ella enfeitiçada - gail carson levine

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PDL Projeto Democratização da Leitura Apresenta: Digitalização: Isis Maat Revisão e formatação: Mara

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  • 1. PDL Projeto Democratizao da Leitura Apresenta:Digitalizao: Isis MaatReviso e formatao: Mara

2. PDL Projeto Democratizao da Leitura CAPTULO UMA tonta da fada Lucinda no queria jogar uma maldio sobre mim. Ela queria me conceder um dom. Ao me ver chorando inconsolvel, durante a minha primeira hora de vida, minhas lgrimas lhe serviram de inspirao. Balanando a cabea amavelmente para minha me, afada tocou meu nariz.- O dom que eu lhe concedo a obedincia. Ella ser sempre obediente. Agora, pare de chorar,menina.Eu parei. Meu pai estava longe numa viagem de negcios, como sempre, mas nossa cozinheira, Mandy,estava l. Mandy e minha me ficaram horrorizadas e, por mais que explicassem, no conseguiamfazer Lucinda entender que havia feito uma coisa terrvel contra mim. Eu bem posso imaginar adiscusso: as sardas de Mandy mais evidentes do que nunca, seus cabelos crespos grisalhos desca-belados e seu queixo duplo tremendo de raiva; minha me imvel e profundamente emocionada,com seus cachos castanhos ainda midos do trabalho de parto, o sorriso fugindo de seus olhos.No consigo imaginar Lucinda. No sei como era.Ela no desfez o encanto.A primeira vez que me dei conta dele, foi no dia do meu aniversrio de cinco anos. Lembro-me perfeitamente daquele dia, talvez por Mandy ter contado esta histria tantas vezes.- Para o seu aniversrio - disse ela - fiz um lindo bolo. Seis camadas.Bertha, nossa governanta, havia confeccionado um vestido longo para mim.- Azul como a meia-noite, com uma faixa branca. Voc era pequena para sua idade, pareciauma boneca de porcelana, com uma fita branca no cabelo negro e as bochechas coradas de tantaanimao.No meio da mesa havia um vaso cheio de flores que Nathan, nosso criado, havia colhido.Todos ns sentamos ao redor da mesa (meu pai tinha viajado novamente). Eu estavaanimadssima. Tinha visto Mandy assar o bolo, Bertha costurar o vestido e Nathan colher as flores.Mandy cortou o bolo. Quando me deu o meu pedao, disse sem pensar:- Coma.A primeira mordida foi deliciosa. Comi o bolo, toda contente e Mandy cortou outra fatia. Estaj foi mais difcil de comer. Quando acabou, ningum me ofereceu outro pedao, mas sabia quetinha que continuar comendo. Enfiei o garfo diretamente no bolo.- Ella, o que voc est fazendo? - minha me perguntou.- Porquinha - Mandy riu. o aniversrio dela, lady. Deixe que coma o quanto quiser - Mandy 3. PDL Projeto Democratizao da Leituracolocou outra fatia no meu prato. Eu me senti enjoada e atemorizada. Por que no conseguia parar de comer? Engolir era uma luta. Cada mordida pesava na minha lngua e parecia uma massa grudenta decola que eu lutava para fazer descer. Comecei a chorar enquanto comia. Minha me foi a primeira a perceber. - Pare de comer, Ella - ordenou. Eu parei.Qualquer pessoa podia me controlar com uma ordem. Tinha que ser um comando direto, tipoPonha o xale, ou Voc tem que ir para a cama agora. Se fosse um desejo, ou pedido, no fazia efeito. Eu podiaignorar Eu queria que voc pusesse o xale, ou Por que voc no vai para a cama agora?. Mascontra uma ordem, era impotente.Se algum me mandasse pular num p s por um dia e meio, eu teria que obedecer. E pularnum p s no era a pior ordem que poderia ser dada. Se voc me ordenasse que cortasse a cabeafora, eu teria que obedecer. Eu corria perigo a cada momento. medida que fui crescendo, fui aprendendo a retardar minha obedincia, mas cada momentome custava muito - em falta de ar, nusea, tonteira, e outros srios desconfortos. No conseguianunca retardar o cumprimento da ordem por muito tempo. Mesmo poucos minutos significavamuma luta desesperada. Eu tinha uma fada madrinha, e minha me lhe pediu que me tirasse a maldio. Mas minhafada madrinha disse que Lucinda era a nica que poderia desfazer o feitio. Porm, avisou que oencanto poderia se quebrar algum dia sem a ajuda de Lucinda. Mas eu no sabia como. E nem sabia quem era a minha fada madrinha. Em vez de me tornar uma pessoa dcil, o feitio de Lucinda fez de mim uma pessoa rebelde.Ou, talvez, esta fosse mesmo a minha natureza.Minha me raramente insistia para que eu fizesse algo. Meu pai me via raramente, no sabianada a respeito do feitio, e no me dava muitas ordens. Mandy era mandona, dava ordens quasecom tanta freqncia quanto respirava. Ordens gentis ou ordens para-o-seu-prprio-bem.Agasalhe-se, Ella. Ou Segure esta tigela enquanto eu bato os ovos, querida. Eu no gostava dessas ordens, por mais inofensivas que elas fossem. Segurava a tigela, massaa andando e Mandy tinha que me seguir pela cozinha. Ela me chamava de espertinha e tentavame pegar com instrues mais especficas, e eu encontrava novas maneiras de escapar.Geralmente, era um grande esforo conseguir que ns duas fizssemos alguma coisa juntas, minhame achava graa e a cada vez instigava uma de ns.Tudo terminava bem - eu decidia fazer o que Mandy queria, ou Mandy trocava sua ordem porum pedido. 4. PDL Projeto Democratizao da LeituraQuando Mandy, sem querer, me dava uma ordem que eu no queria, eu perguntava:- Tenho mesmo que fazer isto? E ela reconsiderava. Quando estava com oito anos, tive uma amiga, Pamela, filha de uma de nossas criadas. Um diaeu e Pamela estvamos na cozinha, vendo Mandy fazer marzipam. Mandy me mandou ir despensa pegar mais amndoas. Eu voltei com apenas duas. Ela ento me mandou voltar cominstrues mais exatas, que segui risca, embora tentasse frustrar seus verdadeiros desejos. Mais tarde, quando Pamela e eu fomos ao jardim para devorar o doce, ela me perguntou porque no havia feito logo o que Mandy queria que fizesse.- Detesto quando ela fica mandona - respondi. Pamela disse presunosamente:- Eu sempre obedeo aos mais velhos.- Isto porque voc no obrigada.- Sou, sim, se no obedecer o meu pai me bate.- No a mesma coisa. Eu estou sob um encanto - eu gostava da importncia das palavras.Encantos eram raros. Lucinda era a nica fada precipitada o bastante para lan-los sobre algum.- Como a Bela Adormecida?- Com a diferena de que no terei que dormir por cem anos.- Qual o seu encanto?Contei a ela.- Se algum lhe der uma ordem, voc vai ter que obedecer? Inclusive eu?Confirmei com a cabea.- Posso experimentar? - No - eu no havia previsto esta situao. Mudei de assunto. - Vamos apostar uma corridaat o porto.- Est bem, mas eu ordeno que voc perca.- Ento eu no quero apostar corrida.- Eu ordeno que voc aposte corrida comigo, e ordeno que voc perca.Ns corremos. Eu perdi. Fomos apanhar frutas silvestres. Tive que dar a Pamela as mais doces e maduras. Brincamosde princesas e ogros. Tive que ser o ogro. Uma hora depois da minha confisso, acertei um soco nela. Pamela gritou, e escorreu sanguede seu nariz.Nossa amizade terminou naquele dia. Minha me arrumou um novo emprego para a me dePamela longe de Frell, nossa cidade.Depois de me punir por ter usado o punho, minha me me deu uma de suas raras ordens: 5. PDL Projeto Democratizao da Leituranunca contar a ningum sobre o meu feitio. Mas eu no contaria mesmo. Havia aprendido a sercautelosa.Quando estava com quase quinze anos, eu e minha me pegamos um forte resfriado. Mandynos medicou com sua sopa curadora, feita com cenoura, alho-por, aipo, e fios de cabelo de rabode unicrnio. A sopa estava deliciosa, mas tanto eu quanto minha me detestamos olhar paraaqueles longos fios branco-amarelados flutuando com os legumes. Como meu pai estava longe de Frell, tomamos a sopa sentadas na cama de minha me. Se eleestivesse em casa, nem entraria no quarto dela. Meu pai no gostava que eu ficasse em nenhumlugar perto dele, atrapalhando, como ele dizia.Tomei minha sopa com os fios de cabelo dentro porque Mandy me ordenou, embora tenhafeito caretas para a sopa e para Mandy quando ela se virou para sair. - Vou esperar a minha sopa esfriar - disse minha me. Ento, depois que Mandy saiu, elaretirou os fios, tomou a sopa, e os colocou de volta na tigela vazia.No dia seguinte eu estava bem e minha me estava muito pior. Muito doente para comer oubeber qualquer coisa. Ela disse que sentia uma faca em sua garganta e uma estaca batendo em suacabea. Para faz-la sentir-se melhor, pus compressas frias em sua testa e lhe contei histrias. Eramhistrias antigas e conhecidas sobre fadas que eu ia mudando aqui e ali, mas s vezes eu conseguiafazer minha me rir. E seu riso se transformava em tosse.Antes que Mandy me mandasse ir para cama, minha me me beijou.- Boa noite. Amo voc, preciosa. Estas foram suas ltimas palavras para mim. Enquanto eu saa do quarto, ouvi as ltimaspalavras de minha me para Mandy.- No estou muito doente. No mande chamar Sir Peter. Sir Peter era meu pai.Na manh seguinte, ela estava acordada, porm, sonhando. Com os olhos arregalados,conversava com cortesos invisveis e puxava nervosamente seu colar de prata. Para Mandy e paramim, que estvamos ali com ela no quarto, no falava nada.Nathan, o criado, trouxe o mdico, que me afastou.Nosso hall de entrada estava vazio. Segui para a escada em espiral e desci, me lembrando dasvezes em que eu e minha me havamos escorregado pelo corrimo.No fazamos isto quando havia gente por perto. - Ns temos que manter a classe - ela me sussurrava e, ento, descia a escada de um jeito todomajestoso. E eu a imitava, lutando contra meu jeito desengonado, contente em fazer parte dabrincadeira.Mas quando estvamos sozinhas, preferamos escorregar e ir gritando at l embaixo. E 6. PDL Projeto Democratizao da Leiturasubamos de volta correndo para dar mais outra escorregada, e mais uma terceira, e mais umaquarta.Quando eu chegava no final da escada, abria a pesada porta de entrada e corria para o sol lfora. Era uma longa caminhada at o antigo castelo, mas eu queria fazer um pedido, e queria queeste pedido fosse feito no lugar em que ele tivesse mais chance de ser atendido. O castelo fora abandonado quando o rei Jerrold ainda era um menino, embora houvesse sidoreaberto para ocasies especiais, bailes privados, casamentos, e coisas do gnero. Mesmo assim,Bertha dizia que era assombrado e Nathan dizia que estava infestado de ratos. As plantas dosjardins tinham crescido muito, mas Bertha jurava que as rvores-vela tinham poder.Fui direto para o bosque das velas. As rvores-vela eram pequenas rvores que tinham sidopodadas e amarradas com arames para fazer com que elas crescessem em forma de candelabros.Para fazer um pedido voc precisa ter argumentos para a negociao. Fechei meus olhos epensei:- Se a minha me ficar boa logo, eu serei boa, no serei apenas obediente. Eu me empenhareimais em no ser desengonada e no implicarei tanto com a Mandy.No pedi pela vida de minha me, porque no acreditava que ela estivesse correndo risco demorte. 