educaÇÃo e diferenÇa: uma experiÊncia docente em …
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Universidade Federal de Santa Maria
Programa de Pós-Graduação em Educação
Dissertação de Mestrado
EDUCAÇÃO E DIFERENÇA: UMA EXPERIÊNCIA DOCENTE EM ARTES VISUAIS NA COMUNIDADE SURDA
AUTORA: Sara Beatriz Eckert Huppes
ORIENTADORA: Profa. Dra. Marilda Oliveira de Oliveira
Data e Local de Defesa: 31 de julho de 2018 - Sala 3350, Centro de Educação - UFSM
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EDUCAÇÃO E DIFERENÇA:
UMA EXPERIÊNCIA DOCENTE EM ARTES VISUAIS NA COMUNIDADE SURDA
Por
Sara Beatriz Eckert Huppes
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, linha de pesquisa Educação e Artes da
Universidade Federal de Santa Maria, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Marilda Oliveira de Oliveira.
Santa Maria, RS, Brasil, 2018.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA - CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - MESTRADO EM EDUCAÇÃO
LINHA DE PESQUISA LP4 – EDUCAÇÃO E ARTES
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado
EDUCAÇÃO E DIFERENÇA: UMA EXPERIÊNCIA DOCENTE EM ARTES VISUAIS NA COMUNIDADE SURDA
Elaborada por Sara Beatriz Eckert Huppes
____________________________________________
Profa. Dra. Marilda Oliveira de Oliveira
CE/UFSM – Orientadora
___________________________________________
Profa. Dra. Daniele Noal Gai
Faced/UFRGS
___________________________________________
Prof. Dra. Márcia Lise Lunardi-Lazzarin
CE/UFSM
__________________________________________________________
Prof. Dra. Tamiris Vaz
IA/UFU
Santa Maria, RS, Brasil, 31 de julho de 2018.
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“Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele.”
Deleuze e Guattari, Mil Platôs 4
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AGRADECIMENTOS...
Essa escrita foi composta a partir do que tem atravessado a docência e a pesquisa.
Habitou muitos espaços, conversou com muitas bocas, foi manuseada e de-formada por cada afeto que se fez
presente em minha vida.
Estes fragmentos, pedaços de vida constituem um emaranhado de recolhas e cintilâncias que tem me arrastado
para territórios incertos e imprevisíveis, porém sempre possíveis.
Agradeço primeiramente à vida por ter me proporcionado encontros de tamanha potência.
À Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Cóser pela calorosa acolhida, pelas vivências e
construções coletivas, e pelos afetos que despertaram em mim o desejo pela escrita/leitura, possibilitando o
nascimento dessa pesquisa.
À minha orientadora Marilda, que aceitou ao meu lado o desafio de realizar essa pesquisa, obrigada pelas
partilhas, pelo companheirismo e pela generosidade.
Ao grupo de orientação coletiva por partilharem comigo a autoria dessa escrita.
À família que compreendeu minhas ausências e enviou energias positivas.
Agradeço aos meus queridos amigos, os quais têm me apoiado com zelo e paciência, tornando a vida mais leve,
proporcionando pequenos respiros.
Às escolas Instituto São José e EMEF Reverendo Alfredo Winderlich, que, além do incentivo, adequaram seus
horários às minhas necessidades.
Aos estudantes queridos, que me entusiasmam todos os dias com olhares, gestos, palavras e afetos...
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RESUMO
Esta pesquisa se propôs a pensar uma experiência docente em artes visuais, em uma escola bilíngue, com estudantes
surdos. Procurou articular a educação atravessada pelos conceitos - diferença, experiência, território e linguagem, a
partir de autores como Carlos Skliar (2014) Jorge Larrosa (2010), Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997). Portanto, não
diz respeito a uma comparação em relação à outros espaços educacionais, mas atenta às possibilidades de
experiência dentro do espaço vivenciado. Apresenta como problemática: Como escrever (com) a vida que pulsa em
meio a experiência docente em artes visuais com estudantes surdos? Os conceitos foram pensados na área
educacional a partir do pensamento das filosofias da diferença e de experiências na Escola Estadual de Educação
Especial Dr. Reinaldo Fernando Cóser, em Santa Maria - RS. Assim, enquanto metodologia operou-se com a escrita
biografemática, como possibilidade de produzir pesquisa com este método cunhado por Roland Barthes (2003), que
pensa a vida como a construção de um texto, portanto, a pesquisa não objetiva narrar uma história como um roteiro,
mas apresentar a vida como potência. Como resultados foram acionadas memórias de lugares vividos na infância, a
produção de um diário de campo e a composição fotográfica de imagens do processo. Todos esses elementos
respingaram na docência e produziram biografemas nesta dissertação.
Palavras-chave: Biografemática, filosofias da diferença, linguagem, educação menor, artes visuais.
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ABSTRACT
This research proposes to think a teaching experience in Visual Arts, in a bilingual school, with deaf students. It aimed to
articulate education permeated by the concepts of difference, experience, territory and language, through authors such
as Carlos Skliar (2014), Jorge Larrosa (2010), Gilles Deleuze and Félix Guattari (1997). Therefore, this is not a
comparison in relation to other educational spaces, but it approaches possibilities of experience within the space in
which one lives. It presents as research question: how could one write (with) a pulsating life within the teaching
experience in Visual Arts with deaf students? The concepts were thought in the educational field through the reasoning
of the philosophies of difference and the experiences lived at State School of Special Education Dr. Reinaldo Fernando
Cóser, in Santa Maria - RS. Thus, as methodology, it operated with the biographematic writing as a possibility for
producing research with the method developed by Roland Barthes (2003), which sees life as a text construction;
consequently, the research does not aim at narrating a story script, but it presents life as potency. As results, memories
were activated in relation to places lived during childhood, a diary was produced, and a photographical composition of
images of the process was conceived. All these elements influenced the teaching experience and produced
biographemes in this thesis.
Keywords: Biographematic writing, philosophies of difference, language, minor education, visual arts.
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SUMÁRIO
EStraNHAmenTO iNIciAL......................................................................................................11
TeRRiToRiaLiZAnDo................................................................................................................19
Das pesquisas que me movimentam..........................................................................................21
BIOGRAFEMÁTICA: PESQUISA EM MEIO À VIDA...................................................26
EnCoNtRO – CriAnDo ‘NóS’......................................................................................36
LinGuaGueJanDo..............................................................................................53
SeNdO SiLêNciO...................................................................................66
DiFeReNciAnDo A DiFeReNçA..................................................68
DoCênCiA PeLa eXpeRiêNCiA............................................85
ConSideRaÇõEs PrOviSóRiaS..............................................101
ReFeRêNcIaS................................................................................104
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Flávio Cerqueira- “Antes que eu me esqueca”, 2013.
Pintura eletrostatica sobre bronze, madeira e espelho.
10ª Bienal do Mercosul, 2015.
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EStraNHAmenTO iNIciAL
Dentre os seis anos em que estou inserida no espaço escolar - um e meio cumprindo estágio curricular, e
após, exercendo a docência no ensino fundamental da rede pública estadual e municipal de educação - me vi frente a
um desafio: A educação de surdos. Uma educação de muitas possibilidades. Fui encaminhada pela Oitava
Coordenadoria Regional de Educação (CRE) para atuar como docente da disciplina de Artes na Escola Estadual de
Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Cóser, escola bilíngue para estudantes surdos. Na época em que cursei a
Licenciatura, a disciplina de Libras (Língua Brasileira de Sinais) ainda não fazia parte do currículo. Assustada e
preocupada, aceitei o encaminhamento e segui em direção à Vila Lorenzi (Santa Maria), a fim de conhecer meu novo
ambiente de trabalho.
Animada, certa de que teria intérprete em minhas aulas, e que seria uma experiência interessante. Me via
frente a uma turma gigantesca, oralizando, com uma pessoa ao meu lado interpretando minha fala.
ILUSÃO. MEDO. DESEJO.
Ao chegar...
Olhos arregaLADOS...
Pessoas fazendo gEsToS...
Um SILÊNCIO...
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Um silêncio agitado, crianças interagindo e conversando...
Era a hora do I n T e R V A L O.
I n t e r FOSSO
E n T r E v A L o
e N t R e F o S S o
A vice-diretora (ouvinte) apresentou-me a escola, o grupo de professores, organizamos o meu horário e fiquei
ali até o final da manhã, observando, foi então que o desespero aumentou, ao constatar que não teria intérprete
auxiliando-me, que necessitaria aprender a língua deles, afinal a estrangeira era eu, e na posição de professora
precisaria propor alguma atividade aos estudantes já na semana seguinte.
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Na primeira semana apenas observei. As aulas se deram de forma conjunta, com todos os ciclos em uma
mesma sala de aula, onde o grupo de professores trabalhava sobre a história da escola, pois o aniversário da mesma
estava próximo. Durante este tempo, aproximei-me do alfabeto e dos números, bem como fiz a impressão de um
minidicionário de Libras.
Nesse espaço, meu primeiro dilema foi a aquisição da linguagem, a comunicação com os estudantes surdos
que se encontram em processo de alfabetização nas duas línguas, a Libras e a Língua Portuguesa.
Posteriormente, com domínio do alfabeto e dos números, com um pequeno vocabulário na nova língua da qual
me aproximava, e com a utilização de meios visuais, comecei a pensar a disciplina de artes e as questões referentes à
imagem, das quais me aproximei durante a graduação.
A Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Cóser conta com um grupo restrito de
estudantes em relação às demais escolas estaduais da cidade de Santa Maria. Organiza-se por ciclos - o que também
difere da organização das demais instituições - tendo de dois a sete estudantes por turma. Atualmente, os anos finais
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do Ensino Fundamental acolhem um total de quinze estudantes adolescentes, com idades entre onze e dezessete
anos. O Ensino Médio também em igual número de quinze estudantes. O grupo de professores é grande e misto,
ouvintes e surdos, pois além das disciplinas comuns a todas as demais escolas, oferece a disciplina de Libras,
trabalhada em sua modalidade gestual e também escrita (Sign Write), esta, ministrada sempre por professores surdos,
que têm a Libras como sua primeira língua.
A escola de surdos foi o espaço desta pesquisa de dissertação, onde pude experimentar uma docência em artes
visuais. Como problemática elaboro a seguinte questão: Como escrever (com) a vida que pulsa em meio a
experiência docente em artes visuais com estudantes surdos?
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A ideia de pensar a imagem nos processos de produção
de subjetividades surdas surgiu a partir da construção de um
glossário de palavras, pensado como atividade interdisciplinar,
tendo como objetivo a aquisição de vocabulário por parte
dos estudantes do ensino fundamental, e trabalhado nas
disciplinas de Língua de Sinais, Língua Portuguesa,
Língua Inglesa e Artes. Nesta proposta um grupo de
professores das disciplinas participantes selecionou
palavras, e para cada palavra uma imagem correlata, a fim
de facilitar a memorização da mesma em suas diferentes
formas de linguagem.
Durante o processo de construção do glossário de
palavras, atuando como professora de Artes,
entendendo a importância do uso da imagem de
maneira correlata para o processo de
alfabetização do estudante surdo- senti falta
de uma produção de sentidos a partir dessas
imagens, da possibilidade de produção de
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novas visualidades ou de outras formas de pensar os conceitos e as palavras afixadas ao glossário. Afinal, estávamos
trabalhando com a imagem como representação, justamente o oposto do que aprendi na graduação. Isto me
perturbava. Esse modo de trabalho me inquietava.
[...]
A seguir menciono alguns referenciais que contribuíram para pensar os conceitos abordados nesta dissertação.
Skliar (2014) para pensar o encontro com o ‘outro’; Larrosa (1994) e a experiência de si, bem como a linguagem.
Também procurei formar algumas alianças com alguns conceitos importantes para as filosofias da diferença, a partir
de aproximações com Deleuze e Guattari (1996), para pensar a questão do território e da multiplicidade. No que se
refere às Artes Visuais e docência, utilizo a produção teórica do meu grupo de orientação e orientadora (OLIVEIRA, et
al, 2018).
A pesquisa foi pensada a partir de biografemas, método cunhado por Barthes (2003), que pensa a vida como a
construção de um texto. Assim, fui biografando o espaço da Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo
Fernando Cóser1. Não com o objetivo de narrar uma história como um roteiro, mas apresentar a vida como potência.
1 A partir daqui mencionarei a escola como Cóser, forma que é chamada pelo corpo docente e discente que a constitui.
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Para tensionar a escrita, utilizei nesta dissertação, além de imagens das produções com os estudantes e
imagens de obras de arte, algumas experimentações em fotografia, imagens produzidas em um galpão antigo (onde
morei até meus cinco anos de idade), e com objetos nele encontrados, na propriedade de meus pais, lugar no qual vivi
até meus dezessete anos de idade, em uma localidade chamada Linha Pé-de-Bota, interior de Boa Vista do Buricá -
cidade localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul. Imagens que remetem a esse período de silêncios e
calmaria; vestígios de um passado friccionados com o presente. O contato com a arte foi aos meus cinco anos de
idade, quando meu irmão mais velho formou-se em Educação Artística pela FEMA (Fundação Educacional Machado
de Assis), na cidade de Santa Rosa (RS). O galpão serviu de ateliê durante alguns anos - e mais tarde ele passou a
atuar como professor municipal. Para tais fotografias, apropriei-me de dois personagens, Paulinho e Urso, que fizeram
parte da infância, os quais reencontrei recentemente. Paulinho foi um boneco que pertenceu a um de meus irmãos,
enquanto a minha era a kátia, ele teve o Paulinho...E...somente este resistiu ao tempo, carrego comigo a culpa de ter
cortado seus cabelos... No ano de 2017, mexendo nos guardados antigo, reencontro Paulinho, sofrido e encardido,
mas com o mesmo olhar sereno e o mesmo sorriso de quando mudei seu visual. O urso pertenceu à minha irmã, mas
sempre tive um grande apego a ele, mesmo que tivesse os meus, preferia este, o reencontrei atirado pelo chão,
parecendo solitário e deslocado.
