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0 ELIANA COSTA DA CRUZ DE NEGREIROS MITOS E FORMAÇÃO CONTINUADA: OLHARES DE PROFESSORES SOBRE INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO NA DIMENSÃO ESTÉTICA DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2009

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0

ELIANA COSTA DA CRUZ DE NEGREIROS

MITOS E FORMAÇÃO CONTINUADA: OLHARES DE PROFESSORES SOBRE

INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO

NA DIMENSÃO ESTÉTICA DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO

SÃO PAULO

2009

1

ELIANA COSTA DA CRUZ DE NEGREIROS

MITOS E FORMAÇÃO CONTINUADA: OLHARES DE PROFESSORES SOBRE

INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO

NA DIMENSÃO ESTÉTICA DA EDUCAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Educação da Universidade

Cidade de São Paulo, como exigência

parcial para a obtenção do título de Mestre

em Educação, sob a orientação da Profª.

Drª. Margaréte May Berkenbrock Rosito.

UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO

SÃO PAULO

2009

2

Ficha Elaborada pela Biblioteca Prof. Lúcio de Souza. UNICID

N385m

Negreiros, Eliana Costa da Cruz de. Mitos e formação continuada: olhares de professores sobre interdisciplinaridade e contextualização na dimensão estética da educação. / Eliana Costa da Cruz de Negreiros. --- São Paulo, 2009. 130 p.; anexos. Bibliografia Dissertação (Mestrado) – Universidade Cidade de São Paulo - Orientadora: Profª. Dra. Margaréte May Berkenbrock Rosito. 1. Formação continuada de professores. 2. Interdisciplinaridade. 3. Ensino médio. 4. Políticas públicas em educação. 5. História de vida - professores I. Rosito, Margaréte May. Berkenbrock II. Título.

371.12

3

____________________________________

____________________________________

____________________________________

COMISSÃO JULGADORA

4

Dedico este trabalho

À memória de meu pai e de minha mãe.

Ao meu marido Roberto e meu filho Fábio,

que, com paciência e amor, sempre me

apoiaram e acreditaram em mim.

À minha avó Lydia, que, aos oitenta e oito

anos, nos presenteia com lições de

coragem e persistência.

A todos os meus familiares e amigos.

5

AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Margaréte May Berkenbrock Rosito, orientadora desta

pesquisa, que com muita competência e afeto ajudou-me a trilhar o caminho da

investigação e do conhecimento e a desvelar a formação continuada na perspectiva

(auto) biográfica.

Ao Doutor Julio Gomes Almeida e ao Doutor Marcos Ferreira Santos,

membros da banca examinadora, pela atenção devotada a este trabalho.

Aos professores do Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São

Paulo, que me auxiliaram no percurso da construção e desenvolvimento desta

pesquisa.

Ao Governo do Estado de São Paulo, pela concessão da Bolsa Mestrado,

motivadora para novos estudos e descobertas em prol da escola pública paulista.

A todos os colegas Supervisores de Ensino da Diretoria de Ensino Leste 5,

nos quais me espelhei para construir os referenciais do exercício da profissão.

Dentre eles, destaco a presença da Supervisora de Ensino Maria Clara Paes Tobo,

pela amizade construída tão recentemente, porém de imenso valor e reciprocidade.

Aos amigos mestrandos, pelos momentos de convivência e pela amizade

cultivada.

Ao colega Oswaldo Marques, incentivador de meu percurso enquanto

pesquisadora.

A minha querida amiga Ivany Theodósio Lerco Flygare, pela união em nossa

trajetória enquanto professora/mãe, diretora de escola/supervisora e

supervisora/supervisora. Neste Programa de Mestrado nos reencontramos como

colegas, percorrendo nossos caminhos com esforço e ajuda mútua.

A minha querida amiga Sonia Maria Brancaglion, também colega na trajetória

do Programa de Mestrado em Educação, pelo entusiasmo demonstrado desde o

processo seletivo até a conclusão do curso.

À Professora Alice do Céu Miguel Pereira, Diretora da E.E. “Loureiro Junior”,

pela autorização concedida para realização da pesquisa.

Às professoras Mirian Strutz e Tereza Telles pela gentil colaboração na

revisão deste trabalho e à professora Talita Rodrigues pela tradução do texto.

6

RESUMO

Este estudo apresenta como objeto de pesquisa a formação continuada de

professores e teve como objetivos identificar e estudar os olhares dos professores

do Ensino Médio sobre os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização,

tendo como referência os conceitos trazidos pelo Programa “Ensino Médio em

Rede”, desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo nos

anos de 2004 a 2006. A revisão teórica sobre o tema tratado incluiu o estudo das

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, promulgadas no ano de

1998. Para alcançar os objetivos do trabalho foi realizada uma pesquisa qualitativa,

acompanhada da realização de entrevistas narrativas com 05 (cinco) professores

que atuaram em 2008, no segmento do Ensino Médio, na Escola Estadual

“Professor Loureiro Júnior”. A partir do referencial de Lenoir (2007), Fazenda (2002),

Josso (2004), Ferreira-Santos (2008), Brandão (1986) e Freire (1992) investigamos

e analisamos os aspectos necessários sobre formação continuada, com particular

atenção ao pressuposto que, na escola, tal formação necessita ter como eixo

norteador o compromisso de olhar o passado e os saberes presentes nas histórias

de vida dos docentes, permitindo aos mesmos a reflexão e compreensão dos

resultados que suas ações produzem, enquanto sujeitos em sua singularidade. A

investigação buscou elementos para compreender as concepções dos professores

de Ensino Médio da rede pública estadual sobre os conceitos “interdisciplinaridade”

e “contextualização” e a relação entre a elaboração pessoal de tais conceitos com

suas histórias de vida, o que implicou na assunção de uma abordagem

mitohermenêutica, pela qual não se pretendeu a busca de uma verdade ou de

informações específicas, mas a construção de sentidos, a partir de inferências. A

análise privilegiou os mitos pessoais que emergiram nas narrativas dos sujeitos. Os

resultados das análises foram muito reveladores e apontaram um considerável

distanciamento entre o proposto no Programa “Ensino Médio em Rede”, como

política pública de formação de professores, e o que foi, de fato, compreendido

pelos professores, assinalando a necessidade de políticas educacionais

considerarem, no processo de formação de professores, a dimensão estética e a

sensibilidade, advindas das narrativas (auto) biográficas.

Palavras-chave: Ensino Médio, Histórias de Vida, Mitohermenêutica, Formação

Estética

7

ABSTRACT

This study represents as a research topic the teachers´ continued formation and had

as objective to identify and to study the high school teacher´s views about the

concept of interdisciplinary and contextualization, keeping like reference the concepts

brought by High School in Network - “Ensino Médio em Rede”- , developed by São

Paulo State Educational Department – Secretaria da Educação do Estado se São

Paulo - between 2004 and 2006. The theoretical review about the subject showed

included the study of High School National Curricular Guidelines, promulgated in the

year of 1998. To achieve the objectives of this research was realized a qualitative

research, with narrative interviews questioning 05 (five) teachers who taught in 2008,

in the High School segment, at “Teacher Loureiro Junior Public School”. From the

theoretical reference of Lenoir (2007), Fazenda (2002), Josso (2004), Ferreira-

Santos (2008), Brandão (1986) e Freire (1992) we investigated and analyzed the

necessary aspect about continued formation, with special attention to the assumption

that, in the school, such training needs to have as a guiding line the appointment of

to take a look at the past and look at the knowledge present in the teachers´ life

history, allowing the action produced by the results reflection and comprehension, as

subjects in your singularity. The research sought elements to understand the high

school teachers‟ conceptions (public school) about concepts “interdisciplinary” and

“contextualization” and the relation between the personal developments of such

concepts with the life story, which led an assumption of a mitohermenêutica

approach, for which not intended to search the truth or specific information, but the

meaning construction, from inferences. The analysis favored the personal myths that

emerge in the narratives of the person. The analysis results were really revealing and

mentioned a considerable distance between witch is proposed by “High School in

Network - “Ensino Médio em Rede”- , like public policies of teachers´ training, and

what was, in fact, understood by teachers, noting the need of educational policies

consider, in the teachers´ formation process, the esthetics dimension and the

sensitivity, obtained from the (self) biographical narratives.

Key words: high school, life stories, myth-hermeneutic, esthetics formation

8

SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS

10

LISTA DE TABELAS 11

INTRODUÇÃO

APRESENTAÇÃO............................................................................................

12

1 O MITO, A MEMÓRIA E O CONHECIMENTO

20

1.1 Vivências pessoais e a pesquisa 22

1.2 Resgatando a história de vida do sujeito pesquisador 24

1.3 Sistematizando a história de vida: a tecedura da Colcha de Retalhos 34

1.4 Minha história de vida: o olho e a mão, uma construção de sensibilidade

37

1.5 O olhar e as mãos : ver e agir 42

2 FORMAÇÃO CONTINUADA E ENSINO MÉDIO NA CONTEMPORANEIDADE: 44

APÓIO TEÓRICO

2.1 – Palas Atená, saber e formação 44

2.2 – Cenários da Educação contemporânea

52

2.2.1- O Ensino Médio na contemporaneidade 55

2.2.2 – Princípios de Interdisciplinaridade e Contextualização na legislação 58

educacional: as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

2.2.3 – Desafios dos profissionais da educação frente ao “novo” Ensino Médio 61

2.3 – Cenários da Educação no Brasil: o Programa “Ensino Médio em Rede” 63

2.4 – Interdisciplinaridade e Contextualização: olhares teóricos 70

3 MITOS E NARRATIVAS (AUTO) BIOGRÁFICAS: A DIMENSÃO 76

ESTÉTICA NA CONSTRUÇÃO DE OLHARES DOS PROFESSORES

DE ENSINO MÉDIO SOBRE INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO

3.1 Um olhar sobre a escola pública na metrópole 76

3.2 Um olhar sobre os Olhares Mitológicos de professores 80

3.2.1 Ana, o mito de Eco e Narciso 82

3.2.2 Lílian, o mito de Ártemis 88

3.2.3 Renata, o mito do canto das sereias 95

3.2.4 Gabriel, o mito de Hermes

99

3.2.5 Silvia, o mito de Jurupari

105

3.2.6 Encontros estéticos mediados por Suely, o mito de Hersília

112

9

CONSIDERAÇÕES FINAIS

117

REFERÊNCIAS 121

ANEXOS 130

1. Roteiro de Entrevista 130

1.1 – Anexo I 131

1.2 – Anexo II 132

1.3 – Anexo III 133

1.4 – Anexo IV 134

1.5 – Anexo V 135

2. Transcrições das Entrevistas Narrativas

136

2.1 – Professora Ana 136

2.2 – Professora Lílian 139

2.3 – Professora Renata 144

2.4 – Professor Gabriel 147

2.5 – Professora Silvia 151

10

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Linha do Tempo ............................................................................... 35

Figura 2 – Meu Retalho .................................................................................. 37

11

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Número de escolas por segmento de ensino................................... 77

Tabela 2 – Características dos participantes...................................................... 80

12

INTRODUÇÃO

Neste estudo, focalizam-se os olhares de professores de Ensino Médio sobre

a formação continuada, a partir da compreensão dos conceitos dos termos

“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”. As referências são os conceitos trazidos

pela formação continuada desenvolvida pela Secretaria de Estado da Educação de

São Paulo, denominada Programa “Ensino Médio em Rede”, que ocorreu durante os

anos de 2004 a 2006.

Os objetivos, neste trabalho, são: a identificação das diferentes visões

apresentadas por professores do Ensino Médio, sobre os conceitos de

“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”; a compreensão da análise da relação

existente entre esses olhares e a trajetória vivida; o entendimento dos mitos

pessoais que emergem das narrativas (auto) biográficas, na participação em ações

de formação continuada.

A justificativa para a escolha do tema desta pesquisa está atrelada à

experiência vivida da pesquisadora que, na sua atuação como gestora escolar e,

posteriormente, Supervisora de Ensino, constatou dificuldades na percepção, por

parte dos professores, das evidências dessa efetiva reforma do “novo” Ensino

Médio, principalmente, quando relacionadas à prática docente em sala de aula.

A atuação da autora do trabalho, como supervisora, junto à Diretoria Leste 5,

contribuiu para a decisão de que o desenvolvimento da pesquisa dar-se-ia com os

professores que atuam no ensino regular de uma das escolas públicas estaduais

paulistas, jurisdicionadas à D.E. Leste 5, portanto, a escolha recaiu sobre a Escola

Estadual “Professor Loureiro Júnior”, pertencente à rede pública paulista.

O problema de pesquisa proposto foi: a indagação sobre a existência de

sentido, na formação continuada, considerando a visão que se tem sobre os

conceitos de “Interdisciplinaridade” e “Contextualização”. Esta indagação envolveu

professores da rede pública estadual paulista, participantes ou não do Programa de

Formação Continuada desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação de São

Paulo, denominado Programa “Ensino Médio em Rede”. O programa ocorreu

durante os anos de 2004 a 2006 e dos cinco professores entrevistados, três deles

participaram do Programa “Ensino Médio em Rede”. Todos atuavam no ano de 2008

no segmento de Ensino Médio da E.E. “Professor Loureiro Júnior”.

Para alcançar os objetivos do trabalho realizou-se uma pesquisa qualitativa,

visando à interpretação dos significados explícitos ou implícitos da legislação o que

13

implicou a assunção de uma abordagem hermenêutica, pela qual não se pretendeu

a busca de verdades ou de informações específicas do texto, mas a construção de

sentidos, a partir de inferências.

A pesquisa consistiu em trazer à tona as concepções dos cinco professores

que atuam no Ensino Médio da E.E. “Professor Loureiro Júnior”.

A referência teórica que embasou os conceitos de “Interdisciplinaridade” e de

“Contextualização” adveio do estudo das Diretrizes Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio, promulgadas por meio do Parecer CNE/CEB nº. 15/98.

Considerou-se o pressuposto de que a concretização da reforma do Ensino

Médio exige como requisitos, para sua total realização, a revisão curricular e a

reconstrução da identidade das escolas (entendidas como espaços coletivos de

construção de propostas pedagógicas que pressupõem a formação em serviço).

Questões norteadoras propiciaram a emergência do estudo do tema da

pesquisa, entre elas, como estruturar uma escola capaz de atender às demandas da

sociedade e aos princípios legalmente instituídos e como vencer dificuldades e

desafios enfrentados pelas escolas, na concretização da nova concepção curricular

do Ensino Médio, proposta pelas Diretrizes Curriculares Nacionais.

Dentre as áreas de conhecimento que compõem o currículo dos cursos de

Ensino Médio, optou-se por investigar os olhares dos cinco professores, cuja

participação foi autorizada pela Diretora da escola, que atuam na área de

Linguagens e Códigos e suas Tecnologias – LCT, ministrando aulas nas disciplinas

de Português, Inglês e Educação Artística. Esta escolha se deve ao fato de que a

educação estética perpassa estas áreas do saber, em especial nas expressões

artísticas e poéticas, expressões da razão sensível.

O Plano de Gestão Quadrienal (Anos Base 2006-2009), os Anexos 2008 ao

Plano de Gestão Quadrienal e o Quadro Escolar /2008 (Q.E.) foram os documentos

oficiais utilizados para a coleta de dados sobre a E.E “Professor Loureiro Junior”.

Pretendeu-se identificar, na pesquisa realizada:

- as concepções dos professores de Ensino Médio da rede pública estadual

(Diretoria de Ensino Leste 5) sobre os conceitos “Interdisciplinaridade” e

“Contextualização”;

- a relação entre a elaboração pessoal de tais conceitos com suas histórias de vida,

extraindo o mito pessoal de cada sujeito entrevistado.

14

- as experiências que esses professores tiveram (em sua vida pessoal, nos

momentos de formação continuada e na sua trajetória profissional), relacionadas a

possíveis práticas interdisciplinares;

- as condições tidas como necessárias para o desenvolvimento de práticas

interdisciplinares, na visão dos professores.

A hipótese da pesquisa desenvolvida apóia-se na premissa de que os

professores que atuam no segmento do Ensino Médio da rede pública paulista não

têm clareza dos conceitos de “Interdisciplinaridade” e “Contextualização”, uma vez

que a construção de tais conceitos demanda uma ação de formação contínua que

possibilite a reflexão sobre esses temas, a qual não foi disponibilizada a todos os

professores da rede.

Os procedimentos propostos para a realização do trabalho foram vários. O

primeiro contato foi realizado com a Diretora da escola, para apresentação dos

objetivos da pesquisa e obtenção de permissão para entrada na Unidade Escolar e

realização das entrevistas.

Com a autorização da Direção, foi coletado o documento de autorização que,

após assinado, foi encaminhado ao Comitê de Ética da Universidade Cidade de São

Paulo para formalização da pesquisa.

As entrevistas junto aos professores da Escola Estadual “Professor Loureiro

Junior” ocorreram durante o mês de novembro de 2008.

Foi estabelecido um contato junto à Direção da escola, para agendamento da

data propícia à realização das entrevistas, objetivando não alterar drasticamente a

rotina da escola, sendo disponibilizado à pesquisadora o espaço da biblioteca

escolar.

Para a realização das entrevistas foram utilizados os seguintes materiais: um

gravador, o termo de consentimento dos sujeitos envolvidos e o roteiro de

entrevistas (Anexos I a V).

Durante a realização da entrevista, o espaço escolhido não foi utilizado pela

comunidade escolar, ocorrendo, portanto, a realização da coleta de dados sem

interferências do ambiente. Foram realizadas entrevistas individuais, sem limite de

tempo pré-estabelecido. As falas individuais foram gravadas e transcritas,

constituindo-se como a base da produção de informações para esta pesquisa.

Na apresentação aos professores, foram prestados esclarecimentos sobre os

objetivos da pesquisa, sua intencionalidade e sua relação com a história de vida da

pesquisadora.

15

Os professores envolvidos, após a apresentação formal da pesquisa, foram

estimulados a falarem sobre si: seu nome, sua formação inicial, a disciplina que

lecionam, há quanto tempo trabalham como docentes da rede pública paulista. Com

a intenção de identificar os professores participantes e preservar sua identidade,

foram designados nomes fictícios a cada um deles.

Sobre os métodos e o material do trabalho, enfatiza-se que, para o alcance dos

objetivos desta pesquisa, o procedimento planejado foi fundamental. Lênin (apud

MINAYO, 2004, p.22) enfatiza que o método é a alma da teoria pelo qual se constrói

o conhecimento científico. Minayo (2004, p. 22) ressalta que a metodologia é o

“caminho e o instrumental próprios de abordagem da realidade”.

Partimos do pressuposto de que uma das formas de compreender a percepção

do professor sobre a sua experiência é por meio de narrativas (auto) biográficas,

desenvolvidas a partir das histórias de vida, onde o sujeito realiza uma reflexão do

seu percurso formativo, buscando o autoconhecimento. Este pode levar à mudança

de quadros de referência e pode proporcionar o aperfeiçoamento da formação e da

prática do professor.

Na pesquisa, foi adotada a abordagem (auto) biográfica, na perspectiva de

Dominicé (2006), Pineau (1988; 2006) e Josso (2004). Na perspectiva de Josso

(2004), focaliza-se o paradigma experiencial da história de vida, na formação de

professores, como aproximações epistemológicas, teóricas e metodológicas da

pesquisa. A originalidade da metodologia de pesquisa-formação, em história de vida,

está na constante preocupação de que os autores dos relatos cheguem a uma

produção de conhecimento que faça sentido para eles, que se engajem, eles

próprios, num projeto de conhecimento que os institua como sujeitos.

O procedimento de história de vida proposto por Josso (2007) implica na

produção de relatos de vida centrados na reconstrução da história da formação de

alguém. É uma abordagem que alterna tempos de trabalho individual e tempos de

trabalho em grupo, articulados a uma leitura de relatos com olhares cruzados. A

construção da narrativa de formação, para Josso (2004), exige do aprendente uma

atividade psicossomática, pois pressupõe a narração de si mesmo, questionando as

suas identidades, a partir de vários níveis de atividades e de registros, sob o ângulo

da sua formação, por meio do recurso das recordações-referências, que balizam a

duração de uma vida. Por outro lado, a escuta das narrativas e o trabalho

cointerpretativo sobre os processos de formação exigem capacidades de

compreensão e de uso de referenciais de interpretação.

16

Segundo Josso (2004, p. 73), para que a pesquisa progrida, não basta que os

sujeitos discutam as suas opiniões momentâneas, como lhes é pedido que façam

numa entrevista. É ainda necessário que eles possam classificar as experiências (as

quais submetem os seus pontos de vista) e que sejam capazes de dar conta do seu

processo reflexivo sobre estas experiências. As narrativas, orais ou escritas, tentam

abarcar a globalidade da vida, tanto nos seus diversos aspectos como na sua

duração. Na maior parte das vezes, a história produzida pela narrativa limita-se a

uma abertura que visa fornecer material útil para um projeto específico.

Partindo inicialmente de uma pesquisa teórica, foram elaborados instrumentos

de coleta de dados, com a finalidade de identificar, como objetivo específico, as

concepções dos professores de Ensino Médio da rede pública estadual (Diretoria de

Ensino Leste 5) sobre os temas “Interdisciplinaridade” e “Contextualização”.

A investigação buscou elementos para compreender, não somente como os

professores apropriaram-se dos conceitos de “Interdisciplinaridade” e

“Contextualização”, mas também de que forma esses conceitos fazem parte de sua

formação docente (e de sua história de vida) e de que maneira, na concepção dos

professores, a formação e a trajetória vivida aparecem articuladas com o

aperfeiçoamento de suas práticas educativas.

A entrevista narrativa foi o procedimento utilizado para a coleta de dados,

adequado à pesquisa na abordagem (auto) biográfica. Classificada como método de

pesquisa qualitativa, busca elementos de análise nas histórias e narração de

acontecimentos informados pelos entrevistados acerca do campo de estudo.

A utilização da entrevista narrativa teve como o objetivo a produção de

histórias, com a finalidade de entender a natureza fundamental do mundo social, ao

nível da experiência subjetiva, dentro do seu ambiente natural, sem a precisão e a

frieza dos dados estatísticos, que são pouco significativos neste contexto.

Nesse sentido, a entrevista narrativa é adequada para estudos que buscam a

compreensão do percurso (auto) formativo, por meio do método da história de vida.

A entrevista narrativa rompe com o modelo de entrevista pergunta-resposta e propõe

a entrevista não estruturada.

O estudo de narrativas conquistou uma nova importância nos últimos anos.

Este renovado interesse em um tópico antigo–interesses com narrativas e

narratividade têm suas origens na Poética de Aristóteles, está relacionada

com a crescente consciência do papel que o contar histórias desempenha

na conformação de fenômenos sociais. No despertar desta nova

17

consciência, as narrativas se tornaram um método de pesquisa muito

difundido nas Ciências Sociais. A discussão sobre narrativas vai, contudo,

muito além de seu emprego como método de investigação. A narrativa

como uma forma discursiva, narrativas como história, e narrativas como

histórias de vida e histórias societais, foram abordadas por teóricos culturais

e literários, lingüistas, filósofos da história, psicólogos e antropólogos

(JOVCHELOVITCH & BAUER, 2002, p. 90).

Para tanto, a construção das questões que estruturaram a entrevista narrativa

realizada tomou como referência as seguintes fases, apoiadas na perspectiva de

Jovchelovitch e Bauer (Fases de desenvolvimento da entrevista narrativa):

Preparação - exploração do campo, Iniciação- formulação do tópico inicial para

narração; Narração Central - narração livre por parte dos sujeitos envolvidos; Fase

de perguntas - questões desencadeadoras pelo entrevistador; Fala conclusiva -

questões de elucidação pelo entrevistador.

O enfoque de análise, a partir dos dados coletados, pautado no referencial

mitohermenêutico, na perspectiva de Ferreira-Santos (2004, p. 05), configurou-se

como exercício de interpretação simbólica a partir de narrativas míticas que

possibilitariam construir sentidos para a existência humana e para o desvelamento

dos olhares dos professores de Ensino Médio sobre os conceitos de

“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”.

Neste estudo, a perspectiva mitohermenêutica teve a finalidade de

compreender os sentidos e significados que são atribuídos pelos sujeitos-

educadores a respeito de seu processo (auto) formativo, se de autoria ou de

submissão, através do mito pessoal que fosse capaz de articular a ancestralidade

com o vivido, na contemporaneidade, e em busca de sentidos da estética para a

existência humana.

Por meio das narrativas coletadas, foram interpretados os olhares dos

professores do Ensino Médio frente ao desafio contemporâneo do desenvolvimento

de práticas interdisciplinares e contextualizadas, verificando os mitos pessoais que

emergiram no discurso dos sujeitos escolhidos, analisando-os em sua dimensão

(auto) biográfica e estética. Com base na perspectiva de Ferreira-Santos (2008), o

propósito reside na percepção da narrativa mítica presente nas narrativas dos

professores entrevistados.

O enfoque da análise dos dados teve, também, a conotação antropológica-

educacional, na perspectiva de Freire. Tal determinação de enfoque se aplica ao

18

tema deste estudo, como objeto material, na compreensão dos olhares dos

professores da rede estadual sobre “Contextualização” e “Interdisciplinaridade” por

meio da entrevista narrativa.

Na busca de mitos pessoais que emergiram das narrativas coletadas, partiu-se

da perspeciva de lidar com os professores em sua inteireza. Tal opção justifica-se

pelo fato de que mitos pessoais são recorrências da própria pessoa e que, ao

decidir por trilhar o caminho da análise mitohermenêutica, a eleição de um único

mito geral e comum a todos os participantes não poderia ser considerada, sob risco

de perda das características singulares e pessoais dos participantes.

A análise dos dados objetivou o resgate do percurso (auto) formativo dos

educadores, a consciência das influências de seus formadores em suas práticas e a

percepção de momentos sensíveis na trajetória pessoal e profissional. Assim,

aponta-se que, no espaço de formação continuada dos sujeitos, a abertura para a

narrativa (auto) biográfica aparece como um caminho que poderá levar à mudança

de quadros de referência e proporcionar melhoria à formação e à prática do

educador.

Em se tratando do aspecto educacional, o estudo realizado possui relevância

considerável, haja vista que muito se proclama sobre a necessidade de se acentuar,

na formação continuada de professores e na prática pedagógica, o rompimento dos

paradigmas sobre um modelo de currículo com um elenco prescritivo e conteudista

de disciplinas. A organização das disciplinas em áreas tem como base a reunião de

conhecimentos que compartilham objetos de estudo e, portanto, mais facilmente, se

comunicam, criando condições para que a prática escolar se desenvolva numa

perspectiva de interdisciplinaridade e de uma aprendizagem significativa, para a

superação de uma compreensão fragmentada da realidade.

Do ponto de vista pessoal, a presente pesquisa vem ao encontro dos desafios

vivenciados na trajetória profissional, como Supervisora de Ensino da Rede Pública

Estadual de São Paulo. Por meio da retomada da história de vida, surge o

nascedouro do problema de pesquisa e o seu significado, perante anseios pessoais.

Quanto ao alcance social, ressalta-se a demanda da sociedade por uma

escola pública que atenda às suas finalidades educacionais. O debate da nova

formulação curricular do Ensino Médio, atrelado à formação continuada dos

professores e à rediscussão das propostas pedagógicas, apresenta-se como

caminho para um ensino de maior qualidade e de uma escola muito mais equitativa.

19

A presente pesquisa ancora-se na análise de documentos legais referentes ao

Ensino Médio, identificando as formas de apresentação dos conceitos de

“Interdisciplinaridade” e de “Contextualização”, objetivando analisar o relato oral de

professores sobre seu olhar acerca destes conceitos, por meio das narrativas

coletadas. Estabelecem-se relações entre formação, aprendizagem e histórias de

vida, à luz de interpretações mitohermenêuticas. Os conceitos de

“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”, presentes nas narrativas coletadas,

aparecem relacionados à mitologia, bem como à formação, aprendizagens e

histórias de vida, com o objetivo de contribuir para estudos na área da educação,

voltados a repensar a formação continuada de professores.

No capítulo 1, destacam-se as vivências pessoais da pesquisadora, as quais

desencadearam a formulação de uma pesquisa que buscou investigar o problema

identificado.

No capítulo 2, apresenta-se a revisão bibliográfica sobre o tema “Formação

Continuada” e sobre o Programa “Ensino Médio em Rede”, prática de formação

continuada destinada aos professores de Ensino Médio da rede pública do Estado

de São Paulo. São oferecidos, também, os referenciais teóricos e legais dos termos

“Interdisciplinaridade” e “Contextualização”.

No capítulo 3, descreve-se o cenário da pesquisa e os sujeitos envolvidos,

bem como o procedimento de coleta de dados. Os sujeitos envolvidos são

apresentados, neste mesmo capítulo, com descrição sucinta de suas principais

características (formação inicial, tempo de magistério, cursos realizados), bem como

a síntese das falas obtidas por meio das entrevistas realizadas, de acordo com o

roteiro de entrevista anexo. Foram analisados os relatos orais dos professores,

obtidos por meio da realização de entrevistas narrativas. O suporte teórico ancorou-

se na perspectiva da mitohermenêutica, relacionando as falas dos professores à

pesquisa desenvolvida sobre os diferentes olhares, em busca do sentido de uma

formação estética de professores.

20

1 O MITO, A MEMÓRIA E O CONHECIMENTO

Irmã de Cronos e de Okeanós, Mnemósina é a deusa titã, protetora dos

poetas. Eleita senhora do tempo, a memória constituía, entre o povo grego, a chave

de todo conhecimento e fonte da humanização. Possuído por Mnemósina, o poeta

descrevia a sociedade grega, recitando a genealogia dos deuses e dos homens.

Zeus e Mnemósina foram pais das nove Musas.

MNEMÓSINA, em grego MnηoσÚnη (Mnemosýne), prende-se ao verbo

μιμnÇsχein (mimnéskein) "lembrar-se de", donde Mnemósina é a

personificação da Memória. Amada por Zeus foi mãe das nove Musas

(BRANDÃO, 1986, p. 202).

De acordo com Brandão (1986, p. 203), após a derrota dos Titãs, os deuses

pediram a Zeus que criasse divindades capazes de cantar a grande vitória dos

Olímpicos. Então, Zeus partilhou o leito de Mnemósina durante nove noites

consecutivas e, no tempo devido, nasceram as nove Musas, cantoras divinas, cujos

coros e hinos alegram o coração de Zeus e de todos os Imortais.

A cada uma das nove filhas, foi destinado um ramo da Literatura, das Ciências

e das Artes: Calíope, deusa da poesia épica; Clio, musa da história; Euterpe, da

poesia lírica; Melpômene, da tragédia; Terpsícore, deusa do canto e da dança;

Érato, da poesia amorosa; Polímnia, musa da poesia sacra; Urânia, deusa da

astronomia; e por fim Tália, musa da comédia. Cada musa tinha como função

principal presidir o pensamento, sob todas as suas formas: sabedoria, eloqüência,

persuasão, história, matemática, astronomia.

O objeto investigado consistiu em relacionar vivências pessoais, exercício

contínuo de resgate de memórias, muitas vezes escondidas ou, até mesmo, já

esquecidas. É um exercício semelhante ao ato de garimpar anos vividos, ao ato de

encontrar pequenas peças originárias, até nos primórdios da vivência humana e uni-

las, de forma a atribuir sentido a um mosaico de experiências vividas, penetrando

numa região, na perspectiva de Ferreira-Santos (2001), "onde o sol nascente se

dissolve por inteiro na bruma infinita", em que um regime crepuscular de imagens

une a memória, o re-ligare e a esperança de um futuro na necessidade teanthrópica

da criação ; pois “o homem é, fundamentalmente, um esquecedor: daí a

necessidade das filhas de Mnemosyne para lembrá-lo: as musas”(ibidem, 2001).

21

O exercício de reflexão e escrita de minha história de vida possibilitou-me o

contato com a inteireza e beleza de meu viver, num diálogo com as musas, filhas de

Mnemosyne, que habitaram toda minha biografia e me fizeram lembrar o que foi, o

que é e, numa visão prospectiva, o que será essencial, num verdadeiro ensaio

estético.

[...] a noção de mito com a que trabalhamos é a de que se trata de uma

narrativa dinâmica de imagens e símbolos que articula o passado ancestral

ao presente vivido e abre possibilidades ao devir. Nesse sentido, mais

revela que compreende. Mais auxilia a compreensão do que explica [...]

(FERREIRA-SANTOS, 2008, p. 05).

A compreensão do mito, como narrativa da saga humana, articula o passado

ancestral com o presente, vislumbrando o futuro. Desse modo, a presença do mito,

como narrativa, encontra seu pressuposto na antropologia-filosófica: a compreensão

daquilo que não é possível explicar, mas é possível compreender os significados

que são atribuídos pelos sujeitos.

Para Cassirer (2005) o mito tem o mesmo estatuto epistemológico que as

Ciências, a religião, a arte – todas são linguagens simbólicas que o ser humano

dispõe para fazer avançar o conhecimento. Para evitar o questionamento sobre a

abordagem (auto) biográfica desta pesquisa, recomenda Comte: “Conhece a

História” (In: CASSIRER, 2005, p.115). E Cassirer (2005) acrescenta “Conhece-te a

ti mesmo para conhecer a história. O sentido precede o problema de

desenvolvimento histórico. Por outro lado, todas as obras humanas surgem em

condições históricas e sociais determinadas” (ibidem, 2005).

Ferreira-Santos (2008) cita Joseph Campbell, que esclarece que o mito se

estrutura em três fases, identificadas como “a saga do herói”: a partida (um fato

extraordinário provoca a partida), a realização (a conquista que pode ser de ordem

física ou espiritual) e o retorno (voltar à aldeia com o prêmio da conquista). O autor,

ao resgatar a história dos sujeitos que deram estatuto epistemológico ao mito,

relaciona à concepção de educação que envolve o “rito de iniciação”, no

desenvolvimento humano, e se articula aos processos simbólicos mais profundos da

arqueo-memória humana e de nossa paleo-psiquê, traduzidos na existência humana

e presentes, nas narrativas míticas.

A perspectiva da mitohermenêutica da História de Vida corresponde ao

movimento de penetrar nos subterrâneos da memória, não para explicar como essa

22

memória ainda atua no presente, mas com o intuito de compreender que os sentidos

e significados estão enraizados na memória de ser humano. O mito é uma narrativa

de modelo de compreensão do ser humano. Essa abordagem é importante para

mergulharmos em outras dimensões da formação, aprendizagem e do ser sujeito.

A amarração com o percurso (auto) formativo consiste em trazer à tona o rito

de iniciação que foi sucumbido na cultura ocidental moderna e provocou o

distanciamento do projeto de vida dos sujeitos e do conhecimento. O conhecimento

científico torna-se hegemônico e transforma o conteúdo das histórias de vida dos

sujeitos em senso comum, ignorando suas trajetórias, seus aprendizados, sua visão

do mundo, da vida, sua sensibilidade.

1.1 Vivências pessoais e a pesquisa

A escolha pelo Programa “Ensino Médio em Rede”, como referência de análise

neste trabalho acadêmico, está atrelada à minha história de vida. O início do curso,

em que participei como Supervisora de Ensino, coincidiu também com o início de

minha atuação nessa função.

O contato com o curso de Ensino Médio, em minha trajetória profissional,

ocorreu dois anos antes: quando assumi o cargo de Diretora de Escola, modificando

o rumo de minha vivência enquanto educadora, antes voltada à docência do Ensino

Fundamental I. Reconheço que, ao assumir a gestão de uma Unidade Escolar com

cerca de 1500 (mil e quinhentos) alunos, 25 (vinte e cinco) funcionários e uma

centena de professores, foi uma experiência única em minha vida. Hoje, identifico tal

desafio como um momento divisor de águas e encontro elementos para uma

reflexão fundamentada nos estudos de Josso (2004). Foi o período mais difícil que

enfrentei em minha carreira profissional, apesar de ser algo que queria muito

desenvolver. Acredito que, frente às inúmeras dificuldades que enfrentei, encontrei

forças e elementos para, dois anos depois, buscar a aprovação em um novo

Concurso Público, no cargo de Supervisor de Ensino.

A ampla delimitação de contextos e situações de vida, das mais diversas

atividades, de encontros que marcaram uma vida – as pessoas significativas

da família, os acontecimentos pessoais e sócio-históricos – começam a

desenhar os contornos da singularidade de um percurso de formação, e

começa a evidenciar aprendizagens; momentos-charneira e desafios que os

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atravessavam; valores ou valorizações que orientaram escolhas, bem como

preocupações e temas recorrentes (JOSSO, 2004, p.64).

No período de atuação como Diretora de Escola, pude verificar que a maioria

dos professores de Ensino Médio encontrava dificuldades em seu trabalho,

apontadas por muitos como: despertar o interesse dos alunos, dominar a classe tida

como “indisciplinada”, estabelecer formas de trabalho coletivo com seus pares,

organizar situações de aprendizagens capazes de superar as dificuldades escolares

trazidas por seus alunos, desenvolver práticas interdisciplinares, superar a

organização disciplinar do currículo escolar e trabalhar com áreas do conhecimento,

entre outras.

O que me deixava mais intrigada era o fato de que grande parte da equipe

docente era constituída por professores efetivos, com uma considerável

“experiência” na função. Eram professores que participavam de cursos e orientações

técnicas oferecidas pela Diretoria de Ensino, nos moldes do proposto pela Secretaria

de Estado da Educação. O que acontecia então? Como, enquanto equipe gestora,

poderíamos organizar espaços para reflexão, por parte dos professores, de sua

própria prática, de seus saberes, dos conteúdos trabalhados nas ações de formação

continuada das quais participavam?

Os saberes da experiência são (...) aqueles que os professores produzem

no seu cotidiano docente, num processo permanente de reflexão sobre sua

prática, mediatizada pela de outrem – seus colegas de trabalho, os textos

produzidos por outros educadores (PIMENTA, 2002, p.20).

Tais questões, que me inquietavam como gestora escolar, passaram a ser,

parcialmente dirimidas na função de Supervisor de Ensino, quando tive a

oportunidade de participar do Programa “Ensino Médio em Rede”. Pude perceber

que o modelo de formação, preconizado pelo “Programa EMR”, estava pautado nas

premissas de que os professores são os sujeitos fundamentais no processo

educacional e de que a escola é um dos espaços mais adequados para que se

processe tal formação. Nesse sentido, a ênfase era de que nos Horários de

Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC‟s), realizados semanalmente, os professores,

sob a orientação dos Professores Coordenadores, pudessem entrar em contato com

referenciais teóricos do programa e pudessem discutir situações concretas do

contexto escolar onde atuavam. As atividades propostas enfatizavam a criação de

24

situações de discussão coletiva e registro das mesmas, enfatizando a necessidade

de que as reflexões individuais e coletivas estabelecessem relações com a prática

em sala de aula.

É no espaço concreto de cada escola, em torno dos problemas pedagógicos

ou educativos reais, que se desenvolve a verdadeira formação.

