efeitos da ditadura no trabalho de henfil
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Efeitos da ditadura no trabalho de HenfilConsequences of dictatorship in the work of Henfil Efectos de la dictadura en el trabajo de Henfil
Fabio Luiz Carneiro Mourilhe Silva (Doutorando em comunicação PPGCOM / UFF; Doutorando em filosofia PPGFIFCS / UFRJ)[email protected] Hogan(M.A. Communications and Rhetorical Studies Syracuse University ’11)[email protected]
ResumoAtravés de análises pictóricas do trabalho de Henfil e pesquisas bibliográficas relacionadas a um momento específico da história política brasileira, onde prevaleceu a censura e a ditadura militar, busca-se entender aqui de que modo foi traduzida a prática da charge e dos quadrinhos a partir de uma postura ousada e de contestação, assumida por Henfil. Com a Revista Fradim, ficam documentados os principais problemas presentes em sua época. Contudo, ao cobrar um posicionamento político, nota-se que seu trabalho vai além de mero registro documental, servindo de arma ideológica e crítica.
Palavras-chave: Henfil; Ditadura militar; Revista Fradim; Censura.
AbstractWith pictorial analysis of Henfil’s work and bibliographical researches related to a specific moment of the Brazilian political history, where the censorship and the military dictatorship prevailed, we pursue here to understand how the practice of the political charge and the comics were translated, from an audacious and challenging posture, assumed by Henfil. With the Fradim Magazine, the mainly problems of its time were documented. However, by charging a political positioning, his work goes beyond a mere documental register, serving as an ideological and critical weapon.
Key-words: Henfil; Military dictatorship; Fradim magazine; Censorship.
Introdução
Como pensar a questão da censura e da ditadura na prática expressiva de um cartunista
como Henfil, na qual uma ausência de limites morais parece estabelecer a tônica do
trabalho? O trabalho de Henfil, para além de qualquer censura e controle militar, aponta
para uma manifestação expressiva que transforma o humor em arma ideológica.
Inicialmente, foram verificadas as revistas Fradim de Henfil, buscando encontrar
tópicos específicos com reflexos da ditadura e censura em seu trabalho. Posteriormente,
foram realizadas pesquisas bibliográficas visando compreender os temas encontrados
nos quadrinhos – no contexto específico das representações pictóricas críticas do
trabalho de Henfil, que refletem sua relação com a ditadura –, construindo um panorama
e relacionando um corpo teórico relevante. Com a base teórica descriminada, foram, por
fim, analisadas as revistas Fradim.
Ao ser realizada uma análise inicial da Revista Fradim, percebe-se alguns temas
recorrentes como as críticas ao posicionamento capitalista, ao radicalismo do regime e
ao anticomunismo, e o posicionamento dos grupos de oposição. Dos temas abordados,
aqui é explorada com maior ênfase a questão da censura, tendo em vista sua
compreensão, entendimento e reflexos no trabalho de Henfil. Antes, porém, procurei
buscar as raízes do posicionamento político de Henfil em relação à realidade então
vigente.
O posicionamento político de Henfil
Com posicionamento contrário ao regime e modelo econômico impostos durante a
ditadura militar, Henfil teceu críticas diretas ou indiretas através de seus cartuns e
quadrinhos, o que pode ser percebido claramente nas compilações veiculadas na revista
Fradim, com materiais provindos de diversas fontes incluindo o Pasquim e o Jornal do
Brasil.
Seu posicionamento político e crítico se deve ao contato com uma ala politizada de
esquerda da igreja católica, em função dos cunhados guerrilheiros, irmãos na
clandestinidade e amigos mortos na tortura. Desiludia-se com aqueles que não tinham
compromisso com nada (LAERTE apud MORAES, p. 311).
Henfil teve uma educação religiosa essencialmente tradicionalista baseada no
catolicismo. Através dos Fradinhos pode criticar a moral cristã. “O baixinho anarquiza,
ridiculariza e agride as falsidades e as hipocrisias da sociedade em que vivo. Ele é toda
uma negação da religião do terror, na qual tudo é pecado” (MORAES, 1996, p.104).