Durante o decorrer do mestrado, na disciplina de Produção do Conhecimento no Ensino de Artes, fui convidada
a produzir um diário visual a partir da pesquisa. Como o glossário criado na escola foi o que me movimentou a pensar
essa dissertação, produzi um glossário, elegendo minhas palavras-chave e conceitos e foi onde desenvolvi alguns
biografemas, joguei memórias, imagens, palavras, brinquei, experimentei.
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Assim, as imagens de experimentação fotográfica que compõe esta dissertação contam um pouco do que
compõe esta docente, feita de imagens e de silêncios.
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TeRRiToRiaLiZAnDo
O Cóser é um espaço conquistado pela comunidade surda, no qual além da função pedagógica acontecem
momentos de interação, atividades extracurriculares, tornando-se o principal ambiente de comunicação e interação
dos estudantes, os quais afirmam sentir-se carentes de comunicação e de contato humano quando fora desse
‘território’, seja em suas casas, na rua e demais lugares que frequentam.
Entendo, na pesquisa, a escola Cóser como território, que, para Deleuze & Guattari (1996) implica o espaço,
mas não consiste na delimitação objetiva de um lugar geográfico, sendo o valor do território, existencial, pois
circunscreve para cada um, o campo do familiar, marcando distância em relação à outrem e protegendo do caos.
Para Deleuze & Guattari (1996), o território é o espaço subjetivo vivido, é o lugar onde um sujeito se sente ‘em
casa’, ele é sinônimo de apropriação, de uma subjetividade fechada em si mesma. Assim, o território é o conjunto das
representações, dos comportamentos nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos (GUATTARI
& ROLNIK, 2005). Entretanto, Deleuze & Guattari (1996) indicam que a formação subjetiva produzida por um território
específico pode se desterritorializar, se abrindo às linhas de fuga, ou seja, realizando um movimento pelo qual se
abandona o território e constrói-se um outro território (reterritorialização). Em outras palavras, a reterritorialização
consiste numa tentativa de recomposição de um território engajado em um processo desterritorizalizante.
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Assim, no contexto da pesquisa, o território mencionado também passa por movimentos de desterritorialização
e reterritorilização. Frequentemente a escola recebe visita de instituições, desde escolas de educação infantil até
acadêmicos de diferentes cursos de graduação, bem como, retribui visitas, leva os estudantes surdos à Bienal do
Mercosul, exposições e eventos culturais na cidade. Além dos movimentos que cada indivíduo faz no seu dia a dia.
Ao adentrar no ‘território’ muito ouvi sobre a cultura surda. Os surdos se reconhecem como um grupo distinto
que, por meio de lutas, conquistou espaço na sociedade e direitos na constituição do país. Assim, a cultura surda não
é determinada apenas pelo que os surdos fazem juntos, mas sim pela experiência, por suas vivências comuns,
hábitos, lutas, o que contribui muito na construção subjetiva deste grupo.
O próprio território é estruturado por algum tipo de nomos (costume, hábito) que é definido por formas de
comportamento e sua função no território. O território tem lado de fora e também deve ter uma saída, só que esse lado
de fora não deve ser pensado unicamente em termos espaciais; espaço em si (termo utilizado por Deleuze e Guattari),
não deve ser pensado unicamente no que concerne ao espaço físico. Portanto, penso o lado de fora como as mídias,
a televisão, as redes sociais, as famílias dos estudantes, as visitas recebidas e feitas por eles, bem como suas
vivências fora da escola.
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Das pesquisas que me movimentam...
Considerando os campos centrais da minha pesquisa de mestrado: docência, experiência, filosofias da diferença
e linguagem; investiguei as produções acadêmicas no repositório da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações (BDTD), a fim de mapear algumas pesquisas que já foram realizadas e deste modo perceber em que a
minha pesquisa se difere das demais. Qual é sua contribuição para a área da educação de modo geral e das artes
visuais, de modo específico. Também busquei por artigos e publicações na temática pesquisada.
Os conceitos são pensados na área educacional a partir do pensamento das filosofias da diferença. Assim,
busquei dissertações e artigos que contribuíram e conversam com esta pesquisa, inicialmente a partir das palavras-
chave: Docência, experiência, filosofias da diferença, linguagem, artes visuais, e em um segundo momento, dos termos
correlatos: educação menor, língua de sinais, educação de surdos.
Ao buscar pesquisas que pensassem a surdez, a educação bilíngue em relação ao pensamento da diferença,
mais específico como experiência docente, encontrei um grande número de pesquisas que discutem a história da
Libras, as lutas e conquistas da comunidade surda, a formação da Língua de Sinais também, pelo fato de que a surdez
tem sido um tema recorrente de estudo em campos como o da comunicação, da educação especial, da educação em
suas diversas áreas, da fonoaudiologia, das letras, dentre outros.
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Observei que as perspectivas teóricas que abordam esta temática variam, mas a ênfase de muitas é na
problematização das políticas de inclusão, tratando de diversidade, que, segundo Gallo (2017) trata de grupos que
compõe a unidade, não valoriza a multiplicidade, o que a difere e distancia das filosofias da diferença.
Assim, me detive a buscar pesquisas que dialogassem com as filosofias da diferença, sem me ater às questões
políticas de inclusão, não com o intuito de diminuir sua importância como campo de pesquisa e estudos, apenas por
questões de diálogo com os referenciais estudados. Também não optei por narrar a história da Libras, aponto apenas
algumas informações importantes acerca da formação desta, porém a abordagem que faço, aqui, da língua é a partir
dos escritos de Deleuze e Guattari sobre a condição de uma língua menor e maior conforme seu uso e suas
possibilidades. Onde a língua maior é aquela com o reconhecimento formal, ensinada nas instituições de ensino, já a
língua menor, trata das possibilidades de criação dentro da língua maior.
Dos achados: Cibele Toledo Lucena produziu a dissertação de mestrado “Beijo de línguas: quando o poeta
surdo e o poeta ouvinte se encontram”, pesquisa desenvolvida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia:
Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no ano de 2017. Pesquisa que procura investigar
a experiência poética, ética e (auto)educativa realizada pelo grupo Corposinalizante, formado por surdos e ouvintes,
uma batalha de poesias que acontece na imbricação entre a língua portuguesa e a língua brasileira de sinais, dois
modos de língua e linguagem. Este empenho em produzir uma vizinhança entre os dois mundos nos leva por um
caminho que escapa às ideias de “deficiência” e “diferença” pautadas por um olhar normativo e hegemônico, tornando
possível pensar o acontecimento de distintos processos de diferenciação. A pesquisa também ocupa e desocupa certas
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palavras que espreitam a experiência, como “acessibilidade” e “inclusão”, criando outras, em conexão com as vibrações
da vida.
Daniela Medeiros produziu a tese “Emergências discursivas: negociações entre documentos e produções
culturais surdas” no Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul, Unijuí, no ano de 2017. Este trabalho situa-se no contexto de debates e discussões sobre a Língua
de Sinais, o processo de escolarização de surdos no Brasil e seus modos de subjetivação, vinculando-se a uma
perspectiva baseada nas filosofias da diferença. Questiona: como tem se dado as negociações entre alguns
documentos (de 1999 a 2014) e produções culturais discursivas dos surdos em relação à Língua de Sinais, ao seu
processo de escolarização e na constituição de seus modos de subjetivação? Pautada em tal problemática e com base
na arquegenealogia, analisa os cenários de negociações entre documentos e produções culturais, considerando-os
como possíveis espaços para a elaboração de outros modos de subjetivação dos surdos, a fim de compreender como
estas práticas têm implicado nas suas constituições subjetivas. Daniela Medeiros, anteriormente foi orientada pela
minha orientadora no mesmo Programa onde realizo meus estudos e em 2012 defendeu a dissertação “Diferença e
subjetividades do corpo: que educação é essa?”, onde aborda a educação, o corpo, a diferença e as subjetividades.
Discute: De que forma pensar a educação e constituição do corpo a partir da diferença e de suas subjetividades? Que
lugar e/ou entre-lugar este corpo ocupa na escola? De que maneira as diferenças deste corpo interferem na sua
constituição? Como pensar o corpo implicado nestes processos educacionais e de subjetivação? Utiliza da teoria
deleuziana e as filosofias da diferença como importante suporte para pensar tais problematizações. Propõe-se a pensar
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o corpo escola e o corpo produtor de linguagem, da mesma forma que a diferença pura tida como as semelhanças e
potencialidades do corpo.
Brigida Mariani Pimenta apresentou em 2017 a dissertação de mestrado “Encontros surdo-surdo (s) como
espaço de produção de uma comunidade: a potência do (s) encontro (s)-amizade (s)”, no Programa de Pós-Graduação
em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa Diversidade e
Práticas Educacionais Inclusivas. Aborda as seguintes palavras-chave: comunidade surda, surdos, encontro. Sua
pesquisa pretende responder como as multiplicidades surdas são produzidas nas redes tecidas nos encontros surdo-
surdo(s), problematizando os efeitos dessas reuniões nos espaços-tempos. Embasa-se nas filosofias da diferença em
Deleuze e Guattari, passando pelo exercício de uma pesquisa voltada ao processo de (des) territorializações,
conexões, rupturas, entre outras teorizações deleuzianas que impulsionaram a produção de conceitos específicos.
No que se refere a artigos, Anelice Astrid Ribetto e Luma Balbi de Figueiredo e Cordeiro, no ano de 2016
publicaram o “Um esforço de pesquisa: pensar a educação de surdos na tensão entre o maior e o menor da educação”,
o artigo foi escrito a partir da pesquisa de mestrado “Cartografando gestos escolares de surdos em Rio Bonito: entre o
Maior e o menor da educação”, e trata das questões históricas e políticas, porém, faz uma abordagem baseada no
conceito de literatura menor que Deleuze & Guattari apresentam a partir da obra de Franz Kafka.
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Diante das pesquisas que encontrei e que se relacionam com a perspectiva teórica e com o modo de operar com
os conceitos que estou a trabalhar, me movimento a pensar na produção acadêmica, tecendo relações entre filosofia,
arte e educação. Alguns pesquisadores se detém nas questões políticas e sociais que permeiam a comunidade surda,
outros investigam a linguagem como possibilidade de atuação, ou a linguagem e suas variações. Dos achados, o que
tem em comum, são os referenciais que corroboram a perspectiva das filosofias da diferença. Essa varredura também
possibilita pensar o que se aproxima e o que diverge das intenções de pesquisa, olhar para os processos que são
traçados, e em que podemos contribuir com algo que ainda não tenha sido desenvolvido sem afirmar ou impor um
discurso sobre educação.
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Corazza, Oliveira e Adó (2015) dizem que a biografemática não pode ser tratada como doutrina ou processo
técnico, distanciando-se de leis científicas e da natureza reta, está no viés de uma direção que se transforma em
procedimento de pesquisa. Assim,
Guiado conceitualmente por Roland Barthes (1979; 1982; 1984; 1988;
1989a,b; 1991; 2003a,b; 2005a,b; 2008), o método tem por objeto a própria
linguagem, sendo uma ficção que segue o método da linguagem e luta por
baldar todo discurso que prega, procurando mantê-lo sem, no entanto, impô-
lo (CORAZZA, OLIVEIRA & ADÓ, 2015, p. 26).
No decorrer de minha escrita, transcrevo fragmentos de momentos ViViDoS, LeMbRaNçAs, aFeToS.
Estes vão compondo o texto e sendo operacionalizados com os conceitos da pesquisa. Segundo Corazza, Oliveira e
Adó (2015) “o autor que salta dos textos e entra na vida do leitor, não tem unidade, mas é plural de encantos, lugar de
pormenores sutis, fonte de vivos clarões, canto descontínuo”, ou seja, envolve o leitor, o cativa com sua escrita, uma
escrita que não descreve nem parece-se com a vida, mas a conduz.
A escrita biografemática não se dá de forma narrativa, pensa a biografia contra a biografia. “Viver como quem
escreve. Escrever vivendo. Viver escrevendo. Re-viver. Re-finar.” (CORAZZA, OLIVEIRA & ADÓ, 2015, p.11). Não
buscando engrandecer o ‘eu’, mas compartilhando de forma leve a experiência vivenciada.
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BalBuCiaR
GaGueJar
TarTaMudeAr
SuSSuRRaR
RuGir
SuSPIRAR
FarFaLhaR
EmPaCaR
CiciAR
RuMoRejar
BodeJar
29
MuSSiTaR
MuRmuRaR
ReTriNcaR
BoQueAr CaRpiR
ArruLHaR
FraDeJaR
PeRnEaR
PaDeCeR
SuCuMBiR
FloRiR SenTiR SoÇoBrAr
FloReScer SoRRiR AcEiTaR
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Segundo Corazza, Oliveira e Adó (2015) o material para esta escritura “é cultivado através da seleção,
recolhimento e revalorização de resíduos difusos, excertos, cortes, hiatos, esgarçamentos miúdos, imagens
inacabadas, fluidos pulsantes, que povoam o que é (e o que não é) mostrado nas formas de anotação do presente”,
optando por “espaços vazios” que contêm alguns pormenores (BARTHES, 1979, p. 14).
Sobre a educação, Corazza, Oliveira e Adó (2015) afirmam ser este um espaço de forças e vontades de vida, um
espaço aberto, de inacabamentos que levam a uma liberdade de pensar e agir. Espaço de aborrecimentos diante de
diversas questões sistemáticas, como normatizações dos pensares, padronizações. Aborrecimentos que levam ao
devir do novo, do desconhecido, assim a vida encontrando formas de se manter viva. Aborrecimentos que podem
desacomodar e produzir um devir outro, que seja potente para pensar a vida, a educação, a invenção de outras formas
de nos relacionarmos com a filosofia, a ciência e a arte. A escrita bigrafemática em educação permite manter a
potência de vida que é educação, é filosofia, ciência e arte, como “um jogo de imagens, de espelhos”, daquilo que é
“colhido numa narrativa, num texto” (BARTHES, 2003, p.212).
