ensino mÉdio integrado: duas lÓgicas e dois sistemas de … · do momento em que traçamos este...

12
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002476 ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE PENSAMENTO Akiko Santos Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola Resumo: O presente texto, apoiado nos conceitos da Transdisciplinaridade e Complexidade, privilegia uma análise epistemológica, articulando aspectos convergentes, transgredindo as fronteiras teóricas da modernidade e das teorias educacionais, para evidenciar as lógicas que comandam o modo de organizar o currículo integrado: a lógica clássica que leva à dualidade estrutural e à justaposição das disciplinas e a lógica do Terceiro Termo Incluído que orienta para a articulação dos saberes. Palavras-chave: Educação; Transcomplexidade; Epistemologia; Ensino Médio Integrado. 1. Introdução A questão da integração dos saberes vem se arrastando há décadas, para não dizer séculos como na análise feita por Lopes (2011). Entretanto, desde a aprovação do Decreto 5154/2004 (Brasil, 2004) que regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei nº 9.394/96 (Brasil, 1996), a integração se tornou uma questão premente, desafiando os educadores que, desde diversos enfoques teóricos, vêm tentando organizar um currículo que reflita e concretize os ideais da integração. O parecer CNE/CEB n. 5/2011, ora aguardando homologação (Brasil, 2011), constitui um projeto de reformulação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Esse documento, em relação ao Ensino Médio e Profissionalização, coloca a necessidade de superar a dualidade estrutural entre o propedêutico e o profissional, propondo sua integração, tomando como base a noção de trabalho como principal referência educativa, considerando sua indissociabilidade com outras dimensões do conhecimento, como a ciência, a tecnologia e a cultura. A dificuldade e a perplexidade aumenta ao perceber que se trata de uma mudança teórica e prática, ou seja, epistemológica, curricular, didática e metodológica. O conjunto indissociável (teoria/prática) que a modernidade fragmentou, estruturou, difundiu e consolidou, conformou também a mente dos professores que, ante qualquer inovação pedagógica, recorre ao princípio cartesiano do reducionismo. O modo de pensar é o maior obstáculo para essa mudança.

Upload: doanduong

Post on 31-Oct-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002476

ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE PENSAMENTO

Akiko Santos

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola

Resumo: O presente texto, apoiado nos conceitos da Transdisciplinaridade e Complexidade, privilegia uma análise epistemológica, articulando aspectos convergentes, transgredindo as fronteiras teóricas da modernidade e das teorias educacionais, para evidenciar as lógicas que comandam o modo de organizar o currículo integrado: a lógica clássica que leva à dualidade estrutural e à justaposição das disciplinas e a lógica do Terceiro Termo Incluído que orienta para a articulação dos saberes. Palavras-chave: Educação; Transcomplexidade; Epistemologia; Ensino Médio Integrado.

1. Introdução

A questão da integração dos saberes vem se arrastando há décadas, para não

dizer séculos como na análise feita por Lopes (2011). Entretanto, desde a aprovação

do Decreto 5154/2004 (Brasil, 2004) que regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a

41 da Lei nº 9.394/96 (Brasil, 1996), a integração se tornou uma questão premente,

desafiando os educadores que, desde diversos enfoques teóricos, vêm tentando

organizar um currículo que reflita e concretize os ideais da integração.

O parecer CNE/CEB n. 5/2011, ora aguardando homologação (Brasil, 2011),

constitui um projeto de reformulação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio. Esse documento, em relação ao Ensino Médio e Profissionalização,

coloca a necessidade de superar a dualidade estrutural entre o propedêutico e o

profissional, propondo sua integração, tomando como base a noção de trabalho como

principal referência educativa, considerando sua indissociabilidade com outras

dimensões do conhecimento, como a ciência, a tecnologia e a cultura.

A dificuldade e a perplexidade aumenta ao perceber que se trata de uma

mudança teórica e prática, ou seja, epistemológica, curricular, didática e

metodológica. O conjunto indissociável (teoria/prática) que a modernidade

fragmentou, estruturou, difundiu e consolidou, conformou também a mente dos

professores que, ante qualquer inovação pedagógica, recorre ao princípio cartesiano

do reducionismo. O modo de pensar é o maior obstáculo para essa mudança.