Universidades e especialistas externos são importantes no plano teórico e

metodológico. Mas todo esse conhecimento só terá eficácia se o professor

conseguir inseri-lo em sua dinâmica pessoal e articulá-lo com seu processo

de desenvolvimento [...] (NÓVOA, 2004 - Excerto presente no material

“Vivência Formativa - Tema 1 - Professor - Ensino Médio em Rede”, CENP,

2004, p. 20).

1. 2 Resgatando a história de vida do sujeito-pesquisador

Onde quer que eu vá levo em mim o meu passado, e um tanto quanto do

meu fim. Todos os instantes que vivi estão aqui, os que me lembro e os que

eu esqueci.

Arnaldo Antunes e Roberto de Carvalho

Em 2006, ao final do Programa EMR, senti que era hora de realizar um

aprofundamento teórico sobre as questões do curso. Interessei-me em realizar o

Programa de Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São Paulo sendo

admitida no ano de 2007.

Ao cursar a disciplina “Interdisciplinaridade e Educação” os alunos foram

desafiados, pelas Professoras Célia Maria Hass e Margaréte May Berkenbrock

Rosito, a realizar a escrita de suas histórias de vida.

Confesso que, à primeira vista, tal proposta não me seduziu. O que teria para

escrever? Será que teria fatos significativos para narrar em minha trajetória pessoal

e profissional?

O exercício da escrita fez com que tais perguntas iniciais fossem logo

respondidas. Comecei a refletir sobre as dimensões da prática profissional que

exerci nas três funções desenvolvidas: o exercício da docência, como professora

dos anos iniciais do Ensino Fundamental, o desafio como gestora escolar na função

de Diretor de Escola e os anseios e expectativas como Supervisora de Ensino.

Escrever é um ato de extrema responsabilidade: é deixar uma marca, como

fincar um risco no tronco de uma árvore, marcar uma pedra ao longo de um

25

caminho, ou seja, algo que certamente ficará registrado em algum lugar e que

poderá ser revisitado para ser lembrado...

O que escrevi adveio das minhas lembranças, das minhas memórias. Porque

não tinha mais meus pais junto de mim, escrevi aquilo de que me lembrava, de que

recordava – alguns episódios, algum dia, me foram relatados, outros, eu guardei

comigo, até hoje.

Nasci em outubro de 1970 e sou a filha mais velha, tendo mais um irmão.

Perdi meu pai com seis anos de idade e minha mãe com vinte cinco.

Soube pela minha mãe que nossa família passou por grandes dificuldades,

quando meu pai teve que sofrer uma cirurgia muito séria: uma amputação na perna

esquerda, em virtude de um câncer no local. Não me lembro dessa fase, pois tinha

apenas três anos, mas recordo-me de que minha mãe contava que o levava sempre

ao hospital para fisioterapia. Nessa época morávamos numa vila, éramos vizinhos

de meus avôs maternos. Ai, eu brincava muito com meu primo, filho da irmã da

minha mãe. Na vila, tínhamos a oportunidade de andar de bicicleta, correr, pular

corda e jogar bola. Brincávamos arrancando folhinhas do jardim e imaginando fazer

remédios e poções mágicas.

Aos quatro anos, entrei na escola, no jardim da infância. Tenho boas

recordações desse espaço físico onde se encontrava a escola... Curiosamente, dois

anos depois de me efetivar como PEB I, na rede estadual, tomei a resolução de

remover-me para lá, de onde saí para ingressar no cargo de Diretor de Escola. Era

uma escola ampla, com um pátio arborizado. Quando estudava na pré-escola,

existiam grandes brinquedos de madeira, até mesmo um carrossel, onde

brincávamos todas as tardes. Lembro-me das atividades em sala de aula, da ênfase

nos exercícios preparatórios e de coordenação motora, no aprendizado das

primeiras vogais, e, principalmente, das lições de copiar com letra cursiva o meu

nome completo.

Na época em que eu estava cursando a pré-escola, nasceu meu irmão

Ricardo. Não me recordo dos detalhes deste fato. Tinha cinco anos e, em outubro,

completaria seis. Meu irmão nasceu em junho de 1976. Em julho do mesmo ano,

meu pai sofreu um acidente automobilístico, que resultou em sequelas graves. Em

dezembro, seria a minha formatura na pré-escola e, nessa época, ele estava

internado. Lembro-me de que, na festa, teria de usar um vestido azul e de que

minha avó passou uma noite inteira costurando o vestido que, por sinal, aparece nas

26

fotos que guardei como recordação. Meu pai não pode ir até a escola e, dias depois,

veio a falecer.

Considero este fato uma marca muito forte, em minha vida. Até hoje, me

questiono como seria, se tivesse convivido um tempo maior com meu pai. Qual o

curso que minha vida teria seguido? Quanto eu teria aprendido com ele? Lembro-

me, com clareza, das palavras de minha mãe contando sobre a partida de meu pai,

da mudança para a casa de minha avó, da forma inesperada com que a vida mudou

de direção. Aí, encontro o primeiro dado que fez com que eu me interessasse pelo

tema da interdisciplinaridade: a morte do meu pai fez com que fossem criadas linhas

fronteiriças, porém firmes, que separavam minha família (eu, minha mãe e meu

pequeno irmão) dos membros da família de meu pai. Não por culpa da minha mãe,

mas pelo próprio caminho imposto pela vida, onde a distância física prevaleceu

sobre o convívio: morávamos do outro lado da cidade, não tínhamos carro, as

distâncias eram enormes e as possibilidades de nos encontrarmos com os parentes

de meu pai eram ínfimas.

Furlanetto (2002, p. 165) aborda o conceito de fronteira, destacando que é

necessária a superação do simples conceito de linha divisória. A linha fronteiriça se

concretiza em diversas formas, muitas vezes, imperceptíveis ao olhar. Ao mesmo

tempo em que a fronteira promove a separação, possibilita a intersecção, a partir

das regiões fronteiriças que se estabelecem entre as duas regiões de ligação.

Aponta que Saiz (1998) entende que a fronteira constitui-se como um abrir-se para

fora que pode possibilitar a criação de novos espaços, e acredito que a realização

desta pesquisa de Mestrado, resgatando, profundamente, as minhas vivências,

enquadra-se na categoria de um novo espaço da minha própria vida, a ser

desvelado.

A morte de meu pai fez com que minha mãe desenvolvesse um

posicionamento de abertura para tudo e para todos, questionando a relatividade dos

fatos que a rodeavam. Era como uma grande esponja, capaz de absorver e captar

os sentimentos daqueles que a cercavam, de tomar para si os problemas dos outros,

de compartilhar as dores alheias, de transformar-se na grande amiga de toda a

família, a ponto de deixar de lado o que era importante para si, para fazer o bem ao

outro. Minha mãe tinha a capacidade de captar tudo o que acontecia conosco,

através de forte sensibilidade.

Na relação que estabeleci com a minha mãe, encontro uma das categorias

mais importantes para o desenvolvimento da interdisciplinaridade: a parceria.

27

Aprendi com ela estar atenta ao outro, desenvolver a sensibilidade para conviver

com o incerto, com o imprevisível e com o diferente, a respeitar as pessoas da forma

que são.

Todos tornam-se parceiros. Parceiros de quê? Da produção de um

conhecimento para uma escola melhor, produtora de homens mais felizes.

[...] Em síntese, numa sala de aula interdisciplinar há ritual de encontro – no

início, no meio, no fim (FAZENDA, 1991, p. 83).

Em 1977, depois da mudança para a casa de meus avôs, continuei estudando

na mesma escola. Na 1ª série, estudei com a professora Rita e, na 2ª, com a

professora Olívia. Posteriormente, tive a oportunidade de trabalhar com as duas.

Estudei nessa mesma escola até a 4ª série. Paralelamente, fazia um curso de

pintura em telas. Lembro-me que a Prof. Rita era uma excelente alfabetizadora,

extremamente organizada e centrada em sua atividade docente, dentro de um

modelo tradicional de ensino. Já Olívia era recém formada, trazia novas ideias,

novas formas de ensinar e fazia questão de manter com as crianças um vinculo

muito próximo. Hoje, sei que foi ela a professora que despertou em mim o

reconhecimento da importância de valorizar a afetividade junto aos alunos. Posso

afirmar que, na minha trajetória profissional, procurei manter um pouco das marcas

que as duas deixaram em mim (e que pude solidificar, ao me tornar uma colega de

profissão): o sentido da responsabilidade e a necessidade de manter, junto aos

alunos, um relacionamento de parceria. Curiosamente voltei, no transcorrer de

minha trajetória profissional, a encontrar-me com as duas, transformando-me de

aluna a parceira, na caminhada.

Pra ficar comigo corro, salto, me equilibro, entre minha neta e minha avó.

Fico firme, sigo adiante ante o perigo: vejo o que me aflige virar pó.

Arnaldo Antunes e Roberto de Carvalho

Neste exercício de resgatar minhas lembranças e compor a trajetória de

minha história de vida, concentro-me na figura da minha avó materna que, após

tantos desafios impostos pela vida, é uma figura ativa e aglutinadora da família, em

seus oitenta e sete anos de existência. Volto ao passado e reconheço a influência de

sua sabedoria em mim, que, hoje, represento a terceira geração da família. Minha

avó materna, filha de refugiados da Revolução Russa de 1917, sofreu muitas

privações em sua infância. Nascida no Rio Grande do Sul, era a filha mais velha das

28

irmãs mulheres e, com seis irmãos menores, auxiliava minha bisavó em todas as

tarefas domésticas. Não frequentou a escola por falta de oportunidade. Aprendeu a

ler e a escrever com seu avô materno. A escassez de oportunidades aliada, às suas

raízes culturais, fez com que ela desenvolvesse um espírito de abertura, voltado ao

relacionamento com as outras pessoas, ao aprendizado de ofícios e artes manuais,

de receitas e pratos culinários.

Lembro-me de que, desde muito pequena, contemplava minha avó dedicando-

se a elaborar receitas, em especial, balas de coco. Era a sua especialidade! Ficava

verdadeiramente encantada com a mistura de açúcar e leite de coco que, ao serem

colocados ao fogo, transformavam-se numa calda em ponto de fio, que era,

posteriormente, jogada na pedra de mármore da pia da cozinha. Eu olhava

fascinada e contava os minutos para que presenciasse o melhor do espetáculo: com

as mãos calejadas e resistentes ao calor, minha avó juntava aquela massa branca

disforme e quase endurecida e ia puxando-a devagar, por várias vezes, até que ela

se transformasse em cordões finos e cintilantes, que seriam cortados em pequenas

e deliciosas balinhas. Revisitando tal cena e revivendo a história de vida de minha

avó, descubro a semente dessa característica marcante que compõe o meu ser: o

olhar direcionado, a observação, como recurso de aprendizado.

Em 1981, iniciei a 5ª série, em outra escola onde, posteriormente, também vim

a trabalhar como professora estagiária. Lá, estudei até a 8ª série. Gostava muito das

aulas de Matemática, participava do coral da escola (nas aulas de Arte Musical) e

ficava encantada com as aulas de Educação Artística, principalmente, pela forma de

trabalho da professora Kazue e por sua postura enquanto educadora. Sempre gostei

de desenho e pintura. Sentia que naquele espaço poderia ter a oportunidade de me

expressar. Naquela época, não tinha facilidade para escrever: as redações eram

verdadeiras torturas, pois sempre partiam de um título que deveria ser desenvolvido.

Minha grande dúvida era: como sair do primeiro parágrafo e construir um texto com

o tenebroso “começo, meio e fim”? Hoje, entendo quais concepções sobre o uso da

língua eram valorizadas e como a metodologia de trabalho não era a mais

adequada. Independentemente desse fato, sempre gostei muito de ler, e isso

perdura até hoje.

Desde aquela época, já percebia como era importante o professor dominar o

conteúdo de sua disciplina e manter um relacionamento significativo com sua turma.

Sei que a escolha para desenvolver a minha profissão no campo da Educação

29

decorreu, em parte, dessas duas considerações que, enquanto aluna, eram

continuamente observadas.

No 2º grau, mudei novamente de escola. Minha mãe sempre desejou que eu

optasse por frequentar um curso técnico, na área de secretariado, pois, quando

jovem, havia estudado na Fundação Armando Álvares Penteado, escola tradicional

de São Paulo, que desenvolvia cursos na área administrativa. Estávamos no ano de

1985 e, contrariando suas intenções, decidi pela matrícula numa das escolas

públicas mais procuradas da região. Eu cursava a 1ª série, sendo que o primeiro ano

era desenvolvido, a partir de um currículo único, que, nos anos posteriores, era

aprofundado nas áreas de Humanas, Exatas ou Biológicas, conforme a opção do

aluno. A escola também oferecia a Habilitação Específica de 2º grau para o

Magistério na Pré-Escola. Ao concluir a 1ª série, fiquei dividida entre a área de

Exatas e o curso de Magistério, porém acabei escolhendo a segunda alternativa.

Tinha, como referência, uma prima mais velha que fazia o curso na mesma escola e

isso me incentivou.

Se durante o 1º grau tive poucas experiências diferenciadas, o mesmo não

aconteceu ao cursar o 2º grau. Encontro nesse fato o meu interesse em, hoje,

aprofundar meus estudos sobre o segmento do Ensino Médio.

A escola na qual frequentei o chamado 2º grau primava por atividades

diferenciadas e pela otimização na utilização dos espaços disponíveis. Possuía uma

biblioteca muito bem montada, com acervo de livros e jornais, onde uma funcionária

dava apoio aos alunos. Dispunha de laboratórios de Biologia e Física, sala de

Educação Física dotada de equipamentos destinados às aulas, sala de artes e

trabalhos diferenciados, da hemeroteca, construída nas aulas de História, a partir

dos fatos desencadeados pelo movimento, “Diretas Já”, que eclodia naquela época.

Anualmente, era realizada a “Semana Cultural”, com palestras sobre temas

específicos, dependendo da temática escolhida para aquele período letivo. Éramos

incentivados a participar de grupos de teatro, visitas culturais a museus, cinemas e

teatros, festivais de dança e oficinas sobre leitura e escrita, vivenciando experiências

estéticas capazes de provocar a “admiração, a [...] abertura para o desconhecido e o

transcendente, paradoxalmente revelador e determinador do destino pessoal”

(PERISSÉ, 2009, p. 48). Os professores, em sua maioria, demonstravam total

engajamento com essa proposta, porém o índice de retenção na 1ª série do 1º grau

era extremamente elevado: a escola selecionava alunos, por contínuas avaliações

do conteúdo ministrado, através de “Provões” semestrais. A direção da escola era,

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ao mesmo tempo, temida e extremamente respeitada: Dona Áurea (a Diretora) e

Dona Vilma (sua assistente de direção) administravam a escola com pulso firme e de

forma impecável, desde a limpeza e organização do espaço escolar até o

atendimento aos pais em reuniões específicas.

Ensinamento e sentimento. [...] Há sentimento numa sala de aula arejada,

em móveis minimamente confortáveis, numa escola cuidada (num bairro

cuidado, numa cidade cuidada, num país cuidado.), há sentimento em cada

aspecto do espaço educacional” (PERISSÉ, 2009, p. 55).

Optar pelo Magistério foi uma decisão que se foi fortalecendo ao longo do

curso. É claro que algumas disciplinas tendiam a desenvolver atividades voltadas à

prática, mas com extremo viés tecnicista. Elaborávamos “Pastas de Datas

Comemorativas”, aprendíamos a melhor forma de elaborar cartazes e como

confeccionar materiais didáticos que serviriam de apoio às aulas (como a construção

de um “Cartaz de Pregas” que, confesso, nunca utilizei.

Em contrapartida, recordo-me das aulas de Didática, desenvolvidas pela Profª.

Lídia (onde debatíamos os casos observados nas situações de estágio), das aulas

de Literatura Infantil com o Prof. Antonio (que muito contribuíram, na minha prática

pedagógica, tendo em vista a minha adoração pelo trabalho com textos de gêneros

diversos), da Profª. Anita, de Língua Portuguesa (a quem devo o desenvolvimento

da capacidade de escrita).

Cursei toda a minha vida escolar na escola pública, no 1º e 2º Graus, sob a

vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71. Mais tarde,

ao final do 2º grau, prestei vestibular e fui admitida na USP, onde fiz o curso de

Pedagogia, sendo que o primeiro ano, em 1988, foi concomitante com o último do

curso de Magistério: recordo-me, até hoje, da alegria que senti no dia em que soube

do resultado.

Lembro-me da aula inaugural, ministrada pelo Prof. Paulo Freire, organizada

orgulhosamente pelo Centro Acadêmico da Faculdade de Educação.

A Universidade possibilitou o contato com grandes mestres e hoje avalio como

a questão da maturidade tem um peso muito significativo. Éramos extremamente

jovens, e, como alunos, nossas experiências anteriores pouco nos remetiam ao

exercício da fala, explorando muito mais o da escuta. Vivíamos também uma época

de transição, onde o próprio currículo da Pedagogia, na USP, estava sendo

31

redefinido, almejando uma formação mais global, ministrada em quatro anos letivos.

Dessa forma, a FEUSP estruturava algumas disciplinas, trazendo profissionais de

outras faculdades, como no caso das disciplinas de Sociologia e de Economia da

Educação, o que, a meu ver, não surtia bons resultados, na medida em que nos

faltava o conhecimento prévio de assuntos que eram tratados com grande

profundidade.

Em contrapartida, tivemos a oportunidade de aprofundar o estudo na área de

temas educacionais e de entrar em contato com a leitura de textos de autores

consagrados. Parcerias teóricas eram estabelecidas nesse encontro vivo com

teóricos que hoje norteiam minhas práticas profissionais, já que na Universidade tive

o privilégio de ser aluna de grandes mestres. Sinto por ter tido a necessidade de

trabalhar, ao mesmo tempo em que estudava, e de residir distante da Universidade,

pois não pude participar de projetos mais amplos desenvolvidos por professores do

curso (como o caso do trabalho voltado à alfabetização dos funcionários da USP,

desenvolvido pela Profª. Stela Piconez). Trago marcas muito profundas, as quais

nasceram no curso de magistério e foram fortalecidas na Pedagogia: a luta de uma

educação de qualidade para todos, a busca de uma real aprendizagem, o respeito

pelo educando, a importância da relação professor-aluno, a necessidade de

profissionalização docente.

Em 1989, ao final do curso de magistério, comecei a atuar como estagiária na

escola pública onde havia estudado da 5ª a 8ª série: o trabalho consistia em dar

suporte aos professores nas tarefas diárias, bem como em substituí-los em suas

faltas. Aprendi muito com essa fase: deparava-me com a possibilidade de ministrar

aulas na ausência de professores titulares e aprendia muito nos momentos em que

auxiliava professores junto aos alunos com dificuldades de aprendizagem. O

encontro com a Literatura Infantil foi uma marca presente na minha atuação como

professora: em todas as oportunidades, procurava despertar junto aos alunos o

gosto pela leitura.

Em 1991, concluí o curso universitário e em 1992 ingressei como Professora

Efetiva na Rede Estadual de São Paulo. O concurso de provas e títulos ocorreu em

nível de Delegacia de Ensino e, dessa forma, continuei atuando na Região Leste,

onde residia. Nesse mesmo ano, fui contratada por uma escola tradicional de São

Paulo, localizada no bairro da Liberdade, para atuar como professora em período

diverso.

32

Ressalto que ter a minha própria classe era algo muito significativo: sabia que

poderia desenvolver o meu trabalho por um período específico, sem enfrentar os

contratempos pelos quais passei quando da época em que atuava como professora

substituta.

Semelhante à época onde era estagiária, construí relações de trabalho com

colegas que me auxiliaram na construção de meu “eu-educador”. Acredito que as

parcerias estabelecidas com colegas que atuavam na mesma série foram muito

significativas, na medida em que trocávamos experiências, partilhávamos

dificuldades, buscávamos novos caminhos. Sinto que o professor de classes comuns

tem, em suas mãos, maiores possibilidades de construir relações muito significativas

com os alunos, visto que permanece um tempo maior com as crianças, o que lhe

possibilita estreitar laços. Eis aí a mão do educador, que objetiva formar o aluno,

com um olhar dotado de sensibilidade.

Em 1994, minha mãe ficou muito doente, vitimada à semelhança de meu pai,

por um câncer muito severo, e, no ano seguinte, veio a falecer. Foi uma perda muito

sofrida para mim, pois a tinha não apenas como mãe, mas como uma verdadeira

amiga. Sofri muito e sofro ainda hoje. Saudades permanecem e marcam todos os

momentos de minha vida. Essa ausência fez com que eu me aproximasse e

vivenciasse o mesmo processo ao qual minha mãe se submeteu, quando passamos

pela morte de meu pai: aprendi a olhar a vida de outra forma, a dar um maior valor

às conquistas, a perceber os problemas do outro, a ser justa e lutar em prol de que

fossem minimizadas as injustiças e reconhecidas as diferenças...

Observar, perceber, sentir, olhar: encontro aqui muito do que marcará este

trabalho que tenho a oportunidade de desenvolver no curso de Mestrado em

Educação, movido por uma (auto) educação estética com diversas portas e janelas.

Dentre elas, a beleza, descoberta na tecedura do retalho, no contato com minha

orientadora, na análise documental realizada que deu amparo à apreciação das

narrativas sensíveis ouvidas, quando da entrevista com os professores da escola

escolhida...

Em 1996, me casei e, em 1998, nasceu meu filho. Nessa época, eu ainda

atuava como professora nas esferas pública e privada. Novas experiências que

enriqueceram minha vida até hoje: a relação matrimonial do dia-a-dia, os fatos novos

ligados à maternidade, convites a novos desafios.

Sinto que modifiquei muito o meu olhar, a partir de todos esses fatos que

aconteceram, com muita rapidez, na minha vida: foi um momento de repensar

33

valores e de me adaptar a mudanças. Percebo que minha visão, como docente, foi

refinada, na medida em que passei a contemplar os alunos de uma forma diferente:

percebia com mais facilidade os sentimentos e as emoções que tomavam conta dos

alunos. Acredito que aliei a experiência pessoal vivida às construções do meu fazer

docente, que iam se aprimorando e se fortalecendo com o passar do tempo, sempre

carregado de forte carga de afetividade.

Em 2002, fui aprovada no concurso público da rede estadual para o cargo de

Diretor de Escola, ingressando também numa escola do bairro. Deixei de ministrar

aulas na rede particular, desligando-me da sala de aula, pois entendia que uma nova

oportunidade se desvelava. Nessa época, concluía um curso de especialização

sobre a atuação docente, da pré-escola e 1ª a 4ª séries. Encontrei muitas

dificuldades para atuar no cargo de Diretor, em virtude da complexidade da função,

das exigências colocadas sobre a figura do gestor escolar, da diversidade de

atendimento (5ª a 8ª série e Ensino Médio, público com o qual antes não havia

atuado) e da falta de experiência na gestão escolar, principalmente na administração

dos conflitos.

Considero que esse foi o maior dos desafios, em minha vida profissional,

apesar de todas as dificuldades, compartilhei grandes aprendizados com minha

equipe gestora, com a qual, até hoje, estou unida por profundos laços de amizade.

Essa marca reforça, ainda mais, minha escolha pelo tema da interdisciplinaridade,

devido às atitudes que desenvolvi como gestora e devido à construção de parcerias,

tão significativas, com minha equipe de trabalho.

E por que aprofundar-me no Ensino Médio? Pelas dificuldades que observei,

como gestora escolar, no trabalho dos professores junto às turmas de Ensino Médio,

pela ausência de experiências voltadas ao trabalho interdisciplinar ocorridas no

interior da escola, pelos equívocos observados no trato com alunos, (principalmente

quanto às situações de indisciplina, que revelavam dificuldades dos professores em

se reconhecerem como sujeitos e em se sensibilizarem com seus alunos,

estabelecendo relações de parceria para a construção de rotinas de trabalho).

Em 2003, fui novamente aprovada em concurso público da rede estadual, para

o cargo de Supervisor de Ensino, no qual atuo. Ingressei na mesma Diretoria de

Ensino onde atuava como Diretora, o que foi muito importante, na medida em que

me ancorei na experiência de colegas que, anteriormente, tinham me acompanhado

e orientado durante a fase de gestora escolar.

34

A nova função contribuiu para ampliar meu olhar sobre o sistema educacional,

conhecendo de forma mais profunda a legislação educacional e sua aplicabilidade.

Estabeleci, dessa forma, uma significativa parceria junto à lei, que norteia meu fazer

enquanto Supervisora de Ensino. Sinto que o estudo da legislação educacional é

fator decisivo no desempenho desta função de supervisão, visto que, na lei,

encontro o subsídio necessário para auxiliar as rotinas das equipes que compõem o

meu setor de trabalho.

Ao participar de muitos momentos de formação, atuando como mediadora e

tutora de cursos de formação de gestores educacionais e de professores da rede,

presenciais e on-line, estabeleci contatos mais estreitos com a temática da formação

de professores.

Lamento, extremamente, em toda essa trajetória, não ter tido a oportunidade

de me aproximar antes e de forma tão compromissada com a esfera universitária.

Não que durante todo esse tempo tenha abandonado o estudo, sempre procurei

participar de encontros, de cursos de aprofundamento, de palestras e de discussões

que versavam sobre o tema educacional. Hoje, percebo o quanto é importante

estarmos continuamente aprendendo e questionando nossas próprias práticas

profissionais, pois é, dessa forma, que nos construímos enquanto sujeitos de nossa

própria existência.

1.3 Sistematizando a história de vida: a tecedura da Colcha de Retalhos

No percurso trilhado, ao frequentar as disciplinas do Programa de Mestrado em

Educação da Universidade Cidade de São Paulo, pude vivenciar situações

transformadoras, no contato com a minha história de vida e a de meus colegas, por

meio de um processo de descobertas e encontros.

A atividade de escrita da própria história foi aprofundada com a construção da

linha do tempo, sugerida pela Profª. Ecleide Furlanetto na disciplina “Formação de

professores: concepções e práticas”.

A partir do referencial de Josso (2004, p. 64), foram demarcados, numa linha

contínua, os momentos-charneira, ou seja, os acontecimentos que representavam

passagens, separavam, dividiam e articulavam as etapas da vida, como divisores de

águas.

35

Figura 1 - “LINHA DO TEMPO” produzida pela pesquisadora em atividade desenvolvida junto à disciplina “Formação de professores: concepções e práticas” (UNICID/2007).

A produção da narrativa escrita tinha sido um exercício solitário, seguido da

socialização oral junto aos colegas de classe. Era agora o momento de sintetizar, de

reunir todo esse conhecimento revelado pelo processo de caminhar para si, “na

tomada de consciência das situações, dos acontecimentos, dos encontros que

colocaram em questão ou fizeram evoluir nossos referenciais, da crise

epistemológica que eles provocaram, assim como os reajustamentos que tiveram de

ser feitos” (JOSSO, 2004, p. 77)

Nesse trabalho de rememoração, relembrando o escrito e retomando

lembranças registradas no texto produzido, emergiram, de forma visível, os eixos

“PERDA” E “BUSCA”. A cronologia imposta pela linha do tempo desvelou o que

antes não conseguia enxergar na narrativa escrita: o fato de ter vivenciado perdas

marcantes, doloridas, sufocantes, mas que impulsionavam à busca para sua

superação. Era como se o antes não havia terminado, enquanto que o novo ainda

não havia começado: no itinerário da vida, períodos dolorosos eram seguidos por

impulsos, à procura de momentos felizes e de realização, numa dialética entre o

conforto e a consternação.

Foi oferecida, também, a disciplina “Ética, Estética e Educação”, orientada pela

Dra. Margaréte May Berkenbrock Rosito. Como atividade de conclusão da disciplina,

36

fomos desafiados na produção da “Colcha de Retalhos”, tarefa que demandou, por

todo o semestre, o exercício de reflexão tomando por base dois procedimentos: o

resgate de memória e a história de vida em formação. Foi utilizado, como referência,

um quadro onde identificamos certos espaços, tais como: a vida familiar, a escolar, a

profissional, as relações interpessoais, a leitura de livros, os filmes assistidos e, até

mesmo, os deslocamentos geográficos. O Resgate de Memórias, com foco no

Ensino Superior, buscou identificar três cenas marcantes, enfatizando a relação com

o conhecimento, com o professor e consigo mesmo, em situações de autoria ou

submissão. De forma semelhante à da construção da linha do tempo, localizamos os

momentos “divisores de água” e a reflexão sobre a escrita, cuja forma usual foi

transformada em imagens, metáforas e símbolos da trajetória dos alunos, contada

em sala de aula, a partir de um retalho de tecido. (BERKENBROCK-ROSITO, 2008,

p. 87).

A atividade “colcha de retalhos” surgiu do filme Colcha de Retalhos [...].

Constitui-se em prática interdisciplinar e transdisciplinar, uma proposta de

formação pela pesquisa do si mesmo, utilizando a metodologia da pergunta,

um processo maiêutico, na visão da complexidade de Morin, Capra,

Maturana, Dussel e Jung, na interdisciplinaridade de Fazenda, tendo como

pilares os conceitos de atitude, parceria, abertura, auto-conhecimento e

pesquisa, de Freire: os de participação, autonomia e descentralização, de

Pineau, Josso e Nóvoa, e a metodologia da história de vida, para revisitar as

matrizes pedagógicas, de Furlanetto (BERKENBROCK-ROSITO, 2007, p.

295-296).

A partir da imagem que emergiu dessa produção (duas mãos unidas, onde

cada um dos dedos simboliza os momentos divisores de água que marcaram minha

história de vida), relaciono tal figura com momentos marcantes que vivi na esfera

pessoal. Destaco o aprendizado que obtive com minha avó e suas balas produzidas

com empenho, esforço e paciência. Enfatizo, ainda, a esperança em depositar

minhas aflições e expectativas nas mãos habilidosas de cirurgiões capazes de

intervir na doença que afligira meus pais. Transpondo para a esfera profissional,

essas mesmas mãos interligam-se à função que assumi, no cargo de Supervisor de

Ensino, caracterizadas pela intencionalidade de agir e operar no sistema

educacional, com vistas a atingir uma educação para todos, permeada pela ética e

pela sensibilidade.

37

Figura 2 - Fonte: Foto by Eliana Costa da Cruz de Negreiros

O olhar pintado no retalho representa o mergulho, enquanto pesquisadora, em

minha própria existência, nas experiências que vivi, nas vivências que construí, que

me ancoram e contraditoriamente, me impulsionam a refletir sobre minha

concepções, construídas por toda vida, aprofundadas, desconstruídas e

questionadas no processo de realização deste trabalho. Pintura que na infância

surge como técnica; olho, que por toda minha existência materializa-se por meio da

atitude de observação.

1.4 Minha história de vida: o olho e a mão, uma construção de sensibilidade

Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? [...] É a janela do

corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo,

aceitando a prisão do corpo que sem esse poder seria em tormento. [...]

Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as

imagens do universo?

Leonardo da Vinci

Após a exposição dos resultados obtidos por meio das entrevistas narrativas

realizadas, é imperativo retomar minha história de vida presentificada na imagem

38

trazida pelo retalho tecido, durante a realização do curso de Mestrado em Educação,

na atividade “Colcha de Retalhos”.

Recupero o feitio da peça na qual tecido, linhas e tintas foram utilizados para

compor a figura, num exercício sensível de fruição estética do meu interior.

O olhar pintado no retalho pode ser, hermeneuticamente, interpretado como

meu mergulho, enquanto pesquisadora, em minha própria existência, nas

experiências que vivi, nas vivências que construí, as quais me ancoram e

contraditoriamente me impulsionam a refletir sobre minha concepções, construídas

por toda vida, aprofundadas, desconstruídas e questionadas, no processo de

realização deste trabalho. Pintura que, na infância, surge como técnica; olho que,

por toda minha existência, materializa-se por meio da atitude de observação.

As mãos tecidas no retalho advêm da reflexão realizada, a partir da construção

da linha do tempo. Cada um dos dedos simboliza um período de sete anos,

representados, dessa forma, na mão direita pela contagem cronológica do período

vivenciado, até o ingresso no Programa de Mestrado em Educação da Universidade

Cidade de São Paulo. Os fatos marcantes são simbolizados por marcas costuradas

aos dedos das mãos, com cores diferenciais, expressando momentos de alegria /

expectativa / intencionalidade (azuis – ingresso no curso de Magistério; efetivação

como professora na Rede Estadual de Ensino; nascimento do meu filho; ingresso

como Supervisora de Ensino), tristeza/refúgio (vermelhos – morte do meu pai, morte

da minha mãe, exercício no cargo de Diretor de Escola) e passagem (laranjas e

azuis - ingresso no Programa de Mestrado em Educação da UNICID e passagem

para outra fase – a mão esquerda). As mãos são presas pelos pulsos, com uma

costura firme que as une entre si e ao tecido. Hillman (1998, p. 129) explicita que

punho e dedos têm, respectivamente, o significado simbólico de força de vontade e

fantasia.

Às mãos pertencem duas funções espirituais distintas: criativa e autoritária,

a vara de condão e o cassetete [...]. Lembremos de que nossos dedos nos

permitem voar. Ate filogeneticamente nossas mãos são comparáveis às

asas dos pássaros. Darwin expressa a possibilidade ascensional das mãos

em fantasias literárias; Darwin considerava a verticalidade da raça humana

um resultado de suas mãos. Nós nos elevamos do chão bestial com nossas

mãos. Nelas repousa nossa liberdade; são nossas asas [...]. Nossas mãos

estão expostas a todos os perigos da vida diária. Elas são o nosso primeiro

contato com o concreto, são como nos defendemos, como nos

39

expressamos, aquilo que damos uns aos outros. Nelas está a nossa

sensibilidade. (HILLMAN, 1926, p. 125-133)

As expressões das mãos e do olho, registradas no retalho, construído a partir

da reflexão teórica de Josso (2004), retomam o exercício de minha profissão,

enquanto Supervisora de Ensino, dentro das atribuições inerentes ao cargo, em sua

função precipuamente pedagógica. Qual a contribuição que posso fornecer às

escolas que supervisiono? De que forma posso contribuir com a aprendizagem dos

alunos?

Vivemos num mundo multissemiótico, um mundo de cores, sons, imagens e

designs. Tecnologias da informação e da comunicação trazem formas diferenciadas

de linguagem, através de diferentes veículos culturais: cinema, teatro, museus,

obras de arte, poemas, cordel, histórias contadas através das gerações, permitindo

experiências estéticas diferenciadas. A arte, expressão da cultura, aparece como

instrumento de humanização da civilização tecnológica, através do viés da

sensibilidade, isto é, como instrumento de modificação do sujeito por meio de

processos estéticos. A escola, ensinando a usar e compreender diferentes

linguagens que circulam no mundo atual, cumpre sua função no processo de

humanização do sujeito. O contato com valores estéticos é a possibilidade de

vislumbrarmos projetos de vida humanizadores:

Acreditamos que educar o olho para enxergar as flores e o céu, assim como

educar a mão para cultivá-los (céu, flores e amigos) seja a divisa mais

importante no mundo da Cultura, no seu sentido mais agrário: rasgar o solo

árido, revolver a terra, plantar a semente, irrigar com um pouco de poesia e

partir para outros campos, pois o educador que aspira ser uma sombra do

didáskalos (o mestre autêntico de que nos fala o filósofo Georges Gusdorf)

não espera a pequena planta crescer. Terminado o plantio, segue para

outros campos, pois o trabalho é imenso e sementes existem várias

(FERREIRA-SANTOS, 2001).

A categoria que emergiu como articuladora deste trabalho, da elaboração do

projeto de pesquisa até os procedimentos de análise documental e coleta de dados,

foi o olhar.

Olhar é o verbo que designa a função atribuída ao olho, órgão da visão,

derivando do latim oculus. Também o seu objeto, o óculo (olho) é a janela redonda

que deixa a luminosidade passar.

40

Dentre os cinco sentidos, destaca-se a relevância da visão para a percepção

de mundo: sua hegemonia chega a arrefecer os demais sentidos. Embora possamos

considerar o corpo como um todo perceptivo, a visão é um dos sentidos que revela a

aptidão para o discernimento, buscando diferenças, resgatando memórias,

estabelecendo analogias, produzindo conhecimentos. Os olhos e o cérebro mantêm

relação intrínseca: o que os olhos vêem é transmitido ao cérebro, capaz de ler o

mundo de forma complexa.

Pesquisas realizadas no campo da educação, relativas ao processo de

alfabetização, registram que, ao ler, nossos olhos não deslizam linearmente sobre

um texto impresso: eles dão saltos, em uma velocidade de cerca de 200 graus por

segundo. Nesses saltos, ocorre uma espécie de adivinhação, uma conexão com as

referências que temos, uma vez que os olhos não estão de fato registrando tudo:

Portanto, que os olhos vêem depende muito do conhecimento que temos do

assunto. Quanto mais conhecimento se tem sobre o assunto mais rápido

pode-se ler [...] (OLIVEIRA, 2008, p. 96)

Buscando nas raízes da simbologia, encontramos diversos significados

atribuídos ao olho, órgão destinado à visão.

Para Bruce-Mitford (2001) o olho simboliza o sol, o “olho que tudo vê” de Deus,

a sentinela eterna, assim como o poder do mal / santuários budistas: olhos

representam a sabedoria e a onisciência.

No Antigo Egito, encontramos a figura do olho lunar - deus do céu Hórus, com

cabeça de falcão (filho de Ísis e Osíris), sendo que o olho direito representa o sol e o

olho esquerdo, a lua, o poder da luz.

Também a pintura islâmica do séc. XV, denominada olho da sabedoria, é uma

mandala, em forma de amêndoa, simbolizando o portal da alma, da verdade e da

sabedoria profundas.

O olho, como “janela da alma”, é o símbolo da consciência e percepção

individual do mundo. Deixando a luminosidade passar, a janela simboliza a luz da

verdade que entra na alma.

Fazenda (2002, p. 225) nos traz a metáfora do olhar. Como explicitar a questão

do olhar? Podemos, ao olhar numa única direção, promover uma interação entre

sujeito/objeto, imbuída de intencionalidade, em tempo único. Nosso olhar também

pode atingir um patamar transcendente, entre sujeito/sujeito, quando “desejos de

olhar” aparecem cooptados. Fazenda ressalta que olhamos em camadas:

41

primeiramente desdobramos o objeto visto numa camada superficial. É a dimensão

tempo, por meio da categoria espera, que vai permitir ao sujeito observador construir

uma relação de cumplicidade e confiabilidade que propiciará o desvelamento, o ato

de tirar os véus, mobilizando corpo, escrita, fala. O desdobramento do olhar depende

da virtude da espera. Pelo olhar se constrói a cosmovisão: o sujeito ergue-se como

realizador de sua própria história, como construtor de um novo mundo.

O olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo, e que

restitui ao visível pelos traços da mão. [...] O olho vê o mundo, e o que falta

ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele mesmo, e,

na palheta, a cor que o quadro aguarda; e, uma vez feito, vê o quadro que

responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas

outras a outras feitas. (MERLEAU-PONTY, 1980, p.91)

O conceito de olhar abarca o conhecimento estético-visual: é pela

sensibilidade, pela capacidade de ser afetado por algo, que dialogamos com a

inquietude do inacabado. Reis (2005, p. 28), ao interpretar a obra Guernica (1937)

de Pablo Picasso, nos alerta para a educação do olhar, capaz de conduzir-nos ao

conhecimento sensível, exposto através da barbárie, em pólos dialéticos: terror e

beleza, exótico e vulgar, insanidade e lucidez, experiências sensíveis à espera de

serem reinventadas.

