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E tem África na Bíblia? Representações e discursos do continente africano
no livro dos cristãos e nos movimentos sociais negros brasileiros
Elba Oliveira Chrysostomo
Resumo:
Este artigo pretende discutir e analisar as formas como o que hoje é a África foi
representado na Bíblia a partir da escrita dos primeiros textos e o advento do cristianismo
no mesmo espaço. Pretende-se também cotejar estas observações a partir da análise dos
discursos em torno da África que decorrem no Brasil desde o século XIX, e que são
retroalimentados por diversos militantes de movimentos sociais “negros”, mídias sociais
e líderes religiosos. Estes, em grande parte, negam a presença do que é hoje a África na
Bíblia, e associam-na à maldição ou afirmam que o cristianismo só surgiu no continente
após o colonialismo.
Palavras-Chave: Bíblia; Representações; África; Brasil; Religiões.
Representações e relações da Bíblia e a África no Brasil
A proposta de produzir esse texto tornou-me consciente da complexidade de
pensar sobre questões do imaginário religioso de África no Brasil, dentre outras a partir
da área que busco investigar, a África na Bíblia, o cristianismo e os discursos provenientes
desse contexto. Se por um ângulo a Bíblia e o cristianismo oferecem campos bastantes
férteis para estas discussões, porque perpassam as ideias frequentemente abordadas, a sua
legitimidade entra em questão. O problema se dá ao modo como as características bíblicas
se representam e são representadas, muitas vezes em formas arbitrárias para evidenciar
um distanciamento entre o que se fez e faz presente em África e o que foi construído a
partir de discursos sociais que utilizaram a Biologia, aspectos políticos, sociais e
econômicos para dar, ainda que erroneamente, justificativa para os interesses de
determinados grupos humanos. A diversidade religiosa que o continente africano
possui(u), desde as primeiras civilizações, enfatiza a importância social que aquele espaço
tem para o deslocamento do conhecimento sobre a formação de religiões.
Os discursos sobre a África e a Bíblia são dotados de invisibilidade ou de
desconhecimento, principalmente quando a referência religiosa sobre o continente
africano no Brasil são as religiões de terreiro. Deste modo, negam-se espaços, povos,
práticas, crenças e costumes em outros contextos para o mesmo continente, como enfatiza
Appiah (1997) ao afirmar que tais representações são constituídas por erros e não se
efetivam enquanto práticas, visto que africanos não se veem como são representados pelo
ocidente. O que se apresenta no Brasil, sob discursos de que há uma matriz religiosa
originária da África, e que esta constitui-se no candomblé e demais religiões de terreiro,
inviabiliza uma compreensão religiosa mais ampla do continente africano, bem como seus
povos e dinâmicas. Há um questionamento que faço desde a criação da lei 10.639/03,
como compreender e agregar nas disciplinas acadêmicas e escolares o ensino de história
e cultura africana sem formação histórica que embase científica e filosoficamente o que
a África foi e é? O acirramento da questão se dá quando insisto em perguntar, qual(is)
cultura(s) de África se quer formar para o ensino?
Há uma forçosa construção identitária a partir de um suposto entrelaçar entre
África e Brasil no que tange aos aspectos das práticas, costumes e crenças que limita o
conhecimento de um continente, potencialmente plural em todas as suas acepções a uma
visão que dificulta a compreensão deste enquanto partícipe e protagonista na construção
da história da humanidade. Para M´Bokolo (2009), se os Estados africanos possuem
traços comuns com os traços de outros países, estes se apresentam, suficientemente,
diferentes do que realmente é. Ao passo que Appiah (1997) declara, as construções sobre
o continente são estereotipadas e, sobretudo, distintas das características dos povos
africanos que ali estão.
