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PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL OUTUBRO 2014 ISSN 2183-1734 5 Norman McLaren

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Revista Enquadramento, do Cineclube de Guimarães

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PUBLICAÇÃO

TRIMESTRAL

OUTUBRO 2014

ISSN 2183-1734

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Gostaria apenas de ser lembrado por ter feito alguns filmes que

tocaram profundamente as pessoas ou que as derreteram ou

comoveram de alguma forma, ou que as tenham excitado.

Norman McLaren

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O Poeta da Animação

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Norman McLaren (1914 – 1987), realizador e animador nascido na Escócia, é uma referência mundial quando se fala em cinema de animação e em cinema experi-mental.

A vida deste artista visual caracteriza-se essencialmen-te pela sua permanente curiosidade e procura de novas formas de fazer, ver e sentir o cinema de animação. Nes-se caminho, foi explorando novas técnicas de produção e estudando novas formas de expressão.

Ao longo da sua carreira, desenhou, riscou e pintou imagens directamente sobre o negativo; combinou fo-tografia com diversas exposições para revelar as for-mas criadas pelos movimentos dos bailarinos em Pas de Deux (1968); moveu atores e objectos como marionetas em Neighbours (1952); e demonstrou a estrutura de for-mas musicais em Canon (1964).

O seu trabalho alargou os limites do audiovisual e da percepção sensorial, criando um novo conceito estético no cinema de animação, ao acrescentar à atenção dos es-pectadores novas fontes de interesse e de sentimentos.

ESCÓCIAA Descoberta do Cinema

Ainda na década de 30, quando era aluno de design de interiores na Glasglow School of Art, McLaren desenvolveu um interesse particular pela pintura, mas logo sentiu que faltava algo nos seus desenhos e nas suas pinturas. Foi num cineclube, com a visua-lização dos filmes dos cineastas soviéticos Vlevelod Pudovkin (1893-1953) e de Sergei Eisenstein (1898-1948), com os quais ficou fascinado, que MacLaren descobriu o que faltava aos seus desenhos: o movi-mento. Estes filmes promoveram uma mudança ra-dical na sua forma de conceber o cinema: já não uma mera forma de entretenimento, mas sobretudo uma forma de expressão.

Em 1935, Norman McLaren fez uma viagem à União So-viética e teve o primeiro contacto com uma linguagem artística própria nas artes plásticas, sem qualquer refe-rência à realidade, a Arte Abstracta.

O Poeta da Animação

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Nessa mesma época, McLaren conheceu, também, a obra abstracta do animador alemão Oscar Fischinger (1900-1967), que se destacava na arte da animação por associar imagens abstractas à sonoridade. Com esse pintor e cineasta, McLaren percebeu que descobrira fi-nalmente um meio para traduzir as suas abstracções: as imagens que criava na sua mente enquanto ouvia mú-sica poderiam passar a abstracções visíveis. Todas es-tas revelações despertaram McLaren para o movimento das imagens.

A falta de uma máquina de filmar levou McLaren a ex-perimentar trabalhar directamente sobre a película. Re-colhia restos de filmes em laboratórios e mergulhava-os em água na banheira para os “apagar”, após o que de-senhava e pintava directamente neles, frame por frame, exibindo-os, depois, numa moviola.

A descoberta do cinema como forma de expressão levou--o a juntar-se a um recém-formado clube de cinema na sua escola, do qual, rapidamente, se tornou o grande im-pulsionador, pelo seu talento natural e pela sua energia.

Fascinado pela máquina de filmar, McLaren começa a registar de uma forma obsessiva todas as actividades do dia-a-dia na escola. No seu primeiro filme, Seven Til Five

(1933), que retrata um dia inteiro dos estudantes da sua escola, a influência do formalismo russo e a forma de filmar e montar de Eisenstein é bem visível. Este filme é marcado pelo seu carácter humanista, num diálogo constante entre filmagens dos vários cursos em vários momentos do dia, pontualmente marcados pelo relógio e pelo toque de entrada e saída. A experimentação na montagem do filme, numa dialéctica constante, confere--lhe um grande dinamismo e ritmo, marcando de forma positiva a sua estreia no mundo do cinema.