Nos Fradinhos, segundo MORAES (1996, p. 104), teríamos um conflito de
personalidades que refletia a própria personalidade de Henfil: o lado careta e carola,
herdado da formação da família mineira, representado no Cumprido e o lado
revolucionário, anarquista e utópico, inspirado na pregação libertária dos dominicanos,
representado pelo Baixinho.
O engajamento e a militância de Henfil se devem ao posicionamento de seus irmãos
junto à Ação Católica da Igreja, que cobrava a participação consciente dos fiéis.
Baseado na L’Action Catholique, idealizada na França pela Ordem dos Dominicanos,
tinha como objetivo evangelizar e despertar vocações, enfatizando a necessidade de
justiça e igualdade. Zilah e Wanda se filiaram à Ação Católica no começo da década de
1950 e Betinho se filiou ao JEC (Juventude Estudantil Católica) em 1953 (MORAES,
1996, p. 36). “A gente não entrava na religiosidade com uma dimensão abstrata,
supersticiosa, ritualística. Cultivávamos uma religiosidade muito politizada no sentido
de construir uma sociedade justa, com uma visão anti-capitalista do mundo” (BETINHO
apud MORAES, 1996, p. 36). Para HENFIL (apud MORAES, 1996, p. 38), os
dominicanos lhe deram uma nova visão da Igreja, de justiça, de liberdade, de alegria.
No começo da década de 1960, Betinho passou a figurar como liderança importante da
esquerda católica dentro e fora do meio estudantil e nas negociações entre cristãos de
esquerda e comunistas. Ao lado de Brizola, apoiou a posse de João Goulart após a
renúncia de Jânio. Nesta mesma época, Betinho também se mobilizou em prol da
fundação da Ação Popular com egressos da JEC, onde a opção cristã se mesclava aos
fundamentos do marxismo. Defendia-se a aliança entre operários, estudantes e
camponeses como forma de concretizar o projeto revolucionário (MORAES, 1996, pp.
44-45). Assim, Henfil convivia com um grande ativista cuja ideologia se pautava no
socialismo, nacionalismo, reformas de base, igualdade de direitos e anti-imperialismo.
Aos 18 anos, Henfil passou a atuar na União Municipal dos estudantes Secundaristas,
controlada pela JEC.
Antes do golpe militar, articulava-se a divulgação de uma propaganda ideológica que
visava desestabilizar o governo militar, incluindo listas do IPES (Instituto de Pesquisas
e Estudos Sociais) onde eram veiculados nomes de “comunistas que deviam ser
anulados, eliminados, presos ou exilados no caso de uma ação militar em nossa pátria”.
Entre eles, figuravam os nomes de Betinho e Wanda. Wanda foi presa repetidas vezes e
Betinho fugiu para o exílio no Uruguai em 1964 (MORAES, 1996, pp. 57-60). Em
1966, Betinho visita o Rio de Janeiro clandestinamente e é preso. Traz consigo
informações e um direcionamento para um modelo revolucionário, que poderia ser tanto
chinês como cubano, que visava reorganizar células e frações para enfrentar a repressão.
Foge para Cuba para obter recursos para as operações de guerrilha contra a ditadura
(MORAES, 1996, pp. 72-74).
Censura no âmbito da ditadura
Sob o prisma da censura e repressão às idéias, é possível pensar em liberdade política e
direitos do cidadão?
Ao verificar os arquivos do DEOPS, confronta-se com um mundo dos livros proibidos,
com os limites impostos por aqueles “preocupados com a circulação de idéias ditas
revolucionárias”. Contrários às mudanças sociais, imporam regras em nome da justiça,
ordem e segurança nacional (CARNEIRO, 1997, p. 21).
Tendo como mote, o proibicionismo, procurou-se submeter as idéias diariamente,
visando a purificação da sociedade, um “saneamento ideológico” (CARNEIRO, 1997,
p. 21).