Page 2: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002477

2. A dualidade e o dualismo

O modo de pensar dualista tem sua origem em Platão com a ideia da separação

do corpo da alma e com a lógica de Aristóteles que também separa elementos entre “o

que é” e “o que não-é”; entre o que é “verdadeiro” e o que é “falso”, correspondendo

aos dois primeiros axiomas de identidade e não-contradição. O primeiro axioma

consiste em A=A (identidade), o segundo, em A não é não-A (contradição). O terceiro

axioma de Aristóteles (terceiro excluído) nega a interação entre as oposições

estabelecidas, surgindo, a partir de então, a inaceptabilidade da interação entre os

opostos das dualidades, como por exemplo, natureza/sociedade, sujeito/objeto,

corpo/mente, bem/mal etc.

Esta lógica aristótelica, também chamada de lógica clássica, coloniza o modo de

pensar dos homens ocidentais de tal forma que, hoje, ainda não a questionamos,

acreditando que esse modo de pensar é “natural” ao cérebro humano. Ele é “natural”

sim, no sentido de que as sinapses neuronais o incorporaram.

Na evolução da história das idéias, Descartes (1973), cuja existência transcorreu

entre 1596 a 1600, tomando como base a lógica clássica de identidade e não-

contradição, sistematizou a Filosofia e Ciência Modernas, como também

proporcionou procedimentos ao Método Científico. Com essa lógica, o conhecimento

se fragmenta e consolida-se o sistema educacional disciplinar. Descartes é

considerado o pai da Filosofia e Ciência Modernas.

Assentado na lógica clássica, a interpretação dos fenômenos e a estruturação do

sistema moderno se configura em base à dicotomia dos polos opostos dos binários

sem nenhuma comunicação, atribuindo valores diferenciados. Desde então, o

dualismo se instalou no modo de pensar/fazer dos homens modernos e é

permanentemente reforçado e cobrado pela sociedade por meio da sua organização e

normas estruturais e culturais.

As sinapses neuronais estão condicionadas por aquela lógica, embora

atualmente, ao se globalizar, a sociedade exige das gerações de jovens maior

capacidade de elaboração, o que requer novos instrumentos para se pensar os

fenômenos cada vez mais complexos e interconectados. Com um pouco de esforço o

cérebro humano é capaz de extrapolar o condicionamento dualista, incorporando uma

outra lógica indispensável à sociedade que se prefigura, chamada por Bauman (2001)

de Modernidade Líquida.

Page 3: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002478

3. Natureza/Sociedade: Polos Dicotomizados

Por que fazemos como fazemos? Para entender porque o dualismo se manifesta

com tanta perseverância no nosso cotidiano, vale a pena referirmo-nos às

observações do antropólogo e sociólogo francês Bruno Latour (2009) sobre a

“Constituição” moderna, com vistas a conferir o acordo que levou à separação entre

o mundo natural e o mundo social (Natureza/Sociedade), consagrando o tratamento

assimétrico.

Quando os pesquisadores se orientam por dois polos opostos, tratando-os

simetricamente, segundo Latour, eles deixam de ser modernos, passando a constituir

um campo “híbrido”: No caso das constituições políticas, a tarefa cabe aos juristas, mas estes só fizeram um quarto do trabalho até agora, uma vez que esqueceram tanto o poder científico quanto o trabalho dos híbridos. No que diz respeito à natureza das coisas, a tarefa cabe aos cientistas, que também fizeram apenas outro quarto do trabalho, pois fingem esquecer o poder político, além de negarem aos híbridos qualquer eficácia, ao mesmo tempo em que os multiplicam. (...) Do momento em que traçamos este espaço simétrico, restabelecendo assim o entendimento comum que organiza a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser moderno (Latour, 2009, p. 19).

