Universidade Federal do Rio Grande do SulIFCH Instituto de Filosofia e Cincias HumanasDepartamento de Histria

A forras proprietrias de escravos da Colnia de Sacramento setecentista: associaes possveis entre os estudos de gnero e do sistema escravista.Brbara Gonalves HesselnProfessora Doutora Cludia MauchEnsaio realizado para a concluso da disciplina de Seminrio de Bacharelado

Porto Alegre, 27 de Novembro de 2014IntroduoEste ensaio tem por motivaes a concluso da disciplina de Seminrio de Bacharelado, bem como sugestes de ampliao minha pesquisa pessoal, que um desdobramento da pesquisa em curso do professor Doutor Fbio Khn. A temtica tratada a priori era a realidade da Colnia, sobretudo enfocando as relaes de contrabando de escravos pelo Rio da Prata. A partir da transcrio de registros paroquiais de batismo originais e organizao das informaes por diferentes quesitos, como o de proprietrias e proprietrios de escravos, pude constatar a presena de algumas mulheres cuja descrio constava forras, ao longo dos anos conturbados de ocupao portuguesa daquele territrio. A primeira vista um dinmica que causa estranhamento, porm no necessariamente um fato inslito na histria sobre o perodo, em diferentes regies brasileiras, quando se contempla este tipo de fonte. Acrescenta-se que h pouco tempo vem sendo abordado pela historiografia. Portanto, com a pesquisa e a partir desde esboo, tambm estaria dando contribuies a uma nova tendncia da interpretao da histria colonial brasileira. Acrescentando novas abordagens, trazendo conceitos e questionamentos, associada a comparaes bibliogrficas, que anteriormente no havia contemplado, pretendo afinar as diretrizes, criando um esboo do que provavelmente vir a ser meu trabalho de concluso de curso. Alm disso, preciso mencionar que esta temtica implica certa responsabilidade, pois relativiza certos conceitos de escravido, que por desconhecimento, s vezes, podem se tornar tabus e no contempl-la em sua complexidade. Bem como questionar a imagem clssica da mulher imobilizada, pela precariedade de direitos civis que a valorizassem enquanto cidad e pela sociedade amplamente cristianizada. Em funo de ser uma primeira aproximao do trabalho de concluso, no tenho completa segurana em sua articulao, por isso ainda no conclusivo, o que certamente demandar mais tempo.Por fim, creio ser necessrio assumir que meu prprio lugar de fala, enquanto pesquisadora e branca, no possui talvez a mesma tica que a de uma ou um pesquisador negro, que em algum momento j sofreu em certa medida racismo. preciso tomar o devido cuidado com as interpretaes para que no envolvam anacronismos e juzos de valor baseado em expectativas de resistncia e em minha prpria condio.

Primeira experincia de pesquisa, metodologia e a realidade da Colnia de Sacramento Setecentista nas fontesA princpio no tive um direcionamento objetivo s fontes; elas chegaram at mim a medida que ia trabalhando com o levantamento de dados e transcrio das informaes constantes nos registros batismais. Por isso acredito ser importante comentar o processo como as encontrei, pois esta metodologia poderia auxiliar e orientar outros pesquisadores em um futuro prximo.O trabalho que vinha realizando desde Agosto de 2013, junto ao professor Doutor Fbio Khn, tratava do contrabando de escravos na Colnia de Sacramento, no sculo XVIII. Foi minha primeira experincia de pesquisa acadmica e como bolsista de iniciao cientfica. Havia demonstrado interesse prvio em trabalhar com paleografia e com a temtica da escravido no Brasil Colnia e comunicado ao professor de minha disposio em contribuir com sua pesquisa, que acabou indo bastante ao encontro s minhas expectativas. Logo de incio, como ainda era leiga, o contato com as informaes das fontes paroquiais dos livros de batismo teve de ser orientado pelo professor, de modo a me apropriar corretamente da metodologia prosopogrfica, pertinente com a tipologia da fonte. Sobre as possibilidades do uso dessas fontes, quando devidamente questionadas, Bassanezi coloca:Em princpio, toda a populaes pode ser recuperada atravs desses registros. Por isso, os livros que os contm so considerados fontes democrticas. Mesmo que, para determinados momentos e locais, uma parcela dos nascimentos, das unies conjugais e dos bitos, por algum motivo, no tenha sido anotada, esses livros incluem de fato todos os setores da sociedade. [...] A universalidade dessas fontes uma das coisas que mais atrai os historiadores.[footnoteRef:1] [1: BASSANEZI, 2009. P. 142]

