entre a consciÊncia do corpo e o corpo...

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA ENTRE A CONSCIÊNCIA DO CORPO E O CORPO CONSCIENTE ANDRÉ ROGÉRIO PEREIRA SÃO PAULO 2018

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  • UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA

    PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA

    ENTRE A CONSCIÊNCIA DO CORPO E O CORPO CONSCIENTE

    ANDRÉ ROGÉRIO PEREIRA

    SÃO PAULO

    2018

  • ANDRE ROGÉRIO PEREIRA

    ENTRE A CONSCIÊNCIA DO CORPO E O CORPO CONSCIENTE

    Dissertação de Mestrado apresentada

    ao Programa de Pós-Graduação em

    Educação, Arte e História da Cultura, da

    Universidade Presbiteriana Mackenzie,

    como requisito parcial à obtenção do

    título de Mestre em Educação, Arte e

    História da Cultura.

    Orientadora: Mirian Celeste Pereira Dias Martins

    SÃO PAULO

    2018

  • 2

  • 3

    Todos dançamos...

    A todos aqueles que em algum momento se permitiram fechar os olhos e reclinar a cabeça após sentir o vento bater em seu rosto. Nesse momento você

    se conectou com o ambiente, com a sensação e o movimento.

    Sim, você dançou.

  • 4

    Agradecimentos

    Esta pesquisa é o resultado de inquietações pessoais de um bailarino que

    se alimentou de outras ciências para conectar pontos de sua formação artística

    não ligados apenas pela experiência artística.

    Agradeço aos diálogos estabelecidos com pessoas de diferentes áreas e

    culturas, aos amigos, professores, pessoas que admiro pelo talento,

    posicionamento artístico e político, colegas de trabalho, educadores, minha

    querida analista e tantos outros humanos que direta e indiretamente contribuíram

    até minha chegada aqui.

    Ao Senac que incentivou essa formação, mantendo um vínculo de

    confiança no trabalho de pesquisa, oferecendo suportes técnicos referentes ao

    trabalho e alargando a compreensão sobre a importância de formar para além

    das discussões profissionais. Aos meus diretores e coordenadores pela

    compreensão nas ausências no trabalho em busca de uma formação que

    extrapolasse o ser técnico em direção da construção de um humano mais

    sensível a dialogar. Aos colegas com quem divido a sala, o trabalho, as

    realizações, as angústias que tornam o trabalho mais prazeroso pelo simples

    fato de serem constantes na tarefa de educar.

  • 5

    À professora Rosana Maria Pires Barbato Schwartz que, desde a

    entrevista de ingresso ao mestrado, foi sensível ao meu perfil profissional e, de

    maneira muito acolhedora, me ofereceu mais do que orientação durante as aulas

    de Metodologia Científica, me ajudou a entrar em contato com meu objeto de

    pesquisa e com a pessoa que depois se tornou minha orientadora.

    Decididamente minha gratidão maior está com meus pais Beatriz

    Rodrigues e Eros Antônio Pereira, que iniciaram a minha história. A eles minha

    gratidão não cabe em palavras. Em determinado momento da minha trajetória

    como bailarino, onde desaminei da vida artística, minha mãe me confessou que

    eu sempre dançara, desde seu ventre. Talvez tenha sido meu primeiro pás de

    deux, e ao saber disso a extensão da minha compreensão de que a dança não

    seria apenas uma profissão e sim um modo de viver.

    Cabe o registro da minha gratidão à banca de qualificação formada pelas

    professoras Rosana Schwartz e Mirza Ferreira que, de forma muito generosa,

    realizaram apontamentos importantes acrescentando pontos que ao se

    desdobrarem enriqueceram o texto e meu próprio saber. Olhares generosos e

    comprometidos podem influenciar de forma poderosa na construção de

    conhecimentos.

    Agradeço aos meus queridos amigos dos mais antigos sempre presentes

    aos que fiz durante o mestrado que não me fizeram cobranças em momentos de

    maior reclusão e introspecção. Ao meu namorado, sempre presente e carinhoso,

    que permaneceu incentivando, mesmo quando não podia lhe dedicar a atenção

    que merecia.

    Aos bailarinos que, de forma muito generosa, interromperam suas rotinas

    para responder às perguntas de forma tão sincera e carinhosa minha gratidão.

    Por um momento revivi com eles sentimentos muito parecidos e, principalmente,

    o amor pela dança, onde se dedicam como verdadeiros resistentes em tempos

    onde a arte é invadida por uma objetividade de fazeres que podem esvaziar seu

    real valor.

    Aos meus professores de dança, cada um deles deixou um pouco de seus

    ensinamentos e muito do amor pela arte, pela dança sempre me desafiando e

  • 6

    mantendo a confiança mesmo em momentos onde eu me deixava abater. Assim

    como aos alunos que passaram por mim contribuindo para minha compreensão

    mais crítica sobre o ensinar.

    Decidir por estudar encarando viver numa cidade como São Paulo em um

    momento de vida onde a energia precisa ser dividida entre tantas tarefas, é um

    ato de resistência ao mecanicismo que esvazia a reflexão sobre a ação e, neste

    sentido, o caminho apresenta parceiros que tornam possível encontrar diálogos

    construtivos.

    Por fim, e de fato, ocupando lugar de destaque, minha orientadora Mirian

    Celeste que sempre motivou a escrita, apresentando novos autores, novas

    experiências e novos olhares, ressaltando que a escrita não é um pesar e

    apontando de forma positiva que a elaboração de ideias em narrativas pode ser

    prazerosa e me inspirando, através de sua coerência e paixão pelo ensinar e

    comprometimento com a arte, a continuar na construção do educador que desejo

    ser.

  • 7

    O movimento já não obedecia a um código imposto de fora, mas era ditado por

    uma necessidade interna e exigia, por parte do bailarino, um voltar-se para si.

    Não era do domínio do corpo, mas de seu deixar-se estar, que brotava da

    dança.

    Pierre Kaufmann (1996: 615)

  • 8

    Resumo

    Esta pesquisa tem por objetivo refletir sobre o processo que se dá entre a

    consciência do corpo e o corpo consciente a partir da pergunta feita a bailarinos

    profissionais: “Por que você dança? ”. Considerando que esse fazer artístico está

    intrinsicamente comprometido com a vida para além dos palcos e da sala de

    ensaios. Diante de uma formação que dedica maior carga horária ao

    desenvolvimento físico, surge a possibilidade de refletir sobre a sobreposição de

    estratégias que aproximem o repertório de vida, as experiências cotidianas no

    sentido de aproximar instâncias indissociáveis: corpo e alma. Para sustentar a

    ideia de que corpo e alma não estão dissociados, a pesquisa foi fundamentada

    na fenomenologia de Merleau-Ponty acerca da percepção, onde por primazia o

    corpo é a principal via para o contato com a experiência, nas provocações sobre

    do ensino da dança no Brasil, feitas por Klauss Vianna e no diálogo com outros

    autores, filósofos e pensadores sobre a experiência artística e educacional como

    Dewey, Larrosa dentre outros. Como inspiração desta discussão duas

    personalidades na história da dança: Isadora Duncan e Pina Bausch que

    revolucionaram a dança, são fundamentais. Como metodologia de pesquisa

    qualitativa de natureza exploratória, foram realizadas e analisadas entrevistas

    com bailarinos que reforçaram a defesa de que o que não cabe em palavras só

    pode ser expresso no dançar. Problematizando o ensino da dança com questões

    ligadas à prevalência da forma, são propostas sobreposições de estratégias

    docentes que favoreçam aproximar a alma dos estudantes durante as aulas,

    estabelecendo uma possibilidade de diálogo entre o corpo consciente e a

    consciência do corpo.

    Palavras chave: Ensino de dança; Dança; Arte/Educação; Cultura; Corpo

  • 9

    Abstract

    This research aims to reflect on the process that takes place between the

    consciousness of the body and the conscious body from the question asked to

    professional dancers: "Why do you dance? ". Considering that this artistic work

    is intrinsically committed to life beyond the stages and the rehearsal room. Faced

    with a training that devotes more time to physical development, there is the

    possibility of reflecting on the overlapping of strategies that approximate the

    repertoire of life, everyday experiences in the sense of approaching inseparable

    instances: body and soul. In order to support the idea that body and soul are not

    dissociated, the research was based on Merleau-Ponty's phenomenology about

    perception, where by primacy the body is the main way to contact with

    experience, in the provocations about dance teaching in Brazil, by Klauss Vianna

    and in the dialogue with other authors, philosophers and thinkers on the artistic

    and educational experience as Dewey, Larrosa among others. As inspiration of

    this discussion two personalities in the history of dance: Isadora Duncan and Pina

    Bausch who revolutionized dance, are fundamental. As a qualitative research

    methodology of an exploratory nature, interviews were conducted and analyzed

    with dancers who reinforced the defense that what can not fit into words can only

    be expressed in dance. Problematizing the teaching of dance with questions

    related to the prevalence of form, propose overlaps of teaching strategies that

    favor the approach of students' souls during classes, establishing a possibility of

    dialogue between the conscious body and the consciousness of the body.