De acordo com Latour, o tratamento em separado do binário

Natureza/Sociedade, tem como consequência direta a multiplicação das questões

híbridas desconsideradas no esquema modernista. Durante os tempos de sucesso do

sistema moderno, os híbridos foram contornados, porém, no próprio decorrer da

Modernidade, as fronteiras bem demarcadas tornaram-se um impedimento que veio

denunciar a insuficiência da “Constituição” moderna, desafiando os cientistas. A

modo de Latour (2009:55) representamos a dicotomia da dualidade que está na base

do sistema cartesiano:

Figura 1: “Constituição” moderna e os híbridos. Fonte: Latour (2009:55) Ao mesmo tempo em que mantém a natureza e a sociedade absolutamente

distintas, a “Constituição” moderna permite uma eclosão de mediadores. Proibe e

permite ao mesmo tempo. Com este paradoxo, a “Constituição” moderna põe os

híbridos na “clandestinidade”:

Page 4: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002479

A Constituição moderna permite, pelo contrário, a proliferação dos híbridos cuja existência –e mesmo a possibilidade – ela nega. Da mesma forma como a Constituição moderna despreza os híbridos que abriga, também a moral oficial despreza os consensos práticos e os objetos que a sustentam. Sob a oposição dos objetos e dos sujeitos, há o turbilhão dos mediadores (Latour, 2009, p. 50). (...) É um não-moderno todo aquele que levar em conta ao mesmo tempo a Constituição dos modernos e os agrupamentos de híbridos que ela nega (Latour, 2009, p. 51).

Os reguladores do pensamento disciplinar estão expressos no Discurso do

Método de Descartes (1973). Segundo Descartes, quando um fenômeno é complexo,

deve-se descontextualizar, desmembrar, simplificar, classificar, reduzir. A exemplo

de Platão que separa o binário corpo/alma, Descartes dissocia sociedade/natureza,

sujeito/objeto, razão/emoção, ser/saber e valoriza um dos polos: da razão, da

racionalidade, do objeto, da objetividade, do saber; em detrimento do sujeito, da

emoção, da subjetividade.

O sistema educativo, ao acompanhar esse modo de pensar, toma a forma dual na

sua estruturação e estabelece a crença de que o conhecimento é objetivo e racional,

neutro, verdadeiro, universal, porquanto comprovado pela metodologia científica. A

subjetividade seria fonte de ideias confusas.

Para acolher os híbridos que integram os polos separados pela “Constituição”

moderna, torna-se necessário uma nova ontologia, uma nova filosofia, uma nova

lógica, leis e conceitos. Quando explicamos os fenômenos complexos sem

desmembrá-los nem reduzí-los, mas considerando-os como um todo, estaremos

realizando mudança de paradigma.

A ruptura epistemológica em relação ao paradigma moderno vem sendo

desenvolvido por Basarab Nicolescu (1999) e Edgar Morin (1991), teóricos da

Transdisciplinaridade e Complexidade, ou conjugando os dois termos,

Transcomplexidade, segundo Velasco (2006).

Ao contrário da “Constituição” moderna que dissocia a cultura científica da

humanística, o enfoque da transcomplexidade é a sua não-separação, reconhecendo a

implicação dos dois polos (o que, aliás, não é novidade nas práticas científicas). Ela

se propõe articulá-los constituindo um campo heterogêneo e plural, os híbridos de

Latour.

A transdisciplinaridade sugere ressignificações dos conceitos oriundos da

modernidade. No entanto, ao mesmo tempo em que faz ruptura epistêmica com o

pensamento científico moderno, ela se coloca como complementar ao sistema

disciplinar.

Page 5: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002480

Portanto, o dualismo estrutural no ensino médio é reflexo de ideias construidas

pela humanidade, fundamentalmente a partir da lógica aristotélica e da separação dos

polos Natureza/Sociedade como dois pilares da modernidade. Como resultante desse

modo de pensar tem-se o comportamento dualista na educação.

4. Duas lógicas e dois sistemas de pensamento

Iniciada por Aristóteles e reforçada por Descartes, dois milênios de predomínio,

a lógica clássica como instrumento para se pensar os fenômenos naturais e sociais

sedimentou um sistema de pensamento fragmentado. Atualmente, devido ao avanço

da ciência que abre novas perspectivas para se apreciar os fenômenos, discute-se a

necessidade de repensar o conhecimento e o modo de raciocinar, desvelando um

panorama interconectado, requerendo um novo sistema de pensamento.