Assim, nesta dissertação coloco-me como biografóloga, que, segundo Corazza, Oliveira e Adó (2015), é aquela
que realiza a biografemática, coletando e criando biografemas. Na pesquisa, que surgiu a partir da criação de
glossários de alfabetização, trago fragmentos de memória e conto sobre a experiência de adentrar em um ‘território’
outro, e, principalmente, permito-me pensar como me produzi docente neste encontro. Coleto algumas informações
sobre a surdez, a educação de surdos no Brasil e a comunidade surda, adentro a pensar com Gallo (2017) as políticas
de inclusão. Enquanto experiência, dou espaço aos afetos, desafetos, amores e desamores desta vivência. Tomando
a própria escrita como um exercício experimental de linguagem, Roland Barthes (2003) distingue o biógrafo do
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biografólogo dizendo que, o primeiro, faz história de vida e o segundo, escrita de vida. Assim, a biografemática dá uma
rasteira na cronologia e nos permite jogar com momentos, lembranças, anotações. Corazza, Oliveira e Adó (2015)
afirmam que “uma pulsão amorosa colore a biografemática, porque esta é fantasiada como ato de amor, não na
direção do ‘Amor apaixonado= falar de si como apaixonado= lírico’; mas do ‘Amor-Ágape: falar dos outros que se
ama’, ‘dizer aqueles que se ama’.
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A experiência com estudantes surdos, se deu de forma potencial na relação professora-estudantes, aconteceu de
maneira intensa, tanto quando me refiro aos afetos, quanto aos desafetos, os desapontamentos, os desamores, os
momentos de frustração, os momentos nos quais desejei muito estar ali, fazer coisas em comum, bem como os
momentos em que desejei não retornar mais àquele espaço. Momentos em que não me senti merecedora de estar
naquele espaço, quando isso tudo pareceu “grande demais para mim”2 (DELEUZE & PARNET, 1998, p.51). Segundo
Deleuze, uma queixa fala de algo que está acontecendo que “é grande demais para mim". Queixa não tem nada a ver
com tristeza, tristeza é quando estamos separados de uma potência da qual nos achávamos capazes de preencher. Pois
também os desafetos, desamores e desapontamentos fazem parte da experiência, são expostos na forma de queixas,
lamúrias... E a pesquisa bigrafemática como método permite que possa trazê-los como potência na escrita.
Segundo Barthes (2003), para que possa haver biografemática, é necessário que haja cenário, o biografólogo
recorta fragmentos de mundo, de ciência, de história, de experiências. Meu cenário é o que intitulo ‘território’ (DELEUZE
& GUATTARI, 2011), trata-se não do Cóser como espaço geográfico, espaço físico, mas sim do que os surdos fazem
juntos, sua cultura, hábitos e modos de se relacionar.
Segundo Feil (2010) “Os traços biografemáticos são detalhes insignificantes transformados em signos de escritura”(p.81).
O signo serve como disparador para a escrita. Portanto, apresento alguns momentos vividos, aflições, medos, dificuldades,
afetos e desafetos, sem a intenção de relatar, narrar fatos, ou de contar uma história de forma linear. Opero conceitos
2 Assim nos fala Deleuze na discussão apresentada na letra J (de Jolie) no Abecedário de Deleuze, série de entrevistas feita por Claire Parnet
ao filósofo, filmada nos anos 1988-89. Durante a entrevista, a cada letra do abecedário era apresentada ao filósofo uma palavra com a inicial
correspondente, sobre a qual Deleuze discorria livremente.
33
relacionados à temática da pesquisa fazendo fricções destes com vivências e experimentações no ‘território’ por ela
abordado.
Uma escrita livre das amarras da linearidade, que oferece ao leitor as devidas brechas, para que este a percorra
dando seus próprios sentidos.
Segundo Preciosa (2010), “a ideia de fragmento arrasta consigo o incômodo da incompletude” (p.23). Além desse
incômodo, pode também gerar um grande desconforto, pois pensamentos fragmentários colocados desta mesma maneira
na escrita não asseguram a quem lê clareza de percurso teórico, de um lugar de onde se parte ou indica onde se quer
chegar, às vezes nem se chega, outras se chega e já se deseja retornar.
Assim Preciosa (2010) questiona: “que espécie de segurança pode oferecer um texto fracionado, aos pedaços, que
insiste em ir ao encontro do que é episódico, descontínuo, dissipatório, efervescente, quase informe?” (p.11). E para que
buscar o que nos é dado, nos deixa seguros, e não permite nossas próprias fugas de pensamento. A leitura de um texto
fracionado nos faz fugir, retornar.
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A escritura fragmentária, organizada em torno de ideias-palavras, atadas entre si por um elo de sutil afinidade, é um buquê de formas que não forjam nem um destino textual, sequer um destino subjetivo. Ao contrário, incorpora sem culpa a ‘doida poligrafia’ de uma caderneta de apontamentos solta em campo (PRECIOSA, 2010, p.12).
Os pensamentos não são algo que possamos controlar, não são propriedade nossa. Eles sopram, uns de forma
forte, como furacão, outros vem como brisa leve de uma tarde de outono. E quando nos tomam não é de forma
organizada, tampouco linear. O pensamento se dá em fragmentos, pedaços de diferentes tempos.
35
Uma escrita que permite a experimentação, o brincar com palavras, brota em nosso pensamento como
lembranças que nos tomam de forma inesperada, um cheiro que traz imagens, que nos leva a outro lugar, um gesto que
nos faz divagar, um carinho que nos enche de amor...
35
36
EnCoNtRO – CriAnDo ‘NóS’
Estar juntos, olhando-nos nos olhos,
para que, afinal de contas exista a
linguagem, exista o mundo
(SKLIAR, 2004, p. 35).
Assim foram nossos primeiros encontros, olhares atentos, desesperados, inquietos, olhares que gritam, que
imploram por um entendimento, mas jamais de pena ou de desprezo, olhos curiosos e famintos por uma linguagem
comum que possibilitasse uma comunicação qualquer. Até porque os olhos também falam, o corpo comunica. Skliar
(2004) nos fala que “os encontros com o outro proporcionam uma sensação mais de interrupção que de acaso”.
Assim, atravessar o mundo supõe “um permanente encontro e desencontro com corpos e vozes de desconhecidos”
(p.149).
Nos encontros com os estudantes surdos tive a sensação de parar no tempo, de precisar aprender uma nova
língua, com a maior brevidade possível e um novo jeito de ser docente. Mas ninguém aprende uma nova linguagem da
noite para o dia, ninguém aprende uma língua no desespero, na ânsia de comunicar, é necessário um processo de
muita paciência e de controle da ansiedade. Este processo interrompeu a correria diária, mudou o ritmo e também a
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relação com o tempo, necessitei parar, desacelerar, e adentrar nesse ‘território outro’, para então iniciar o processo de
aprendizagem da Libras.
Mas, se conversarmos, se entrarmos numa relação que não tenha o ânimo
de fazer do outro um insosso semelhante, talvez a diferença valha a pena,
talvez a diferença seja o que melhor narre aquilo que é humano. E para isso
temos que ter tempo. Não formas de nomear: tempo. Não melhores ou piores
etiquetas: tempo (SKLIAR, 2004, p. 157).
Há quem diga que o melhor presente que podemos dedicar a alguém é o nosso tempo, é ser presente. E
assim foi, um tempo cronometrado/delimitado e organizado pela instituição, mas um tempo em que fui presença, em
que estive inteiramente dedicada a fazer alguma coisa junto com os estudantes, não havia como prever, algo sempre
escapava, assuntos surgiam, palavras e gestos sumiam, nos faltavam, silêncios e mais silêncios...
Para os estudantes e para todo o corpo docente da escola, eu fui o ‘outro’, o corpo estranho. A nova professora
de Artes que passaria a integrar seu ‘território’. Uma estrangeira que desconhecia a língua daquele ‘país’. Precisei
adequar e alterar minha noção de tempo, organizar-me no tempo deles, bem como eles também necessitaram
adequar-se ao meu ‘monolinguismo’.
O cuidado para não oralizar as palavras era grande, porém sempre escapava algo, alguns conseguiam fazer
leitura labial, outros não, por vezes reclamavam quando ocorria isso, mas a oralização era automática, afinal
exercitava a memorização de sinais oralizando e sinalizando...
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E...
Tantas vezes a memória falha...
Os gestos escapam...
As palavras lhes são desconhecidas...
E a professora PaTeTa fica ali, fazendo mímicas e tentando ser entendida de alguma maneira.
Talvez emitindo signos confusos, talvez sendo palhaça, talvez e talvez...
A professora PaTeTa nunca saberá, de que forma e se os tocou, que signos emitiu, que comunicação fez.
Porém, o que sabe é o quão tocada por eles foi.
Os estudantes se mostravam calmos e receptivos em relação a minha presença, sentia a expectativa em seus
olhos - o que me agoniava bastante – mas mantendo-se calmos, na maioria das vezes, quando se tratava da nossa
dificuldade de comunicação. Muitos deles esforçavam-se para tentar escrever palavras em minha língua, enquanto eu
arriscava alguns sinais.
Penso que estar em um ambiente, um ‘território’ da diferença é não tentar ver o outro como semelhante, mas
aceitá-lo como diferente, aceitar a cada um como único dentro de sua diferença. Pois o que tem em comum é apenas
a surdez - e mesmo esta, em diferentes níveis de profundidade - mas são inúmeras suas especificidades. E assim,
íamos tentando diminuir o ‘outro’ e produzindo um ‘nós’. Houve alguns conflitos, algum surdo afirmando não gostar
das pessoas ouvintes, pude perceber também atitudes preconceituosas e machistas por parte de alguns estudantes,
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bem como a repetição de moralismos do senso comum. Porém, ao se tratar de deficiência, mostravam-se muito
acolhedores de todas as causas relacionadas à educação especial. Empatia.
Se tivéssemos tempo para dar-nos tempo, se em vez de julgar
apreciássemos, escutássemos, fizéssemos coisas em comum, não haveria
nenhuma necessidade de nomear os outros como diferentes. Aos que não
damos tempo, aos que interrompemos o tempo todo, aos que transformamos
em corpos sem tempo (SKLIAR, 2004, p. 158).
Parar, sentar e observar, ouvir a todos os ruídos, aprender ouvir com os olhos, olhar com os ouvidos, TEMPO,
TER tempo para arriscar ‘perder tempo’, desconstruir a ideia de professor protagonista da cena, que fala o tempo todo.
ApReCiAr, uma estar docente em silêncio, um SeR docente calada. O CoNtEr de qualquer gesto, por não saber
gesticular a língua de sinais, tentar MeMoRiZaR todos os gestos, seus significados. Mas, quando estes nos fogem da
memória, quando esta nos trai e nos deixa a “ver navios”, professora PaTeTa, não sabe a língua, não gesticula, apenas
olha, e olha cada detalhe, cada minúcia, pois não são apenas gestos, são expressões que complementam o gesto, são
ruídos que tentam oralizar... São tentativas de um ‘NÓS’. Esquecer o ‘EU’, aproximar o ‘OUTRO’ a favor da criação do
‘NÓS’.
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Ao me acalmar, relatei às colegas o ocorrido, estas chamaram o estudante, e, somente aí eu soube o motivo:
ele estava incomodado pela roupa que eu vestia - uma calça jeans customizada, com alguns rasgados nas pernas -
segundo o estudante, havia um ouvinte olhando para minhas pernas no ônibus em que fazíamos o trajeto até a escola,
e isso, na convicção dele era extremamente errado, o mesmo disse que eu não deveria vestir aquela calça.
Foi uma das experiências mais dolorosas como docente, não pelo motivo, mas pela expressão e pelo olhar, a
intensidade daqueles olhos...
O que inibe ou acentua determinados comportamentos na relação entre surdo e ouvinte - docente, nesse caso?
Fiquei a pensar nessa educação que também perpassa por essas definições de certo e errado que permeiam o
ambiente escolar e a sociedade.
Na comunidade surda, o surgimento de novos sinais é um acontecimento que envolve todo o grupo e não
apenas um único surdo.
Fui batizada com um sinal, já no primeiro dia de aula, sinal escolhido de acordo com a posição de meu cabelo,
segundo o professor surdo que o escolheu, o sinal de cada pessoa - que na Libras é referente ao seu nome – é
determinado pelas suas características físicas mais marcantes.
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Após ser observada por algumas horas, fui batizada, recebi meu sinal, gostei inicialmente, mas fiquei a pensar
se realmente era essa a característica mais marcante – Confesso ter me alegrado em não ter sido o nariz ou a boca
grande a escolha para o sinal.
Cada estudante apresentava-se com seu sinal, mas também sinalizava as letras de seu nome. E assim também
eu deveria me apresentar a eles. O primeiro sinal/gesto que aprendi foi o meu próprio. Larrosa (2011, p. 13) fala de
uma escuta em que “alguém está disposto a ouvir o que não sabe, o que não quer, o que não precisa”. Uma escuta
que não se ocupa em trazer o outro (que lemos) a todo custo há algo conhecido, identificável, mas que o mantém
onde esse se encontra e com o qual se possa conversar e inventar/produzir coisas juntos. Skliar diz de uma conversa
com desconhecidos, “conversar com desconhecidos significa não conhecer o mundo de antemão, não conhecê-lo
jamais, sentir-se parte de uma peça irremediavelmente decomposta, olhar para a imensidão como se nunca
tivéssemos deixado de ser crianças, permanecendo no estado de infância” (SKLIAR, 2014, p. 149).
Olhar como criança supõe despir os olhos de pelo menos algumas camadas dos modos de ver com os quais
estamos acostumados a olhar, com os quais nos ensinaram a ver.
Olhar como um humano olha para outro ser humano, vê-lo, com tempo, ouví-lo com os olhos, acolhê-lo. Desistir
da imposição de uma forma de ser, pensar, ensinar... Esquecer a que se veio e viver... Simplesmente viver... Segurar
as rédeas do pensamento ansioso, aquele impiedoso que pressiona, cobra, quer resultados, diz que estou a trabalho,
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que devo ensinar algo, aquele pensamento petulante e chato que rompe com os momentos de paz e tranquilidade de
uma troca de olhares, de um toque nas mãos, de uma comunicação despretensiosa... Ora, pensamento chato esse...
Que me joga de volta à responsabilidade do ser docente.