    Keywords: Dance teaching; Dance; Art/Education; Culture; Body

  • 10

    Lista de imagens

    Figura 1. Coreografia VOA, Coreografia de Isaura Guzmán (1998), Intérprete:

    André Pereira – Fotógrafa: Lamberti, Paula ................................................. 19

    Figura 2. Five Brahms Waltzers, Coreografia de Isadora Duncan, Intérprete:

    Jodie Gates: Fotógrafo: Chinn, Paul. ........................................................... 22

    Figura 3. Pina Bausch em Café Müller de 1978 .......................................... 30

    Figura 4. Tanztheater Wuppertal, Cena do filme Pina de Wim Wenders (2011),

    Coreografia: A Sagração da Primavera ....................................................... 45

    Figura 5. Bodas de Sangre, Filme dirigido pelo cineasta e roteirista espanhol

    Carlos Saura (1974), obra homônima da peça de Frederico Garcia Lorca,

    Interpretes: Antônio Gades e Cristina Hoyos ................................................ 47

    Figura 6. Tendüs à terre, Imagem sem identificação – Internet ................... 53

    Figura 7.Tendüs enl’air que evoluem em sua angulação, Imagem sem

    identificação – Internet ............................................................................... 53

    Figura 8. Tanztheater Wuppertal, Cena do filme Pina de Wim Wenders (2011),

    Coreografia Vollmond (Luna llena) .............................................................. 81

  • 11

    Sumário

    Considerações iniciais .......................................................................... 12

    Capítulo 1 – O corpo emancipado que escorre sem amarras ........... 20

    1.1. Desvestindo as amarras – Isadora Duncan ............................... 22

    1.2. A voz do corpo – Pina Bausch ................................................... 27

    1.3. A experiência vivida no corpo .................................................... 35

    Capitulo 2 – Por que você dança? ....................................................... 38

    Capítulo 3 – O corpo aprendente ......................................................... 51

    3.1. Problematizando a valorização da forma ................................... 52

    3.2. A imagem internalizada .............................................................. 63

    3.3. Coreografia e dança ................................................................... 77

    3.4. Docência em dança .................................................................... 82

    3.5. Sobreposições no ensino da dança ........................................... 86

    Considerações finais ............................................................................. 95

    Referências .......................................................................................... 100

    Anexo .................................................................................................... 104

  • 12

    Considerações iniciais

    Compreender é experimentar o acordo entre aquilo que visamos

    e aquilo que é dado, entre a intenção e a efetuação – e o corpo é

    nosso ancoradouro em um mundo.

    MERLEAU-PONTY (2011: 200)

    A experiência1 artística desperta um potencial de comunicação, a partir de

    um estado contemplativo que revela sentimentos e sensações muito particulares

    e também semelhante a todos.

    A primeira vez que pisei num palco reconheci que deveria permanecer

    nele. Uma estranha sensação de ter encontrado o meu lugar no mundo. Por anos

    precisei estar ali. Não estou certo de que deveria tê-lo deixado. Este espaço me

    permitiu experimentar uma sensação de estar inteiro que não reconheço ter em

    outros lugares.

    Todo o trabalho em sala de aula, ensaios, trocas e novas conexões

    abriram sentido à minha existência e me permitiram ver o mundo com mais

    ternura e menos dor. A experiência de dançar e ser inundado pela música nunca

    se reproduziram da mesma forma e, de certo modo, pude cumprir outros papéis

    sociais por conta desta experiência.

    Todavia, não sei como nominar essa experiência. Consigo expressar

    como sinto, mas não em palavras ou conceitos. Somente dançando. Talvez seja

    o que Dewey (2010), diz sobre materializar a obra de arte, sobre dar forma

    objetiva ao que está no campo subjetivo da linguagem:

    O artista interessa-se pelo exercício de atividades dotadas

    de uma referência claramente objetiva – um efeito sobre o

    1 O conceito de experiência é fundamentado em Jorge Larrosa (2002) que o apresenta como sendo aquilo que nos toca, que nos acontece e que nos marca, onde atribuímos sentido gerando significado em nós, em conjunto com o que John Dewey (2010) define como experiência estética, onde a arte cria enlaces com nossa própria história quando a contemplamos ou a criamos dando significados a nossa vida em grupo.

  • 13

    material, a fim de convertê-lo em um veículo de expressão.

    (DEWEY, 2010: 480)

    A alma se expande do tamanho do palco. Um silêncio absoluto só permite

    que a música que ouço, primeiro ressoe dentro de mim e então, neste momento,

    só existe o dançar.

    Por vinte e quatro anos dançando, sempre antes do abrir da cortina, ou

    mesmo, já em cena, fui assombrado pelo desespero de não lembrar da

    coreografia, de ter uma amnésia momentânea. Me arrependia por estar ali até o

    momento em que a música se iniciava e então, tudo acontecia. Mesmo o

    improviso era fluído. Ao final, o êxtase de repetir, de tornar o durante mais

    estendido, de permitir que o corpo continue a dançar.

    Minha formação acadêmica em psicologia e posteriormente o

    aprofundamento em psicanálise me fizeram perceber a integralidade entre a

    alma e o corpo, que não formulei durante minha formação como bailarino, mas

    que já suspeitava existir. No período da graduação os temas voltados ao corpo

    e a conexão dele com a alma convocavam meu lado artista curioso em entender

    as sensações que a dança me gerava. Não era apenas sobre o decorar de

    passos ou algo apenas mecânico e sim de uma expressividade de algo interno

    revelado nas apresentações no palco de um teatro ou em qualquer espaço de

    apresentação que permitisse ou proporcionasse o dançar.

    Desta trajetória chego a uma questão que impulsionou o interesse na

    pesquisa científica: O que você sente quando dança? Essa é a pergunta diretriz

    de minha dissertação. A leitura de textos da fenomenologia de Merleau-Ponty

    (2011), me aproximou da formulação desta pesquisa.

    No início minha questão estava centrada em apenas dois aspectos da

    formação de um bailarino: no aprendizado da dança como linguagem2 e à

    2 “Pela dança o homem manifesta os movimentos do seu mundo interior, tornando-os mais conscientes para si e para o espectador; pela dança ele reage ao mundo exterior e tenta apreender os fenômenos do universo. Nessa tentativa, ele se aproxima cada vez mais do seu Ser mais profundo. [...]. Enquanto dança, ele percebe novamente que é uno com seu próprio eu e com o mundo exterior. Quando atinge tal nível de experiência profunda, o homem descobre sentido da totalidade da vida” (PELEGRINI, apud VIANNA, 1990: 14). Para a dança destaco seu valor primitivo da expressividade onde o corpo é a expressão da comunicação sem o uso palavra. Tem relação com os sentimentos que movem o corpo. Assim, a dança é

  • 14

    intensa dedicação e preparação física. Indagação que nasceu durante minha

    própria vivência3 como bailarino e do contato com o livro A Dança (1990), escrito

    pelo bailarino, diretor e professor de dança Klauss Vianna. Embora não tenha

    tido aulas com ele, foi através de seu livro que passei a questionar a minha

    formação artística. Naquela ocasião me chamava a atenção o longo período de

    treinamento físico e o pouco ou nenhum ensinamento artístico.

    Segundo Roger Garaudy (1980), “A dança do século XX tinha se

    transformado numa arte decorativa, desumanizada como uma rainha fútil e

    bonita, embalsamada em seu caixão de vidro” (GARAUDY, 1980: 42). Essa

    crítica foi feita pela maneira como a dança chega apenas pela forma estética

    comparada ao desempenho de atletas. De frente ou ao lado de uma barra de

    madeira, o estudante reestrutura sua postura e sua musculatura para alcançar

    alto desempenho de seu corpo nas sequências de dança propostas pelos seus

    coreógrafos e mestres. De certo modo, ao se apresentarem, as companhias de

    dança transportavam esse modo de funcionamento para os palcos. A execução

    apenas de uma técnica, que por si já chama a atenção por sua harmonia, mas

    que talvez tenha perdido sua alma.

    Esse resultado de uma dança bonita de ver, mas fria na expressividade

    de sentimentos se dá por algum motivo. Klauss Vianna (1990), o localiza no

    processo de aprendizagem durante a formação de um bailarino clássico:

    Sempre discordei da forma pela qual a técnica clássica

    chega aos bailarinos, no Brasil. Não discuto a beleza e a

    eficiência do clássico – ao contrário, amo o clássico -, mas

    há alguma coisa que se perdeu na relação entre professor

    e aluno que faz da sala de aula, um espaço pouco

    saudável” (VIANNA, 1990: 24).

    linguagem que comunica ideias ou sentimentos por meio de signos gestuais que expressam subjetividades inseridas em suas culturas. 3 Utilizei o conceito de vivência de satisfação utilizado pela psicanálise que, segundo o Vocábulo de Psicanálise, está ligado a satisfação do desejo: “A satisfação passa a ser, desde então, ligada a imagem do objeto que proporcionou a satisfação, assim como à imagem do movimento reflexo permitiu a descarga. Quando o estado de tensão aparece de novo, a imagem do objeto é reinvestida. ” (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001: 530). Ou seja, a vivência é uma marca de uma tensão causada por uma situação que convoca o nosso desejo inconsciente.

  • 15

    A partir dessa crítica, passei a observar que a maioria dos professores de

    balé reproduziam métodos, principalmente o europeu, para o ensino da dança,

    desconsiderando as diferenças anatômicas e a peculiar sonoridade e

    desenvoltura latina.

    Os professores de dança, de modo geral, costumam se esquivar das

    perguntas relacionadas à compreensão dos passos, ressaltando apenas a

    memorização das sequências coreográficas. Não considero que seja

    fundamental conhecer de onde os movimentos surgiram de maneira histórica. A

    reflexão que faço é sobre compreender o porquê de realizá-los, de refletir sobre

    o movimento, de fazer relações entre o que se aprende em aula com outras

    dimensões da vida.

    Esta aproximação entre o aprendizado dos movimentos e gestos com a

    vivencia do estudante em dança, cria significados e a incorporação da técnica

    de maneira diferente, o que torna o espaço educativo um lugar de expressividade

    que se estende para as apresentações.