Assim como a separação dos polos da “Constituição” moderna foi sendo

transgredida pelos pesquisadores que percebiam sua mútua implicação, na educação

pode-se observar o mesmo fenômeno no modo de organização do conhecimento dito

pluridisciplinar e interdisciplinar.

Como consequência do modo de pensar moderno, a estrutura da matriz curricular

dos cursos é multidisciplinar, reune-se um conjunto de disciplinas justapostas sem

nenhuma relação entre elas. Obedecendo ao raciocínio de “A é A e não pode ser não-

A”, prevaleceu na organização curricular a postura de “ou é isto, ou é aquilo”, o que

resulta na composição de distintas disciplinas compartimentadas: Física, Química,

Biologia, História, Sociologia, etc. Isso faz com que o conhecimento permaneça em

um só nível, no nível da simplicidade.

A partir da metade do século XX, a pluridisciplinaridade (Sommerman, 2006)

surge como uma tentativa de superar a fragmentação disciplinar, integrando

disciplinas afins. Não obstante a integração, as disciplinas de origem permaneciam

como disciplinas com fronteiras demarcadas de sempre, ou, no caso de integração

epistemológica, constituía-se uma disciplina “integrada”: é o caso das disciplinas

“Físicoquímica”, “Geociências”, “Bioengenharia”, “Bioquímica” e outras. Essa

conjugação estaria transgredindo a lógica clássica que sustenta o raciocínio

moderno, porém, ao constituir-se como uma nova disciplina, permanece no sistema

disciplinar.

A pluridisciplinaridade não contestava e nem discutia o conflito paradigmático

que se desenhava ao fazer tal “integração”. No entanto, quando se avança para a

Page 6: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002481

interdisciplinaridade ficava sempre latente o conflito de paradigmas. Na época da sua

difusão, já se dizia que era preciso uma mudança de atitude.

Ao ser dito que a interdisciplinaridade (Fazenda, 1993) é uma questão de atitude,

de espírito, de postura, apontava-se a necessidade de transformação do sujeito. Sua

prática não se coadunava com as leis, lógica e conceitos disciplinares. Nesse sentido,

tal modalidade de ensino se aproximava ao que hoje chamamos de

transdisciplinaridade, requerendo uma mudança de conceitos e lógica que

determinam o modo de pensar e fazer educação.

A consciência de que se tratava de uma questão paradigmática veio com a

transdisciplinaridade, com a formulação dos três pilares da metodologia

transdisciplinar: 1. Vários níveis de realidade; 2. Lógica do terceiro termo incluído e

3. Complexidade.

4.1. Lógica clássica e Lógica do Terceiro Termo Incluído. A metodologia

transdisciplinar foi elaborada por Basarab Nicolescu e apresentada no Primeiro

Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (1994). O segundo pilar dessa

metodologia, a lógica do terceiro termo incluído, é fundamental como instrumento

para guiar o novo pensar. O quadro a seguir faz apresentação comparativa das duas

lógicas em questão: Lógica clássica

Lógica do terceiro termo incluído

1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma do terceiro excluído:

não existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A

1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma do terceiro incluído: existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A

Figura 2: Lógica Clássica e Lógica do Terceiro Termo Incluído (Nicolescu, 1999, p. 29-32)

A diferença entre as duas lógicas está no terceiro axioma. A lógica do terceiro

termo incluído, com o seu terceiro axioma formaliza a interação dos opostos, seja

entre Natureza e Sociedade dissociadas pela “Constituição” moderna, seja entre os

opostos das dualidades tais como: ser/saber, razão/emoção, bem/mal,

unidade/multiplicidade, simples/complexo, local/global, certeza/incerteza,

clausura/abertura, etc. Segundo Nicolescu (2011, p. 9): A lógica do terceiro incluído não abole a lógica do terceiro excluído: ela apenas limita sua área de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente validada em situações relativamente simples, como, por exemplo, a circulação de veículos numa estrada: ninguém pensa em introduzir, numa estrada, um terceiro sentido em relação ao sentido permitido e ao proibido. Por outro lado, a lógica do terceiro excluído é nociva nos casos complexos, como, por exemplo, o campo social ou político.