Quando o pensamento não rompe o momento, ouço passos, ruídos que também me tiram daquele lugar de ser
humano que está junto com seres humanos e me joga para frente destes como professora, como propositora de algo,
como ‘proprietária’ de um saber a ser partilhado...
44
No c ont exto da ‘ ‘diferença’ deixar - se afetar e afetar o outro. Escutar, c on versar, comunicar.
Contaminar e deixar - se contaminar. Espreitar no silêncio que perpassa entr e nós e aquilo que é ‘outro’.
Segundo Larrosa, “a experiência [...] sempre tem algo de pr imeira vez, algo de surpreendente” (LARROSA, 2011, p.
16 - 17) .
Desse modo, o importante, desde o ponto de vista da experiência, é espreitar em meio as nossas vivências,
elementos que possam funcionar como disparadores para
pensarmos o que ainda não sabemo s
pensar, ou o que ainda não podemos
pensar, ou o que ainda não queremos
pensar (LARROSA, 2011). Escutar, ler,
sentir “isso que as coisas (textos, filmes,
notícias, pessoas, objetos,
animais, cotidiano, etc)
têm a nos dizer” (LARROSA, 2007, p. 133)
e experimentar, nessa relação, outros modos de existência.
44
45
Porque é preciso querer e poder acariciar um corcunda, ou um bronco,
ou a perna ausente, ou a boca quase muda. É preciso querer e poder
olhar um olhar que não nos olha. É preciso querer e poder perder-se
em outra língua. É preciso querer e poder renunciar a todo vestígio de
normalidade. É preciso querer e poder afetar-se, impossibilitar-se,
ensurdecer-se, cegar-se, paralisar-se, isolar-se, esquecer-se, gaguejar
para que o próprio corpo deixe, de uma vez por todas, de acreditar ser
esse fatídico centro do universo educativo
(SKLIAR, 2014, p. 212).
É preciso querer e poder falar com quem não nos ouve, com quem nos olha, mas quando não quer nos ouvir
apenas desvia o olhar, e insistir não convém, então respeito seu não. É preciso enlouquecer um pouco, esquecer a
lucidez, deixar levar-se pelo outro, pelo seu mundo, é deixar de estar no centro, ocupar outros lugares.
Skliar (2014) ainda afirma que “seria muito mais fácil, muito mais cômodo e muito mais ‘profissional’ se
compreendêssemos o outro somente como uma temática- o outro se transforma num tema.” [...] “Não existem meninos
nem meninas, mas, sim, ‘infância’, não existem surdos, mas sim ‘surdez’, não existem pobres, mas sim ‘pobreza’,
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‘indigência’, ‘excluídos a serem incluídos’, etc”. E talvez por isso que “festejamos quase sempre sem remorsos, o dia
do índio, o dia da mulher, a semana da deficiência, o mês da tolerância, o ano dos povos submetidos”. Pois seria mais
simples, menos pesado para nós “pensar e sentir o outro como aquilo que não tem, como aquilo que lhe falta- o outro
é o que não tem e lhe falta, os outros são sempre o que não têm e lhes falta” (p.215).
Ver no outro possibilidades, esse é o princípio usado para defender a escola bilíngue, partir do que esse tem e
não do que lhe falta, e lutar contra as escolas de inclusão, uma das causas que une a comunidade surda e que faz
deste espaço um ‘território’. Pois em minha experiência na educação pública, com estudantes inclusos que
apresentam alguma deficiência percebo que a própria inclusão os coloca como diferentes, os vê pela deficiência.
Para pensar as políticas de inclusão apoio-me nos escritos de Sílvio Gallo (2017), que parte de Foucault (2008),
a biopolítica e a governamentalidades. Gallo (2017) discute a valorização das diferenças e da diversidade, traz as
Diretrizes Curriculares Nacionais para examinar o fenômeno da afirmação das diferenças no campo educacional
brasileiro. “Somos constituídos cidadãos para que possamos ser governados” (GALLO, 2017, p.7), a educação baseia-
se nos princípios da inclusão e da cidadania, não significando que abramos mão da liberdade, também defendida pela
constituição. “É preciso constituir a todos como cidadãos, para que possam ser governados”, as políticas de inclusão
colocam todos dentro, todos como cidadãos, se tratando de um Estado Democrático de Direito, o que antes, o Estado
de dominação (ditadura militar) excluía (p.9). Somos educados por instituições que devem nos fazer/promover
cidadãos, para que sejamos incluídos e devidamente controlados.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases, a educação brasileira deve estar apoiada nos princípios da liberdade e
orientada para a formação de cidadãos, “para o exercício da cidadania” (GALLO, 2017, p. 11). A partir da leitura de
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Gallo (2017), pude perceber que a LDB dá ênfase à diversidade em detrimento às diferenças. Para tratar
especificamente desse quesito, Gallo traz o documento ‘Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educacão Basica:
Diversidade e Inclusão’, publicado pelo Ministério da Educação e Cultura no ano de 2013. Esse documento traz
direcionamentos para a educação em alguns grupos que fogem à LDB, como a educação no campo, a educação de
jovens e adultos, a educação indígena, a educação especial e seu atendimento nas instituições, dentre outras.
Segundo Gallo (2017) esse documento reforça o apelo inclusivo: “nada nem ninguém pode ficar de fora” (p.12).
Seguindo, o autor atenta para o fato de que tal documento não trata de diferenças, mas afirma a diversidade (p.12).
Isso ocorre, segundo Gallo (2017) devido à diversidade permitir a unidade, assim, exclui-se o pensamento da
multiplicidade, esta causaria uma bagunça ao sistema, enquanto se pode manter em grupos (indígenas, surdos,
sistema prisional) é possível exercer o controle sobre os mesmos. Portanto, tratar como diversidade, para Gallo (2017)
seria “’domar’ a diferença, apaziguá-la, neutralizar os efeitos que o efetivamente diferente poderia provocar” (p.12).
Enquanto existe a possiblidade de encaixar em grupos, mesmo que grupos diversos, será possível o controle, a
educação para a cidadania.
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Ainda nesse raciocínio, Gallo (2017) aponta para a diferença como algo que implica o fora, escapa aos
conjuntos e aos grupos, enquanto a diversidade implica o dentro, forma grupos, que se encontram dentro de outros
grupos, até que cheguem ao universal. O diferente escapa, não se deixa conter, domar. As diferenças se multiplicam,
proliferam, seria inútil tentar contê-las (p.12).
Nas políticas públicas, afirmar a diferença, poderia causar instabilidade ao sistema. Considerar as
multiplicidades impede que estas possam ser limitadas, melhor manter um grupo fechado e referir-se a esse como
‘surdos’, ao considerar que cada indivíduo possa construir sua subjetividade a partir do que é.
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O Coser e a própria comunidades surda se amparam em uma palavra para defender a possibilidade de
existência da escola bilíngue, pois as políticas públicas defendem a inclusão dos estudantes na escola regular de
ensino, a LDB quando discorre sobre a educação especial coloca da seguinte maneira:
“Art. 58 . Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais” (LDB, 1996).
PrEfErÊnCiAlMeNtE, a palavra que mantém viva a luta em defesa da escola bilíngue. A LDB não impede que existam
instituições outras, que não sejam pertencentes à rede regular de ensino.
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Porém, por mais que se assegure o direito à diversidade, como escolas indígenas, bilíngues, estas devem
atender às mesmas normatizações educacionais que as demais instituições (carga horária, ciclos, séries, anos, salas
de aula). “As diferenças podem ser garantidas e afirmadas, desde que façam parte do conjunto comum, isto é, os
diferentes podem ser diferentes, desde que sejam iguais” (GALLO, 2017, p. 13). Não busco nesta escrita levantar
bandeira a favor ou contra as políticas de inclusão, reconheço sua importância, principalmente na história da educação
especial e na luta por direitos educacionais diferenciados. Apenas atento para tais detalhes, pois a pesquisa se dá em
um diálogo com as filosofias da diferença, e em se tratando da diferença pura, que não segrega, não separa e não
exclui. O Cóser é, então, um grupo (surdo), faz parte da diversidade e assim é contemplado dentro das políticas
públicas de inclusão. Pois é instituição, e a educação institucionalizada seguirá as mesmas normas, está dentro de um
padrão, e que objetivará a cidadania.
Que resistências são possíveis dentro das políticas de inclusão?
Como tratar a diferença em um grupo reconhecido como surdez, que compõe a ‘diversidade’?
Uma instituição que une profissionais cheios de dúvidas e inseguranças, com muita vontade de aprender a partir
da experiência, que oportunizam a experiência o tempo todo, mas que muitas vezes se veem frustrados, pois lhes são
exigidos resultados, a instituição impõe que se faça uma educação útil, é preciso que se obtenha resultados para
defender a escola bilíngue, é preciso mostrar a instituição para a comunidade, a sociedade poderá apoiar nossa luta,
mas o fará se mostrarmos produção.
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São muitos os empecilhos, não se consegue fugir, apenas ReSisTir, fazer o que se pode, a partir do que se
têm.
[...]
No decorrer da pesquisa, fui afetada pela leitura de Deligny, a partir de uma educação desinstitucionalizada,
acolho esta em minha escrita, a fim de tecer relações e distanciamentos com a experiência com a educação bilíngue,
no Cóser.
Deligny foi um professor francês que trabalhou com crianças e adolescentes autistas, tratou a educação como
‘lugares vivos’, em albergues, criou redes para acolher tais jovens que não se adaptavam à educação regular,
institucionalizada. Nessas redes, Deligny criou mapas a partir dos deslocamentos dessas crianças e jovens, para
posteriormente estudá-los. Nesses espaços, não há uma língua definida e eleita para ser usada ou ensinada, “toda
língua é a língua do outro, caso contrário, se arrisca a deixar de ser uma língua, assim como todo signo é signo para o
outro, o mínimo gesto espera ser entendido” (DELIGNY, 2015, p.96), a língua, para o autor, pode ter uma origem
espontânea, ser emanação de gestos de usos costumeiros.
A figura do professor era chamada por Deligny de ‘presença próxima’. Em o “Aracniano e outros textos (2015)
Deligny fala das redes que se tramam, dos rastros seguidos, filmados, bem como a própria linguagem, as mãos ágeis
do autista, seu silêncio.
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Deligny (2015) trata o silêncio como algo muito distinto da ausência de barulho, o ser autista, segundo ele, muitas
vezes é tachado de surdo mental, “quando ele simplesmente não seleciona os mesmos ruídos que nós”, (p.103)
O que me remete ao Cóser e meu primeiro contato, meus primeiros dias na escola, toda possibilidade de
comunicação era válida, muitos signos, mínimos gestos que sempre esperavam ser entendidos. Espontaneidade
misturada ao autocontrole, gestos costumeiros aliados aos gestos ensaiados. O silêncio, o aguçamento visual, a
seleção de gestos pelo olhar do surdo.
Além de não impor a presença do professor como um ser autoritário e superior, coisa que a instituição nos faz, a
experiência de Deligny tem também outra relação com o tempo, não há hora/aula, não há a cobrança insólita por
resultados, não há a limitação do espaço, as quatro paredes da sala de aula, os grupos/turmas. São diferentes
experiências, ambas lidam com a educação especial, porém uma dentro de uma educação institucionalizada, outra
não. Assim, estabeleço um diálogo entre estas, não com o intuito de comparar, mas de perceber no que convergem e
no que divergem tais formas de educação na diferença, a partir da multiplicidade. Respeitando o que cada uma pode
atingir com o que a compõe.
53
LinGuaGueJanDo
Talvez pensar a língua como experiência, talvez ao sentir a língua como
inapropriada e misteriosa, talvez ao querer conversar na língua dos
outros, a educação comece a percorrer esse árduo e sinuoso
caminho da coisa em comum. Uma coisa em comum que não negue
nossa confusão e nossa dispersão. Uma coisa comum
que não sobreponha uma língua à outra. Uma coisa em comum que não
pressuponha afogar as diferenças, nem impor ao outro o ser
como nós acreditamos que somos. Somos seres monolíngues no
sentido de um credo, de uma fixação, de uma potência e de uma
impossibilidade
(SKLIAR, 2004, p. 219).
54
O vazio, a falta de algo, a falta de algo em comum, mas que essa coisa em comum não diminua as diferenças.
A falta da língua em comum permite que novas línguas se formem ‘entre’ a Língua Portuguesa e a Língua de Sinais.
Nessa tentativa de adentrar e aprender uma nova língua, quais outras línguas surgem?
A Língua Portuguesa falada no Brasil tem sua origem no latim, que também deu origem a diversas línguas,
como: espanhol, francês, italiano, português, entre outras. Línguas estas faladas principalmente na Península Ibérica.
Os portugueses, desde o século XV empreenderam extensas navegações, levando a língua portuguesa para a África,
Ásia, Oceania e América. No Brasil, a mesma sofreu e sofre modificações de pronúncia, vocabulário e na sintaxe
(SILVEIRA, 1994).
No caso da Língua Brasileira de Sinais, em que o canal perceptual é diferente, por ser uma língua de
modalidade gestual visual, a mesma não teria tido sua origem na língua portuguesa; que é constituída pela oralidade,
portanto considerada oral-auditiva; mas em uma outra língua de modalidade gestual visual, a Língua de Sinais
Francesa - apesar de a Língua Portuguesa ter influenciado diretamente a construção lexical da Língua de Brasileira de
Sinais - mas apenas por meio de adaptações por serem línguas em contato.
O surdo percebe o mundo de forma diferenciada dos ouvintes, através de uma experiência visual e faz uso de
uma linguagem específica para isso, a língua de sinais. A língua de sinais é imagem do pensamento do surdo e faz
parte da experiência vivida na comunidade surda. Como artefato cultural, a língua de sinais também é submetida à
significação social a partir de critérios valorizados, sendo aprovada como sistema de linguagem rica e independente.
Segundo Deleuze & Guattari (2011) “não existe uma língua mãe, mas tomada de poder por uma língua dominante
dentro de uma multiplicidade política. A língua se estabiliza em torno de uma paróquia, de um bispado, de uma capital.