    É comum o entendimento da a sala de aula ser o lugar do treino e dos

    ensaios e as apresentações sejam reservadas para o dançar. Este tipo de

    pensamento é perigoso, pois a maior parte do tempo de um bailarino é se

    exercitando. Se lhe for segregado somente as apresentações a expressividade

    corremos o risco de estar formando ótimos executores de passos que não

    dançam.

    Durante as apresentações não existe questionamento técnico. Este já fora

    superado em aula, porém uma intuição de que há algo, ainda a ser investido

    nesta experiência que ficou aquém. E por que não poderia ter sido explorado

    nas salas de aula?

    Entendo este momento como a transição da consciência do corpo, já

    incorporado pela técnica, dando espaço para que corpo consciente se expresse.

    Para Merleau-Ponty (2011), uma expressividade efetua a significação que

    habita gestos, pois na ação dançante, a dança tece significações e sentidos, uma

    dimensão do agir humano em forma de expressividade artística criadora.

  • 16

    Esse foi o ponto de partida, buscar na fenomenologia a integralidade entre

    corpo e alma, pois na dança não existe prevalência dessas instâncias e sim a

    integralidade delas. Esta integralidade está na linguagem que é expressão e

    comunicação.

    Atravessado pelo pensamento psicanalista, busquei as primeiras

    inquietações sobre o corpo, útil para o desempenho das tarefas cotidianas e que

    delimita a própria existência. A psicanalista Françoise Dolto (2007) apresenta o

    conceito de imagem inconsciente do corpo, imagem internalizada de como se é.

    Essa referência de si mesmo tem seu momento inaugural descrito por Lacan

    (1998) como Estádio do Espelho; a criança aliena sua própria imagem e

    reconhece-se outro fora de si ao contemplar-se diante do espelho. Esse

    momento de apropriação de si está, fundamentalmente, relacionado ao

    apropriar-se do corpo próprio. Tudo o que se desenvolve relacionado à

    identidade e alteridade parte deste momento inaugural.

    Essa integralidade tende a ser dividida. Culturalmente costuma-se

    separar o pensamento do corpo, atribuindo a essas instâncias funções diferentes

    ou mesmo valorativas. Essa dissociação separa a condição integral – corpo e

    alma. No ensino da dança essa separação aparece quando se valora mais o

    ensino da técnica e se reduz a formação artística.

    Há uma preocupação e um resgate nesta pesquisa em pensar a dança

    através da fenomenologia. Uma perfeita harmonia de um corpo que se expressa

    a partir de sentimentos, de percepções constitutivas totalmente inéditas e não

    dadas de modo metódico. Um entrelaçamento do corpo instrumento, corpo

    consciência, nas formulações da fenomenologia: “corpo-próprio”, que está

    aberto ao mundo para percebê-lo e interpretá-lo.

    A questão está em como será que os bailarinos se percebem neste

    processo. Se tem consciência de que ao dançar seu corpo está integrado aos

    seus próprios sentimentos ou quando se tornam professores reproduzem

    apenas o ensino da técnica corporal.

    O corpo consciente é aquele que consegue transmutar o aprendizado de

    técnicas incorporando-as à própria vida para além do exercício profissional. Para

  • 17

    os artistas do corpo, existe um processo que ultrapassa a forma e ganha um

    contorno que dá significados a gestos que, talvez, na automatização diária se

    tornem apenas reflexos motores perdendo ou enfraquecendo a intencionalidade

    do que desejam, de fato, revelar ou dizer. O corpo consciente não é um lugar

    objetivo que se pretende chegar e sim um processo no qual, sem a

    intencionalidade educacional durante a formação do bailarino, fique apenas a

    consciência do corpo, em outras palavras, no domínio da técnica que não

    relaciona a outras dimensões de sua própria vida que pode ampliar sua

    expressividade.

    Para dar corpo a essa pesquisa realizei entrevistas com bailarinos

    profissionais que atuam em companhias que se mantém com espetáculos em

    circulação e também como professores, extraindo de suas falas o sentimento

    que os move a continuar dançando. Realizei uma pesquisa oral qualitativa com

    apenas duas perguntas: O que você sente quando dança? E por que você

    dança? a fim de conhecer a motivação interna que os impulsionam a se

    manterem como bailarinos diante de um cenário econômico pouco atrativo, onde

    o investimento de tempo e financeiro são instáveis, no sentido de lhes garantir a

    subsistência. Procurei os bailarinos durante o intervalo de seus ensaios para

    aproveitar o ambiente e a energia do lugar onde realizam a arte de dançar. Foi

    interessante perceber que a pergunta os deixara incomodados, pois era difícil

    dizer em palavras o significado de dançar. As respostas foram inseridas no texto

    dando o contorno de que a dança é em si mesmo a formulação de significados

    que não couberam em palavras, evidenciando que o corpo é quem diz. Todos

    os entrevistados permitiram terem seu nomes e respostas revelados nesta

    pesquisa.

    O ambiente das companhias é sempre agitado. Mesmo entre intervalos,

    os bailarinos mantêm-se dedicados em conversas ligadas ao ensaio,

    repassando as sequências coreográficas, revendo detalhes e chamando a

    atenção para as correções solicitadas pela direção. Mesmo durante as pausas a

    energia permanece atenta. Os bailarinos trabalham duro e demonstram estar à

    vontade com isso.

  • 18

    Os capítulos que seguem esta dissertação estão fundamentados na

    experiência estética formulada por John Dewey (2010), com base em

    pensadores da educação, estudiosos do corpo como Christine Greiner (2006), e

    pesquisadores da dança como Mirza Ferreira (2017), que apresentam outros

    pensadores e filósofos desta arte como José Gil (2001), Laurence Loupe (2012),

    dentre outros que se tornaram referência para essa pesquisa.

    No primeiro capítulo destaco duas personalidades que influenciaram o

    mundo da dança: Isadora Duncan e Pina Bausch. Suas vidas e atuação artística

    modificaram a estética da dança. No segundo capítulo apresento as entrevistas

    que realizei com bailarinos para entender seus sentimentos quando dançam,

    analisando-os a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty (2011). No terceiro

    capítulo dedico à análise do ensino da dança a partir de uma reflexão sobre a

    sobreposição de métodos chamando a atenção para não haver maior dedicação

    ao desempenho da técnica sobre o corpo deixando de lado o desenvolvimento

    da expressividade.

    As imagens que compõem o texto são abordadas como leituras do

    movimento. Elas não partem de uma discussão da fotografia ou do olhar do

    fotógrafo e sim do bailarino que as lê.

    Acredito que durante a formação do bailarino que pretende ser

    profissional da dança é necessário que ele se entenda como artista. Nesse

    processo cabe ao professor relacionar aos movimentos as sensações e

    percepções do aluno. Talvez caiba sempre perguntar: O que você sente quando

    dança?

    Esta pergunta também me foi feita pela banca na defesa. Para responder

    escolhi uma imagem minha dançando no ano de 1998 que ilustra o sentimento

    de liberdade que a dança me desperta. A coreografia se chama Voa, no

    momento registrado um salto em grand jete.

    Quando vejo esta fotografia compreendo que minha atuação não é

    somente estética, mas uma expressão de sentimentos, de entrega e de me

    deixar tomar pela música e pelo que ela me provoca.

  • 19

    Figura 1. Coreografia VOA, Coreografia de Isaura Guzmán (1998), Intérprete: André Pereira – Fotógrafa: Lamberti, Paula

    O que sinto quando danço não cabe em palavras. Está dito quando me

    movimento, quando digo com o corpo. É uma elaboração de sentimentos que a

    dança me permite expressar no ato, no contexto de uma cena, que se expande

    para o cotidiano na observação de mim mesmo e dos contextos sociais em que

    estou inserido. A dança não se encerra na apresentação. Ela se expande e me

    permite realizar outras compreensões e autoconhecimento e um encontro que

    com o outro naquilo que somos semelhantes: nossos corpos e nossa

    expressividade.

    Nos poros de um corpo que dança, a pesquisa se aprofundou e conheceu

    mais do que líquidos que fluíam para se recuperar do esforço físico exigido pelo

    dançar. Um corpo comunicante encontrou lugar de fala em um universo onde é

    comum dizer tudo sem palavras

    .

  • 20

    Capítulo 1

    O corpo emancipado que escorre sem amarras

    O problema era a emancipação: que todo homem do

    povo pudesse conceber sua dignidade de homem, medir

    a dimensão de sua capacidade intelectual e decidir

    quanto a seu uso.

    RANCIÈRI (2017: 37)

    Nenhum corpo é emancipado por si mesmo. Ele sempre estará mediado

    por sua época e por instâncias sociais como a religião, normas de civilidade e

    conduta mediadas pelo próprio Estado. No recorte do mundo da dança não é

    diferente, pois sujeitamos os corpos dos bailarinos profissionais a horas de

    trabalho e também a modelos estéticos que dão contornos a perfis esperados e

    desejados. Todavia, algo que habita dentro de todos nós parece, em algum

    momento, nos convocar à fala, talvez não a palavra em si, mas a expressividade.

    Embora a emancipação não seja o fenômeno que melhor explique, considero

    que as duas personalidades femininas que escolhi para esta pesquisa, em seu

    tempo e por suas vivências, emanciparam algo que a dança já estava gestando

    para nascer de dentro delas. Nesse sentido, a dança permite um espaço para

    que o sujeito se coloque e se expresse dando vasão às impossibilidades de

    expressão de se tornarem reveladas em ato, em cena como uma escolha de

    lugar possível.

    Neste capítulo irei analisar o processo criativo de bailarinos e coreógrafos

    como resultado de uma formação artística interdisciplinar com outras artes que,

    transversalmente, inspiram a criação de obras que traduzem momentos sociais

    e que também se conectam com as inquietações humanas. Para isso

    contextualizarei, brevemente, duas personalidades importantes para a dança:

    Isadora Duncan e Pinha Bausch. Como precursoras, deram contorno a vida

    interior humana e de sua relação com a natureza através da dança. Ambas com

    a formação tradicional em balé clássico e suas rupturas, deram o tom para a

    criação de montagens contemporâneas que ainda hoje são referências para o

    universo da dança.