O percurso metodológico desta pesquisa, através da realização de entrevistas

e coleta de relatos junto a professores de Ensino Médio, procurou verificar de que

forma os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização aparecem expressos

nos olhares dos docentes e em que sentido aparecem como uma possibilidade de

ação para humanização do sujeito. A investigação só pode ser compreendida, se

ancorada na reflexão sobre a função exercida pelo Supervisor de Ensino da rede

estadual paulista. Isto exige atentar para o risco do olhar supervisor prender-se

apenas à visão do todo, sem adotar ações pertinentes ao redirecionamento do que

foi detectado como incoerente.

A participação do Supervisor de Ensino e sua presença sistemática nas

escolas, auxiliando a direção num permanente diálogo, contribuem para a ocorrência

de um trabalho transparente, apoiado na legislação que deve mover-lhe a ação.

Bachelard possibilita relacionar a ação supervisora que considera apenas a

dimensão do olhar com a hegemonia da visão, que conduz ao vício da ocularidade,

fatalmente levando à consideração da escola, enquanto panorama de uma realidade

material (PESSANHA, 1988, p. 154). Ao olhar, sem buscar os pormenores da rotina

42

escolar, expressa nas relações das mais diferentes naturezas, corre-se o risco de

reduzir a ação supervisora ao mero controle e fiscalização: desconsidera-se, assim,

qualquer possibilidade de contribuição e integração entre escola e órgãos

superiores, no que tange ao aspecto pedagógico (razão precípua da existência da

função supervisora). Revelar o complexo por dentro da aparente unidade, conjugar

olhar e mão, na perspectiva de Bachelard, “a mão criadora, autônoma e feliz, que

sonha seus próprios sonhos e escapa à tirania da visão, enfrenta os desafios

concretos do mundo concreto” (Ibidem, p. 157). A mão, movida pela vontade e

imaginação, é uma proposta que ousa pensar a razão sensível, expressa na

comunhão do olho atento e vigilante com a mão feliz e criadora.

1. 5 O olhar e as mãos: ver e agir

Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde te amei! Eis que

habitavas dentro de mim e eu a procurava do lado de fora!

Santo Agostinho, Confissões X, 27,38

Mas, a lente colocada em contato com os olhos do educador, tende a

obscurecer a visão criadora e tolher a mão exemplar colocada a serviço de “forças

felizes”, descrita por Bachelard (PESSANHA, 1988, p. 154). Tende a ser translúcida

ao ponto de permitir a visão do disciplinar (do dizível e do visível), impedindo a

percepção do indisciplinar (que amplia o campo de visão ao permitir, além do dizível

e visível, o indizível e invisível). Permitir o invisível e o indizível significa oportunizar

a elaboração de um conjunto de imagens, tecidas na história de vida dos indivíduos,

em várias dimensões, ou seja, a visão de mundo presentificada num mito pessoal.

Perissé (2009, p. 21) apresenta a estética cristã de Santo Agostinho, visão

teológica da estética que tomamos emprestada para, em analogia, adotar um olhar

relacionando à formação do sujeito político e transformador, que não aceita a

agressividade, a apatia, o desencantamento. Sensibilidade do leitor de si mesmo,

que descobre a beleza em seu interior, busca o social e o cultural na autoria de si,

compreende a sociedade por meio de um exercício de fruição e contemplação. Da

visão estética chega-se a “uma cosmovisão, a uma hermenêutica geral, a uma

leitura interpretativa do mundo” (ibidem, p. 22).

O encontro estético influencia e impressiona. Abre os olhos e a inteligência.

Permite a emergência do belo, do respeito à dignidade humana, a favor da vida, não

da morte. Vislumbra a função precípua da escola em socializar o conhecimento

43

historicamente acumulado, onde os alunos conseguem estabelecer relações com o

cotidiano. Rejeita a educação bancária e preconiza a pedagogia da autonomia, na

perspectiva de Freire (1996). Educadores dotados de olhos e mãos de sensibilidade

(Ferreira-Santos, 2004) serão professores-artistas, os quais saberão conjugar paixão

(ideais arraigados a afetividade), pensamento (raciocínio e argumentação) e

imaginação (metáforas, histórias), somados a convicções éticas.

44

2 FORMAÇÃO CONTINUADA E ENSINO MÉDIO NA CONTEMPORANEIDADE:

APOIO TEÓRICO

2.1 Palas Atená, saber e formação

Palas Atená (Minerva) era a deusa grega das artes e da sabedoria. Era filha de

Zeus e da deusa Métis, a reflexão personificada. Era padroeira das artes úteis e

ornamentais, tanto dos homens (na agricultura e na navegação) como das mulheres

(através da fiação, da tecelagem e dos trabalhos com agulha).

Foi a conselho de Urano e Géia que Zeus engoliu Métis, sua primeira esposa,

que dele estava grávida.

Métis é a "sabedoria, a prudência". O sânscrito tem mätih, e o latim, metïri,

"medir", no sentido físico e moral. Foi a primeira esposa ou amante de Zeus

e foi ela quem lhe deu uma droga, graças à qual Crono devolveu todos os

filhos que havia engolido (BRANDÃO, 1986, p. 266).

Urano e Géia tinham revelado a Zeus que Métis teria uma filha e mais tarde um

filho, o qual o destronaria como ele próprio fizera com o pai Crono. O rei dos deuses,

espantado com tal profecia, engoliu Métis para impedir o nascimento. Atená foi,

assim, gerada na cabeça do soberano do Olimpo.

Completada a gestação normal de Atená, Zeus começou a ter uma dor de

cabeça que por pouco não o enlouquecia. Desesperado e no limite, não sabendo de

que se tratava, ordenou a Hefesto, o deus das forjas, que lhe abrisse o crânio com

um machado. Mesmo a contragosto, com técnica e precisão, Hefesto desferrou-lhe o

machado de ouro certeiro. Executada a operação, saltou da cabeça do deus, pronta,

já adulta, vestida e armada com uma lança e a égide, dançando a pírrica (dança de

guerra, por excelência) a grande deusa Atená. “Engolindo a Métis, tornou-se o

detentor da sabedoria e da prudência: a marca é Atená, que lhe saiu das meninges”

(BRANDÃO, 1986, p. 162).

Deusa da fecundidade, deusa da vitória e deusa da sabedoria, Atená simboliza

a reflexão e a inteligência personificada. Brandão (1987, p. 31) aponta dois de seus

símbolos: a serpente, símbolo da sabedoria intuitiva e da vigilância protetora, e a ave

(a coruja).

45

Antiga Grande Mãe minóica, proveniente de cultos ctônios, domínios da

serpente, elevou-se, com o sincretismo creto-micênico, a uma posição

dominante nos cultos urânios e olímpicos, domínios da ave, como deusa da

fecundidade e da sabedoria; virgem, protetora das crianças; guerreira,

inspiradora das artes e da paz. [...] A coruja, em grego glaÚξ (gláuks),

etimologicamente, "brilhante, cintilante", porque enxerga nas trevas; em

latim noctua, "ave da noite", era, como se viu, consagrada a Atená. Ave

noturna, relacionada, pois, com a lua, a coruja não suporta a luz do sol,

opondo-se, desse modo, à águia, que a recebe de olhos abertos. Deduz-se,

daí, que o mocho, em relação a Atená, é o símbolo do conhecimento

racional com a percepção da luz lunar por reflexo, opondo-se, destarte, ao

conhecimento intuitivo com a percepção direta da luz solar (IBIDEM, p.31-

32).

Como potência feminina, Atená tem os olhos de coruja, “deusa dos olhos

glaucos” (Ferreira-Santos, 2006) capazes de enxergar na escuridão o que se

esconde na penumbra e é dificil de ser visto. Deusa completa, pronta, determinada,

com objetivos claros e definidos: divindade que transmitiu à cidade de Atenas, pelos

lábios de Ésquilo, seu discurso de paz, de liberdade, de justiça e de democracia,

mestra das artes de tecer e bordar. Palas significa "a donzela": A poderosa filha

pediu ao pai, Zeus, para manter-se sempre virgem e, desta forma, impor-se com a

autoridade de quem não se deixa seduzir ou corromper. Pensar é atividade da

mente e as disputas de Atená aparecem objetivando a manutenção da ordem

(Cosmos) e a evolução do espírito humano. Sua luta correspondeu à garantia da

justiça, para a qual faz uso de sua lança e escudo.

Deusa guerreira, na medida em que defende "suas Acrópoles", deusa da

fertilidade do solo, enquanto Grande Mãe, Atená é antes do mais a deusa

da inteligência, da razão, do equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como

tal, preside às artes, à literatura e à filosofia de modo particular, à música e

a toda e qualquer atividade do espírito. Deusa da paz é a boa conselheira

do povo e de seus dirigentes e, como Têmis, é a garante da justiça, tendo-

lhe sido mesmo atribuída a instituição do Areópago. Mentora do Estado, ela

é também no domínio das atividades práticas a guia das artes e da vida

especulativa. E é como deusa dessas atividades, com o título de 'Erg£nh

(Ergáne), "Obreira", que ela preside aos trabalhos femininos da fiação,

tecelagem e bordado. (BRANDÃO, 1987, p. 15)

46

Estabelecendo uma analogia entre a figura mítica de Palas Atená e os

programas de formação continuada propostos pelas políticas públicas de formação

de professores na história da educação brasileira, encontramos semelhanças

marcantes. O oráculo emite a profecia: Zeus toma a sua atitude, representando as

políticas públicas que aparecem como resposta às demandas da sociedade:

superação dos índices de repetência, da evasão escolar e da distorção idade-série

dos alunos; reversão de baixos índices divulgados a partir das avaliações externas;

revisão de metodologias e procedimentos tradicionais de alfabetização, entre tantas

outras.

Da cabeça de Zeus desponta Atená, a solução encontrada: programas de

formação continuada. Zeus, representando a figura do Estado, comete um ato

imprudente ao engolir Métis (a prudência), assim como o Estado, ao fornecer a

oportunidade, ao professores, do acesso ao conhecimento por meio de programas

de formação continuada. O conhecimento dota docentes de poder. Daí a dor de

cabeça que acomete Zeus: para tal imprudência, surgem programas pensados

dentro de referenciais pedagógicos, atrelados a questões focais e problemas

definidos, que já saem prontos da cabeça de seus idealizadores, representantes

políticos e ideológicos do momento histórico em questão. Para cada segmento

escolar surge um rol de saberes prontos, pré-definidos, escudo, lança e armadura,

capazes de dotar professores de armas para a superação dos desafios enfrentados

no cotidiano escolar.

Palas Atená aparece como luz e salvação, tanto para os professores quanto

para os propositores das políticas públicas. Entretanto, a ideia de que programas de

formação continuada, destinados aos educadores como pré-requisitos fundamentais

para a melhoria da qualidade do trabalho docente, domina o atual cenário educativo.

A partir de 1997, pós Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n°

9394/96, são publicados, pelo MEC, documentos institucionais como os Parâmetros

Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (1ª a 4ª séries e 5ª a 8ª séries) e

as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM). Avaliações

externas dos sistemas de educação surgiram com a finalidade de verificar a

qualidade de ensino oferecido e os indicadores de baixo rendimento escolar dos

alunos impulsionaram políticas públicas a investir em programas de formação em

serviço, seja na esfera federal, estadual ou municipal.

47

A maioria dos programas da atualidade propõe a reflexão sobre a prática

educativa e o domínio, por parte dos professores, de novas abordagens, estratégias

e teorias de ensino.

De acordo com Fusari (1997), os programas de formação continuada inseriram

tendências e concepções em diferentes momentos. O autor categoriza cinco

períodos ao longo da história da educação brasileira: a Tendência Tradicional

(predominando até a década de 30); o Movimento Escolanovista (de 1930 a 1960); a

Pedagogia Tecnicista (que perdurou até a década de 70); o Período Crítico-

Reprodutivista (final dos anos 70) e a Tendência Crítica (surgida a partir de 1980).

Tais tendências influenciaram políticas públicas de investimento voltadas aos

profissionais da educação. Para o autor, a formação contínua vem sendo

compreendida como aquela que ocorre após a formação inicial (nas mais diferentes

modalidades: magistério, licenciatura e bacharelado), apresentando uma cisão entre

os diferentes momentos da vida profissional, como corrobora Alarcão,

A formação de professores [...] tem saltado de modelo em modelo, sem

avaliações consistentes e sistemáticas que permitam analisá-los nos seus

princípios, realizações, resultados e contextos. Tem oscilado ao sabor das

ondas, direcionando-se ora para o saber, ora para o saber-fazer, como se

estes dois elementos não estivessem interligados, e tem valorizado mais a

formação inicial ou a continuada como se as duas vertentes não

constituíssem momentos numa continuidade de percursos. (ALARCÃO,

2004, p.11)

Hypolitto (1999, p. 101) faz uma análise das terminologias utilizadas pelos

programas de formação dos profissionais da educação, apresentando os seguintes

termos:

a) reciclagem: surgido na década de 80, o dicionário Aurélio define reciclagem

como “atualização pedagógica, cultural, para se obterem os melhores resultados”.

Define a reutilização de materiais usados ou não degradáveis, sendo inadequado

aos fins educacionais.

b) treinamento: implica em ações de repetição mecânica, dependentes de

automatismos e não da reflexão com uso da inteligência. A inadequação do termo,

no caso da formação continuada, reside no fato de que traduz a ideia de atribuir ao

trabalho docente características meramente técnicas.

48

c) aperfeiçoamento: tem o sentido de tornar perfeito, completar o inacabado,

concluir ou adquirir maior grau de instrução. Atribui ao processo educativo a missão

de tornar o aprendiz perfeito e concluso.

d) atualização: o termo parte do pressuposto de que o conhecimento do

professor é desatualizado, necessitando dotá-lo de conteúdos atuais advindos de

pesquisas recentes. A atualização em si é primordial ao profissional, porém

equivocada quando apresentada como mera ilustração.

e) capacitação: terminologia surgida na década de 60, que significa conjunto de

ações (cursos, encontros, seminários) com o objetivo de desenvolver a qualificação

do professor. A autora reforça que a capacitação deve ir muito além de ação de

treinamento, permitindo a reflexão sobre certos conceitos que permitam a mudança

da prática pedagógica a partir da consciência do educador.

f) educação permanente, educação continuada, formação continuada: conceito

extremamente recente, “que vem sendo construído a partir da contribuição de

autores como Nóvoa (1995), Fusari (1994) e Freire (1995), os quais abordam a

terminologia de forma explicativa, e não conceitual” (HYPOLITTO, 1999, p.103).

Esta pesquisa não objetiva explorar em minúcias tais conceitos. Coloca, em

linhas gerais, cada um dos termos sem entrar na compreensão de cada um deles, o

que pode ter visões diferentes de acordo com autores estudados. Entretanto, para o

entendimento da proposta de formação continuada desenvolvida no Programa

Ensino Médio em Rede é necessário destacar que, dentre tais nomenclaturas, no

caso do estado de São Paulo, a rede vivenciou uma gama de momentos de

formação denominados Orientações Técnicas (OT‟s). Observa-se que nas décadas

de 50 a 70 predominou forte viés tecnicista por meio de treinamento de professores

para ministrar aulas, organizando racionalmente objetivos, estratégias, meios,

tecnologias e procedimentos de ensino. Decorrente desse fato emerge a ideia de

que era necessário dotar professores de conhecimentos capazes de fornecer-lhes

uma competência técnica voltada à tarefa de ministrar aulas. O treinamento, no

sentido técnico, objetivava corrigir desvios, ou solucionar falhas no desempenho dos

professores, comprovadas pelos fortes argumentos de que a formação inicial dos

docentes era precária e pela responsabilização dos professores pelo fracasso

escolar.

Tais terminologias têm aparecido atreladas às políticas públicas de educação

na forma de cursos, reuniões, jornadas pedagógicas, seminários, palestras, oficinas,

entre outras. Afastando os profissionais de seu local de trabalho, através da

49

convocação de representantes de cada unidade escolar, tendiam a incentivar o

repasse de informações quando do retorno dos chamados “multiplicadores” do

conhecimento transmitido.

Entretanto, Palas Atená é dotada de sabedoria. No reinado de Cécropes, o

primeiro rei da cidade de Atenas, a divindade disputou com Netuno a posse da

cidade. Os deuses decretaram que Atenas seria entregue a quem produzisse o

presente mais útil aos mortais. Atená, com um golpe de lança, fez nascer da terra

uma oliveira em flor, e Netuno, com um golpe do seu tridente, fez nascer um cavalo

alado e fogoso. Os deuses, que presidiram a este duelo, decidiram em favor de

Atená, já que a oliveira florida, além de muito bela, era o símbolo da paz. Assim, a

cidade nova da Ática foi chamada Atenas.

A útil árvore que fornece o alimento encontra-se fincada ao chão por meio de

suas raízes. O vínculo com a terra-mãe que nutre. O vínculo com nossas raízes,

com nossa própria vida ... Histórias de vida que nos constituem como sujeitos.

Em se tratando de formação de professores, numa concepção de processo,

todas as dimensões do sujeito necessitam ser consideradas: a esfera consciente,

representada pela razão, pelo conhecimento compartilhado nos momentos de

formação contínua, e também a dimensão inconsciente, onde figuram as emoções,

as percepções, as sensações, as intuições. O sujeito-professor é um adulto dotado

de um repertório de saberes e experiências que necessita ser valorizado.

Furlanetto (2003, p.20) aponta que os adultos aprendem diferencialmente das

crianças: são mobilizados por processos internos que deslocam seus referenciais e

desencadeiam processos de desenvolvimento. A autora encontra nos estudos de

Jung elementos que me permitem construir um referencial teórico para compreender

como se processa a aprendizagem dos adultos.

[...] a aprendizagem dos adultos está articulada às perguntas que cada um

vai se fazendo. Ela traduz-se em um movimento que mobiliza, faz buscar,

descobrir, desejar, crescer e procurar diálogos com quem também está em

busca de respostas para os temas que os inquietam. Ao percorrer este

caminho, o adulto vai se constituindo em um ser singular e único, registro

vivo de suas histórias de aprendizagem. O que parece mobilizar o adulto e

colocá-lo em movimento diz respeito aos desafios que ele enfrenta, os quais

podem se constelar no mundo externo, mas também podem emergir dos

espaços interiores (FURLANETTO, 2007, p.135).

50

Recorrendo à teoria desenvolvida por Tardif (2002, p. 36-39), encontramos

uma série de saberes que compõem o fazer-docente: saberes de formação

profissional, disciplinares, curriculares e experienciais. Para o autor, prática docente

e experiência são conceitos distintos. O autor aponta a importância de nos determos

no estudo deste último saber, pouco explorado e pesquisado. Experiência é

conceituada como sendo uma prática refletida. É uma situação ou um acontecimento

que, ao passar na vida, toca profundamente o sujeito, causando mudanças

significativas na sua postura frente à vida e à profissão. Os saberes experienciais

surgem como núcleo central do saber docente, a partir do qual os professores

estabelecem relações com sua própria prática (ibidem, p. 54). O autor acredita que é

impossível “ensinar” experiência a ninguém, pois ela seria uma construção pessoal

de cada sujeito. É diferente para cada um, pois não há situações que possam ser

consideradas idênticas.

A preocupação em definir o conceito de experiência docente também aparece

nos estudos desenvolvidos por Marin (1996, p. 154). A autora conceitua experiência

como um saber não conhecido, próprio da evolução da vida de cada sujeito. Para a

autora, à semelhança de Tardif, a formação de docentes deve considerar fortemente

esses saberes adquiridos nas experiências individuais, pois tudo o que cada um faz

contém uma dimensão de “saber”. Há um novo caráter contraditório em se pensar

em modelos de formação, pois há grandes alterações na evolução do mundo de

cada um. Marin fundamenta suas concepções a partir de sua experiência como

pesquisadora e propõe um novo paradigma de formação, voltado para a experiência,

a partir da recuperação das histórias de vida e profissão.

Precisamos adotar um paradigma com fundamento histórico e social para

embasar nossos cursos, buscando levantar a história de vida, o processo de

socialização, as expectativas, as crenças, os valores, as representações

que os alunos têm no início do curso como subsídio pra o nosso trabalho

[...]. Precisamos mudar, urgentemente, o paradigma de formação de

professores para incorporar uma concepção mais ecológica que permita a

articulação de vivência dos alunos com um projeto político pedagógico de

curso em que os desejos que temos em relação à formação de professores

se concretizem (MARIN, 1996, p. 163).

Ferry (1996, p. 75) ressalta a articulação entre a formação teórica e a

experiência, entendida como a prática de cada professor. As biografias escolares

51

e histórias de vida aparecem como elementos na formação dos sujeitos. Para o

autor, a experiência se dá na relação consigo, com o outro e com o mundo.

Formação profissional e a formação pessoal aparecem articuladas, sendo quase

que impossível promover a dissociação desses dois aspectos. Ser professor é

estar em relação com o outro. O desafio de formar um adulto professor aparece

além das disciplinas e dos conteúdos, pois os aspectos pessoais devem estar

presentes através da imagem que o professor tem do seu trabalho. A formação

pode ser entendida como a busca do sujeito em construir sua própria forma de se

exercer profissionalmente. O espaço de formação é visto como um espaço em

que pessoas possam pensar suas experiências de vida e articulá-las com sua

prática profissional, de forma refletida e apoiada em teorias. Ressalta a

importância de mediadores na formação de professores: leitura, cursos, roda de

discussão. O professor, dotado de recursos para utilizar ferramentas de formação

(mediadores) e engajado na busca do conhecimento, constrói sua própria

formação, entendida como é uma forma de desenvolvimento da pessoa. Nesse

sentido, quem coordena sua própria formação é o sujeito.

Qual é o lugar do formador? Após ter sido proferido pelo oráculo que, se

Zeus tivesse uma filha, ela se tornaria ainda mais poderosa que ele, Zeus tratou

de imprudentemente engolir Métis para impedir o nascimento. Atená, gerada na

cabeça do soberano do Olimpo, sai pronta, com a forma madura, revestida de

armadura completa. Deusa formada, com o perfeito contorno de deusa.

Como formar professores? Qual forma os programas de formação

continuada tentam imprimir nos educadores? E que formato utilizam?

Concordo com Ferry quando este indica um olhar sensível sobre esses dois

tipos de ação formativa, reconhecendo tanto a presença de mediadores externos

quanto o movimento individual que somente o sujeito é capaz de desenvolver,

com vistas a sua formação pessoal e profissional.

Josso (2004, p. 64) reforça o sentido da experiência como uma

aprendizagem sobre si mesmo a partir da construção, pelo sujeito de uma linha

do tempo e das experiências da vida traduzidas como marcas profundas e/ou

momentos de ruptura (às quais chama de movimentos charneira), que leva a

uma análise da postura existencial de cada um. Todo conhecimento é, antes,

autoconhecimento. Através da interpretação de seus momentos vividos, o sujeito

é capaz de reconhecer seu estilo de posicionamento perante os fatos da vida:

52

expectativa, refúgio, intencionalidade e desprendimento aparecem como fases

vivenciadas pelo sujeito na reflexão de seus momentos vividos.

A descoberta de “marcas formadoras” a partir da análise de experiências de

vida constitui-se como possibilidade, na área da educação, para compor

programas de formação de professores. É possibilidade para que o sujeito

analise a realidade sob as óticas objetiva e subjetiva, necessariamente

complementares. Trata-se de incluir a sensibilidade com vistas ao

reconhecimento da “estética de si” (AMORIM NETO, 2008), no paradigma de

formação de professores.

Para que o sujeito se constitua educador, é necessário que, ao longo do seu

processo de formação, não só acadêmico, ele tenha despertado para a

“estética de si”, no sentido de cultivar a contemplação de si mesmo, sua

história pessoal e familiar, seus momentos de crise, de transformação e

aprendizagem. Uma contemplação de si mesmo, não apenas uma fruição

arrebatadora, mas transformadora que o mobilize a revisitar áreas menos

maduras, para continuar a desenvolver-se e atingir níveis mais altos de

consciência. Contemplar a si mesmo para perceber os ícones e símbolos

emergidos das zonas de luz e também das sombras da experiência com as

figuras parentais, com os adultos significativos e mesmo com os pares, ao

longo do tempo. (IBIDEM, 2008, p.94)

2.2 Cenários da Educação contemporânea

Não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem

aprendizagem é vazia e, portanto, degenera, com muita facilidade, em

retórica moral e emocional.

Hanna Harendt

No mundo contemporâneo, são crescentes as discussões acerca da educação

e da função da escola como instituição, circulando nas mais diferenciadas esferas da

sociedade.

O debate sobre a educação extrapolou os muros da escola, estendendo-se

para todos os meios do mundo cultural, centrando as preocupações em que sujeito a

escola pretende formar.

As demandas da sociedade atual demonstram a necessidade de uma escola

que atenda às suas finalidades, que não se limite apenas à expansão de seu

atendimento, mas que supere a dicotomia existente entre oferta e padrão de

53

qualidade. Espera-se da educação, na sociedade tecnológica e globalizada, a

construção de competências exigidas para o exercício da cidadania e para o

desenvolvimento das atividades produtivas.

De acordo com Martins (2002, p. 243), o termo educação é formado pela

derivação do verbo educar acrescido do sufixo “ção”, o que atribui à palavra o

sentido de “ação ou resultado dela”. Destaca que a palavra, de origem latina,

etimologicamente apresenta duplo sentido.

[...] educo-eduxi-eductum-educere, com o significado de fazer sair, lançar,

tirar para fora, trazer à luz, educar; e educo-educavi-educatum-educare,

referindo-se a criar, amamentar, sustentar, elevar, instruir, ensinar

(MARTINS, 2002, p.243)

Nesse sentido, surge o binômio que atribui à educação os duplos processos de

desenvolvimento e seus resultados (educere), e a intervenção educativa (educare).

Ora, a educação tem um fim em si mesma, não pode ser vista como um fim para se

chegar a algo: é permitir o desabrochar do potencial inerente à pessoa humana, por

meio de uma ação de partilha, de troca, de formação de consciências.

Retomando a trajetória etimológica das palavras, aquele que educa, o

educador, tem sua origem no latim.

[...] educatór-oris, isto é, na origem, o que cria, nutre, quem dá a alguém

todos os cuidados necessários ao pleno desenvolvimento de sua

personalidade. O verbo é educo-as-avi atum are: criar (uma criança), nutrir,

amamentar, cuidar, instruir, ensinar (HOUAISS, 2001, verbete educador).

Nosella (2005, p. 27) aponta que o conceito de educador construiu seu nicho

semântico desde os tempos míticos de Homero. Na Grécia antiga os primeiros

poetas gregos cantavam e contavam as biografias e feitos dos heróis. A mitologia

grega possibilita a compreensão do termo educador, como aquele que nutre e

acompanha o educando desde a infância até a idade adulta. O poema épico A Ilíada

apresenta o monólogo do cavaleiro Fênix, que rememora, já em idade avançada,

como educou o herói Aquiles nos primeiros anos de sua vida. No canto IX de A

Ilíada é apresentado outro educador, Pátroclo, que conduz o herói em tempos

juvenis. Ambos educadores, de origem nobre, porém socialmente inferiores ao

educando, mas dotados de respeito, reconhecimento e uma antiga grandeza

correspondente à nobreza espiritual despojada de apoio material. Educar

54

correspondia a despertar um movimento de cumplicidade de dentro do aluno para

sua expressão externa.

A função de professor é mais recente. Nos tempos antigos, não era

competência do educador ensinar a ler e a escrever, e sim a se comportar, falar

(oratória) e guerrear. A invenção do alfabeto possibilitou o aprendizado de uma ação

técnica, e a partir do ano 500 a.C. surgem espaços onde professores trabalhavam

no ensino da leitura, escrita, cálculos, canto, competências de natureza técnica

(NOSELLA, 2005, p. 32). O mestre proferia aos seus alunos ensinamentos em um

movimento unidirecional, extraindo de dentro de si um saber a ser socializado.

Professor “é aquele que professa uma crença, uma religião, aquele que dá aula

sobre algum assunto, aquele que transmite algum ensinamento a outra pessoa,

aquele que tem diploma de algum curso (HOUAISS, 2001, verbete professor).

Educar é uma função universal, exercida pela convivência familiar, pelas

nossas tradições históricas e culturais, pela linguagem, pelos hábitos e valores,

pelas inúmeras e variadas instituições que compõem a sociedade, entre elas a

escola.

Transmitir o saber historicamente acumulado contribuindo para o

desenvolvimento da sociedade, para a formação do cidadão, para o crescimento

profissional. Sou uma parte do todo. Minha pertença ao social não convive com a

exclusão, com a intolerância, com a intransigência. Busco atitudes em prol da

valorização da pessoa humana e das relações pessoais, das formas diferenciadas

de expressão da realidade e da afetividade, apreciando o belo, a arte, a potência da

criação.

Como pretendemos educar crianças, jovens e adultos no princípio do século

XXI?

Delors (1999, p. 89), ao compilar a obra “Educação: um tesouro a descobrir”,

relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século

XXI, coordenada pelo autor, aponta que o século XXI submeterá a educação a uma

dura obrigação de transmitir eficazmente “saberes e saber-fazer evolutivos,

adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro.”

Corresponderá, numa visão prospectiva, a dotar os indivíduos de mapas de um

mundo complexo e agitado, e de uma bússola que permita navegar através dele,

aproveitando e explorando do começo ao fim da vida todas as ocasiões de atualizar,

aprofundar e enriquecer os primeiros conhecimentos para se adaptar a um mundo

em mudança. A proposta é de que a educação deva se organizar em torno de quatro

55

aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda vida, serão para cada individuo

os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver

juntos, com os outros, e aprender a ser.

A evolução rápida do mundo exige uma atualização contínua de saberes,

derrubando o mito de que a “bagagem inicial de conhecimentos basta para toda a

vida”. A educação tem por missão, por um lado, transmitir conhecimentos sobre a

diversidade da espécie humana e, por outro, levar as pessoas a tomar consciência

das semelhanças e interdependência entre todos os seres humanos do planeta. À

escola cabe aproveitar todas as ocasiões para essa dupla aprendizagem. O

confronto através do diálogo e da troca de argumentos é um dos instrumentos

indispensáveis à educação do Séc. XXI. Deve contribuir para o desenvolvimento

total da pessoa: espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético,

responsabilidade pessoal, espiritualidade. Todo ser humano tem o direito a uma

educação que lhe permita a elaboração de pensamentos autônomos e críticos e a

formulação de seus próprios juízos de valor, de modo a poder decidir, por si próprio,

como agir nas diferentes circunstâncias da vida como sujeitos responsáveis e justos.

Educar é auxiliar a formação e o desenvolvimento do ser humano, num processo de

sensibilização do ser. A condição para formação humana é a educação estética,

uma vez que a aprendizagem mobiliza afetos, emoções e relações com seus pares,

além das cognições e habilidades intelectuais.

2.2.1 O Ensino Médio na contemporaneidade

Observando os estudos e debates recentes, nota-se que o Ensino Médio tem

sido constantemente colocado em pauta nas discussões mundiais referentes a

políticas públicas com vistas à melhoria da qualidade e equidade na educação,

marcos de uma política em mudança.

No que se refere à realidade nacional, com a promulgação da Lei de Diretrizes

e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, a Educação Básica passou a incorporar

o Ensino Médio, anteriormente tratado como um curso “complementar”, em termos

de legislação educacional, uma etapa de passagem entre o curso primário e a

formação superior. O artigo 21 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,

LDBEN 9394/96, apresenta a forma de composição e organização da educação

escolar.

56

Art. 21. A educação escolar compõe-se de:

I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e

ensino médio;

II - educação superior.

Configurado como etapa final da Educação Básica, o discurso oficial preconiza

a progressiva universalização e gratuidade de Ensino Médio, revelando a

propositura de inclusão daqueles que antes não tinham acesso a esse nível de

ensino. Ao Ensino Médio é estabelecida uma nova identidade curricular, dotada de

duas grandes missões proclamadas: o desenvolvimento de uma formação geral e a

superação da dualidade histórica de uma formação de caráter propedêutico

(destinada a preparar o educando para o acesso aos níveis superiores de ensino) e

de uma formação de caráter técnico-profissionalizante, preconizadas pelas

legislações anteriores.

Respondendo à convocação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional nº 9394/96, numa tentativa em conciliar humanismo e tecnologia, foi

encaminhado pelo MEC, em 1997, à Câmara de Educação Básica, o documento

precursor do debate acerca das propostas curriculares e de sua implementação. Tal

documento culminou na publicação, em 1998, das Diretrizes Curriculares Nacionais

para o Ensino Médio (DCNEM).

Segundo Bueno,

As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - DCNEM –

consubstanciam-se em um conjunto de definições doutrinárias sobre

princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na

organização pedagógica e curricular de cada unidade escolar integrante dos

diferentes sistemas de ensino. Como tal, não têm a mesma permanência da

lei por constituírem „indicações para um acordo de ações‟, mas são as

determinantes legais da ação pedagógica (IBIDEM, 2000, p. 07)

As Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio solicitam da escola o empenho

em organizar currículos inovadores, que conciliem o conhecimento dos princípios

científicos de produção moderna e o exercício da cidadania plena, a formação ética

e a autonomia intelectual. Apresentam princípios axiológicos, orientadores de

pensamentos e condutas, bem como princípios pedagógicos, com vista à construção

dos projetos pedagógicos pelos sistemas e instituições de ensino.

57

Os princípios axiológicos (...) são coerentes com a orientação da UNESCO

apresentada no relatório da Reunião Internacional sobre Educação para o

Século XXI. Esse documento apresenta as quatro grandes necessidades de

aprendizagem dos cidadãos do próximo milênio, às quais a educação deve

responder: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e

aprender a ser. Na reforma educacional brasileira, essa orientação se

objetiva nos seguintes princípios: a estética da sensibilidade, a política da

igualdade a ética da identidade. As novas formas de produção "pós-

industrial" valorizariam essas competências, introduzindo, no modo de

produzir e de educar, um humanismo que possibilitaria integrar a formação

para o trabalho num projeto mais ambicioso de desenvolvimento da pessoa

humana (RAMOS, 2007, p.05).

Um dos princípios filosóficos do Ensino Médio é a estética da sensibilidade,

estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado, a

afetividade, favorecendo a constituição de identidades capazes de suportar a

inquietação, conviver com o incerto, o imprevisível e o diferente.

Entendendo que a educação se processa num cenário vivo e dinâmico, tais

princípios não são neutros. Ao contrário, baseiam-se numa certa forma de

compreender a sociedade e suas relações no momento contemporâneo. A formação

básica para o trabalho é defendida como necessária para se compreender a

tecnologia e a produção, com o propósito de preparar recursos humanos adequados

à realidade do mundo do trabalho.

Nesse sentido, o discurso legal das DCNEM, escrito ao final de 1997, é

permeado por ideologias legitimadoras de interesses sociais, entretanto a leitura do

documento se faz necessária por nos remeter a possíveis ações pedagógicas no

âmbito das unidades escolares.

Decorridos cerca de dez anos da apresentação das propostas, a escola ainda

se depara com as seguintes questões: Como estruturar uma escola capaz de

atender às demandas da sociedade e aos princípios legalmente instituídos? Como

vencer dificuldades e desafios enfrentados pelas escolas na concretização dessa

nova concepção curricular do Ensino Médio?

Atender à demanda social, composta por um segmento jovem cujos itinerários

de vida serão cada vez mais imprevisíveis, como consequência do processo de

globalização presente na sociedade, é o grande desafio do ensino médio no século

XXI.

58

2.2.2 Princípios de Interdisciplinaridade e Contextualização na legislação

educacional: as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, os

currículos de Ensino Fundamental e Médio passaram a ser organizados a partir de

uma base nacional comum:

Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base

nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e

estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas

características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e

da clientela.

Nesse sentido, o texto legal define ser competência dos sistemas de ensino e

às propostas pedagógicas de cada instituição de ensino a definição do currículo

escolar de acordo com as características de sua clientela.

Com a publicação do Parecer CNE/CEB Nº. 15/1998 e da Resolução CNE/CEB

Nº 03/1998, que dispõem sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino

Médio, as disciplinas escolares passaram a ser estruturadas em áreas de

conhecimento. Nesse sentido, foram agrupadas disciplinas que tinham como base a

reunião de conhecimentos que compartilham objetos de estudo semelhantes.

As áreas de conhecimento foram apresentadas da seguinte forma: Linguagens

e Códigos e suas Tecnologias – LCT- (englobando as disciplinas de Português,

Inglês, Educação Artística e Educação Física), Ciências da Natureza, Matemática e

suas Tecnologias – CNMT -(com as disciplinas de Matemática, Física, Química e

Biologia) e Ciências Humanas e suas Tecnologias – CHT- (envolvendo as disciplinas

de História e Geografia).

Em seu texto legal, as Diretrizes Curriculares Nacionais argumentam que essas

disciplinas escolares foram organizadas dessa forma por possibilitar uma maior

facilidade de comunicação entre si, criando condições para que a prática escolar se

desenvolva numa perspectiva de interdisciplinaridade e de uma aprendizagem

significativa, para a superação de uma compreensão fragmentada da realidade. As

tecnologias surgem como ferramentas e procedimentos de cada disciplina com a

finalidade de desenvolverem seus objetivos, não estando apenas ligadas ao mundo

tecnológico e ao uso de mídias educativas.

59

Os currículos escolares do Ensino Médio passaram a ser organizados em cinco

eixos:

- identidade, diversidade e autonomia (desenvolvidos a partir do trabalho junto

à comunidade e às necessidades do mundo social);

- interdisciplinaridade e contextualização, estruturas organizativas dos novos

currículos.

Interdisciplinaridade e contextualização aparecem como propostas de novos

recursos que permitirão a reorganização da experiência docente e a definição

coletiva do que e de como ensinar os alunos.

Interdisciplinaridade e Contextualização são recursos complementares

para ampliar as inúmeras interações entre as disciplinas [...]. Juntas elas se

comparam a um trançado cujos fios estão dados, mas cujo resultado final

pode ter infinitos padrões de entrelaçamento e muitas alternativas de

combinar cores e texturas. De forma alguma se espera que uma escola

esgote todas as possibilidades. Mas recomenda-se com veemência que ela

exerça o direito de escolher um desenho para seu trançado e por mais

simples que venha a ser ele expresse suas próprias decisões e resulte num

cesto generoso para acolher aquilo que a LDB recomenda em seu artigo 26:

as características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia

e da clientela (Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, 1998,

p. 116).

O discurso oficial, expresso através das DCNEM's, aponta para situações de

como a interdisciplinaridade deva ser aplicada. Não apresenta um conceito sobre o

termo, porém cita a necessidade de diferenciar disciplina, no sentido escolar, de

ciência ou corpo de conhecimentos. Enfatiza que a interdisciplinaridade deve ir além

da mera justaposição de disciplinas, definida como seleção de conhecimentos

ordenados e organizados, a serem apresentados ao aluno.