Page 7: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002482

Ao religar os saberes sistematizados, seguindo a lógica do terceiro termo

incluído, a transdisciplinaridade recomenda articulação dialógica dos diferentes

enfoques sobre um determinado fenômeno em estudo. Articular não é justapor. O que

diferencia é o uso de uma ou outra lógica.

Devido a solidez da lógica clássica, a mente ante qualquer nova teoria

pedagógica, os neurônios tendem a processá-la recorrendo ao mecanismo

internalizado, daí resultando em adaptação, redução ou retroação. Quando se coloca o

pensamento no “piloto automático”, as teorias inovadoras, no agir pedagógico, são

adaptadas e praticadas com velhos conceitos da pedagogia tradicional. Adapta-se o

novo ao velho. Dessa maneira, a pedagogia tradicional é persistente e hegemônica.

Na história da educação, temos vários exemplos de reducionismos: a Pedagogia

Libertadora de Paulo Freire transformada em “método Paulo Freire”, omitindo sua

fundamentação teórica; o mesmo aconteceu com a Escola Nova transformada em

“escola ativa”; o Construtivismo tranformado em “método construtivista” e também

com outras teorias pedagógicas alternativas que emergiram nesses últimos tempos.

A lógica como um instrumento para se pensar os fenômenos, é intocada. Por

isso, as teorias inovadoras não se efetivam na prática

4.2. Por que integrar? Em vista da histórica estrutura dual do ensino médio, a

necessidade da integração se impõe em função de uma educação integral. Quando se

pretende um desenho de currículo integrado, o problema se coloca no “como

integrar”. Como fazer tal integração? O termo “integração” abre um leque de

modalidades.

Ao propor a integração dos conhecimentos, imediatamente aparece a dificuldade

com a atual estrutura polarizada do conhecimento. Como consequência da separação

Natureza/Sociedade, na formação universitária, há ausência de disciplinas da área de

Ciências Sociais nas matrizes curriculares das profissões científicas. Ao separar-se

em dois campos, sem comunicação entre si, o pensar crítico sobre o sistema que nos

envolve desaparece. Mesmo nos cursos, cujos currículos contemplam disciplinas dos

dois polos, a estruturação justaposta afasta a relação existente entre os

conhecimentos, o que anula o potencial crítico que emerge da interfertilização das

múltiplas dimensões dos fenômenos (científica, técnica, econômica, social, política e

cultural).

Page 8: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002483

A religação das partes com o todo permite a compreensão do mundo presente,

dando um significado humano ao conhecimento. Para a emergência dessa visão, a

integração do conhecimento é um dos imperativos.

4.3. Relação entre as partes e o todo. Complementar a educação

transdisciplinar com a disciplinar sugere aos docentes a capacidade de fazer o

movimento parte/todo, isto é, entre o olhar específico e o olhar geral, entre o texto e o

contexto, passar de um modo a outro sempre que necessário. Nesse movimento, não

há suplantação das partes pelo todo. Há coexistência dos dois níveis de realidade: a

disciplinaridade e a transdisciplinaridade.

Contextualizar uma matéria específica significa conferir sentido ao

conhecimento em questão. Ao se articular diversos pontos de vista tem-se

compreensão integrada. Por exemplo, a questão da alimentação. Essa temática

ultrapassa o enfoque simplesmente biológico. Um olhar contextual responde a

perguntas tais como: o que se come na vida moderna? Porque se come determinados

produtos? Como são produzidos? Produtos transgênicos fazem mal à saude? Qual é a

consequência do aquecimento global na produção agrícola? Quais as doenças

advindas da alimentação? Quem são os desnutridos? O que se compra no mercado?

Quem compra? O que significa segurança alimentar? Por que a população está cada

vez mais obesa? Qual é o efeito psicológico e social da fome e da obesidade? Várias

outras perguntas poderiam ser feitas. Esse é um tema que articula conhecimentos

científicos e humanísticos.

