio comum; 2) ele desaparece, tornando-se um arcasmo grio; 3) ele se liga a

    outros vocabulrios de grupo, com modificao de sentido.

    Tomemos como exemplo a histria do vocbulo brbaro cujo sentido, no

    vocabulrio comum, de cruel, desumano, grosseiro. Nos anos 60, passou a ter

    um sentido contrrio: timo, muito bonito, na gria da msica do grupo da Jovem

    Guarda. Posteriormente, muito usado como gria, vulgarizou-se, perdeu sua condio de

    signo de grupo e passou condio de gria comum. Nessa condio, perdido o seu sentido

    criptolgico, secreto, seu uso acabou declinando e, hoje, tornou-se um arcasmo grio.

    Outro vocbulo, lagartixa, saiu do vocabulrio comum para a gria de grupo dos

    punguistas, com o sentido de fila de nibus. Depois emigrou para a gria de presidirios

    com o sentido de sentinela da guarita.

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    Ento, a histria desses vocbulos demonstra que sua etapa como gria transitria.

    De uma fase criptolgica, secreta, , vulgariza-se pelo uso abusivo, retorna linguagem

    comum ou torna-se um arcasmo grio.

    Gria e agressividade

    O percurso semntico do vocbulo grio mostra que ele se torna um recurso

    importante, principalmente para expressar sentimentos como crtica, ironia, ridculo,

    desprezo, humor (no raro, humor negro, como presunto, para cadver, na linguagem

    marginal, o que rompe com o respeito que a morte tem para a sociedade em geral). A gria

    serve, tambm, para marcar denncia, oposio aos valores tradicionais Todas essas

    caractersticas podem ser consideradas, em geral, como recursos de agressividade na

    conversao, no sentido de que agridem o uso comum.

    A prpria maneira como vocbulos conhecidos do lxico comum se apresentam

    alterados em sua forma gria demonstra uma atitude de agresso lngua, que , por

    excelncia, uma instituio tradicional. Assim, militar propiciou a gria milico; malandro,

    malaco; loteria, loteca; delegado, delega; etc.

    Na sua origem, os vocbulos grios demonstram que existe, muitas vezes, uma

    forma de se relacionar a gria com a viso que o falante expressa do mundo em que vive.

    Nesse processo de designao subjetiva, os vocbulos expressam os sentimentos, as

    atitudes em face do meio em que o falante vive, o julgamento crtico e a representao do

    mundo. Da podermos considerar a gria como um dos instrumentos verbais na luta de

    classes. Essa perspectiva pode ser observada em metforas como grude, para comida, gria

    nascida no vocabulrio de detentos e, depois, vulgarizada para comida dos operrios, em

    que semas depreciativos como repulsa, condenao, crtica se associam ao sentido

    respeitoso de alimento. Enquanto isso, jumbo, nome de uma antiga rede de

    supermercados, nomeia por um processo metonmico, na gria penitenciria, os saquinhos

    de comida levados priso pelos familiares do preso. Nessa denominao, predominam os

    semas de boa qualidade, sabor, luxo. Da mesma forma, jaula, para cela, em que o detento

    se auto-nomeia um animal na sociedade e assume uma posio de julgamento, de crtica

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    em relao s condies em que vive; ou como piranha, para prostituta, em que a profisso

    circunscrita obsesso pelo dinheiro e comparada voracidade da piranha.

    Muitos dos vocbulos grios tornam-se conhecidos fora dos limites do grupo em que

    so gerados e acabam por incorporar-se linguagem popular, particularmente ao

    vocabulrio das classes mais populares ou dos grupos jovens, sempre dispostos a

    marcarem sua oposio linguagem culta, dos adultos, em geral, ligada s classes mais

    altas.

    Mas as classes economicamente mais altas, tambm, podem constituir fonte

    criadora de gria. Assim, no mundo das danceterias noturnas, com freqentadores mais

    abonados economicamente, surgem grias como almndega, para designar o grupo de

    danarinos que, literalmente, se amassam na pistas de dana e que lembram a carne

    moda, amassada dos conhecidos bolinhos. a chamada gria do mundinho, criptolgica,

    fechada, compreensvel apenas pelos freqentadores do mundo noturno.

    Apesar de sua ligao com os mais variados grupos sociais, podemos afirmar, ainda

    uma vez, que a gria nasce comumente nos grupos da populao menos favorecida e,

    posteriormente, se espalha pela comunidade, em geral, pelo contato desses falantes com

    outros grupos, muitas vezes, por meio da mdia.

    Nesse sentido a televiso, o rdio, o jornal, mas tambm o cinema sempre que

    tomam por alvo de sua produo determinados grupos sociais, costumam escarafunchar

    seus costumes e sua linguagem. Assim, vimos recentemente como a gria dos marginais do

    trfico dos morros cariocas, assim como dos policiais, retratada num filme brasileiro de

    grande sucesso, o Tropa de elite, de repente comeou a surgir na conversao, nas grandes

    cidades brasileira, onde a pelcula foi exibida.