A partir da ideia de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente

com outros conhecimentos, expresso através de questionamentos, confirmações,

negações, as DCNEM's consideram que algumas disciplinas se identificam e se

aproximam entre si. Outras se distanciam, por se diferenciarem em vários aspectos:

pelos métodos e procedimentos utilizados, pelo objeto que se pretende conhecer,

pelas habilidades que mobilizam naquele que investiga. Através dessa possibilidade

de relacionar as disciplinas em atividades ou projetos de estudo, capazes de evitar

que as disciplinas escolares deixem de manter sua individualidade, sem diluir-se em

60

generalidades, espera-se que os alunos aprendam a olhar para o mesmo objeto de

conhecimento sob perspectivas diferentes. Visão orgânica do conhecimento,

organizando e tratando os conteúdos do ensino e as situações de aprendizagem de

modo a destacar as múltiplas interações entre as disciplinas do currículo.

A contextualização presente nas DCNEM's aparece como a possibilidade de

estabelecer a interação entre as disciplinas nucleadas numa área e entre as próprias

áreas de conhecimento. A premissa defendida é a de que o conhecimento da

realidade mais próxima pode motivar o aluno a compreender formas mais complexas

da realidade, expressas nas relações que se desenvolvem em nível mais global. Pressupõe abertura e sensibilidade para identificar as relações que existem entre os

conteúdos do ensino e das situações de aprendizagem com os muitos contextos de

vida social e pessoal, de modo a estabelecer uma relação ativa entre o aluno e o

objeto do conhecimento e a desenvolver a capacidade de relacionar o aprendido

com o observado, a teoria com suas conseqüências e aplicações práticas.

Tufano (2002, p. 41) busca o significado do termo “contextualizar”, derivado do

latim contextu como ato de colocar alguém a par de alguma coisa, revelando tudo

aquilo que a princípio pode parecer óbvio, mas que deve ser analisado e estudado

em suas raízes.

Contextualizando tentamos colocar algo em sintonia com o tempo e com o

mundo, construímos bases sólidas para poder dissertar livremente sobre

algo, preparamos o solo para criar um ambiente favorável, amigável e

acolhedor para a construção do conhecimento. (TUFANO, 2002, p. 41)

Contextualizar o conteúdo que se quer aprendido significa compreender que

todo conhecimento pressupõe uma correlação entre sujeito e objeto. O tratamento

contextualizado dos conteúdos escolares aparece como recurso para retirar o aluno

da condição de expectador passivo, provocando aprendizagens significativas. A

linguagem surge como articuladora entre o modo de produção e o conhecimento, e

também como ferramenta na transposição didática que se processa nos meios

educativos. Compete à escola utilizar-se de diversos recursos pedagógicos, como

meio de levar o aluno a reconhecer diversas formas e estruturas da linguagem, bem

como os processos histórico-culturais que determinaram a construção do

conhecimento científico, com a clareza de que contextualizar constitui-se num ato

particular e situacional, relacionado ao conhecimento construído.

61

Machado (2004, p.145) defende a ideia de que, apesar de frequente, o termo

contextualização é inadequadamente utilizado em seu sentido etimológico, sendo

correta a expressão “contextuação”, a qual significa o enraizamento de uma

referência a um texto da qual foi extraída. Por analogia, contextuar tem o sentido de

estratégia fundamental para a construção de significados. Associar a vida a uma

densa teia de significações, tal qual um imenso texto, leva à tendência de relacionar

contextuação “a uma necessidade aparentemente consensual de aproximação entre

os temas escolares e a realidade extra escolar” (ibidem, 1999), muitas vezes

confundida com rótulos denominados “interdisciplinaridade, transdiscipinaridade ou

mesmo transversalidade”.

Vale ressaltar que o conceito de contextualização aparece vinculado a

discursos híbridos, transmitidos pelos documentos formulados pelas políticas

públicas de educação. Lopes (2002, p. 390) destaca a divulgação do termo pelo

MEC como princípio curricular central dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio, dentro de uma proposta de educar para a vida. A revolução do

ensino, traduzida numa proposta de “educação contextualizada”, recupera ideias do

progressivismo proposto por Dewey no movimento da Escola Nova. A autora alerta

que o conceito de contextualização, ligado a uma concepção mais ampla de

educação, tende a associar-se a princípios eficientistas: valorização de dimensões

econômicas (ligadas ao trabalho e produção) em detrimento a uma dimensão

cultural mais ampla. Dessa forma, a representação de um novo e revolucionário

ensino (voltado ao atendimento a demandas do mercado e do sistema produtivo)

desconsideraria o entendimento do currículo escolar como uma política cultural.

Entretanto, a exploração de tal sentido de contextualização não será desenvolvida

minuciosamente neste trabalho.

2.2.3 Desafios dos profissionais da educação frente ao “novo” Ensino Médio

A exigência interdisciplinar impõe que cada especialista transcenda a sua

própria especialidade, tomando consciência de seus próprios limites para

acolher a contribuição das outras disciplinas. Uma epistemologia da

complementaridade, ou melhor, da convergência, deve substituir a da

dissociação.

G.Gusdorf

62

Transformar a escola de forma a oferecer respostas às exigências do mundo

contemporâneo tem sido um desafio marcado pelo esforço em romper com antigos

paradigmas.

No século XIX, vivemos a especialização das Ciências e a consolidação de

diversas especialidades: eletromagnetismo, termodinâmica, mecânica, embriologia.

A especialização trouxe a precisão das formulações, o incremento quantitativo na

produção cientifica, porém, em contrapartida, a excessiva compartimentalização do

conhecimento.

As revoluções técnico-científicas que propiciaram a evolução da Ciência

Moderna,permitiram que o homem desenvolvesse a capacidade de investigar e

decifrar o mundo que o cerca, favorecendo o surgimento de conhecimentos cada vez

mais específicos.

O estudo de cada um dos ramos das Ciências trouxe grandes contribuições em

diferentes áreas de conhecimento, propiciando melhorias na qualidade de vida das

pessoas. Pesquisadores tenderam a isolar seus problemas de pesquisa, a fim de

torná-los mais precisos, permitindo resolvê-los de forma mais rápida e concisa. O

conhecimento humano, frente ao volume de descobertas de cada área da Ciência,

foi direcionado a especializações, culminando na fragmentação do saber em

disciplinas científicas, disciplinas estas que tenderam a aprofundar o conhecimento

de seus objetos de estudo.

Num mundo em constante transformação, como a escola se articula diante

desse contexto?

O mesmo movimento foi percebido no ambiente escolar: disciplinas escolares

que compuseram o currículo dos mais variados níveis de ensino foram cada vez

mais se especializando ao ponto de não permitirem o desenvolvimento de relações

entre si, afastando-se de sua realidade de produção. Trabalhadas de modo

estanque, favoreceram a formação de indivíduos dotados de uma visão de mundo

superficial e restrita. O discurso oficial presente nas políticas públicas de educação,

representando a aspiração à unidade do saber, impõe sua marca presente no

momento histórico de nossa atualidade.

Silva (1999, p. 67) aborda que uma das demandas a atingir a escola e os

docentes, a partir dos anos 60, foi o “movimento pela reunificação do conhecimento”.

[...] a crítica da disciplinarização do conhecimento questiona os docentes

sobre a necessidade de encontrarem abordagens de ensino que ofereçam

63

aos educandos uma visão mais ampla e global dos fenômenos estudados.

Não compete mais ao aluno efetuar a unidade do conhecimento mediante

unicamente seu próprio esforço: a escola, através de seus docentes, deve

oferecer aos alunos um conhecimento interdisciplinar, com a contribuição

das diferentes disciplinas para uma perspectiva globalizante. (IBIDEM, p.

67-68)

Frente ao desafio de superar a fragmentação do conhecimento, a proposta de

organização do currículo escolar do Ensino Médio em áreas de conhecimento traz a

tona o tema Interdisciplinaridade, amplamente discutido na esfera educacional e no

meio acadêmico.

Entretanto, sabemos que a Universidade, lócus responsável pela formação dos

professores, enfatiza uma perspectiva disciplinar, enquanto que as demandas

educacionais solicitam o trabalho interdisciplinar. Atrelado a esse fato, persiste uma

concepção “conteudista” em relação ao papel a ser desempenhado pela escola: o

Ensino Médio é visto predominantemente pelo seu caráter propedêutico.

É necessário que a escola, como instituição educativa, reverta tal situação,

deslocando a visão de currículo centrado nos conteúdos para o currículo centrado

no sujeito social, a partir da valorização da própria experiência, do trabalho realizado

coletivamente e em interação.

Para superação de tais entraves, a proposta de trabalho em áreas do

conhecimento apresenta-se como um recurso aos professores, na medida em que

favorece a articulação dos conteúdos, objetivando superar a fragmentação do saber.

Planos de Ensino precisam sem estruturados em função da aprendizagem dos

alunos. Atividades planejadas em cada disciplina escolar, pensadas, propostas e

articuladas pelos professores da área, poderiam contemplar questões pertinentes e

relevantes para a escola e para a sociedade contemporânea.

2.3 Cenários da Educação no Brasil: o Programa “Ensino Médio em Rede”

A aplicação dos princípios de interdisciplinaridade e contextualização,

presentes nos currículos de Ensino Médio, aparece na legislação de ensino como

proposta de novos recursos que permitiriam a reorganização da experiência docente

e a definição coletiva do que e de como ensinar os alunos.

O § 1º do artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº

9394/96 estabelece que os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação do

64

curso de Ensino Médio serão organizados de tal forma que ao final de sua

escolarização o educando possa demonstrar: o domínio dos princípios científicos e

tecnológicos que presidem a produção moderna, o conhecimento das formas

contemporâneas de linguagem e o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de

Sociologia necessários ao exercício da cidadania.

Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste

Capítulo e as seguintes diretrizes:

I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do

significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de

transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como

instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da

cidadania;

II - adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a

iniciativa dos estudantes;

III - será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina

obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter

optativo, dentro das disponibilidades da instituição.

IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas

obrigatórias em todas as séries do ensino médio.

§ 1º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão

organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando

demonstre:

I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a

produção moderna;

II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem.

No ano de 2000, em resposta às DCNEM‟s, O Conselho Estadual de Educação

de São Paulo - CEE/SP publicou as Diretrizes Curriculares para o sistema de ensino

do Estado de São Paulo - Ensino Fundamental e Médio, através da Indicação CEE

nº. 09/2000.

O objetivo primordial desta Indicação foi a publicação de diretrizes capazes de

orientar o Sistema de Ensino do Estado de São Paulo no processo de implantação

de um novo modelo educacional para o Ensino Médio.

A Indicação do Conselho Estadual de Educação do estado de São Paulo

aponta ser competência das escolas de ensino médio a oferta de uma formação

básica que alie informações e conteúdos disciplinares entre si, com valores e

atitudes (favorecendo o desenvolvimento de habilidades e o alcance de

65

competências importantes para a vida pessoal e social e para o trabalho). A

organização de conteúdos em áreas e projetos interdisciplinares melhor atenderia ao

objetivo de possibilitar uma visão articulada do conhecimento e propiciando o

diálogo permanente entre as diferentes áreas do saber.

Sugere que o tratamento dos conteúdos deva ser desenvolvido de modo

contextualizado, aproveitando sempre que possível as relações entre conteúdos e

contexto para dar novos significados ao aprendido, estimulando a iniciativa e a

autonomia intelectual do aluno.

Esta concepção de currículo envolve os conceitos de interdisciplinaridade e

contextualização. Todo conhecimento mantém um diálogo permanente com

outros conhecimentos. Algumas disciplinas identificam-se, outras

diferenciam-se, tanto relativamente ao tipo de conhecimento e aos métodos,

quanto ao objeto de conhecimento, ou mesmo às habilidades mobilizadas.

Nesse sentido, a interdisciplinaridade corresponde à possibilidade de

relacionar disciplinas próximas em atividades ou projetos de estudo,

pesquisa e ação, bem como à integração entre linguagens e procedimentos

diversos que permitam o tratamento de temas ou projetos complexos.

Desse modo, é possível a proposta de trabalhos interdisciplinares, não só

entre áreas de maior evidência de afinidade - artes e história, química e

biologia -, como também entre áreas aparentemente distantes - artes e

física, biologia e filosofia. O importante é haver um tema gerador, um

experimento, um plano de trabalho ou de ação para intervir na realidade, um

texto em multimídia etc. (Indicação CEE nº. 09/2000 – Diretrizes

Curriculares para o sistema de ensino do Estado de São Paulo, Ensino

Fundamental e Médio, 2000, p.139).

Mas será que professores que atuam no ensino básico dispõem de uma

formação capaz de entender o conceito de interdisciplinaridade e desenvolver

práticas pedagógicas interdisciplinares capazes de atender aos objetivos de tal

etapa de escolarização?

O discurso que circula na esfera educacional proclama que a mudança

introduzida a partir da publicação das DCNEM's se efetivaria a partir de fatores como

a revisão curricular, o rompimento com um elenco prescritivo e conteudista de

disciplinas e a reconstrução da identidade das escolas, entendidas como espaços

coletivos na construção de propostas pedagógicas que pressupõem a formação em

serviço.

66

Esforços no sentido de repensar a formação docente, nas dimensões inicial e

continuada, advêm da década de 90. Contudo, parece que pouco se avançou a esse

respeito, principalmente em relação à prática docente. Ainda é possível constatar

que professores mal-formados são injustamente apontados como únicos

responsáveis pelo fracasso escolar.

Programas de formação continuada de professores, decorrentes de políticas

públicas dos sistemas de ensino, procuraram superar déficits decorrentes da

formação superior, realizada em cursos de Licenciatura que se mostraram ineficazes

frente às demandas educativas. Buscaram, muitas vezes, dotar os docentes de

perícias específicas, capacitando-os, de forma técnica, para o enfrentamento de

problemas presentes nas salas de aula. O ensino era entendido como uma

intervenção tecnológica, e o professor, como um técnico especializado em aplicar

regras derivadas do conhecimento científico, descritas através de uma taxonomia de

objetivos de aprendizagem.

No estado de São Paulo, uma das demonstrações de políticas públicas

voltadas ao Ensino Médio foi o Plano de Investimentos/ Programa de Melhoria e

Expansão no Ensino Médio – PROMED. O Programa, desenvolvido a partir do ano

de 2001, caracterizou-se inicialmente pela destinação de recursos públicos para

compra de materiais permanentes (mobiliário e equipamentos) e acervo bibliográfico

para as escolas que ofereciam tais cursos.

A partir de 2004, o estado de São Paulo desenvolveu o “Ensino Médio em

Rede”, programa de formação continuada concebido e coordenado pela Secretaria

de Estado da Educação de São Paulo, por meio da Coordenadoria de Ensino e

Normas Pedagógicas - CENP. O público-alvo contava com Assistentes Técnico-

Pedagógicos (ATP‟s) que atuavam nas Diretorias de Ensino do estado de São

Paulo, Supervisores de Ensino, Professores Coordenadores (PC‟s) de escolas

públicas paulistas e professores de Educação Básica nível II que atuavam no Ensino

Médio regular. O programa também contou com o financiamento do PROMED, por

meio de convênio firmado entre a Secretaria de Estado da Educação (SEE), o

Ministério da Educação (MEC) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)

e teve a gestão da Fundação Vanzolini.

O “Ensino Médio em Rede” foi desenvolvido integrando encontros presenciais

que faziam uso dos ambientes de aprendizagem e os recursos virtuais

desenvolvidos em pólos regionais denominados “Rede do Saber”. Os meios

didáticos utilizados eram teleconferências, videoconferências e ferramentas web,

67

que propiciavam o contato virtual e on-line com os especialistas que coordenavam o

Programa, definindo o caráter do curso num modelo de formação à distância. O

público-alvo participava de encontros presenciais periódicos, em cada Diretoria de

Ensino, nos quais eram discutidos os temas apresentados nos materiais de apoio

desenvolvidos para o programa.

O Programa foi realizado em duas fases: a primeira, entre 2004 e 2005, teve o

seu conteúdo voltado para a contextualização da proposta de formação e para a

discussão das múltiplas representações dos sujeitos envolvidos na prática educativa.

Nessa primeira fase não ocorreu a participação direta de professores nos encontros

presenciais: competia ao Professor Coordenador o desenvolvimento de eixos

temáticos nos Horários de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC‟s), momentos

semanais de encontro entre docentes nas Unidades Escolares.

A segunda fase do Programa, desenvolvida em 2006, deu ênfase para o

desenvolvimento curricular das áreas de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias;

Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e suas

Tecnologias. Dessa etapa participaram de encontros presenciais três professores

representantes de cada escola, um de cada área de conhecimento, indicados pela

Direção da escola. Os demais professores recebiam informações sobre o curso por

intermédio do professor coordenador e dos docentes designados “professores

representantes”.

Os objetivos do Programa “Ensino Médio em Rede” eram: o aprofundamento

das discussões sobre as especificidades curriculares do Ensino Médio; o

fortalecimento da integração entre os professores das áreas de conhecimento (a

partir de projetos temáticos e de uma perspectiva interdisciplinar); e o fornecimento

subsídios teórico-práticos para o trabalho pedagógico dos professores das diferentes

disciplinas e áreas do conhecimento.

O programa consistia numa formação continuada em serviço destinada a

docentes e professores coordenadores que atuavam nas escolas de Ensino Médio

públicas paulistas, pautada nos eixos “reflexão-na-ação”, “reflexão-sobre-a-ação” e

“reflexão-para-a-ação” e na ideia de professor reflexivo (SCHÖN, 2000) enfocando

as especificidades do currículo desse nível de ensino e proporcionando aos

professores subsídios necessários para uma análise da proposta pedagógica da

escola em que lecionavam e da suas próprias ações pedagógicas em sala de aula.

O “EMR” tratava de temas distintos:

Tema 1 – “A formação do professor no Programa Ensino Médio em Rede”.

68

Tema 2 – Professores e alunos: um encontro possível e necessário

Tema 3 – O currículo da escola média

Tema 4 – O projeto político – pedagógico da escola

Os conceitos de “Interdisciplinaridade e Contextualização”, no Programa

“Ensino Médio e Rede”, para a Secretaria de Estado da Educação do Estado de São

Paulo, eram desenvolvidos junto ao Tema 3, que enfocava o currículo. Tais

conceitos, juntamente com o conceito de Competências, eram compreendidos como

elementos estruturadores do currículo. Interdisciplinaridade buscaria a superação da

fragmentação do conhecimento, permitindo ao aluno a visão do todo.

Contextualização, como movimento de aproximar os educandos a diferentes

contextos de aprendizagem, relacionando-os. O Projeto buscava desenvolver

possibilidades de um trabalho interdisciplinar por áreas de conhecimento, definidas a

partir das diretrizes legais: Linguagens e Códigos e suas Tecnologias – LCT

(englobando as disciplinas de Português, Inglês, Educação Artística e Educação

Física), Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias – CNMT (com as

disciplinas de Matemática, Física, Química e Biologia) e Ciências Humanas e suas

Tecnologias – CHT (envolvendo as disciplinas de História e Geografia). O Programa

Ensino Médio em Rede teve como finalização a elaboração de sequências didáticas

com vistas à produção de artigos de opinião por parte dos alunos de professores

participantes.

Quanto aos conceitos desenvolvidos, em especial o de interdisciplinaridade, há

que se ressaltar que o Programa EMR deixou de aprofundar o estudo das teorias

que circulam no meio acadêmico. Inexistiu também a proposta de estudo das

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.

O modelo de formação desenvolvido pelo Programa estava pautado nas

premissas de que os professores são elementos fundamentais no processo

educacional e de que a escola é um dos espaços mais adequados para que se

processe tal formação. A presença de um professor representante frequentando as

videoconferências de formação objetivava ampliar as formas de participação da

escola nas discussões sobre o currículo oficial. Na escola, sob a coordenação do

Professor Coordenador, durante as HTPC‟s, o professor representante deveria

socializar suas aprendizagens e discussões, junto aos demais colegas da unidade

escolar.

Entretanto, é necessário ressaltar a dificuldade ainda existente em nossa

cultura escolar quanto à realização de trabalhos coletivos e quanto ao

69

posicionamento dos docentes como sujeitos coletivos. A proposta do Programa

EMR, ao atribuir ao professor coordenador e ao professor representante a

competência de multiplicar conhecimentos obtidos no curso esbarrava, em algumas

unidades escolares, em problemas ligados à organização de espaços coletivos e à

própria função precípua do Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo, como espaço

de discussão com finalidade pedagógica:

A existência de autênticos sujeitos nas unidades escolares só é possível

quando ocorre a re-humanização das relações entre as pessoas e, para

além do funcionário, surge a pessoa do educador. O surgimento da pessoa

pode acontecer em um clima próprio que é o comunitário, o coletivo, isto é,

um ambiente onde haja grupos de referência dos quais seja possível

participar e se desenvolva um sentido de “nós-ético” (SILVA, 1999, p.71).

Entendendo a tarefa docente como um trabalho coletivo e a possibilidade de

encontro com os pares como um momento que possibilita a partilha de ações

críticas, o curso “Ensino Médio em Rede” pode ser compreendido como uma ação

necessária, a qual focava o processo contínuo de formação docente imprescindível à

educação pública paulista, uma vez que um novo modelo de organização curricular

para o Ensino Médio foi proposto como política pública educacional. Tomando como

parâmetro a ideia fomentada pelo curso “Ensino Médio em Rede” de que a escola é

“lócus” de formação docente, a hipótese desta pesquisa apóia-se na premissa de

que a execução do curso, embora precursor nas discussões sobre os conceitos de

interdisciplinaridade e contextualização, esbarrou em sérias dificuldades, uma vez

em que a multiplicação das informações divulgadas ficava a cargo dos professores

coordenadores e dos professores representantes de cada uma das escolas públicas

de Ensino Médio, tendo em vista que lhes era atribuída a incumbência de

multiplicarem conhecimentos adquiridos nas videoconferências realizadas.

Embora o Programa EMR proclamasse a escola como espaço de formação, a

organização do curso já excluía da formação a totalidade dos professores que

ministravam aulas no Ensino Médio da rede pública estadual de ensino. Dessa

forma, alijados do material didático do curso e da oportunidade de participar

presencialmente de discussões junto aos especialistas do programa, restavam-lhes

os momentos de HTPC‟s para as reflexões sobre as temáticas abordadas.

Considerando que a formação continuada pressupõe uma relação entre os

sujeitos-aprendentes e o conhecimento transmitido, a hipótese inicial desta pesquisa

70

partiu do pressuposto de que a grande maioria dos professores que atuam no

segmento do Ensino Médio, na rede pública estadual paulista, não tem clareza dos

conceitos de interdisciplinaridade e contextualização. Ora, uma das únicas

oportunidades de discussão de tais conceitos deu-se por meio de um curso cuja

participação dos docentes foi excludente e seletiva, numa ótica de transmissão

generalista de conhecimentos.

Entendendo que uma formação continuada voltada à construção dos

complexos conceitos de interdisciplinaridade e contextualização demandaria uma

abordagem que considerasse mais além do que dotar professores de conhecimentos

sobre a temática abordada, julgo arriscado delegar à escola, apenas, a missão de

assumir a responsabilidade de ser o único espaço de formação continuada previsto

pelo Programa “Ensino Médio em Rede”, uma vez que o Estado não garantiu

condições mínimas ligadas ao acesso de todos os professores ao curso.

2.4 Interdisciplinaridade e Contextualização: olhares teóricos

Transformar a escola de forma a oferecer respostas às exigências do mundo

contemporâneo tem sido um desafio marcado pelo esforço em romper com antigos

paradigmas.

A intensa diferenciação nos saberes, nas linguagens e nos procedimentos

científicos deu origem à multiplicidade de disciplinas autônomas.

Santomé (1998, p.55) aponta que a disciplina é uma maneira de organizar e

delimitar um território de trabalho, sob um determinado ângulo de visão. Surge ai

uma imagem particular da realidade, correspondente ao recorte traduzido pelo

ângulo de seu objetivo de pesquisa. A compartimentação do conhecimento traz a

dificuldade crescente em delimitar as questões definidas como objeto deste ou

daquele campo de especialização do saber: quais as fronteiras existentes entre as

áreas de conhecimento?

A interdisciplinaridade, por sua vez, é um conceito que começa a ser

construído no século XX. Ao longo desse século, sobretudo a partir dos anos 60 e

70, o termo interdisciplinaridade surge ligado à finalidade de corrigir possíveis erros

de uma Ciência excessivamente compartimentada e sem comunicação

interdisciplinar (SANTOMÉ, 1998, p. 62). Até o presente momento, muito teóricos

debruçaram-se no estudo da temática, trazendo inúmeras contribuições.

71

Buscando a significação do termo “Interdisciplinaridade”, encontramos muitos

sentidos, relacionados a conceitos diversos. Tratando-se de uma palavra

considerada polissêmica, partimos do pressuposto de que seu uso deve ser aplicado

com ressalvas, evitando reducionismos ao ponto de considerar projetos tidos como

“interdisciplinares” por carregarem apenas a ideia de temas geradores, de integração

curricular ou de justaposição de disciplinas.

Fourez (2001) aponta que há meio século a palavra interdisciplinaridade

encontrava-se fora dos dicionários, e que, através de estudos ocorridos na década

de 70, passou a ser amplamente definida como “interação entre duas ou mais

disciplinas [...]”. Argumenta que uma definição tão geral como essa se mostra

insuficiente para pensarmos e fundamentarmos, hoje, práticas interdisciplinares.

Vale-se de um modelo epistemológico pra definir um referencial de noções, ligado à

interdisciplinaridade.

A organização dos saberes em disciplinas científicas, na visão de Fourez

(2001), constitui-se numa produção cultural de grande importância, ao

apresentarem-se como modos historicamente organizados de produzir

representações sobre o mundo. Tais saberes disciplinares são produzidos segundo

referenciais normatizados por uma comunidade científica especifica, de acordo com

o paradigma que sustenta tal disciplina. A aspiração da sociedade em ultrapassar a

fragmentação dos saberes disciplinares, no enfrentamento de situações-problema,

conduziria a abordagens interdisciplinares, apelando aos saberes especializados

das disciplinas científicas e construindo ilhas de racionalidade capazes de

comunicarem-se entre si. A prática interdisciplinar seria formalizada a partir da

construção e reconstrução de saberes formadores de ilhas de racionalidade, que se

comunicariam através da intersubjetividade, isto é, da criação de comunidades de

comunicação.

Para Lenoir (2007, p. 04) o termo interdisciplinaridade é um conceito recente,

originado a partir do desenvolvimento do pensamento científico, e que tomou forma

com a estruturação do saber científico em disciplinas, numa tentativa de substituir a

tendência à fragmentação do conhecimento. A partir da constatação de que os

movimentos sociais, na segunda metade do século XX, passam a questionar a

presença do homem no mundo, o tema interdisciplinaridade passa a ser discutido

nas esferas científica, prática, profissional e escolar.

72

A preocupação para com a unidade do saber releva de uma preocupação

trans-histórica [...], que remete à unidade do ser humano, à unidade do

universo cultural e ao sentido da vida [...]. (LENOIR, 2007, p.04)

Partindo de tradições culturais distintas, Lenoir (2007) apresenta três

interpretações da perspectiva interdisciplinar fundadas em lógicas distintas: a lógica

do sentido, da funcionalidade e da intencionalidade fenomenológica.

A lógica do sentido refere-se a uma interrogação epistemológica, de

questionamento das certezas que a ciência havia admitido até então e da expansão

no sentido de explorar as fronteiras das disciplinas científicas e suas zonas

intermediárias, com vistas à organização dos saberes científicos, evitando sua

fracionalização. O aprisionamento das disciplinas científicas em suas próprias

fronteiras seriam obstáculos à pesquisa de novos conhecimentos, e a prática

interdisciplinar tenderia à reflexão epistemológica sobre os saberes disciplinares em

interação, em direção ao saber-saber. O sujeito constitui-se através da apreensão do

conhecimento, por aquilo que conhece, por aquilo que sabe.

A lógica da funcionalidade apresenta-se interligada ao questionamento social:

na busca de um saber útil, integralizador dos saberes disciplinares, capaz de

fornecer resposta a problemas contemporâneos. Um saber-fazer que conclama o

saber-ser: a relação entre conhecimento e sujeito, que, por meio de suas

aprendizagens, desenvolve habilidades para intervir no mundo.

Lenoir (ibidem, p. 17) recorre a Palmade (1977, p. 287) e discute o termo

“Interdisciplinaridade de projeto”, contrário ao viés tecnicista, voltado a um

conhecimento extremamente útil, funcional, utilizável, operacional. As disciplinas

científicas devem servir de fundamento à interdisciplinaridade de projeto e esta deve

suscitar a pesquisa das relações entre as disciplinas.

Já a última lógica, a da intencionalidade fenomenológica, em ligação direta com

a atividade profissional cotidiana, representa as aspirações das sociedades

industriais marcada pelo fenômeno da globalização. Nesse caso, a

interdisciplinaridade se refere não a uma categoria de conhecimento, e sim a uma

categoria de ação: o olhar é dirigido para o sujeito (inserido numa realidade social e

política) e para sua subjetividade. Aparece em destaque a questão da

intencionalidade, da necessidade do (auto) conhecimento, do diálogo e da

intersubjetividade.

73

Lenoir (2007) aponta que a lógica brasileira corresponde à última dimensão

apresentada, colocando que, nesse caso, a metodologia do trabalho interdisciplinar

encontra como foco o docente e suas práticas, de modo a propiciar ao professor a

descoberta de si e das atitudes que compõem seu agir. Entretanto, ressalta que

tanto o ensino quanto a formação para e pela interdisciplinaridade devem se manter

indissociáveis dessas três dimensões, preservando-se a cultura que fundamenta

cada uma das representações apresentadas, evitando o nivelamento que uma

“internacionalização selvagem” poderia acarretar.

Quanto aos estudiosos brasileiros que se dedicam ao tema, destacam-se os

trabalhos surgidos a partir da década de 70, com Japiassú e Fazenda. Os dois

pesquisadores passam a desenvolver pesquisas, enfatizando que a setorização do

conhecimento não é capaz de resolver os problemas de nosso tempo.

Japiassú (1976, p.43) adota uma perspectiva que anuncia o protesto ao saber

fragmentado em migalhas, pulverizado numa multiplicidade crescente de

especialidades, em que cada uma das disciplinas fecha-se em si própria como que

para fugir ao verdadeiro conhecimento. Sua denúncia apresenta-se contra ao que

denomina esquizofrenia intelectual de uma universidade cada vez mais

compartimentada, dividida, subdividida, setorizada e subsetorizada, contrária à

sociedade dinâmica e concreta, onde a vida é percebida como um todo complexo e

indissociável.

No caso de Fazenda (1991;2002), sua pesquisa enfatiza a interdisciplinaridade

como categoria de ação, da atitude de conhecer cada vez mais e melhor. Da

reciprocidade que impulsiona a troca entre os pares idênticos, entre os anônimos e a

troca consigo. Do desafio ante o novo e do redimensionamento do velho. Da atitude

de responsabilidade, de humildade, de alegria, de encontro, enfim, de vida. A

interdisciplinaridade aparece como interação e interrelação entre as disciplinas

científicas, mediada pela intersubjetividade e sustentada na história de vida do

docente.

Ambos os autores denotam a intenção de rompimento com o saber

fragmentado. Romper, sobretudo, com paradigmas que sustentam práticas de

trabalho individualizado, com a supremacia de disciplinas tidas como mais

valorizadas no currículo escolar se sobrepondo a outras consideradas como menos

importantes. Encontrar as fronteiras que limitam o saber cultural e historicamente

construído, o espaço “entre” pessoas, “entre” áreas de conhecimento, “entre”

atitudes que sustentam práticas e relações que permeiam a tarefa educativa.

74

Jantsch e Bianchetti (2008, p. 15) resgatam a concepção de

interdisciplinaridade debatida no Congresso de Nice – França, em 1969, atrelada a

pressupostos da filosofia do sujeito, concordando com o aspecto de que a

fragmentação do conhecimento leva o homem a não ter domínio sobre o próprio

conhecimento produzido. Criticam, porém, o posicionamento radical defendido por

Japiassú, de que o conhecimento fragmentado passa a ser assumido como uma

patologia, uma doença que fatalmente compromete a produção do conhecimento:

A fragmentação do conhecimento – processo e produto, é, pressupõe-se,

um mal em si, só podendo ser superado pelo ato de vontade de um sujeito

(pensante) que, por opção/decisão, faz a cirurgia extirpadora dos tumores

(leia-se, entre outros, disciplinas) cancerígenos (IBIDEM, 2008, p. 16).

Para os autores, o processo de fragmentação do conhecimento e do trabalho

impôs-se historicamente, não sendo aceitável qualquer tipo de atitude de

lamentação sobre tal fato. Argumentam que a natureza dos objetos/problemas de

conhecimento determina as possibilidades de enfoques interdisciplinares: há

objetos/problemas que só se esgotam mediante buscas advindas da relação

interdisciplinar entre as ciências, enquanto outros aprofundam o conhecimento ao

serem esgotados em sua própria especificidade. Genérico e específico tramitariam

não numa dimensão excludente, e sim complementar.

Programas de formação continuada que consideram como ponto de partida a

experiência e a vivência pessoal possibilitam ao professor reconhecer-se como

sujeito da própria prática. Esse percurso tende a permitir ir além: reconhecer

também dicotomias presentes nos espaços escolares, conforme apontado por

Bochiniak (1992, p. 19), entre elas “teoria e prática, satisfação e obrigação, grupos

homogêneos e heterogêneos, especialidades e generalidades, reprodução e

produção do conhecimento”, e encontrar caminhos para o rompimento de barreiras.

Sair da conformidade e do discurso da denúncia das dificuldades e partir para

uma reflexão que se consolide no discurso anunciativo das possibilidades de

mudança.

A atitude interdisciplinar requer do professor uma integração entre as

diferentes áreas do conhecimento. E essa integração aponta para uma

postura de humildade e desprendimento em relação a sua e às demais

áreas do conhecimento. Uma postura de soberania perante a disciplina que

leciona, tornando-se indiferente às demais, dificultará a convivência com

75

seus pares na realização de projetos de trabalho em equipe (LAZZARIN,

2001).

As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, imbuídas dos

pressupostos interdisciplinaridade e contextualização, necessitam ser exploradas à

luz das teorias pedagógicas da contemporaneidade. Nesse sentido, o olhar docente

estará focado não apenas nas diretrizes trazidas pelo discurso oficial, mas também

para as múltiplas concepções acerca do tema interdisciplinaridade.

A pesquisa desenvolvida permitiu, enquanto pesquisadora, compreender que a

discussão sobre a interdisciplinaridade é bastante complexa, envolvendo tanto a

dimensão de sua possibilidade quanto a de seus limites e desafios. No tocante à

reforma do Ensino Médio, tendo em vista a proposta de currículo integrado em

áreas do conhecimento, a interdisciplinaridade é compreendida no texto das

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio atrelada a argumentos em

favor de sua aplicação para a promoção de uma aprendizagem motivadora, onde

conteúdos são abordados de forma contextualizada de modo a possibilitar a

compreensão mais ampla da realidade. Entretanto, mesmo considerando que tal

tarefa, muito complexa, voltada a um trabalho verdadeiramente interdisciplinar seja

de realização extremamente difícil, o que é corroborado por Japiassu (1976, p.92),

percebo que tal discussão como necessária uma vez que é omitida nas DCNEM‟s.

Interdisciplinaridade e contextualização caminhando juntas podem possibilitar

às escolas a construção de uma trama com padrões e texturas únicos,

artesanalmente trançados, expressando sentimentos, memórias, trocas, parcerias

constituídas por equipes escolares comprometidas em recuperar o vivido de forma

diferente, ontem e hoje, com a perspectiva de um amanhã revelador de uma

educação de sensibilidade.

76

3 MITOS E NARRATIVAS (AUTO) BIOGRÁFICAS: A DIMENSÃO ESTÉTICA NA

CONSTRUÇÃO DE OLHARES DOS PROFESSORES DE ENSINO MÉDIO SOBRE

INTERDISCIPLINARIDADE E CONTEXTUALIZAÇÃO

3.1 Um olhar sobre a escola pública na metrópole

A Escola Estadual “Loureiro Junior” está localizada no bairro do Tatuapé, em

área comercial, próxima a duas grandes avenidas: Avenida Salim Maluf e Avenida

Alcântara Machado/ Radial Leste. No entorno da unidade escolar, podem ser

encontrados o Cemitério da Quarta Parada, a Radical Leste (Pista Municipal de

Bicicross), o Shopping Metrô Tatuapé, a Casa de Shows Cabral e a construção das

futuras instalações do SESC Belenzinho. Nas proximidades, existem as construções,

em andamento, da nova Ponte Estaiada do Tatuapé, no Complexo Viário Padre

Adelino. É uma escola localizada na grande metrópole que é a cidade de São Paulo,

o que impõe aos educadores uma tarefa complexa diante do cenário

contemporâneo.

A escola é jurisdicionada à D.E. Leste 5, diretoria que está localizada no

bairro da Mooca, na Zona Leste de São Paulo, e que coordena o trabalho de 76

(setenta e seis) escolas públicas a ela vinculadas. Tais unidades escolares estão

localizadas nos bairros Aricanduva, Água Rasa, Belém, Carrão, Parque São Lucas,

Tatuapé e Vila Maria.

A Diretoria de Ensino Leste 5 atende a uma demanda de alunos do Ensino

Fundamental (1ª a 8ª séries) e Médio (1º ao 3º anos), nas modalidades regular e

supletiva. Dentre as unidades escolares atendidas, 07 (sete) delas atuam

exclusivamente oferecendo cursos de Ensino Médio.

O quadro a seguir, por mim elaborado, apresenta o número de escolas

públicas, jurisdicionadas à Diretoria de Ensino Leste 5, por tipo de atendimento

oferecido. É necessário esclarecer que, em sua maioria, as escolas oferecem mais

de um segmento de ensino, conjugando a oferta de turmas de Ensino Fundamental

e Ensino Médio, nas modalidades de ensino regular e supletivo. Dessa forma, é

importante esclarecer que o número total de tipos de atendimento será superior,

divergente do número de escolas jurisdicionadas à Diretoria de Ensino, tendo em

vista a colocação acima prestada.

77

Tabela 1 – Número de escolas por segmento de ensino

Nº DE ESCOLAS TIPO DE ATENDIMENTO

36 ENSINO FUNDAMENTAL, CICLO

02 ENSINO FUNDAMENTAL, CICLO I e II:

06 ENSINO MÉDIO ( EXCLUSIVAS )

30 CICLO II e ENSINO MÉDIO

02 CICLO I, CICLO II e ENSINO MÉDIO

01 CEES – CENTRO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO SUPLETIVA

03 UNIDADES

VINCULADAS

FUNDAÇÃO CASA (antiga FEBEM)

22 EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA)

05 EJA - TELESSALA- “Telecurso 2000”.

02 CENTRO DE LÍNGUAS

A Escola Estadual “Professor Loureiro Júnior” oferece exclusivamente os

cursos do segmento do Ensino Médio, nas modalidades regular e supletiva, períodos

diurno e noturno. Está localizada na Zona Leste de São Paulo, no bairro do Tatuapé.