  • 21

    Importante dizer que este não é um caminho linear, pois ao escolher citar

    essas duas personalidades que viveram em tempos históricos muito diferentes,

    o destaque está pela sua atitude frente a modelos impostos em suas épocas, e

    neste sentido ambas não lidaram com prevalências. Como Rancièri (2017), que

    nos apresenta o conceito de emancipação sendo um conhecimento de si ou de

    algo que possa ser lançado na medida em que possa escolher como e quando,

    uma autonomia que se faz por entender a escolha ou a necessidade de

    compartilhar o que se aprendeu.

    A leitura dessas histórias nos coloca em contato com duas mulheres

    bailarinas que integraram à sua dança uma expressividade importante e que

    decidiram dividir de forma artística, na dança, corpos que aprenderam a dizer

    algo muito próximo de suas vivências e autoconhecimento com alcance que

    pode nos inspirar a pensar sobre o ensino da dança.

    Um corpo que se emancipa leva consigo formulações sobre si mesmo. E

    nesse sentido não está dividido, está integrado com seus pensamentos, com

    suas ideias sobre como lê seu mundo e por isso sente a necessidade de se

    expressar. A escolha da arte como possibilidade de colocar em suspensão

    padrões estabelecidos é revolucionária e pacífica, pois não impõe uma nova

    regra, mas oferece caminhos à reflexão em respeito aos diferentes momentos

    onde cada um pode se ver emancipado.

  • 22

    1.1. Desvestindo as amarras – Isadora Duncan

    Uma imagem. Uma bailarina dançando e nesse ato expressando um

    momento que diz muito sobre um corpo que se liberta, que se disponibiliza, que

    se entrega à interpretação e seu sentir, desvestindo 4amarras:

    Figura 2. Five Brahms Waltzers, Coreografia de Isadora Duncan, Intérprete Jodie Gates: Fotógrafo: Chinn, Paul.

    Nesta figura a bailarina Jodie Gates, interpreta Five Brahms Waltzers ao

    estilo de Isadora Duncan onde é possível identificar várias rupturas à dança

    4 A escolha pelo termo “amarras” tem o sentido de dizer sobre as impossibilidades de expressões físicas ligadas a hábitos e padrões sociais, principalmente aos aceitos socialmente que podem ser observados em indumentárias, vestimentas que determinam gêneros e status social. As amarras também podem ter o sentido de prisões mentais que limitam ou invalidam a nossa percepção pessoal dando lugar aquilo que já está dado. O corpo que dança escorre as amarras encontrando veios possíveis de expressão que fora dela já estejam condicionadas as convenções sociais e políticas que nos medeiam.

  • 23

    clássica. Para além de uma síntese de força interpretativa onde os pés tensos

    elevam a estatura a fim de transpor a própria medida e buscar no alto algo que

    transcenda o que está na terra, disponibilizando nas mãos e braços tensos,

    amarras invisíveis que talvez só estejam presentes em conceituações morais

    não refletidas, mas que podem ser despertadas na experiência da arte. Notamos

    também a revolução nas apresentações de dança de sua época desvestindo os

    espartilhos e tutüs clássicos dos balés de repertório, dos cabelos presos em

    coque, em geral revestidos por pequenas coroas ou arranjos de flores e,

    principalmente, da emblemática sapatilha de ponta para dançar livremente num

    palco desprovido de indumentárias e cenários grandiosos e de passos

    codificados. O corpo em cena se torna o único elemento a ser visto, protagonista

    numa dança que, organicamente, obedece ao mover nada convencional ao

    costume da plateia, mas, intrinsicamente comprometido com a sua verdade.

    Um corpo feminino desprendido no palco podendo ser o que deseja, se

    permitindo de romper com rigores estéticos estabelecidos pelo balé clássico e

    de uma “época mais conservadora”, se autoriza a rompê-los através da arte, da

    dança.

    No contexto final do século XIX para a entrada do século XX há

    importantes mudanças sociais, políticas e econômicas que ressaltaram a

    diferença entre proletariado e burguesia. Na arte expressionismo buscava uma

    certa interioridade dos artistas. O pensamento filosófico é influenciado pela

    psicanálise que desconstrói a ideia de controle da consciência em busca de

    pensar o homem a partir do inconsciente. Neste contexto, Duncan se tornou um

    símbolo que inspirou mudanças, pois, não era somente em suas apresentações

    que ela revolucionava. Podemos dizer que estava à frente de seu tempo como

    mulher com propostas emancipatórias e questionamentos ligados à política e ao

    papel da mulher na sociedade. Questões hoje muito discutidas sobre o

    feminismo e direitos humanos e o protagonismo do corpo feminino.

    Ainda sobre a imagem de Jodie, é possível identificar a interpretação

    contida nas coreografias de Duncan de como o corpo está disponível ao

    movimento conectado ao sentir. Logo as partituras e a movimentação surgem

  • 24

    da necessidade de expressar, de revelar, de dizer, compondo uma dramaturgia

    criando enredos próprios.

    Ao escrever sobre a dança moderna, o filósofo Roger Garaudy (1980),

    fala sobre a ruptura que Duncan causou em favor de um novo movimento que

    inspiraria a concepção sobre a quem o corpo deveria servir ao dançar:

    A “dança moderna” retoma assim – depois de quatro

    séculos de “ballet clássico” e vinte séculos de desprezo do

    corpo por um cristianismo pervertido pelo dualismo

    platônico – o que foi a dança para todos os povos, em

    todos os tempos: a expressão, através de movimentos do

    corpo organizados em sequências significativas, de

    experiências que transcendem o poder das palavras e da

    mímica. (GARAUDY, 1980: 13)

    Desde pequena, Isadora, que nasceu em São Francisco no ano de 1877,

    época de reconstrução pós-guerra civil americana, se movera conforme sua

    intuição inspirando-se na natureza, entregando-se ao vento, às ondas do mar,

    deixando-se envolver pelos odores dos ambientes, assemelhando-se a uma

    criança que descobre os sentidos experimentando o efeito que eles lhe

    provocam e sua necessidade de expressar a todos os estímulos que recebe.

    Isadora rejeitou estudar pois considerava a educação muito restritiva. Ela

    ingressa na dança aos 10 anos de idade e seu comportamento natural já era

    contestador a sistemas educacionais que enquadram sujeitos em modelos

    sociais vigentes (PORTINARI, 1989). O que me faz lembrar de Rancièri (2017),

    quando ele trata sobre a instrução num processo onde a escolarização se coloca

    como detentora de todo saber, no sentido de que a escola exerce um reflexo da

    sociedade:

    Instruir pode, portanto, significar duas coisas

    absolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo

    próprio ato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forçar

    uma capacidade que se ignora ou se denega a se

    reconhecer e a desenvolver todas as consequências

    desse reconhecimento. (RANCIÈRI, 2017: 11)

    Isadora usa a expressão como forma de comunicação para conectar seus

    sentimentos mais internos e trazê-los para fora, expressando-os em gestos,

  • 25

    movimentos e ações que talvez, para os padrões de sua época não fossem

    totalmente compreendidos.

    Ao trazer para a dança essas sensações, torna público sua leitura sobre

    vida, rompendo com os formatos dos balés de corte, principalmente sobre as

    personagens femininas sempre castas à espera de uma figura masculina que as

    tornassem emancipadas por meio do casamento. É neste sentido que ela

    expressa a sua emancipação, assumindo as consequências de expor seu corpo

    nas apresentações da maneira como se sentia à vontade muito inspirada na

    cultura grega.

    Entre união e compromisso de se deixar sentir e liberar-se ao movimento.

    Permissão para sentir e expressar aquilo que não tem palavra ou forma, em seu

    caso, apenas dançar com o interior de si mesmo, como diz a historiadora,

    pesquisadora e jornalista Maribel Portinari (1989):

    [...] se Isadora ajudou a arejar o convencional, sua principal

    contribuição consistiu em indicar novas vias de expressão.

    Vagamente inspirada em modelos gregos, ela se fez arauto da

    libertação do corpo, fosse pelos movimentos ou pela

    simplificação da indumentária. Sua dança propunha, acima de

    tudo, uma harmonia com a natureza. (PORTINARI, 1989: 139)

    Sua trajetória como bailarina a colocou como coreógrafa e professora. Ela

    passou a ensinar a dança que irradiava de seu interior. Ela chegou a montar

    apresentações inspiradas no helenismo com seus bailarinos e viajara para a

    Europa e por onde passava recebia reconhecimento. Claro que em alguns locais

    não. Seus contemporâneos passaram a trabalhar na sistematização desta

    aprendizagem para reafirmá-la como linguagem e método de ensino. Uma certa

    interioridade a partir do sentimento de quem dança surge com força e arrebata

    emoções, seguindo o princípio de libertar o ensino da dança do condicionamento

    do corpo dos bailarinos.

    Algo do drama mediado passa a ganhar contornos estéticos diferentes

    dos apresentados pelos clássicos de repertório. O eixo corporal, ponto de

    equilíbrio e saltos ganham dinâmicas diferentes em tempos musicais pouco

    prováveis. O corpo ganha uma voz para além da mimese como uma onda interna

    que reverbera de dentro para fora, não como descarga e sim como síntese.

  • 26

    Assim como a palavra não é a coisa, mas a representação dela, a dança é em

    si mesmo a presentação daquilo que só se pode mostrar dançando.