“Todo intelectual que procurasse fazer a revolução através da palavra escrita, impressa ou falada, corria o risco de se tornar um bandido... Os livros apreendidos como arma política do crime se transformavam em provas materiais da trama articulada contra o regime” (CARNEIRO, 1997, p. 22).
A reincidência dos atos ditos subversivos por parte do autor o colocava em uma posição
delicada que podia culminar com sua prisão.
Em termos de censura, a ditadura militar mantinha práticas do estado novo e de outros
regimes autoritários que tinham como meta manter a homogeneidade em todos os
níveis, segundo CARNEIRO (1997, p. 31), visando facilitar a dominação e o controle,
alienação e conformação, domesticação das massas, bloqueando a heterogeneidade de
pensamento e silenciando os potencialmente perigosos.
A censura pode ser considerada como fruto de uma retórica conservadora que se insere
no discurso político do regime militar. A censura prévia sobre diversões públicas, já
existente desde 1946, é ampliada em 1970 com o amparo legal no Decreto-lei n. 1.077,
sob o argumento de garantir a “proteção” da instituição familiar de “publicações
obscenas” realizadas por revistas, canais de televisão que: “executam programas
contrários à moral e aos bons costumes” e “livros que ofendem frontalmente a moral
comum”, pois conforme sua apreciação: “tais publicações e exteriorizações estimulam a
licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade
brasileira” assim como “o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano
subversivo que põe em risco a segurança nacional” (Fico, 2004, p. 390).
Sob este viés, a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) analisou diversos
trabalhos com rigoroso controle, procurando temas ligados às práticas comportamentais
ou morais e qualquer tipo de referência crítica à política.
A censura no âmbito da ditadura militar restringiu, desta forma, a liberdade de
imprensa. O general Médici advertiu que não seriam toleradas publicações contrárias ao
regime, à moral e aos bons costumes em qualquer meio de comunicação (MORAES,
1996, p. 113). Como exemplo da imposição ideológica e prática de censura, percebe-se
nas capas de alguns jornais do Rio, como Correio da Manhã e Diário de Notícias, a
introdução de espaços em branco – ou sua substituição por receitas de bolo, poemas de
Camões e anúncios com o título “Agora é samba” (SOUZA, 2010). O posicionamento
de jornalistas e chargistas, desta forma, era de cautela (GASPARI, 2003, pp. 150-152).
Henfil e a censura
Interrupções na publicação da revista Fradim, bem como a ausência dos Fradins em
certos números da revista se deve a uma postura de autocensura e autoregulação, o que,
segundo PIRES (2006, pp. 103-104), seria uma forma de evitar problemas.
“Meu plano agora é só trabalhar com liberdade de criação e por isso decidi fazer a revolução completa: paro também com a revista do Fradim a partir do número 6. Eu vinha fazendo a revista com tremenda auto-censura para evitar que recolhessem ela na banca e aí o Pasquim falisse junto” (SOUZA FILHO, 1980, p. 42).
“Estávamos todos perdidos, censura prévia vindo e aquela coisa... e ele era catártico!
Ele conseguia respirar e cantar em plena tempestade” (SOUZA, 1984, p. 38). Sem ter
como criticar o novo panorama político institucional,
“buscaram-se alternativas para, por um lado, confrontar as novas formas de repressão, voltando-se desta vez para aquelas que envolviam os costumes sociais, e, por outro, provocar um efeito catártico transformando-os numa forma de exorcização dos valores da classe média que apoiava o regime” (PIRES, 2006, p. 109).
Com a intervenção da censura, HENFIL (apud MORAES, 1996, p. 145) indica um
trabalho que exigia o triplo do esforço, pois sabia que o personagem seria reprimido e
não podia ter sua personalidade desenvolvida. “As idéias mais quentes chegam na
cabeça e depois fico horas matutando uma saída fraca e passável”. Nas tiras, contudo,
temos críticas diretas contra a censura prévia a livros, quando Bode Orelana devora
quilos de papel em protesto contra a censura prévia a livros.