7. PDL Projeto Democratizao da LeituraCAPTULO DOISD eixando o marido e uma filha. nosso dever confort-los - Assim o alto chanceler Thomas finalizou depois de falar monotonamente por quase uma hora. Um pouco de seu discurso foi sobre minha me. Pelo menos, as palavras Lady Eleanor foram ditas com freqncia, masa pessoa que foi descrita - me responsvel, cidad leal, esposa fiel - me soou mais parecida com oalto chanceler do que com minha me. Um pouco do discurso foi sobre a morte, mas a maior partefoi sobre lealdade a Kyrria e a seus governantes, rei Jerrold, prncipe Charmont e toda a famliareal.Meu pai segurou minha mo. A palma de sua mo estava mida e quente como o pntano daHidra. Queria ter podido ficar junto de Mandy e dos outros criados.Soltei a mo de meu pai e dei um passo afastando-me. Ele aproximou-se e pegou minha monovamente. O caixo de minha me era feito de um mogno brilhante esculpido com desenhos de fadas eelfos. Se, pelo menos, as fadas pudessem sair da madeira e fazer um encanto que trouxesse minhame de volta vida. E pudessem fazer um outro encanto para levar meu pai embora. Ou, quemsabe, minha fada madrinha pudesse fazer isso, se eu soubesse onde encontr-la? Quando o alto chanceler calou-se, coube a mim fechar o caixo, para que minha me pudesseser colocada em sua sepultura. Meu pai colocou suas mos nos meus ombros e empurrou-me paraa frente. A boca de minha me estava rgida, o oposto de como era em vida. Seu rosto estava vazio, oque era terrvel. Mas, pior, foi o ranger da tampa do esquife, enquanto baixava, mais o rudo secoda tampa, ao se fechar. E, mais ainda, a idia de ter minha me confinada dentro de uma caixa. As lgrimas, que havia engolido durante todo o dia, irromperam. Fiquei ali diante de toda acorte, chorando como um beb, num grito de dor infinito, incapaz de conseguir me controlar.Meu pai pressionou meu rosto contra seu peito. Talvez parecesse que ele estivesse meconsolando, mas estava apenas tentando abafar o som, que no podia ser abafado. Ele me soltou.Num firme sussurro disse:- Saia daqui. Volte quando voc conseguir se acalmar. Desta vez, fiquei feliz em obedecer. Corri. Meu pesado vestido preto me fez tropear, e ca.Antes que algum pudesse me ajudar, eu j estava novamente seguindo em frente, com meusjoelhos e mos ardendo. A maior rvore do cemitrio era um salgueiro-choro - a rvore que chora. Eu me atirei porentre suas folhas no cho, soluando. 8. PDL Projeto Democratizao da Leitura Todos chamavam a isso de perder a me, mas ela no estava perdida. Ela tinha ido embora, eonde quer que eu fosse - outra cidade, outro pas, Mundo das Fadas, ou Cavernas de Gnomos -noa encontraria. Ns nunca mais iramos conversar, nem rir juntas. Nem nadar no rio Lucarno. Nemescorregar no corrimo, nem pregar peas em Bertha. Nem um milho de outras coisas. Depois de muito chorar, sentei-me. A parte da frente do meu vestido havia passado de pretoseda para marrom sujo. Como diria Mandy, eu estava um espetculo. Quanto tempo havia se passado? Tinha que voltar. Meu pai havia ordenado, e o feitio estavame forando a obedecer. Do lado de fora da privacidade de minha rvore, estava o prncipe Charmont, lendo umalpide. Nunca havia estado to perto dele antes. Ser que ele me ouvira chorar? Embora o prncipe fosse apenas dois anos mais velho do que eu, era bem mais alto, e suapostura era igual a de seu pai: ps afastados, mos para trs, como se estivesse passando emrevista todo o pas. Sua fisionomia tambm era parecida com a do pai, embora os ngulosmarcados do rosto do rei Jerrold fossem mais suavizados no filho. Os dois tinham cachosalourados e pele morena. Eu nunca estivera prxima do rei o suficiente para notar se ele tambmtinha aquele pouquinho de sardas no nariz, algo surpreendente num rosto to moreno. - Minha prima - disse o prncipe, indicando a lpide. -Nunca gostei dele. Gostava de sua me.Ele comeou a andar em direo ao tmulo de minha me. Ser que ele esperava que o acompanhasse? Ser que deveria manter uma distncia aceitvelde sua presena real? Com espao suficiente para que uma carruagem passasse entre ns, fui andando a seu lado.Ele se aproximou. Percebi que havia chorado tambm, embora tenha permanecido de p e limpo.- Voc pode me chamar de Char - disse-me ele subitamente. - Todos me chamam assim.Ser que devia? Andamos em silncio.- Meu pai me chama de Char tambm - ele acrescentou. Orei!- Obrigada - eu falei.- Obrigada, Char - ele corrigiu. Ento prosseguiu. - Sua me me fazia rir. Uma vez, numbanquete, o chanceler Thomas estava fazendo um discurso. Enquanto ele falava, sua me pegou oguardanapo. Vi antes que o seu pai o amassasse. Ela ajeitou as pontas do guardanapo no formatodo perfil do chanceler, com a boca aberta e o queixo protuberante. Seria igualzinho ao chanceler,se o chanceler fosse azul como o guardanapo. Tive que sair sem jantar, para poder rir l fora.Ns j estvamos na metade do caminho. Comeou a chover. Eu podia ver uma figura,pequena pela distncia, de p, pr-xima ao tmulo de minha me. Meu pai.- Onde foram todos? - perguntei a Char. 9. PDL Projeto Democratizao da Leitura- Todos partiram antes que eu a encontrasse - disse ele. -Voc queria que eles tivessemesperado? - Ele pareceu preocupado, como se devesse t-los feito esperar.- No, eu no queria que nenhum deles esperasse - respondi, querendo dizer que meu paipoderia ter ido tambm.- Sei tudo sobre voc - anunciou Char, depois de darmos mais alguns passos.- Voc sabe? Como pode saber?- Sua cozinheira e a nossa cozinheira se encontram no mercado. Ela fala de voc - ele meolhou meio de soslaio. - Voc sabe muita coisa sobre mim?- No.Mandy nunca havia dito nada.- O que voc sabe? - Sei que voc sabe imitar as pessoas, igual lady Eleanor. Uma vez voc imitou seu criado emfrente a ele, e ele no sabia mais se ele era o criado ou se o criado era voc. Voc inventa seusprprios contos de fada, deixa as coisas carem da sua mo e tambm tropea nas coisas. Eu seique uma vez voc quebrou um conjunto inteiro de pratos.- Eu havia escorregado em pedaos de gelo!- Pedaos de gelo que voc mesma tinha derramado antes de escorregar. Ele riu. No era uma gargalhada de deboche, era uma risada alegre saudando uma boabrincadeira.- Foi um acidente - protestei. Mas tambm sorri, trmula, depois de ter chorado tanto.Alcanamos meu pai, que se curvou, em reverncia.- Obrigado, Alteza, por acompanhar minha filha. Char retribuiu a reverncia.- Venha, Eleanor - disse meu pai.Eleanor. Ningum nunca havia me chamado deste modo antes. Embora fosse este o meuverdadeiro nome. Eleanor havia sido sempre minha me, e sempre haveria de ser.- Ella. Eu sou Ella - disse.- Ella, ento. Venha, Ella. - Ele se curvou diante do prncipe Charmont e subiu na carruagem. Tive que ir. Char me ajudou a entrar. Eu no sabia se deveria lhe dar a mo ou deixar que eleme empurrasse segurando em meu cotovelo. Ele acabou se confundindo com meu brao e tive queagarrar o lado da carruagem com a outra mo para poder me equilibrar. Quando a porta se fechou,eu puxei minha saia, e um som forte de algo se rasgando foi ouvido. Meu pai se contraiu. Eu vi Charpela janela, rindo novamente. Virei a saia e encontrei um rasgo de aproximadamente quinzecentmetros acima da bainha. Bertha jamais conseguiria remend-lo.Fiquei o mais longe possvel de meu pai. Ele estava olhando fixamente pela janela.- Um belo evento. Toda a Frell veio, pelo menos todo o mundo que conta - disse ele, como se o 10. PDL Projeto Democratizao da Leiturafuneral de minha me tivesse sido um torneio ou um baile.- No foi belo. Foi horrvel - falei. Como o funeral de minha me poderia ter sido belo?- O prncipe foi amvel com voc.- Ele gostava de minha me.- Sua me era bonita a voz de meu pai estava pesarosa. Lamento que ela esteja morta.Nathan chicoteou os cavalos e a carruagem comeou a se mover. 11. PDL Projeto Democratizao da Leitura CAPTULO TRSQuando chegamos em casa, meu pai mandou que eu vestisse uma roupa limpa e viesse logoreceber os convidados que estavam chegando para nos cumprimentar. Meu quarto estava tranqilo. Tudo estava exatamente como antes de minha me morrer. Ospssaros bordados na colcha sobre a minha cama estavam a salvo em seu mundo de folhas empontos de cruz. Meu dirio estava sobre a cmoda. Minhas amigas de infncia - Flora, a boneca depano, e Rosamunde, a boneca de madeira com vestido de sete babados - estavam acomodadas nacestinha delas. Sentei na cama, lutando contra a necessidade de obedecer a ordem de meu pai para que mevestisse e descesse. Embora eu quisesse me consolar, ficando em meu quarto, em minha cama, esentindo a suave brisa que entrava pela janela, no parava de pensar em meu pai e em me vestir.Uma vez, eu ouvira Bertha dizer a Mandy que meu pai era gente apenas por fora, que, pordentro, era feito de cinzas misturadas com moedas e crebro.Mandy no concordara.- Ele totalmente humano. Nenhuma outra criatura seria to egosta quanto ele . Nem fadas,nem gnomos, nem elfos, nem gigantes. Por trs minutos completos adiei minha troca de roupa. Foi um jogo terrvel que fiz, tentandoquebrar o encanto, testando por quanto tempo conseguiria agentar a necessidade de fazer o queme fora ordenado. Havia um zumbido na minha cabea e o cho parecia sacudir tanto que eu temiacair da cama. Abracei meu travesseiro, at que meus braos comearam a doer - era como se otravesseiro fosse uma ncora que me impedisse de obedecer as ordens.Em um segundo, estava a ponto de voar pelos ares em mil pedaos. Levantei-me e andei at oguarda-roupa. Imediatamente senti-me perfeitamente bem. Embora desconfiasse que meu pai quisesse que eu usasse outro vestido de luto, escolhi ovestido que minha me mais gostava. Ela dizia que o verde vibrante realava os meus olhos. Euachava que quando eu usava aquele vestido parecia com uma esperana - uma esperanamagrinha e pontiaguda, com cabea humana e cabelos lisos. Pelo menos, o vestido no era preto.Minha me detestava roupa preta.O grande salo estava repleto de pessoas de preto. Meu pai veio em minha direoimediatamente. - Aqui est a minha menina, a jovem Eleanor - ele falou alto. Meu pai me conduziu paradentro, sussurrando: - Voc est parecendo uma planta com este vestido. Deveria estar de luto.Eles vo pensar que voc no tem respeito pela sua... 12. PDL Projeto Democratizao da Leitura Fui engolfada, por trs, por dois braos rolios envoltos num cetim preto que rangia. - Minha pobre menina, ns sentimos por voc - a voz era melosa. - E, Sir Peter, terrvel v-lonesta ocasio to trgica -mais um forte aperto, e fui liberada. A pessoa que falava era alta, rechonchuda, com longos cachos anelados cor de mel. Seu rostoera de um branco pastoso, com um borro de ruge em cada bochecha. Com ela, havia duas versesmenores dela mesma, mas sem o ruge. A menor no tinha o cabelo abundante da me. Tinha unscachos finos grudados no couro cabeludo, como se fossem colados. - Esta dama Olga - disse meu pai, tocando o brao da senhora alta. Fiz reverncia e esbarrei na menina mais nova. - Desculpe-me - eu falei. Ela no respondeu, nem moveu-se, apenas ficou me observando. Meu pai continuou. - Estas so as suas adorveis filhas? - Elas so os meus tesouros. Esta Hattie, e esta Olive. Elas esto de partida para a escola deaperfeioamento social em poucos dias. Hattie era aproximadamente dois anos mais velha. - Encantada em conhec-la - disse ela, sorrindo e mostrando seus enormes dentes da frente.Hattie estendeu-me sua mo, como se esperasse que eu fosse beij-la ou curvar-me. Fiquei olhando, sem saber ao certo o que fazer. Ela abaixou seu brao, e continuou a sorrir. Olive foi aquela com a qual esbarrei. - Prazer em conhec-la - disse em voz bem alta.Olive era da minha idade. Entre seus olhos, havia sulcos bem marcados de tanto franzir ocenho. - Consolem Eleanor em seu pesar - disse dama Olga a suas filhas. - Eu quero conversar comSir Peter. Ela pegou o brao de meu pai, e eles nos deixaram.