Esta escola é selecionada para a realização da pesquisa porque ela oferece cursos

do segmento pesquisado e porque parte dos professores que nela atuam realizaram

o “Programa Ensino Médio em Rede”.

Os registros históricos apontam que a escola foi criada pelo Decreto nº 50.537,

de 11/10/1968, tendo sido instalada em 01/03/1968, com o nome de Ginásio

Estadual do Alto da Mooca, funcionando no prédio do Grupo Escolar “Dr. Antonio de

Queiroz Telles”.

Pelo Decreto nº 52.582/70, a Escola Estadual “Professor Loureiro Junior” foi

transformada em Colégio Estadual. No dia 14/01/1971, o Diário Oficial do Estado

publicou na primeira página:

Ginásios Escolares recebem nomes de brasileiros ilustres:

O Governador Abreu Sodré assinou ontem um decreto dando a

denominação de Ginásio Estadual “Carlos de Moraes Andrade” ao 2º

Ginásio Estadual do Imirim e Ginásio Estadual “Prof. Loureiro Junior” ao

Ginásio Estadual do Alto da Mooca, ambos nesta capital. Nas justificativas

dos dois atos, lembra o Governador do Estado [...] quanto ao Professor

Loureiro Junior, a homenagem é justificada pelo fato de ter “dedicado toda

sua vida ao desenvolvimento e à cultura jurídica e política do Brasil, que

como homem público, professor e deputado deixou exemplos de

78

inquestionável brasilidade em obras de real significação para a ilustração

dos estudiosos e pesquisadores” (Plano de Gestão Quadrienal 2006-2009

da Escola Estadual “ Professor Loureiro Junior”, p. 02)

Em ato, publicado no DOE de 29/01/1976, o Colégio Estadual “Professor

Loureiro Junior” passou a denominar-se “Escola Estadual de Segundo Grau

Professor Loureiro Junior” e, em 1999, através do Decreto nº 44.449, de 24/11/99,

foi alterada a denominação para Escola Estadual “Professor Loureiro Junior”.

O prédio escolar é de porte médio, limpo e bem conservado, preocupação

estética da equipe gestora. O edifício possui vários espaços destinados às

atividades escolares: biblioteca, pátio, quadra de esportes, sala de informática, entre

outros. Percebe-se que tais ambientes são bem aproveitados, sendo utilizados pelos

professores de forma contínua, constituindo-se num espaço de intensas trocas

simbólicas na cultura material e imaterial. Ferreira-Santos (2005, p. 80) aponta que a

arquitetura simbólica dos prédios e patrimônios de uso social (suas disposições,

seus usos, seus símbolos, superfícies gastas) remete ao diálogo de ressonâncias

míticas.

O corpo docente é composto em sua maioria por professores titulares de cargo

efetivo. Há registros nos Planos de Gestão de que os professores demonstram

interesse na utilização de estratégias de ensino e recursos pedagógicos

diversificados. De acordo com o documento (p. 07), “integram a formação dos

professores os cursos de capacitação da Teia do Saber, Ensino Médio em Rede e

demais projetos da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo”.

Vale ressaltar trecho retirado do Plano de Gestão Quadrienal 2006-2009 da

Escola Estadual “Professor Loureiro Junior”:

A contextualização e a interdisciplinaridade são os elementos que

constituem a metodologia de trabalho desenvolvida pelo corpo docente.

Permeia a consciência do educador de que ele não é mais o único detentor

do conhecimento para ser um facilitador de aprendizagem. [...] São

características inerentes ao corpo docente: preocupação com sua formação

continuada, participação em orientações técnicas, assiduidade, criatividade,

desenvolvimentos de projetos disciplinares e interdisciplinares, empenho na

aplicação de novas tecnologias. (Plano de Gestão Quadrienal 2006-2009 da

Escola Estadual “Professor Loureiro Junior”, p. 07-08)

79

Em 90% dos casos, os alunos são provenientes de bairros distantes do

centro, localizados na periferia da Zona Leste de São Paulo, como Vila Matilde, Artur

Alvim, Guaianazes, Cidade Tiradentes, Itaquera, Penha, Ermelino Matarazzo, Poá e

outros. Em sua maioria, são paulistas, filhos de brasileiros nascidos nas mais

variadas regiões do país (oriundos do interior de São Paulo e da Região Nordeste).

A equipe gestora informou que os alunos costumam utilizar o trem como meio de

transporte, levando cerca de duas horas para chegar à escola e que, segundo

depoimento de pais e alunos, eles buscam uma escola melhor que a do seu bairro,

que é “toda quebrada - pichada – e com poucas aulas” (Suely, Professora

Coordenadora).

O Plano de Gestão Quadrienal registra que os estudantes:

[...] são filhos de pais que buscam um ensino de qualidade, com vistas a

uma formação integral e adequada à realidade da sociedade atual. Desse

modo, uma forte aliança se estabelece com uma parcela grande de pais e

corpo docente comprometido em busca de vencer desafios e contribuir na

formação de cidadãos críticos e atuantes (p. 08).

Os alunos do período noturno frequentam a escola após o trabalho.

A localização da escola, próxima a grandes e movimentadas avenidas, bem

como a variedade de meios de transporte, são elementos que facilitam o acesso ao

alunado.

No ano letivo de 2008, período em que foram realizadas a coleta de dados e

as entrevistas junto aos professores, a escola teve 27 (vinte e sete) salas em

funcionamento, sendo que 20 (vinte) delas funcionaram no período diurno – Ensino

Médio Regular - e 07 (sete) no período noturno - Ensino Médio Supletivo.

Trabalharam na escola cerca de 60 (sessenta) professores, atendendo a um

total de 1042 (um mil e quarenta e dois) alunos, dos quais 744 (setecentos e

quarenta e quatro) estudaram no período diurno e 298 (duzentos e noventa e oito)

no período noturno.

A biblioteca da Escola Estadual “Professor Loureiro Júnior” é um espaço

acolhedor, composto por mesas coletivas, estantes para guardar os livros, cadeiras

e escrivaninha destinada ao uso do funcionário responsável.

80

3.2 Um olhar sobre os Olhares Mitológicos dos professores

Entrevistaram-se cinco professores. Coletaram-se informações sobre os

participantes a partir de seus depoimentos sobre suas trajetórias de vida e sobre

suas impressões a respeito dos conceitos de interdisciplinaridade e de

contextualização.

Tabela 2 – Características dos participantes

Nome Sexo Formação

acadêmica

Disciplina

que leciona

Tempo de

atuação

como

docente

magistério

Tempo de

magistério

na Rede

Pública

Paulista

ANA Feminino Letras Inglês 18 anos 17 anos

LILIAN Feminino Letras Português 23 anos 14 anos

RENATA Feminino Letras Português 21 anos 21 anos

GABRIEL Masculino Administração

e Educação

Artística

Artes 07 anos 07 anos

SILVIA Feminino Letras Inglês 17 anos 10 anos

Na fase de preparação, foi explorada a vivência dos participantes, relacionadas

à formação continuada, enfatizando suas participações no “Programa Ensino Médio

em Rede”. Ressalta-se que, dos cinco professores entrevistados, apenas 03 (três),

tiveram a oportunidade de realizar o curso “Ensino Médio em Rede”. Isto não

impediu o curso do processo, em razão dos objetivos da pesquisa: o curso “Ensino

Médio em Rede” não era objeto de análise.

Na Iniciação, segunda fase do roteiro estabelecido, os participantes

apresentaram seus olhares sobre os conceitos de “interdisciplinaridade” e

“contextualização” no Ensino Médio.

Nas fases de Narração Central e de Perguntas, os participantes registraram o

seu processo de formação, resgatando tudo que pareceu marcante: as pessoas, os

professores, os livros que exerceram influências na escolha profissional, as relações

com o conhecimento, com os professores e consigo (se de autoria ou de

81

submissão). Os modelos que influenciam as suas práticas e a sua decisão

profissional foram também investigados.

Já na fase da Fala Conclusiva, os participantes se ativeram ao encerramento

de suas narrativas. Os professores refletiram sobre o momento de realização das

entrevistas, com destaque para o resgate do processo (auto) formativo, pelos

participantes. Houve também uma reflexão sobre o reconhecimento da

aprendizagem no resgate de episódios marcantes e sobre a importância do estudo

(auto) biográfico, para a compreensão dos conceitos de interdisciplinaridade e

contextualização no Ensino Médio.

A colaboração dos professores em conceder a entrevista e em despojar-se de

quaisquer sentimentos de embaraço possibilitou não somente a mera descrição de

falas apresentadas, mas uma jornada interpretativa de sentimentos, imagens

contadas, símbolos e mitos, numa perspectiva mitohermenêutica.

Após a realização das entrevistas, elas foram transcritas, com o objetivo de

localizar temáticas recorrentes nas falas dos sujeitos que fossem pertinentes ao

problema de pesquisa.

Dando continuidade ao processo de análise, recorreu-se à literatura, buscando

realizar a leitura de mitos que ajudassem na análise das falas dos professores. O

material de transcrição das entrevistas foi lido diversas vezes e, com base nele,

foram emergindo mitos pessoais, presentes na falas, que permitiram uma

interpretação com um enfoque hermenêutico. A leitura do material teve como foco

uma atitude compreensiva, com o objetivo de desvelar o sentido e significados

trazidos pelos docentes.

As narrativas obtidas revelaram a colaboração dos professores ouvidos na

pesquisa realizada. Foi possível observar certa heterogeneidade: alguns tiveram

mais facilidade em expor os laços biográficos que compõem sua história de vida.

De acordo com o referencial bibliográfico pesquisado, destacamos a

categorização de análise, dada por Josso (2006, p. 378), que enumera os principais

laços biográficos abordados em histórias de vida: laços de parentesco, laços

herdados por nascimento, laços de aliança, laços de lealdade, laços geracionais,

laços transgeracionais, laços profissionais, laços simbólicos e laços religiosos ou

espirituais. Citar os laços biográficos existentes, segundo Josso (2006), não é

suficiente. É preciso conhecer a forma como são “atados”, à semelhança de

verdadeiros nós.

82

Josso (2006) nos aponta que do trabalho de reconstrução da história de vida,

por meio de relatos orais ou escritos, emerge certo número de nós invisíveis. O

processo é pôr-se a caminho, nessa busca de compreensão de si, de componentes

de nossa história, de tomadas de consciência daquilo que nos move, nos interessa,

nos guia, nos atrai, trabalho (auto) biográfico propriamente dito.

Embora haja estudos teóricos sobre este assunto, houve unanimidade entre os

professores na alegação de que, nos programas de formação dos quais

participaram, não tiveram a oportunidade de explorar tais conhecimentos sobre sua

história de vida.

3.2.1 Ana, o mito de Eco e Narciso

A primeira professora ouvida foi Ana, professora de Inglês do Ensino Médio.

Ela registra que, na sua trajetória acadêmica, o nascedouro foi o curso de Letras,

realizado numa universidade privada da cidade de São Paulo e que sua trajetória

profissional foi marcada pelo seu grande interesse pelos cursos de formação

continuada dos quais teve oportunidade de participar:

Fiz letras na Universidade São Judas há muitos anos atrás e depois fui fazendo

alguns outros cursos para aperfeiçoar a língua inglesa, em instituições como PUC,

pois a universidade não dá essa noção para ser professor de inglês. Fiz o inglês oral

da PUC e fiz os outros cursos dados pelo Governo. Fiz alguns cursos de formação

continuada, mas nenhum específico para o ensino médio, não tendo tido

oportunidade de participar do programa Ensino Médio em Rede.

Inicia a narrativa reconhecendo como legítimos os cursos de formação que

frequentou. Ao relatar tais experiências, Ana resgatou emoções despertadas a partir

da vivência construída nos cursos de formação, expondo um sentimento de

satisfação em contar com tais recursos no seu fazer docente:

Não fiz nenhum curso só para o Ensino Médio: fiz o Curso “Reflexão sobre a

ação” na PUC, e quem fez esse curso hoje não tem dificuldades de

trabalhar com o caderninho. Adorei participar de cursos de formação

continuada, pois eles dão a noção da parte pedagógica mesmo, dos

objetivos dos PCN‟s, me servia para tudo, fazendo diferença na minha aula,

o que me auxiliou tanto na escola pública como na escola particular. Quem

fez esse curso não tem dificuldades de trabalhar com o caderninho. O

aluno tem todo um caminho para aprender língua, e o objetivo que está lá

83

na frente é que direciona esse caminho. Se tivesse a oportunidade faria

outros cursos.

Sua prática denota o ecoar de conceitos, metodologias e estratégias

adquiridos em tais experiências de formação.

Emergiu a figura de Eco: a ninfa dos bosques. Para a compreensão da

narrativa da professora Ana, é fundamental que se recorra ao mito de Eco e Narciso.

Eco era uma ninfa e vivia nos bosques e montes. Tinha um grande defeito:

falar demais e querer ter sempre a última palavra em uma discussão. Entre as

grandes apaixonadas pelo jovem Narciso estava a ninfa, Eco.

Brandão (1987, Vol. II, p. 177) relata que a deusa Hera, desconfiada, como

sempre, e com razão, das constantes "viagens" do esposo Zeus ao mundo dos

mortais, resolveu prendê-lo lá em cima. Desesperado, Zeus lembrou-se de Eco,

ninfa de uma tagarelice invencível. A esposa seria distraída pela ninfa e ele, Zeus,

poderia dar seus passeios, quase sempre com objetivos amorosos, pelo habitat das

encantadoras mortais…

A princípio tudo correu bem, mas a ciumenta Hera, "a defensora dos amores

legítimos", por fim, desconfiou e, sabedora da razão da loquacidade de Eco,

condenou-a a não mais falar: repetiria tão-somente os últimos sons das palavras que

ouvisse.

Por tentar enganar Hera, Eco foi condenada pela deusa a somente responder,

nunca falar em primeiro lugar.

Já o mito de Narciso é relatado por Berkenbrock-Rosito (2008), que resgata a

história da ninfa Liríope, a qual “foi banhar-se em um rio, que se sentiu atraído por

ela. Da relação dos dois nasceu uma criança muito bela chamada Narciso. Para se

tranquilizar quanto ao futuro do filho, procurou o oráculo Tirésias, que perdera a

visão e, por isso, era capaz de ver o que a maioria não via. Tirésias falou-lhe que

nada aconteceria a Narciso, se ele não visse a própria imagem. Narciso cresceu e,

por conta de sua beleza, despertava a atenção dos humanos e das ninfas que

conviviam com ele”.

Eco, apaixonada por Narciso, tentou conquistá-lo com palavras e frases

gentis, mas isso não era mais possível. Entre os dois não existiu comunicação.

Desesperada, a ninfa passou a viver em cavernas, seu corpo definhou, até

desaparecer, restando apenas seus ossos que se transformaram em rochedos:

84

Eco, com vergonha de ter sido rejeitada por Narciso, vai tornar-se insone, já

que as preocupações a mantêm acordada. Seu corpo esgotado perde sua

aparência física até desaparecer completamente dos olhares e se

metamorfosear em rochedo. Subsiste apenas a sua voz. (CARMÉ, 2008,

p.06)

Por sua insensibilidade com Eco e com as outras ninfas, Narciso foi

condenado a encontrar o amor e não ser correspondido. Isto acontece no dia em

que Narciso, ao ver a própria imagem refletida em uma fonte, se apaixona. Ao

descobrir que não era correspondido começou também a definhar, buscando, sem

conseguir, entrar em contato com quem via (no caso, ele próprio), chegando a

morrer. De acordo com a narrativa que no lugar de sua morte brotou uma flor, muito

bela, que recebeu o nome de Narciso.

No mito, revela-se que Eco não fala, Narciso não escuta, inexistindo diálogo

entre dois. Narciso caracteriza-se por não escutar. O significado da escuta extrapola

a capacidade auditiva, significando estar também aberto à fala do outro.

Tanto para Eco, quanto para Narciso, seu agir ingênuo e desprovido de

autocrítica é um obstáculo à relação comunicativa, o que leva ao desaparecimento

de qualquer forma de interação.

Em analogia ao mito de Eco e Narciso, percebe-se que Ana, ao resgatar a

relação que teve com seus professores à época do Ensino Médio e do Curso

Superior, reflete sobre sua postura enquanto professora:

Na faculdade eu me lembro de uma coisa que me mostrou que muitas

vezes nos cometemos erros, atrapalhando o aluno. Na faculdade eu tinha

uma professora de inglês que era surda que tinha a dicção já prejudicada e

isso prejudicava o aluno que estava na minha situação. Isso ajuda a

perceber que às vezes podemos prejudicar os alunos. Eu tinha vindo de

escola pública e desde o início queria ser professora de inglês e não tinha

tido a oportunidade de fazer cursos de inglês fora da escola. O fato de a

professora ouvir com aparelho e ter dificuldade de pronunciar as palavras,

até pelo volume da voz, me prejudicou muito e isso me mostrou que tipo de

professora eu seria: como eu poderia auxiliar o outro e como eu poderia até

destruir o sonho dos alunos. Esse foi um fato marcante. [...] Eu me lembro

daqueles professores que me atrapalharam, como o professor de

matemática que gritava quando eu ia até a lousa para aprender sistemas,

dizendo “deu galho no seu sistema!”.

85

A dicção (fala) da professora reflete a voz de Eco que não é ouvida; o

professor de Matemática, o diálogo interrompido. Os professores que Ana teve,

centrados em si próprios, fizeram-na considerar sua própria atuação em relação aos

seus alunos, direcionando seu fazer no sentido de não mais repetir tais falhas.

Eu acho importante que você reveja os fatos que aconteceram lá atrás e

direcione seu trabalho: no que foi bom para você e que fatos importantes

direcionem seu caminho mais certo. Resgatar o que o professor de

Matemática fez comigo é algo que faço sempre, para refletir que não devo

incentivar o erro, acho que a gente é fruto conseqüência daquilo que

aconteceu conosco [...].

Ana volta ao passado para tomá-lo, como referência, em sua atuação, no

presente, e localiza, nesse mesmo presente, o modelo que direcionará seu trabalho

futuro: o professor coordenador, conduzindo o caminho dos docentes, representa

Narciso admirado por Eco.

Ao citar que os alunos percorrem caminho determinado no aprendizado da

língua inglesa, Ana destacou que sua concepção de ensino/aprendizagem é

pautada em ideias organizadas e modelos pré-estabelecidos. Resgatando sua fala,

percebe-se que Ana citou, por diversas vezes, a existência de modelos que

direcionaram seu agir enquanto docente. Esse posicionamento de Ana foi

confirmado, no momento em que a entrevista atingiu a fase de Iniciação, onde ela

apresentou, seu olhar sobre os conceitos de “interdisciplinaridade” e

“contextualização”, no Ensino Médio:

Nesta escola, tive a oportunidade de trabalhar com os conceitos de

interdisciplinaridade e contextualização; o material está todo voltado para

isso. O “caderninho” (proposta curricular) tem propiciado atividades que

foram realizadas junto com o professores de geografia, de artes, com

português. O professor se ao apropriando desses conceitos melhoraria a

prática.

O excerto, acima apresentado, indica a relação estabelecida por Ana entre o

material (“caderninho”) da Proposta Curricular (implementada em 2008 no Estado

de São Paulo) e os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização. Tanto ela,

como os demais professores, relatam, em suas falas, o trabalho com a nova

proposta curricular. Vale esclarecer que, a partir do ano de 2008, a Secretaria de

86

Estado da Educação de São Paulo adotou uma nova proposta curricular para as

séries do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Composto por 76 livros, chamados

Cadernos do Professor, direcionados para todas as séries e disciplinas, o material,

dividido em bimestres letivos, contém a indicação dos conteúdos a serem

trabalhados pelos professores e das respectivas habilidades e competências a

serem desenvolvidas pelos alunos.

Ana complementa que, para realizar um trabalho que enfoque os conceitos de

interdisciplinaridade e contextualização, deva existir um ponto de partida, centrado

na atuação do professor coordenador:

Acho que o trabalho tem que começar de coordenação, que tem que

mostrar para gente como funciona isso, como você pode fazer isso, pois

muitas vezes a gente não faz, pois não sabe como se pode fazer esse

trabalho. Solitariamente os professores até fazem, mas quando a gente

percebe que há uma coordenação as coisas são melhores. Você só

aprende estudando sobre a interdisciplinaridade. Aqui na nossa escola o

trabalho vai muito bem, pois nos temos a Suely (Professora Coordenadora)

que nos ajuda muito. Por que na escola particular as coisas funcionam?

Porque sempre tem muita gente te cobrando, envolvido, te mostrando como

se faz. Aqui na escola a gente faz, tem professores bastante envolvidos, e a

gente vai perguntando e caminhando.

Ao se referir aos conceitos de interdisciplinaridade e contextualização, Ana os

vê como modelos eficazes que melhorariam a prática pedagógica e que deveriam

ser ensinados aos professores, através de uma metodologia centrada na repetição

de técnicas passíveis de serem aprendidas. Por esse motivo, depreende-se que Ana

não conseguiu apresentar um conceito próprio de interdisciplinaridade e

contextualização, uma vez que apresenta a necessidade de um interlocutor que

“mostre o caminho a ser percorrido” e, não um mediador que coordene uma prática

decorrente da ação de sujeitos coletivos.

Carmé (2008, p.1) aponta que o encontro formador/ “sujeito-se-formando”

revela histórias emaranhadas de formações identitárias profissionais, a desconstruir

e a produzir, num sistema de transmissão-construção de saberes por alternância e

que o engajamento, o compromisso, como obrigação de dar, de receber e de

devolver, constituem a garantia de um laço social sempre a reconstruir, a tecer. A

dialética engajamento/desengajamento é encarnada pelo personagem mítico Eco, a

partir de tomadas e de largadas, de apropriação e de renúncia, “sem que se possa

87

conceber a separação desses dois pólos emaranhados e co-existindo um para o

outro” (ibidem,p.01).

Mais uma vez a narrativa da professora se remete ao amor de Eco por Narciso:

a professora localiza a figura do professor coordenador como ponto de referência

para seu fazer-docente, assim como Eco idealizava Narciso. Porém, se entre

professor e coordenador se estabelece uma relação de via única, sem troca de

experiências, corre-se o risco de surgir um comportamento mais voltado à

dependência e à submissão do que à autoria e à construção de sua própria prática.

Neste caso, o professor tende a ecoar apenas modelos e ideias concebidas por

outrem, sem perceber a beleza própria de sua prática pedagógica. Eco, condenada

à dependência da palavra do outro, à heteronímia, é o ser fragilizado pela falta de

autoestima e ausência de discurso próprio, que ecoa apenas o que é proclamado

por terceiros. Nessa dependência reside a vulnerabilidade, ao buscar a aprovação

do outro.

Segundo Furlanetto (2001, p. 13), a escola é uma instituição onde existe muito

pouco diálogo e onde o discurso pedagógico contempla, na maioria das vezes,

monólogos que se justapõem, porém não se articulam. A comunicação entre os

pares exige o exercício de caminhar entre duas polaridades: o abandono do lugar de

Narciso, preso a sua própria imagem, e o de Eco, personagem também presente no

mito grego, incapaz de pronunciar suas próprias palavras, capaz somente de ecoar o

outro. Circulando por essas polaridades, ao invés de se fixar em uma delas, além de

ecoar apenas o professor coordenador, Ana poderia “olhar sua própria imagem,

perceber sua beleza, relacionar-se criativamente com o conhecimento e pronunciar

suas próprias palavras” (ibidem, p. 14).

Embora Eco tenha sido severamente punida, vimos com que tenacidade ela

resiste à amputação de uma parte dela mesma, esperando pacientemente e

espreitando a oportunidade de dizer com as palavras de Narciso palavras

que lhe permitam declarar-se, e com que presença de espírito ela aproveita

a oportunidade que se oferece a ela de poder personalizar o sentido de

suas respostas (CARMÉ, 2008, p.4).

Entretanto, mesmo que a narrativa de Ana aponte dependência e submissão às

ideias transmitidas pela Professora Coordenadora Suely, é impossível ouvir seu

ecoar sem considerar que ela carrega consigo aquilo que vivenciou e que imprimiu

marcas em sua história de vida:

88

Depois vi que o magistério era mesmo o meu caminho, é o que eu gosto de

fazer, senão já teria saído dele. Isso me serviu como lição de vida para

direcionar a vida dos meus filhos, o meu filho fez cursinho, hoje estuda na

USP, ele pode até falar: “minha mãe que me estimulou”, e sempre mostro a

importância de escolher a profissão porque você quer e não pela condição

que a vida te dá [...].

A consciência de engajamento/desengajamento emerge na dimensão estética

da educação: Ana tem de ser Eco para deixar emergir a beleza do trabalho de

Suely, a Professora Coordenadora. Tem de ser Narciso para, na inspiração de seu

trabalho, mostrar aos seus alunos a beleza e o sentimento de aprender uma nova

língua.

Ana deve alargar a sensibilidade, ao ponto de saber dimensionar a ação no

tempo vivido, “optando por uma visão visionária, por uma visão clarividente,

cuidando do sentimento não destituído de pensamento, abrindo roteiros não

rotineiros” (PERISSÉ, 2009), no exercício da docência.

3.2.2 Lilian, o mito de Ártemis:

Lilian, professora de Português da E.E. “Loureiro Junior”, em sua narrativa, nos

trouxe grande proximidade com a deusa Ártemis, acompanhada por crianças/jovens,

seus filhos/alunos, como a deusa seguida e admirada pelas Ninfas.

Para fundamentar tais reflexões, resgata-se a história da deusa Ártemis

(Diana).

Da união de Zeus com Leto, nasceram os gêmeos Ártemis (Diana) e Apolo,

frutos de uma gravidez penosa e um parto muito difícil.

Grávida de Zeus, e sentindo estar próxima a hora do parto, Leto buscou um

local onde os filhos poderiam nascer. Hera, porém, enciumada com o amor entre

Zeus e Leto, proibiu a terra de acolher a parturiente. Com medo da cólera da rainha

dos deuses, nenhuma região ousou recebê-la. Então, a Ilha de Ortígia, que não

estava fixada em parte alguma e não pertencia à Terra , não tendo o que temer ,

abrigou a amante de Zeus e, em Delos, abraçada a uma palmeira, Leto,

contorcendo-se em dores, esperou nove dias e nove noites pelo nascimento dos

gêmeos, pois Hera, prendera no Olimpo a deusa dos partos, Ilítia.

89

Brandão (1987, Vol. II, p. 58) aponta que Ilítia, “tendo cruzado a perna

esquerda sobre a direita, fechara o caminho” da parturiente. As outras deusas, tendo

à frente Atená, estiveram ao lado de Leto, mas nada podiam fazer, sem o

consentimento de Hera e a presença de Ilítia. Assim, decidiram enviar Íris,

mensageira, sobretudo das deusas, ao Olimpo com um presente "irrecusável" para

Hera, outros dizem que para Ilítia: um colar de fios de ouro entrelaçados e de âmbar

com mais de três metros de comprimento. Hera consentiu que Ilítia descesse até a

Ilha de Delos. De joelhos, junto à palmeira, Leto deu à luz, primeiro, Ártemis e,

depois, com a ajuda desta, Apolo. Vendo os sofrimentos por que passara sua mãe,

Ártemis jurou jamais casar-se.

Conforme Brandão,

O caráter virginal da deusa não a impedia de velar também sobre a

fecundidade feminina. Deusa dos partos eram-lhe consagradas, em

Bráuron, as vestes das que faleciam ao dar à luz. Com o título de JWUÔO-

CQÓCTOÇ (paidotróphos), "a que alimenta, a que educa a criança",

acompanhava particularmente as meninas em sua fase de crescimento. As

noivas, à véspera de seu casamento, ofereciam-lhe uma mecha de cabelo e

uma peça do enxoval, para implorar-lhe proteção e fertilidade. Por estar

ligada ao matrimônio, Ártemis é, por isso mesmo, uma portadora das

tochas, atributo duplamente seu, porque a deusa será identificada com

Hécate, com o epíteto de phosphóros, "a que transporta a luz", tornando-se

como aquela uma divindade infernal. Com o título de selasphóros, "que leva

a luz", será igualmente identificada com SelÇnh (Seléne), a Lua, a Φoi/bh

(Phoíbe), Febe, "a brilhante", como seu irmão Apolo é Φoïbo$ (Phoîbos),

Febo, "o brilhante". (BRANDÃO, 1987, Vol. II, p. 69)

Leto sempre foi muito amada pelos filhos, que sempre buscaram defendê-la e

vingar-lhe as injúrias sofridas.

Ártemis foi definida como uma "divindade do exterior", que vivia na natureza,

percorrendo campos e florestas, junto aos animais que neles habitam. Era

considerada a protetora das Amazonas, guerreiras caçadoras independentes do

jugo dos homens. Deusa da caça e da lua, é representada com vestido curto

pregueado, com os joelhos descobertos, à maneira das jovens espartanas. Como

Apolo, carregava o arco com o qual atirava setas temíveis e certeiras. Como deusa

da lua, empunhava tochas e, por vezes, em sua cabeça é representada a Lua

90

coroada de estrelas. Andava acompanhada pelas ninfas, percorrendo selvas e

montanhas.

[...] pode-se concluir que houve, na realidade, duas Ártemis: uma asiática,

cruel, bárbara, sanguinária, bem dentro dos padrões da mentalidade

religiosa de uma Grande Mãe oriental; outra européia, cretense, ocidental,

voltada, como se há de ver em seguida, para a fertilidade do solo e da

fecundidade humana, o que denuncia uma Grande Mãe creto-micênica,

quer dizer, minóica e helênica. A Ártemis ocidental estava, pois,

estreitamente vinculada ao mundo vegetal e à fertilidade da terra.

(BRANDÃO, 1987, Volume II, p. 68)

A narrativa de Lilian se aproxima do mito de Ártemis, na medida em que ela

apresenta, na entrevista realizada, fatos presentes em sua história de vida que

permitem aproximações com a história da deusa.

Na figura de Ártemis, a “saia curta cor de açafrão” conferia-lhe “a liberdade de

se conduzir segundo a sua própria conveniência” (ALVARENGA, 2007, p. 238).

Lilian, em sua narrativa, demonstrou ter pleno domínio do curso de sua vida, em

momentos de constante ir e vir, observar e atacar, acertar o alvo sem desviar-se do

seu foco. É a mesma atitude da deusa caçadora, dotada de “arco e flecha”, que

toma nas mãos seu destino e executa o movimento de avançar em sua carreira

profissional, recuando-a nos momentos de zelo e cuidado das filhas, retomando sua

estratégia, objetivando o alcance do cargo efetivo.

Depois de formada trabalhei na escola particular, até 1990; interrompi minha

atuação em alguns momentos, por exemplo, fiquei afastada quando minha

primeira filha nasceu, em 1994; voltei a lecionar na rede púbica; parei por

mais um tempo quando tive minha segunda filha, passando por várias

escolas até me efetivar.

De acordo com Brandão (1986), a deusa caçadora é o protótipo da divindade

que desconhece obstáculos. Embrenha-se nas florestas, segue em busca de sua

presa. Vigorosa e destemida, a irmã de Apolo traduz qualidades idealizadas por

mulheres ativas que não levam em conta as opiniões masculinas. (ibidem, 1987,

Volume III, p. 349). Um de seus maiores obstáculos, o do próprio nascimento,

aparece como um dos pontos de convergência com a marca familiar de Lilian, que

contou:

91

A família era grande e eu tenho uma sobrinha com um ano a menos que eu.

Tive uma fase em que eu não queria ir para a escola, pois eu perdi a

primeira série, quando descobri que era filha adotiva e dizia para minha mãe

que eu não precisava mais estudar e que ela não era minha mãe mesmo.

Tal passagem revelou o sofrimento vivenciado em sua infância, em analogia à

gestação e parto difíceis que trouxeram Ártemis e seu irmão gêmeo ao mundo. A

descoberta da condição de filha adotiva fez com que, por certo tempo, ela negasse

as orientações de sua mãe. A descoberta dessa condição teve de ser gestada em

seu interior e, em decorrência desse processo dolorido, nasce um profundo amor e

reconhecimento pela mãe (como de Ártemis e Apolo por Leto), o qual se estende em

direção às filhas e aos alunos:

Em minha vida pessoal, encontro marcas que me fizeram chegar a esse

ponto. Minha mãe, por exemplo, embora faça vinte e quatro anos que ela

tenha falecido, eu a vejo todos os dias comigo. Minha mãe era professora:

foi a primeira professora rural, em Minas Gerais, em Ouro Fino, numa

cidade minúscula. Ela dizia que ensinar é a coisa mais gratificante do

mundo: então, todas às vezes que eu vou dar aula, eu me lembro dela.

Outra marca muito forte são as minhas filhas: eu trato meus alunos como eu

gostaria que tratassem minhas filhas. Eu não agrido, paro, respiro, e digo

que da mesma forma que eu os respeito, eu exijo respeito por parte deles.

Eu trago minhas filhas para a sala de aula a todo tempo, trago para meus

alunos exemplos da minha vida, para que eles tenham como parâmetro

aquilo que eu vivenciei. [...] Quantas histórias vivas as mães e os avós têm

para contar... As marcas que vivi, estarei sempre passando para eles

(alunos).

A relação contígua com a sobrinha de mesma idade se aproxima da condição

de Ártemis, uma vez que Apolo e a irmã eram gêmeos. Conforme Brandão (1987,

Vol. II, p. 79), as mitologias e culturas primitivas sempre revelaram um interesse

muito grande pelo fenômeno dos gêmeos, uma vez que eles exprimem

simultaneamente uma intervenção do além e a dualidade de todo ser ou o dualismo

de suas tendências, espirituais e materiais. O autor afirma que os gêmeos

simbolizam as oposições internas do homem e a luta que o mesmo deverá

empreender para superá-las: necessidade de abnegação, de destruição, de

submissão e de renúncia de uma parte de si mesmo, com vistas ao triunfo da outra.

92

Quando eu voltei para a escola, aos sete anos, encontrei minha sobrinha,

mais nova, na mesma série, ai eu percebi o quanto era importante estudar.

Daí para frente eu não parei mais. Eu sempre me dediquei, era a primeira

aluna, não por cobranças, mas porque eu queria que fosse assim. Tanto é

que minha sobrinha começou a ficar para trás [...].

Lilian resgata suas lembranças do início da escolarização, na 1ª série, quando

deixa de estudar por um ano e retorna à escola, após seu insucesso. Ao encontrar

sua sobrinha, mais nova, toma a decisão de esforçar-se para superá-la. A sobrinha

representa uma parte de si mesma, em situação idêntica, como uma relação entre

irmãos. A figura da sobrinha a ajudou a descobrir suas potencialidades e a

reconciliar consigo, no momento em que vivia um processo de desagregação,

conforme apontado por Brandão (1986),

A polaridade dos gêmeos é que ela mantém em si mesma "a promessa da

descoberta, da compreensão de si mesmo, tanto quanto a ameaça da

alienação e da desagregação". Se para Otto Rank os gêmeos configuram a

temática da oposição entre Narciso e o Espelho, o ser e o não-ser, a vida e

a morte, para Bachelard o homem tem igualmente no espelho "a revelação

de sua identidade e de sua dualidade-revelação da realidade e da

idealidade". (BRANDÃO, 1987, Volume II, p. 80)

Em sua narrativa, Lilian revelou determinação no exercício de sua função

docente, preocupada com sua atuação educativa na formação do caráter de seus

alunos:

Eu me formei muito jovem, com 21 anos. Em alguns momentos eu estava

muito convicta do que queria, outros não. Eu fui ser professora porque

acreditava. Eu tive uma professora de Língua Portuguesa, de Técnica de

Redação, chamada Maria Carmela que me disse: “Você tem o dom da

oratória, sabe convencer as pessoas daquilo que você quer”. Minha mãe

sempre me dizia isso e apontava qualidades, mas eu precisei de alguém de

fora para me mostrar isso, habilidades que eu tinha, mas que minha mãe

apontava e eu não aceitava. Quando eu fui para a faculdade eu descobri

que era aquilo que eu queria: que iria aprender para ensinar alguém.

Ensinar é algo difícil: mostrar para os outros que eles estão certos ou

errados, é algo complicado. Você consegue mudar o mundo ou destruir o

mundo. O nosso poder é tão grande e as pessoas não percebem isso. Nós

(enquanto professores) estamos mexendo com a cabeça de adolescentes,

principalmente no Ensino Médio, e muitos não se dão conta do quanto

93

podemos ser manipuladores. O professor é egocêntrico, gosta de estar

sempre na frente de tudo. Escolhi essa profissão porque tenho nas mãos

um poder de mudança e cumpro meu papel enquanto cidadã. Mas é difícil

trabalhar em equipe, pois ora você brilha, ora o outro brilha, e às vezes

ninguém brilha, e é o momento de retomar.

Tal como a deusa Ártemis, que era seguida por suas ninfas, Lilian apontou

momentos em que era procurada por alunos e seus familiares, apresentando-se

como uma referência cujos conselhos eram seguidos:

Lembro de um aluno nosso, chamado Raul, que estava fazendo engenharia

na FAI e que fez apenas quatro meses, saiu da faculdade, e foi fazer

gastronomia. Esse aluno trouxe seu pai para conversar comigo, alegando

que eu era uma pessoa ponderada, e eu perguntei ao aluno se era isso que

ele queria e ele disse que sim. Eu disse ao pai que era melhor ele ser um

chefe de cozinha feliz do que um engenheiro frustrado, que iria vender

pastel na feira. Quando eu falo isso para os terceiros anos de agora, eles

dão risada, mas depois discutimos. Querendo ou não são marcas que

deixamos nos alunos e eu insisto no poder que o professor tem sobre os

alunos e muitas vezes não se dá conta.

A rigidez da razão é substituída pela estética do sabor. Ártemis simboliza a

“luta interior contra a violência, a brutalidade realidades impeditivas no

desenvolvimento das potencias inatas” (ALVARENGA, 2007, p. 239), em defesa

daqueles que se vêem esquecidos da busca de si mesmos.

A forma como Lilian conduz sua fala, novamente, aproxima-se da deusa

Ártemis, citada por Brandão (1987, Vol. II, p. 349), que, como deusa da caça e da

lua, a personificação da total independência do espírito feminino, capacita a mulher

a buscar seus objetivos em terreno de sua livre escolha. Esta deusa confere à

mulher uma habilidade inata para, através da competição, afastar de seu caminho

aqueles que desejam embargar-lhe os passos. Ao relatar sobre a liberdade de

atuação que vê no exercício de sua função na escola pública, Lilian comenta:

Sinto que a escola particular suga você demais, até pode pagar bem, mas

você não tem direito de vida: a rede pública dá mais liberdade de atuação.

Estudei nesta escola em que estou agora; conto com 14 anos de atuação

na rede pública.