Segundo Lima (2017), a visão de uma África homogênea, indistinta, selvagem e
única ainda permeiam as ideias imagéticas de África entre brasileiros. Mudimbe (2013)
postulada que a invenção dessa África se sobrepôs entre discursos e foi absorvido de
modo hegemônico por populações ocidentais. Tais discursos, quando confrontados com
a bibliografia produzida por historiadores e demais estudiosos, são facilmente contraditos
e desconstruídos, como nos aponta Lima:
Os conceitos (...) usados de forma a estabelecer conexões entre brasileiros
“ditos” negros, e os povos do continente africano, produzem estereotipias e
constroem representações que prejudicam o entendimento de práticas e
costumes, construindo ideias que jogam a África para contextos em que
dificilmente seria possível reconhecê-la como de fato é. (LIMA, 2017)
Se pensarmos hipoteticamente sobre o que poderia haver de África na Bíblia e
questionássemos cristãos, militantes de movimentos sociais “negros”, este último têm a
África como escudo de propagação da “negritude”, e líderes religiosos, de pronto há de
se perceber que existe um apagamento e/ou desconhecimento primeiro teológico, em
seguida histórico, geográfico e literário dos contextos bíblicos relacionados ao que seria
hoje o continente africano na Bíblia. A percepção dessa ausência bíblica entre os Estudos
africanos no Brasil e o impacto desta é de grande importância para que se possa melhorar
estratégias de pensar a África como um continente plural, tal como sempre foi, e
aproveitá-la para suscitar discussões a partir de opiniões que promovem a ideia de uma
África una e indistinta. Diante desse contexto representativo e sempre tenso é possível
perceber as diferenças propagadas sobre a África no Brasil e a África propriamente dita,
se quisermos pensar um pouco sobre as ideias de um país diante de um imenso continente.
Se o leitor quiser refletir um pouco sobre a complexidade que essas representações
criaram no imaginário e nas ideias construídas no Brasil desde o século XIX.
As representações fáticas são reduzidas a contextos que não se presentificam, logo
a retomada de (re)leituras de África é condição para repensar as práticas e os discursos,
sobretudo no tocante a ideias erradas que foram/são construídas e retroalimentadas de
modo a inferir numa referência bastante complexa e ao mesmo tempo apreensiva: o modo
como os temas sobre a história da África são tratados e apresentados no Brasil, sob a
égide ilógica de uma África apenas “negra”, imutável, unívoca. Do mesmo modo as
representações sobre o cristianismo no Brasil partem sempre da ideia eurocêntrica de ver
esta religião, escamoteando o seu surgimento. Há, ainda outra tendência no Brasil que
minimiza o conhecimento de África, por a maioria das pesquisas subjacentes ao tema
referir-se aos PALOP (Países de Língua Oficial Portuguesa). Outra vez erra-se ao sopesar
um continente com 56 países a partir de 6 países supostamente ligados ao Brasil, isso é,
no mínimo incoerente, para não dizer tendencioso em manter “os mundos” africanos
desconhecidos. A ideia menos questionada é, contudo, a mais problemática e que implica
nas construções ideológicas erradas sobre o continente no Brasil, tanto pela análise da
natureza destas construções sociais, como pela compreensão das contradições atuais deste
país e dos países distintos entre si.
Essa insistente ideia de manter similitudes, empobrece ainda mais o conhecimento
e nos coloca um limite de produção para construção das realidades sociais, culturais e
políticas do continente. Tal posicionamento silencia e cega de modo que a construção e
reconstrução das imagens de África apagam suas especificidades culturais escamoteando
a complexidade de sua múltipla e rica história. Inventar uma suposta ligação entre o Brasil
e o todo de um continente expõe o que Mudimbe (2009) nomeou por invenção de África.
Representar a África como “lugar”, dotado de homogeneidades no que tange às práticas
e costumes, exclui seu valor e real dimensão, e neste sentido à caracterização deste espaço
de forma singular ignora-se particularidades e diferenças de povos distintos. Esses
posicionamentos tendem a manter a visão sobre o continente de forma simplista e
mostram-se tendenciosos, pois se estruturam sob pensamentos estigmatizados. Não se
deve tomar a representação como algo inofensivo, destituído de efetividades, pois esta,
na urdidura do processo, constrói práticas e se materializa a partir das ações que justificam
os discursos advindos destas releituras, pois, como afirma Chartier:
(...) As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade
à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a
justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta
investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num
campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de
poder e de dominação. As lutas de representação têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio.