- Nossos coraes choram por voc - comeou Hattie. -Quando voc berrou no funeral, tivepena de voc. - Verde no cor de luto - disse Olive. Hattie inspecionou o ambiente.- Este um belo salo, quase to fino quanto o do palcio, onde um dia eu ainda vou morar.Nossa me, dama Olga, diz que seu pai muito rico. Ela diz que ele consegue ganhar dinheiro comqualquer coisa. - At com uma unha do dedo do p - observou Olive. - Nossa me, dama Olga, diz que seu pai era pobre quando casou-se com a sua me. Diz 13. PDL Projeto Democratizao da Leituratambm que lady Eleanor j era rica quando eles se casaram, mas que o seu pai fez com que elaficasse ainda mais rica.- Ns tambm somos ricas - disse Olive. - Temos sorte de sermos ricas. - Voc nos mostraria o resto da manso? - pediu Hattie. Fomos para o andar de cima, e Hattieteve que inspecionar todos os cmodos. Abriu o guarda-roupa do quarto de minha me e, antesque eu pudesse impedi-la, correu a mo pelos vestidos. Quando voltamos ao salo, anunciou: - Quarenta e duas janelas e uma lareira em cada quarto. As janelas devem ter custado um bacheio de KJs de ouro. - Voc quer saber como nossa manso? - perguntou Olive. Para mim pouco importava seelas moravam numa toca.- Voc ter que nos visitar e ver por voc mesma - disse Hattie em resposta ao meu silncio. Ns paramos perto da mesa lateral, que estava carregada com montanhas de comida. Haviadesde um cervo inteiro assado com ervas tranadas envolvendo seus chifres, at biscoitinhosamanteigados to pequenos e rendados como flocos de neve. Fiquei me perguntando como Mandyhavia conseguido tempo para preparar tudo aquilo.- Vocs querem comer alguma coisa?- Si... - iniciou Olive, mas sua irm interrompeu com firmeza. - Oh, no. No, obrigada. Ns nunca comemos em festas. A animao nos tira totalmente oapetite.- Meu apetite... - Olive tentou novamente. - Nosso apetite pequeno. Nossa me fica preocupada. Mas parece delicioso - Hattie foi sechegando para perto dos pratos. - Ovos de codorna so um primor. Dez KJs de bronze cada. Olive,h pelo menos cinqenta.Mais ovos de codorna do que janelas.- Gosto de tortas de groselha - disse Olive.- No devemos - disse Hattie. - Bem, talvez, s um pouquinho. Um gigante no conseguiria comer metade de um pernil de cervo, mais uma montanha dearroz selvagem, oito dos cinqenta ovos de codorna, e ainda retornar para a sobremesa. MasHattie conseguiu. Olive comeu ainda mais. Tortas de groselha, po de passas, torta com creme, pudim deameixa, balas de chocolate e bolo aromatizado - tudo regado com calda de rum amanteigada, caldade damasco e calda de hortel. Elas elevaram seus pratos at bem perto de seus rostos, para que o garfo tivesse quepercorrer a menor distncia possvel. Olive comia sem parar, mas Hattie, de vez em quando,abaixava o garfo para passar afetadamente o guardanapo na boca. Depois, avanava na comida 14. PDL Projeto Democratizao da Leituraoutra vez, com mais voracidade do que nunca. Era uma viso repugnante. Olhei para baixo, na direo de um tapete que costumava ficar soba cadeira de minha me. Hoje, ele estava colocado prximo mesa do buf. Nunca havia meconcentrado naquele tapete antes. Um co farejador e caadores perseguiam um javali em direo a um franjado de l escarlate.Quando fixei o olhar, vi o movimento. O vento soprava e mexia a grama aos ps do javali. Eupisquei e o movimento parou. Fixei o olhar novamente e o movimento recomeou. O co tinha acabado de latir. Senti sua garganta relaxar. Um dos caadores mancava, e eusenti uma pontada em sua panturrilha. O javali arfava e corria com medo e fria.- O que voc est olhando? - perguntou Olive. Ela havia terminado de comer.Comecei a falar. Eu sentia como se eu houvesse estado no tapete.- Nada. Apenas o tapete. - Dei uma olhada para o tapete novamente. Um tapete comum comum desenho comum.- Seus olhos estavam saltando para fora.- Pareciam com os olhos de um ogro - disse Hattie. - Como os de um inseto. Mas, pronto, vocj est parecendo mais normal agora. Ela nunca me pareceu normal. Parecia um coelho. Um coelho gordo, do tipo que Mandygostava de pegar para cozinhar. E o rosto de Olive era branco como uma batata descascada.- Suponho que seus olhos nunca tenham saltado para fora -falei.- Acho que no. - Hattie sorriu complacentemente.- Eles so muito pequenos para saltar.O sorriso dela permaneceu, mas agora parecia emplastado.- Eu te perdo, menina. Ns da nobreza somos generosos. Sua pobre me era conhecidatambm por sua m origem.Minha me era conhecida. O uso do verbo no pretrito congelou minha lngua.- Meninas! - dama Olga veio rapidamente em nossa direo. - Temos que ir. - Ela me abraou,e meu nariz foi invadido por um cheiro de leite estragado.Elas se foram. Meu pai ficou l fora junto ao porto de ferro, despedindo-se do restante dosconvidados. Fui ver Mandy na cozinha.Ela estava empilhando os pratos sujos.- Parece que essas pessoas estavam sem comer h uma semana.Coloquei um avental e enchi a pia de gua. - Eles nunca haviam saboreado a sua comida antes. Mandy cozinhava melhor do que qualquerpessoa. Minha me e eu s vezes tentvamos fazer suas receitas. Ns seguamos exatamente asinstrues, e o prato ficava delicioso, mas nunca to maravilhoso como quando Mandy cozinhava. 15. PDL Projeto Democratizao da Leitura De algum modo, isso me fez lembrar do tapete.- O tapete no salo, com os caadores e o javali, voc sabe do que eu estou falando? Aconteceuuma coisa engraada comigo quando olhei para ele.- Ah, aquela bobagem. Voc no deve prestar ateno quele tapete velho. - Ela voltou amexer num pote de sopa. - Como assim? - uma brincadeira de fadas. Um tapete de fadas! - Como voc sabe? - Ele pertencia a lady - Mandy sempre chamava minha me de lady. Aquilo no era uma resposta. - Foi a minha fada madrinha quem deu o tapete a ela? - H muito tempo atrs. - A minha me alguma vez lhe disse quem a minha fada madrinha? - No, no disse. Onde est o seu pai? - Ele est l fora, se despedindo. Voc sabe? Mesmo sem a minha me ter-lhe contado? - Sei o qu? - Quem a minha fada madrinha. - Se sua me quisesse que soubesse, ela teria lhe contado. - Ela ia me contar. Ela prometeu. Por favor, me diga, Mandy. - Sou eu. - Voc no est me dizendo. Quem ela? - Eu. Sua fada madrinha sou eu. Tome, experimente esta sopa de cenoura. E para o jantar. Quetal? 16. PDL Projeto Democratizao da LeituraCAPTULO QUATROMinha boca abriu-se automaticamente. A colher virou e um gole quente - mas que noqueimava - desceu. Mandy havia conseguido das cenouras o que elas tm de mais doce, oque h de melhor nelas. Alm das cenouras havia outros sabores: limo, caldo detartaruga, e um tempero que eu no sei o nome. A melhor sopa de cenoura do mundo, sopamgica, que ningum, a no ser Mandy, conseguiria fazer. O tapete. A sopa. Era uma sopa de fada. Mandy era uma fada! Mas, se Mandy era uma fada, por que minha me havia morrido? Voc no uma fada. Por que no? - Se voc fosse uma fada, voc a teria salvo.- Oh, querida, eu a teria salvo se pudesse. Se ela tivesse deixado os fios de cabelo de unicrniodentro da sopa curadora, estaria bem hoje. - Voc sabia? Ento, por que deixou? Eu no sabia, at o momento em que ela ficou muito doente. Ns no temos como evitar amorte. Desmoronei sobre o banco que ficava perto do fogo, chorando to forte que mal conseguiarespirar. Ento, os braos de Mandy me ampararam, e continuei a chorar sobre as dobrasamarrotadas de seu avental, onde tantas vezes antes eu havia chorado por razes bem menores.Uma lgrima pousou no meu dedo. Mandy tambm estava chorando. Seu rosto estavavermelho e manchado. - Eu tambm era a fada madrinha dela - disse Mandy. - E de sua av tambm. Ela assoou onariz. Afastei os braos de Mandy, para ter uma nova viso dela. Ela no podia ser uma fada. Fadasso magras, jovens e bonitas. Mandy era alta, como uma fada deveria ser, mas quem j ouviu falarde uma fada com cabelos crespos grisalhos e dois queixos? - Mostre para mim - exigi. - Mostrar para voc o qu? - Que voc uma fada. Desaparea ou algo assim.- No tenho que lhe mostrar nada. E - com exceo de Lucinda - fadas nunca desaparecemquando outras criaturas esto presentes. - Voc pode? 17. PDL Projeto Democratizao da Leitura- Ns podemos, mas no fazemos. Lucinda a nica que ousada e idiota o bastante.- Por que idiota?- Porque faz com que os outros saibam que ela uma fada -Mandy comeou a lavar a loua. Vem me ajudar.- Nathan e Bertha sabem? - levei uns pratos para a pia.- Sabem o qu?- Que voc uma fada? - Ah, esse assunto de novo. Ningum sabe, a no ser voc. E acho bom manter segredo -Mandy me olhou o mais brava que pde.- Por qu?Ela fez uma cara feia, apenas.- Vou manter segredo. Prometo. Mas, por qu?- Vou lhe contar. As pessoas gostam apenas da idia de haver fadas. Quando esbarram comuma fada verdadeira, de carne-e-osso, h sempre problemas - ela enxaguou uma travessa. - Vocseca.- Por qu?- Porque os pratos esto molhados, ora. - Ela viu minha cara de surpresa. - Ah, por que hsempre problemas? Por duas razes, principalmente. As pessoas sabem que ns podemos fazermagias, ento, querem que ns resolvamos todos os seus problemas. Quando no fazemos o quequerem, ficam zangadas. A outra razo, que ns somos imortais. Isso aborrece as pessoastambm. A lady no falou comigo por uma semana, quando o pai dela morreu.- Por que Lucinda no se importa que as pessoas saibam que ela uma fada? - Ela gosta que as pessoas saibam, a tola. Ela quer que as pessoas lhe agradeam, quando elalhes concede algum de seus terrveis dons.- Eles so sempre terrveis? - Sempre. Eles so sempre terrveis, mas algumas pessoas ficam encantadas em receber umpresente de uma fada, mesmo que isso as torne infelizes.- Por que minha me sabia que voc uma fada? Por que fiquei sabendo?- Toda a linha das Eleanor so Amigas das Fadas. Voc tem sangue de fada em voc.Sangue de fada! - Posso fazer magia? Vou viver para sempre? Minha me viveria para sempre se ela notivesse ficado doente? Existem muitas Amigas das Fadas?- Muito poucas. Voc a nica que resta em Kyrria. E, no, meu amor, voc no pode fazermagia ou viver para sempre. apenas uma gota de sangue de fada. Mas j existe uma caracters-tica que comeou a se manifestar. Seus ps no tm crescido j faz alguns anos, eu garanto. 18. PDL Projeto Democratizao da Leitura - Nada em mim cresceu nos ltimos anos.- O resto de voc vai crescer em breve, mas voc ter ps de fada, como sua me tinha -Mandy levantou a barra de sua saia e suas cinco anguas, para revelar seus ps, que no erammaiores do que os meus.- Ns somos muito altas para o tamanho de nossos ps. Isso a nica coisa que ns nopodemos mudar com magia. Os homens colocam enchimento em seus sapatos para que ningumdescubra, e ns, mulheres, escondemos os ps sob as saias. Estiquei meu p para fora do vestido. Ps pequeninos estavam na moda, mas ser que elesiriam me fazer ficar mais desengonada, quando ficasse mais alta? Ser que conseguiria mantermeu equilbrio?- Voc poderia fazer meu p crescer, se voc quisesse? Ou... - Eu busquei um outro milagre. Achuva respingava na janela. -Ou poderia fazer a chuva parar? Mandy moveu sua cabea afirmativamente. - Faz. Por favor, faz. - Por que eu haveria de querer fazer? - Para mim. Eu quero ver magia. Grande magia. - Ns no fazemos grande magia. Lucinda a nica que faz. muito perigoso. - O que h de perigoso em acabar com uma tempestade? - Talvez no haja nada de perigoso, mas talvez haja. Use a sua imaginao. - Seria bom ter cus claros. As pessoas poderiam sair. - Use a sua imaginao - Mandy repetiu. Pensei. - A grama precisa de chuva. As plantaes precisam de chuva. - Mais - disse Mandy. - Talvez um bandido fosse roubar algum, e ele no est indo por causa da chuva.