Na medida que ia acumulando leituras sobre o tema, naturalmente, minhas interpretaes foram se tornando mais sofisticadas e mais coerentes com aquela realidade. Em funo disso, para chegar informao de que houve forras que possussem cabedal, a qual me propus trabalhar, percorri um longo caminho no contato com as fontes, at que elas surgissem. Minha primeira tarefa foi organizar e transcrever em uma planilha do Excel os registros de batismo da Colnia de Sacramento, que j haviam sido inicialmente tabelados por outra bolsista, junto aos materiais originais consultados no Arquivo da Cria do Rio de Janeiro[footnoteRef:2]. Outro material importante foram os registros organizados em um livro pelo senhor Dalmo de Oliveira, especialista em genealogia. Por ltimo, acrescidos a estes, os documentos dos quais mais me utilizei e de onde extra a informaes das mulheres proprietrias foram obtidos por meio do banco de dados do site Familysearch.com[footnoteRef:3], pgina da Igreja Metodista dos ltimos Dias, que est repleta de fontes histricas do perodo colonial, registros paroquiais, certides, escrituras, entre outros documentos, fotocopiados e organizados por ano e localidade. Passveis de olhos cuidadosos poderiam gerar inmeras outras pesquisas. [2: Ver site ] [3: Ver site ]

Apresentando a fonte:Analisando os registros de batismo de escravo nos perodos de 1732 1777, pude levantar as datas em que a Santa Igreja Catlica, representada por vezes pelo padre Rodovalho e majoritariamente Joaquim de Almeida Cardoso, punha os santos olhos nos rebentos, adultos, forros e indgenas, trazidos parquia e investidos sem muita preocupao com seu destino (isto , o prprio trfico entre Buenos Aires e a Colnia e outras localidades, o seio das famlia de origem dos escravos ou a liberdade). Tambm obtm-se as informaes da condio dos batizados (se eram adultos ou crianas), de seus pais e sua procedncia, dos proprietrios e suas incumbncias no microcosmos de Sacramento e as relaes de compadrio. Esses agentes, por vezes, militares, comerciantes ou emissrios do reino de Portugal apenas registravam os escravos na localidade em funo de sua condio de entreposto comercial disputadssimo do territrio portugus e por sua localizao na sada do rio da Prata, maior escoadouro da prata de Potos. O tratado de Utrecht fez-se valer em 1715. Entretanto, os espanhis permanecem com o campo de bloqueio para assegurar o cumprimento dos tratados de limites e comrcio e muitas vezes acabam sitiando Sacramento e deixando hiatos nos registros como no perodo de 1751 1753.[footnoteRef:4] [4: PRADO, 2002. ]