Ocupar-se dos conflitos de classificações e delimitações não é, portanto, afastar-se do
social – como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasiado curtas -
muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais
decisivos quanto menos imediatamente materiais (CHARTIER, 1990, p. 15).
Em outras palavras, a análise das representações construídas por discursos se
presentificam no meio social, produzindo ações e novas leituras. O continente africano,
nesse sentido, é lido sob formas que nem sempre (no caso em questão, consoante nossa
hipótese, não o é de forma alguma) há nexo entre fenômeno e representação, ocorrendo
estranhamentos entre a “coisa” e a leitura desta.
O advento do cristianismo em África
Os discursos sobre o cristianismo no Brasil tendem a focalizar no colonialismo
europeu e os problemas decorridos deste e sua inserção em África após o século XV. O
uso da prática cristã utilizada apenas para estabelecer e fundamentar as práticas
colonialistas tocando com ênfase na questão da intolerância religiosa entre pessoas que
praticam religiões de terreiro e cristãos diversos. É interessante observar que nas
características identificadas nessas apresentações discursivas não há uma busca pelo
conhecimento histórico para dirimir os embates de uma suposta guerra religiosa no Brasil,
mas enfatizam questões opositoras com o propósito de manter quem discursa num lugar
que lhe delega algum tipo de visibilidade, logo desconstruir as ideias que relacionam ou
colocam religiões em frente de batalha daria fim a esses espaços de vislumbramento
pessoal entre indivíduos que se veem num lugar de poder. Dessa forma, parece ser
importante indagar sobre o papel das pessoas que militam em movimentos sociais
“negros” e suas reais estratégias.
Essas construções imagéticas sobre a África no Brasil apresentam-se nas mídias
sociais, na oralidade e em textos de alguns grupos hegemônicos, todavia os povos
africanos na sua totalidade não se reconhecem a partir dessas construções, sendo estes
discursos preteridos. Está explícito que essas representações sobre o continente africano
e as práticas religiosas dos ditos “negros” são tendenciosas e insistem em tratar o
cristianismo como uma religião de nascente europeia. Essa invisibilidade dada a presença
do cristianismo primeiro em África e com sua posterior diluição para outros povos e
nações não é divulgada, há significativo apagamento nos discursos sociais, políticos e
religiosos de que o cristianismo teve seu advento antes do século XV e que isso ocorreu
no mesmo espaço em que hoje é parte de África e isso compromete a compreensão da
diversidade de práticas religiosas no continente africano.
Há no Brasil um suntuoso silêncio sobre a presença do cristianismo na África
antes deste chegar ao que é hoje Europa, tanto por parte dos militantes de organizações
sociais “negras”, quanto de instituições cristãs. O que se lê/ouve/vê é o discurso de que o
cristianismo chega à África nos períodos e advento das navegações, escravidão e
colonização, após Reforma Protestante. Essas afirmações são impositivas e sugerem
imagens de africanos apáticos, sofredores e infelizes pela prática religiosa de forma
coercitiva ao passo que isso não coaduna como verdade a priori. Esses discursos fazem
parecer que africanos não tinham, ainda que internamente, seus próprios anseios, suas
escolhas e modos distintos de práticas religiosas. Não é difícil compreender que se o
cristianismo tem o seu advento primeiro no que é hoje África e depois no que é Europa,
que entre as pessoas que fizeram a travessia transatlântica vieram também cristãos,
obviamente com formas e estruturas distintas da prática desta fé.
É importante notar que o cristianismo que se apresenta no Brasil é uma invenção
(re)criada pós século XV, a partir das pré-reformas e pós-reformas do cristianismo
ocidental. Percebe-se a ligação tendenciosa por parte dos movimentos sociais “negros”,
em mostrar uma África apenas dita “negra” e praticante de candomblé, manipulando o
conhecimento de que o cristianismo, o judaísmo e o islamismo chegam primeiro em
África para depois se expandir-se para outras partes do mundo (OLIVER, 1994; SILVA
2006; M´BOKOLO, 2009).
