duarte claudio alvarenga raphael becktt cada vez menos sim

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  • 7/27/2019 DUARTE Claudio ALVARENGA Raphael Becktt Cada Vez Menos Sim

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    www.sinaldemenos.org v.1, n1, 2009 159

    Beckett, cada vez menos sim

    Cludio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga

    A obra de Samuel Beckett foi inmeras vezes comparada de Franz Kafka. No

    entanto, o prprio Beckett, numa famosa entrevista de 1956, reparava as diferenas. Em

    primeiro lugar, os anti-herois kafkaianos seriam coerentes em seus objetivos, razo pela

    qual, embora em geral se encontrem perdidos, no so em geral espiritualmente precrios,

    o que contrasta com as personagens beckettianas um "povo" caindo aos pedaos e quase

    sem nada, encarnando cruamente, em forma no imediatamente realista, o que a

    sociedade da mercadoria efetivamente faz dos indivduos. Semi-sujeitos inaptos a uma

    qualquer experincia enriquecedora do mundo, vale dizer, a uma experincia digna de ser

    contada, suas aes no so norteadas por nenhuma finalidade consistente e de longa

    dura. Donde a impresso geral de ausncia de sentido, que levou alguns crticos a verem

    em sua obra uma estilizao do Absurdo existencialista, quase degradado em nonsense

    juzo que se mostraria um tanto precipitado: o estilo de Beckett muito mais sensvel que

    metafsico; menos voltado especulao abstrata sobre alguma "condio humana" ou

    essncia do ser-a", que sobre o nvel imediato do corpo, suas urgncias, sua sobrevivncia

    difcil em meio s injunes sociais, da famlia ao trabalho, das instituies prpria

    linguagem discursiva , fazendo cair em irriso os temas imponentes do existencialismo.

    Por isso, nenhuma esttica normativa, seja "clssica", "realista" ou "existencialista", pode

    dar conta da validade do experimentalismo formal beckettiano. Como salienta Adorno em

    ensaio fundamental sobre o autor de Fin de partie, sua perspectiva histrica a da

    catstrofe social do ps-guerra, a incerteza do que se poderia chamar "vida" depois do fim

    do mundo. Se depois de Auschwitz e Hiroshima a falta de sentido tornou-seesmagadoramente real, o sentido de sua obra ser determinar, com mxima preciso, o

    que resta e ainda se suporta nesse limiar entre vida e morte, sade e doena, conscincia e

    inconscincia, sanidade e loucura. isso que abala e transtorna a forma em Beckett.

    Assim, em Kafka, ainda segundo Beckett, nota-se uma forma de escrita serena ameaando

    implodir o tempo todo, mas que flui naturalmente aparando os choques, como um rolo

    compressor. Em Beckett, ao contrrio, a desintegrao desde o incio completa, e o

    terror da existncia histrica se instala radicalmente agora na prpria forma.

  • 7/27/2019 DUARTE Claudio ALVARENGA Raphael Becktt Cada Vez Menos Sim

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    www.sinaldemenos.org v.1, n1, 2009 160

    No texto que traduzimos, o quarto dos treze que compem os Textes pour rien,

    datados de 1950, o autor restringe deliberadamente vocabulrio e sintaxe. A opo

    beckettiana pelo francs j por si mesma a escolha pelo empobrecimento, como meio de

    dar forma exata vivncia de penria, ignorncia e impotncia dos sujeitos desse tempo de

    guerra e estranhamento social. Os mecanismos tradicionais da narrativa, que forampulverizados ao longo de sua trilogia de romances (Molloy, Malone meurt,

    LInnommable), chegam, aqui, a um limite: ausncia de ttulo, personagens annimos e

    mveis, enredo incerto, descontinuidade e embaralhamento das partes, linguagem

    desmoronada, em que soobra uma fala compulsiva, penetrada pelo silncio, em trabalho

    de tentar denominar um inominvel, sem sada vista. Uma escrita spera, elptica,

    invariavelmente torta, e com um vocabulrio escasso. No obstante, condensa em poucas

    linhas um quadro de "luta de morte" entre um senhor e um escravo, embora esta, ao

    contrrio daquela de Hegel na Fenomenologia, no seja travada mais em vista de

    reconhecimento, mas antes pela pura supresso do outro, por um lado; por outro lado,

    uma luta por uma espcie de "desreconhecimento" separao de um outro, do qual

    nunca se consegue desvencilhar. Mais que a imagem do mestre e do escravo, talvez trate-se

    de um sujeito em unidade cindida, com uma face diurna e uma outra inconsciente noturna.

    Ou ainda um eu e seu duplo, uma figura bifronte, viva e morta, ambas mortas-vivas,

    presentes-ausentes, uma na guerra e na errncia, outra em "vida" estacionria em terra,

    mas difusa, sem lastro de atividade autnoma, afastada da faina, mas em liberdade que

    no existe seno em palavras tnues e opacas, pois sempre alienada na vida e no discurso

    de seu outro. A histria contada insuportvel ao narrador, que a recusa e no se

    reconhece na prpria voz, que igualmente a voz do outro que o aliena uma vez mais, e por

    isso se reconhece apenas na solido e no silncio, na ausncia de prxis, que por isso

    mesmo o retorno da desgraa do sempre-igual. A poesia de Beckett, sem desviar, olha-a

    nos olhos.

    Respirao (Breathe), na sequncia, de 1969. Nesta micro-pea, que tem

    durao de apenas 35 segundos, os atores so literalmente um monte de lixo, totalmente

    esparramado no cho, de modo horizontal. Predomnio absoluto do espao inorgnico e

    penumbroso sobre o tempo e a subjetividade possvel representao do ciclo moderno da

    vida e da morte, num tempo e num espao propositalmente abreviados.