55
Ela faz bulbo, ela evolui por hastes e fluxos subterrâneos, ao longo de vales fluviais ou de linhas de estradas de
ferro(...)”. (p.23)
No caso estudado, a língua dominante, dentro deste ‘território’ é a Libras, que é considerada primeira língua do
surdo, se modificando através dos estudos e movimentos da comunidade surda brasileira. Assim, como toda e
qualquer língua, a Libras também tem suas variações regionais e dialetos, tornando-se muitas vezes teatral. Na
tentativa de uma comunicação com o surdo, podem surgir novas sinalizações, mímica, dentre outras possibilidades.
Acredita-se, às vezes, que essas variações não expressam o trabalho comum da criação na língua, e permanecem marginais, reservados aos poetas, às crianças e aos loucos. É por isso que se quer definir a máquina abstrata pelas constantes, que só podem consequentemente ser modificadas secundariamente, por efeito cumulativo ou mutação sintagmática. Mas a máquina abstrata da língua não é universal ou mesmo geral, ela é singular; não é atual, mas virtual-real; não possui regras obrigatórias ou invariáveis, mas regras facultativas que variam incessantemente com a própria variação, como em um jogo, onde cada jogada se baseia na regra (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 47).
56
De acordo com a possibilidade de variação e de dialetos em
uma determinada língua, segundo Deleuze & Guattari (2011) ela
seria classificada em língua maior e língua menor, a partir de
uma língua mãe, a com maiores possibilidades de variação
seria a língua menor.
‘“Maior” e “Menor” não qualificam duas línguas,
mas dois usos ou funções da língua. Assim, “seria
preciso distinguir línguas maiores e línguas menores,
seja se colocando na situação regional de um
bilinguismo ou de um multilinguismo que comporta
pelo menos uma língua dominante e uma língua
dominada” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 51).
No caso estudado, a língua usual dentro desse
‘território’ é a Libras, considerada a primeira língua do
surdo, que por sua vez, vai se modificando através dos
estudos e movimentos da cultura surda brasileira. A Libras
também tem suas variações regionais e dialetos, afetando a
comunicação com o surdo por originar novas sinalizações.
57
Se entendermos a língua maior, dominante, majoritária, como política de poder, como aquela vista como modelo
e que busca ser modelo, a língua menor seria a possibilidade criativa dentro de uma língua dominante. Assim sendo,
conto como língua maior as línguas, portuguesa e Libras. Seu uso de maneiras singulares, com suas criações e
variações na tentativa de comunicar, considero como línguas menores. As muitas possibilidades e invenções no
objetivo único da comunicação, criações a partir das duas línguas maiores, instituídas como primeira e segunda língua
dentro desse território, podem ser chamadas de línguas menores. Que outras línguas nascem das tentativas de
comunicar-se, quando a Língua que domino não é a mesma que domina aquele com quem me relaciono?
O Cóser é um espaço frequentado por surdos e ouvintes, o grupo de estudantes inclui surdos com grau de
surdez profunda, severa ou até leve, surdos de nascença ou com surdez adquirida posteriormente, aqueles que já
foram ouvintes ou que possuem algum grau de audição, oralizam um pouco, pronunciam ou esforçam-se para oralizar
a Língua Portuguesa. Além disso, a escola recebe frequentemente visitas de outras instituições e escolas bilíngues, de
diferentes estados brasileiros, que trazem consigo a Libras com seus dialetos regionais. Neste contexto da
coexistência de línguas e dialetos que se formam as ‘línguas menores’.
Servir-se da língua menor para por em fuga a língua maior. O autor menor é
o estrangeiro em sua própria língua. Se é bastardo, se vive como bastardo,
não por um caráter misto ou mistura de línguas, mas antes por subtração e
variação da sua, por muito ter entesado tensores em sua própria língua
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 55).
Sendo um espaço frequentado por surdos e ouvintes, as línguas acabam se misturando, formam-se novos
dialetos, novos códigos e até novas línguas nessa constante busca da comunicação.
58
Por vezes a comunicação não gera o resultado esperado, não chega da mesma maneira que foi proferida,
escapa por brechas, foge, surgem novos sentidos, diferentes entendimentos, o que causa a sensação de confusão, e
a tentativa de iniciar de novo, insistir para que o outro entenda o que desejamos que ele entenda, que a linguagem
chegue da forma que a organizamos, mas isso não ocorre. Surgem então outras questões:
Que outras ‘línguas’ são inventadas ‘entre’ a língua oralizada e a sinalizada?
Segundo Larrosa (2004) “a oralidade é o lugar da fugacidade da palavra:
a palavra que se ouve é a palavra perdida que nunca voltará, a que
chegou e se foi e a que, sem se poder evitar, se perde.” (p.41). Quando
escutamos existe algo que sempre fica para trás, e é impossível
recuperá-lo. A oralidade é, também “o lugar da suspensão da palavra:
assim a voz constitui um discurso ou um discorrer que cessa sem
que se haja chegado a algum termo, sempre na borda de algo que
nunca chega, sempre na imanência de uma revelação que não se
produz, sempre inconcluso, deixando sempre uma falta, um desejo”
(p.41).
59
Seria essa uma das principais diferenças da palavra falada e a palavra escrita, a palavra que se ouve se perde,
não temos como voltar a ela, enquanto a palavra escrita podemos revisitar sempre que assim desejarmos. Assim
ocorre com o sinal elaborado pelas mãos, não tenho como voltar a ele, e não consigo repeti-lo da mesma forma, com
a mesma precisão, o gesto muda, o sinal poderá ser sempre o mesmo, mas o gesto jamais será igual.
Assim Larrosa (2004) cita Steiner, segundo o qual “os problemas epistemológicos e linguísticos fundamentais
que implicam a tradução de uma língua a outra são fundamentais, precisamente porque já se encontram contidos em
todo discurso confinado a uma só língua. Uma teoria da tradução não pode ser mais que uma teoria das operações da
língua mesma, uma compreensão da compreensão” (p.64).
Larrosa (2004) traz também a escrita de Heidegger sobre a tradução. Este afirma que “todo traduzir deve ser
um interpretar. E vale também o contrário: toda interpretação, e tudo o que está a seu serviço, é um traduzir. Do qual
se deriva que o traduzir não se move unicamente entre duas línguas, mas que também é um traduzir o mover-se no
interior da mesma língua” (p.66).
Tanto Steiner quanto Heidegger referem-se à tradução, mas não no sentido da tradução entre duas línguas,
considera a tradução dentro de uma mesma língua e o que se move dentro desta a partir da tradução/interpretação.
Tradução/interpretação: para a Libras não falamos em tradução, mas sim em interpretação. O intérprete necessita
elaborar seu pensamento de acordo com o que o surdo conseguirá compreender, e não transcrever as palavras de
uma língua para outra, até porque na Língua Portuguesa temos muitos homônimos (palavras com escrita ou pronúncia
iguais, com significado-sentido diferente), no mundo do surdo não costuma haver exploração fonética, então a
pronúncia não faz tanta diferença, assim, palavras com a mesma grafia precisam sempre de um contexto na
60
interpretação, podendo o intérprete buscar sinônimos para facilitar a comunicação. Na tradução de uma língua, como
da língua francesa para a língua portuguesa acontece o mesmo processo, é necessário que o tradutor/intérprete
entenda o contexto, busque sinônimos.
A condição babélica da língua não significa somente a diferença entre as
línguas, mas a irrupção da multiplicidade da língua na língua, em qualquer
língua. Por isso, qualquer língua é múltipla e algo assim como uma língua
singular é também um invento dos filósofos e dos linguistas do Estado [...]
(LARROSA, 2004, p. 70).
Segundo Larrosa (2004, p. 84), “qualquer comunicação é babélica porque, no ato mesmo de comunicar-se,
qualquer sentido se multiplica e nos multiplica, confunde-se e nos confunde”. O que uma pessoa fala a partir do seu
contexto, da sua experiência de vida, da sua compreensão de cada termo que usa, chega a cada uma de maneiras
muito variadas. Isso porque cada um também tem o seu contexto, as suas experiências de vida, a sua compreensão
de cada uma das palavras ouvidas ali, naquele momento. O resultado é a diversidade de sentidos, que se multiplicam
e nos multiplicam.
Assim como em toda língua, a Libras também apresenta suas
variações e seus dialetos, variando de região para região, o
que às vezes complica a comunicação, pois se, como
professora-aprendiz da língua, preparo a aula, pesquiso os
sinais a serem utilizados, na rede, e na aula descubro que não
61
é este o sinal utilizado na cidade de Santa Maria. O que faz a
professora ‘pateta’? Fica ainda mais confusa, todo o ensaio
de sinais, a ordem de sinalização se vai... e fico mais uma vez
em silêncio. (fragmento do diário de campo, 2017)
Larrosa (2004) afirma que “cada falante fala uma língua particular. E mais, cada falante fala várias línguas, se
consideramos sua capacidade de adaptar sua língua a diferentes contextos e diferentes interlocutores. [...]” (p. 72). Se
considerarmos toda invenção que surge nas inúmeras tentativas de nos fazer entender em outra língua, podemos nos
considerar multilíngues. Na Libras também acontece isso, bem como na língua portuguesa escrita, explorada como
segunda língua pelos surdos.
Dominar uma língua e flertar com outra, inventar línguas, trapacear a língua, aceitar outras formas da escrita na
língua portuguesa, ignorar todas aquelas normas aprendidas sobre a língua em prol de uma simples comunicação,
livre de preconceitos ou da postura de dominação. Misturar línguas, permitir que as línguas se beijem. Pedaços de
palavras, meios gestos, a incompletude. Letras a mais, movimentos que tomam o espaço e não se dão conta de seu
tamanho, atrevidos... Surgem de forma exagerada, estabanada, batem na parede por quererem ocupar a sala toda....
Como contê-los? Como adequar o tamanho de um gesto sem diminuir sua potência?
62
LinGuaGueJar
GeStiCuLinGuaR
SinEscreviZar
Atualmente temos alguns aplicativos de celular sendo utilizados para a interpretação de sinais, o que, segundo
alguns professores de estudantes surdos, facilita a universalização da língua, os mais utilizados são o ProDeaf3 e o
HandTalk4. Ambos contam com a versão para ouvintes e a versão para o surdo.
Mas, por que matar a multiplicidade de uma língua?
3 O ProDeaf é um software de tradução de texto e voz na língua portuguesa para Libras - a língua brasileira de sinais, com o objetivo de realizar a comunicação entre surdos e ouvintes. Acesso em http://prodeaf.net/. 4 Hand Talk é uma plataforma que traduz simultaneamente conteúdos em português para a língua brasileira de sinais e tem por objetivo a inclusão social de pessoas surdas. Acesso em https://www.handtalk.me/
63
Seria tão simples se a língua fosse universal, usaríamos os aplicativos e estaria tudo solucionado, mas
mataríamos as possibilidades inventivas, escaparíamos do sufoco de improvisar e teatralizar quando nos fogem os
sinais, quando escapam as palavras.
Segundo Larrosa (2004) “a língua somente aparece como tal quando se dá em sua dificuldade, quando nos
faltam as palavras ou quando nos traem as palavras ou quando nos resistem as palavras”(p.78). O que acontece na
tradução de forma intensa. “A tradução faz palpável a língua, a materialidade mesma da língua e, ao chamar atenção
sobre essa materialidade, a tradução faz consciente a condição babélica da língua” (LARROSA, 2004, p. 78).
Quando vamos escrever e as palavras somem, quando vamos falar e as palavras não nos vem, quando
sinalizamos em Libras e faltam os sinais. O que fazer? Improvisar, buscar sinônimos, fazer mímica, dançar.
Inventar a língua. LiNguaGueJar. Por vezes os estudantes se frustraram, não compreenderam, brigaram, reclamaram
da falta de domínio da língua. Por outras vezes docilmente corrigiram, ensinaram novos sinais.
Escutar. Com os olhos ou com os ouvidos, com o toque, com o olfato... Independente do sentido utilizado, o
convite de Larrosa (2004) não é tanto pensar a língua apesar de Babel, mas responder ao destino babélico da
linguagem: “responder a e fazer-se responsável da pluralidade das línguas, a estranheza das línguas, a confusão, a
dispersão e a instabilidade das línguas, e também responder a e fazer-se responsável da exigência de comunidade
que se dá na pluralidade, na estranheza, na confusão, na dispersão e na estabilidade das línguas” (p.83).
64
Pensar na minha relação com a Libras como esta confusão, esta pluralidade, esta estranheza, a confusão de
sinais, a improvisação, o vazio na falta do sinal, o controle da fala, a comunicação que, às vezes falha. O que se
produz neste ‘entre’ eu e o surdo? Que signos são emitidos nessa comunicação confusa e estranha? Onde uma
ouvinte tenta aprender a língua dos estudantes e estes tentam compreender o que quero ali, o que estou propondo.
Aceitar as improvisações como linguagem, aceitar a tentativa de comunicação
como língua, aceitar as trocas de letras ao tentar aprender a língua portuguesa
escrita como língua, a Libras como uma língua múltipla. A língua portuguesa
como múltipla. A mistura, o beijo de línguas como língua.
E aí a língua é o meio de comunicação entre as diferenças, ainda que seja da difícil ou
até da impossível comunicação
(LARROSA, 2004, p. 96).
A língua não entendida, em uma comunidade plural, onde cada um
comunica de uma maneira, onde a expressão facial e corporal também comunicam,
emitem signos o tempo todo, a sinalização confusa de uma professora aprendiz da
Libras. Uma comunicação que pareceu impossível muitas vezes, que foi difícil o tempo
todo.
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SeNdO SiLêNciO
Estar sem linguagem é como haver estado
em um deserto- ou dentro de um lamaçal-
sem ânimo algum para conversar.
Em seguida vem o despautério:
a boca imprudente e a confusão de
sons, como se quisessem nomear todas
as coisas do mundo e não fosse
possível dizer absolutamente nada
(SKLIAR, 2004, p. 49).
67
A ausência de linguagem - ou de uma língua comum - é o vazio, é a inquietude, a ansiedade em aprender, os gestos
errados e confusos a fim de se fazer entender, a mímica, os desenhos, as fotos. A linguagem visual juntamente com a
mímica, os gestos soltos e confusos. Surgindo assim, dessa necessidade de nomear as coisas, de dizer e ser
compreendido, uma nova língua, uma língua menor.