Outro ponto importante para destacar é que os movimentos sociais “negros” e
alguns estudiosos aludem a ideia de que no Brasil existe uma “civilização-negro-africana”
(Luz, 2013), amplamente ligada ao continente africano por vias da religião dos orixás, o
que não é verdade. Se o cristianismo, o islamismo e o judaísmo se presentificam desde os
séculos V a.C com as comunidades pré-cristãs e pré-islâmicas em território africano,
sendo até os dias atuais práticas religiosas com maior número de adeptos, isso,
assertivamente, se deve a presença dessas religiões no continente muito antes da operação
de invenção do oriente pelo ocidente (Óliver, 1994; Said,).
O judaísmo das eras pré-cristãs e pré-muçulmanas era uma religião muito mais
expansiva do que viria a se tornar desde então efetuando vários casamentos inter-
religiosos com egípcios autóctones e outras tantas pelo fascínio que exercia sua fé
monoteísta e seus padrões morais. Foi no Egito, durante o século III a.C que as
escrituras hebraicas foram traduzidas para o grego como os Septuaginta ou Vulgata
dos Setenta. (OLIVER, 1994; p.93)
Oliver, segue afirmando a presença de cristãos neste espaço geográfico desde o
século I da era cristã, ao passo que (M’Bokolo, 2009) afirma a presença de cristãos desde
o século II d.C. ou seja, desde o advento do cristianismo, as comunidades cristãs já se
encontravam estabelecidas no que hoje parte do continente africano, mais precisamente
entre a Núbia (Sudão) e o Egito.
O discurso das mídias sociais no Brasil
Façamos uma rápida pesquisa nas mídias sociais sobre a África e o cristianismo
de imediato encontraremos associação dos africanos à maldição mítica de Cam/Ham e
sucessiva associação aos ditos “negros”. É importante compreender que a suposta
maldição nunca poderia ter sido associada aos negros, porque a África nunca foi apenas
“negra”, nem os descendentes de Cam, também porque não há passagem bíblica que
fundamente a ligação da cor à maldição aos ditos “africanos negros’’ nessa construção
mitológica. O que existem são pressupostos inventados para uma interpretação errônea e
de cunho racista com o fim de sobrepor interesses pessoais.
No século XIX, essa ênfase se dava para fundamentar a inferioridade dos ditos
“negros” associando-os a uma suposta raça inferior, já nos séculos XX e XXI, para
suprimir o cristianismo que surge em território africano e expor de forma habitual
referência ao cristianismo pós século XV, esse tipo de discurso que se propagou sem
profundo conhecimento hermenêutico e estudo histórico essa religião que surge em
África é vislumbrado apenas a partir de uma visão influenciada pela colonização e
mostrado sob a ótica de exclusão originária de mais um elemento que perpassa imagens
e discursos sobre o continente que pouco agrega valor à compreensão dos fenômenos
históricos ocorridos naquela parte do planeta. Diante disso (re)pensar a visão que se tem
entre brasileiros de compor um imaginário religioso único, indistinto, essencialista,
imutável e adverso ao conhecimento de tão vasta e rica história do continente africano
limita a compreensão das práticas e criações humanas.
Segundo Óliver (1994), os povos que habitavam a região fronteiriça entre a Núbia
e o Egito eram prósperos e sustentavam um templo cujas dimensões arquitetônicas eram
semelhantes ao Templo de Salomão. No Brasil, a despeito dos discursos que negam o
cristianismo como uma religião que tem seu advento em território africano, essa mesma
é considerada a religião mais “negra” do Brasil por ter entre a maior parte dos seus fiéis
epiderme preta e parda. Há uma dicotomia entre construções sociais e da natureza com
essa afirmação da maioria sobre a alienação dos cristãos, relegam a esses a alcunha de
alienados, que tem como base fundamental seu suposto surgimento na Europa
expandindo-se para os demais continentes a partir dali, muito dificilmente as histórias
anteriores ao século das (re)formas tem espaço nos discursos sociais eclesiásticos ou de
grupos que militam entre os movimentos sociais “negros”. Essas formulações constituem-
se em erro que insiste e designa manter a ideia de África apagada de uma potencial
estrutura de conceitos e saberes plurais.