Do número 1 da Revista Fradim, foram censuradas nove páginas. Contudo, a partir do
segundo número, a censura decidiu não mais fiscalizar previamente os originais da
revista, porém os censores advertiram à Editora Codecri que, ao menor abuso, a
publicação poderia ser retirada de circulação, o que, para Henfil, significava um regime
de “liberdade vigiada”, levando a uma auto-censura. Este regime de auto-censura
deixou Henfil em uma condição de desânimo criativo. “Não me dava nenhum prazer
fazer, pois o que eu conseguia era apenas repetir o que já tinha sido feito antes e na base
da água morna. Chega de brincar com minhas criações”. Assim a revista parou de ser
publicada no número 6, com a promessa de retornar quando houvesse maior liberdade
(MORAES, 1996, pp. 148-149).
Em 1973, a censura ainda era perceptível. Dos desenhos de Henfil enviados para o
Pasquim na época, metade eram censurados. Desta forma, ele enviava um número
dobrado de tiras.
Com a distensão gradual de Geisel e Golbery, Henfil reaparece com um Zeferino sem
censura no JB, criticas ferrenhas ao governo Geisel no Pasquim e o relançamento da
Revista Fradim em um novo formato horizontal, sugestão de Moacy CIRNE (apud
MORAES, 1996, pp. 212-213). Charges de Orelhão anteriormente censuradas também
foram publicadas nesta época. Durante a época de Geisel, Henfil tece críticas diretas às
contradições entre o discurso liberal e o autoritarismo nas “Cartas da mãe”, publicadas a
partir de 1977 na “Isto é”. Posteriormente, uma nova série de cartas foi publicada em
1978 no Jornal Última Hora, endereçadas desta vez ao presidente Figueiredo, a que ele
se referia como primo.
Análises da Revista Fradim
Os efeitos da censura se fazem presentes na Revista Fradim a princípio com o contraste
da primeira e segunda edições. Na segunda, versão com dimensão menor, não temos
mais os cortes originais de palavrões (Figura 1) e do famoso top-top do Baixim (Figura
2). Segundo SOUZA FILHO (1980b), eram tantos cortes que as hqs perdiam o sentido.
Nesta segunda edição, nota-se uma liberdade de expressão e ausência de censura bem
assumidas desde a capa (Figura 3). Na página 7 do Fradim #8, indica-se como, através
de brincadeiras, o Fradim consegue driblar a censura (Figura 4).
Figura 1- Fradim, Henfil, 1980. Fonte: Fradim #1, página 14
Figura 2- Fradim, Henfil, 1980. Fonte: Fradim #1, página 25.
Figura 3- Capa de Fradim #1, Henfil, 1980. Fonte: Fradim #1
Figura 4- Fradim e o diabo, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #8, página 7.
Na página 45 do número 11, Graúna diz ter ouvido no céu que a capital do Brasil era
Berlin em 1939. A indicação de Henfil que coloca Berlin como a capital do Brasil em
1939 se refere provavelmente à grande censura ideológica que houve na Alemanha na
época e se assemelhava à repressão que caracterizou a ditadura (Figura 5) (Carneiro,
1997, p. 29).
Figura 5- Queima de livros pelos nazistas na Praça da Ópera, Berlim, 1933.Fonte: Carneiro, 1997, p. 29
No número 1, também temos a exposição de um pensamento político com tendência socialista que já é bem explicitado nas tiras (Figura 6); a atenção para a importância da resolução dos problemas sociais (Figura 7); a crítica à hipocrisia dos costumes em detrimento de problemas sociais (Figura 8); e as representações irônicas das marchas a favor dos bons costumes (Figura 9).
Figura 6- Fradim, Henfil, 1980. Fonte: Fradim #1, página 19.