64
67
68
O silêncio sempre me foi algo caro, desde a infância, prefiro observar a proferir palavras. Ao estar em grupo de
pessoas pouco me manifesto oralmente. Talvez seja medo de que minha fala não seja bem vista, que eu fale de forma
equivocada, talvez seja timidez, ainda não superada. O silêncio fez e faz parte da forma que me constituo hoje, e, após
experienciar o silêncio em meio a surdez, este tornou-se ainda mais caro. Comecei a optar por este também dentro de
casa, não ligava mais a televisão, não ouvia músicas, permanecia no silêncio de meus pensamentos.
Dentre os primeiros meses trabalhando com uma comunidade surda, lembro-me de sonhar diariamente com
estudantes, com seus olhos curiosos, e acordar na angústia de não conseguir uma comunicação limpa, sóbria, clara e
concisa. A constante preocupação com essa emissão de signos e que poderiam ser interpretados de maneiras diversas.
Mas por que esta preocupação? Se constantemente emitimos signos, que podem afetar ou não, pois trata da ordem do
singular.
Por que o SiLênCio surdo incomoda?
O que nos InCoMoDa no silêncio?
Com o passar dos dias, e com muito esforço para exercitar a paciência, apaziguar a ansiedade, começo me
comunicar com mais propriedade, ordenar os sinais de tal maneira e não de outra. Os surdos buscando escrever na
Língua Portuguesa as poucas palavras das quais gravaram a grafia, e eu buscando sinalizar. A busca da
comunicação/compreensão acontecia de ambos os lados.
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Para Skliar (2004) qualquer tentativa de colocar-se na pele de outro comete um despautério, por mais que se
tente não conseguiremos estar além do que somos. “Se fecho os olhos, me encontro comigo, somente comigo, de novo e de
novo” (p. 145).
Inúmeras as tentativas de colocar-me no lugar do outro, mas no fim encontro-me em minha posição frente a
eles, como ouvinte, sempre como ouvinte, pois não posso deixar de ser o que sou e ser outro. “Não sou, poderia sê-lo.
Uma vez mais. Poderia sê-lo” (Skliar, 2004, p.146).
Em vez de uma afirmação, uma dúvida rotunda: o que poderia ser, se fosse.
O que seria, sem sê-lo. O que estou sendo porque outros foram. E, assim,
sucessivamente: em descendência e ascendência. Desde e para todos os
lados (SKLIAR, 2004, p. 147).
Pensar que poderia sê-lo, e como seria se fosse ajudou a pensar a possibilidade de estar do outro lado, de não
entender a língua (como assistir um filme em francês, sem legendas) bocas que se movem, olhares que se tocam,
gestos, cenários, mas nenhuma língua que eu possa compreender ou decifrar. Essa ausência incomoda, perturba,
falta algo, como posso interpretar um filme em outra língua sem legendas ou tradução para minha língua? E se
fizermos esta experimentação? Sim, como ouvintes, assistirmos a um filme em outra língua, uma língua a qual
desconhecemos. Posteriormente assistirmos ao mesmo filme com legendas. Será que nossa percepção será a
mesma? É provável que não, então: Por que levo um vídeo, uma imagem esperando que todos produzam os mesmos
sentidos que produzi ao vê-lo? Pensamento bastante egoísta, desejar que o outro sinta como senti, se eu mesma em
diferentes circunstâncias produzo sentidos diferenciados para uma mesma visualidade.
70
Em uma aula onde a proposta foi a criação de uma imagem a partir da
apropriação de recortes, quando uma estudante, visivelmente com problemas
dermatológicos - rosto inchado e avermelhado, gritando de dor, coçava e
apertava sua face - ao selecionar imagens de uma revista, se depara com um
anúncio de creme hidratante para rosto, no anúncio aparece uma modelo com a
pele suave, delicada, sem marcas, a dita pele ‘perfeita’. Observo que a estudante
recorta a imagem do frasco de creme - com sua determinada marca - e a guarda
em seu estojo, a mesma me olha e diz: “vou levar para que meu irmão compre,
quero ficar assim”- e aponta para a modelo do ‘rosto perfeito’. A frase ‘quero
ficar assim’ ressoou em mim, dilacerou meu coração, embrulhou-me o estômago,
causou sensações de piedade misturadas à identificação, afinal também enfrentei
e enfrento crises de autoestima, e neste momento coloquei-me em frente ao
espelho com um anúncio nas mãos. Como dizer que ela não ficaria igual à
modelo, mas que pode mesmo assim ser linda? Com quais sinais? Como não
piorar uma situação delicada por não saber como sinalizar de maneira que não
destrua os poucos vestígios de autoestima dela?
Por quê nos comparamos aos outros de tal forma a deixar de nos amar?
Que indústria da beleza é essa que estimula tamanho mal-estar?
(fragmento do diário de campo, 2017).
71
Pensei que, em questão de um ano em tal ‘território’, e convivendo com os estudantes surdos teria melhor
domínio da língua de sinais e as coisas seriam mais fáceis. Ilusão, encerrei o terceiro ano de trabalho sem domínio
nenhum, conseguindo uma comunicação, mas que ainda não é direta, não consegue ser clara e objetiva, mas já
consegue se organizar no espaço, que pode ser caracterizada como língua, mas ainda traz consigo umas misturas, a
mímica.
Segui navegando e me afundando no desconhecido. Ouvindo o silêncio, fazendo parte dele, mergulhada nesse
silêncio, que não é um silêncio mudo, não é mais um silêncio vazio, agora é, um silêncio produtivo, um silêncio
agradável, agradável de tal maneira que quando algum grito o corta causa um desconforto, e provoca a chamar a
atenção e pedir que o mesmo seja respeitado. Agora o ruído incomoda, qualquer ruído passa a ser percebido, e
parece seu volume estar alterado, as vozes daqueles que oralizam parecem estar em uma tonalidade maior, ferem-me
os ouvidos, ouvidos estes acostumados com o silêncio. O que antes angustiava, agora é desejo, é potência.
Fui o sujeito sem linguagem, muda, mas com a mente inquieta, numa posição que hierarquicamente seria de
superioridade em relação aos estudantes, e ainda no silêncio criado por ambas as partes, houve comunicação, com o
olhar e com o corpo, mas sempre na falta de uma língua comum, a ausência de um domínio da Libras trouxe uma
sensação de vazio imensa, o tempo passando lentamente, os olhares curiosos, alguns me atingiam como lanças,
pareciam cobrar-me alguma coisa, algum posicionamento. Esperavam algo de mim, algum gesto, alguma escrita. E o
que eu tinha? Um olhar apavorado e curioso, uma tremedeira no corpo e o improviso.
72
DiFeReNciAnDo A DiFeReNçA Deleuze tornou o conceito de diferença pensável, dando-lhe um outro sentido; daí porque não podemos deixar
de ligar o conceito de diferença à sua obra.
72
73
Ocorreram ao longo da história, vários conflitos no processo de compreensão da surdez, esta já foi considerada
como uma patologia, maldição e, até mesmo, loucura. Tanto histórica quanto politicamente, a surdez vem sendo
narrada pelos ouvintes e entendida como uma falta, uma deficiência, uma falha que deve ser completada a partir da
normalização do corpo surdo, principalmente através dos dispositivos escolares.
CoMo pode alguém ViVeR no siLênCio?
Como essa PeSSoa se SeNtE?
O que PeNsA?
O que SoNhA?
CoMo AcorDa PeLa MaNHã?
74
Esses são questionamentos comuns de pessoas ouvintes em relação aos surdos.
Essas perguntas sempre estão acompanhadas por estereótipos, ou seja, o indivíduo
surdo é visto como incapaz de se desenvolver em alguns aspectos, especialmente nos
aspectos relacionados com a língua e a aprendizagem. Felizmente a visão em relação ao
surdo vem se modificando. Hoje, a partir de diversos estudos na área, pode-se entender o
sujeito surdo como um indivíduo com potencialidades, conforme é defendida por Skliar
(1998), o direito de aprender como primeira língua a língua de sinais, bem como o convívio desde
cedo na comunidade surda.
Como, então, seria possível compreender a surdez? Seria uma doença ou uma
deficiência? Ou os surdos apenas são sujeitos com singularidades? Há uma grande
diferença entre perceber a surdez como deficiência e como diferença. Aqui se
encontra a separação de duas importantes concepções acerca da surdez.
Segundo Skliar (1998), “a cultura surda não é uma imagem velada de uma
hipotética cultura ouvinte. Não é o seu revés. Não é uma cultura patológica” (p.
28).
Para além do sujeito, a surdez é constituída culturalmente a partir de
diversas narrativas, de diferentes campos discursivos – clínicos, linguísticos,
74
75
religiosos, educacionais, jurídicos, filosóficos etc. Por isso, é uma invenção. O que a inventa são os sentidos
construídos em torno dela (LOPES, 2011, p.8).
Aqui coloco a surdez apenas como algo em comum dentro do ‘território’ em que atuei, não dou ênfase a esta
como diferença, pois cairia na diferenciação por aquilo que falta, no caso a audição, e não é esse o objetivo da
pesquisa. Porém algumas questões referentes à cultura surda são mencionadas a fim de colocar as especificidades do
ambiente onde se deu a experiência. Tratar a surdez como diferença ou como deficiência nos afastaria das filosofias
da diferença.
Para Deleuze, ao invés de colocar a diferença como algo negativo para o conhecimento, Deleuze pretende
mostrar que a diferença é o próprio princípio da natureza. Primeiramente estaria o fundo indiferenciado
(indeterminado), o fundo caótico – onde todas as coisas encontram-se misturadas e sem qualquer “identidade”. Ao
caos seguir-se-ia a ordem, sempre provisória e precária e que não deixa um só instante de sofrer a ação corrosiva e
cambiante do tempo.
Diante da tranquilidade que o idêntico oferece- o mesmo texto, a mesma voz, os
mesmos seres- a diferença não faz mais que produzir o sem forma, o indefinido, a
perturbadora sensação do estranho sem nome. Por isso, ao pensar a diferença,
sentimos mais medo do que paixão, mais repugnância do que comoção (SKLIAR, 2004, p. 30).
É muito mais calma e despreocupante a relação, o trabalho, com o idêntico. Tratar do diferente seria assumir a
possibilidade de ser incompreendido inúmeras vezes, de não obter resultados, sim, resultados, pois ainda se tem na
educação a espera de resultados eficazes, e que precisam ser comprovados, nos cobram isso o tempo todo, pais,
76
direções, colegas. Com o idêntico é muito fácil prever os resultados e comprová-los. Mas, existe alguém
idêntico a nós? Se pensarmos pelo viés da diferença não. Por isso, talvez, tenhamos tantos profissionais
frustrados, métodos de ensino ineficazes, fórmulas, modelos que não conseguem alcançar o todo. E por que
buscamos o todo? Se um não for afetado em um grupo de cem, já basta para nos sentirmos frustrados. Ao adentrar no
espaço escolar, já nos estágios, colocam um grupo de estudantes em nossa frente e esperam de nós resultados, e
que todos sejam tocados da mesma maneira. O efeito é tão catastrófico que os próprios estudantes se comparam aos
colegas, buscam o mesmo resultado dos colegas, como se houvesse uma maneira, uma educação. No Cóser, as
turmas são menores, assim o grupo docente atenta para cada estudante individualmente, cada estudante é único, o
que é perceptível no dia a dia, nos conselhos de classe, assim, permito-me afirmar que é um ambiente que permite as
multiplicidades, e antes de ser vista pela unidade (surdez), educa a partir das multiplicidades do corpo discente e
docente.
A razão até acredita poder pensar a diferença quando faz dela um puro conceito do entendimento, uma forma
vazia, sem qualquer conteúdo exterior. Mas, quando a submetemos às regras da identidade e da semelhança, ou seja,
quando obedecemos aos critérios rígidos do raciocínio lógico, nós terminamos por perder a natureza anárquica e
subversiva da diferença em si mesma. Isto porque a diferença, nela mesma, não é algo que possa ser objeto de uma
representação orgânica. Afinal, representamos sempre aquilo que percebemos, aquilo que apreendemos por
intermédio de nossa sensibilidade.
77
A diferença não pode ser vista como um atributo físico. Estar quente pode ser um diferencial com relação a estar
frio, mas a diferença não é ser uma coisa ou outra. Para Deleuze (1999) não podemos compreender a diferença em
termos de polaridade, negação ou falta. Ex: Ele é diferente porque é surdo. Isso não é uma diferença, é uma
deficiência. Buscamos o conceito da diferença enquanto esta não se deixa reduzir ao grau, nem à intensidade, nem à
contradição: uma tal diferença é vital, mesmo que seu conceito não seja propriamente biológico (p.106). Portanto a
diferença não é uma determinação, mas é, nessa relação essencial com a vida, uma diferenciação.
O pensamento da diferença pura é aquele concebido como intrínseco, intenso, não relacional, não mediado
pela representação. A diferença como afirmação do que se é, daquilo que se pode fazer, não compara, a fim de não
eleger melhor ou pior, aceita o indivíduo naquilo que ele é. A ideia não é buscar a diferença entre este e aquele, mas
as semelhanças. De modo que a diferença sustenta o seu Ser (da diferença). Que potencialize e não exclua. Neste
caso a diferença se dá por meio da afirmação, não pela negação ou analogia. Aqui o ser é unívoco.
Já o pensamento da diferença relativa é aquele concebido pelo que está fora, entre entes, entre cópia e modelo.
Do original e da cópia. Acredita ter um modelo, e exclui aquele que não se encaixa nesse modelo. Este tipo de
diferença procura representar e mostrar o que difere. Separa sujeito e objeto. Compara, já que a analogia pertence ao
mundo da representação. Olha para as características que o excluem, que o diferem (forma de vestir, comportar-se,
falar, etc). Aqui a diferença se dá pela negação, por aquilo que ele não consegue fazer sozinho, pertencer, exercer,
pelo que não tem ou não é.