A Bíblia enquanto Literatura histórica
A Bíblia foi inicialmente traduzida para o grego por estudiosos judeus no Egito
no período que corresponde a 285-244 a.C; denominando-a Septuaginta (JOFFE, 2017).
A palavra “Bíblia” é um vocábulo que foi inicialmente utilizado no plural, surge a partir
do termo grego “biblos”, que significa “biblioteca”, “conjunto de livros” ou “coleção de
livros”. Para os judeus a partir do século I, o termo Tanak, é construído e passa a ser
designado para as três categorias que compõem: Torá (Lei), Nebiim (Profetas) e Ketubim
(Escritos), para os cristãos esta mesma “Bíblia” hebraica, é chamada de Antigo
Testamento, apenas para diferenciá-lo no entretempo do Novo e Velho Testamento, antes
e depois de Cristo.
Na Idade Média por causa do latim e da expansão do cristianismo em Roma, o
vocábulo passou a ser pensado e utilizado no singular (PURY, 2010). É importante o
leitor compreender que a Bíblia é um conjunto de vários livros, escritos em épocas e
povos distintos. As narrativas bíblicas registram relações humanas desses povos, bem
como a diversidade e os modos distintos de práticas e costumes.
Alguns textos bíblicos fazem uso de metáforas e mitologias onde apresentam
estilo literário, história, genealogia e poesia, com relatos de situações sociais distintas,
das quais os autores utilizam uma diversidade de gêneros literários: acontecimentos e
vivências são relatadas de forma alegórica e metafórica; desertos, prisões, palácios,
viagens, militarismos, normas, regras, leis e cartas.
A compreensão que se tem sobre a “Bíblia” difere de acordo com a visão do grupo
que a utiliza. Para o judaísmo rabínico, essencialmente Lei, para outros judeus uma
epopéia nacional e expectativa de uma restauração político-messiânica, e para os meios
cultos da época persa e helenística, essencialmente como literatura (PURY, 2010). Para
os cristãos de hoje a palavra de Deus ou Lei de Deus.
Para conhecer povos a partir de textos bíblicos é necessário entender os meios
sociológicos, que puseram por escrito e os conservaram. É importante destacar que a
escrita formal sempre foi um meio de comunicação utilizado por grupos que dispõem de
determinado domínio, muitas vezes acompanhado de prestígio e ascensão social, portanto
faz-se necessário não tem uma visão romantizada sobre as pessoas que escreveram os
textos bíblicos, de modo a criar um imaginário estereotipado de pessoas escrevendo em
tendas ou cavernas as histórias de determinado povo. Os meios que redigem e transmitem
os textos (sagrados e profanos) são: a escola, o palácio, o templo e, em uma época tardia,
proprietários de bibliotecas (KNAUF, 2010), logo a ideia de uma referência das pessoas
que escreveram como ignorantes e leigos perfaz o estereótipo da alienação construído
para representar erroneamente aqueles que a produziram esses escritos. Sabe-se que ao
longo da vida humana a maioria das pessoas que domina(ra)m a escrita e a linguagem são
pessoas de camadas sociais diferenciadas daqueles que não tem o mesmo domínio e,
embora muitas culturas de África sejam transmitidas pela oralidade, isso não pode ter
como verdade a priori que toda linguagem utilizada provém desta. A Bíblia tem no seu
primeiro livro: Gênesis, o início de uma apresentação recontando de modo informativo e
lúdico a história do surgimento dos primeiros seres considerados humanos, algumas
práticas, costumes, crenças e o espaço onde se deu esse aparecimento, o que não é
novidade para o mundo ocidental, a afirmação científica e que, também é relatada na
Bíblia, o surgimento dos primeiros humanos em solo africano.