94

Sobre os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização, Lilian

argumentou:

Aqui na escola temos e não temos discutido a interdisciplinaridade. Sim,

temos discutido nos HTPC‟s onde nós “brincamos” de trocar figurinha. Há

alguns anos atrás era bonito falar: “Vamos fazer projetos interdisciplinares!”

e, no final, descobríamos que não tínhamos feito projeto nenhum, e sim

jogado uma série de informações no aluno e este tinha ficado perdido.

Desde que a Suely (Professora Coordenadora) está aqui, temos discutido

até que ponto temos desenvolvido a interdisciplinaridade de verdade e

descobrimos que podemos trabalhá-la a partir de um filme, um texto, e não

somente por um projeto gigantesco. O professor de Geografia trabalha um

filme e o professor de Português também discute. A contextualização

fazemos a partir dessa discussão, a gente conversa com o aluno, em todas

as aulas, o que o professor falou e trazido para o dia-a-dia, fazendo com

que o aluno trabalhe assuntos em diferentes disciplinas e assim acaba

fazendo a interdisciplinaridade.

Lilian olha para os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização como

recursos facilitadores para trabalho integrado entre docentes, porém dependentes

do uso de uma linguagem comum. Para examinar a possibilidade de um trabalho

interdisciplinar e contextualizado, Lilian utiliza uma lente que a permite vislumbrar

ritos de fecundidade, representados por práticas pedagógicas comuns entre ela e

seus pares, bem como entre a sua e as demais disciplinas do currículo escolar.

Para mim a interdisciplinaridade e a contextualização melhoram a prática. O

aluno se vê de forma compartimentada, e sabemos que não é assim. Com a

contextualização ele percebe que não: o professor de Geografia ensinou a

professora de Português a ler mapas; em Português eu leio gráficos, não só

em Matemática. O aluno aprende através de relações entre tudo o que

estão aprendendo. O contato com os pares para desenvolver a

interdisciplinaridade é fundamental. O colega tem que estar disponível para.

Até o aluno questiona: “Mas o trabalho vai valer para todas as disciplinas?”.

Aí vamos explicando a contribuição de cada disciplina ao aluno. Os pares

têm que estar integrados, acabam falando a mesma língua. Mesmo que os

critérios e as posturas sejam diferentes, é importante mostrar ao aluno o

porquê desse trabalho, qual o seu objetivo.

Lilian procura relacionar-se com seus colegas, mostrando-lhes a importância

de dar à luz atitudes protagonistas, enquanto sujeitos de sua história de vida, bem

95

como estender tais atitudes à prática pedagógica, almejando vislumbrar novas

atitudes em seus alunos. Deusa determinada, de atitudes práticas e simples,

privilegia a relação com as pessoas, em detrimento da impessoalidade. Dotada de

autonomia, age como líder, “gosta que seus tutelados estejam adequados ao seu

modo de estar no mundo e também de aconselhá-los” (ALVARENGA, 2007, p. 248):

Sempre falo: “nós somos protagonistas da nossa vida e da nossa história,

daqui cinquenta anos alguém vai discutir o que fizemos e julgar se foi bom

ou ruim.” Tenho muitas experiências e trago todas elas para a sala de aula,

é claro que dentro de um contexto. [...] Para eu discutir com alguém eu

preciso saber sobre aquilo que estou falando e ter vivência daquilo: são as

benditas marcas, há 22 anos dando aula, eu tenho de ter aprendido alguma

coisa. Só conseguimos fazer isso sendo honestas, mostrando ao aluno que

você gosta daquilo que você faz, pois para ser professor hoje no nosso país

é muito fácil: se você é engenheiro tem direito de dar aulas de Matemática,

biólogo marinho pode dar aulas de Biologia, mas para ensinar Português

você tem que fazer Letras, você tem que gostar de dar aulas, tem que fazer

licenciatura.

Serena luz, Ártemis, seguida por uma corte de Ninfas, desperta em seus

seguidores o respeito à vida interior e aos limites da natureza humana, transmitindo

seus valores às futuras gerações.

3.2.3 Renata, o mito do canto das sereias

A terceira professora entrevistada foi Renata, que à semelhança das duas

primeiras, também cursou Letras em sua formação inicial. Relatou, inicialmente, seu

gosto pela leitura e destacou que, em sua trajetória de vinte e um anos de

magistério, sempre buscou freqüentar cursos, a título de aperfeiçoamento de sua

prática:

Durante esse tempo, fiz alguns cursos de formação continuada, como o

PEC, Teia do Saber (por três anos), Africanidades (no ano passado), fiz o

“Ensino Médio em Rede”, pela escola. Não fiz mais porque não surgiram

oportunidades. Acho muito importante participar de cursos, primeiro pela

troca de experiência, pois quando você está com outros professores, de

outras escolas, a troca é importantíssima: você troca o que sabe com os

outros colegas, descobre realidades que você não imagina, e se aprende

96

muito mais nesses cursos do que na formação inicial, como

aperfeiçoamento.

Estar com os outros professores e conhecer realidades de outras escolas

representam situações de partilha de espaços (auto) biográficos. Renata resgata a

possibilidade oportunizada pelo curso “Teia do Saber” de resgatar sua trajetória e

suas vivências, destacando que:

Cada história de vida marca a pessoa de alguma forma e acaba por

interferir na sua vida profissional, sempre. Conhecer a história de vida

melhoraria a prática pedagógica, pois a troca de experiência é sempre

importante, às vezes, ele (colega) tem uma história parecida com a sua e

você nem imaginava, e ele conseguiu superar algo e você pensa: “Nossa, é

possível fazer isso”. Às vezes o aluno tem uma vivência parecida e você

não sabe como chegar até o aluno.

A chance de, num programa de formação continuada, realizar um mergulho em

sua vivência dotou Renata de clareza, quanto à influência de uma de suas

professoras (do curso Ensino Médio), na determinação de sua escolha profissional:

Uma pessoa que influenciou minha escolha profissional foi uma professora

de literatura que tive, ainda no Ensino Médio, que tinha uma paixão tão

grande para ensinar para gente, que me fascinava, eu gostava de viajar nas

histórias. Eu gostava de ler, mas não me envolvia tanto. Com a paixão que

ela transmitia pra gente, eu comecei a descobrir o encanto pela literatura.

Ela vivia isso: chorava e se emocionava ao contar as histórias. Acho que

seu nome era Neide. Eu me descobri ali, onde tive o prazer de ler literatura,

e foi a partir disso que decidi fazer Letras. Antes eu lia qualquer coisa que

caía nas minhas mãos, mas, com ela, aprendi a ler livros literários, li até

Balzac, que eu nem imaginava que existia, por causa de um comentário que

ela fez. Fui até a biblioteca e peguei o livro e o livro é fascinante mesmo.

Com esse meu gosto eu acabei até influenciando alguns alunos. Depois de

um tempo, cheguei até a encontrar alunos que se tornaram professores

devido à influência que exerci sobre eles: eles me disseram que eram

professores porque eu ensinava com paixão. Acho que foi muito importante

a professora que eu tive e a professora que eu me tornei.

O choro representa a emoção sentida que comove o outro, ao ponto de

encantá-lo. Renata se vê seduzida pelo prazer da leitura, como os pescadores

seduzidos pelas sereias, através do canto que fascina. E esse fascínio é ampliado,

97

no decorrer de sua vida acadêmica, evidenciado pela sua afirmação: na faculdade

tinha ótimos professores e o que a fascinava era o conhecimento de seus

professores:

Eu pensava: como alguém pode guardar tanto. Agora, estimulo meus

alunos. Quando peço um livro para leitura, conto uma parte a história e isso

os estimula, deixando-os curiosos para continuar a leitura da obra.

Brandão (1987, Vol. III, p. 310) aborda o mito e a simbologia das sereias, meio

mulheres e meio pássaros ou com a cabeça e tronco de mulher e peixe da cintura

para baixo, que se tornaram demônios marinhos capazes de atrair e prender os

homens para devorá-los. Explica que, em sua etimologia, o termo SeirÇn(Seirén),

sereia, provém certamente de seir£ (seirá), "liame, nó, laço, cadeia". Hábeis

cantoras, cantavam para encantar, simbolizando a sedução mortal.

Mãe D‟água, mito representado na tradição africana impressa na cultura

brasileira, aparece na literatura, na obra “O tronco do Ipê”, de José de Alencar

(1871), onde a personagem Alice é levada pelo torvelinho de água, e Mário

"descendo a prumo ao fundo do abismo", luta imperiosamente para retirá-la:

O menino estorcia-se dentro d'água. Seu corpo parecia romper-se, como o

dorso da serpe quando se dilata para estringir a presa. A luta estava

indecisa. Às vezes acreditava-se que Mário ia triunfar, arrebatando a vítima

ao boqueirão; outras vezes o menino perdia a vantagem adquirida e

submergia-se ainda mais. Como era sublime essa cadeia humana que se

estendia desde a aba do rochedo até às profundezas do lago, com uma

ponta presa à vida, e outra já soldada à morte! Esses corações que se

faziam elos de uma corrente, grilhados pelo heroísmo, essa âncora

animada, sustendo uma existência prestes a naufragar, devia encher de

admiração e orgulho a criatura. (ALENCAR, 1962, p.99)

Sereia brasileira, Iara povoa o imaginário popular das comunidades ribeirinhas

dos igarapés. O mergulho, motivado pela sedução do canto e das lágrimas da

professora, conduzem à morte pela água ou ao renascimento de sua aluna?

O contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado,

porque a dissolução é seguida de um "novo nascimento"; por outro lado,

porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. (MIRCEA

ELIADE,1991,p.110)

98

Na certeza de que a vida é ampliada por meio do conhecimento e a morte, da

consciência ingênua, seu é saber fertilizado e multiplicado; o esforço de Renata fez

com que o valor do estudo fosse reconhecido pelas diferentes gerações de sua

família:

Na minha vida familiar não encontro nenhuma marca, pois meu pai era

analfabeto e minha mãe só tinha o ensino fundamental, então eles não me

incentivavam: o importante era trabalhar. Quando eu ficava lendo, diziam:

“Você vai ficar lendo para quê? Leitura não dá dinheiro”. E eu disse para

minha mãe que um dia iria dar. Quando eu me formei aquilo se reverteu:

eles ficaram muito orgulhosos, e aí mudou. O reconhecimento surgiu da

conquista realizada. Meu sobrinho fala todo orgulhoso: “minha tia é

professora”.

E a água, fonte de vida que jorra e multiplica, expande-se ao atingir seus

alunos, dando continuidade ao ciclo de encantamento:

No ano retrasado, tive um aluno da Suplência, com 70 anos de idade, que

valeu toda a minha carreira. Como eles (alunos) não liam, eu propus um

trabalho em grupo e disse que eles seriam obrigados a ler. No final do

trabalho, esse aluno veio me agradecer me disse: “Professora, com 70 anos

eu nunca tinha lido um livro na minha vida. Esse foi o primeiro e com ele

descobri o quanto é bom ler”. E ele me disse que iria continuar lendo, não

sei por quanto tempo e isso foi muito gratificante: marcar a vida de alguém.

Enxergar possibilidades de práticas interdisciplinares e contextualizadas, para

Renata, só é possível através da figura da Professora Coordenadora, que, tal qual

Mãe D‟água, pelo convencimento “acaba trazendo os outros professores” e atando

laços que amarram o trabalho de todos:

No “Ensino Médio em Rede”, participei das discussões sobre

interdisciplinaridade e contextualização. Aqui na escola temos discutido

muito sobre esses temas: normalmente montamos projetos aqui na escola e

usamos a interdisciplinaridade sempre, que é super importante, até por

conta da Coordenação, que auxilia bastante, vai amarrando nosso trabalho.

A Professora Coordenadora acaba trazendo os outros professores e aí

acaba funcionando por conta disso. Discutir sobre interdisciplinaridade e

contextualização melhora a prática dos professores, pois o professor tem a

tendência de se fechar na área dele, sabe, “eu sou de Português, deixo de

ensinar história, geografia, ciências”, mas não é nada disso. Quando você

99

discute tais conceitos, você passa a perceber que esses conhecimentos

fazem parte da outra disciplina e você começa ajudá-lo também, pois ele

passa a se interessar mais. E os outros professores que estão muito

fechados passam a se abrir mais, e isso é muito importante.

Renata enxerga áreas de conhecimento, antes compartimentadas, que agora,

interagem com outros saberes, surgindo espaços de intersecção entre disciplinas do

currículo escolar, por meio da comunidade de comunicação estabelecida entre seus

pares. Pescador e rede seduzidos pelo doce e atraente canto da sereia...

3.2.4 Gabriel, o mito de Hermes

Gabriel foi o quarto professor entrevistado, o único que possuía formação inicial

diferente das demais professoras que participaram da pesquisa:

Tenho formação em Administração de Empresas, dei aulas por quatro anos,

mas eu gostava mesmo de Arte. Em 2005 resolvi fazer um novo curso, de

Educação Artística. Estudei na UNICSUL fazendo a licenciatura, e ao

mesmo tempo fazia a formação de professores de Matemática. Já trabalho

há três anos com a disciplina de Educação Artística.

Durante a entrevista, Gabriel resgatou suas memórias da época em que

estudava, destacando-se como o único dos quatro filhos que teve interesse em

continuar os estudos. O inicio da atividade profissional, como office-boy, deu-se

muito cedo, por volta dos quinze anos. Quando vivenciou uma situação de

desemprego, aos fazer carreira na área administrativa, iniciou a atividade docente,

ministrando aulas de Matemática, em caráter provisório:

Eu fui dar aulas de Matemática e adorei. Percebi que eu sempre tive muito

medo dos professores de Matemática e a garotada não tinha esse medo.

Tínhamos um bom relacionamento e eu passei a ter um certo encantamento

por isso. Trabalhava à noite, a equipe da escola era muito boa e eu gostei.

Daí com o governo Covas, houve a exigência dos professores terem

formação pedagógica, num curso preparatório, pois eu lecionava em caráter

excepcional.

Diante do impedimento legal de atuar na esfera educacional, passou a

trabalhar com pintura decorativa de paredes e a criar técnicas de pintura, a partir de

100

conhecimentos adquiridos num curso técnico. Durante a realização de um trabalho,

num apartamento próximo à região do bairro Anália Franco (Zona Leste de São

Paulo), ouviu no rádio que uma universidade próxima oferecia o curso de

Licenciatura em Educação Artística e resolveu se inscrever.

Tal capacidade de lidar com problemas e superar obstáculos, demonstrada por

meio da narrativa de sua história de vida, permitiu aproximar Gabriel à figura mítica

de Hermes, o deus mensageiro. Maria Zélia de Alvarenga (2007, p. 266), ao citar as

principais características de Hermes, associa, à figura mítica, a característica da

mente aberta para considerar novas ideias e possibilidades: “a vida é uma sucessão

de planos e projetos. As dificuldades são estímulos para si. (ibidem, p. 266)

Filho de Zeus e de Maia, Hermes (Mercúrio) nasceu numa caverna do monte

Cilene, ao sul da Arcádia. Apesar de enfaixado e colocado no oco de um salgueiro

(árvore sagrada, símbolo da fecundidade e da imortalidade), o menino revelou uma

precocidade extraordinária, pois, no mesmo dia em que veio à luz, libertou-se das

faixas (demonstração clara de seu poder de ligar e desligar) viajou até a Tessália,

onde furtou uma parte do rebanho de Admeto, cujo guardião era Apolo.

Divindade complexa, com múltiplos atributos e funções, Hermes mensageiro,

filho de Zeus, é o dispensador de bens. Sua figura está ligada ao deus agrário,

protetor dos pastores nômades indo-europeus e dos rebanhos, com o epíteto de

Crióforo. Este deus é representado com um carneiro sobre os ombros. Alvarenga

(2007, p. 253) aponta que a marca característica dessa figura mítica é o movimento

e, em seu trajeto, “fatos e desafios repletos de potencialidades a serem atualizadas,

conteúdos a serem conscientizados, questões a serem analisadas e integradas, tal

como ocorre num processo de desenvolvimento, ou mais especificamente numa

linguagem junguiana, no processo de individuação” (ibidem, p. 253)

A mitologia grega destaca que Hermes regia as estradas, ao andar com incrível

velocidade, usando sandálias de ouro, e não se perdia na noite, por dominar as

trevas e conhecer perfeitamente o roteiro.

Para Mircea Eliade (1991, p. 109) destacam-se as faculdades "espirituais" do

deus: "Pois a sua astúcia e a sua inteligência prática, a sua inventibilidade (...), o seu

poder de tornar-se invisível e de viajar por toda parte em um piscar de olhos, já

anunciam os prestígios da sabedoria, principalmente o domínio das ciências ocultas,

que se tornarão mais tarde, na época helenística, as qualidades específicas desse

deus".

101

Exercendo a capacidade de olhar para si mesmo, Gabriel relata sua história de

vida que o põe em contato com a determinação de alargar seus horizontes,

querendo mais, ambicionando, ousando:

Meu pai e minha mãe eram semi-analfabetos. Meu pai tinha muita vontade

de estudar, mas meu avô não deixava, pela exigência do trabalho na roça.

Quando tinha um dinheiro comprava caderno e um lápis, mas quando meu

avô via, rasgava e jogava tudo fora para ele trabalhar na roça. Essa história

me marcou muito e me impulsionou a buscar o estudo e a estimular os

outros a estudar. Sempre tive muito respeito pela terceira idade, nunca

trabalhei com o EJA, mas tenho muito respeito pelos idosos, e ensino os

alunos a respeitarem seus avós, porque a gente vê tanta coisa ruim. Minha

vida foi sempre assim: sempre estive estudando ou fazendo alguma coisa

para dar aulas. Meus amigos não gostavam de estudar: eles perguntavam

“Você vai parar de estudar quando?”. Este ano que eu dei uma parada, pois

terminei a faculdade no ano passado, em 2007.

Gabriel conduz sua narrativa como o artista ancestral que reúne seus

materiais e com eles produz obras que se perpetuam pelos tempos. Consegue

reconhecer cada um dos elementos que, amalgamados, darão forma ao seu

pensamento, como ao relatar sobre a contribuição impar de cada um dos

professores no curso de Educação Artística:

Gosto de Matemática e de Arte: se eu tiver que optar por uma delas, minha

opção é a Arte. Na faculdade de Artes tive mais de um professor marcante:

o Paschoal, de teatro; a Solange, contadora de histórias; o Claudemir, de

multimídia, que abriu minha mente para outros trabalhos materializados; a

Sandra, mais da parte de didática; a Leda, de Psicologia. Traria do meu

curso o conhecimento das variadas linguagens (visual, música, cinema). A

faculdade me deu o alicerce para trabalhar com o lado da Arte, o

embasamento técnico da disciplina.

Sobre o fato de ter sido questionado sobre os conceitos de interdisciplinaridade

e contextualização, Gabriel novamente expõe o desenho mental que representa sua

compreensão sobre os temas:

Os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização são discutidos nos

momentos de HTPC‟s. Falamos sobre a importância desses conceitos, de

como o aluno encaram e acabam tendo um interesse maior quando se

combinam as disciplinas, como um trabalho de mosaico que foi feito

102

englobando Arte, Matemática e História. Às vezes o trabalho passa

despercebido, mas as coisas não são soltas: existe uma ligação entre os

conhecimentos e conceitos e o quando o professor mostra essa ligação ao

aluno, aguça seu interesse. Uma disciplina depende da outra: até na cor,

para se chegar numa cor tem Matemática, para formar um mosaico, utiliza-

se as medidas e a forma. O conhecimento é único: todas as disciplinas são

importantes e não existem disciplinas mais importantes que outras. A Arte

não é uma disciplina secundária. Se eu achasse que a Arte é uma disciplina

secundária teria optado em ensinar Matemática. Gosto de Matemática, bem

mais de Arte, porque com a Arte posso ensinar Matemática. O trabalho com

interdisciplinaridade e contextualização coloca todas as disciplinas em

patamar de igualdade. É possível trabalhar com outras áreas de

conhecimento, fazendo-os perceber que através da ciência chegamos a

códigos, trabalhamos com linguagens, materializamos as ideias, tornamos

as ideias físicas. E também o oposto: desmaterializar para chegas as ideias.

Como pré-requisitos para o trabalho interdisciplinar temos: o bom

entendimento entre os professores (pares), a organização da escola

(horários quebrados não colaboram para isso), o trabalho de coordenação

(coordenador como articulador), o encontro dos professores nos HTPC‟s

(horários comuns).

Nada aparece de forma solta: Gabriel surge como Hermes em sua função de

transportar, de re-ligar, de unir os pedaços para materializar a mensagem que deve

ser transmitida. Clara é sua concepção sobre os conceitos de interdisciplinaridade e

contextualização, bem como seu entendimento sobre as condições necessárias para

que tais conceitos se processem no âmbito escolar. Ao citar que desenvolveu uma

atividade que resultou na figura de um mosaico, novamente, resgata o artista

ancestral que, através de sua obra, perpetua a cultura e a memória:

A palavra “mosaico” tem sido muitas vezes associada, etimologicamente, à

idéia de algo “feito por Moisés”, indicando seu caráter sagrado na tradição

judaico-cristã e seu auge no início da idade média em Bizâncio. No entanto,

este mesmo caráter sagrado se revela nas tradições mais ancestrais,

sobretudo, no mundo grego. Mosaico também pode ser interpretado como

aquilo que é “inspirado pelas Musas” (“musaicum”). Filhas de Mnemosine, a

deusa da Memória, e do próprio Zeus, são as musas as personificações das

artes... aquilo sempre a nos lembrar dos deuses (FERREIRA-SANTOS,

2009)

103

Recuperando pedaços da sua memória, consegue fazer algo novo, como

cimento, que faz o rejuntamento de pequenas peças de seu fazer – docente, ele

estabelece o diálogo entre professor e aluno:

Com relação ao relacionamento com os alunos, o meu modo de ser como

professor já trouxe do meu modo de ser na vida, desde a época de que era

professor de Matemática: como sou na vida, sou dentro da sala. Sempre fui

de bons amigos, imponho respeito pela amizade. Trouxe da minha vivência

pessoal e profissional, da época em que ensinava Matemática. Mas com a

faculdade de Artes tive um aprofundamento. Como obras marcantes

destaco as de Mondigliane, e sempre passo o filme “Mondigliane: paixão

pela vida” aos alunos, que tem uma história triste, mas dá uma outra visão,

pois os alunos estão sempre acostumados só com Van Gohg, Tarsila do

Amaral, Picasso, Almeida Júnior, e esse filme mostra o outro lado do artista,

conta uma história, mostra outros artistas, importante para o jovem se tocar.

Ao mesmo tempo em que passo o filme vou trabalhando alguns conceitos,

como o preconceito, a questão das drogas. Já na faculdade esse filme foi

marcante. Converso muito com os alunos sobre a necessidade de termos

esforço e perseverança. Eu me identifico mais com o Ensino Médio, pois

acho que eles são mais carentes: estão numa idade que eles se vêem mais

perdidos, não têm muito diálogo muito com os pais, mesmo na escola eles

não têm tanto contato e espaço com os professores, têm receio de se

aproximar, e é nessa brecha que eu me aproximo. Se eu noto que algum

aluno está triste, me aproximo. Mesmo os alunos que estão abaixo da

média, que não vão bem, sempre têm algum problema, seja ele familiar, ou

de relacionamento com os colegas. Uma “besteirinha”, para eles, é um

grande problema insolúvel, e para nós é um problema tão simples: é bater o

olho e um conselho já ajuda. Costumo sentar com os alunos, ao lado deles,

em pé de igualdade, orientando-os a dialogar com os pais. O ser humano

tem muita falta de diálogo. Esse problema trago por mim: eu sempre fui

muito tímido, tive problemas no campo profissional, quando trabalhava

ainda em empresa, pela comunicação que não se estabelecia. Dou espaço

para os alunos brincarem comigo, mas imponho respeito.

No diálogo estabelecido junto aos seus alunos, Gabriel consegue resgatar fatos

constituintes de sua própria história e colocá-los em ligação com a vida, com as

necessidades, com os anseios de seus alunos. Eterno questionador, ele contribui

para o bem comum ao mostrar-se inconformado com a situação dada. Mensageiro

que estende a mão e dá esperança àqueles mais necessitados:

104

Meu projeto inicial seria ensinar o povão, a classe popular, mais humilde, a

decorar a casa utilizando a cor, para destacar a importância que a cor tem

na vida da gente. Quando fiz um curso na Escola Paulista de Arte, achando

que com ele poderia dar aula, num dos semestres apresentei uma

monografia sobre a cor. O professor me elogiou muito pelo trabalho e fez

uma dedicatória para que eu nunca abandonasse esse sonho de levar a cor

para a vida do ser humano. Com os alunos eu trabalho esse tema, neste

ano ainda não trabalhei por conta da Proposta Curricular.

Nessa proposta de ação estética, conjuga circunstâncias desfavoráveis com

possibilidades concretas. Almeja desencadear processos de percepção, de

imaginação, de percepção da beleza da cor. Sensibilidade perante o belo, à

semelhança da estética cristã de Santo Agostinho, conforme nos apresenta Perissé

(2009) ao afirmar que:

Agostinho sabe-se fortemente atraído pela beleza. Sua sensibilidade às

cores é enorme. Refere-se à “regina colorum”, a luz, à rainha das cores,

como elemento dispersivo de suas atividades intelectuais e espirituais.

(PERISSÉ, p. 21)

Mas, para que consigamos agir concreta e criticamente, olho e mão devem

estar unidos, e Gabriel desperta, nos seus alunos, a percepção de que há sentido no

ato de apropriação da própria vivência:

Trabalhei a história de vida dos alunos a partir das atividades da Proposta

Curricular, que davam abertura para isso. Uma das atividades pedia para

escreverem o que viam no trajeto para a escola, numa primeira fase

relacionada à arte visual (grafite, mural de escola de samba). Depois foram

os sons, os sons que ouviam nesse trajeto. Daí percebi que a maioria ouvia

as conversas e os sons do trem, e que moravam muito longe da escola.

Essa valorização é muito importante, principalmente na participação da

comunidade na escola. A família precisa estar envolvida com a escola.

Gabriel, com sua sensibilidade, aproxima-se dos conceitos de

interdisciplinaridade e contextualização. Isso, certamente, deve-se à trajetória vivida,

encarnada por meio de seu mito pessoal de Hermes, conselheiro peregrino e

habitante dos caminhos. Mais ainda, como docente, resgata o sentido ético de seu

profissionalismo e de sua humanidade, em sintonia com seus pares:

105

Num momento de formação continuada junto aos outros professores, temos

espaço, nesta escola, para falar do aluno, surgindo a brecha de falarmos de

fatos pessoais, como a minha postura junto aos alunos. Qualquer ser

humano tem que aceitar e encarar a experiência vivida como aprendizado.

Todos têm na sua vida fatos positivos e negativos. O grande aprendizado é

tirar dos fatos negativos uma lição e trazer isso para os nossos alunos,

como um exemplo, para que eles não cometam os mesmos erros, e se eu

puder estar dividindo isso com os meus colegas, com os meus pares, é

ótimo, pois eles vão ter ao lado deles um exemplo vivo ao lado deles,

alguém que teve um aprendizado e está querendo expandir, e não guardar

somente para si. É muito egoísmo do ser humano guardar só para si

quando temos milhões e milhões de pessoas para dividir. Alguns alunos

sentem o professor muito afastado, com medo. Os alunos têm uma visão:

tem o professor que se aproxima mais e outros que se afastam. Esse

afastamento só prejudica o aprendizado dos alunos e o trabalho dos

docentes. Os professores precisam se aproximar entre si e dos seus alunos.

Eu sinto o meu trabalho facilitado com essa proximidade. Nunca tive

problema de um aluno ficar com nota vermelha comigo (porque fica) e

contestar, tanto na disciplina de Matemática quanto em Artes. Não tem bate-

boca por nota, eles se aproximam e dizem: “Eu errei!”. Tem diálogo, pelo

trabalho não entregue na data, pelo material não trazido. O professor acaba

conhecendo o aluno. Eles têm muitos problemas familiares. Adoro Paulo

Freire, foi um autor muito importante quando fiz a faculdade de Educação

Artística. Vygostsky também. Não tinha tido contato antes quando fiz

Administração. Também o autor Pedrosa, mineiro, que escreveu livros

fantásticos. É isso.

Educar pelo diálogo e declarar, com veemência, sua adoração pela pedagogia

de Paulo Freire. A finalização de sua narrativa não poderia ser melhor... “É isso!”

Simplesmente Gabriel, Hermes arauto de um novo tempo!

3.2.5 Silvia, o mito de Jurupari

A última professora entrevistada foi Sílvia, professora de Inglês da E.E.

“Loureiro Junior”, que iniciou sua fala, relatando sua formação acadêmica e

reconhecendo a influencia de sua professora de Inglês na escolha de sua carreira

profissional:

[...] fiz Letras, Português e Inglês, na Universidade Nove de Julho, e escolhi o curso

porque sempre quis, sempre gostei muito de Língua Portuguesa, depois caí no

106

Inglês, para completar o total de aulas, e acabei gostando. Fiz cursos na área e hoje

tenho mais habilidade com a Língua Inglesa. Isso porque tive uma professora na 5ª

série que eu admirava muito, porque ela falava muito bem, e me recordo até do

nome dela: Maria de Lourdes. Ela marcou demais a minha profissão; embora o

campo da educação seja difícil, eu não me arrependo e faria novamente.

A professora faz escolhas e toma decisões. Os seguintes princípios

aparecem, de forma pulsante, na narrativa de Sílvia: persistência, coragem,

vencimento da insegurança e do medo. Observa-se a figura da guerreira que luta

com todas as suas forças, na defesa dos ideais nos quais ela acredita, movida pela

vontade de vencer o medo e de suprir suas necessidades. Seu desejo de superação

é tão forte, que ela projeta suas realizações e conquistas, como uma bandeira de

luta pelo reconhecimento do papel desempenhado pela mulher, em nossa

sociedade, extrapolando o terreno da conquista pessoal:

A necessidade fez com que eu corresse atrás, estudasse, deixasse a

insegurança e o medo. Um professor da faculdade dizia: “Medo é pêlo

enraizado. Tem que arrancar esse pêlo”. Eu me lembro disso até hoje e isso

marcou muito a minha formação, os desafios. O próprio Ensino Médio, eu

saí da faculdade e peguei o Ensino Médio. Hoje eu trabalho também com o

fundamental, mas eu consigo me entender melhor com o médio, com os

alunos e com o conteúdo. [...] Tive muito apoio da minha irmã, pois minha

mãe não valorizava tanto os estudos, entendia que as mulheres deviam se

dedicar apenas aos afazeres domésticos. Eu já trabalhava desde os

quatorze anos, em escritório, tinha meu emprego, mas eu fui estudar porque

eu quis, pelo meu esforço próprio eu que paguei a minha faculdade, com

muita dificuldade. Minha irmã foi uma pessoa que me apoiou muito. Depois

que eu me formei, todos ficaram muito orgulhosos, pois eu fui a única dos

oito irmãos que terminou a faculdade na época.

Encontro na mitologia ameríndia a figura de Jurupari, o mito que fundamenta a

história de vida da professora Silvia.

Jurupari é um personagem que aparece em inúmeras lendas amazônicas. Em

algumas histórias, é retratado como um herói que trouxe ordem ao mundo, em

outras, aparece como um temível demônio. Às vezes, chamado de "filho do Sol",

outras vezes, de "filho do Trovão". O fato é que Jurupari está presente na mitologia

de diversos povos indígenas, notadamente, na mitologia daqueles povos que vivem

na região de fronteira entre Brasil e Colômbia. Jurupari, uma derivação da palavra

“Juruparipindi”, de origem Tupi, que significa “Demônio da Floresta”.

107

Willis (2007) descreve que a característica da mitologia ameríndia, como uma

espécie da carta sagrada que preserva a atual ordem social, manifesta-se por meio

de mitos sobre as diferenças entre homens e mulheres, frequentemente associando

as mulheres com a fertilidade natural, o caos e a ignorância, e os homens com a

fertilidade cultural, a ordem e o conhecimento sagrado:

Un mito muy extendido desde la Amazonia hasta la Tierra del Fuego, con

numerosas variantes, explica que, en sus orígens, el mundo estaba

dominado por las mujeres, no por los hombres. Según los tupis de Brasil, el

sol se enfadó tanto por el dominio femenino que decidió invertir la situación

y tomar por compañera a una mujer perfecta. En primer lugar, hizo que una

virgen llamada Ceucy quedara encinta de la savia de un árbol cucura y que

diera a luz un niño, Jurupari, que ordenó que celebrasen fiestas

regularmente para conmemorar su monopolio del conocimiento y el poder y

que prohibiesen la participación de las mujeres, bajo pena de muerte.

Como precedente de tal castigo, Jurupari preparó la muerte de su propia

madre y aún segue buscando a la mujer perfecta, digna de ser la esposa del

sol. (IBIDEM, 2007, p. 262)

Willis (2007) aponta o mito indígena e ele é corroborado pelo escritor indígena

Maximiano José Roberto, filho de uma índia do povo Tariana. Por deter grande

conhecimento da cultura da região, foi informante de vários etnógrafos da época,

coletou as narrativas de Jurupari e montou uma história épica, considerada por

estudiosos de hoje como uma das grandes obras da literatura indígena.

Conta o mito que, como tantos heróis divinos, Jurupari era filho de uma virgem.

No começo do mundo, uma estranha epidemia atingiu os índios da Serra de

Tenuiana. Morreram quase todos os homens. Sobreviveram as mulheres e alguns

velhos. Para evitar a extinção daquele povo, um velho pajé - nascido da união de

uma índia com o rei dos pássaros jacami - fecundou a todas as mulheres da aldeia,

com sua mágica. Depois disso, ele mergulhou num lago onde uma estrela

costumava se banhar, e desapareceu. Dez luas depois, todas as mulheres deram à

luz. Entre os recém-nascidos, havia uma menina que foi chamada Seuci. A menina

era de uma beleza esplendorosa. Seuci comeu uma fruta do mato chamada puçá e

não se deu conta de que o sumo da fruta escorreu-lhe por entre as partes íntimas,

fecundando-a. Após comer as frutas, sentiu-se diferente. Examinou-se e viu que não

era mais virgem. Estava grávida. Dez luas depois, nasceu um menino forte e belo,

que se parecia com o Sol. Foi batizado com o nome de Jurupari. Os índios elegeram

108

a criança como seu líder. Naquela época eram as mulheres que mandavam nos

homens e que governavam. Elas discutiam a melhor hora para entregar os símbolos

de chefe a Jurupari e quando se deram conta, a criança havia sumido. Procuraram

por Jurupari, mas nada encontraram. Dos mais altos morros da serra, ouviam-se

murmúrios de criança. A infeliz Seuci permaneceu na mais alta montanha, chorando

a perda de seu filho. À noite, ela dormia e ao acordar pela manhã sentia que seus

seios estavam vazios. Era Jurupari que vinha junto dela se amamentar. Depois de

15 anos, Jurupari voltou a sua aldeia. Ele revelou a todos que recebera uma missão

do Sol: reformar os usos e costumes dos povos da terra. Jurupari assumiu a

liderança da sua tribo e virou o jogo de poder entre homens e mulheres,

estabelecendo as regras que hoje valem para os índios e definiu quais eram os

atributos de cada um. Instituiu as festas, os ritos iniciatórios, as dietas sagradas e as

purificações; no plano prático, legislou desde regras para a guerra até condutas

morais cotidianas. Era extremamente severo, não havia perdão para as faltas nem

súplica possível. Gostava de guerreiros fortes e corajosos e, nas mulheres, admirava

a capacidade de gerar muitos filhos. Os rituais a Jurupari eram proibidos às

mulheres, e essas pagavam com a morte a desobediência, tanto que, quando sua

própria mãe espiou um ritual exclusivo dos homens, foi transformada em pedra

(extraído de http://www.iande.art.br/boletim011.htm, acesso em 15/07/2009).

A relação estabelecida, entre a história de vida de Sílvia e a lenda de Jurupari,

emergiu da forte presença de termos como “luta”/“sobreviver”/“briga”, os quais

demonstram o esforço e sacrifício, na narrativa da professora, em garantir até

mesmo sua própria sobrevivência.

Fiz vários cursos, como a Teia do Saber e o curso da Cultura Inglesa. Acho

importantíssimo participar de cursos, pois nós, professores, que

trabalhamos na rede estadual não temos muito tempo para nos aperfeiçoar:

trabalhamos manhã, tarde e noite, para sobreviver. Restam-nos os sábados,

para fazer uma pós. Eu acho que o Estado deveria abrir um campo para o

professor se especializar, é isso que nós estamos precisando. Essa briga

por salário, eu até concordo, mas eu gostaria que nossa briga fosse para

nossa especialização, para a nossa função de trabalho, uma briga para que

a especialização fizesse parte do horário de trabalho [...] Esse resgate está

sendo muito significativo: gostei muito do que passei, das minhas

dificuldades, o que eu passei, as lembranças me fizeram voltar ao passado,

as minhas conquistas, o convite da minha formatura que eu entreguei para

109

minha irmã, a faculdade que fiz com sacrifício quando fiquei desempregada,

e isso me dá muito orgulho.

Em sua história, há uma verdadeira batalha por fazer valer sua vontade de

estudar e formar-se professora, derrubando valores familiares que colocavam a

figura da mulher atrelada às tarefas exclusivamente domésticas.

Tive muito apoio da minha irmã, pois minha mãe não valorizava tanto os

estudos, entendia que as mulheres deviam se dedicar apenas aos afazeres

domésticos. Eu já trabalhava desde os catorze anos, em escritório, tinha

meu emprego, mas eu fui estudar porque eu quis, pelo meu esforço próprio

eu que paguei a minha faculdade, com muita dificuldade. Minha irmã foi

uma pessoa que me apoiou muito. Depois que eu me formei, todos ficaram

muito orgulhosos, pois eu fui a única dos oito irmãos que terminou a

faculdade na época.

Os professores que Sílvia teve em sua escolarização são o Sol de Jurupari:

deles a professora recebe a missão de vencer seus próprios limites e impor a

organização de sua própria vida, num exercício de “caminhar para si” (JOSSO,

2004), tomando em suas mãos seu projeto de vida.

Na faculdade, eu me recordo de outra professora de Português, de

gramática, muito boa, que aí eu confirmei a minha certeza em fazer Letras.

Por ironia do destino, eu fiz Letras para dar aula de Português e de

Literatura, eu dizia que não queria dar aulas de Inglês. Aí eu fui para essa

escola particular dar aulas de Português e a dona da escola me disse que

tinha duas aulinhas de Inglês e que não compensaria contatar outro

professor, oferecendo essas aulas para mim. Eu fui tão covarde na época

que disse que não. Eu não fui capaz, estava insegura. Quando eu ingressei

no Estado, eu substituí uma professora de Português, em licença médica,

por trinta dias. Ao final desse período, o Diretor da escola me disse que

tinha sorte e me ofereceu outra substituição, pelo ano inteiro (estávamos no

mês de março), só que de Inglês. Aí eu pensei: não posso rejeitar

novamente. Vou ficar desempregada, sem nenhuma aula? Aceitei e logo de

cara tive que enfrentar os terceiros anos do Ensino Médio. Pensei: o que

vou fazer? Comecei fazer cursos, estudar, e hoje gosto mais de Inglês.