    Assim como Susanne Langer (1971), apresenta em sua análise sobre a

    linguagem e os significados que nela estão contidos ao se referir a

    expressividade da dança:

    Primeiro as ações da “dança” tenderiam a tornar-se

    pantomímicas, reminiscentes daquilo que causara a

    grande excitação. Elas se ritualizariam, e ateriam a mente

    ao evento celebrado. Em outras palavras, haveria modos

    convencionais de dançar apropriados a certas ocasiões,

    tão intimamente associados a tal espécie de ocasião que,

    agora, sustentariam e corporificariam o conceito desta –

    em outros termos, emergiriam gestos simbólicos.

    (LANGER, 1971: 136)

    Estes gestos simbólicos estão presentes na cultura, mas também podem

    ser ressignificados na medida em que alguém provoque rupturas, permitindo que

    novos signos sejam expressos em movimentos pela força emocional.

    Essa abertura de pensamento em relação à dança mudou a maneira de

    apreciá-la, pois, o público ao assistir as apresentações onde os corpos

    obedecendo ao desejo de mover-se livremente lhes causou comoção. A catarse

    promovida pelo teatro se aproxima da dança como nos rituais mais primitivos

    que congregavam todos a dançar. Um corpo emancipado pela liberdade de

    escoar sem amarras.

    A atitude de Isadora Duncan ainda influencia a professores e coreógrafos

    na atualidade que desejam explorar outras formas de criação de suas obras.

    Todavia prevalece o rigor pela forma na formação acadêmica de um bailarino

    sem um equilíbrio para privilegiar também o desenvolvimento da expressividade

    ou a expansão da leitura da consciência do corpo para a vida cotidiana.

    Maribel Portinari (1989), chama Isadora de Dionisíaca, pois sua mente

    indomável fez valer em seu corpo suas imagens poéticas, ao citar seu

    testemunho sobre como ela, de como antevê o movimento em seu corpo diz:

    “Minha primeira ideia sobre a dança me veio pelas ondas do mar. Eu procurava

    imitar seu movimento, seu ritmo” (DUNCAN, apud PORTINARI, 1989: 136).

  • 27

    Nesta narrativa ela revela estar liberta. O corpo pode transmutar para

    além de sua própria borda. O desejo de presentação não precisa estar ligado ou

    associado a pantomina humana, mas pode congregar com outros elementos,

    outros sons, outras músicas, outras sensações. Uma certa interioridade encontra

    caminho validado por Duncan para influenciar a dança moderna e seus

    sucessores.

    Adentraremos no universo criativo de Pina Bausch, a artista que ousou

    uma nova forma de criar o processo de coreografar, antecipando o que hoje

    chamamos de processo colaborativo, mas de maneira inovadora à sua época.

    1.2. A voz do corpo – Pina Bausch

    Aos 15 anos a alemã Pina Bausch inicia seus estudos em dança na escola

    de Folkwang Hochschule em 1955 e se torna aluna de Kurt Jooss, que inseriu a

    dramaturgia em suas obras e o poder expressivo na dança moderna. Segundo

    Juliana Silveira (2015), “(...) ele buscou desenvolver a dança como uma

    linguagem, insistindo que todo movimento deveria ter um significado.”

    (SILVEIRA, 2015: 47). Ele foi o diretor desta escola e o precursor do que mais

    tarde chamou-se dança-teatro.

    Ser aluna de Jooss, certamente influenciou na formação de Pina de

    maneira decisiva a pensar num caminho diferente para sua atuação artística.

    Nessa escola os estudos não eram focados em apenas uma área. Todas as

    artes e influências culturais eram ministradas aos alunos, independentemente

    de sua escolha principal. Juliana Silveira (2015), ressalta que essa

    interdisciplinaridade ampliava a perspectiva para entender e compor uma

    compreensão da arte de forma integrada. Uma formação com essa característica

    deixa impressões determinantes para formação de repertório e referências

    consistentes sobre arte, sociedade e cultura, desenvolvendo habilidades

    importantes.

  • 28

    Juliana Silveira (2015), destaca a percepção de Pina sobre como era a

    sua dinâmica de estudos na escola, destacando o trecho de uma entrevista que

    concedida a filósofa e critica de teatro e dança, Leonetta Bentivoglio em 1994:

    [...] havia duas seções distintas no mesmo edifício: a

    primeira seção incluía as matérias vinculadas ao teatro,

    como a música e a dança, e a segunda, todas as artes

    visuais, a fotografia, a escultura, a pintura e assim por

    diante. O programa de dança era muito vasto: estudava-

    se a dança clássica, os diferentes tipos de técnicas

    modernas, todos os gêneros de folclore europeu, muitas

    matérias teóricas e ainda a composição, ou seja, aulas em

    que os alunos eram estimulados para a criatividade.

    (BENTIVOGLIO apud SILVEIRA, 2015: 36)

    Para estimular a criatividade dos alunos, o programa da escola

    contemplava apresentar outras áreas das artes para provocar novos olhares e

    estimular a criatividade e a imaginação. Juliana Silveira (2015), destaca a própria

    percepção de Pina frente a interdisciplinaridade a partir de uma fala que está em

    uma publicação do Caderno Mais da Folha de São Paulo do ano de 2000:

    [...] o magnífico daquela escola, ao lado de meus iminentes

    professores Kurt Jooss, Hanz Zullig, Jean Cebron e outros,

    era que havia tantas coisas a aprender, e todas

    despertavam a imaginação [...] (BAUSCH apud SILVEIRA,

    2015: 37)

    Despertar a imaginação é a maior e mais difícil tarefa que o ensino,

    independentemente de ser ou não dirigido à arte, pode proporcionar a um aluno.

    Durante o período em que ministrei aulas de dança, sentia dificuldade em

    rebaixar a racionalidade dos alunos para que eles experimentassem sensações

    a partir da música e do movimento. Há que considerar que a experiência escolar

    tem se reduzido à formação a instrumentalização de saberes que objetivam a

    entrada no mundo do trabalho. Disciplinas como arte musical e teatro se

    tornaram optativas e quando estão presentes, tem um caráter recreativo sem

    seguir o mesmo critério avaliativo das demais tornando facultativa a presença e

    assiduidade dos alunos, esvaziando o potencial que despertarem a criatividade,

    a leitura crítica ou, no limite, a sensibilidade.

    Essa dificuldade de mobilizar a imaginação era compartilhada por um

    grupo de professores de teatro que coordenei no período de 2013 a 2017. Em

  • 29

    nossas reuniões de planejamento o desafio maior não era o ensino de conteúdos

    como História do Teatro ou Caracterização Cênica que considerávamos ter um

    caráter mais didático. O desafio educacional era despertar ou, como

    costumávamos dizer: “destravar” a imaginação.

    Depois de formada em 1959, ela parte para Nova York para estudar na

    Juilliard School com bolsa de estudos. Para se manter financeiramente passa a

    atuar como bailarina no Metropolitan Opera e no New American Ballet. Segundo

    Juliana Silveira (2015), a vida agitada na metrópole lhe marcaria. O trabalho com

    diferentes coreógrafos daquela época em conjunto com seus estudos e a

    pressão para se manter financeiramente e conectada a todos estímulos culturais

    da metrópole lhe causaram incertezas que ela passou a integrar a sua expressão

    interpretativa e futuramente em suas criações coreográficas.

    Em 1962 ela retorna para a Alemanha para a mesma escola onde foi

    aluna, agora como professora e em seguida, após Jooss se aposentar, ela

    assume a direção do departamento de Folkwang. Segundo Silveira (2015), Pina

    passa a criar coreografias, não pelo desejo de criá-las, mas pela necessidade

    de dançar. Uma professora que dança.

    Mesmo ocupando o cargo de direção e coreógrafa, ela permanece em

    cena. Gostava de estar no palco, de sentir os movimentos e de transmiti-los à

    companhia. Sua presença em cena torna-se cada vez mais marcante por sua

    interpretação e pelos movimentos que desafiam o peso corporal parecendo

    flutuar em ondas sonoras.

    A busca por movimentos que se conectem à vida e que tragam ao palco

    uma conexão passam por questões sociais, o que era uma das marcas no

    trabalho de Pina. O processo de criação que ela utilizou com sua companhia

    buscava essa aproximação, uma narrativa para sua dança. Ela buscava “uma

    certa honestidade”, para a sua criação (BAUSCH apud SILVEIRA, 2015: 60).

    Esta honestidade cria uma conexão com o público, por se reconhecerem

    na movimentação dos bailarinos. Entendo como uma necessidade de Pina em

    se aproximar das pessoas, de observar seus gestos mais coloquiais e revelar

    intencionalidades carregadas de sentimentos e, neste sentido, por mais que

  • 30

    tenhamos uma constituição histórica ou subjetiva que se repita em hábitos, pode

    conter algo de inédito que ela procurou explorar em sua observação.

    A construção de uma dramaturgia de gestos simples e carregados de

    sensibilidade, de deixar fluir na pele sensações minimalistas ao mesmo tempo

    carregadas de intensidade que ganham a proporção do palco e do olhar. Uma

    permissão de explorar e bancar numa expressão artística uma pincelada inédita,

    uma nova tonalidade de cor, uma representação contemporânea que arrisca

    desbravar novas concepções sobre o movimento e que no caso de Pina,

    influenciar outros artistas da dança a começar pelos seus alunos e companheiros

    de cena.