E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, do lado oriental; e pôs ali o
homem que tinha formado (...) E saía um rio do Éden para regar o jardim; e
dali se dividia e se tornava em quatro braços, o nome do primeiro rio é Pisom;
este é o que rodeia toda a terra de Havilá, onde há ouro. E o ouro dessa terra é
bom; ali há o bdélio, e a pedra sardônica e o nome do segundo rio é Giom;
este é o que rodeia toda a terra de Cuxe e o nome do terceiro rio é Tigre; este
é o que vai para o lado oriental da Assíria; e o quarto rio é o Eufrates. (Gênesis
2)
Há uma construção de imagens metafóricas para que povos fossem atraídos à
leitura, mas pode-se perceber detalhes do território desse aparecimento humano. Ora, no
período de escrita deste livro impérios africanos dominavam a cultura, a economia e a
política, a saber; o império Axumita, onde o cristianismo foi a religião oficial desde o final
do século I. (Silva, 2006; M´Bokolo, 2009)
(Re)pensar a história da humanidade a partir da literatura mais lida no mundo, a
Bíblia, é acolher o conhecimento que não tem limites de ser e existir. A partir da narrativa
de Gênesis a análise dos povos, suas práticas e costumes propõe uma ruptura significativa
de conhecer África(s) na pluralidade e diversidade de suas identidades, nesse sentido,
(re)interpretar Gênesis visa aproximar do conhecimento os que fazem uso do livro
sagrado, bem como, aqueles que o analisam como livro mitológico, e chegar a conclusões
mais próximas do real exercício do saber, trazendo mais reflexões para a sociedade e
possibilitando a transformação do conhecimento a partir de (re)leituras e questionamentos
de discursos errôneos sobre o continente africano, que não contribuem para compreensão
multidimensional do mundo, muito menos para uma sociedade mais justa, humana,
tolerante e respeitosa. É evidente a presença de povos que habitaram o espaço nomeado
hoje como continente africano nos textos bíblicos, sobretudo no livro de Gênesis, não há
como sustentar a ideia de negação ou invisibilidade de povos que habitavam a região
desde o surgimento dos humanos e são relatados na bíblia. Historiadores, filósofos e
religiosos da antiguidade já compreendiam que os primeiros humanos surgiram no espaço
que hoje é África.
Os etíopes, como afirmam os historiadores, foram os primeiros de todos os
homens (...) todos historiadores concordam que eles são autóctones. Além
disso, é claro para todos aqueles que vivem sob o sol do meio dia foram, com
toda probabilidade, os primeiros a serem gerados pela terra , uma vez que se
deve ao calor do sol, no surgimento do universo, o tê-la enxugado, quando
ainda estava úmida, e a impregnado de vida. (Costa e Silva apud Deodoro da
Sicília p.II)
De maneira mais explícita, estes textos trazem uma condição dos seres humanos,
percebida às vistas das mitologias do livro de Gênesis, e demitologicamente os escritos
de Deodoro da Sicília apontam interpretações históricas às quais caracterizam o
continente africano no período de surgimento da humanidade. Neste sentido, nota-se a
riqueza de detalhes da narrativa bíblica que reconta a história com a utilização de uma
estilística metafórica, utilizando um fenômeno que movimentava os pensamentos dos
povos na época: “mitos”.
Miercea Eliade (2000, p. 7) em seu livro sobre mito e realidade afirma:
A perspectiva conceitual dos mitos no período antigo contrasta com a do
período moderno este o compreende como “fábula”, “ficção”, “invenção”,
porém para as sociedades arcaicas, o mito designa ao contrário, uma “história
verdadeira” e preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo.
A Bíblia para os ditos modernos é caracterizado como irreal, mas para os povos
ditos antigos era impregnado de verdade, visto que a religiosidade sempre esteve inerente
a alguns humanos. O início da prática de culto monoteísta em Gênesis é explicitado
quando o terceiro filho de Adão é gerado Sete e deste é gerado Enos; então se começou a
invocar o nome do Senhor (Gênesis 4:26). Autores diversos exprimem de maneira
simbólica o que se acreditava e praticava como fé religiosa, todavia não é possível
perceber uniformidade nas várias expressões religiosas deste período no continente
devido a diversidade de suas acepções. Há desde sempre no continente africano uma
pluri-realidade cultural e religiosa. Afirmou Deodoro da Sicília:
Historiadores escreveram que os etíopes foram os primeiros seres humanos
iniciaram cultos e aprenderam a adorar deus(es) e a organizar sacrifícios,
procissões e festivais em honra e louvor deles; e sobre os egípcios são os
descendentes diretos dos colonos etíopes [...] a crença de que os reis são
deuses, o especial cuidado que dão a seus sepultamentos e muitas outras
matérias de natureza semelhante são práticas etíopes, do mesmo modo que a
forma de suas estátuas e a maneira como escrevem. (Costa e Silva apud
Deodoro da Sicília, p.21)
A dificuldade de romper com uma ideologia da unicultura religiosa que predomina
sobre a África, em vias de tornar-se uma história única, é o que se (re)apresenta ao longo
dos séculos, enquanto fatos sociais desprovidos de base histórica, sociológica e filosófica
adentra nos discursos pessoais, sociais e midiáticos para escamotear o que este continente
sempre representou de importante para construção da história da humanidade desde os
tempo antigos.