Rejeitei duas aulas e tive que pegar vinte. A necessidade fez com que eu

corresse atrás, estudasse, deixasse a insegurança e o medo. Um professor

da faculdade dizia: “Medo é pêlo enraizado. Tem que arrancar esse pêlo”.

Eu me lembro disso até hoje e isso marcou muito a minha formação, os

110

desafios. O próprio Ensino Médio, eu saí da faculdade e peguei o Ensino

Médio. Hoje eu trabalho também com o fundamental, mas eu consigo me

entender melhor com o médio, com os alunos e com o conteúdo.

Assim como Jurupari recebe a missão do Sol de organizar e reformar os usos

e costumes dos povos da terra, Sílvia assume a liderança da sua própria existência

e “vira o jogo” de poder entre homens e mulheres, busca a justiça necessária aos

mais desfavorecidos, reconhece a fortaleza existente na humildade do sertanejo,

assume o desejo de melhorar o mundo, movida pela paixão estética de suas

experiências com as mais diferentes expressões artísticas que a conduziram à

autonomia e emancipação.

Eu sou apaixonada por Fernando Pessoa: “tudo vale a pena quando a alma

não é pequena”. Fernando Pessoa é para mim uma referência na Literatura

Portuguesa. Um livro que me marcou muito e que eu recomendo sempre

aos meus alunos é Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Um filme que tem

uma parte que eu gosto é o da Guerra de Canudos, de Euclides da Cunha,

que ele fala: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Quer dizer, você que se

sofre, mas que não se pode desistir (persistência). O que um líder faz?

Antonio Conselheiro: era um líder ou um louco? Ele levou muita gente,

embora elas morressem, e isso foi de uma coragem...

Como conjugar tais características de Sílvia com o trabalho desenvolvido na

esfera escolar? A própria professora reconhece, como válida, a perspectiva de

Pineau (2004), autor que defende a seguinte concepção: na articulação do presente

e do passado, reconhecidos no percurso formativo do sujeito, o docente pode

reconhecer aquilo que o afeta e a forma pela qual é afetado, aprendendo, com seu

próprio percurso (autoformação), com livros e modelos de professores

(heteroformação), com o ambiente (eco-formação) e com o outro (co-formação)

Sempre gostei muito de História: tive um professor que era ótimo. A única

matéria com a qual eu não dava muito bem era Matemática: eu sempre tive

muita dificuldade, e vencia dificuldade com muito empenho. Ciências eu

gostava muito. Na minha época tinha um bom relacionamento com os

professores, embora na minha época os professores fossem muito

distantes, e isso era comum. Hoje essa distância me incomodaria, pois hoje

o aluno é diferente: os alunos são questionadores, e isso é positivo, pois o

ser humano é questionador[...]. Não tive nenhum espaço, em programas de

formação, ou mesmo no âmbito da unidade escolar, para discussão da

111

história de vida pessoal. Acredito que essa discussão ajudaria muito, pois,

pelo que conversamos podemos descobrir aquilo que gostamos. Numa

conversa, um colega pode dizer que fez a faculdade e caiu na educação e

isso é uma coisa gravíssima: nós mexemos com vidas. Há dias que

chegamos na sala de aula com problemas, mas quando isso ocorre eu

respiro fundo e penso: nós somos os educadores. E você, às vezes,

ouvindo o aluno, taxado com impossível, pode até ajudá-lo, através de uma

conversa. É conhecer um pouquinho da vida de cada aluno. Conhecer a

história de vida de todos é difícil. Abrir esse espaço, conhecer um

pouquinho da vida de cada professor, porque ele chegou até aqui, é

importantíssimo. Nós não podemos desistir da educação. Essa pesquisa

que você esta fazendo com a gente, o que te levou, o que te marcou...

Sílvia enxerga a possibilidade do trabalho interdisciplinar e contextualizado

por meio da co-formação: junto com seus pares, na realização de atividades

comuns, capazes de integrar disciplinas e no trabalho coletivo desenvolvido junto

aos demais professores.

Quanto ao “Ensino Médio em Rede”, lembro de comentários superficiais nos

HTPC‟s, não de forma profunda. Os conceitos de interdisciplinaridade e

contextualização também foram trabalhados de forma superficial. Porém,

nesta escola, aqui nós discutimos bastante nos HTPC‟s. Para um trabalho

interdisciplinar, discutimos que o trabalho não pode ser individual, e sim

deve ser em grupo. Nós procuramos fazer atividades integrando Artes,

Geografia, Inglês, mais em projetos. Isso melhora bastante a prática,

atingindo o aluno, deixando de se importar apenas com a sua disciplina,

aprendendo a trabalhar em grupo, socializando os conhecimentos. Eles (os

alunos) são muito individuais e a vida não é individual. Para um trabalho

interdisciplinar é muito importante que os HTPC‟s sejam voltados a explicar

como se dá esse trabalho, pois ainda há professores que resistem, que

acham que o trabalho deve ser tradicional, abrir mais questões, espaço para

discussão, para troca de ideias para trabalhar juntos, a serem levadas aos

alunos para que eles entendam a proposta e encarem com mais seriedade.

E cursos, o Estado deveria fornecer mais cursos. Toda mudança é radical e

temos que acompanhar a modernidade: nosso aluno é novo, não é da

época de 40 anos atrás.

Como os demais professores anteriormente ouvidos, Sílvia legitima, em sua

narrativa, a figura do professor coordenador como mediador de trabalho pedagógico

que atua na promoção de momentos de troca e partilha de ideias. O herói Jurupari,

112

que trouxe ordem ao mundo, inspira o desejo de Sílvia de vislumbrar, no espaço

escolar, sobretudo, nos HTPC‟s, a ordem escolar, com o objetivo de que tais

momentos possibilitem a experiência estética de contato com o outro, na criação de

sentidos para a modernidade que desponta na esfera educativa.

3.2.6 Encontros estéticos mediados por Suely, o mito de Hersília

No exercício de desvelar as narrativas dos professores da E.E. “Loureiro

Junior” percebe-se que o grupo de professores reconhece que a professora Suely

exerce o pape central no processo de articulação do trabalho pedagógico. A

legalidade de sua função de Professora Coordenadora convive com a legitimidade

do reconhecimento de sua capacidade por parte dos professores que coordena.

Legalidade e legitimidade são critérios que possibilitam a analogia da figura de Suely

com o mito de Hersília, que na perspectiva de Brandão (2008, p. 161) relacionado ao

verbo horiri, presente horior, “excitar, estimular, exortar, conciliar”.

Conta Brandão (ibidem p. 162) que Hersília foi uma das sabinas raptadas pelos

romanos durante os jugos solenes oferecidos pelo fundador de Roma às nações

vizinha, tornado-se depois uma heroína romana. De família nobre, era esposa de

Hostílio e, durante a guerra sangrenta que se seguiu entre sabinos e romanos, a

jovem se houve com grande coragem e prudência e conseguiu, por fim, conciliar,

para sempre, os inimigos, conseguindo, assim, formar um único povo. Uma variante,

relatada por Ovídio, aponta Hersília como esposa de Rômulo, a quem concedeu dois

filhos: Prima, uma menina, e Aólio/Avílio, um menino.

Tomando-se a dimensão conciliatória de Hersília, percebe-se que Suely

dispensa aos seus professores um olhar que revela a sua capacidade de

compreendê-los, a ponto de atendê-los em seus anseios, necessidades e

possibilidades de melhoria de suas atuações. É possível que se diga que, tomada

por um olhar estético, Suely detém a abertura e o acolhimento necessários para

prenunciar e intuir a herança mítica, sugerida pelos seus professores, sensibilidade

alargada por uma “visão clarividente” trazida por Perissé (2009, p. 56).

Sua presença é valorizada pelos docentes, corroborada pela fala de Gabriel.

Sua chegada à escola desestabiliza, excita, estimula a discussão.

Desde que a Suely (Professora Coordenadora) está aqui, temos discutido

até que ponto temos desenvolvido a interdisciplinaridade de verdade e

113

descobrimos que podemos trabalhá-la a partir de um filme, um texto, e não

somente por um projeto gigantesco (Lilian).

A professora Ana, nos desafios do trabalho cotidiano, é acolhida, ajudada e

conduzida pela coordenadora, que age como uma Hercília solícita. Tal solicitude

desperta a consideração na “condição humana de existir junto com o outro, a nossa

humanidade” (BOARETO, 2003, p. 31) no mundo partilhado com os outros.

Acho que o trabalho tem que começar de coordenação, que tem que

mostrar para gente como funciona isso, como você pode fazer isso, pois

muitas vezes a gente não faz, pois não sabe como se pode fazer esse

trabalho. Solitariamente os professores até fazem, mas quando a gente

percebe que há uma coordenação as coisas são melhores. Você só

aprende estudando sobre a interdisciplinaridade. Aqui na nossa escola o

trabalho vai muito bem, pois nos temos a Suely que nos ajuda muito. Por

que na escola particular as coisas funcionam? Porque sempre tem muita

gente te cobrando, envolvido, te mostrando como se faz. Aqui na escola a

gente faz, tem professores bastante envolvidos, e a gente vai perguntando e

caminhando (Ana).

O professor Gabriel refere-se às virtudes da Professora Coordenadora,

alegando que ela ensina, estimula e, sobretudo, desperta o gosto e o prazer de

educar, por meio de sua atuação, recuperando os sentidos e significados atribuídos

à formação continuada, que revela a relação consigo, com o outro e com o

conhecimento.

Na escola participo dos HTPC‟s com a Suely, Professora Coordenadora.

Aqui os HTPC‟s são ótimos, a gente aprende muito, a direção da escola

também é muito atuante. Nos momentos de formação continuada junto aos

outros professores, temos espaço, nesta escola, para falar do aluno,

surgindo a brecha de falarmos de fatos pessoais, como a minha postura

junto aos alunos. Qualquer ser humano tem que aceitar e encarar a

experiência vivida como aprendizado. Todos têm na sua vida fatos positivos

e negativos. O grande aprendizado é tirar dos fatos negativos uma lição e

trazer isso para os nossos alunos, como um exemplo, para que eles não

cometam os mesmos erros, e se eu puder estar dividindo isso com os meus

colegas, com os meus pares, é ótimo, pois eles vão ter ao lado deles um

exemplo vivo ao lado deles, alguém que teve um aprendizado e está

querendo expandir, e não guardar somente para si. (Gabriel).

114

Depreende-se que Suely sabe encontrar o ponto de equilíbrio de sua

intervenção, como mediadora do percurso formativo de seu grupo. Suely constrói

interações de sensibilidade por meio do olhar atento às condições e possibilidades

de seu grupo de professores.

No “Ensino Médio em Rede”, participei das discussões sobre

interdisciplinaridade e contextualização. Aqui na escola temos discutido

muito sobre esses temas: normalmente montamos projetos aqui na escola e

usamos a interdisciplinaridade sempre, que é super importante, até por

conta da Coordenação, que auxilia bastante, vai amarrando nosso trabalho.

A Professora Coordenadora acaba trazendo os outros professores e aí

acaba funcionando por conta disso. Discutir sobre interdisciplinaridade e

contextualização melhora a prática dos professores, pois o professor tem a

tendência de se fechar na área dele, sabe, “eu sou de Português, deixo de

ensinar história, geografia, ciências”, mas não é nada disso. Quando você

discute tais conceitos, você passa a perceber que esses conhecimentos

fazem parte da outra disciplina e você começa ajudá-lo também, pois ele

passa a se interessar mais. E os outros professores que estão muito

fechados passam a se abrir mais, e isso é muito importante. Como pré-

requisito para o trabalho seria o fato dos professores estarem dispostos, o

que falta muito, é ter um mediador, senão não tem como, se não tiver

alguém que direcione, que puxe os outros, que coordene, pois cada um

tende a falar que vai somente fazer a sua parte e o que sei e isso somente,

não resolve. Se ficar somente por conta apenas dos professores, não

resolve (Renata).

E, para que Hersília possa “excitar, estimular, exortar, conciliar”, o encontro

com o conhecimento sensível, ela necessita responder aos anseios da professora

Sílvia, que, em sua fala, reivindica espaços nos quais suas narrativas (auto)

biográficas possam ser ouvidas por seus pares.

Não tive nenhum espaço, em programas de formação, ou mesmo no âmbito

da unidade escolar, para discussão da história de vida pessoal. Acredito

que essa discussão ajudaria muito, pois, pelo que conversamos podemos

descobrir aquilo que gostamos. Numa conversa, um colega pode dizer que

fez a faculdade e caiu na educação e isso é uma coisa gravíssima: nós

mexemos com vidas. Há dias que chegamos na sala de aula com

problemas, mas quando isso ocorre eu respiro fundo e penso: nós somos os

educadores. E você, às vezes, ouvindo o aluno, taxado com impossível,

pode até ajudá-lo, através de uma conversa. É conhecer um pouquinho da

115

vida de cada aluno. Conhecer a história de vida de todos é difícil. Abrir esse

espaço, conhecer um pouquinho da vida de cada professor, porque ele

chegou até aqui, é importantíssimo. Nós não podemos desistir da educação.

Essa pesquisa que você esta fazendo com a gente, o que te levou, o que te

marcou... (Sílvia)

O mito de Hersília atribuído à Suely, Professora Coordenadora da E.E.

“Loureiro Junior”, interpretado por meio das narrativas dos professores, confirma

que, na figura do professor coordenador da rede púbica estadual, encontra-se uma

possibilidade concreta de formação continuada no espaço escola. Entretanto, há

que se conclamarem condições para que tal formação abarque encontros éticos e

estéticos, os quais possibilitem aos professores o processo de conscientização a

partir do movimento de tomar em suas mãos o curso de sua própria história.

É por meio da consciência despertada pela reflexão sobre sua própria história,

que o sujeito tem condição de promover a transformação. Freire (1992) aponta que é

na educabilidade do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada e da qual

se tornou consciente, que o sujeito se faz um ser ético, um ser de opção, de decisão.

A ética e a estética são intrínsecas à vivência da afetividade que perpassa os

caminhos da ação pedagógica.

Nas narrativas dos professores da E.E. “Loureiro Junior” torna-se perceptível

o belo, existente na arte do contar a sua própria história. A linguagem deixa escapar

a verdade. Lilian cita Sagarana, evocando Guimarães Rosa e a mescla do real, o

imaginário e o lendário em suas obras. Solange encanta-se por Vidas Secas, tocada

pelas condições desfavoráveis da vida do sertanejo, decritas por Graciliano Ramos.

Encanta-se, ainda, por Fernando Pessoa, pois “tudo vale a pena quando a alma não

é pequena”. Gabriel encanta-se com Mondigliani e sua triste história, expondo aos

seus alunos uma outra visão, em contradição ao tradicional trabalho com Van Gohg,

Tarsila do Amaral, Picasso, Almeida Júnior. Já, Renata resgata o encanto na

releitura de Dom Casmurro, que despertou a sua paixão por Machado de Assis.

Estes são exemplos de empatias que provocam o heróico deslocamento de si

para a obra e o retorno para a aldeia de aprofundamento em si próprio: “Não me

confundo com a obra, mas eu e ela estamos dentro. Eu dentro dela. Ela dentro de

mim. Os limites não desaparecem, mas se flexibilizam. A emoção me move” (ibidem,

2009, p.49).

Abordar os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização, numa

dimensão estética, implicando na relação do conhecimento historicamente produzido

116

com a vivência do sujeito aprendente: o belo emerge, na utilização dos mitos, como

fonte para a interpretação das narrativas, no exercício de imaginação/estética

(ingenuidade X criticidade).

Pensar a formação continuada numa dimensão estética significa permitir que

no espaço escolar se faça a analogia com os mitos e que se reconheçam as

histórias de vida, como condição de promover encontros estéticos entre professores

e coordenador, entre supervisor e equipe escolar.

Pensemos, então, o que os mitos pessoais contidos, na narrativa dos sujeitos

envolvidos na pesquisa, trouxeram para a reflexão da dimensão estética, como

proposta de formação continuada. As relações estabelecidas entre as histórias de

vida dos professores e seus mitos pessoais permitiram vislumbrar várias

subjetividades e várias identidades, que lhes dão a característica da singularidade.

Uma pluralidade (formação religiosa, política, familiar, técnica, social), tecendo a

singularidade apoiada na premissa de que de ser singular.

O mito de Palas Atená surge na dimensão estética da justiça que reside no

direito de dotar a escola para o desenvolvimento de espaços de formação (auto)

biográficos.

Tais espaços possibilitam formações profissionais, sob a ótica da dimensão

estética. Alvarenga (2007) contribui com a questão ao afirmar que “Atená simboliza,

mais que tudo, a criação psíquica, a síntese por reflexão, a inteligência socializada.

A possibilidade de humanização do arquétipo se dará ao cabo de longa evolução,

reflexo da própria evolução da consciência humana. Da deusa primordial, selvagem,

à deusa da justiça e sabedoria, muitos elementos da sua rica personalidade foram

integrados numa harmoniosa síntese” (ibidem, p. 272).

117

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mito de Héstia traz a deusa da lareira que aquece, ilumina, nutre, centra e

foca. Ela zela pelo que faz parte da identidade, e, ao mesmo tempo, abre espaço

para o novo. Na perspectiva de Alvarenga (2007, p. 141), “foi escolhida por Apolo

para ser a guardiã da imagem do Paládio, pois é a que tudo vê, a que tudo ilumina”.

Héstia protege e garante a intimidade da família em casa.

O mito Héstia emergiu da interpretação das narrativas dos professores como

o mito pessoal da pesquisadora, a jornada de uma heroína, advindo da função como

Supervisora de Ensino da rede estadual pública paulista.

A realização desta pesquisa foi um exercício de descoberta que demandou

empenho pessoal, muitas vezes, tomado por sensações de ansiedade por querer

encontrar significados, acompanhados de grande alegria e satisfação, quando estes

emergiam das narrativas. Os professores ouvidos autorizaram a penetração em

espaços não visitados e a exposição de assuntos que rotineiramente não são

partilhados no universo escolar.

A jornada interpretativa iniciou-se com a escrita da história de vida da

pesquisadora, um processo de construção de autoria, na atribuição de sentidos e

significados das vivências pessoais, investigadas e transformadas em experiências

de vida.

Esse caminhar para si, nas palavras de Josso (2002), constituiu-se em

encontro estético, ao contemplar o aspecto formativo da pesquisa, na abordagem

(auto) biográfica. Foi utilizado o método de história de vida, tanto para coleta de

dados deste estudo como para investigação dos momentos charneiras da

pesquisadora, na perspectiva do paradigma experiencial de Josso, unindo teoria e

prática, visando à compreensão de que não há pesquisa distante de nossa História

de Vida. Toda pesquisa é um momento de formação de ser pesquisador e

profissional da educação.

No trilhar do caminho da mitohermenêutica, nas palavras de Paulo Freire, o

medo foi aliado da ousadia. Como prêmio, a experiência de ter sentido à flor da pele

a experiência da saga humana, presente nas narrativas míticas. A apropriação dos

mitos permitiu a construção de um repertório que, antes, não fazia parte da

experiência como pessoa e profissional.

118

A compreensão do mito pessoal da pesquisadora, entrelaçado ao mito pessoal

dos professores entrevistados, demonstrou, nesse entrecruzar, que todo mito conta

a história de nossos esforços em busca do sentido de humanidade nas relações.

A pesquisa realizada trouxe contribuições para o campo de formação de

professores, tendo em vista a obtenção de resultados descritos a seguir.

Foram realizadas entrevistas narrativas com cinco professores da EE “Loureiro

Júnior”; todos atuantes no curso de Ensino Médio, na área de Linguagens e Códigos

e suas Tecnologias – LCT, ministrando aulas nas disciplinas de Português, Inglês e

Educação Artística. Considerando os resultados da análise destas entrevistas,

conclui-se que os objetivos deste trabalho de pesquisa foram atingidos.

Nas entrevistas realizadas, as narrativas manifestam a posição dos

professores, quando eles afirmam que, nos programas de formação dos quais

participaram, não tiveram a oportunidade de explorar os conhecimentos sobre a

metodologia de pesquisa relacionada com “a história de vida”.

A partir das entrevistas, percebe-se que os professores legitimam a figura do

professor coordenador, como mediador do trabalho pedagógico, e, como pessoa

atuante na promoção de momentos de troca e de partilha de ideias.

Sobre a identificação das diferentes visões apresentadas por professores do

Ensino Médio, em relação aos conceitos de “Interdisciplinaridade” e

“Contextualização”, é possível que se conclua, a partir das entrevistas narrativas,

que ainda existem muitos pontos obscuros na percepção dos vínculos entre tais

conceitos e sua aplicação prática:

Ana vê a Interdisciplinaridade e a Contextualização como modelos eficazes que

melhorariam a prática pedagógica e que deveriam ser ensinados aos professores,

através de uma metodologia centrada na repetição de técnicas passíveis de serem

aprendidas, portanto, depreende-se que não houve a possibilidade de apresentação

de um conceito próprio.

Lilian olha para os conceitos de “Interdisciplinaridade” e “Contextualização”,

como recursos facilitadores para o trabalho integrado entre docentes, porém

dependentes do uso de uma linguagem comum.

Renata enxerga possibilidades de práticas interdisciplinares e contextualizadas,

apenas, através da figura da Professora Coordenadora que, pelo convencimento,

motivaria todos os professores e a realizarem um trabalho coletivo.

Gabriel adere às práticas de “Interdisciplinaridade” e de “Contextualização”,

alegando que a discussão sobre tais conceitos acontece nos HTPCs. De acordo com

119

o entrevistado, o interesse do aluno aumenta, quando se combinam as disciplinas.

Clara é a sua concepção sobre os conceitos de “Interdisciplinaridade” e

“Contextualização”, bem como seu entendimento sobre as condições necessárias

para que tais conceitos se processem no âmbito escolar.

Sílvia enxerga a possibilidade de êxito, no trabalho interdisciplinar e

contextualizado, por meio da co-formação, junto com seus pares, na realização de

atividades comuns, capazes de integrar disciplinas e no trabalho coletivo

desenvolvido junto aos professores da escola. Ela concorda que o trabalho

pedagógico não pode ser individual e que a integração das disciplinas é fundamental

no processo pedagógico.

A hipótese da pesquisa desenvolvida está apoiada na premissa de que os

professores que atuam, no segmento do Ensino Médio da rede pública paulista, não

têm clareza dos conceitos de “Interdisciplinaridade” e de “Contextualização”. Isto se

deve ao fato de que a construção de tais conceitos demanda uma ação de formação

contínua que possibilite a reflexão sobre estes temas. Esta formação contínua não

foi disponibilizada a todos os professores da rede, por isso, é possível que se

conclua que a solução está em se colocar no processo de busca de compreensão

de si mesmo, de componentes da própria história, de tomadas de consciência

daquilo que move o ser humano, que interessa, que guia, que atrai o homem.

Com as entrevistas narrativas realizadas e analisadas, com o conhecimento

das experiências profissionais e pessoais dos sujeitos pesquisados, foi possível

identificar, conforme se pretendia, que as histórias de vida são fundamentais para a

percepção da existência. Existe uma forte relação entre os processos de elaboração

pessoal e as possíveis práticas interdisciplinares, conquistados com “o mergulho na

memória”.

Como foi possível verificar na apresentação dos mitos pessoais, a

compreensão restrita do conceito de “Interdisciplinaridade”, atrelada a conteúdos de

diferentes disciplinas escolares relacionados entre si, emerge nos depoimentos dos

professores entrevistados, o que vem a confirmar a hipótese inicial: boa parte dos

problemas de compreensão da abordagem interdisciplinar envolve aspectos da

formação docente.

As Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio de 1998, que propuseram a

reforma curricular do Ensino Médio e os seus eixos norteadores – a

“Contextualização” e a “Interdisciplinaridade” – não aparecem como objeto de

discussão no interior da escola, o que nos leva a inferir que a maioria dos

120

professores não tem conhecimento do texto legal. Por não terem sido incorporadas

nas discussões, observa-se a dissociação entre o exposto pela legislação e o

praticado nas escolas. A lei traz em si a idealização de determinada situação em prol

do “bem de todos”, sendo que toda lei mal interpretada ou mal entendida leva a

distorções na ação proclamada. Ausentes do espaço escolar as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio legitimam uma barreira invisível que

deixa o professor à parte da construção de práticas curriculares nas escolas,

situação que pode ser lida como decorrente do fato de o professor não se perceber

como sujeito de autonomia.

É possível concluir que a vida pessoal e a vida profissional não habitam

territórios distintos. Cabe a nós escrevermos nossa história. Nessa jornada, ao

conjugar a mão justa de Atená, presente nos programas de formação continuada,

com o olhar atento de Héstia, emerge a possibilidade de uma educação de

sensibilidade que objetive considerar a identidade cultural das escolas e a

subjetividade contida nas histórias de vida dos sujeitos envolvidos no processo

educacional.

121

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WILLIS, Roy. Mitologia del mundo. Espanha: Evergreen, 2007.

130

ROTEIRO DE ENTREVISTA

A entrevista narrativa tem como objetivo evitar o discurso na terceira pessoa,

ou seja, a pessoa falar de si própria como se tratasse de outra pessoa, onde a

pessoa não se sente tocada pela sua própria história que relata, expressando-se

uma maneira desabitada e mecânica.

A narrativa possibilita a pessoa falar do sua vivência como se ela pertencesse

ao passado, entretanto possibilita a tomada de consciência de acontecimentos que

ainda são atuais.

As questões emergiram durante o desenvolvimento da narrativa, muito

embora foram apresentadas, ao Comitê de Ética da Universidade Cidade de São

Paulo, questões direcionadoras que nortearam as entrevistas realizadas, de acordo

com o tema da pesquisa.

A entrevista narrativa foi desenvolvida seguindo as fases descritas nos

Anexos I a V, tomando como suporte teórico a perspectiva de Jovchelovitch e Bauer.

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ANEXO I – PREPARAÇÃO

Preparação

- exploração do campo

- identificação dos sujeitos envolvidos

Qual o seu nome e sua formação

acadêmica?

Quando iniciou a docência?

Há quanto tempo atua na rede pública

estadual paulista?

E no segmento escolar Ensino Médio?

Participou de programas de formação

continuada? Quais?

Você acha que é importante participar

de programas de formação continuada?

Por quê?

Você participou do programa de

formação “Ensino Médio em Rede”?

Você teve a experiência de participar

de discussões de Interdisciplinaridade

em outros programas de formação ou

em outras escolas de Ensino Médio?

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ANEXO II – INICIAÇÃO

Iniciação

- formulação do tópico inicial para

narração

Como vocês têm discutido o conceito

de “interdisciplinaridade” e

“contextualização” no Ensino Médio?

Você acha que esses conceitos

“interdisciplinaridade” e

“contextualização” melhoram a escola

do Ensino Médio e a prática dos

professores? Por quê?

Você sente que a interdisciplinaridade e

a contextualização no Ensino Médio é

levada em consideração pela escola e

professores?

Quais são as sugestões que você tem a

dar para melhorar as possibilidades de

vislumbrar o desenvolvimento de

práticas pedagógicas que contemplem

os elementos “interdisciplinaridade” e

“contextualização”?

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ANEXO III – NARRAÇÃO CENTRAL

Narração Central

- narração livre por parte dos sujeitos

envolvidos

Como foi o seu processo de formação

de professor?

Você poderia relacionar tal processo

resgatando episódios marcantes,

reconhecer as pessoas, professores,

livros que influenciaram na sua escolha

profissional, refletir a sua relação com o

conhecimento, professor e consigo

mesmo (se de autoria ou de

submissão) e os modelos que

influenciam suas práticas e sua decisão

profissional?

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ANEXO IV – FASE DE PERGUNTAS

Fase de perguntas

- questões desencadeadoras pelo

entrevistador

Como foi a sua relação com as

disciplinas?

Como foi a sua relação com o

professor?

Quais episódios você considera como

marcantes na sua formação: os

momentos divisores de água, na

trajetória na vida – familiar, escolar,

acadêmica, profissional?

Você vê alguma relação desses fatos

na sua maneira de ser pessoa e

professor no Ensino Médio?

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ANEXO V – FALA CONCLUSIVA

Fala conclusiva

- questões de elucidação pelo

entrevistador

O que significou para você o resgate do

processo (auto) formativo no contar

como reconheceu que aprendeu

resgatar episódios marcantes,

reconhecer as pessoas, professores,

livros que influenciaram a sua escolha

profissional, refletir a sua relação com o

conhecimento, professor e consigo

mesmo se de autoria ou não,ou seja, o

que significou perceber que a trajetória

pessoal e profissional não são distantes

que influenciam os modelos de práticas

e a decisão profissional ?

Você considera o estudo (auto)

biográfico importante para a

compreensão da Interdisciplinaridade e

Contextualização no Ensino Médio?

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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO – UNICID PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇAO

SUJEITO 1 – PROFESSORA ANA: Meu nome é Ana, eu fiz letras na Universidade São Judas há muitos anos atrás e depois fui fazendo alguns outros cursos para aperfeiçoar a língua inglesa, em instituições como PUC, pois a universidade não dá essa noção para ser professor de inglês. Fiz o inglês oral da PUC e fiz os outros cursos dados pelo Governo. Comecei a atuar com cerca de 22 anos de idade, o curso de letras dava a licenciatura curta e logo após a conclusão de meu curso de licenciatura curta comecei a dar aulas no supletivo de ensino médio, sem terminar o curso, com autorização, numa escola particular. Comecei a lecionar numa escola particular pequena e posteriormente passei a atuar na rede pública, desde 1991. Dava algumas aulas na rede pública, interrompia minha atuação na rede pública em alguns períodos, como na época em que meus filhos nasceram e em outros momentos quando apareciam chances de atuar em escolas particulares, optando por uma remuneração melhor. Há 03 (três) anos “efetivei-me” na rede pública estadual. Fiz alguns cursos de formação continuada, mas nenhum específico para o ensino médio, não tendo tido oportunidade de participar do programa ensino médio em rede. Não fiz nenhum curso só para o Ensino Médio: fiz o Curso “Reflexão sobre a ação” na PUC, e quem fez esse curso hoje não tem dificuldades de trabalhar com o caderninho. Adorei participar de cursos de formação continuada, pois eles dão a noção da parte pedagógica mesmo, dos objetivos dos PCN‟s, me servia para tudo, fazendo diferença na minha aula, o que me auxiliou tanto na escola pública como na escola particular. Quem fez esse curso não tem dificuldades de trabalhar com o caderninho. O aluno tem todo um caminho para aprender língua, e o objetivo que está lá na frente é que direciona esse caminho. Se tivesse a oportunidade faria outros cursos. Nesta escola, tive a oportunidade de trabalhar com os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização; o material está todo voltado para isso. O caderninho (proposta curricular) tem propiciado atividades que foram realizadas junto com o professores de geografia, de artes, com português. O professor se ao apropriando desses conceitos melhoraria a prática. Acho que o trabalho tem que começar de coordenação, que tem que mostrar para gente como funciona isso, como você pode fazer isso, pois muitas vezes a gente não faz, pois não sabe como se pode fazer esse trabalho. Solitariamente os professores até fazem, mas quando a gente percebe que há uma coordenação as coisas são melhores. Você só aprende estudando sobre a interdisciplinaridade. Aqui na nossa escola o trabalho vai muito bem, pois nos temos a Sônia que nos ajuda muito. Por que na escola particular as coisas funcionam? Porque sempre tem muita gente te cobrando, envolvido, te mostrando como se faz. Aqui na escola a gente faz, tem professores bastante envolvidos, e a gente vai perguntando e caminhando.

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Na faculdade eu me lembro de uma coisa que me mostrou que muitas vezes nos cometemos erros, atrapalhando o aluno. Na faculdade eu tinha uma professora de inglês que era surda que tinha a dicção já prejudicada e isso prejudicava o aluno que estava na minha situação. Isso ajuda a perceber que às vezes podemos prejudicar os alunos. Eu tinha vindo de escola pública e desde o início queria ser professora de inglês e não tinha tido a oportunidade de fazer cursos de inglês fora da escola. O fato de a professora ouvir com aparelho e ter dificuldade de pronunciar as palavras, até pelo volume da voz, me prejudicou muito e isso me mostrou que tipo de professora eu seria: como eu poderia auxiliar o outro e como eu poderia até destruir o sonho dos alunos. Esse foi um fato marcante. Na época em que cursei o meu ensino médio me lembro que as coisas não eram muito diferentes do que e agora; eu não me lembro de nenhuma atividade especial, sinto que hoje às vezes a gente programa muitas atividades que os alunos não percebem isso, como eu também não percebia. Lembro do professores de antigamente, lembro do professor de ciências que usava terno, pois ele era como um advogado. Hoje os professores estão de tênis e jeans, que eles eram vistos de forma diferente, que tinham uma postura diferente. Em relação ao que tinha que aprender na escola eu não me lembro. Mas não foi isso que me fez ser professora, não me lembro especificamente dos professores quem me ajudaram a aprender: eu me lembro daqueles professores que me atrapalharam, como o professor de matemática que gritava quando eu ia até a lousa para aprender sistemas, dizendo “deu galho no seu sistema!”; as disciplinas escolares direcionaram a minha escolha, eu era péssima em matemática, não conseguia tirar nota, e adorava escrever, tinha o meu caderninho, meu diário, o meu caderninho de redação, e já gostava de inglês, tive que aprender inglês sozinha, depois de casada, aprendi inglês aqui nos país, não tenho vergonha de dizer que nunca viajei aos Estados Unidos, os alunos ate perguntam, mas eu digo que é possível aprender inglês aqui, ainda mais hoje, como acesso a internet, ou como eu fiz, em aulas particulares, estudando muito. Na minha vida familiar, meus pais nunca incentivaram a gente a fazer nada, talvez o meu sonho fosse algo maior, mas eu e minha irmã tínhamos que optar por algo possível: a condição familiar que tínhamos não nos possibilitava algo, além disso. Minha irmã saiu do magistério, foi atuar na área do direto tributário, e eu quando tive oportunidade fui estudar inglês. Ou escolhíamos algo que estivesse dentro da possibilidade de fazer sozinhas ou não fazíamos nada. Depois eu vi que o magistério era mesmo o meu caminho, é o que eu gosto de fazer, senão já teria saído dele. Isso me serviu como lição de vida para direcionar a vida dos meus filhos, o meu filho fez cursinho, hoje estuda na USP, ele pode até falar: “minha mãe que me estimulou”, e sempre mostro a importância de escolher a profissão porque você quer e não pela condição que a vida te dá, mas antigamente era diferente. Para mim era a opção que eu tinha naquele momento. Eu acho importante que você reveja os fatos que aconteceram lá atrás e direcione seu trabalho: no que foi bom para você e que fatos importantes direcionem seu caminho mais certo. Resgatar o que o professor de Matemática fez comigo é algo que faço sempre, para refletir que não devo incentivar o erro, acho que a gente é fruto conseqüência daquilo que aconteceu conosco, mas não me lembro de ter refletido sobre isso em cursos de formação. Recordo-me que na PUC tivemos uma atividade para refletir sobre um professor que foi marcante em nossa formação, para saber se alguma coisa que esse professor marcante auxiliou na minha formação. Na

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escola, é importante considerar esses aspectos, pois trazer isso para os colegas, relatar fatos, pode direcionar o trabalho conjunto.