78
Podemos dizer que a surdez constitui uma diferença, se a olharmos pela perspectiva da representação, o que
não é o objetivo dessa pesquisa. Coloco aqui o sujeito surdo como indivíduo unívoco, valorizado pelo que consegue
fazer, construir, e não pelo que lhe falta. A surdez é também uma experiência, uma experiência visual (SKLIAR, 1997)
e também uma invenção (LOPES, 2011). Há um conjunto de estratégias de representação acerca do ‘outro’ que fazem
com que barreiras sejam levantadas entre o ‘outro’ e o nós. O vendo como diferente pelo que lhe falta, não pelo que é.
No ‘território’ ao qual adentrei, a cultura surda em si valoriza o Ser surdo, o que ele pode a partir do que é, e não usa
como centro o que lhe falta. Aliás, falta algo? Ao conviver tanto no Cóser quando na Associação de Surdos de Santa
Maria pude perceber que não existe a falta, existe aquilo que podemos fazer, e também percebo que podemos fazer
muito mais quando optamos pelo ‘NÓS’, ao invés de tratar como ‘EU’ e o ‘OUTRO’ A partir daí podemos pensar as
trajetórias escolares desses sujeitos e, sobretudo, de que forma as histórias “menores” (DELEUZE; GUATTARI, 1977)
dos estudantes surdos foram traçadas dentro de uma História Maior. Não se trata de comparar, de opor e nem de
fazer coincidir. Trata-se apenas de tensionar e de afirmar outras possibilidades de ser/estar no mundo.
Tenho pensado a disciplina de artes como forma de produzir resistência, a partir de uma educação menor.
Sílvio Gallo pensa a educação menor a partir dos estudos de Deleuze e Guattari (1977), quando os mesmos tratam de
uma literatura menor a partir da escrita de Kafka. Assim, a educação menor, segundo Gallo (2002) pensa a sala de
aula como um espaço de militância e singularização, produzindo assim um futuro aquém ou para além das políticas
educacionais. O mesmo coloca a educação maior (aquela constitucional, da LDB) como máquina de controle, que
produz seres iguais, pensa o universal.
79
O que mais assusta os professores que adentram o Cóser é a ausência do molde, a organização do espaço, por
mais que também se dê em salas de aula, entre quatro paredes, dentro deste quadrado a disposição das mesas é
outro. O ritmo é outro, e os conteúdos programáticos ficam em segundo plano. Foge assim, da educação já moldada,
prevista e fechada no que se espera dela. Ribetto nos propõe, a partir de Larrosa (2004), pensar a aprendizagem a
partir do que não se sabe, “aprender de ouvidos”, “aprender a ler sem saber ler”, ou seja, deixar-se levar sem saber
onde iremos chegar, nem se iremos chegar. A aprendizagem pela experiência. Aprendizagem sem controle.
A educação maior se impõe sobre os sujeitos da educação, prioriza os conteúdos programáticos e considera ‘A’
realidade e não as possíveis realidades presentes em uma sala de aula. Assim, a imposição, o exercício do poder gera
resistência. Não temos como prever como se dá a aprendizagem. Assim, se a aprendizagem é algo que escapa, que
foge ao controle, resistir é sempre possível.
Desterritorializar os princípios, as normas da educação maior, gerando possibilidades de aprendizado insuspeitadas naquele contexto. Ou, de dentro da máquina opor resistência, quebrar os mecanismos, como ludistas pós-modernos, botando fogo na máquina de controle, criando novas possibilidades. A educação menor age exatamente nessas brechas para, a partir do deserto e da miséria da sala de aula, fazer emergir possibilidades que escapem a qualquer controle. As táticas de uma educação menor em relação à educação maior são muito parecidas com as táticas de grevistas numa fábrica. Também aqui se trata de impedir a produção; trata-se de impedir que a educação maior, bem-pensada e bem-planejada, se instaure, se tome concreta. Trata-se de opor resistência, trata-se de produzir diferenças. Desterritorializar. Sempre (GALLO, 2002, p. 175).
80
A educação menor seria possível apenas através dos processos de desterritorialização. Entendo o conceito de
‘território’, a partir Deleuze e Guattari (2011). Estes indicam que a formação subjetiva produzida por um território
específico pode se desterritorializar, abrindo-se às linhas de fuga, ou seja, realizando um movimento pelo qual se
abandona o território e constrói-se um outro território (reterritorialização). Em outras palavras, a reterritorialização
consistirá numa tentativa de recomposição de um território engajado em um processo desterritorizalizante.
Para que haja uma educação menor é necessário desterritorializar a educação, criando novas possibilidades,
buscando linhas de fuga, brechas, fissuras. O glossário pensado de forma conjunta, como possibilidade de
alfabetização, que serviu de impulso para a produção deste estudo, reconheço como uma brecha, uma
experimentação coletiva, uma reorganização do espaço, junção de turmas, uma possibilidade, não melhor que outras
tantas, nem ao menos inferior. E a partir dela foi possível pensar outras maneiras, outras possibilidades, inclusive para
o próprio glossário, por que elegemos tais palavras e não outras? Por que não explorar outras imagens ou ampliar a
problematização a partir destas? Por que não propor um glossário com imagens criadas pelos estudantes?
A educação menor se dá pela criação, não impõe nem busca criar modelos ou moldes para deixar como legado,
não propõe caminhos únicos, permite que cada docente proponha seus próprios trajetos, descobre formas, mas não a
fim de repeti-las, mas de experiênciá-las. Não busca chegar, não sabe se chegará a algum lugar, portanto sempre
será uma descoberta. “Importa fazer rizoma. Viabilizar conexões e conexões; conexões sempre novas” (GALLO, 2002,
p.175).
Educação menor como exercício de multiplicidade. A educação menor resiste, enfrenta, burla, questiona, é
sempre um ato político.
81
Ribetto (2011) propõe a formação menor, para pensar a formação docente, esta se daria “através do riso, do
sonho, do êxtase, do delírio, da poesia quebrada em mil pedaços a ideia de UMA realidade, de UM significado, de
UMA maneira de produzir conhecimentos”(p.116). E tem sido desta maneira que tenho pensado a disciplina de artes,
como forma de resistência à uma educação majoritária. A experiência no Cóser tem fortalecido essa vivência em mim.
Não se deixar tentar pelo centro, pela própria centralidade, não permanecer
em si mesmo, fugir do já conhecido e dessas formas de expressão que se
dominam à vontade, ainda que se sinta a incapacidade por retirar-se, por não
poder sair, por estar fechados dentro do pouco que já sabemos (SKLIAR,
2004, p. 34).
E aí está a maior dificuldade, abrir mão do pouco que já sabemos, deixar de lado o conhecido, e ter a coragem
de adentrar o desconhecido, de encarar o silêncio, a ausência de palavras, a troca de olhares angustiados e curiosos.
Mesmo sem a fala, existe uma comunicação, o corpo comunica, os olhos comunicam. Comunicam mas não falam, por
que sentimos tanta falta de uma linguagem comum? E esta, quanto mais clara e concisa melhor. Assim, segundo
Skliar (2004) “a regulação do afeto sugere que conviver é uma negociação comunicativa, uma presença literal de dois
ou mais sujeitos específicos- donos de uma identidade nítida- e cujo único propósito e destino é o de dialogar,
compartilhar, convergir e consensuar”(p.35).
82
Mas como dialogar sem uma língua comum? Compartilhar de qual maneira? Como lidar com o silêncio? Como
manter a boca fechada uma manhã toda sem pronunciar uma palavra? Como agir quando alguém está à nossa frente
esperando algo, alguma reação, algum gesto, qualquer coisa e não encontramos uma forma de expressar que não
seja da língua oral?
84
Desconforto senti ao adentrar neste ‘território’, ao ser parte deste, um estranhamento inicial, sem sentir-me
ainda uma parte sua. Acomodada com a educação de ouvintes, que, embora tenha desafios cotidianos, nos obrigue a
convivência, a língua comum nos acalenta, por mais que não sejamos compreendidos da forma que havíamos
planejado, estamos falando a mesma língua. Alguém talvez não nos compreenderá, e alguém, talvez, nos
compreenderá da exata maneira que desejamos ser compreendidos, e isto nos conforta, nos alivia, parece que
somente então nossa “missão” de educadores foi compreendida. Mas e quando ninguém compreende? Ninguém ouve
teus gritos, mas os sentem no olhar, o receio do que pode acontecer nessa ausência de comunicação, nesse excesso
de silêncio, nesse ambiente tão quieto, mas ao mesmo tempo tão inquietante.
Mas aos poucos, começo a ver o que pode ser produzido em meio a um gritante silêncio, o que é possível
inventar da língua, das línguas... Me desprendo um pouco do querer ser compreendida e da necessidade de também
compreendê-los... E assim vamos construindo nossas aulas, com gestos, olhares, palavras desconexas e soltas no
quadro branco, desenhos, imagens, vídeos...
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DoCênCiA PeLa eXpeRiêNCiA
A experiência em educação, a experiência bilíngue, o contato humano sem uma língua comum. A educação das
Artes Visuais e a forma como temos pensado a mesma em nosso grupo de orientação coletiva. Temos pensado a arte
como potência para articular a pesquisa, sem se voltar para a produção do objeto em si, mas na construção de
subjetividades com imagens, obras, experimentações artísticas, não com o intuito de pensar modelos ou receitas, mas
pensando a própria aula de artes como experiência, tanto para o discente, quanto para o docente.
Atuando como professora de artes, desde o ano de dois mil e doze, passando por diferentes ambientes
educacionais, faixas etárias distintas, me deparei inúmeras vezes com cobranças sobre a prática, os resultados práticos
das aulas, aqueles trabalhos coloridos e bem elaborados que deveriam encher as paredes e corredores da escola. A
convivência em grupos de estudos me fez perceber que tal cobrança é comum, e é algo já enraizado nos ambientes
escolares.
.
86
teremos, talvez, que aprender a viver de outro modo, a pensar de outro
modo, a falar de outro modo, a ensinar de outro modo. Talvez tenhamos que
aprender a nos apresentar na sala de aula com uma cara humana, isto é,
palpitante e expressiva, que não se endureça na au toridade. Talvez tenhamos
que aprender a pronunciar na sala de aula uma palavra humana, isto é
insegura e balbuciante, que não se solidifique na verdade. Talvez tenhamos
que redescobrir o segredo de uma relação pedagógica humana, isto é, frágil e
atenta, q ue não passe pela propriedade. E dizer [...] a seus alunos: ‘não é fácil
que eu já lhes possa ensinar a falar, nem a escrever, nem a pensar
corretamente, porque eu sou a incorreção mesma, uma alma sempre em
rascunho, cheia de riscos, de vacilações e de arr ependimentos. Levo comigo
um diabo – não o demônio de Sócrates, mas um diabinho que risca às vezes
o que eu escrevo, para escrever em cima o contrário do riscado: que às vezes
fala por mim e outras eu falo por ele, quando não falamos os dois em dueto,
para dizer em coro coisas diferentes’.
( LARROSA, 2010, p. 16)
86
87
Dou às discussões sobre a surdez e o sujeito surdo, o sentido atribuído a educação maior e menor apresentado
por Gallo (2002), parafraseando Gilles Deleuze, quando este se refere à literatura maior e a literatura menor. A própria
condição minoritária talvez favoreça buscar no ouvinte um referencial.
Acervo pessoal, glossários produzidos pelos estudantes surdos, 2016.
87
88
Segundo Ribetto e Cordeiro (2016) “a potência do conceito de ‘menor’ está na sua força desviante, na
constituição de uma ética e de uma estética de outra prática pedagógica que busca a experiência, a possibilidade de
encontros inesperados, de conexões não antes pensadas” (p.73).
A desterritorialização, pensada no âmbito das práticas educativas, diz respeito a um movimento de constante
criação. As práticas de educação menor não dizem respeito às prescrições dos Parâmetros, manuais, políticas e etc.
Elas se diferenciam, escapam e se desterritorializam, criando novas possibilidades. Assim “o menor não é o dominante
e sua existência e resistência está no sentido dele permanecer como uma invenção e linha de fuga” (RIBETTO e
CORDEIRO, 2016, p.73).
Deleuze (2006a), afirma “que nunca se sabe, de antemão, como alguém chegará a aprender- mediante que
amores se chega a ser bom em latim, por meio de que encontros se chega a ser filósofo, em que dicionário se
aprende a pensar” (p.21).
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Acervo pessoal, exposição dos glossários produzidos pelos estudantes surdos, 2016.
Não existem receitas prontas, não existe um padrão
de como alguém aprende. Dentre os professores
o que mais ouvi foi “como o surdo aprende?”,
“quais estratégias e quais praticas são
indicadas para a alfabetizacão do surdo?”;
professores buscando respostas, muitas
vezes cobrados, pressionados por
comentários exteriores, quando ouvíamos que
o surdo não está se alfabetizando, que está com
dificuldades de se comunicar na Língua
Portuguesa. Sempre tratando como unidade ‘o
surdo’, como se a aprendizagem fosse ocorrer
da mesma maneira em todos os sujeitos, a
busca de uma prática que possa ter o mesmo
efeito em todos os sujeitos. “Não há um método
para encontrar tesouros e tampouco há um método
de aprender, a não ser um movimento violento, um
cultivo ou a ideia que percorre o indivíduo”
(LARROSA, 2010).
90
CoMo ApReNdEmOs?
Não há uma educação pela qual todos sejam afetados da mesma maneira, e é isso que considera a educação menor,
as MuLtiPliCiDaDeS, a DiFeReNçA.
Larrosa (2010) coloca o professor como alguém ansioso, que “sempre está um pouco preocupado para saber se
seu presente será aceito, se sua carta será bem recebida e merecerá alguma resposta. Uma vez que só se presenteia
o que se ama, o professor gostaria que seu amor fosse também amado por aqueles aos quais ele o remete” (p.140).