Aps o perodo inicial do trabalho, que durou cerca de quatro meses, minha nova incumbncia foi separar da planilha dos escravos o grupo dos forros e indgenas criando uma planilha separada e fazendo alguns levantamentos sobre a procedncia das mes dos escravos - a exemplo Mina, crioulos, Benguela, Monjolo, entre outras etnias - e fazer outros levantamentos numricos acerca dos adultos a ttulo de organizao.Bastante definitiva para mim foi a tarefa que realizei na sequncia, pois a partir dela pude encontrar as diretrizes da pesquisa que realizei para apresentao no salo de iniciao cientfica (SIC) do segundo semestre deste ano: organizar tabelas divididas por gnero dos proprietrios de escravos. A partir delas, consegui descrever um padro bastante heterogneo dos possveis contrabandistas, que despreza hierarquias, incluindo desde o governador da Colnia at o escravo que conseguiu comprar sua alforria, alm de ressaltar a cruel condio dos escravos como meros ndices de status na sociedade colonial. No que diz respeito esta pesquisa que apresentei no Salo de Iniciao Cientfica da UFRGS e, na tabela das mulheres proprietrias de escravos pude perceber um grande nmero de ex-escravas, que pela lgica do sistema, acabavam reproduzindo a escravido, possivelmente como forma de se inserirem em uma sociedade e obter certos privilgios negados at o momento. Este padro me pareceu bastante curioso mesmo compreendendo o tipo de relaes de poder que imperavam na poca e, assim, passvel de uma anlise mais aprofundada.Segui no fim do perodo da bolsa trabalhando com a transcrio dos registros de batismo das crianas e adultos forros para outra planilha do Excel, a partir do livro do genealogista Dalmo de Oliveira. Outros tipos de informaes apareceram nestas planilhas alm daquelas j citadas, como a dos avs maternos e paternos, sendo assim possvel confirmar a condio de local de passagem de Sacramento, pois em sua maioria eram indivduos que vinham do Rio de Janeiro, Portugal ou da Bahia e poucos os que se erradicaram naquela localidade. Em funo do prazo da bolsa estar terminando, dei mais nfase nesta reta final pesquisa com as forras.As forras da colnia de sacramento (resultados e anlises tabela)A posse de escravos por forros um assunto que tem ganhado certa relevncia e se tornado fonte de estudo para os pesquisadores em escravido. Ainda existem poucas para a realizao de um parmetro com a realidade que encontrei. Entretanto, a partir do centenrio da lei urea, autores como Eduardo Paiva, passam a trabalhar a posse de escravos por alforriados em Minas Gerais e possvel que haja algum artigo para uma comparao entre dinmicas. Alm desta referncia que encontrei, a professora Helen Osrio sugeriu, durante os comentrios da banca do Salo de Iniciao, no qual apresentei deste projeto de pesquisa, a comparao com uma dinmica parecida no Rio de Janeiro, em que escravas da etnia mina, profissionalizadas, as chamadas de mulheres do tabuleiro, ao trabalharem como vendedoras ambulantes nas ruas para seus senhores (ou senhoras), acabavam juntando dinheiro suficiente no somente para comprarem a prpria alforria, mas tambm conseguirem o cabedal. Infelizmente, ambos os trabalhos no consegui ter acesso, apenas uma apreciao, por no se encontrem disponveis na internet, para o trabalho de concluso pretendo adquiri-los. Reiterando um pouco da metodologia j descrita, pude chegar ao resultado de que inseridas no grupo seleto de mulheres que possuam certo cabedal, havia um nmero expressivo de forras, descritas como pretas ou pardas, que aps receberem ou conquistarem sua alforria, vinham a reproduzir as relaes de poder escravista, isto , tendo posse e administrando seus prprios escravos. Numericamente, em um total de 105 proprietrias, vinte e duas delas eram forras e mais ou menos quatro escravas (ver tabela 1). Seria interessante fazer um novo apanhado das fontes paroquiais, no intuito de intercruzar informaes, remontando as relaes antes da alforria e dos prprios escravos. Tambm trazer luz as relaes sociais e de compadrio das libertas, enquanto ainda escravas de seus senhores e sua posio socioeconmica no universo da Colnia de Sacramento. Mas por ora, esta anlise j foi suficiente para levantarmos vrias hipteses e possivelmente, com as comparaes, poderiam ser mais conclusivas. Trata-se de um fato social pertinente tambm para abrir uma discusso sobre os conceitos de escravido. Para o trabalho de concluso de curso, acredito ser necessrio cit-la, pois a anlise que almejo necessita de um embasamento