    Figura 3. Pina Bausch em Café Müller de 1978

    Nesta imagem podemos ver a força expressiva do gesto de Pina Bausch

    onde sua musculatura revela uma tensão ao mesmo tempo em que parece

    gravitacional, quase que suspensa no ar. Este tipo de movimentação lhe era

    muito peculiar, como um hiato no tempo os movimentos são combinados entre

    força e leveza, contradições que ocupam nossas decisões frente à solidão por

    exemplo. Estagnados pelos sentimentos de aterramento ansiosos por um lufar,

    uma saída, uma possibilidade de reconhecer no outro, sentimentos de

  • 31

    identificação ou libertação. Pausas que temos frente a tensão que os

    sentimentos nos geram, estados de suspensão da mente materializados nos

    gestos dançados por Pina.

    Ela foi a diretora, coreógrafa e bailarina de Café Müller (1978). Este balé

    ficou popularmente conhecido por aparecer no início do filme Fale com Ela

    (2002) do cineasta espanhol Pedro Almodóvar que inseriu um pequeno trecho

    onde Pina está dançando com gestos minimalistas num grande salão. Embora

    esta obra seja reconhecida desde sua estreia, na década de setenta, foi a partir

    deste filme, é que outas pessoas, fora do universo da dança, passaram a

    conhecer e a se interessar pelo trabalho de Pina Bausch.

    Nessa obra que trata sobre a solidão, de encontros e desencontros, a

    interpretação entregue e visceral dos bailarinos que se movem por um salão com

    cadeiras e mesas onde eles interpretam pessoas comuns com roupas do

    cotidiano e movimentos que conclamam um ao outro ao mesmo tempo em que

    se separam. Infelizmente não tive a oportunidade de assistir ao vivo, mas em

    vídeo e como bailarino notei que estava para além de um compromisso

    coreográfico, era dança.

    Durante a coreografia, no trecho fotografado, Pina dança com os olhos

    fechados. Esta postura traduz o afastamento de um estado de vigília

    demonstrando entrega e confiança a obra que se esta dançando.

    Essa confiança se constrói com um vínculo muito próximo do que os

    atores chamam de jogo cênico. No teatro, os atores, exercitam vários exercícios

    para promover a confiança que resulta em sinergia durante a leitura dramática.

    A letra do texto passa a ganhar a autonomia interpretativa deixando de ser roteiro

    para se tornar a história que se deseja contar. O mesmo ocorre na dança, porém,

    as marcações coreográficas guiam a movimentação em cena. Na dança-teatro

    há um espaço para o jogo que se estabelece na interpretação. Pina explora este

    espaço com experimentando o método de perguntas e respostas para criar suas

    coreografias. Os bailarinos são convidados a contar suas vivências, suas

    histórias de vida. Ela buscava associações por meio de temas de outros balés

    numa busca de fazer algo novo sem abandonar um percurso já existente, como

    apresenta Juliana:

  • 32

    As perguntas que a corógrafa formulava eram tentativas de

    reaprender a ver o mundo, as pessoas e suas relações. A

    pesquisa sobre questões relativas aos seres humanos e às

    suas relações era o eixo de seu trabalho. Nas palavras de

    Bausch: “É a vida, o que sucede à nossa volta, que

    inevitavelmente constitui uma influência. É isso, não diria que

    sou influenciada por fatores artísticos propriamente ditos.

    Tento falar da vida. O que me interessa é a humanidade, a

    relação entre os humanos. ” (SILVEIRA, 2015: 60)

    Pina estava muito interessada em trazer temas corriqueiros das vidas das

    pessoas e inicia esse processo com seus bailarinos. Ela reuniu esses relatos e

    procurava explorar os sentimentos através de perguntas. Assim ela montava

    partituras de movimentos inéditas formando novos desenhos coreográficos e

    carregados de emoção.

    Isso permitiu que sensações, antes não exploradas, fossem consideradas

    como elementos para a criação. Foi preciso libertar o corpo de dentro para fora,

    reconectá-lo ao sentir, reapropriá-lo de significado em seus gestos, valorizar a

    caminhada não pela sua motricidade, mas pelo sentido de caminhar: com peso,

    sem peso, em velocidade ou retração. Algo que passe pela interpretação e que

    tenha total significado com a narrativa que se deseja expressar. Uma maneira

    de tornar corpos já habilidosos e moldados pela técnica da dança em corpos

    conscientes.

    Isso desloca o bailarino de um papel passivo durante a criação de uma

    obra. Num modelo tradicional, o bailarino está presente e atento ao processo

    criativo do coreógrafo, mantendo a observação atenta para aprender as

    sequências e partituras coreográficas. Na medida em que apreende o

    movimento se conecta a intenção do criador, criando um compromisso através

    de um processo colaborativo. Pina propõe implicar a vivência de quem se move.

    Ela se abre para ser atravessada pelo o que sente o bailarino e depois

    transmutar isso em uma obra artística.

    Num diálogo onde a palavra vira movimento, ela explora os sentimentos

    e não os condiciona. Segundo Juliana (2015), no início está maneira de trabalhar

    com o elenco gerou muito desconforto. Bailarinos deixaram de trabalhar com

    Pina fazendo duras críticas e esse método reivindicando trabalhar com outros

    coreógrafos em métodos mais tradicionais. Aos que permaneceram, ela

  • 33

    conseguiu “tocar” de maneira muito singular a ponto de ficarem completamente

    “viciados” em prosseguir trabalhando suas narrativas a serviço da dança:

    Utilizei, além dos bailarinos, vários atores, e percebi que

    não podia criar a partir de evoluções do corpo, mas sim da

    cabeça, e por isso comecei a fazer perguntas sobre o que

    o grupo pensava do texto e o vínculo com a vida pessoal

    de cada um. Percebi que isso funcionou muito bem, e

    desde então sempre utilizei perguntas. (BENTIVOGLIO

    apud SILVEIRA, 2015: 58)

    Nota-se que a formação interdisciplinar de Pina lhe dá abertura para

    buscar recursos fora da dança, para fortalecer sua companhia e dar segurança

    para investir no método de perguntas.

    Pina observa o trabalho do bailarino tentando desvelar algo que estivesse

    para além do movimento, segundo Juliana Silveira (2015), sua indagação estava

    instalada em “o que move as pessoas? ”. Sua questão não estava centralizada

    no bailarino executor de movimentos, mas em como os movimentos respondem

    ao cotidiano criando uma conexão entre o corpo natural e sua estética dançante.

    Nesse sentido, Pina insere o bailarino às questões que a inquietam

    ampliando seu olhar para outras questões para além do universo da dança.

    Talvez seja sua ruptura mais importante, pois ao realizar esse trabalho ela

    transforma em ato cênico o cotidiano, assim como faz o teatro mediado pela

    dramaturgia escrita. Diferente do texto impresso interpretado pelo ator, a

    narrativa coreográfica de Pina está impressa no interior de seus bailarinos e

    presentada no corpo. Resgatando a um estado onde corpo integra-se à alma

    aproximando-se do que define José Gil (2001), sobre o movimento exercido pelo

    bailarino:

    No gesto comum, o braço entra em movimento no espaço

    porque a acção impõe do exterior uma deslocação ao

    corpo; pelo contrário, no gesto dançado, o movimento,

    vindo do interior, leva consigo o braço. Movimento ritmado

    que “transporta” o corpo. Esse mesmo corpo que é seu

    suporte. Von Laban diz que o movimento é dançado

    quando “a acção exterior é subordinada ao sentimento

    interior”. (GIL, 2001: 14)

  • 34

    Na lógica de José Gil (2001), e de Rudolf Laban (1978), a dança começa

    dentro do corpo e se revela no corpo, entre o vácuo do espaço criando o

    momento de apreciação, diferente da automação do movimento. A dança se

    propõe à reflexão dos gestos e é neste sentido que Pina desenvolve com a sua

    companhia, o método de perguntas a partir deste espaço. Neste sentido o

    método de Pina, como um todo, cria uma oportunidade intencional de trazer os

    sentimentos dos bailarinos à tona durante o trabalho de criação com a

    companhia e não somente para o momento de apresentação da dança.

    Ao realizar esse trabalho com a companhia, penso que Pina está

    descrevendo a anatomia dos gestos por meio das narrativas dos bailarinos, no

    sentido de reorganizá-los atribuindo maior significado. Isto proporciona outra

    dimensão interpretativa, onde a criação respeita sua subjetividade e interação

    coletiva.

    Nesse contexto histórico o pensamento psicanalítico florescia e

    influenciava à vários artistas nas artes plásticas e na literatura. Não encontrei

    uma referência direta desta influência na dança, mas foi inevitável não associar

    que assim como Sigmund Freud5 deu voz ao corpo, para além do sintoma,

    através da escuta, Pina o fez com seus bailarinos ao ouvi-los numa espécie de

    busca e interesse de encontrar o que antecede em nós internamente que resulta

    em gesto e em movimento.

    Esta técnica permitia o contato com a natureza dos sentimentos e sua

    imediata expressão no corpo. Merleau-Ponty (2011), chama isso de contato com

    a ambiguidade essencial. Para ele, nem sempre relacionamos exatamente o

    interno com o externo (sentimento e corpo), pois há uma necessidade de

    objetivar o sentimento em linguagem. Em um contexto social repressor que

    categoriza e qualifica a relação humana depreciando as expressões do corpo

    5 Sigmund Freud (1856-1939), médico vienense, fundador da psicanálise. (ROUDINESCO e PLON, 1998: 272). Freud formulou sua teoria sobre a interferência do inconsciente nos sintomas das histéricas que atendia atuando por meio da escuta de suas memórias. Como médico ele não se deteve a uma atuação clínica diagnóstica, mas procurou entender os sintomas através da fala de suas pacientes. Sua principal relevância no campo da psicologia é que ele deu voz ao corpo e assim conseguiu aproximar-se das memórias reprimidas no inconsciente e promover a melhora de seus pacientes, modificando a ideia de separação entre mente e corpo.