- Est certo. Ou, talvez, comeasse uma seca, e a, eu teria que dar um jeito nela, porque a teriainiciado. E, por sua vez, quem sabe, a chuva que eu enviasse, faria cair um galho que quebraria otelhado de uma casa, e ento teria que consertar o telhado tambm. - No seria culpa sua. Os donos da casa deveriam ter construdo um telhado mais forte. - Talvez sim, talvez no. Ou, talvez, causasse uma enchente e pessoas morressem. Este oproblema com a grande magia. Eu s fao pequena magia. Comida boa, minha sopa curadora, meutnico. - Quando Lucinda lanou o feitio em mim, foi uma grande magia? - Claro que foi. Aquela besta! - Mandy escovou um pote com tanta fora que ele fez umestrondo e bateu de encontro pia de cobre. 19. PDL Projeto Democratizao da Leitura- Me diga como eu fao para desfazer o encanto. Por favor, Mandy.- Eu no sei. S sei que ele pode ser desfeito.- Se eu contasse a Lucinda como terrvel, voc acha que ela retiraria o encanto?- Duvido, mas pode ser. Mas, a, ela poderia desfazer um feitio e fazer outro ainda pior. Oproblema de Lucinda que as idias surgem na cabea dela e saem em forma de dons.- Como ela ?- Ela no como o resto de ns. Mas melhor voc no querer nunca pr os olhos nela.- Onde ela mora? - perguntei. Se eu pudesse encontr-la, talvez pudesse persuadi-la a desfazer esta maldio. Apesar detudo, Mandy poderia estar enganada.- Ns no temos nos falado. No fico procurando saber por onde anda Lucinda, a idiota.Cuidado com a tigela!A ordem veio tarde demais. Eu peguei a vassoura.- Todas as amigas so desastradas? - No, querida. Sangue de fada no faz voc ficar desastrada. Isso humano. Voc no me vdeixando pratos carem, v?Comecei a varrer, mas no foi necessrio. Os pedaos de cermica se juntaram e voaram paradentro da lata de lixo. Eu no conseguia acreditar. - Isso tudo que eu fao, querida. Pequena magia que no pode fazer mal a ningum. Porm til, s vezes. Nenhum pedao afiado foi deixado no cho.Fiquei olhando fixamente para a lata. Os cacos estavam l.- Por que voc no os transformou de volta numa tigela?- E uma magia muito grande. No parece, mas . Poderia ferir algum. Nunca se sabe.- Voc quer dizer que as fadas no podem ver o futuro? Se pudesse, voc veria, no veria? - Ns no podemos ver o futuro mais do que vocs. S os gnomos podem ver o futuro, e,mesmo assim, s alguns deles.Um sino tocou em algum lugar da casa. Era meu pai que estava chamando um dos criados.Minha me nunca usava o sino. - Voc era a fada madrinha de minha bisav tambm? Milhares de perguntas surgiam semparar. Por quanto tempo voc tem sido nossa fada madrinha? - Quantos anos teria Mandy,realmente?Bertha entrou.- Sir Peter quer voc no escritrio, senhorita.- O que ele quer? - perguntei. 20. PDL Projeto Democratizao da Leitura- Ele no disse. - Bertha torcia ansiosamente uma de suas tranas.Bertha tinha medo de tudo. O que havia l para se ter medo? Meu pai queria falar comigo. Eras isso que se poderia esperar. Terminei de secar um prato, sequei outro, e mais um terceiro.- Melhor no se demorar, senhorita - disse Bertha. Fui pegar o quarto prato.- melhor voc ir - disse Mandy. - E ele no vai querer v-la de avental.Mandy estava assustada tambm! Tirei o avental e sa.Parei bem na entrada do escritrio. Meu pai estava sentado na cadeira de minha me,examinando alguma coisa que estava em seu colo.- Ah, a est voc - ele ergueu os olhos. - Chegue mais perto, Ella. Olhei furiosamente para ele, ressentindo o comando. Ento, dei um passo frente. Este era ojogo que eu fazia com a Mandy: obedincia e desafio.- Pedi para voc chegar mais perto, Eleanor.- Eu cheguei mais perto.- No o suficiente. Eu no vou morder. S quero conhec-la um pouco mais. - Ele caminhou naminha direo e me conduziu a uma cadeira em frente dele. - Voc j viu alguma coisa to esplndida quanto esta? - Ele me passou o objeto que estava emseu colo. - Voc pode segur-lo. pesado para o tamanho que tem. Aqui est.Eu havia decidido deixar o objeto cair no cho, j que meu pai gostava tanto dele. Mas deiuma olhada antes, e no pude jog-lo. Eu estava segurando um castelo de porcelana menor que meus dois punhos. Tinha seispequeninas torres e cada uma terminava num castial de miniatura. E, oh!, estendido entre asjanelas de duas torres havia um fio bem fino de porcelana, no qual estavam penduradas - roupas!Meies de homem, um robe, um aventalzinho de beb, tudo to fino quanto uma teia de aranha. E,pintado numa janela no andar de baixo, uma moa sorridente acenava com um cachecol de seda.Bem, pelo menos, parecia ser seda.Meu pai pegou de volta o castelo.- Feche os olhos.Eu o ouvi fechar as pesadas cortinas. Ia vigiando com os olhos semicerrados. No confiavanele.Ele ps o castelo sobre o console da lareira, colocou velas nele, e as acendeu.- Abra os olhos.Corri para ver de perto. O castelo era um mundo cintilante de maravilhas. As chamasdesenhavam matizes perolizadas nas paredes brancas, e as janelas reluziam um amarelo-ouro,sugerindo alegres chamas no interior.- Ohhh! - falei. 21. PDL Projeto Democratizao da LeituraMeu pai abriu as cortinas e soprou as velas.- lindo, no ? Concordei.- Onde voc conseguiu isto?- Com os elfos. Um elfo o fez. Eles so ceramistas maravilhosos. Um dos alunos de Agulen fezeste. Sempre quis um Agulen, mas ainda no consegui nenhum.- Onde voc vai coloc-lo?- Onde voc quer que eu o coloque, Ella?- Numa janela.- No o quer em seu quarto? - Em qualquer quarto, mas numa janela. - Para que ele possa reluzir para todos, dentro decasa e na rua.Meu pai me olhou por um longo tempo.- Direi ao comprador para coloc-lo numa janela.- Voc vai vend-lo! - Sou um comerciante, Ella. Vendo coisas. - Por um momento ele falou consigo mesmo. - Etalvez possa pass-lo adiante como um Agulen genuno. Quem poderia saber? - ele se voltou paramim. - Agora voc sabe quem sou: Sir Peter, o comerciante. Mas, quem voc?- Uma filha que tinha uma me. Ele deixou isso de lado.- Mas quem Ella?- Uma menina que no gosta de ser interrogada. Ele estava satisfeito.- Voc tem coragem, para vir falar deste jeito comigo. Ele me examinou. - Este o meu queixo. - Ele tocou meu queixo, eu recuei. -Forte. Determinada. Este meunariz. Espero que voc no se importe que as narinas se dilatem. Os meus olhos, s que os seus soverdes. A maior parte de seu rosto minha. Imagino como ficar isso numa mulher, quando voccrescer. Por que ele pensava que era elegante falar a respeito de mim como se eu fosse um retrato eno uma menina?- O que devo fazer com voc? - perguntou a si mesmo.- Por que voc deveria fazer algo comigo?- No posso deixar voc crescer para virar uma ajudante de cozinheira. Voc precisa sereducada - ele mudou de assunto. -O que voc achou das filhas de dama Olga?- Elas no me serviram muito de conforto - falei.Meu pai riu, deu gargalhadas, cabea para trs, sacudindo os ombros.O que havia de to engraado? No gostava que rissem de mim. Isso me fez ter vontade de 22. PDL Projeto Democratizao da Leituradizer algo de bom sobre as abominveis Hattie e Olive.- Elas estavam bem intencionadas, eu suponho. Meu pai limpou as lgrimas dos olhos. - Elas no estavam bem-intencionadas. A mais velha uma conivente desagradvel, como ame dela, e a menor uma tola. Nunca passou pela cabea delas terem boas intenes. - Sua voz setornou mais ponderada. - Dama Olga tem muitos ttulos e rica.O que isso tinha a ver?- Talvez eu deva mand-la para a escola de aperfeioamento social com as filhas dela. Vocpoder aprender a andar como algum da sua estirpe e no como um elefantinho. Escola de aperfeioamento social! Eu teria que deixar Mandy. E l me dariam ordens o tempotodo e teria que obedecer, fosse o que fosse. Tentariam me livrar da minha falta de jeito, mas noconseguiriam. Ento me puniriam, e eu os puniria de volta, e eles me puniriam ainda mais.- Por que no posso simplesmente ficar aqui?- Acho que voc poderia ser ensinada por uma governanta educadora. Se eu encontraralguma...- Prefiro bem mais ter uma governanta, pai. Estudaria com bastante empenho se eu tivesseuma governanta. - De outro modo, no? - suas sobrancelhas levantaram, mas eu poderia afirmar que meu paiestava se divertindo. Ele se levantou e foi para a escrivaninha onde minha me costumavatrabalhar em nossas contas domsticas. - Pode ir agora. Tenho trabalho a fazer.Sa. Quando estava passando pela porta, falei: - Talvez elefantinhos no possam ser aceitos na escola de aperfeioamento social. Talvezelefantinhos no possam ser educados. Talvez eles... - eu parei. Meu pai estava rindo novamente. 23. PDL Projeto Democratizao da LeituraCAPTULO CINCON a noite seguinte, tive que jantar com meu pai. Tive dificuldade para sentar mesa, porque Bertha me fizera usar um elegante vestido, e minha angua era volumosa. No prato de meu pai e no meu, havia aspargos cobertos com um molho de mostarda eestrago. Em frente a seu prato, havia uma taa de cristal multifacetado. Quando, finalmente, consegui me ajeitar em minha cadeira, meu pai sinalizou a Nathan paraque servisse o vinho na taa. - Veja como a taa capta a luz, Eleanor. - Ele levantou a taa. - A taa faz o vinho brilhar como uma pedra de granada. - bonita. - S isso? S bonita? - muito bonita, acho. - Eu me recusava a ador-la. Ele iria vend-la tambm. - Voc poder apreci-la mais, se beber nela. Voc j experimentou vinho? Mandy nunca havia permitido. Fui pegar a taa e passei as minhas mangas bufantes no molhodos aspargos.A taa estava muito distante. Precisei me levantar. Pisei na minha saia, perdi o equilbrio, e fuiimpulsionada para a frente. Para aparar minha queda, usei meus braos, que desabaram sobre amesa, e esbarrei no ombro de meu pai. A taa escapuliu de suas mos. Caiu e quebrou-se em duas partes exatas, a haste descolou-sedo copo. Uma mancha vermelha espalhou-se pela toalha da mesa e o gibo de meu pai ficourespingado de vinho. Preparei-me para a sua fria, mas meu pai me surpreendeu. - Foi tolice de minha parte - disse ele, limpando sua roupa com o guardanapo. - Quando vocentrou, eu vi que voc mal conseguia se administrar. Nathan e uma copeira tiraram rapidamente a toalha da mesa e os vidros quebrados. - Peo desculpas - eu falei. - Isso no far com que o cristal se cole novamente, far? -Ele me repreendeu, mas depois secontrolou. - Suas desculpas esto aceitas. Ns dois trocaremos nossas roupas e depois come-aremos nossa refeio. Retornei em quinze minutos, num vestido comum. - A culpa foi minha - disse meu pai, partindo um aspargo. - Eu deixei que voc se tornasse uma pessoa tosca. 24. PDL Projeto Democratizao da Leitura - Eu no sou bronca.Mandy no era uma pessoa de medir palavras, mas ela jamais havia me chamado assim.Desastrada, espalhafatosa, boba - mas nunca bronca. - Mas voc ainda jovem para aprender - meu pai continuou. - Um dia posso querer levarvoc para junto de companhias civilizadas. - No gosto de companhias civilizadas. - Eu posso precisar que companhias civilizadas gostem de voc. J decidi. Voc ir para aescola de aperfeioamento social. Eu no podia ir. No iria! - Voc disse que eu poderia ter uma governanta. No sairia mais barato do que me mandarpara longe? A copeira retirou o aspargo que eu no havia comido e em seu lugar serviu peixe com moussede tomate.