O poderoso reino de Cuxe, citado Gênesis 2:13, enfatiza a riqueza e poder que
aquele império representava na antiguidade, porém a medida que os textos bíblicos são
carregados de diversas conotações que dificultam a compreensão histórica dos textos para
quem o lê de forma isolada, ou ainda versículos aleatórios e sem conhecimento do período
histórico o que condiciona a ideia de pensamento único sobre a Bíblia e o continente
africano. Nos afirma Heródoto sobre os grandes rios, também citados na narrativa de
Gênesis, que havia um grande lago que desembocava no rio Nilo e nas praias ao seu redor
viviam “tribos” nômades de etíopes.
A partir do século V a.C. (se não antes) a cidade de Meroé foi a capital do
poderoso Reino de Cuxe, na Núbia. Importante centro caravaneiro e produtor
de ferro, Meroé de que restam ruínas, fica a margem direita do Nilo, um pouco
acima da confluência deste com o rio Atbara. O reino de Cuxe extinguiu-se,
possivelmente, no decorrer do século IV de nossa era. (Costa e silva apud
Heródoto, p.17-18)
Vê-se bem o relato histórico enriquecer o relato bíblico, há uma decalagem entre
a ordem do que se explicita como religião dita de “matriz africana” no Brasil e o que de
fato se apresenta como tal. Idealizada na figura do conceito mitológico atual, mas também
na figura que retira do “mito” bíblico, o peso de ideias que não referenciam historicidade.
É evidente que os autores dos dois relatos não inventaram todas as peças de seus textos.
Entrar nos lugares majoritários é tentar quebrar a hegemonia de discursos que fomentam
a separação e a intolerância. Esse trabalho surge em favor da sensibilização humana e
política para vencermos mais uma forma de preconceito e discriminação no Brasil,
rediscutindo representações e reflexões que foram engessadas e perpassadas ao longo de
gerações que usadas e manipuladas descaracterizaram as literaturas bíblicas e os povos
africanos presentes nas narrativas.
No capítulo 10 do livro de Gênesis, percebe-se ainda, os povos descendentes, além
do surgimento de poderoso reino: “E Cuxe gerou a Ninrode; este começou a ser poderoso
na terra” (Gênesis 10:8). A cidade de Napata [...] foi capital do poderoso reino de Cuxe,
na Núbia, do século IX ao século V a.C, aproximadamente, quando foi substituída por
Méroe (Deodoro apud: SILVA, 2012, p. 21). Partindo de pressupostos das descrições
narrativas bíblicas, bem como as históricas, pode-se observar que desde o surgimento
humano ocorreram trajetórias que possibilitam analisar povos que habitaram o continente
africano, de forma que podemos compreender, tanto a partir da mitologia bíblica quanto
de escritos históricos o protagonismo de povos que habitaram parte do continente
africano.
A cultura, segundo Hall (2016) está envolvida em todas as práticas e costumes
que não são geneticamente programados. Estes, ao longo dos tempos, permitem
compreender os processos de construção, do fazer e refazer constantes, subsumidos ao
campo da cultura. Deste modo, contrapor as concepções estereotipadas sobre a África,
construídas ao longo séculos, com ênfase em aspectos racializantes, permitirá entender
outros sentidos, pautados na diversidade e pluralidade de povos que não são regidos por
signos balizados em elementos da natureza, no caso, cor da pele, traços físicos, dentre
outros aspectos. Assim, conhecer as práticas, costumes, hábitos de povos africanos de
maneira que não os generalize e a partir de vertentes diversas, dimensionadas em
diferentes objetos, nos ajuda compreender um pouco mais sobre a história da África, e
nos (re)coloca nos certames da produção de conhecimento para compreender a
humanidade em suas diferentes particularidades.