  • 35

    valorando como menores, é natural que as pessoas desconheçam e nem

    desenvolvam a consciência do corpo comunicante e interditem qualquer

    expressividade que sintam seguindo apenas as normas de conduta socialmente

    aceitas. Neste sentido a linguagem oral teria sido decupada antes de ser

    pronunciada e talvez o sentido direto se perdido na formulação de uma ideia. A

    isso ele considera a valorização do cogito como algo que seja pré a constituição

    da palavra dita: “Nossa atitude natural não é sentir nossos próprios sentimentos

    ou aderir a nossos próprios prazeres, mas viver segundo as categorias

    sentimentais do ambiente” (MERLEAU-PONTY, 2011: 507).

    Corpos treinados para dançar mediados por movimentos coreografados

    podem perder a percepção do próprio movimento que executam. O método de

    perguntas permitia explorar um caminho para escoamento da emoção expressa

    em gestos e movimentos.

    As obras de Pina Bausch e todo o trabalho realizado com seus bailarinos

    foram reconhecidos em todo o mundo e exaltado por todas as artes. Ela deixou

    um legado que seus bailarinos dão continuidade mantendo em circulação suas

    coreografias e proliferando seu método de trabalho. Ela nos deixou em 2009. No

    ano de 2011 Wim Wenders nos presenteia com Pina Dance, Dance Otherwise

    We Are Lost, um filme documentário recheado de suas coreografias e dos relatos

    de seus bailarinos testemunhando a experiência que tiveram com esta

    importante artista.

    1.3. A experiência vivida no corpo

    Embora Klauss Vianna (1990), não faça uma referência direta à Pina nas

    obras que referencio nesta pesquisa, ele defende algo semelhante para o ensino

    da dança quando propõe que o mundo interno do bailarino não seja apartado

    durante a sua formação. Ele critica o modelo que valoriza apenas a forma

    estética do movimento:

  • 36

    Na dança e em toda arte vivemos em função da forma, da

    aparência, da negação da essência. Vivemos o império da

    forma (VIANNA, 1990: 63).

    Para ele, assim como para Pina Bausch, há uma conexão entre todas as

    artes, a particularidade de cada uma não deve ser apartada do processo de

    criação e no caso da dança é preciso implicar o bailarino contextualizando e

    proporcionando que ele tenha uma melhor leitura de seu meio e de si mesmo,

    em suas palavras e em concordância com Pina, ele diz:

    A dança é um ato de prazer, de vida, e só deixa de ser

    prazerosa e viva no momento em que passa a ser

    ginástica, exercício, competição de força e de ego. Uma

    aula não pode excluir a emoção: é preciso incorporá-la à

    aula. Então sou eu, com minha percepção, meus

    conhecimentos, vivências e emoções quem vai escolher o

    lugar na sala, quem vai levantar o braço, quem vai rodopiar

    – não é minha perna que vai subir porque o professor

    mandou. (VIANNA, 1990: 65)

    Seguindo esse pensar, os movimentos surgem a partir dos estímulos

    internos e das emoções particulares de cada um e se transformam em dança

    quando mediados no processo de aprendizagem. Então essa dança está fora

    das salas de aula, no cotidiano, numa espécie de laboratório onde o bailarino

    pode adotar uma postura de observador e pesquisador. Isso amplia a

    compreensão e a auto percepção do bailarino, no sentido, de vincular sua

    expressividade ao seu universo, um desejável caminho em direção a

    emancipação.

    Considero ser importante observar mais de perto essas personalidades

    revolucionárias, pois, elas revelam um processo de inquietação que promoveram

    movimentos de mudança na dança, de dentro para fora.

    O que então podemos pensar sobre o que é um corpo emancipado?

    Segundo Rancièri (2017), a emancipação não ocorre por um processo de

    escolarização onde um mestre, através da instrução, torna o discípulo

    emancipado. Para esse autor é preciso considerar os saberes já aprendidos e

    legitimá-los não invalidando a experiência. Esta consideração está apoiada na

    leitura de uma sociedade desigual que supõe: “aquele que obedece a uma

  • 37

    ordem deve, primeiramente, compreender a ordem dada e, em seguida,

    compreender que deve obedecê-la. Deve, portanto, ser já igual a seu mestre,

    para submeter-se a ele.” (RANCIÈRI, 2017: 11), isso demonstra uma sujeição

    hierárquica que é um reflexo da sociedade.

    Uma pessoa que não pode escolher pela desobediência, não está

    emancipada, pois não lhe é possível escapar dessa sujeição. O contrário seria

    tomar outras decisões e arcar com as consequências.

    Essa atitude ficou destacada em Isadora em seu processo de imersão e

    reconhecimento de seus desejos e inquietudes, expressa em sua dança que não

    mais cabia no estilo clássico. Mesmo contra toda cultura de costumes imposta a

    mulher, sobretudo na estética rígida que a bailarina reproduzia ela manteve a

    decisão de contestar.

    De outro modo, não menos revolucionário, Pina rompe com um modelo

    de criação artística e de direção. A seu favor está um movimento artístico que

    lhe dava pistas para investir em um método que fortaleceu a dança-teatro.

    Estes caminhos abertos permitiram a reflexão sobre processos criativos

    na dança resgatando a essência e a expressividade desta arte que não deveria

    ser marcante apenas experimentada no momento das apresentações, mas

    provocada durante todo seu processo de formação.

    Revisitar essas histórias e compreender os processos artísticos tem

    impacto na formação dos bailarinos desta contemporaneidade, no sentido de

    não tornar o espaço de aprendizagem sem vida como nos chama a atenção

    Klauss Vianna (1990). Implicar os sentimentos dos bailarinos desde sempre é

    aproximá-los de um processo de transformação pela experiência, daquilo que

    nos toca e desperta nossa percepção.

  • 38

    Capitulo 2

    Por que você dança?

    A dança é uma forma de amolecer os poemas endurecidos do

    corpo. Uma forma de soltá-los das dobras, dos dedos dos pés,

    das unhas.

    VIVIANE MOSÉ “Receita para arrancar poemas presos”

    Neste capítulo apresento a pesquisa qualitativa com entrevistas orais de

    bailarinos profissionais. As perguntas e as respostas não objetivam um lugar

    comum. Ao contrário, elas revelam uma experiência pessoal ancorada no

    pensamento da fenomenologia.

    É no corpo do bailarino que se dá essa manifestação artística que é única.

    É o que Merleau-Ponty (2011) afirma ser a significação que habita gestos. Pois

    enquanto ação dançante, a dança tece significações e sentidos, uma dimensão

    do agir humano em forma de expressividade artística criadora.

    Será que os bailarinos têm consciência dessa sua ação?

    Essa consciência acontece durante o exercício profissional sem uma

    intencionalidade, ao acaso, ou por uma busca pessoal. É mais comum que o

    bailarino se entenda como suporte para a criação do coreógrafo ou reproduzindo

    a aprendizagem tal qual recebeu em sua formação.

    “O que você sente quando dança? ” Essa foi a pergunta feita pela banca

    examinadora que avaliava o ingresso de novos alunos a uma importante escola

    de dança do Reino Unido na Inglaterra, no filme Billy Elliot6, lançado no ano de

    2000, onde o jovem, que também dá nome ao filme, responde:

    6 Filme lançado no ano de 2000 de nacionalidade do Reino Unido, dirigido por Stephen Daldry, diretor de teatro que fez sua estreia no cinema com esse filme que contrapõe o amor pela arte e pela liberdade à

    truculência da intolerância conservadora. “Billy Elliot (Jamie Bell) é um garoto de 11 anos que vive numa

    pequena cidade da Inglaterra, onde o principal meio de sustento são as minas da cidade. Obrigado pelo

    pai a treinar boxe, Billy fica fascinado com a magia do balé, com o qual tem contato através de aulas de

    dança clássica que são realizadas na mesma academia onde pratica boxe. Incentivado pela professora de

  • 39

    “Me sinto bem, no início me sinto sufocado, porém quando

    começo a me mover esqueço de tudo e tudo desaparece

    e sinto uma mudança no meu corpo como se tivesse fogo

    por dentro e me vejo voando como um pássaro. É como

    eletricidade. Sim, sinto eletricidade”.

    Resposta pouco científica, porém, sinestésica. Sua percepção de

    movimento é vibracional. Podemos notar durante o filme que suas danças são

    carregadas de energia, de descarga de emoções que não poderiam ser

    expressadas de outra forma senão pelo corpo. Todo contexto da repressão

    econômica da Inglaterra, a desestruturação familiar, a ausência de sua mãe

    falecida em seu parto, a pressão exercida pelo seu pai para ele se tornar um

    boxeador e a responsabilidade que, mesmo sendo criança, ele tinha que exercer

    em cuidar de sua avó senil, geraram sobre esse garoto muita pressão sem

    válvula de escape para ser expresso. Billy aprende que o que não pode ser dito

    em palavras, pode ser dito no corpo, pois a percepção de algo encontra

    expressão em seus gestos e movimentos.

    A apreensão de “significações motoras” passa a residir no corpo-próprio

    através do que nomeia como hábito corporal. Temos um movimento “[...]

    apreendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou

    ao seu “mundo” [...]” diz Merleau-Ponty (2011: 193). Esse saber corporal, não é

    nem um conhecimento, nem um automatismo, muito menos um reflexo

    condicionado, “trata-se de um saber que está nas mãos, que só se entrega ao

    esforço corporal e que não se pode traduzir por uma designação objetiva”,

    continua ele.