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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO – UNICID PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇAO

SUJEITO 2 – PROFESSORA LILIAN: Meu nome é Lilian, na minha formação acadêmica eu fiz Letras, na Universidade São Francisco. Embora seja habilitada também em Inglês não gosto de Inglês, é uma área que não me atrai. Adoro a Língua Portuguesa, decidi ser professora de Português. Iniciei a docência em 1986, pois ainda quando estava estudando fui convidada pelo Reitor da Universidade para dar aulas de reforço para meus colegas, pois eu era uma aluna de destaque em Língua Portuguesa, já dava aulas de Gramática valendo como estágio. Depois de formada trabalhei na escola particular, ate 1990, interrompi minha atuação em alguns momentos, por exemplo, fiquei afastada quando minha primeira filha nasceu, em 1994, voltei a lecionar na rede púbica, parei por mais um tempo quando tive minha segunda filha, passando por varias escolas até me efetivar. Sinto que a escola particular suga você demais, até pode pagar bem, mas você não tem direito de vida: a rede pública dá mais liberdade de atuação. Estudei nesta escola em que estou agora; conto com 14 anos de atuação na rede pública. Em outra escola em que atuei até tive que pegar duas aulinhas de Inglês, mas fiz de tudo para largar, porque acredito que quando você está em sala de aula você não só precisa ter o domínio da matéria, mas precisa mostrar ao aluno que aquilo que você faz, você gosta, até para segurar a classe. Fiz cursos de formação continuada, como o Circuito Gestão, que adorei fazer, pois o aprender é diferente: dizemos que trocamos figurinhas, mas na verdade trocamos maneiras diferentes de falar a mesma coisa. Não adiantava eu ter a visão que era a mesma visão de todo mundo, mas a forma como eu aplicava podia estar distorcida ou enganada, ou eu não chegava nos resultados propostos. Fiz o Ensino Médio em Rede até o ano retrasado e pela Prefeitura de São Paulo fiz o curso “Letramento” e o curso “Leitura e Escrita não é só Português”, onde nesse curso nós revemos que a leitura e a escrita é competência apenas da Língua Portuguesa, mas que compete a todas as matérias, muitas vezes o aluno não sabe interpretar um desenho ou ler um mapa, ele não conhece os termos técnicos que você está usando porque muitas vezes ele não foi ensinado para isso. Embora fosse um curso destinado ao Ensino Fundamental, eu o utilizei também no Ensino Médio. Fiz aquele curso do Museu da Língua Portuguesa, junto com a Fundação Roberto Marinho, que mostrava o papel da Historia, da Geografia e o quanto era importante que o professor estivesse envolvido com a linguagem, não somente a área de Linguagens e Códigos, com Historia, Geografia, o quanto era importante os professores estarem envolvidos com as disciplinas. Muitas vezes o professor de outras áreas pergunta: “Mas eu vou ter que corrigir a redação dissertação do meu aluno?” Ele pode não possuir os critérios normativos da língua, mas sabe verificar os critérios e argumentos trazidos pelo aluno. A Nova Proposta Curricular e o Jornal têm mostrado isso, o papel da linguagem. Muitas vezes o professor de outra área

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fala que não sabe. O professor ainda está acostumado que leitura e escrita é competência somente do professor de Português. O “Ensino Médio em Rede” trabalhava isso conosco: todo mundo tem que trabalhar junto, Português, Geografia, o professor estar inserido nesse contexto. Aqui na escola temos e não temos discutido a interdisciplinaridade. Sim, temos discutido nos HTPC‟s onde nós “brincamos” de trocar figurinha. Há alguns anos atrás era bonito falar: “Vamos fazer projetos interdisciplinares!” e, no final, descobríamos que não tínhamos feito projeto nenhum, e sim jogado uma série de informações no aluno e este tinha ficado perdido. Desde que a Suely (Professora Coordenadora) está aqui, temos discutido até que ponto temos desenvolvido a interdisciplinaridade de verdade e descobrimos que podemos trabalhá-la a partir de um filme, um texto, e não somente por um projeto gigantesco. O professor de Geografia trabalha um filme e o professor de Português também discute. A contextualização fazemos a partir dessa discussão, a gente conversa com o aluno, em todas as aulas, o que o professor falou e trazido para o dia-a-dia, fazendo com que o aluno trabalhe assuntos em diferentes disciplinas e assim acaba fazendo a interdisciplinaridade. Para mim a interdisciplinaridade e a contextualização melhoram a prática. O aluno se vê de forma compartimentada, e sabemos que não é assim. Com a contextualização ele percebe que não: o professor de Geografia ensinou a professora de Português a ler mapas; em Português eu leio gráficos, não só em Matemática. O aluno aprende através de relações entre tudo o que estão aprendendo. O contato com os pares para desenvolver a interdisciplinaridade é fundamental. O colega tem que estar disponível para. Até o aluno questiona: “Mas o trabalho vai valer para todas as disciplinas?”. Aí vamos explicando a contribuição de cada disciplina ao aluno. Os pares têm que estar integrados, acabam falando a mesma língua. Mesmo que os critérios e as posturas sejam diferentes, é importante mostrar ao aluno o porquê desse trabalho, qual o seu objetivo. Eu me formei muito jovem, com 21 anos. Em alguns momentos eu estava muito convicta do que queria, outros não. Eu fui ser professora porque acreditava. Eu tive uma professora de Língua Portuguesa, de Técnica de Redação, chamada Maria Carmela que me disse: “Você tem o dom da oratória, sabe convencer as pessoas daquilo que você quer”. Minha mãe sempre me dizia isso e apontava qualidades, mas eu precisei de alguém de fora para me mostrar isso, habilidades que eu tinha, mas que minha mãe apontava e eu não aceitava. Quando eu fui para a faculdade eu descobri que era aquilo que eu queria: que iria aprender para ensinar alguém. Ensinar é algo difícil: mostrar para os outros que eles estão certos ou errados, é algo complicado. Você consegue mudar o mundo ou destruir o mundo. O nosso poder é tão grande e as pessoas não percebem isso. Nós (enquanto professores) estamos mexendo com a cabeça de adolescentes, principalmente no Ensino Médio, e muitos não se dão conta do quanto podemos ser manipuladores. O professor é egocêntrico, gosta de estar sempre na frente de tudo. Escolhi essa profissão porque tenho nas mãos um poder de mudança e cumpro meu papel enquanto cidadã. Mas é difícil trabalhar em equipe, pois ora você brilha, ora o outro brilha, e às vezes ninguém brilha, e é o momento de retomar. Com exceção de Física e Química, minha relação com as disciplinas era excelente. Como aluna eu sempre gostei de ler, adorava estudar, chegava em casa e estudava através da brincadeira, fazia um baú antigo de lousinha e repetia todos os dias a

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lição aprendida na escola e fazia minha lição de casa assim. Falo que criei um método de estudar através do lúdico, e isso hoje passo para meus alunos e para minhas filhas.. A família era grande e eu tenho uma sobrinha com um ano a menos que eu. Tive uma fase em que eu não queria ir para a escola, pois eu perdi a primeira série, quando descobri que era filha adotiva e dizia para minha mãe que eu não precisava mais estudar e que ela não era minha mãe mesmo. Quando eu voltei para a escola, aos sete anos, encontrei minha sobrinha, mais nova, na mesma série, ai eu percebi o quanto era importante estudar. Daí para frente eu não parei mais. Eu sempre me dediquei, era a primeira aluna, não por cobranças, mas porque eu queria que fosse assim. Tanto é que minha sobrinha começou a ficar para trás. Meu horário de estudo passou a ser sagrado: e é isso que eu passo para eles (alunos). Cada um tem de descobrir a habilidade que possui: se para a informática, dedicando-se a ler, estudar, fazer pesquisa; mexer na internet, buscar resumos de contos, como Sagarana, para estudar e criar seu próprio caminho. Acho que Física e Química são o trauma de todo aluno que sai do Ensino Fundamental, pois nessa etapa o estudo está mais ligado as ciências naturais, e no Ensino Médio é somente cálculo. Na minha época fazíamos a área de exatas, humanas e biomédicas; mesmo assim eu reconhecia as questões da área de exatas e dava conta das provas. É importante a maneira como se cria o conhecimento. Com a minha filha de 18 anos eu criei com ela sistematicamente um sistema de estudo e, por mérito dela, sem fazer cursinho, entrou na USP. O aluno tem de entender isso: não importa ter o melhor professor do mundo, se ele (aluno) não construir seu conhecimento não vai para frente. Não há Universidade, não há curso que coloque você onde você não consegue chegar. Nós é que construímos nosso conhecimento. O papel do professor hoje mudou: antigamente, o aluno tinha outra postura em sala de aula, de mais respeito para com o professor. Hoje, o aluno não tem compromisso nenhum, não tem compromisso com ele, não tem compromisso com o estudo dele e não tem compromisso com o professor. Então acho que o Ensino Médio hoje em dia ele tem o papel de resgatar esse compromisso para que o aluno chegue lá na frente e Proposta, da forma com que ela está, está fazendo com que o professor dialogue mais, discuta mais com o aluno, despertando o interesse de uma forma nova. O aluno constrói o conhecimento dele ao longo do curso. Se ele não construir, ninguém o fará por ele. Em minha vida pessoal, encontro marcas que me fizeram chegar a esse ponto. Minha mãe, por exemplo, embora faça vinte e quatro anos que ela tenha falecido, eu a vejo todos os dias comigo. Minha mãe era professora: foi a primeira professora rural, em Minas Gerais, em Ouro Fino, numa cidade minúscula. Ela dizia que ensinar é a coisa mais gratificante do mundo: então, todas às vezes que eu vou dar aula, eu me lembro dela. Outra marca muito forte são as minhas filhas: eu trato meus alunos como eu gostaria que tratassem minhas filhas. Eu não agrido, paro, respiro, e digo que da mesma forma que eu os respeito, eu exijo respeito por parte deles. Eu trago minhas filhas para a sala de aula a todo tempo, trago para meus alunos exemplos da minha vida, para que eles tenham como parâmetro aquilo que eu vivenciei. Trago muito do meu cotidiano, como quando leio alguma coisa, quando faço algum curso, como uma vez em que uma contadora de histórias num curso contou a história das “Mil e uma noites”, e daí montei um projeto. O aluno para, ouve, e isso motiva. Eu tenho marcas profundas, como o projeto de Literatura de Cordel, em que levei os alunos ao SESC. Eu me recordo de uma senhorinha, aluna do EJA, que na visita ao SESC fez uma aula de xilogravura, e, com lágrimas nos olhos, me disse: “Professora, a primeira vez que eu tive contato com xilogravura foi quando eu tinha três anos de idade. A senhora me fez voltar no tempo”. Todas às vezes que eu falo de xilogravura eu conto essa minha vivência para os alunos; são marcas que não dá

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para o professor não trazer para a sala de aula. Experiências você tem que trazer para o aluno, ai você contextualiza: “por que eu tenho que estudar tudo isso?”. O “Ensino Médio em Rede” discutia muito o Protagonismo Juvenil. Sempre falo: “nós somos protagonistas da nossa vida e da nossa história, daqui cinquenta anos alguém vai discutir o que fizemos e julgar se foi bom ou ruim”. Tenho muitas experiências e trago todas elas para a sala de aula, é claro que dentro de um contexto. Eu não sei jogar para o aluno o conceito de Modernismo, em Literatura, sem explicar o contexto histórico: disse a eles que nasci em 1965 e vivi na época da ditadura militar.Quantas histórias vivas as mães e os avós têm para contar... As marcas que vivi estarei sempre passando para eles (alunos). Para eu discutir com alguém eu preciso saber sobre aquilo que estou falando e ter vivência daquilo: são as benditas marcas, há 22 anos dando aula, eu tenho de ter aprendido alguma coisa. Só conseguimos fazer isso sendo honestas, mostrando ao aluno que você gosta daquilo que você faz, pois para ser professor hoje no nosso país é muito fácil: se você é engenheiro tem direito de dar aulas de Matemática, biólogo marinho pode dar aulas de Biologia, mas para ensinar Português você tem que fazer Letras, você tem que gostar de dar aulas, tem que fazer licenciatura. Os professores vem e vão, mas quem fica é aquele que se dedicou, que sabe que seu salário é baixo, sabe que vai levar trabalho para casa. Sua escolha profissional tem de pesar os prós e contras. Os alunos, no terceiro ano do Ensino Médio, estão às portas do mercado profissional e nossa experiência pode auxiliá-los. Lembro de um aluno nosso, chamado Raul, que estava fazendo engenharia na FAI e que fez apenas quatro messes, saiu da faculdade, e foi fazer gastronomia. Esse aluno trouxe seu pai para conversar comigo, alegando que eu era uma pessoa ponderada, e eu perguntei ao aluno se era isso que ele queria e ele disse que sim. Eu disse ao pai que era melhor ele ser um chefe de cozinha feliz do que um engenheiro frustrado, que iria vender pastel na feira. Quando eu falo isso para os terceiros anos de agora, eles dão risada, mas depois discutimos. Querendo ou não são marcas que deixamos nos alunos e eu insisto no poder que o professor tem sobre os alunos e muitas vezes não se dá conta. Resgatar as histórias de vida no coletivo, entre os professores, é importante, mas nem todos os professores se dão conta disso: alguns professores têm receio de mostrar quem verdadeiramente são. A grande maioria de nós tem medo de mostrar seu lado pessoal. Quando estamos abertos a fazer algo, fazemos. Não vejo hoje o grupo docente tendo essa disponibilidade de falar de si, é complicado quando você conta quem você é, pois as pessoas vão julgar quem você é: sempre olham você com um olhar errado. Agora, todos foram almoçar, mas eu não fui. Se eu não desse essa entrevista a você eu não iria me sentir bem: se eu não fizesse a entrevista eu iria me sentir frustrada, pois porque outros fizeram e eu não pude fazer. Eu não sou diferente de ninguém e às vezes é mais difícil dizer isso do que assumir as diferenças. Não vejo as pessoas disponíveis para isso. Acredito que a maioria ainda é fechada e tem dificuldades. Tivemos uma atividade com psicólogos aqui na escola, num âmbito pequeno, onde interagimos com colegas. É difícil ser avaliado pelo outro, principalmente pelos colegas. O aluno não, ele sempre percebe seu professor. Esse momento da entrevista foi mais uma marca, uma experiência nova, muito legal quando você se predispõe a fazer, por não ter sido imposto. O ser humano é curioso: dar a entrevista para você, nesse momento, foi prazeroso, por retomar quanta coisa eu já fiz e quanta coisa estou fazendo, quantas coisas eu deixei de fazer. O ser humano tem necessidade de falar. Eu estou passando por um processo de parar e pensar, pesar os prós e contras, vou ter que tomar uma decisão no ano

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que vem, pois no próximo ano não sei se vou conciliar o horário do Estado com a Prefeitura. Essa entrevista foi o momento de voltar para dentro de mim. Pensei que talvez essa entrevista seja a possibilidade de ter uma resposta. Acredito que nada acontece por acaso, tudo tem um porquê, tudo tem um objetivo e uma meta, são momentos que você guarda ou não: o que vou guardar daqui? Eu tive um momento de parar, pensar e mim, e refletir se sou uma boa profissional. No início da entrevista eu poderia até responder que não, mas agora, avaliando tudo que fiz, sei que sou uma boa profissional, posso não ser a melhor de todas, mas também não sou a pior. Eu tenho um caminho que eu acho que descobri qual é. Talvez eu chegue lá na frente. Obrigada!

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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO – UNICID PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇAO

SUJEITO 3 – PROFESSORA RENATA: Meu nome é Renata, fiz faculdade na Universidade São Judas, no curso de Letras. Na verdade, minha primeira opção seria Psicologia, mas como eu tinha de estudar à noite para trabalhar, cursei minha segunda opção, que era Letras. Depois que eu comecei a fazer o curso, me identifiquei, pois sempre gostei muito de ler. Fiz Português e Inglês. Já no quarto ano da faculdade, comecei a lecionar, como professora, a titulo de experiência, porque não existiam muitos professores na rede, e acabei ficando, depois que comecei, fiquei 11(onze) anos na mesma escola, na área de Português. Inglês não é meu forte, quando precisa, eu trabalho. Neste ano “me efetivei”, e é o que eu gosto. Totalizo 21(vinte e um) anos de rede pública. Durante esse tempo, fiz alguns cursos de formação continuada, como o PEC, Teia do Saber (por três anos), Africanidades (no ano passado), fiz o “Ensino Médio em Rede”, pela escola. Não fiz mais porque não surgiram oportunidades. Acho muito importante participar de cursos, primeiro pela troca de experiência, pois quando você está com outros professores, de outras escolas, a troca é importantíssima: você troca o que sabe com os outros colegas, descobre realidades que você não imagina, e se aprende muitos mais nesses cursos do que na formação inicial, como aperfeiçoamento. No “Ensino Médio em Rede”, participei das discussões sobre interdisciplinaridade e contextualização. Aqui na escola temos discutido muito sobre esses temas: normalmente montamos projetos aqui na escola e usamos a interdisciplinaridade sempre, que é super importante, até por conta da Coordenação, que auxilia bastante, vai amarrando nosso trabalho. A Professora Coordenadora acaba trazendo os outros professores e aí acaba funcionando por conta disso. Discutir sobre interdisciplinaridade e contextualização melhora a prática dos professores, pois o professor tem a tendência de se fechar na área dele, sabe, “eu sou de Português, deixo de ensinar história, geografia, ciências”, mas não é nada disso. Quando você discute tais conceitos, você passa a perceber que esses conhecimentos fazem parte da outra disciplina e você começa ajudá-lo também, pois ele passa a se interessar mais. E os outros professores que estão muito fechados passam a se abrir mais, e isso é muito importante. Como pré-requisito para o trabalho seria o fato dos professores estarem dispostos, o que falta muito, é ter um mediador, senão não tem como, se não tiver alguém que direcione, que puxe os outros, que coordene, pois cada um tende a falar que vai somente fazer a sua parte e o que sei e isso somente, não resolve. Se ficar somente por conta apenas dos professores, não resolve. Uma pessoa que influenciou minha escolha profissional foi uma professora de literatura que tive, ainda no Ensino Médio, que tinha uma paixão tão grande para ensinar para gente, que me fascinava, eu gostava de viajar nas histórias. Eu gostava de ler, mas não me envolvia tanto. Com a paixão que ela transmitia pra gente, eu comecei a descobrir o encanto pela literatura. Ela vivia isso: chorava e se emocionava ao contar as histórias. Acho que seu nome era Neide. Eu me descobri ali, onde tive o prazer de ler literatura, e foi a partir disso que decidi fazer Letras.

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Antes eu lia qualquer coisa que caía nas minhas mãos, mas, com ela, aprendi a ler livros literários, li até Balzac, que eu nem imaginava que existia, por causa de um comentário que ela fez. Fui até a biblioteca e peguei o livro e o livro é fascinante mesmo. Com esse meu gosto eu acabei até influenciando alguns alunos. Depois de um tempo, cheguei até a encontrar alunos que se tornaram professores devido à influência que exerci sobre eles: eles me disseram que eram professores porque eu ensinava com paixão. Acho que foi muito importante a professora que eu tive e a professora que eu me tornei. Outro livro que me influenciou foi Dom Casmurro, de Machado de Assis, que eu li na oitava série e achei horrível, muito difícil. Mas a partir de uma releitura, onde essa mesma professora me mostrou a importância, mudou totalmente a minha visão. E hoje, quando peço para meu aluno ler, tento mostrar a mesma coisa. Sou apaixonada por Machado de Assis. Na minha vida familiar não encontro nenhuma marca, pois meu pai era analfabeto e minha mãe só tinha o ensino fundamental, então eles não me incentivavam: o importante era trabalhar. Quando eu ficava lendo, diziam: “Você vai ficar lendo para quê? Leitura não dá dinheiro”. E eu disse para minha mãe que um dia iria dar. Quando eu me formei aquilo se reverteu: eles ficaram muito orgulhosos, e aí mudou. O reconhecimento surgiu da conquista realizada. Meu sobrinho fala todo orgulhoso: “minha tia é professora”. Ao mudar de escola, sentimos a diferença de clientela. Outros alunos, realidades diferentes. Posso pedir mais leituras. Como aluna, não era uma excelente aluna: sempre tive que trabalhar e estudar à noite, até mesmo no Ensino Médio, e era difícil. Eu sempre tive dificuldade em Exatas. Sofri muito. No Ensino Médio, a área de exatas era meu sofrimento. Eu não conseguia acompanhar de jeito nenhum. Tive até aulas particulares, com colegas de classe, amigos, primos. Em humanas eu ia melhor. Na faculdade era uma das melhores da classe, em literatura, apesar de ter um professor muito exigente. Recordo que em uma prova ele até me questionou por ter tirado uma nota 9,0, mas eu expliquei que fazia anotações de suas aulas no caderno e na prova eu escrevi aquilo que ele pediu. Na faculdade tinha ótimos professores, era obrigada a ler muito (o que eu gostava) e o que me fascinava era o conhecimento que os professores tinham. Eu pensava: como alguém pode guardar tanto. Agora, estimulo meus alunos. Quando peço um livro para leitura, conto uma parte a história e isso os estimula, deixando-os curiosos para continuar a leitura da obra. No ano retrasado, tive um aluno da Suplência, com 70 anos de idade, que valeu toda a minha carreira. Como eles (alunos) não liam, eu propus um trabalho em grupo e disse que eles seriam obrigados a ler. No final do trabalho, esse aluno veio me agradecer me disse: “Professora, com 70 anos eu nunca tinha lido um livro na minha vida. Esse foi o primeiro e com ele descobri o quanto é bom ler”. E ele me disse que iria continuar lendo, não sei por quanto tempo e isso foi muito gratificante: marcar a vida de alguém. Nos programas de formação continuada tive a oportunidade de fazer um resgate da minha trajetória e das minhas vivências ao fazer o curso Teia do Saber. Cada história de vida marca a pessoa de alguma forma e acaba por interferir na sua vida profissional, sempre. Conhecer a história de vida melhoraria a prática pedagógica, pois a troca de experiência é sempre importante, às vezes, ele (colega) tem uma

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história parecida com a sua e você nem imaginava, e ele conseguiu superar algo e você pensa: “Nossa, é possível fazer isso”. Às vezes o aluno tem uma vivência parecida e você não sabe como chegar até o aluno. Essa conversa significou relembrar coisas que há muito tempo não pensava: lembrei do meu ensino médio, o que me motivou seguir o curso, de alguns livros lidos.

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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO – UNICID PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇAO

SUJEITO 4 – PROFESSOR GABRIEL: Meu nome é Gabriel, tenho formação em Administração de Empresas, dei aulas por quatro anos, mas eu gostava mesmo de Arte. Em 2005 resolvi fazer um novo curso, de Educação Artística. Estudei na UNICSUL fazendo a licenciatura, e ao mesmo tempo fazia a formação de professores de Matemática. Já trabalho há três anos com a disciplina de Educação Artística. Eu gosto de trabalhar com todas as idades, mas dou preferência pelo Ensino Médio. Nunca participei de programas de formação continuada, pois não sou professor efetivo. Na escola participo dos HTPC‟s com a Suely, Professora Coordenadora. Aqui os HTPC‟s são ótimos, a gente aprende muito, a direção da escola também é muito atuante. Já participei de Orientação Técnica na Diretoria de Ensino, no ano retrasado. Não participei do Programa Ensino Médio em Rede. Os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização são discutidos nos momentos de HTPC‟s. Falamos sobre a importância desses conceitos, de como o aluno encaram e acabam tendo um interesse maior quando se combinam as disciplinas, como um trabalho de mosaico que foi feito englobando Arte, Matemática e História. Às vezes o trabalho passa despercebido, mas as coisas não são soltas: existe uma ligação entre os conhecimentos e conceitos e o quando o professor mostra essa ligação ao aluno, aguça seu interesse. Uma disciplina depende da outra: até na cor, para se chegar numa cor tem Matemática, para formar um mosaico, utiliza-se as medidas e a forma. O conhecimento é único: todas as disciplinas são importantes e não existem disciplinas mais importantes que outras. A Arte não é uma disciplina secundária. Se eu achasse que a Arte é uma disciplina secundária teria optado em ensinar Matemática. Gosto de Matemática, bem mais de Arte, porque com a Arte posso ensinar Matemática. O trabalho com interdisciplinaridade e contextualização coloca todas as disciplinas em patamar de igualdade. É possível trabalhar com outras áreas de conhecimento, fazendo-os perceber que através da ciência chegamos a códigos, trabalhamos com linguagens, materializamos as ideias, tornamos as ideias físicas. E também o oposto: desmaterializar para chegas as ideias. Como pré-requisitos para o trabalho interdisciplinar temos: o bom entendimento entre os professores (pares), a organização da escola (horários quebrados não colaboram para isso), o trabalho de coordenação (coordenador como articulador), o encontro dos professores nos HTPC‟s (horários comuns). Quando eu estudava era um aluno muito esforçado, gostava de ir à escola, numa época de escola rígida devido ao período militar. Éramos quatro irmãos e fui o único que se interessou em continuar os estudos. Fiz Administração, comecei a trabalhar muito cedo, com quase 15 anos, como office-boy, sempre buscando serviço na área administrativa, depois ingressei numa instituição financeira, onde fiquei por quase dez anos. Foi na época do Collor, trabalhava na área de exportação. Depois desse período, fiquei desempregado. Foi quando uma amiga me disse: “Por que você não vai dar aula?”. Essa amiga já trabalhava numa escola estadual. Eu fui dar aulas de Matemática e adorei. Percebi que eu sempre tive muito medo dos professores de

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Matemática e a garotada não tinha esse medo. Tínhamos um bom relacionamento e eu passei a ter um certo encantamento por isso. Trabalhava à noite, a equipe da escola era muito boa e eu gostei. Daí com o governo Covas, houve a exigência dos professores terem formação pedagógica, num curso preparatório, pois eu lecionava em caráter excepcional. Daí eu comecei a trabalhar com pintura decorativa de paredes, aprendi as técnicas, e esse interesse começou quando eu era pequeno: ajudava meu pai a pintar a casa, dos meus irmãos eu era o que ajudava mais. Nunca tinha feito nenhum curso de desenho. Recordo-me do meu professor de desenho da oitava série que pediu para nós fazermos um desenho abstrato e isso marcou para mim. Comecei a fazer trabalhos de pintura decorativa de paredes, todos elogiavam. Como eu gostava do abstrato, criei técnicas de pintura, esquematizei cursos, comecei a mandar currículo para algumas escolas. Fiz um curso de pintura abstrata no SENAC, até um dia que, fazendo um trabalho num apartamento próximo do Anália Franco ouvi no rádio que a UNICSUL estava com um curso de Educação Artística e resolvi me inscrever. No curso comecei a fazer estágio e gostei. Gosto de Matemática e de Arte: se eu tiver que optar por uma delas, minha opção é a Arte. Na faculdade de Artes tive mais de um professor marcante: o Paschoal, de teatro; a Solange, contadora de histórias; o Claudemir, de multimídia, que abriu minha mente para outros trabalhos materializados; a Sandra, mais da parte de didática; a Leda, de Psicologia. Traria do meu curso o conhecimento das variadas linguagens (visual, música, cinema). A faculdade me deu o alicerce para trabalhar com o lado da Arte, o embasamento técnico da disciplina. O estágio também foi muito importante, bem rígido, com muitas horas e em diferentes etapas: educação infantil, ensino fundamental, médio, escola da família. Com relação ao relacionamento com os alunos, o meu modo de ser como professor já trouxe do meu modo de ser na vida, desde a época de que era professor de Matemática: como sou na vida, sou dentro da sala. Sempre fui de bons amigos, imponho respeito pela amizade. Trouxe da minha vivência pessoal e profissional, da época em que ensinava Matemática. Mas com a faculdade de Artes tive um aprofundamento. Como obras marcantes destaco as de Mondigliane, e sempre passo o filme “Mondigliane: paixão pela vida” aos alunos, que tem uma história triste, mas dá uma outra visão, pois os alunos estão sempre acostumados só com Van Gohg, Tarsila do Amaral, Picasso, Almeida Júnior, e esse filme mostra o outro lado do artista, conta uma história, mostra outros artistas, importante para o jovem se tocar. Ao mesmo tempo em que passo o filme vou trabalhando alguns conceitos, como o preconceito, a questão das drogas. Já na faculdade esse filme foi marcante. Um livro que destaco é "Da cor à cor inesistente", de Israel Pedrosa, um autor brasileiro. É um livro caro, que tem vários efeitos e é sobre a cor; quando vi me apaixonei. Tudo que acontece na minha vida tem uma história. Na época que vi esse livro pela primeira vez estava fazendo um trabalho no bairro do Tatuapé, num prédio luxuoso, e a família tinha tido a perda de um filho, e eu acabei pegando amizade com eles. Ia todos os dias e quando acabei o trabalho, além de me pagar, a mãe do rapaz me deu também o dinheiro para comprar o livro. Meu projeto inicial seria ensinar o povão, a classe popular, mais humilde, a decorar a casa utilizando a cor, para destacar a importância que a cor tem na vida da gente. Quando fiz um curso na Escola Paulista de Arte, achando que com ele poderia dar aula, num dos semestres apresentei uma monografia sobre a cor. O professor me elogiou muito pelo trabalho e fez uma dedicatória para que eu nunca abandonasse

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esse sonho de levar a cor para a vida do ser humano. Com os alunos eu trabalho esse tema, neste ano ainda não trabalhei por conta da Proposta Curricular. Meu pai e minha mãe eram semi-analfabetos. Meu pai tinha muita vontade de estudar, mas meu avô não deixava, pela exigência do trabalho na roça. Quando tinha um dinheiro comprava caderno e um lápis, mas quando meu avô via, rasgava e jogava tudo fora para ele trabalhar na roça. Essa história me marcou muito e me impulsionou a buscar o estudo e a estimular os outros a estudar. Sempre tive muito respeito pela terceira idade, nunca trabalhei com o EJA, mas tenho muito respeito pelos idosos, e ensino os alunos a respeitarem seus avós, porque a gente vê tanta coisa ruim. Minha vida foi sempre assim: sempre estive estudando ou fazendo alguma coisa para dar aulas. Meus amigos não gostavam de estudar: eles perguntavam “Você vai parar de estudar quando?”. Este ano que eu dei uma parada, pois terminei a faculdade no ano passado, em 2007. Só, mas eu estou morrendo de vontade de retornar. Ingressando na rede, eu espero, quero poder voltar. Matemática e Ciências sempre gostei muito. Sempre tive um pouco de dificuldade em Português, mas também sempre fui um aluno esforçado e conseguia passar acima da média. Converso muito com os alunos sobre a necessidade de termos esforço e perseverança. Eu me identifico mais com o Ensino Médio, pois acho que eles são mais carentes: estão numa idade que eles se vêem mais perdidos, não têm muito diálogo muito com os pais, mesmo na escola eles não têm tanto contato e espaço com os professores, têm receio de se aproximar, e é nessa brecha que eu me aproximo. Se eu noto que algum aluno está triste, me aproximo. Mesmo os alunos que estão abaixo da média, que não vão bem, sempre têm algum problema, seja ele familiar, ou de relacionamento com os colegas. Uma “besteirinha”, para eles, é um grande problema insolúvel, e para nós é um problema tão simples: é bater o olho e um conselho já ajuda. Costumo sentar com os alunos, ao lado deles, em pé de igualdade, orientando-os a dialogar com os pais. O ser humano tem muita falta de diálogo. Esse problema trago por mim: eu sempre fui muito tímido, tive problemas no campo profissional, quando trabalhava ainda em empresa, pela comunicação que não se estabelecia. Dou espaço para os alunos brincarem comigo, mas imponho respeito. Na hora da explicação da matéria não, mas em outros momentos, se alguém olhar, fica difícil diferenciar quem é o professor e quem é o educando, até pela altura deles. É como eu digo a eles: aprendi muito na faculdade isso. Eu também estou aberto à aprendizagem: eu também não sei tudo. Eu também aprendo com eles, eu passo o que sei, assim como eles aprendem comigo. O dia-a-dia é uma aprendizagem: aprendo com o trabalho que eles trazem, com a história de vida deles, porque os alunos desta escola são de longe, não têm a vida fácil, vêm de trem. Amadurecem muito cedo, mas também eles não podem esquecer-se de ver o colorido da vida. Adorei essa proposta nova de Artes, acredito que é um grande passo para colocar a Arte em pé de igualdade com as outras disciplinas: agora a disciplina tem um conteúdo, é possível avaliar o aluno. Costumo devolver todos os trabalhos, fazemos concursos internos dos melhores trabalhos, estimulando a todos, porque todos são capazes. Daí vem a auto-confiança e o reconhecimento de sua capacidade. Trabalhei a história de vida dos alunos a partir das atividades da Proposta Curricular, que davam abertura para isso. Uma das atividades pedia para escreverem o que viam no trajeto para a escola, numa primeira fase relacionada à arte visual (grafite, mural de escola de samba). Depois foram os sons, os sons que ouviam nesse trajeto. Daí percebi que a maioria ouvia as conversas e os sons do trem, e que

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moravam muito longe da escola. Essa valorização é muito importante, principalmente na participação da comunidade na escola. A família precisa estar envolvida com a escola. Nos momentos de formação continuada junto aos outros professores, temos espaço, nesta escola, para falar do aluno, surgindo a brecha de falarmos de fatos pessoais, como a minha postura junto aos alunos. Qualquer ser humano tem que aceitar e encarar a experiência vivida como aprendizado. Todos têm na sua vida fatos positivos e negativos. O grande aprendizado é tirar dos fatos negativos uma lição e trazer isso para os nossos alunos, como um exemplo, para que eles não cometam os mesmos erros, e se eu puder estar dividindo isso com os meus colegas, com os meus pares, é ótimo, pois eles vão ter ao lado deles um exemplo vivo ao lado deles, alguém que teve um aprendizado e está querendo expandir, e não guardar somente para si. É muito egoísmo do ser humano guardar só para si quando temos milhões e milhões de pessoas para dividir. Alguns alunos sentem o professor muito afastado, com medo. Os alunos têm uma visão: tem o professor que se aproxima mais e outros que se afastam. Esse afastamento só prejudica o aprendizado dos alunos e o trabalho dos docentes. Os professores precisam se aproximar entre si e dos seus alunos. Eu sinto o meu trabalho facilitado com essa proximidade. Nunca tive problema de um aluno ficar com nota vermelha comigo (porque fica) e contestar, tanto na disciplina de Matemática quanto em Artes. Não tem bate-boca por nota, eles se aproximam e dizem: “Eu errei !”. Tem diálogo, pelo trabalho não entregue na data, pelo material não trazido. O professor acaba conhecendo o aluno. Eles têm muitos problemas familiares. Adoro Paulo Freire, foi um autor muito importante quando fiz a faculdade de Educação Artística. Vygostsky também. Não tinha tido contato antes quando fiz Administração. Também o autor Pedrosa, mineiro, que escreveu livros fantásticos. É isso.

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UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO – UNICID PROGRAMA DE MESTRADO EM EDUCAÇAO

SUJEITO 5 – PROFESSORA SILVIA: Meu nome é Sílvia; fiz Letras, Português e Inglês, na Universidade Nove de Julho, e escolhi o curso porque sempre quis, sempre gostei muito de Língua Portuguesa, depois caí no Inglês, para completar o total de aulas, e acabei gostando. Fiz cursos na área e hoje tenho mais habilidade com a Língua Inglesa. Isso porque tive uma professora na 5ª série que eu admirava muito, porque ela falava muito bem, e me recordo até do nome dela: Maria de Lourdes. Ela marcou demais a minha profissão; embora o campo da educação seja difícil, eu não me arrependo e faria novamente. Logo depois da faculdade, em 1990, iniciei a docência na rede particular e em 1998 na rede pública. Na rede pública atuo há 10 anos, mas faz 17 anos que leciono no Ensino Médio. Fiz vários cursos, como a Teia do Saber e o curso da Cultura Inglesa. Acho importantíssimo participar de cursos, pois nós, professores, que trabalhamos na rede estadual não temos muito tempo para nos aperfeiçoar: trabalhamos manhã, tarde e noite, para sobreviver. Restam-nos os sábados, para fazer uma pós. Eu acho que o Estado deveria abrir um campo para o professor se especializar, é isso que nós estamos precisando. Essa briga por salário, eu até concordo, mas eu gostaria que nossa briga fosse para nossa especialização, para a nossa função de trabalho, uma briga para que a especialização fizesse parte do horário de trabalho. Quanto ao “Ensino Médio em Rede”, lembro de comentários superficiais nos HTPC‟s, não de forma profunda. Os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização também foram trabalhados de forma superficial. Porém, nesta escola, aqui nós discutimos bastante nos HTPC‟s. Para um trabalho interdisciplinar, discutimos que o trabalho não pode ser individual, e sim deve ser em grupo. Nós procuramos fazer atividades integrando Artes, Geografia, Inglês, mais em projetos. Isso melhora bastante a prática, atingindo o aluno, deixando de se importar apenas com a sua disciplina, aprendendo a trabalhar em grupo, socializando os conhecimentos. Eles (os alunos) são muito individuais e a vida não é individual. Para um trabalho interdisciplinar é muito importante que os HTPC‟s sejam voltados a explicar como se dá esse trabalho, pois ainda há professores que resistem, que acham que o trabalho deve ser tradicional, abrir mais questões, espaço para discussão, para troca de ideias para trabalhar juntos, a serem levadas aos alunos para que eles entendam a proposta e encarem com mais seriedade. E cursos, o Estado deveria fornecer mais cursos. Toda mudança é radical e temos que acompanhar a modernidade: nosso aluno é novo, não é da época de 40 anos atrás. Na faculdade, eu me recordo de outra professora de Português, de gramática, muito boa, que aí eu confirmei a minha certeza em fazer Letras. Por ironia do destino, eu fiz Letras para dar aula de Português e de Literatura, eu dizia que não queria dar aulas de Inglês. Aí eu fui para essa escola particular dar aulas de Português e a dona da escola me disse que tinha duas aulinhas de Inglês e que não compensaria contatar outro professor, oferecendo essas aulas para mim. Eu fui tão covarde na época que disse que não. Eu não fui capaz, estava insegura. Quando eu ingressei

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no Estado, eu substituí uma professora de Português, em licença médica, por trinta dias. Ao final desse período, o Diretor da escola me disse que tinha sorte e me ofereceu outra substituição, pelo ano inteiro (estávamos no mês de março), só que de Inglês. Aí eu pensei: não posso rejeitar novamente. Vou ficar desempregada, sem nenhuma aula? Aceitei e logo de cara tive que enfrentar os terceiros anos do Ensino Médio. Pensei: o que vou fazer? Comecei fazer cursos, estudar, e hoje gosto mais de Inglês. Rejeitei duas aulas e tive que pegar vinte. A necessidade fez com que eu corresse atrás, estudasse, deixasse a insegurança e o medo. Um professor da faculdade dizia: “Medo é pêlo enraizado. Tem que arrancar esse pêlo”. Eu me lembro disso até hoje e isso marcou muito a minha formação, os desafios. O próprio Ensino Médio, eu saí da faculdade e peguei o Ensino Médio. Hoje eu trabalho também com o fundamental, mas eu consigo me entender melhor com o médio, com os alunos e com o conteúdo. Quando eu fui estudar Inglês fiz Cultura Inglesa e aulas com uma professora particular. O que me encantou foi o método dessa professora, a conversação, a forma como ela explica que eu me identifiquei mais, a didática que ela utiliza. Ela é extremamente inteligente, bem mais jovem que eu, e ela me trata assim: “Olha, você não fez a lição!”. Eu acho aquilo legal, ela cobra do aluno. Você, quando vira aluno, também tem suas recaídas. Mas foi com ela que eu aprendi Inglês: eu me identifiquei muito com o método dela. Tive muito apoio da minha irmã, pois minha mãe não valorizava tanto os estudos, entendia que as mulheres deviam se dedicar apenas aos afazeres domésticos. Eu já trabalhava desde os quatorze anos, em escritório, tinha meu emprego, mas eu fui estudar porque eu quis, pelo meu esforço próprio eu que paguei a minha faculdade, com muita dificuldade. Minha irmã foi uma pessoa que me apoiou muito. Depois que eu me formei, todos ficaram muito orgulhosos, pois eu fui a única dos oito irmãos que terminou a faculdade na época. Eu sou apaixonada por Fernando Pessoa: “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Fernando Pessoa é para mim uma referência na Literatura Portuguesa. Um livro que me marcou muito e que eu recomendo sempre aos meus alunos é Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Um filme que tem uma parte que eu gosto é o da Guerra de canudos, de Euclides da Cunha, que ele fala: “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Quer dizer, você que se sofre, mas que não se pode desistir (persistência). O que um líder faz? Antonio Conselheiro: era um líder ou um louco? Ele levou muita gente, embora elas morressem, e isso foi de uma coragem... Sempre gostei muito de História: tive um professor que era ótimo. A única matéria com a qual eu não dava muito bem era Matemática: eu sempre tive muita dificuldade, e vencia dificuldade com muito empenho. Ciências eu gostava muito. Na minha época tinha um bom relacionamento com os professores, embora na minha época os professores fossem muito distantes, e isso era comum. Hoje essa distância me incomodaria, pois hoje o aluno é diferente: os alunos são questionadores, e isso é positivo, pois o ser humano é questionador. Não tive nenhum espaço, em programas de formação, ou mesmo no âmbito da unidade escolar, para discussão da história de vida pessoal. Acredito que essa discussão ajudaria muito, pois, pelo que conversamos podemos descobrir aquilo que gostamos. Numa conversa, um colega pode dizer que fez a faculdade e caiu na educação e isso é uma coisa gravíssima: nós mexemos com vidas. Há dias que

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chegamos na sala de aula com problemas, mas quando isso ocorre eu respiro fundo e penso: nós somos os educadores. E você, às vezes, ouvindo o aluno, taxado com impossível, pode até ajudá-lo, através de uma conversa. É conhecer um pouquinho da vida de cada aluno. Conhecer a história de vida de todos é difícil. Abrir esse espaço, conhecer um pouquinho da vida de cada professor, porque ele chegou até aqui, é importantíssimo. Nós não podemos desistir da educação. Essa pesquisa que você esta fazendo com a gente, o que te levou, o que te marcou... Esse resgate está sendo muito significativo: gostei muito do que passei, das minhas dificuldades, o que eu passei, as lembranças me fizeram voltar ao passado, as minhas conquistas, o convite da minha formatura que eu entreguei para minha irmã, a faculdade que fiz com sacrifício quando fiquei desempregada, e isso me dá muito orgulho.