- Muito gentil de sua parte em se preocupar. Uma governanta sairia mais caro. E eu no tenhotempo de entrevistar governantas. Em dois dias, voc ir para a escola de aperfeioamento socialcom as filhas de dama Olga. - No irei. - Voc far como estou dizendo, Eleanor. - No irei. - Ella... - Ele fisgou um pedao de peixe e falou, enquanto mastigava. - Seu pai no umhomem bom, os criados j devem ter-lhe alertado a respeito disso, se no estou enganado. No neguei. - Eles devem ter-lhe dito que sou orgulhoso, e eu sou. Devem ter dito que sou impaciente, e eusou. Devem ter dito que sempre gosto das coisas minha maneira. E eu gosto. - Eu tambm - menti. Ele sorriu admirado. - Minha filha a jovem mais valente de Kyrria. - Seu sorriso desapareceu, e sua boca secontraiu numa linha fina. - Mas ela ir para a escola de aperfeioamento social mesmo que eutenha que lev-la at l. E no ser uma viagem nada agradvel, se eu tiver que perder o tempo deme dedicar aos meus negcios por sua causa. Voc est me entendendo, Ella? Meu pai aborrecido parecia com aquele brinquedo de parque de diverses, que um punhode couro amarrado a uma mola enrolada, usado no teatro de marionete. Quando soltam a mola, opunho dispara no coitado do boneco. Com meu pai, no era o punho que me assustava; era apresso da mola, porque era ela que determinava a fora do impulso. A raiva em seus olhos era tointensa, que eu no sabia o que poderia acontecer se soltassem a mola. Odiava ficar amedrontada, mas eu estava. 25. PDL Projeto Democratizao da Leitura - Eu irei para a escola de aperfeioamento social. - Mas no pude deixar de acrescentar. - Masvou odiar.Seu risinho estava de volta.- Voc livre para detestar ou adorar, desde que v. Era a experincia de ter que obedecer sem ter recebido uma ordem, e eu no gostava nem umpouco mais desta forma de obedecer do que do tipo induzido-por-Lucinda. Sa da sala de jantar, eele no me impediu.Era incio da noite. Apesar da hora, fui para o quarto e vesti a camisola. Ento, peguei minhasbonecas, Flora e Rosamunde, as levei para a cama, e deitei. Elas j tinham deixado de dormircomigo h alguns anos mas, esta noite, eu precisava de consolo.Juntei-as sobre minha barriga, e esperei o sono chegar. O sono, porm, estava ocupado emalgum outro lugar.As lgrimas comearam a escorrer. Encostei Flora no meu rosto.- Querida... - A porta se abriu. Era Mandy com o tnico e uma caixa.Eu j estava bastante mal.- Tnico, no, Mandy. Estou bem. De verdade.- Oh, amadinha. Ela deixou o tnico e a caixa, me segurou e ficou acariciando minha testa.- No quero ir disse, em seus ombros.- Eu sei, querida - ela me abraou por um longo tempo, at eu estar quase adormecendo.Ento, ajeitou seu peso. - Hora do tnico.- Eu vou pular esta noite. - No, no vai. Principalmente, esta noite. No quero que voc fique doente quando vocprecisa estar forte. - Uma colher saiu de seu avental. Tome. Trs colheres. Eu me preparei. O tnico tinha um gosto amendoado e bom, mas era viscoso, era comoengolir um sapo. Cada colher cheia esvaa-se na minha garganta. Eu continuava a engolir, depoisdo tnico j ter descido, para me livrar daquela sensao.O tnico fez com que eu me sentisse melhor - um pouco melhor. Pelo menos, pronta parafalar. Ajeitei-me no colo de Mandy.- Por que minha me se casou com ele? - Esta pergunta me perturbava desde quando tiveidade para pensar sobre este assunto. - At eles se casarem, Sir Peter era muito atencioso com a lady. Eu no confiava nele, mas elano me ouvia. A famlia de sua me no o aprovava, porque ele era pobre, o que fazia com que alady o quisesse ainda mais. Ela tinha aquele bom corao - a mo de Mandy parou de mover-separa cima e para baixo, acariciando minha testa. - Ella, querida, tente evitar que ele descubra arespeito do seu encanto. 26. PDL Projeto Democratizao da Leitura - Por qu? O que ele faria? - Ele gosta demais que as coisas sejam do jeito que ele quer. Ele poderia usar voc.- Minha me ordenou que no contasse a ningum a respeito da maldio. Mas, de qualquermaneira, eu no contaria. - Est bem - sua mo voltou a acariciar a minha testa. Fechei os olhos. - Como ser l, o que voc acha? - Na escola? Algumas das meninas sero amveis. Sente-se, querida. Voc no quer ver osseus presentes? Eu havia me esquecido da caixa. Mas havia apenas uma caixa. - Presentes? - Um de cada vez. - Mandy me deu a caixa que eu havia visto. - Para voc, onde quer que v,por toda sua vida.Dentro da caixa havia um livro de contos de fada. Nunca tinha visto ilustraes to lindas.Eram quase vivas. Virei as pginas, maravilhada. - Quando olhar para ele, voc se lembrar de mim e se sentir amparada. - Vou guard-lo at a hora de partir, assim todas as estrias sero novas. Mandy deu uma risada. - Voc no terminar este livro to cedo. Ele crescer com voc - ela colocou a mo no bolsodo avental e retirou um embrulho num papel de seda. - Da lady. Ela gostaria que fosse seu. Era o colar de minha me. Os fios de prata iam quase at a minha cintura, num modelo deprata entrelaada, ornado com pequeninas prolas. - Voc vai crescer dentro dele, querida, e ficar to linda usando-o, como sua me ficava. - Vou us-lo sempre.- Seria prudente us-lo por baixo do vestido, quando voc for sair. muito valioso. Os gnomoso fizeram. O sino tocou l embaixo.- Aquele seu pai est chamando. Abracei Mandy e me agarrei a ela. Ela se desvencilhou dosmeus braos. - Deixe-me ir, meu amor - Mandy deu-me um beijo no rosto, e saiu. Ajeitei-me na cama, e, desta vez, o sono veio at mim. 27. PDL Projeto Democratizao da LeituraCAPTULO SEISNa manh seguinte, acordei com o colar de minha me enrolado nos dedos. O relgio nopalcio do rei Jerrold batia seis horas. Perfeito. Queria me levantar cedo e passar o dia medespedindo dos lugares dos quais mais gostava.Coloquei meu vestido cobrindo o colar e desci sorrateiramente at a despensa, ondeencontrei uma bandeja de broinhas recm-assadas. Elas estavam quentes, sendo assim, pegueiduas, joguei para o alto, e as aparei com a saia, que puxei para frente, fazendo de cesta. Depois,olhando para o meu desjejum, corri para a frente da casa, e dei de encontro com meu pai.Ele estava na entrada, esperando Nathan vir com a carruagem.- No estou com tempo para voc agora, Eleanor. Corra, v de encontro a outra pessoa. E digaa Mandy que estarei de volta com o comendador. Ns viremos almoar. Conforme a instruo de meu pai, corri. Alm dos aspectos perigosos, o feitiofreqentemente me fazia parecer idiota e era, em parte, a razo de eu parecer to desastrada.Agora teria que ir de encontro a algum. Bertha vinha carregando roupas molhadas. Quando fui de encontro a ela, a cesta caiu. Meusvestidos, meias e roupas de baixo se estatelaram contra os ladrilhos do cho. Ajudei Bertha arecolher as roupas, mas ela teria que lavar tudo novamente. - Senhorita, j est bastante difcil conseguir aprontar suas coisas com tanta rapidez, semprecisar fazer a tarefa duas vezes -ela reclamou. Depois de pedir desculpas, ter dado o recado de meu pai a Mandy, e depois que Mandy me fezsentar e tomar o caf da manh num prato, eu me dirigi para o jardim zoolgico real, situado juntos muralhas do palcio do rei Jerrold. Minhas atraes favoritas eram os pssaros que falavam e os animais exticos. Com exceoda hidra - em seu pntano, e do drago beb, os outros animais exticos - o unicrnio, o bando decentauros e a famlia de grifos - viviam num prado, numa ilha cercada por um trecho do fosso docastelo.O drago era mantido numa jaula de ferro. Ele era bonito com sua pequena ferocidade, eparecia estar mais feliz quando soltava chamas e seus olhos cor de rubi brilhavam malvadamente. Comprei uma poro de queijo amarelo, na barraca que ficava prxima jaula do drago, e aassei no fogo, o que era algo interessante - era preciso que se chegasse perto o suficiente paraassar o queijo, mas no perto demais para que o dragozinho no o pegasse.Fiquei imaginando o que o rei Jerrold planejaria fazer com o drago, quando ele crescesse. Eme perguntei, tambm, se estaria a tempo de conhecer o destino do drago. 28. PDL Projeto Democratizao da Leitura Mais adiante, um centauro chegou perto do fosso me fitando. Ser que centauros gostavam dequeijo? Fui andando em direo a ele, calmamente, esperando que no fugisse galopando. - Aqui ouvi uma voz. Virei-me. Era o prncipe Charmont, me oferecendo uma ma. - Obrigada. Estendendo a mo, aproximei-me do fosso. As narinas do centauro se inflaram e ele trotouem minha direo. Atirei a ma. Dois outros centauros vieram a galope, mas o meu pegou a mae comeou a com-la, mastigando ruidosamente. - Eu sempre espero que eles me agradeam ou digam Como ousa ficar me olhando assim? -falei. - Eles no so to espertos para falar. Veja como seus olhos so inexpressivos - apontou. Eu sabia tudo aquilo, mas talvez fosse um dever de prncipe explicar as coisas a seus sditos. - Se eles articulassem as palavras - eu disse - no conseguiriam pensar em nada para falar. Um silncio de surpresa se seguiu. Depois Char riu.- Isso foi engraado! Voc divertida. Como a lady Eleanor - ele pareceu estremecer. -Desculpe-me. No queria lhe trazer lembranas. - Eu penso nela com freqncia - falei. Quase o tempo todo. Fomos caminhando pela beira do canal. - Voc quer uma ma tambm? Ele me estendeu uma outra ma. Eu queria faz-lo rir novamente. Arrastei o meu p direito no cho e joguei minha cabeapara trs como se tivesse uma crina. Arregalando meus olhos o mais que podia, olhei abobada-mente para Char e peguei a ma. Ele riu de verdade. Ento, fez uma declarao. - Gosto de voc. Sinto-me muito atrado por voc. - Char pegou uma terceira ma, para elemesmo, no bolso de sua capa.Tambm gostava dele. Ele no era arrogante, desdenhoso, ou emburrado, como o altochanceler Thomas. Todos os kyrrianos se curvavam quando ele passava, e os elfos e gnomos visitantes tambm.No sabia como responder, mas Char levantava seu brao a cada cumprimento, na costumeirasaudao real. Era um hbito to natural para ele, quanto ensinar. Decidi por um longo movimentode cabea. Reverncias sempre me faziam tropear. Andamos at as gaiolas dos papagaios, meu outro lugar favorito. Os pssaros falavam todosos idiomas da terra: idiomas humanos estrangeiros e os idiomas exticos gnoms, elfiano, ogrs eabdegi (a lngua dos gigantes). Eu adorava imit-los, embora no soubesse o que estavam dizendo. Simon, o tratador, era meu amigo. Quando ele viu Char, curvou-se. Depois, voltou a alimentar 29. PDL Projeto Democratizao da Leituraum pssaro cor de laranja.- Este novo - ele falou. Fala gnoms e no cala a boca.- .fwthchor evtoogh brzzay eerth ymmadboech evtoogh brzzay - disse o papagaio.- .fwthchor evtoogh brzzay eerth ymmadboech evtoogh brzzay - repeti.- Voc fala gnoms! - Char falou.- Gosto de imitar os sons. S sei o significado de poucas palavras.- Ela fala direitinho, no fala, Sua Alteza?- fawithkor evtuk brizzay... - Char desistiu. - Soou melhor quando voc falou.- .achoed dh eejh aphchuz uochludwaach - o papagaio gritou.- Sabe o que ele disse? - perguntei a Simon que, de vez em quando, sabia traduzir.Simon balanou sua cabea negativamente.- O senhor sabe, Alteza? - Simon perguntou a Char.- No. Parece um gargarejo.Outros visitantes solicitaram a ateno de Simon.