Num dos seus filmes seguintes, Camera Makes Whoopee (1935), McLaren retomou o tema explorado em Seven Til Five, mas de uma forma mais elaborada e complexa. A compra de uma câmara Kodak foi decisiva neste filme, pois permitiu captar planos mais complexos. Para além disso, McLaren usou aqui, também, alguns efeitos de pixelização, como a sobreposição e animação, mostran-do a encenação de uma dança e, ao mesmo tempo, ex-plorando as sensações estéticas transmitidas.

Envolvido no Partido Comunista Britânico, numa época quente, em vésperas da II Guerra Mundial, foi com o seu filme idealista e antiguerra Hell Unlimited (1936, co-realizado com a escultora Helen Biggar), que misturou uma série de materiais, desde filmagens, desenhos ani-

Imagens do filme Love on the Wing, 1939.

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mados e objectos animados, que McLaren começou a ser conhecido fora do meio do cinema amador.

Foi nesta mesma altura que Norman McLaren começou com as suas tentativas pioneiras de explorar, fazendo filmes experimentais pintados à mão como o Polychrome Phantasy (1935) e Colour Cocktail (1935), realizados sem câmara, apenas pintando directamente sobre o negativo ou raspando a sua emulsão. Muitos desses filmes foram inscritos no “Scottish Amateur Film Festival”, de cujo júri fazia parte o prestigiado documentarista britânico John Grierson, que reconheceu de imediato o grande talento de Norman McLaren, atribuindo o prémio de Melhor Filme a Colour Cocktail. Acreditando no talen-to de McLaren, John Grierson contratou-o em seguida para o “British General Post Office Film Unit” (GPO), em Londres, onde lhe iria ensinar cinema e técnica cine-matográfica.

LONDRESA Aprendizagem do CinemaDurante este período em Londres, McLaren conseguiu um equilíbrio subtil entre a liberdade expressiva e a disciplina ar-

tística. Nos 3 anos que se manteve em Londres (1937-1939), McLaren realizou diversos documentários e simples filmes educativos, aprendendo, deste modo, a arte de fazer filmes.

Em 1936, no início da Guerra Civil Espanhola, viajou para Espanha para trabalhar como operador de câmara. Para além de trabalhar na produção de jornais de actualida-des, McLaren participou no filme do cineasta inglês Ivor Montagu, La Defenza de Madrid (1936), uma curta-metra-gem que documenta a resistência da República na capital espanhola. Essa experiência marcaria significativamente a sua consciência social, tornando-o um pacifista.

Da sua estadia em Londres, o filme mais significativo na sua carreira, foi Love on the Wing (1939), uma curta--metragem de animação que promovia o uso do correio aéreo. Um filme desenhado frame a frame, directamen-te na película, com caneta e tinta, que reflecte algumas das suas descobertas feitas em Londres: a técnica de metamorfose presente nos filmes de animação do fran-cês Émile Cohl (1857-1938) e o surrealismo. Este filme é uma animação dos pensamentos subconscientes de um jovem artista, traduzidos por uma série de formas que se alteram sobre um plano de fundo fixo, multico-lor, que se assemelha a um quadro do pintor surrealista Salvador Dalí.

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NOVA IORQUEA TransiçãoNos finais de 1939, com o início da Segunda Guerra Mundial, Norman McLaren, como tantos outros artis-tas, mudou-se para Nova Iorque, encarando grandes dificuldades económicas, apesar de ter sido um período de intensa produtividade artística, onde realizou diver-sas curtas-metragens de cinema de animação feitas à mão.

Esta produtividade deveu-se, em parte, ao facto de a atenta curadora do Museum of Non-Objective Art (mais tarde, Guggenheim), a Baronesa Von Rebay, ter decidi-do subsidiar alguns dos seus projetos. É então que surge Scherzo (1939), Stars and Stripes (1939), Dots (1940) e Loops (1940), entre muitos outros.

Nalguns destes filmes, também o som foi desenhado à mão directamente sobre a película. McLaren já ti-nha experimentado esta técnica quando trabalhava na GPO. Ao desenhar na película, por acidente, fez marcas com caneta e tinta na área sonora do filme, descobrindo que, assim, também poderia fazer mú-sica. Em Scherzo, McLaren desenha bolas, traços e tri-ângulos na faixa sonora que resultam no final numa mescla rítmica de sons “estranhos”. A esta forma de fazer música, McLaren daria o nome de “Som Ani-mado”, um dos primeiros métodos de fazer “Música Electrónica”.