Quando, na posição de professora, seleciono o conteúdo e preparo uma aula, a aula é parte de mim, e é
preparada de forma a ser um presente, e fico esperando as reações, não no sentido de respostas previamente
pensadas, mas a reação da turma em relação à esse ‘presente’, e sempre esperando que tenham também o amor
pelo conteúdo/imagem que escolhi para presenteá-los, o que muitas vezes é frustrante, principalmente em meio à
dificuldade da comunicação, onde parece que não consigo entregar o ‘presente’ inteiro, sempre na sensação de que
falta uma parte, de que não houve entendimento e que não haverá amor e nem respostas, poderá haver experiência
para alguns, talvez nem todos, os signos que emito podem afetar ou não, a comunicação acontece de alguma forma,
não necessariamente da forma institucionalizada, ou regente das relações majoritárias. Falo em presente pensando no
carinho com que cada gesto é escolhido, cada imagem, cada palavra, gestos ensaiados. Ensaio frente ao espelho
algumas vezes, os gestos repetidos de forma contida no percurso até a escola, para que não me falhe a memória, que
tudo corra conforme o planejado.
91
Muitas vezes os estudantes se frustram também por não chegarem a um consenso, uma resposta, uma verdade a
partir de uma imagem, acostumados a ter a imagem como representação, não é comum que tenham liberdade de
pensar, de expor sem serem corrigidos a partir de uma verdade única.
Larrosa (2010) nos diz que “como educadores, movemo-nos constantemente nesta tensão entre a produção e a
imposição de uma verdade única e o surgimento de múltiplas verdades” (p. 163). Quantas vezes ouvimos e repetimos
“na verdade...”, em nossas explanações em sala de aula, colocando nosso dizer como verdade absoluta, não aceitando
outras formas de ser, e quantas vezes esperamos que os estudantes nos deem as respostas esperadas, que saibam já
essa ‘verdade’ que estamos apresentando, afinal a verdade é única. Eles precisam aceitar o que digo como verdade?
Mas o que é a verdade?
Assim, pensando a partir de uma educação menor, pensamos em UMA verdade, e não A verdade, e assim vamos
juntos construindo outras verdades possíveis. Desconstrução da verdade. Criação de verdades. Ensinar de outro modo,
experimentar de outras maneiras, estreitar as relações, este outro estudante, misturar-se a ele, produzir o nós. Diminuir a
distância que a hierarquia impõe. Olhar de perto, produzir juntos.
MiStuRaR-nOs aLiAr-nOs MeScLaR-nOs cOzEr-NoS eNvolVER-nos
EmBaRaLhAr-NoS CoNcAtEnAr-NoS CoSeR-nOs CiNgiR-nOS
93
E por que não divagar nas coisas que já sabemos? Por que esse excesso de conteúdos pré-determinados que
compõem nossas salas de aula? Por que não partir do que já sabemos? Por que querer sempre o novo? Larrosa (2010)
ao falar da condição babélica da linguagem, conta a história de Ernesto, o personagem se entrega à leitura, mas uma
leitura ‘outra’, “a ‘leitura’ do saber à qual Ernesto se entrega não passa pela possessão, senão pelo desejo, não se dirige
a nada que possa ser assimilado ou retido, mas que se conserva em um impulso que não se fixa em nenhuma captação
concreta”(p.59). Ou seja, o personagem não quer aprender as coisas que não sabe e “essa passividade essencial que
lhe permite incorporar o incompreensível”.
A leitura como experiência, sem compromisso em procurar erros ou sem a preocupação de crítica, uma leitura
livre. A descoberta de outros mundos, outras possibilidades. Talvez um arriscar, uma leitura analfabeta. Como quando
encontro um surdo na rua, sem ter preparado, pensado uma comunicação, arisco, invento, mostro, e conversamos, uma
conversa sem intenção de ensinar, ou de ser bem elaborada. Quando o estudante surdo assiste a um filme, onde mal
consegue acompanhar a legenda, e desta, poucas palavras compreende, pois seu vocabulário na língua portuguesa é
pequeno, faz deste sua própria interpretação. Sua leitura do filme se dá somente pela visualidade e pelas poucas
palavras que conseguirá ler. Em uma aula onde assistimos a um filme, apareceu a legenda: “Não temos nada a temer”.
Um estudante perguntou-me se a palavra “temer” referia-se ao presidente Michel Temer.
A forma que cada um foi afetado é única, e não é apenas com estudantes surdos que isso ocorre, as experiências
nos afetam de formas distintas, não temos como mencionar a maneira que o outro foi afetado, mas dialogando sobre
conseguiremos criar novas verdade sobre o que assistimos, junto podemos invencionar com nossos afetos.
94
Quando proponho a leitura de algum texto, deixo o estudante experimentar o texto ao seu modo, ou espero que
tenha a experiência que eu tive com o mesmo? Por mais que a proposta do texto tenha objetivos em meu planejamento,
qual a experiência de leitura que proponho?
Skliar (2004) fala da educação como comoção, ato de doação. “Educar é sentir e pensar, não apenas a própria
identidade, mas também outras formas possíveis de viver e conviver. Se isso não acontecesse nas escolas,
provavelmente o deserto, o ermo, a seca ocupariam toda a paisagem dos tempos por vir”(p.187). Educar é viver da
incerteza, é dar todo o tempo possível, é não pensar o tempo, é vivenciá-lo, permitir que transcorra, que aconteça, é viver
o por vir. É traçar rastros, mas permitir que cada estudante invente seu próprio caminho, não há UM caminho, e assim
vou descobrindo a cada dia novos caminhos, alguns atalhos, outros mais longos e que me dispersam, outros pelos quais
me perco e necessito retornar. E assim, vou vivendo a docência...
DOCEnciando... DOCEsendo... DOCEvivendo...
O que tenho feito na educação de surdos é pensar o tempo todo em novas possibilidades, juntamente com o
grupo de professores, possibilidades de alfabetização, de aprendizagens, de tornar os estudantes independentes. Que
em seu ritmo, possam andar com suas próprias pernas. Mas sem correr contra o tempo, sem pressa ou desespero,
respeitando seus tempos, construindo nossas subjetividades. “Ao contrário do que aparenta, a lentidão- ou a
detenção, a pausa- pode ser considerada uma virtude em meio a tanta pressa, a tanta mutação, a tanta adoração à
divindade das mudanças e das transformações”. (SKLIAR, 2004)
95
O tempo, sobre dar tempo, respeitar os tempos e acalmar nossa ansiedade, deixar o relógio desligado, o
calendário letivo também, o cronograma precisa ser refeito a cada encontro. O que inicialmente foi desesperador,
agora tem me trazido calma, o silêncio é desejo, o tempo é vasto, vamos aos poucos, retornamos muitas vezes,
quando alguém parece estar perdido no caminho que traçou. Para Skliar a única relação possível entre ensinar e
aprender é a de “oferecer signos que os outros decifrarão no seu próprio tempo e do seu próprio modo. Signos talvez
comuns, mas apreciados de modos diferentes, em tempos diferentes, em outros tempos.”
O
QuE
A
DoCêNcIa
Produz
eM
MiM?
97
A noção de experiência de si em Larrosa (1994, p. 83) diz respeito a uma experiência que “não depende nem
do objeto nem do sujeito”, mas da relação entre eles que fabrica ambos. Larrosa sugere que a pessoa é o modo como
se relaciona com seu duplo, um conjunto de relações consigo mesmo estabelecidas a partir da fabricação e captura do
duplo.
Segundo Foucault (1994), entender que tomamos por verdade temas construídos, fabricados em um momento
particular da história, nos dá a possibilidade de desconstruí-lo. Ao desconstruir uma verdade, damos espaço para
outras formas de pensar e de agir, para que outras verdades sejam construídas e, por sua vez, contestadas.
Assim, nesta dissertação compartilho FraGmEntOs de MoMeNtOs ViVidOs e falo da ExPeRiÊnCiA
que me aFeTa, que me tOcA. A intensidade que se move nesses encontros com o outro. A alteração de minha
cronocepção após inteirar-me no ‘território outro’, o insistir na experiência em oposição à mera informação, o que mais
difere a educação de surdos da educação regular, a valorização e o tempo dado à experiência.
O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa o tempo buscando
informação, o que mais lhe preocupa é não ter bastante informação, cada
vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão
pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de ‘sabedoria’, mas
no sentido de estar informado), o que consegue é que nada lhe aconteça.
(LARROSA, 2004, p. 154).
O sujeito da informação é reflexo da cobrança pelo argumento e pela crítica, que é muito frequente na
atualidade, parece absurdo, principalmente atuando como docentes, admitirmos não saber emitir julgamento sobre
alguma situação, conceito ou discussão. Somos cobrados a opinar, a ter ‘domínio’ de todas as informações referentes
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a nossa área de ensino. E quando pensamos a prática em sala de aula, precisamos uma receita infalível, onde todos
consigam fazer o mesmo trabalho. Fugas não são bem vistas dentro de uma educação majoritária. Mas o que tenho
feito é insistir em formas de resistência, no viés de uma educação menor, que não se opõe diretamente, mas que
busca escapar por brechas, produzir fissuras, questionar o que está posto, e inventar possibilidades na educação. O
Coser, mesmo sendo a forma de ensino institucionalizada, me permitiu fazer estes movimentos.
O silêncio, o inquietante silêncio que encontrei ao deparar-me com a surdez, a angústia em não conseguir
comunicar com a minha linguagem e entender a deles, ao não compreender o que suas mãos diziam. Que outro
espaço educativo opera com o silêncio? Confesso que nunca me atraíram os gritos estridentes durante o
intervalo nos turnos de anos iniciais nas escolas regulares, mas ao chegar no Cóser me deparo com a situação
contrária, um silêncio, que inicialmente, me foi algo incômodo. Por que o silêncio não pode ser vivido de
forma leve, como forma de gozo? Por que nos inquieta o silêncio na educação? Se quando na
educação regular pedimos silêncio diversas vezes..
O que isso produziu em mim, DoCeNtE PATETA ApReNdIz? Primeiramente causou um processo de
desaceleração de meu corpo e de minha mente, em meio a tanta correria, dando conta de mais outras três escolas, ali
me obrigava a desacelerar, ouvir o silêncio, buscar estratégias de comunicação, e observar cada expressão e cada
gesto, modifiquei meu olhar, meus olhos hoje são mais atentos, meus ouvidos mais irritados, ruídos têm me
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incomodado mais que antes, tenho preferido, em casa, o silêncio, a calmaria. Minhas mãos que antes não tinham
coordenação alguma, talvez por pressa, agora constroem gestos claros e de fácil compreensão.
O silêncio sempre foi parte de mim, na infância, em ambientes que não fosse a casa de meus pais não
pronunciava palavra alguma, sempre preferi ouvir e observar, falar, emitir opiniões, oralizar questionamentos sempre
foi algo muito frustrante, quando obrigada fazê-lo na escola era torturante, o corpo tremia todo, a voz mal saía, as
poucas palavras vinham com uns gaguejos, e assim, por essa dificuldade procurei, sempre que obrigada a falar, ser o
mais breve e objetiva possível. Porém, ao atuar como docente, senti-me obrigada a falar, argumentar e desenvolver a
fala em turmas diferentes, algumas agitadas, outras calmas e quietas, assim, fui me produzindo docente, uma docente
ativa, sempre buscando algo, sempre insatisfeita.
Já no Cóser, o processo foi o contrário, senti a necessidade de desacelerar e sentir, acalmar e aprender uma
nova língua, aprender a conviver, aprender olhar, e conviver novamente com o silêncio, mas um silêncio diferente, um
silêncio que não causava calmaria.
A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou nos
toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos
tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar,
pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para
sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,
suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o
que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do
encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA,
2004, p. 160).
100
Segundo Larrosa (2004) o sujeito da experiência não é um sujeito que permanece sempre em pé, ileso e ereto,
inabalável e seguro de si, nem mesmo um sujeito que alcança aquilo que se propõe, nem um sujeito que se define por
seus sucessos apenas, “mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo do qual faz experiência
se apodera dele” (p.163). O sujeito que se aflige e que sonha com o olhar daqueles com quem não consegue laborar
uma linguagem, com aqueles onde não há um entendimento. O sujeito que se permite sentir o ‘outro’.
EsCuTaR CaLaR RItaRdaR OlHaR
AcEiTaR
SeNtiR
SeNTiLhaR
EscutiR
CalaSenTilLhaR
SiLenCiAmAr
101
ConSideRaÇõEs PrOviSóRiaS
Ao BioGraFeMaR a experiência educativa no Cóser, ensejei pensar a docência em Artes Visuais, discorri
sobre algumas especificidades acerca da surdez, o território constituído pela comunidade surda, a linguagem e suas
possibilidades inventivas durante tentativas de comunicação, a educação de forma institucionalizada e sua relação
com as políticas de inclusão de acordo com as filosofias da diferença.
Pensei a educação como forma de resistência, a partir de uma educação menor (Gallo, 2002), assim,
reconheço a importância da instituição de ensino bilíngue, a valorização de uma educação que se dá pela experiência,
que não corre atrás do relógio, que se permite esperar, vivenciar, viver.
Nestes percursos, a partir dos quais problematizei a educação e a vida, trouxe recortes de momentos vivos na
memória, relatos feitos no diário de campo, fotografias, frases soltas, palavras, gestos descritos em frases, afetos,
amores, dores, angústias, saudades, silêncios.
Mas afinal, o que passou? Que territórios descobri? Quais afetos emergiram neste biografemar de
uma experiência docente?
Transbordei questões sobre a linguagem. LinGuaGueJei, misturei gestos com palavras, confundi, reescrevi.
GesTicuLinGueJei uma nova língua.
102
Forcei o pensamento para não me colocar somente na brisa da paixão, mas trazer questões pertinentes à
docência.
Visitei mundos secretos, ressuscitei dores adormecidas na memória, redescobri amores dentro de mim, me refiz em
biografemas.
Elucidei um ‘nós’ que não estava lá de começo, que foi se criando, em cada revisita sobre dilemas e angústias de
uma docência sem uma língua em comum.
Indago-me a respeito de que outra forma eu teria de trazer esses elementos para uma pesquisa em educação,
que não fosse desta maneira. Essa foi a forma que encontrei de falar de docência, de experiência, de encontro, de
linguagem. Quis pronunciar sobre a vida que pulsa em meio ao encontro docente em Artes Visuais com uma linguagem
outra em educação.
104
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