- Com licena disse ele.Char observou, enquanto eu me despedia de cada pssaro.- .iqkwo pwach brzzay ufedjee - isso em gnoms queria dizer At cavarmos novamente.- Ahthoon ssyng! - era o ogrs para Muita comilana!- Aiiiee ooo (uivo) bek aaau! - era o abdegi para J estou com saudades! - Porr ol pess waddo. - Era elfiano para V pela sombra. Memorizei a imagem dos pssaros ede Simon.- Adeus - eu falei. Simon acenou. Para que os pssaros no ficassem mortos de medo, um jardim os separava dos ogros.Atravessamos os canteiros de flores, enquanto eu tentava ensinar a Char algumas palavras quetnhamos acabado de ouvir. A memria dele era boa, mas sua pronncia era totalmente kyrriana.- Se me ouvirem, os elfos jamais me deixaro ficar embaixo de uma rvore novamente.- Os gnomos bateriam com uma p na sua cabea.- Ser que os ogros achariam que eu no serviria nem para ser consumido? Chegamos nas proximidades da cabana dos ogros. Mesmo estando trancados, haviamsoldados de guarda, postados a distncia de uma seta. Um ogro nos encarou atravs de uma janela. Ogros no eram s perigosos por causa de seu tamanho e de sua crueldade. Eles conheciamos segredos das pessoas s de olhar para elas, e se aproveitavam disso. Quando queriam, eramirresistivelmente persuasivos. Antes de se chegar ao final da primeira frase de um ogro, emkyrriano, a pessoa se esquecia dos dentes afiados deles, do sangue seco sob suas unhas, e do 30. PDL Projeto Democratizao da Leituraespesso plo negro, que crescia aos montes, em sua face. Parecia subitamente bonito e a vtimapensava que ele era seu melhor amigo. L pelo final da segunda frase, a pessoa estava to rendida,que o ogro poderia fazer o que quisesse com ela: jog-la num caldeiro para cozinh-la, ou, seestivesse com pressa, com-la crua.- .pwich aooyeh zchoak - disse uma voz sibilante e macia.- Voc ouviu isso? - perguntei.- No parece um ogro. De onde veio?- .pwich aooyeh zchoak - a voz repetiu, desta vez com um toque de choro em sua melodia.Uma criana gnomo, bem novinha, ps sua cabea para fora de um aqueduto pouco mais deum metro de distncia da cabana. Eu a vi no mesmo instante em que o ogro.O ogro conseguiria alcanar a criana pela janela, que no tinha vidro! Corri em direo aomenino, mas Char foi mais rpido. Agarrou a criana pouco antes do ogro. Char se afastou,segurando o beb, que se debatia para sair de seus braos.- Passe-o para mim - falei, pensando que conseguiria acalm-lo.Char me passou a criana.- szee frah mynn - o ogro sibilou, olhando penetrantemente para Char. - mynn ssyng szeemynn thoosh forns - depois, virou-se para mim e sua expresso mudou. Comeou a rir. -mmeungah suss hijynn emmong. Mynn whadz szee uiv. Szee Aah ohrth hahj ethssif szee. Lgrimas defelicidade escorreram por sua face, deixando rastros em seu rosto imundo.Ento, disse em kyrriano, sem nem se incomodar em fazer sua voz persuasiva:- Venha at mim e traga a criana.Eu me apoiei firme no cho. Agora teria que quebrar o encanto. A minha vida e a de outro serdependiam disso.Os joelhos comearam a tremer pela necessidade que sentiam de andar. Segurei-me, meusmsculos se retesaram em cimbra, impingindo dores s batatas das pernas. Apertei o pequenognomo, em minha luta para resistir, ele uivava e se retorcia em meus braos.O ogro continuou a gargalhar. Depois falou de novo.- Obedea-me j. Venha. Agora.Contra a minha vontade, eu dei um passo. Parei, e toda a tremedeira recomeou novamente.Outro passo. E mais outro. No via nada, a no ser aquela cara traioeira aproximando-se cada vezmais, e mais. 31. PDL Projeto Democratizao da Leitura CAPTULO SETEAvoc vai? - gritou Char.Ele podia ver bem para onde eu estava indo.- Tenho que... - eu falei.- Pare! Eu lhe ordeno que pare.Parei e fiquei tremendo, enquanto os soldados cercavam a cabana. Suas espadas apontarampara o ogro, que me olhou furiosamente, depois virou as costas e se retirou para o interiorsombrio da cabana.- Por que voc obedeceu a ele? - Char perguntou. Eu ainda estava ocupada com a criana. Ele puxava sua barbinha e se contorcia tentandoescapar.- .pwich azzoogh fraech - ele chorava.Usei a agonia do gnominho para evitar responder a pergunta de Char.- Ele est assustado.Porm, Char no estava distrado.- Por que voc estava obedecendo ao ogro, Ella? Tinha que responder de alguma maneira.- Seus olhos - menti. - Alguma coisa em seus olhos. Tinha que fazer o que ele queria. - Ser que eles encontraram uma nova maneira de nos enfeitiar? - Char parecia alarmado. -Preciso informar isto ao meu pai.O gnomo criana gritou, chutando o ar. Pensei que talvez as palavras do papagaio pudessem tranqiliz-lo. Repeti-as, esperando queelas no significassem um insulto:- .fwthchor evtoogh brzzay eerth ymmadboech evtoogh brzza.O rosto do gnominho se iluminou, e ele sorriu, mostrando os dentinhos perolados de beb. - .fwthchor evtoogh brzzay eerth ymmadboech evtoogh brzzay - ele repetiu. Havia umacovinha nas dobras das rugas e nas gordurinhas do beb.Coloquei-o no cho. Ele pegou a minha mo e a de Char.- Os pais devem estar preocupados - falei.No sabia como perguntar ao gnominho onde seus pais estavam, e ele provavelmente eramuito novinho para poder responder. Os pais no estavam perto dos animais ferozes, nem dos animais no pasto. Finalmente,avistamos uma mulher gnomo idosa sentada no cho perto do lago. Sua cabea estava apoiada 32. PDL Projeto Democratizao da Leituraentre os joelhos, era a imagem da desolao. Outros gnomos estavam procurando nos bambus enas cercas ou indagavam aos passantes.- !fraechramM - chamou o gnominho, puxando a mim e a Char.A velha gnoma levantou o rosto, sua face estava coberta de lgrimas.- !zhulpH - Ela o agarrou num abrao apertado e cobriu seu rosto e barba com beijos. Ento,aproximou-se de ns e reconheceu Char.- Alteza, obrigada pelo retorno de nosso neto. Char tossiu, num som encabulado.- Ns estamos contentes em traz-lo de volta, senhora -disse Char. - Ele quase foi o almoo deum ogro.- Char... prncipe Charmont o salvou - eu falei. E salvou a mim tambm.- O senhor tem a gratido dos gnomos. A gnoma curvou sua cabea.- Eu sou zhatapH. Era pouco mais alta do que eu, mas bem mais larga no gorda, apenas larga, esta adireo na qual os gnomos crescem depois de tornarem-se adultos. Era a pessoa mais digna que euj havia visto, e a mais velha (com exceo de Mandy provavelmente). Suas rugas tinham rugas,pequenas dobras em dobras mais profundas numa pele marcada. Seus olhos eram profundos e suacor de cobre estava opaca.Fiz uma reverncia, e quase perdi o equilbrio.- Meu nome Ella - falei.Outros gnomos vieram, e nos rodearam.- Como conseguiram convenc-lo a vir com vocs? - zhatapH perguntou. - Ele no vai com amaioria dos humanos.- Ella falou com ele - disse Char, parecendo orgulhoso de mim.- O que voc falou?Hesitei. Uma coisa era imitar os papagaios para Simon ou falar com um beb. Outra eraparecer uma tola diante desta majestosa senhora.- .fwthchor evtoogh brzzay eerth ymmadboech evtoogh brzzaY - finalmente, eu falei.- No me admira que ele tenha vindo com vocs - disse zhatapH.- !fraecH - zhulpH gritou alegremente, agitando-se nos braos dela.Uma jovem mulher gnomo veio e pegou o beb.- Onde voc aprendeu a falar gnoms? - a jovem perguntou. - Eu sou a me de zhulpH.Expliquei sobre os papagaios.- O que falei para zhulpH?- uma expresso. Ns dizemos isso como uma saudao disse zhatapH. - Traduzindo para 33. PDL Projeto Democratizao da Leiturakyrriano seria Cavar bom para a riqueza e bom para a sade. - Ela estendeu a mo para mim. -ZhulpH no ser o nico que voc ir salvar. Eu vejo. O que mais ela poderia ver? Mandy havia dito que alguns gnomos podem ver o futuro. - Voc pode ver o que vai me acontecer? - Os gnomos no vem detalhes. O que voc ir vestir amanh, o que ir dizer, so mistrios.S vejo um esboo. - O que mais voc v? - Perigo, uma busca, trs figuras. Elas esto prximas de voc, mas no so suas amigas. - Elasoltou a minha mo. -Cuidado com elas! Quando estvamos saindo do jardim zoolgico, Char disse: - Esta noite vou triplicar a guarda ao redor dos ogros. E, em breve, capturarei um centauro e odarei a voc. Dama Olga foi pontual. Ela e suas filhas ficaram observando, enquanto meu ba e um barrilde tnico eram colocados no topo da carruagem. Meu pai estava l para se despedir, e Mandy se manteve distncia. - Como voc tem poucas coisas - Hattie disse. Dama Olga concordou. - Ella no est provida de acordo com sua posio, Sir Peter. Minhas meninas tm um total deoito bas.- Hattie tem cinco bas e meio, me. E eu tenho apenas... . Olive parou de falar para contar nosdedos. - Menos. Eu tenho menos, e isto no justo. Meu pai interrompeu delicadamente:- muito gentil da sua parte levar Ella com a senhora, dama Olga. S espero que ela no aincomode. - Oh, ela no me incomodar, Sir P. Eu no irei. Meu pai se contraiu com a abreviao. Dama Olga prosseguiu: - Com um cocheiro e dois lacaios, elas estaro a salvo de tudo, com exceo dos ogros. E,contra os ogros, eu no poderia oferecer muita proteo. Alm disso, elas se divertiro mais sem avelha me. Depois de uma pausa, meu pai falou: - Velha no. Velha nunca, senhora. - Ele virou-se para mim. - Eu lhe desejo uma viagemconfortvel, filha. - Depois, meu pai beijou meu rosto. - Sentirei saudades. Mentiroso.Um dos lacaios abriu a porta da carruagem. Hattie e Olive entraram. Corri para Mandy. Nopoderia partir sem um ltimo abrao. 34. PDL Projeto Democratizao da Leitura - Faa todas elas desaparecerem. Por favor - sussurrei. - Oh, Ella, querida. Voc ficar bem. - Mandy abraou-me bem forte. - Eleanor, suas amigas esto esperando - meu pai chamou. Subi na carruagem, ajeitei minhapequena valise num canto, e comeamos a andar. Buscando consolo, toquei em meu peito ondeestava escondido o colar de minha me. Se ela estivesse viva, eu no estaria indo embora de casaem companhia daquelas criaturas. - Eu nunca abraaria uma cozinheira - Hattie estremeceu. - Nunca - eu concordei. - Qual cozinheira permitiria? Hattie retornou a um assunto anterior. - Com to poucos pertences, as outras meninas mal sabero se voc uma criada ou uma dens. - Por que seu vestido est embolado na frente? - perguntou Olive. - um colar? Por que us-lo debaixo de suas roupas? - questionou Hattie. - feio? - Olive perguntou. - E por isso que voc o esconde? - No feio. - Mostre-o para ns. Olivie e eu queremos muito v-lo. Uma ordem. Eu mostrei o colar. Aqui no haveria problema. No havia ladres para roub-lo. - Ooooh - disse Olive. - mais bonito que a melhor das correntes de mame.- Ningum iria pensar que voc uma criada usando este colar. muito fino. Embora sejamuito longo para voc - Hattie dedilhou os cordes de prata. Olive, veja como so claras asprolas. Os dedos de Olive juntaram-se aos de Hattie. - Larguem! - eu sa do alcance delas. - Ns no iramos danific-lo. Posso experimentar? Minha me deixa que eu experimente seuscolares e eu nunca os danifiquei. - No, no pode. - Ah, deixe-me experimentar. Ele uma preciosidade. Uma beleza. Uma ordem. - Eu tenho que deixar? - perguntei. Saiu sem querer. Deveria ter engolido a minha lngua. Os olhos de Hattie brilharam. - Sim, voc tem. Entregue-o a mim. - S por um minuto - falei, abrindo o colar. Eu no hesitei. Elas no deveriam me ver lutandocontra o feitio. - Feche o colar no meu pescoo... Eu fechei. - ...Olive. 35. PDL Projeto Democratizao da LeituraA ordem havia sido para sua irm.