    Alis, j na dcada de trinta do sculo passado, a propsito desse trnsito da

    linguagem dos morros para a linguagem urbana, um compositor brasileiro famoso, Noel

    Rosa, assim se expressava no samba O cinema falado:

    A gria que o nosso morro criou

    bem cedo a cidade aprendeu e usou.

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    preciso, porm, insistir que no existe uma gria geral que se possa denominar de

    gria da periferia ou da cidade. O que h so grupos sociais que criam determinadas grias

    que, a princpio, restritas, posteriormente se espalham pelo convvio social com outros

    grupos e se generalizam .

    Assim, antes de se falar em gria do Rio de Janeiro ou de So Paulo, ou de

    qualquer outra regio do pas, seria necessrio sempre especificar o grupo social a que uma

    gria se refere. Por exemplo: gria dos freqentadores das praias do Rio ou gria do vero

    nas praias do Rio, ou gria dos apregoadores da Bolsa de Valores de So Paulo, etc.

    Portanto, devemos sempre ligar a gria a um grupo, quando desejarmos pesquis-la.

    Gria e Literatura

    Embora seja costume associar a gria linguagem vulgar, talvez pelo seu uso

    abusivo, repetitivo, s vezes em situaes de interao em que no desejada, na verdade,

    constitui um importante recurso expressivo e reflete a capacidade inventiva do povo.

    A literatura, principalmente, a contempornea, vale-se da gria como signo

    identificador da linguagem das personagens populares ou narradores de primeira pessoa (os

    narradores-personagens), em geral, pessoas da classe pobre e, por isso, menos

    escolarizadas.

    Assim, um escritor como Joo Antnio, contista paulistano cuja obra foi escrita na

    segunda dcada do sculo XX usou largamente desse recurso lexical para descrever a

    historia de seu narrador-personagem do conto Paulinho perna torta, de sua obra Leo de

    chcara, em que conta sua histria desde sua adolescncia como menino de rua, depois

    engraxate nas beiradas da Estao Jlio Prestes, em So Paulo, at a idade adulta em que

    torna uma personagem conhecida como gigol na zona paulistana do meretrcio.

    Trata-se de um texto onde se observa a cuidadosa elaborao do escritor, com o

    aproveitamento de muitos recursos tpicos da oralidade, entre os quais a repetio, os

    marcadores conversacionais, a simplificao das estruturas sintticas e o uso do vocabulrio

    grio. Graas a hbil processo estilstico foi possvel transmitir ao leitor uma linguagem, em

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    que as marcas da oralidade o envolvem e lhe permitem reconhecer o que se habituou a

    ouvir ou que, pelo menos, j ouviu alguma vez e incorporou a seus esquemas de

    conhecimento, para usarmos uma denominao de Tannen e Wallat (1993), frutos de sua

    experincia como falante. Ento, processa-se no leitor um fenmeno literrio que

    chamaramos de iluso da realidade.

    Observemos como Joo Antnio usa esse recurso lexical, lembrando que o seu

    narrador-personagem um menino de rua, miservel, vivendo mngua de sua profisso,

    explorado, preocupado exclusivamente com sua sobrevivncia no dia-a-dia da rua ou da

    penso bordel onde dorme. Como tantos outros, seu amanh incerto. Por isso, sua vida

    poderia ser resumida numa palavra da gria da rua: virao, que constitui o tema central de

    todos os fatos mencionados nessa fase de sua narrativa. A palavra e seus derivados (virar-

    se, virador etc.) intencionalmente repetida ao longo do texto.

    Alm disso, nessa busca desesperada pelo dinheiro, o heri (ou anti-heri) e seu

    grupo de miserveis se assemelham a bichos, como dramaticamente se auto-descreve:

    A gente caa para a rua. Catar que catar um jeito de se arrumar.

    Vender pentes, vender jornal, lavar carro, ajudar camel, passar

    retrato de santo, gilete caladeira... Qualquer bagulho esperana de

    grana, quando o sofredor tem fome. Vontade, jeito? A fome ensina.

    A gente nas ruas parecia cachorro enfiando a fua atrs de comida.

    Por isso cresce no texto a idia da busca desesperada pelo dinheiro, nomeado com

    os vrios sinnimos que a gria marginal criou, em outro momento do texto:

    Comecei por baixo, baixo, como todo sofredor comea. Servindo

    para um, mais malandro, ganhar. Como todo infeliz comea.

    ...........................................................................................................