CANADÁA Expressão PessoalEm 1941, o escocês John Grierson mudou-se para o Canadá para organizar o recém-fundado Natio-nal Film Board of Canada (NFB) e chamou Norman McLaren para se juntar a ele nessa nova etapa.

Nos seus primeiros tempos em Montreal, McLaren pro-duziu vários filmes relacionados com o tema da guerra: V for Victory (1941), Five for Four (1942), Hen Hop (1942), Dollar Dance (1943) e Keep your Mouth Shut (1944). No entanto, essas produções não o afastaram das suas ex-perimentações do tempo e das formas no cinema de ani-mação. Esta grande motivação levou-o a fundar o De-partamento de Animação do NFB. McLaren, enquanto director do departamento de animação, defendia o pon-to de vista da animação como uma arte de expressão pessoal, o que acabou por ter uma enorme influência sobre a animação, de uma forma universal. McLaren foi incansável na sua procura pela inovação constante. Aju-dou e estimulou colegas e alunos a valorizarem as ferra-mentas e técnicas que os próprios criavam, defendendo sempre uma plena liberdade criativa.

Neste período, McLaren usou pela primeira vez a téc-nica “chiaroscuro”, no seu filme Là-haut sur ces mon-tagens (1944), numa paisagem desenhada a pastel, sob a influência do realizador russo Alexander Alexeie-ff (1901-1982), ao visualizar o filme Une nuit sur le mont

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chauve (1933). Na mesma altura, a pedido de Grierson, McLaren realizava alguns filmes baseados em músicas folclóricas canadianas. Num desses filmes, C’est l’aviron (1944), o cineasta inventa a técnica “travelling (overlap-ping) zoom”, onde o espectador tem a sensação de estar a viajar num barco sobre um rio. Esta técnica foi depois utilizada por muitos realizadores, como Stanley Kubri-ck na sequência “Stargate” de 2001 Odisseia no Espaço (1968).

Após o final da Segunda Guerra Mundial, McLaren lançou-se em projectos pessoais, retomando as suas ex-periências com película transparente como uma tela de pintura, ignorando muitas vezes o intervalo entre fra-mes. Estas experiências foram muitas vezes inspiradas pela música, como no caso de Fiddle-de-dee (1947), ins-pirado na música de violino ou como numa das suas obras-primas, Begone Dull Care (1949), uma explosão de cor acompanhando o piano jazz de Oscar Peterson (1925-2007).

Em 1949, McLaren, numa parceria com a UNESCO, via-ja até à China com a finalidade de levar a técnica do desenho animado a artistas chineses e aí testemunhou a mudança revolucionária do regime comunista.

Após o seu regresso da China, McLaren realiza o seu filme mais célebre, Neighbours (1953), que lhe valeria um Óscar em 1953. Este filme reflecte as suas experi-ências na China e a sua posição relativamente à Guer-ra da Coreia: um filme antiguerra, em que dois ho-mens lutam por uma flor que nasce no terreno comum a ambos. Aqui o conceito de posse e de propriedade materializam-se na cerca que separa os personagens, levando a civilização à violência e à morte. A técni-ca utilizada neste filme foi a “pixelização”, a imagem dos homens foi trabalhada frame a frame como perso-nagens de cinema animado.

É nesta época que colabora com Evelyn Lambart (1914-1999), sua assistente há já bastante tempo, com

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quem cria em conjunto os seus filmes minimais, de puro movimento, sem qualquer referência figurativa, apenas com elementos geométricos e ritmo: Lines Ver-tical (1960), Lines Horizontal (1960) e Mosaic (1965).

Em todas estas obras, a música tem um lugar de des-taque paralelo ao da imagem. A música provoca a divisão e a multiplicação das formas abstractas que compõem as imagens, bem como as variações dos movimentos, das cores, das luzes e dos sons. Nestas obras, McLaren contou com nomes da música como Blackburn e Pete Seeger ou criando ele próprio, com a gravação na película.

Marcando a importância dada por McLaren à música, o cineasta criaria o filme semi-didáctico Canon (1964), juntamente com Grant Munro. Mas é com Synchromy (1971), que McLaren atinge o expoente máximo das suas experiências com o som. Fotografa os padrões cria-dos na faixa do som e utiliza-os para a imagem, tendo como resultado que o que se vê é o que se ouve.