Na articulação partes/todo, o todo não significa soma das partes. O todo é,

simultaneamente, mais e menos que a soma das partes. Isto porque, quando se religa o

conhecimento, há emergência de uma compreensão significativa para além da simples

soma quantitativa, de modo que o todo é mais que a soma das partes (compreensão

qualitativa). E quando se privilegia o todo, virtualiza-se as riquezas que compõem as

partes, assim, o todo é menos que a soma das partes. Esta é uma relação dinâmica e

não mecânica ou matemática (Morin, 1991).

A transdisciplinaridade não se constitui como disciplina, uma macrodisciplina,

sua lógica remete à modalidade organizacional por meio de Projetos de diferentes

amplitudes que sendo complementar à disciplinaridade, são executados

simultaneamente às aulas disciplinares.

Page 9: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002484

4.4. Justaposição ou Articulação? Há duas maneiras de se enfrentar a

“integração”: ou se utiliza a lógica clássica, ou se trabalha com a lógica do terceiro

termo incluído. Isto é, ou justaposição, ou articulação.

A lógica clássica sempre leva à justaposição dos saberes devido aos axiomas de

identidade e não-contradição e nega a interação entre os contrários, explicitado no

seu terceiro axioma.

Não obstante a negação explícita, pode-se observar que a matriz curricular do

ensino médio profissional, traz modelos 3+1 e Concomitância, observando-se aí que

há intenção de “integrar” conhecimentos gerais e específicos, científicos e

humanísticos. Então, qual a diferença entre o que se pretende hoje com o que já

existe? A diferença está justamente na lógica que dirige o raciocínio.

A justaposição é uma solução coerente com a lógica clássica. Seguindo os

axiomas da identidade e não-contradição, o sistema disciplinar compartimenta os

saberes e conforme a “Constituição” moderna, opõe conhecimentos sociais aos

conhecimentos da natureza. Ao se pretender a integração de polos separados elabora

um currículo como uma somatória (modelo 3+1), uma operação mecânica dentro do

raciocínio linear da lógica clássica. Não obstante se dizer “integrado”, o currículo

continua sendo uma listagem justaposta de disciplinas sem nenhuma interlocução. O

mesmo pode-se dizer em relação ao modelo Concomitância.

A outra forma de integrar o conhecimento seria por meio da lógica do terceiro

termo incluído.

4.5. A Lógica do Terceiro Termo Incluído e os Níveis de Realidade. A visão

integrada, segundo esta lógica, não se dá no mesmo nível da disciplinaridade. A

metodologia transdisciplinar considera que existem vários níveis de realidade.

Interpretando o raciocínio de Nicolescu (1999), confeccionamos um quadro

representativo de dois níveis de realidade:

Figura 3: Níveis de realidade. Fonte: Nicolescu (1999)

Page 10: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002485

Dois níveis de realidade são diferentes se houver ruptura de leis, conceitos e

lógica. Na interação, a integração se dá mediante a articulação dialógica. Para

integrar segundo esta lógica, o diálogo é essencial. Diálogo subjetivo e objetivo entre

especialistas e seus saberes. Integrar significa um contínuo movimento entre as partes

e o todo. A interlocução entre os especialistas é o diferencial da transdisciplinaridade.

No entanto, ao articular os saberes, na prática, observa-se graus de

transdisciplinaridade, dependendo da maior ou menor satisfação em relação aos três

pilares da metodologia transdisciplinar, gerando articulações que se aproximam mais

da multidisciplinaridade, ou da pluridisciplinaridade, ou da interdisciplinaridade.

Pois, o resultado depende da disponibilidade e viabilidade da presença de

especialistas participantes.

O desenho de um currículo articulado contempla a coexistência dos dois

sistemas de pensamento. Não se descuida do aprofundamento conteudístico das

disciplinas, situa-os dentro de um contexto para dar sentido e evidenciar a

importância da sua aprendizagem. Ao mesmo tempo, contempla atividades coletivas

de religação dos saberes através de Projetos abarcando toda a comunidade escolar e

local, cuja execução seria simultânea às aulas convencionais.