- Obrigada, minha querida - Hattie recostou-se no assento. - Eu nasci para usar jias comoesta.- Deixe-me experiment-lo, Ella - disse Olive.- Quando voc for mais velha - Hattie respondeu.Mas eu tinha que obedecer. Tentei desesperadamente ignorar a ordem de Olive, mas todos osmeus distrbios comearam: estmago revolvendo, tmporas latejando, falta de ar.- Deixe que ela experimente - eu disse com os dentes trincados.- Est vendo - falou Olive. - Ella disse que eu posso.- Sei o que o melhor para voc, Olive. Voc e Ella so muito jovens...Atirei-me em cima dela e abri o colar antes que ela tivesse tempo de me parar.- No d o colar a ela - Hattie falou. - Devolva-o a mim. Eu devolvi. - Me d o colar, Ella - disse Olive, sua voz aumentando de volume. - No seja to sovina,Hattie. Arranquei o colar de Hattie e o passei para Olive. Hattie ficou me observando. Eu pude notarque ela estava comeando a perceber o que tinha acontecido. - Minha me usou este colar no casamento dela - falei, esperando distrair seus pensamentos. -E a me dela...- Voc sempre to obediente, Ella? Devolva o colar para mim.- No deixarei - disse Olive. - Sim, voc vai deixar, ou voc no vai jantar esta noite. Peguei o colar de Olive. Hattie ocolocou em seu pescoo e deu uns tapinhas nele, satisfeita.- Ella, voc deveria me dar o colar. Ele seria um smbolo de nossa amizade.- Ns no somos amigas.- Sim, ns somos. Eu sou fiel a voc. Olive tambm gosta de voc, no gosta Olive?Olive concordou solenemente. - Acredito que voc o dar a mim se eu disser que voc deve me dar. Faa isso, Ella, pelo bemde nossa amizade. Voc deve me dar o colar.No, eu no daria. Hattie no poderia ficar com ele.- Voc pode ficar com ele - as palavras escapuliram de mim. - Obrigada. Que amiga generosa ns temos, Olive. - Hattie mudou de assunto. - Os criadosestavam muito desatentos quando limparam a carruagem. Essa bola de poeira uma desgraa.No deveramos seguir nesta sujeira. Pegue-a, Ella.Uma ordem que gostei. Peguei a poeira e esfreguei no rosto dela. 36. PDL Projeto Democratizao da Leitura- Essa sujeira digna de voc - disse. Porm, minha satisfao durou pouco. 37. PDL Projeto Democratizao da LeituraCAPTULO OITOHattie no sabia sobre Lucinda e o feitio, mas percebeu que eu sempre tinha que obedecers suas ordens. Depois de eu ter esfregado poeira em seu rosto, tudo que ela fez foi sorrir.Seu sorriso significava que a poeira pesava pouco em comparao ao seu poder.Afastei-me para o canto da carruagem e fiquei olhando pela janela. Hattie no havia ordenado que eu no pegasse o colar de volta. O que aconteceria se euretirasse o colar de sua cabea? Ou, se o arrancasse de seu pescoo? Seria melhor ele quebrar doque pertencer a ela.Eu tentei. Disse para os meus braos se moverem, disse para minhas mos o pegarem. Mas ofeitio no me permitiu. Se outra pessoa tivesse me mandado peg-lo de volta, eu teria comopegar. Mas no podia, eu mesma, resolver. Ento, decidi olhar para o colar, para me acostumar aesta viso. Enquanto eu olhava, Hattie acariciou o colar, regozijando-se.Em poucos minutos, seus olhos fecharam. A boca se abriu, e ela comeou a roncar.Olive cruzou a carruagem para sentar-se junto a mim.- Eu tambm quero um presente para mostrar que somos amigas - disse.- Por que, ento, voc no me d um presente? Os sulcos em sua testa se aprofundaram.- No. Voc que me d.Uma ordem.- O que voc gostaria? - perguntei.- Quero dinheiro. Me d dinheiro. Como havia prometido, meu pai me deu uma bolsa de KJs de prata. Eu procurei em minhavalise e retirei uma moeda.- Aqui est. Agora somos amigas.Olive cuspiu na moeda e a esfregou para faz-la brilhar. - Ns somos amigas - ela concordou. Olive voltou para seu assento e aproximou a moeda bemperto dos olhos para examin-la. Olhei para Hattie, que roncava. Provavelmente estaria sonhando com maneiras de ficar medando ordens. Olhei para Olive, e ela estava deslizando a moeda sobre sua testa e seu nariz.Comecei a ansiar pela escola de aperfeioamento social. Pelo menos, l, elas no seriam minhanicas companhias. Em poucos minutos, Olive juntou-se a Hattie no sono. Quando me certifiquei de que as duasestavam dormindo profundamente, arrisquei-me a tirar de minha valise o outro presente de 38. PDL Projeto Democratizao da LeituraMandy, o livro de contos de fadas. Virei-me de costas para elas, procurando esconder o livro eaproveitar a luz que vinha da janela da carruagem. Quando abri o livro, em vez de um conto de fadas, encontrei uma ilustrao de Mandy! Estavacortando um nabo em cubinhos. Prximo ao nabo, estava o frango que eu a tinha visto depenarnaquela manh. Ela estava chorando. Eu desconfiara que ela estivesse tentando segurar suaslgrimas quando ela me abraou.As pginas ficaram borradas, porque meus olhos se encheram de lgrimas. Mas me recusei achorar diante de Hattie e Olive, mesmo com elas dormindo.Se Mandy estivesse na carruagem comigo, ela teria me abraado e eu poderia ter chorado oquanto quisesse. Ela teria acariciado as minhas costas e teria me dito...No. Estes pensamentos me fariam chorar. Se Mandy estivesse aqui, ela me diria porquetransformar Hattie num coelho seria uma magia grande e ruim. E eu, mais uma vez, me pergun-taria para que servem as fadas. Isso me ajudou. Chequei novamente, para certificar-me de que as duas ainda estavamdormindo; ento, examinei a pgina seguinte. Ela mostrava um quarto, que provavelmente era nocastelo do rei Jerrold, porque Char estava l e a coroa de Kyrria estava pintada na parede acima deuma tapearia. Char estava falando com trs dos soldados que estavam de guarda vigiando aqueleogro no jardim zoolgico. Fiquei intrigada a respeito do significado desta ilustrao. Talvez seguisse uma explicao.Virei a pgina e encontrei mais duas ilustraes, nenhuma delas de Char e dos soldados. No verso da pgina, havia um mapa de Frell. L estava a nossa manso, com a seguintelegenda, Sir Peter de Frell. Meus dedos traaram a rota para o antigo castelo e depois para o jar-dim zoolgico. Havia a estrada ao sul de Frell, a estrada que est-vamos agora, bem distante doslimites do mapa, e bem distante da manso de Sir Peter de Frell. A ilustrao direita, mostrava a carruagem de meu pai, seguida por trs carros puxados pormulas, carregados com mercadorias para serem comercializadas. Meu pai estava sentado no altoda carruagem com o condutor, que utilizava seu chicote. Meu pai estava inclinado em direo aovento e sorria. O que o livro me mostraria a seguir? Desta vez, um conto de fadas de verdade, O sapateiro e os elfos. Nesta verso, porm, cada elfotinha uma personalidade definida, e vim a conhec-las melhor do que a do sapateiro. E, finalmente,compreendi porque os elfos desapareciam depois que o sapateiro fazia as roupas para eles. Oselfos iam ajudar uma giganta a encapar de um enxame de mosquitos, pequenos demais para queela pudesse v-los. Embora os elfos deixassem um bilhete de agradecimento para o sapateiro, elecolocava sua caneca de caf em cima, e o bilhete ficava colado no fundo mido da caneca. A estria fazia sentido agora. 39. PDL Projeto Democratizao da Leitura- Seu livro deve ser fascinante. Deixe-me v-lo - disse Hattie. Dei um pulo. Se tirasse isso de mim tambm, eu a mataria. O livro ficou mais pesado quando oentreguei a ela. Seus olhos se arregalavam, enquanto ela lia.- Voc gosta disso? O ciclo de vida do carrapato do centauro?- ela virou as pginas. - A minerao de prata dos gnomos em terrenos arriscados? - No interessante? - falei, enquanto meu pnico diminua. - Voc pode l-lo um pouco. Sens vamos ser amigas, ns deveramos ter os mesmos interesses.- Voc pode compartilhar dos meus interesses, minha querida. Ela me devolveu o livro.Nossa viagem ensinou-me o que esperar de Hattie. Na hospedaria, em nossa primeira noite, ela me informou que eu havia ocupado nacarruagem o espao que deveria ter sido ocupado por sua criada.- Mas ns no sofreremos, porque voc ficar no lugar dela.- Ela inclinou a cabea para o lado. - No, voc quase nobre. Seria um insulto fazer de vocuma simples criada. Voc ser minha camareira, e dividirei voc com a minha irm, de vez emquando. Ollie, tem alguma coisa que Ella possa fazer para ajudar?- No! Eu sei me vestir e despir sozinha - respondeu Olive desafiadoramente.- Ningum disse que voc no sabe. - Hattie sentou-se na cama, que todas ns iramoscompartilhar. Ela levantou o p. -Ajoelhe-se e tire os meus sapatos, Ella. Meus dedos do p esto doendo. Sem tecer comentrios, eu os retirei. Meu nariz foi invadido pelo cheiro desagradvel de seusps. Levei os sapatos at a janela e os atirei para fora.Hattie bocejou.- Voc apenas criou uma tarefa extra para voc mesma. V l embaixo apanh-los.Olive correu para a janela. - Seus sapatos caram num balde de restos de comida! Tive que levar os sapatos fedorentosde volta para o nosso quarto, mas Hattie teve que us-los at que pudesse pegar outros em seuba. Depois disso, ela passou a pensar mais cuidadosamente em como dar as suas ordens.No desjejum, na manh seguinte, Hattie declarou que o mingau no estava comestvel.- No tome, Ella, vai te fazer mal. - Ela encheu sua colher com aveia. O vapor do mingau subiu da tigela diante de mim, e senti o aroma de canela. Mandy semprecolocava canela no mingau.- Por que voc est tomando, se faz mal? - Olive perguntou sua irm. - Estou com fome. - O seu parece estar bom. Estou tomando o meu mesmo estando ruim - sua lngua lambeu umgro de cereal no canto de sua boca - porque eu preciso me nutrir para assumir o comando de 40. PDL Projeto Democratizao da Leituranossa viagem. - Voc no est no coman... - comeou Olive. -A senhorita no gostou do mingau? - o estalajadeiro parecia preocupado. - O estmago de minha irm est embrulhado - disse Hattie. - Pode levar a tigela. - Eu no sou irm dela - eu disse, enquanto o estalajadeiro desaparecia entrando na cozinha.Hattie ria, enquanto raspava, com sua colher, a tigela vazia para pegar os ltimos vestgios domingau. O estalajadeiro voltou trazendo um prato com po preto grosso coberto por nozes e passas. - Talvez isso agrade o estmago da moa - falou. Tentei dar uma grande mordida no po, antes que uma senhora na outra mesa o chamasse. - Devolva, Ella. - Hattie partiu um pedao do po e o experimentou. - Est muito enriquecido. - Comida enriquecida boa para mim - disse Olive, avanando por cima da mesa. Entre elas, meu desjejum desapareceu em quatro mordidas.Aquele bocadinho de po, foi o ltimo alimento que ingeri durante nossa viagem de trs dias,com exceo do tnico. Hattie teria me privado dele tambm, porm, antes, ela o experimentou. Esaboreei sua expresso de nusea, quando o engoliu. 41. PDL Projeto Democratizao da Leitura CAPTULO NOVENo ltimo dia de nossa viagem a Jenn, a cidade onde ficava a escola de aperfeioamentosocial, passamos por terras de ricas fazendas. O dia estava nublado e quente, e eu estavacom tanto calor que quase no sentia fome. Hattie tinha energia para apenas um comando:aban-la. - Abane-me tambm - Olive falou. Ela tinha chegado concluso que se Hattie me dissessepara fazer alguma coisa, eu faria, e se ela me ordenasse fazer a mesma coisa, eu tambm faria.Hattie no havia explicado a ela como funcionava minha obedincia. Hattie no se preocupava emexplicar muitas coisas lerda Olive, e deve ter gostado de guardar consigo o delicioso segredo spara ela mesma. Meus braos doam. Meu estmago roncava. Eu olhei pela janela e vi um rebanho de carneirose desejei uma distrao que afastasse meus pensamentos de carneiros e salada de lentilha. Meudesejo foi atendido, instantaneamente, pois a carruagem disparou num louco galope.