Durante a década de 70, a parceria com Munro man-teve-se, resultando em 5 filmes didácticos sobre os princípios da “Animation Motion”.

Desde os finais da década de 60 até à sua reforma em 1983, McLaren fez três filmes que demonstravam a sua grande atracção pela dança: Pas de deux (1968), Ballet Adagio (1972) e Narciso (1983). Utilizando a câ-mara lenta, McLaren vai em busca do corpo e da leve-za do movimento, em sintonia com os meios técnicos, combinados com o som. Estas experiências com vá-rias linguagens resultam numa obra estética repleta de sensações para vários sentidos.

Norman McLaren é considerado “o poeta da anima-ção”, pela forma como se relacionou com a imagem, com o movimento, com a cor e com o som, exploran-do-os de uma forma explosiva para os sentidos. Além de fazer filmes, Norman McLaren criou novas formas de fazer filmes.

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A Imagem do Movimento

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A Imagem do Movimento“A animação não é a arte dos desenhos que se movem, mas a

arte dos movimentos que são desenhados.

O que acontece entre cada fotograma é muito mais impor-tante que o que existe em cada um deles.”

Norman McLaren

Um elemento essencial na obra de Norman McLaren é a importância dada ao movimento. O cinema, na sua géne-se, pressupõe “imagem em movimento”, porém McLa-ren dá uma especial atenção a como esse movimento é desenhado. Esta atenção é, em grande parte, influência do formalismo de Eisentein, no qual a montagem de-termina a organização do material filmado de modo a construir o objecto do filme, e tem um papel fundamen-tal na construção do pensamento, através do conflito das imagens ou dos planos: a montagem das atracções.Também a inovação dos movimentos vanguardistas do início do Séc. XX foi uma grande influência na obra de

McLaren: a simplificação do volume dos objectos e da geometrização das formas e, particularmente, o abstrac-cionismo, defendendo que a obra de arte será tanto mais significativa, quanto maior for a sua autonomia em re-lação ao criador, ou seja, quanto maior for a diversidade de leituras e sensações obtidas pelos espectadores. To-das estas questões da percepção das formas nas artes vi-suais foram uma grande influência na obra de McLaren. Na sua ida à União Soviética, McLaren acompanha o afastamento do realismo na pintura, até ao Suprematis-mo Russo de Malevich, que explorou os limites da abs-tracção e do nada, em particular na sua obra Quadrado

Imagens do filme Hen Hop, 1942.

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Preto sobre Fundo Branco (1913). A este respeito, McLaren faz a seguinte observação: “Curiosamente… os russos evo-luíam logicamente na galeria, partindo de uma pintura realis-ta para um realismo simplificado, passando pelo semi-abstrac-cionismo, para o completamente abstracto e, daí, para cada vez menos e mais esparsas formas geométricas. E mesmo no final da galeria, havia apenas uma tela completamente preta.”Pouco antes de começar a fazer filmes, McLaren teve também contacto com a pintura surrealista e não negava a grande influência de Yves Tanguy na forma como li-dava com as formas abstractas e a noção de espaço nas suas pinturas. A ideia do subconsciente do surrealismo, esteve presente em todo o trabalho de McLaren.“Surrealismo significa cortar o controlo consciente do que está a acontecer. Como eu nos primeiros trabalhos procurava seguir o princípio da improvisação, isto encaixava-se na ideia do surrealismo. Deixar que o subconsciente lhe diga o que a imagem vai fazer a seguir. Conhecer o surrealismo e as pin-turas surrealistas, libertou-me para fazer filmes como Love on the Wing.” contou McLaren, a determinada altura.

McLaren pretendia, assim, chegar ao subconsciente do es-pectador, ele não pretendia que o espectador apenas visse

o movimento, mas que também sentisse o movimento. A importância dada ao movimento e à “sensação” de movimento é aqui traduzida nas suas próprias pala-vras, num discurso de homenagem a Georges Méliès:

[…] é impossível ter um filme em que os elementos móveis foram retirados e somente os elementos básicos permanecem. Tem de haver movimento nalgum lugar, de alguma maneira. Se o que estiver em frente da câmara não se mexe, então deve-se mexer a câmara, isso, normalmente, ocorrerá por meio de movimentos muito semelhantes aos do globo ocular e da mente, quando confrontados com material está-tico; ou o filme dissolver-se-á e passará para outras cenas estáticas, um processo muito diferente daquilo que geralmente experimentamos visualmente no mundo à nossa volta, mas é notoriamente semelhante aos processos mentais em que deixamos os pensamentos vaguearem ou, subitamente, saltar para outros pensamentos. Noutras palavras, é o elemento móvel das visualizações que conta; é a movimentação que fala connosco, e não a imagem […]