    Bem. Engraxando l nas beiradas da Estao Jlio Prestes. Era um na

    fileira lateral dos caras. Entre velhos fracassados em outras viraes e

    moleques como eu e at melhores, gente que tinha pai e me e que

    chegava l da Barra Funda, da Luz, do Bom Retiro... Porque isso de

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    engraxar uma virao muito direitinha. No frescura no. A gente

    vai l, ao trambique da graxa e do pano, porque anda a faminta

    apertando. E mais srio do que aquilo que os otrios com suas vidas

    mansas, do que os bacanas e os mocorongos com suas prosas moles

    julgam. Aquela molecada farroupa com que eu me virava tirava dali

    uma casquinha para acudir l suas casas; e, engraxando, os velhos,

    sujos e desdentados, escapavam de dormir amarrotados nas ruas,

    caquerados e de lombo no cho. Como bichos.

    A Jlio Prestes dava movimento e ramos explorados por um s. O

    jornaleiro. Dono da banca dos jornais e das caixas de engraxar, do

    lugar e do dinheiro, ele s agarrava a grana. Engraxar, no; ele l com

    seus jornais

    Eu bem podia me virar na Estao da Luz. Tambm rendia l. Fazia ali

    muito fregus do subrbio e at de outras cidades. Franco da Rocha,

    Perus, Jundia... Descidos dos trens. Marmiteiros ou trabalhadores do

    comrcio, das lojas, gente do escritrio da estrada de ferro, todo esse

    povo de gravata que ganha mal. Mas que me largava o carvo, o moc,

    a gordura, o maldito, o tutu, o poror, o mango, o vento, a granuncha. A

    seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o concreto, o abre-caminho,

    o cobre, a nota a manteiga, o agrio, o pinho. O positivo, o algum, o

    dinheiro. Aquele um de que precisava para me agentar nas pernas sujas,

    almoando banana, pastis, sanduche. E com que pagava para dormir a

    um canto com os vagabundos l nos escuros da Penso do Triunfo. Onde

    muita vez eu curti dor-de-dente sozinho, quieto no meu canto, abafando

    o som da boca, para no perturbar os outros. (Leo de chcara, p.61-

    62)

    A repetio intencional dos sinnimos, divididos em trs segmentos o que um

    ndice inequvoco da elaborao do texto literrio, cria, tambm, como em outras partes do

    conto, um ritmo de linguagem que lembra a poesia, tanto para nos referirmos a um

    conhecido estudo crtico de Deborah Tannen (1986) sobre a aproximao entre e

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    conversao natural e o discurso literrio. Assim, Joo Antnio compe uma gradao, e

    trs segmentos, separados por ponto final, utilizando sinnimos grios, quase todos

    originrios da linguagem marginal, e preparando um emocionante desfecho com a palavra

    dinheiro:

    Mas que me largava o carvo a seda o positivo o moc a gaita o algum a gordura a grana o dinheiro o maldito a gaitolina o tutu o capim o poror o concreto o mango o abre-caminho o vento o cobre a granuncha a nota a manteiga o agrio o pinho

    A utilizao desse recurso, entre outros, pode-nos demonstrar que, dependendo do

    tema e do contexto social em que vivem as personagens na prosa de fico, a linguagem

    popular e a gria podem constituir o registro mais expressivo para descrev-los.

    Com isso cremos ter demonstrado o potencial da gria que, mesmo utilizada

    abusivamente, s vezes, na linguagem do dia-a-dia, revela-se um importante recurso de

    expressividade da linguagem oral e at mesmo da literria.

    Ainda a propsito da expressividade da gria, um antigo cronista carioca, Gondin da

    Fonseca, contava com humor o seguinte fato:

    No se conhecia na Histria um exemplo de maior sntese na linguagem do que a

    clebre mensagem de Csar, general romano, enviada para Roma por um mensageiro,

    contando a rapidez de sua conquista da Glia: Veni, vidi, vici (cheguei, vi, venci). Um

    exemplo clssico da suprema conciso do estilo.

    Mas lembrava o cronista, quando na dcada de 40 do sculo passado, a cantora

    Crmen Miranda levou nosso samba para os Estados Unidos, o Brasil inteiro aguardava

    notcias da repercusso de nossa msica na terra do Tio Sam. Como o general romano, ela

    quis comunicar aos brasileiros o sucesso imediato, retumbante de sua estria e enviou um

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    telegrama que continha uma s palavra, mas que resumia as trs proferidas por Csar. E era

    uma gria da poca: abafei!

    Referncia Bibliogrfica

    PRETI, Dino (2004). Estudos de lngua oral e escrita. Rio de Janeiro: Lucerna.

    TANNEN, Deborah (1986) Ordinary Conversation and literary Discourse: Coherence and

    the Poetics of Repetition. Whashington: Georgetown University.

    TANNEN, Deborah & WALLAT, Cynthia (1993). Interactive Frames and Knowledge

    Schemas in Interation: Examples from a Medical Examination/Interview. In: TANNEN,

    Deborah (ed.) Framing in discourse.New York: Oxford: Oxford University Press.

    Texto de apoio

    FERREIRA FILHO, Joo Antnio (1975). Leo de chcara. Rio de Janeiro: Civilizao

    Brasileira.