terico diferenciado sobre escravido para contemplar seus prprios fatos, que so uma espcie de contestao. Necessita de uma comparao entre as diferenas de conceitos de escravido que a tratam menos como uma prtica e mais que a entendem como um sistema mais amplo de coao que fora amplamente disseminados pelos portugueses durante o perodo colonial brasileiro. Caberia possivelmente uma anlise das relaes de poder foucaultiana para entender como o at ento o sujeito tido como oprimido se torna o opressor. No pretendo incorrer em anlises, as quais considero simplistas, na maneira com que interpretam este fato. Evitarei tomar meramente por estratgia de resistncia esta prtica da escravizao, pois para mim o prprio conceito de resistncia incompatvel com o anterior, embora houvesse certos casos em que ela era utilizada. Mas sem levar em considerao que as prprias prticas socioeconmicas escravistas moldavam uma mentalidade contempornea a elas, acho difcil sustentar. Alm disso, a difcil comunicao entre as capitanias e o governo central, a mobilidade entre elas. Frente a isso, passo a ver o status social como estar casada, ser dona de escravos, possuir vestimentas especficas no negando sua libertao e resistncia, mas em termos econmicos. Como j foi colocado anteriormente, a Colnia de Sacramento era um entreposto disputado e por vezes transitrio. No creio ser possvel tratar apenas em termos de resistncia, quando de fato no se sabe com que finalidade se esta existia estas mulheres forras adquiriam seus escravos. Portanto, complicado chegar a um objetivo a respeito sem uma discusso a respeito pouco arrojada. Alm do questionamento escravido, os resultados tambm podem contestar uma historiografia tradicional, que toma como parmetro as vivncias exclusivamente masculinas, solidificando as relaes de gnero no espao e as justificando a partir da plataforma da sociedade patriarcal. Em que medida elas contestariam a hierarquia entre gneros? Tambm, novamente pelo poder econmico e opresso de outro escravo negro? Ainda um questionamento em aberto, a ser trabalhado mais a longo prazo.Os resultados obtidos sugerem que poderia o matrimnio (temos o exemplo de Maria da Conceio, embora houvesse uma presso da Igreja Catlica contra casamentos inter-raciais), a herana de antigas famlias (possivelmente com Incia Maria) e o meretrcio (com Ana dos Prazeres). Poderamos acrescentar a difcil situao econmica ps-alforria em uma localidade eventualmente fustigada por batalhas e economicamente dinmica, que levaria estas senhoras forras a participarem como contribuintes desse comrcio ilegal. Mas novamente, a falta de fontes para comparao dificulta que algumas dessas hipteses sejam definitivas.Consideraes finaisEmbora tenha conseguido delimitar meu problema de pesquisa e metodologia, lamentavelmente no consegui ter a minha disposio uma bibliografia delimitada e necessria para sua concluso, embora a tenha j delimitado. Porm, ter o problema e suas hipteses colocadas, j um bom incio. Acredito tambm que seja um trabalho arrojado e complexo pelas suas proposies e prpria caracterstica de contestao de conceitos, mas que exigiria mais tempo para sua criao e a possibilidades de se comparar com outros conceitos, assim contribuindo para a historiografia sobre escravido. Referncias Bibliogrficas BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes histricas. So Paulo: Contexto, 2005. p. 23-79.BASSANEZI, Maria Silva Basssanezi. Registros Paroquiais e Civis: Os eventos vitais na reconstituio da histria. In: LUCA, Tnia R.e PINSKY, Carla B.(Orgs.). O historiador e suas fontes. So Paulo: Contexto, 2009.CHARTIER, Roger. beira da falsia: A Histria entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 2002.FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memria: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no sculo XVIII. Rio de Janeiro, Jos Olympio; Braslia, DF, EDUMB, 1993. PAIVA, Eduardo Frana. Escravido e universo cultural na Colnia; Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001. PRADO, Fabrcio.Colnia do Sacramento: O Extremo Sul da Amrica Portuguesa. Porto Alegre: F. P. Prado, 2002.Referncias da InternetBanco de Dados Family Search < http://familysearch.com>. Acesso: 25 nov. 2014Pgina da Cria Metropolitana do Rio de Janeiro < http://www.cbg.org.br/novo/auxilios-a-pesquisa/onde-pesquisar/curia-metropolitana-rj/>. Acesso: 25 nov. 2014Tabelas e Materiais AnexosTabela da relao de proprietrias forras por escravos. Material confeccionado pela autora.

Tabela 1.