Para a criação do seu filme Hen Hop (1942), McLaren passou dias a observar os movimentos das galinhas e

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a desenhá-los, não para reproduzir de uma forma fiel o seu movimento, mas para captar o que o observador re-conhece como sendo o movimento delas. McLaren não tenta, assim, imitar o movimento real, mas sim analisar as sensações do movimento.McLaren manipula o movimento com a manipulação do tempo, considerando que “[...] a essência da animação é conhecer a duração ideal de cada movimento: esse é o segre-do do bom animador. Ele deve sentir quando se deve mudar a duração ou aceleração de cada movimento, isso deve estar no seu sangue![...]”

A paixão de Norman McLaren pelo movimento levou-o também ao mundo da dança. Alguns testemunhos de amigos revelam que ele assistia a muitos espectáculos de ballet e que adoraria ter sido bailarino. Muitos dos filmes de McLaren parecem danças frenéticas cheias de formas abstractas; noutros, existem referências mais concretas, como as danças de várias criaturas (galinhas, melros e outros pássaros). Além, claro, dos seus três últimos filmes, em que a dança é o único ac-tor. Nestes, o movimento provém do corpo dos baila-rinos e a energia sentida pelo espectador é semelhante

à de estar a assistir ao espectáculo de bailado ao vivo.Em Pas de Deux (1968), as imagens dos bailarinos sobre-põem-se e multiplicam-se em perfeita harmonia com a música, e o que se destaca é a complexidade dos movi-mentos executados pelos corpos, em câmara lenta. Com a ilusão da câmara lenta, McLaren cria um desfa-samento entre o som (este em tempo real) e a execução técnica. Essa combinação cria uma ilusão de movimen-to, transmitindo uma visão alterada da realidade.Nas palavras de Mclaren, numa entrevista a Gavin Millar, no documentátio O olho ouve e o ouvido vê, pode-mos ver a relação dele com a dança e o movimento:

“Qualquer filme para mim não passa de um tipo de dança, por isso a coisa mais importante num filme é o movimento. Não importa o que se move, sejam pessoas, objectos ou desenhos, nem importa como isso seja feito – mas no fim será sempre uma forma de dança.”

Para chegar ao movimento de todos os sentidos, McLa-ren, usou técnicas inovadoras, desde imagens contínu-as, a mudanças de formas, texturas, fundos, cores, luzes, som e, claro, do próprio tempo.

Imagens do filme Pas de Deux, 1968.

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A Imagem do Som

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A Imagem do Som

Ao mesmo tempo que o cinema ganhou a sua “voz”, conquistou também uma nova visão e tornou-se mais realista ao associar o som em sincronia com a imagem. Porém, uma série de cineastas romperam com o cinema como uma “cópia do real”, nomeadamente com a no-ção de realismo defendida por André Bazin, um cinema que revelasse a realidade, que desvalorizasse qualquer interpretação ou juízo crítico por parte do realizador. Esses cineastas tentaram dar ao cinema autonomia para ter a sua originalidade e criatividade, optando por utilizar formas puras e abstractas e explorando efeitos ópticos e sonoros, em vez de uma narrativa real. Um novo cinema e uma grande mudança teórica e estética. Gille Deleuze apresentou-nos este novo cinema como “Puro” e muitos artistas adoptaram esta visão.

O trabalho de McLaren descendente directamente dessa ruptura com o realismo no cinema, tendo sido feito em diversos sentidos. Após se ter apaixonado pela imagem animada, pelas possibilidades de transformação dessas imagens e pela manipulação do seu movimento através da manipulação do tempo, McLaren reconheceu a im-portância do som para essas imagens, nomeadamente para marcar e acentuar a acção. A sua abstracção das formas em movimento, unidas à representação do som, levou-o ao ponto de imagem e som deixarem de ter uma hierarquia e passarem a ter um protagonismo se-melhante no filme.