5. Considerações Finais

O Currículo Articulado, ao ser regulamentado no Projeto Pedagógico de Curso –

PPC, tomará características próprias a cada comunidade escolar, pois ele depende das

condições locais, da criatividade, das discussões entre toda a comunidade envolvida e

mútua concordância.

É temeroso falar-se de um currículo inteiramente transdisciplinar no ensino

fundamental, médio ou superior, pois pode levar a um esvaziamento ou

superficialidade da cultura científica já conquistada, perdendo a riqueza dos

conteúdos específicos de cada disciplina.

Um Projeto Coletivo com temas transversais envolvendo toda a comunidade

escolar e local, desafia os alunos a construir seus próprios sentidos para o

conhecimento em questão; buscar subsídios pertinentes; confiar em si mesmos;

pensar por si mesmo; analisar, interpretar, refletir, planejar, organizar, dialogar com

os diversos pontos de vista, sistematizar e expressar seus conhecimentos.

O diálogo que se estabelece através da metodologia interativa de ensino, se

diferencia da discussão ou debate. Ainda que estes últimos têm seus momentos de

necessidade, o diálogo exige outro posicionamento perante o coletivo. Ao contrário

Page 11: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002486

da disputa que se estabelece no debate, o diálogo exige dos interlocutores uma relação

de reciprocidade, de cooperação, de solidariedade, de capacidade de suspender a

opinião já formada para ouvir outros pontos de vista e promover a articulação. Na

discussão, ou se ganha, ou se perde; no diálogo, todos saem ganhando, levando uma

visão mais enriquecida e abrangente.

6. Referências bibliográficas

BRASIL. Congresso Nacional. Lei Federal 9394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 22/12/1996. BRASIL. Decreto-Lei 5154/2004. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei nº 9.394/96. Brasília-DF: Diário Oficial da União, 23 de julho de 2004. BRASIL. MEC. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Parecer CNE/CEB No. 5/2011. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16368&Itemid=866. Acessado em 16/11/2011. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida.Trad. Plinio De3ntzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. DESCARTES, René. Discurso do Método. In: Coleção Os Pensadores. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril-Cultural, 1973. FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade. Um Projeto em parceria. São Paulo: Loyola, 1993. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica 2ª. edição. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: ed. 34, 2009. LOPES, Alice Casimiro. Possibilidades de Currículo Integrado. Disponível www.sistemas.ufrn.br/shared/verArquivo?idArquivo=746255... Acessado em 2/08/2011. MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. 2ª. ed. Trad. Dulce Matos. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Trad. Lúcia Pereira de Souza. São Paulo: TRIOM, 1999. __________________. Um novo tipo de conhecimento – Transdisciplinaridade. 1º. Encontro Catalisador do CETRANS – Escola do Futuro – USP. Itatiba, São Paulo – Brasil: abril de 1999. Disponível www.redebrasileiradetransdisciplinaridade. Acessado em 12/12/2011. PRIMEIRO CONGRESSO MUNDIAL DE TRANSDISCIPLINARIDADE. Portugal. Convento de Arrábida, 2-6 novembro 1994. SOMMERMAN, Américo. Inter ou Transdisciplinaridade? Da fragmentação disciplinar a um novo diálogo entre os saberes. São Paulo: Paulus, 2006. VELASCO, Juan Miguel González. La concepción de una nueva visión paradigmática de la metacomplejidad em educación superior. Revista Fractal. Postgrado EMI. Ano 1 n.1. LaPaz, Bolivia, 2006, pp.1-7.

Page 12: ENSINO MÉDIO INTEGRADO: DUAS LÓGICAS E DOIS SISTEMAS DE … · Do momento em que traçamos este espaço simétrico, ... Duas lógicas e dois sistemas de pensamento Iniciada por

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002487

Figura 1

Lógica clássica Lógica do terceiro termo incluído

1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma do terceiro excluído:

não existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A

1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma do terceiro incluído: existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A

Figura 2

Figura 3