Figura 7- Fradim, Henfil, 1980. Fonte: Fradim #1, página 25
Figura 8- Fradim, Henfil, 1980. Fonte: Fradim #1, página 77.
Figura 9- Fradim, Henfil, 1980. Fonte: Fradim #1, página 105.
A partir do número 2 da Revista Fradim, em Zeferino, temos uma representação
reforçada das contradições do país. De um lado, o homem nordestino, afundado na seca,
e do outro a próspera classe média do sul-maravilha. Outras críticas veiculadas se
referiam à exploração dos trabalhadores rurais, o imposto de renda, a influência das
multinacionais, a programação da TV etc.
Críticas à caça aos comunistas começaram a ser proferidas nos quadrinhos dos Fradins,
com referência explícita ao Comitê de caça aos comunistas, o “Comitê de caça aos
carecas”, um comitê onde eram incluídas pessoas “alienadas, consumistas e de caráter
duvidoso”. Personagens subsequentes como o Tamanduá chupador de cérebros – chupa
os cérebros daqueles que não se opunham de alguma forma aos imperativos do governo
militar (Figura 10) – e o Cabôco mamadori, no contexto do Cemitério dos Mortos-
Vivos, publicados inicialmente no Pasquim, seguem a mesma linha de condenação e
crítica àqueles que, segundo Henfil, teriam um posicionamento político duvidoso
(PIRES, 2006, p. 98). Temos uma ausência de moderação do tom de suas falas ao
expressar a desconfiança “em relação aos discursos fechados e simbólicos das certezas,
verdades e palavras de ordem” (Hollanda apud PIRES, 2006, p. 99), posicionamento
característico da esquerda revolucionária, sobretudo do Partido Comunista.
Figura 10- Tamanduá chupador de cérebros, Henfil, 1973. Fonte: Fradim #2, página 20.
No Cemitério, Henfil enterrava “com sete palmos de desacato e desprezo”
personalidades que, segundo ele, simpatizavam com a ditadura ou eram politicamente
omissos, através da ação de um tamanduá que chupava “cérebros para revelar as faces
ocultas de pessoas que aceitam as condições políticas e culturais vigentes”. Das
personalidades incluídas na série, temos David Nasser, por sua retórica antiesquerda;
Sérgio Mendes, por sua americanização; Clarisse Linspector, por viver em “uma
redoma de Pequeno Príncipe, para ficar em um mundo de flores e de passarinhos,
enquanto Cristo era pregado na cruz”; Elis Regina, por ter cantado na Olimpíada do
Exército; e Nara Leão, por ter sido presidente do júri do Festival Internacional da
Canção, patrocinado pela TV Globo (MORAES, 1996, pp. 127-137). Para Zuenir
VENTURA (apud MORAES, 1996, p. 133), o Cemitério traduzia
“um desesperado, às vezes injusto e extremado gesto de conclamação à resistência democrática... Henfil tinha razão ao achar que vivíamos um período em que não dava para você ficar em cima ou atrás do muro. Era importante naquele processo de reconquista da democracia, a mobilização da sociedade civil e da intelectualidade”.
O Cemitério, segundo MORAES (1996, p. 134), embutia uma metáfora de que quem
não está lutando e resistindo está morrendo ou já morreu. A crítica ao conservadorismo
também foi proferida aqui (Figura 11).
Figura 11- Fradim, Henfil, 1973. Fonte: Fradim #2, página 19.
A crítica ao radicalismo da linha dura e à condenação do comunismo aparecem, por
outro lado, de forma direta nas tiras de Zeferinho publicadas no JB a partir de 1971 e no
Fradim #2. (Figura 12). Temos aqui, segundo MORAES (1996, p. 142), uma analogia
entre a resistência sertaneja e o processo de luta guerrilheira contra o regime militar. Na
tira, temos o povo em sua cruzada contra a supremacia dos latifundiários e Zeferino em
uma “missão sigilosa de denunciar as desventuras do povo da caatinga”, refletindo um
Brasil vitima de moléstias graves, em pleno milagre econômico. Apesar da intensa
intervenção dos censores, a tira obteve grande sucesso no Jornal do Brasil. Com
Zeferino, “aprendemos a inventar voltados para a saga da nossa miséria social” (CIRNE
apud MORAES, 1996, p. 145).