No Brasil, o continente africano foi/é representado, via de regra, sob estereotipias
que aludem a certa homogeneidade nas práticas, costumes, línguas e visões de mundo. A
África, nestas representações, ora é apontada como um “lugar” pobre, selvagem, repleto
de negros, ora como o berço de uma raça, dotada de um povo com práticas e costumes
homogêneos. Neste sentido, constroem-se duas representações ideologizantes; uma na
perspectiva dos “movimentos sociais negros”, que traz os “negros” brasileiros como
partícipes do “povo negro”, tributários de uma “matriz africana” (logo, indicando que os
negros devem, em geral, professar o candomblé); noutra há a negação da presença dos
africanos na Bíblia, induzindo a interpretação bíblica, numa perspectiva hermenêutica,
para o equívoco de que se constituem de povos amaldiçoados. Estes discursos aglutinam
visões estereotipadas, e negam/invisibilizam a extrema diversidade existente no
continente africano. Para Orlandi (2005), os discursos naturalizados são utilizados como
mecanismos ideológicos de apagamento da interpretação. Representar a África como
“lugar”, dotado de homogeneidades no que tange às práticas e costumes, exclui seu valor
e real dimensão, e neste sentido a caracterização deste espaço de forma singular ignora-
se particularidades e diferenças de povos distintos. Esses posicionamentos tendem a
manter a visão sobre o continente de forma simplista e mostram-se tendenciosos, pois se
estruturam sob pensamentos estigmatizados. Não se deve tomar a representação como
algo inofensivo, destituído de efetividades, pois esta, na urdidura do processo, constrói
práticas e se materializa a partir das ações que justificam os discursos advindos destas
releituras. Em outras palavras, a análise das representações construídas por discursos se
presentificam no meio social, produzindo ações e novas leituras. O continente africano,
nesse sentido, é lido sob formas que nem sempre (no caso em questão, consoante nossa
hipótese, não o é de forma alguma) há nexo entre fenômeno e representação, ocorrendo
estranhamentos entre a “coisa” e a leitura desta.
O mito de Cam/Ham, a Bíblia e as construções sociais
No Brasil, as representações que predominam sobre “Bíblia” e o continente
africano estão eivadas de diferentes estereótipos. Ao analisarmos o mapa a seguir pode-
se perceber que os descendentes de Cam/Ham deram origem a diferentes povos e impérios
poderosos na antiguidade, dentro de espaços geográficos que hoje renomeados fazem
parte do continente africano: Cuxe (Sudão/Etiópia), Egito (Mizraim), Pute (Líbia/
Somália).
As estereotipias construídas sobre os povos africanos relacionadas à Bíblia não
denotam verdades e sofrem empobrecimento todas as vezes que são manipuladas para
atender demandas pessoais, reduzindo o continente a entes imaginários que invisibilizam,
colocam à margem a multiplicidade e a pluralidade cultural existentes no continente. A
África, a partir das representações existentes na “Bíblia”, não pode ser pensada como
“lugar” de maldição dos africanos ou dos ditos “negros”. A complexidade da legitimação
do termo “raça” para a “Bíblia” e o desconhecimento da hermenêutica por parte daqueles
que mantém um discurso a partir de militâncias sociais e de alguns cristãos em descrever
os espaços africanos como próprios de uma unicidade é, como já nos disse, um erro que
caminha ao longo de séculos e nos permite refletir e estabelecer uma ruptura entre as
representações estereotipadas que caracterizam o continente africano como lugar
universalmente de “negros” e a estes na Bíblia à uma suposta maldição metafísica.
A utilização de textos bíblicos, isolados, pode ser problemática para uma reflexão
sobre a “raça”, visto que, não há fundamentação empírica, desenvolve-se uma leitura
acrítica e opõe-se a histórias subjacentes na “Bíblia” em que sua máxima diz não haver
acepção de pessoas.