- Ogros! - gritou o cocheiro. Uma nuvem de poeira ocultou a estrada atrs de ns. Pude vislumbrar um bando de ogros,tentando se desvencilhar da poeira, e vindo em nossa perseguio.Mas, estvamos indo mais rpido do que eles. A nuvem de poeira foi se desfazendo.- Por que vocs correm de seus amigos? - um deles falou. Era a voz mais doce que j tinhaouvido. - Ns trazemos os presentes que o seu corao deseja. Riquezas, amor, vida eterna... Desejo do corao. Mame! Os ogros a trariam de volta da morte. Por que ns chorvamospelas coisas que mais queramos? - V devagar - Hattie ordenou, desnecessariamente. O cocheiro j havia puxado as rdeas doscavalos. Os ogros estavam a apenas poucos metros de ns. Intocados pela magia dos ogros, o rebanhode carneiros estava berrando e balindo seu medo. Rapidamente, o rudo deles encobriu as pala-vras melosas e o encanto se quebrou. Lembrei que os ogros no poderiam reviver a minha me. Oscavalos foram novamente chicoteados para galopar.Mas os ogros ultrapassariam os carneiros num minuto, e estaramos merc delesnovamente. Gritei para Hattie, Olive, para o cocheiro e para os lacaios:- Gritem bem alto para que vocs no possam ouvir os ogros.O cocheiro logo entendeu e juntou sua voz minha, gritando palavras que eu nunca tinhaouvido antes. Ento, Hattie comeou.- Me comam por ltimo! Me comam por ltimo! - berrava ela. 42. PDL Projeto Democratizao da Leitura Mas foi Olive quem nos salvou. Ela deu um rugido que eliminou qualquer pensamento. Nosei como conseguiu flego; seu som era infinito. O som continuou ao passarmos pelas casasafastadas de Jenn, enquanto os ogros desapareciam de nossa viso e eu me recobrava do susto.- Quieta, Olive - disse Hattie. - Ningum vai ser comido. Voc est me deixando com dor decabea. Mas Olive no se calou, at que o cocheiro parou a carruagem, entrou, e lhe deu um tapacerteiro no rosto. - Desculpe-me, senhorita - ele falou, e retirou-se rapidamente.A escola de aperfeioamento social ficava em uma casa de madeira comum. Exceto pelosenormes arbustos ornamentais, podados em forma de moas com saias longas, esta casa pareciater sido o lar de um comerciante no-muito-prspero. Eu tinha esperanas de que as pores do almoo fossem generosas. Quando chegamos, a porta se abriu e uma senhora ereta e de cabelos grisalhos caminhoutoda empinada em direo nossa carruagem. - Bem-vindas, senhoritas. - Ela se curvou na reverncia mais delicada que eu j havia visto.Ns a reverenciamos tambm. Ela apontou em minha direo. - Mas quem esta? Falei rapidamente, antes que Hattie pudesse explicar sobre mim de uma maneira que eu nogostasse de ser explicada. - Sou Ella, senhora. Meu pai Sir Peter de Frell. Ele escreveu-lhe uma carta. - De minha valise,retirei a carta de meu pai e a pequena bolsa que ele havia me confiado. Ela guardou a carta e a bolsinha (depois de pes-la em sua palma) no bolso de seu avental.- Que bela surpresa. Eu sou madame Edith, diretora de seu novo lar. Seja bem-vinda ao nossohumilde estabelecimento. -Madame Edith fez novamente reverncia. Eu queria que ela parasse com aquilo. Meu joelho direito estalava quando me abaixava. - Ns acabamos de almoar. L se foram as minhas pores generosas.- Estamos nos aprontando para nossos bordados. As jovens esto ansiosas para conhecervocs, e nunca cedo demais para comear a se aperfeioar socialmente. Ela nos conduziu a uma grande sala ensolarada. - Senhoritas ela anunciou aqui esto trs novas amigas. Uma sala repleta de moas selevantou, fez reverncia, e retornou aos seus assentos. Cada uma delas usava um vestido cor-de-rosa e uma fita amarela no cabelo. Meu vestido estava manchado e amarrotado da viagem, e meucabelo provavelmente estava solto e despenteado. 43. PDL Projeto Democratizao da Leitura- Voltem ao trabalho, senhoritas - disse madame Edith- - A mestra de costura ir ajudar asnovas alunas. Sentei-me numa cadeira perto da porta e encarei desafiadoramente aquela elegncia minhavolta. Encontrei os olhos de uma menina da minha idade. Ela sorriu hesitantemente. Talvez meuolhar tenha se abrandado, porque seu sorris^ cresceu e ela piscou para mim.A mestra de costura aproximou-se com uma agulha, uma variedade de linhas coloridas e umpano de linho branco redondo com um desenho de flores. Eu deveria seguir 0 contorno e costuraras flores com a linha. O tecido poderia, ento, ser usado para cobrir um travesseiro ou as costas deuma cadeira. Depois que a mestra de costura me explicou que deveria ser feito, deixou-me, presumindoque eu saberia como fazer. Mas eu nunca havia segurado uma agulha antes. Embora observasse asoutras meninas, no conseguia fazer os pontos. Lutei por uns quinze minutos, at que a mestra decostura correu para o meu lado. - Esta menina foi criada por ogros ou coisa pior! _ exclamou ela, puxando o tecido de minhasmos. - Segure delicadamente. Isto no uma lana. Tem que trazer a linha junto- - Colocou umalinha verde na agulha e a devolveu para mim. Segurei delicadamente, como me fora ordenado- Ela saiu do meu lado, e eu fiquei olhando estupidamente para minha tarefa. Ento, espetei aagulha no contorno da rosa. Minha cabea doa por falta de comida.- Voc precisa dar um n no final da linha e comear por baixo. - Quem falou foi a menina quetinha piscado para mim. Ela havia trazido sua cadeira para junto da minha. - E a mestra da costuravai ridicularizar voc, se voc bordar a rosa verde. Rosas tm que ser vermelhas ou rosas, ou amarelas, se voc for mais ousada.Um vestido rosa, parecido com o que ela usava, estava sobre seu colo. Ela curvou sua cabeasobre ele para dar um pequeno ponto. Seu cabelo escuro estava penteado com vrias tranas que se uniam e se entrelaavam numn, no alto de sua cabea. A pele tinha cor de canela, com tons de framboesa nas bochechas (nopodia evitar pensar em comida). Seus lbios, naturalmente curvados para cima, davam-lhe um aralegre e agradvel.Seu nome era Areida, e sua famlia vivia em Amonta, uma cidade logo depois da fronteira deAyortha. Ela falava com uma pronncia ayorthaiana, fechando os lbios depois da letra m epronunciando os ls como ys.- Abensa utyu anja ubensu. - Eu esperava que esta fosse a forma ayorthaiana para Prazer emconhec-la. Aprendera isso com um papagaio. Ela sorriu para mim em xtase. 44. PDL Projeto Democratizao da Leitura- Ubensu ockommo Ayortha?- S sei algumas palavras - confessei. Ela ficou tristemente desapontada.- Seria to bom ter algum para conversar na minha lngua.- Voc poderia me ensinar. - Sua pronncia boa - disse ela sem muita certeza. - A mestra de escrita ensina ayorthaianopara todas as meninas, mas nenhuma conseguiu realmente aprender.- Eu tenho jeito para lnguas. Ela comeou a me ensinar naquele mesmo instante. Uma vez ouvido, sempre lembrado, como acontece comigo com relao aos idiomas. No fim de uma hora, estava formando pequenasfrases. Areida ficou encantada.- Uryu ubensu evtame oyjento? - perguntei. (Voc gosta da escola de aperfeioamento social?)Ela meneou os ombros.- Voc no gosta? horrvel? - perguntei, revertendo para kyrriano. Uma sombra cobriu a costura, que eu negligenciara. A mestra de costura pegou minha capade almofada e anunciou dramaticamente: - Trs pontos em todo este tempo. Trs largos e desalinhados pontos. Como trs dentes numagengiva desdentada. V para o seu quarto e fique l at que seja hora de ir para a cama. No haverceia para voc esta noite. Meu estmago revirou to alto que toda a sala deve ter ouvido. Hattie deu um sorriso falsopara mim. Ela no teria conseguido planejar algo melhor.Eu no queria acrescentar mais nada a seu prazer.- No estou com fome - anunciei.- Ento voc ficar sem o desjejum tambm, pela sua impertinncia. 45. PDL Projeto Democratizao da Leitura CAPTULO DEZUma criada conduziu-me a um corredor cheio de portas enfileiradas. Cada porta era pintadade uma cor diferente, em tom pastel, e tinham uma placa afixada anunciando o nome doquarto. Passamos pelo Quarto Lima, pelo Quarto Margarida, pelo Quarto Opala, e paramosem frente ao Quarto Lavanda. A criada abriu a porta. Por um momento, esqueci minha fome. Estava numa nuvem de luz roxa. Alguns dos roxosestavam mais para o rosa claro, outros iam mais para tons de azul plido, mas no havia nenhumaoutra cor. As cortinas eram feitas de fitas, que ondulavam com a brisa criada pela porta fechando-seatrs de ns. Sob meus ps, havia um tapete fixo com desenho de uma imensa violeta. Num canto,um penico de barro, disfarado como repolho decorativo. As cinco camas estavam envoltas numtecido transparente. As cinco escrivaninhas eram pintadas em faixas onduladas de lavanda plidae lavanda ainda mais plida. Queria me jogar na cama e chorar por estar com tanta fome e por tudo mais, mas estas noeram camas em que uma pessoa pudesse se jogar. Uma cadeira roxa estava colocada perto de umadas duas janelas. Afundei-me na cadeira. Se eu no sucumbisse por inanio, ficaria por aqui por um longo perodo de tempo, commestras odiosas e com Hattie me dando ordens. Olhei longamente pela janela, fitando o jardim demadame Edith, at que a exausto e a fome produziram uma espcie de torpor em mim. Numinstante, adormeci.- Aqui, Ella. Voc pode comer isto. Um sussurro urgente se abateu sobre meu sonho como um faiso assado recheado decastanhas.Algum sacudiu meu ombro.- Acorde, Ella. Acorde.Uma ordem. Eu estava acordada.Areida empurrou um po nas minhas mos.- tudo que eu consegui. Coma antes que as outras entrem no quarto. Em duas engolidas comi o pozinho branco e macio, mais ar do que alimento. Porm, maisalimento do que eu tivera em dias.- Obrigada. Voc dorme aqui tambm? Ela fez que sim, com a cabea.- Onde?A porta se abriu e trs meninas entraram. 46. PDL Projeto Democratizao da Leitura - Olhem s! Gente da mesma laia se atrai. - Quem falava era a aluna mais alta da escola. Elafalou os ls como ys, debochando do sotaque de Areida.- Ecete iffibensi asura edanse ectame ovyento? - perguntei a Areida. ( assim que elas secomportam na escola de aperfeioamento social?)- Otemso iffibensi asura ippiri. (s vezes, elas so bem piores.)- Voc de Ayortha tambm? - a garota alta perguntou. - No, mas Areida est me ensinando o belo idioma ayor-thaiano. Em ayorthaiano, voc umabwi unju.Isto apenas significava garota alta. Eu no conhecia nenhum insulto em ayorthaiano. Porm,como Areida riu, isso fez com que parecesse o pior dos eptetos.Ri tambm. Areida caiu por cima de mim, e juntas sacudimos a cadeira roxa.Madame Edith, a diretora, entrou apressadamente. Minhas jovens! O que estou vendo?Areida levantou-se num pulo, mas eu permaneci sentada. No conseguia parar de rir. Minhas cadeiras no foram feitas para agentar este abuso. E, duas senhoritas no devemsentar juntas no mesmo assento. Esto me ouvindo? Ella! Pare com esta risada inadequada.Parei no meio da risada. Assim est melhor. Considerando que este seu primeiro dia aqui, desculparei seucomportamento, acreditando que voc se comportar melhor amanh. Madame Edith virou-separa as outras meninas. - Vistam suas camisolas, senhoritas. A dimenso do sono est chegando.Eu e Areida trocamos olhares. Era muito bom ter uma amiga. Todas as outras meninas alcanaram a dimenso do sono, mas eu perman