Esta mudança já se tinha dado também noutras artes, como por exemplo na pintura, que adoptou as formas puras para representar ideias abstractas como a música. Esta busca da harmonia entre o ritmo das formas visu-ais e as formas musicais, através da abstracção, com o fim de obter uma obra com um cruzamento de sensa-ções (obras sinestéticas), era visível em muitos artistas. Um bom exemplo dessa busca de sistemas visuais para representar o tempo e a música é o trabalho do artista russo Wassily Kandinsky (1866-1944), que considerava a música como a arte liderante por ser a mais abstracta e a que não pretendia imitar a realidade.

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McLaren foi também um apaixonado pela abstracção e pela música (especialmente o Jazz). A sua insatisfação com as limitações técnicas, que o afastavam muitas vezes do seu objectivo criativo, foi ultrapassada no momento em que decidiu começar a trabalhar directamente sobre a película. Esse trabalho directo dava-lhe a possibilidade de manipular simultaneamente o som e a imagem. Também a opção de, no seu processo criativo, não ter a necessidade da existência de uma narrativa, dava-lhe a liberdade de jogar com uma linguagem simples, apenas com elementos básicos: formas, cores, sons e movimento. McLaren era aberto a soluções po-éticas, resultantes de erros e imprevistos, deixando muitas vezes para trás a intenção inicial do seu projecto.

No filme Canon (1964), McLaren considerou o som como um ponto de partida para produzir a imagem com um vi-sual equivalente à estrutura musical. O filme inicia-se com um som referente a cada personagem, a mesma melodia, num tom diferente e desfasada no tempo, que passa pelo desenho animado e termina com vários personagens, mas apenas um mesmo actor. Também aqui, a imagem e o som são as duas metades da identidade de cada personagem.

Já no seu filme Begone Dull Care (1949), McLaren acompa-nhou o músico de jazz canadiano Oscar Peterson (1925-2007) na composição da banda sonora, dando instruções relativas aos ambientes que pretendia para cada fase do filme, e apenas definiu a imagem após ter terminado o som. Desta forma, McLaren pretendia que a imagem pudesse transmitir — pela cor, movimento e ritmo — a expressão da música. Aqui, McLaren inverteu a técnica usual na inserção da banda sonora, não na pós-produção, mas antes da definição da própria imagem. Esta banda sonora foi pintada ou desenhada com uma faca directa-mente sobre a película.

Em Synchromy (1971), McLaren conseguiu sincronizar imagem e som no verdadeiro sentido da palavra. Para isso, utilizou técnicas inovadoras de sincronização da imagem com o som ao manipular o registo óptico, ge-rando a ideia de animação sonora, criando formas geo-métricas que correspondiam ao efeito sonoro. A técnica consistia na criação de formas verticais e horizontais, fotografadas directamente das bandas sonoras, confe-rindo um papel relevante ao aspecto cromático: o di-namismo na utilização de cores vivas corresponde na perfeição à paleta sonora do filme.Em toda a sua obra, McLaren experimentou diversas técnicas, o que o levou a ser pioneiro em muitos cam-pos: começou por desenhar num filme para interpretar o movimento da música. Ele foi pioneiro no campo da música electrónica, ao ter experimentando sons sintéti-cos e ao ter criado bandas sonoras directamente nos fil-mes, nomeadamente a partir de três técnicas diferentes: pintou a faixa sonora na película transparente, riscou o som numa película emulsionada e fotografou o som no filme.A sua obra caracteriza-se muito pela sincronização de som e imagem, trabalhada de forma poética e ousada, aliando-se a músicos de estilos muito diferentes, de que são exemplo a música electrónica ou sintética, a música clássica, francesa, indiana, jazz e avant-garde.

Se o grande objectivo de McLaren era o de despertar emoções no espectador, esta paixão pelo som contri-buiu em grande escala para esse fim. O som é um meio privilegiado para levar o espectador a criar representa-ções, transportando-o para um processo activo da ima-ginação, movendo-o, comovendo-o e provocando-lhe emoções.

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“Se houver algo que se possa definir como cinema puro, podem estar certos de que McLaren foi um

dos seus maiores expoentes.”

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Edição:Cineclube de Guimarães

Coordenação Editorial:Paulo CunhaRui SilvaSamuel Silva

Texto:Alexandra Xavier

Design:Alexandra Xavier

ISSN:2183-1734

30 de Outubro de 2014

Ficha Técnica