Figura 12- Zeferino, Henfil, 1973. Fonte: Fradim #2, página 36.
No Fradim #5, nas hqs de Zeferino, temos a presença da onça, personagem que atua de
forma semelhante aos militares da linha dura ou aos guerrilheiros de esquerda,
colocando bombas e realizando sequestros. Assim, questiona-se a posição política da
onça a partir da página 23 (Figura 13). No número 9, página 47 (Figura 14), a Graúna
sugere que a solução para a onça seria uma intervenção americana. No número 10,
página 16 (Figura 15), a onça confessa que fazia parte do comando de libertação do
quadrinho nacional e que confundiu a Graúna com o Mickey, personagem que ela devia
ter devorado, pois se tratava de um agente imperialista (Figura 16). Ao confessar seu
posicionamento e sua missão, tanto a onça, como o bode Orelana ficam desconfiados de
que o outro seria um agente da CIA. Na página 35, a onça define seu comando de
libertação como uma organização com tendências anarquistas, segundo ela a ideologia
do século XXI. Na mesma tira, Bode Orelana apresenta uma autocrítica onde se
esperava a ação da censura (Figura 17).
Figura 13- Zeferino, Henfil, 1973. Fonte: Fradim #5, página 24
Figura 14- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #9, página 47.
Figura 15- Onça, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #10, página 16.
Figura 16- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #10, página 33.
Figura 17- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #10, página 35.
Nas páginas 22 e 23 do Fradim #11, a onça é taxada como uma onça de esquerda
(Figura 18), o que Zeferino interpreta como fábula, quando “fauna e flora tomam um
conteúdo ideológico”. Contudo, a “fábula” não é totalmente explicada, pois os
personagens se impõe uma auto-censura (Figura 19). Na página 31, a onça erra mais
uma vez ao capturar o Tio Patinhas no lugar do Mickey. Porém, ela considera o erro
positivo, pois sua captura corresponderia à tomada do poder. Contudo, segundo ela, as
massas ainda não estavam mobilizadas (Figura 20). Na página 32, Tio Patinhas é
julgado. Fica exposta a relação do personagem com a fantasia infantil, porém associada
ao objetivo de embutir nas crianças a mentalidade da usura e do capitalismo desvairado.
“Morto o Tio Patinhas estará morta a fantasia” (Figura 21). Na página 35, os irmãos
metralha aparecem como testemunhas no julgamento. Figuram como explorados no
trabalho e caluniados pela mídia. Tio Patinhas é condenado pelo tribunal da caatinga a
distribuir sua fortuna por todos os irmãos metralhas do mundo (Figura 22). Na página
36, Tio Patinhas foge em direção ao leitor, para a preocupação dos personagens. Assim,
adverte-se que “se você sentir uma vontade irresistível de colecionar dinheiro... Procure
imediatamente a onça Glorinha” (Figura 23).
Figura 18- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #11, página 22.
Figura 19- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #11, página 23.
Figura 20- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #11, página 31.
Figura 21- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #11, página 32
Figura 22- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #11, página 35.
Figura 23- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #11, página 36.
Em Fradim 6, temos uma prática que marca grande parte da obra de Henfil: a crítica
onde se assume o posicionamento do conservadorismo e da ditadura, para que se possa
desmascará-los (Figura 24). Além disso, temos uma crítica direta de cunho marxista ao
sistema de ensino e mercado de trabalho (Figura 25)
Figura 24- Zeferino, Henfil, 1973. Fonte: Fradim #6, página 21.
Figura 25- Zeferino, Henfil, 1973. Fonte: Fradim #6, página 23.
A apresentação da Graúna como comunista ocorre na página 32 do Fradim #8 (Figura
26). Assume como se tivesse sido um pecado. Crítica aberta à ditadura é exposta no
número 10, em relação ao Chile (Figura 27). No número 11, ao chocar seu ovo, Graúna
confessa que quer que seu filho seja de esquerda e do túmulo, Graúna dá sugestões de
posicionamento contra o imperialismo ianque e incentivo ao posicionamento político da
classe trabalhadora (Figura 28). Em Fradim #8, o diabo aparece como a representação
do comunismo, que elogia as proposições marxistas (Figura 29).
Figura 26- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #8, página 32.
Figura 27- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #10, página 41.
Figura 28- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #10, página 46.
Figura 29- Fradim, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #8, página 4.
No número 14, a questão do comunismo passa a ser o foco das tiras do Fradim (páginas
1 a 10) (Figura 30). Fradim se apresenta como comunista, levando seus interlocutores a
um constrangimento e fazendo com que seja impetrado um distanciamento ideológico
através do afastamento físico, dedetização e lavagem das mãos após o contato.
Figura 30- Fradim, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #14, página 3.
No número 16, página 38, Bode Orelana chega à conclusão que a explosão de uma
bomba é uma ação da direita devido a força da explosão. Antes, ele estava na dúvida se
era um ataque da direita ou da esquerda (Figura 31).
Figura 31- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #16, página 38.
Em meio ao conflito armado, Bode Orelana em uma crítica auto-reflexiva acusa Henfil
de incentivar a reação popular espontânea (Fradim #16, página 45)(Figura 32) e na
página 47, Bode Orelana critica o uso da violência contra a violência e a falta de um
programa (Figura 33). Um programa é sugerido por Graúna na página 47: “Numa
primeira etapa, devemos nos dirigir para a despolarização dos componentes da infra-
estrutura industrialii em oposição à fragmentação... Assim, vencida esta etapa,
passaremos à reorganização dos parâmetros sociais” (Figura 34).
Figura 32- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #16, página 45.
Figura 33- Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #16, página 47.
Figura 34 Zeferino, Henfil, 1976. Fonte: Fradim #16, página 49.
Conclusão
À primeira vista, a prática comportamental no trabalho de Henfil pode parecer uma
anarquia desmedida e gratuita. Porém, com sua contextualização, nota-se uma
fundamentação direta em toda uma problemática decorrente da repressão e da censura
impetrados pela ditadura militar e por um posicionamento de contestação e rebeldia
contra este regime.
Seu trabalho se mostra eficiente na veiculação de tal posicionamento através de
brincadeiras e gags que, muitas vezes, se pautavam em uma dobra do poder a partir do
próprio, assumindo-o para depois contestá-lo e na condenação daqueles que davam
indícios de apoio ao regime militar.
A censura e sua distensão gradual refletiram no trabalho de Henfil, que passou de uma
postura de auto-censura a uma crítica direta e aberta, endereçada ao governo, à linha-
dura e ao próprio presidente. A Revista Fradim também reflete este processo com
grande número de páginas censuradas e sua posterior “liberdade vigiada”.
Com a Revista Fradim, ficam documentados também os principais problemas
característicos de sua época, como as contradições econômicas, o anticomunismo e o
radicalismo político da esquerda e da direita. Contudo, ao cobrar um posicionamento
político, nota-se que seu trabalho vai além do mero registro documental, servindo de
arma ideológica e crítica.
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SOUZA FILHO, Henrique de. Cartas, In: Revista Fradim #25, Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1980.
________________________. Revista Fradim #1. Segunda edição, Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1980b.
i ‘Cabôco Mamador’ realizava uma cerimônia de reencarnação dos mortos-vivos.ii Aqui, temos a sugestão de uma desestruturação do que MARX (apud ALTHUSSER, 1998, pp. 60-61) chama de base de uma superestrutura jurídica, política e ideológica, que é esta infraestrutura industrial, base econômica com sua unidade de forças produtivas e relações de produção.