    Durante a leitura de Merleau-Ponty (2011), me lembrei deste trecho do

    filme e me inspirei a repetir essa pergunta a bailarinos profissionais que estejam

    atuando em alguma companhia profissional, para investigar se o que move

    esses bailarinos vem de uma necessidade interna de expressão. Os primeiros

    balé (Julie Walters), que vê em Billy um talento nato para a dança, ele resolve então pendurar as luvas de

    boxe e se dedicar de corpo e alma àdança, mesmo tendo que enfrentar a contrariedade de seu irmão e

    seu pai à sua nova atividade. ” (Fonte: Celso Sabadin, crítico de cinema que escreveu para o site:

    cineclick.com.br em março de 2001 – acessado em maio de 2018)

  • 40

    contatos foram estabelecidos com amigos que permanecem em atividade que

    indicaram outros bailarinos com quem eu não tinha contato. Após receber as

    indicações fui ao encontro em seus locais de trabalho.

    Ao estabelecer contato com o bailarino Fabio Silva Merlin, 33 anos de

    idade, que dança há 18 anos numa companhia profissional no interior de São

    Paulo e lhe perguntar se estaria disposto a contribuir com minha pesquisa, de

    pronto ele se mostrou entusiasmado a responder a uma pergunta, porém quando

    a formulei: O que você sente quando dança? ele encontrou dificuldades para

    responder. Em suas palavras:

    Aí meu deus que difícil. Aí meu Deus... eu sei lá... eu me

    sinto... aí que pergunta difícil, não é difícil né? Mas... eu

    me sinto... aí, como vou te responder isso agora? Como

    eu me sinto dançando? Eu não consigo te falar, te dar uma

    palavra com o que eu sinto de verdade. O que eu tento

    fazer quando eu danço é tentar... é... eu tento me sentir

    vivo. Acho que é isso.

    Para encontrar uma resposta que desse conta de seu sentimento, ele se

    moveu na cadeira, olhou para as mãos, ficou tímido, me olhou com certa

    indignação tentando encontrar as palavras corretas. Como responder a um

    sentimento tão profundo? Sentir-se vivo me pareceu adequado.

    Fábio contou que já tentou exercer outras profissões, mas, não se sentiu

    bem. Ele atribui à dança outros valores para além da subsistência financeira.

    Dançar é sua vida, é onde se encontra conectado consigo mesmo. É um

    sentimento comum aos que se dedicam a dançar. Seu corpo já possui uma

    consciência que extrapola para outras áreas de sua vida.

    Para Thiago Guedes Rocha, 23 anos, bailarino da mesma companhia,

    que começou a dançar aos nove anos, a dança já está incorporada em sua

    comunicação:

    Eu acho que a dança é comunicação, então...para mim a

    dança pode expressar diversas coisas, diversos

    sentimentos, então eu vou conseguir dizer tudo o que

    estou sentido, pode ser medo, pode ser paixão, amor

    alegria, tristeza, então não tem um sentimento só que a

    dança me traz. Tipo eu sinto tal coisa pela dança, não. A

    dança pode me trazer diversas coisas, eu posso sentir

  • 41

    medo, calafrio, terror, pavor através da dança, porque a

    dança é comunicação. Então eu vou poder expressar o

    que estou sentindo e as pessoas vão conseguir entender

    e sentir da mesma forma. Então não tem um sentimento

    só para a dança. A dança é toda essa maravilhosa mistura

    de sentimentos que ela pode trazer.

    Uma vez descoberta essa via, não me parece ser possível abandoná-la,

    ou seja, a experiência do bailarino se une com seu modo de viver, sua existência.

    Há um entendimento entre os bailarinos: todos compartilham desse sentimento,

    uma identificação com essas sensações. A experiência que o bailarino tem com

    o próprio corpo e com a música se integram a sua identidade.

    Nesse sentido, compreendemos o que Merleau-Ponty (2011), diz sobre a

    consciência-corpórea como essencial para a expressividade da dança enquanto

    gesto artístico não no sentido de racionalização dos movimentos apresentados

    com domínio técnico. É o que José Gil (2001), nomina como Corpo Consciente,

    integralizado em nada dissociado, mas, inteiro por expressar um humano

    despojado expressando o que de fato é desde sempre.

    O mesmo teor aparece na fala de Karen Teixeira que é bailarina há 30

    anos e que atualmente dirige uma escola de dança e que não consegue deixar

    de se apresentar:

    Talvez no momento da minha dança seja o meu maior

    equilíbrio entre o racional e o emocional. Transbordo os

    meus melhores e piores sentimentos e ao mesmo tempo a

    consciência corporal trabalha para uma realização técnica

    ‘perfeita’ ou o mais próximo disso. Dançar talvez seja o

    meu momento de liberdade absoluta, momento de

    felicidade, momento de satisfação, momento de

    frustração, momento de superação.

    Nesta resposta vemos uma mescla de sentimentos ligados ao dançar. Ao

    mesmo tempo em que ela expressa seus sentimentos ao entrar em contato com

    eles, surge a reflexão de elaboração e superação. Em sua fala aparece a

    preocupação com a realização da técnica, ou seja, com o desempenho do corpo

    com alguma sequência e também o contato com o sentimento de liberdade.

    Tenho a sensação de uma jornada em direção ao autoconhecimento que Klauss

    Vianna (1990), empreendia em suas aulas exploratórias:

  • 42

    O que importa, sempre, é levar a consciência corporal até

    os alunos porque penso que bem mais importante do que

    conhecer o espirito é saber que o corpo existe, está aqui

    comigo e dependo dele para viver. (VIANNA, 1990:126)

    Vianna (1990), insistiu em trazer ou despertar o espírito para suas aulas

    de dança. Sua intencionalidade em preparar o corpo não se dissociava desse

    propósito, pois ele sabia que deveria despertar essa experiência que certamente

    iria resultar num movimento total – termo utilizado por José Gil (2001), como

    tema de seu livro.

    Esse é um importante contraponto numa formação que valoriza mais o

    desenvolvimento físico. Ter a consciência do corpo é apenas uma das etapas,

    ficar nela é como criar apenas uma via para percepção de si, correndo o risco

    de não proporcionar ou despertar o gesto mais interno de sua alma. Seguir

    apenas o desenvolvimento físico nos coloca numa perspectiva de formação

    semelhante à da ginástica, e nisso não cabe juízo de valor, mas de alerta, pois

    dança é arte.

    O que vemos aqui é uma ação diferente do que socialmente estamos

    acostumados. Numa escola de educação formal (fundamental, médio,

    graduação etc.), estimula-se a cognição e, mesmo que o currículo nacional

    dedique uma disciplina à Educação Física, a maior carga horária é dedicada ao

    desenvolvimento cognitivo e isso se estende à vida profissional onde as

    profissões mais valorizadas são aquelas nas quais o corpo quase fica em

    repouso quanto à sua expressão. No mundo contemporâneo o valor está na

    racionalização expressa na palavra. Corpo e alma estão dissociados.

    Esse processo de escolarização forma uma cultura muito determinante.

    Entendo que faz parte da natureza humana convergir essa integralidade que em

    sociedade insistimos em separar. Na dança essa junção ocorre de forma

    espontânea e natural nas diversas expressões em grupo é possível identificar

    sentimentos e intencionalidades.

    Nesse sentido, para Gil (2001), há uma consciência do movimento que

    percorre o corpo. Perdemos essa consciência quando não a valorizamos

    reduzindo o entendimento dos movimentos como reflexos ou como uma reação

  • 43

    física isolada de consciência. Para esse filosofo é necessário explorar esse

    corpo consciente que reflete nosso próprio eu. Uma presença reprimida pela

    racionalidade da palavra. Ele propõe que libertemos o corpo sem regular a

    manifestação que possa vir. Talvez essa proposta não caiba para os variados

    ambientes sociais que frequentemos, pois estes já possuem regras de

    comportamento estabelecidas, mas, para a dança seja possível:

    Trata-se de ‘libertar o corpo’ entregando-o a si próprio: não

    ao corpo mecânico nem ao corpo biológico, mas ao corpo

    penetrado de consciência, ou seja, ao inconsciente do

    corpo tomando consciência do corpo (e não consciência

    de si ou consciência reflexiva de um “eu”). (GIL, 2001: 24-

    25)

    José Gil (2001), também nos leva a compreender que este tipo de

    conhecimento se dê na dança, mais especificamente durante o processo de

    aprendizagem onde há um reconhecimento das potencialidades e superação de

    limites gradativo. Um estado de presença permanente em processos

    colaborativos pode aguçar nossa percepção, no sentido de modificar nossa

    maneira de entender nosso desenvolvimento. Entendo que gradativamente

    encontramos nesse processo nossa própria maneira de nos colocar no mundo e

    com isso assumir nossa posição diante do que percebemos.

    De certa maneira os relatos que apresento são de bailarinos que

    conseguiram, mesmo pouco estimulados durante sua formação como vou

    apresentar no próximo capítulo, se conectarem e criarem essa compreensão.

    Entendo que esse poder que a dança exerce é, de fato, superior por ser arte, por

    invocar sensações internalizadas.

    Tendo em vista as dificuldades financeiras e de reconhecimento social

    dessa profissão, os bailarinos bancam permanecer dançando. Isto me parece

    que são pessoas que se emanciparam, ou seja, assumem os riscos para serem

    fiéis ao que dá sentido às suas vidas.

    Quero retornar ao compromisso da forma, pois verifiquei que a maior parte

    dos bailarinos que entrevistei não tiveram aulas de história da dança de forma

    curricular. E na maioria dos trabalhos que atuaram, não tiveram uma experiência

    de trabalho de criação colaborativa. A direção de um coreógrafo é muito centrada

  • 44

    na própria inspiração. Logo os bailarinos têm pouca interferência e são muito

    cobrados pela sincronicidade das sequências coreográficas ou pela contagem

    de compassos. Chamamos isso de limpeza coreográfica. Isto me fez lembrar da

    tese de Vanessa Macedo (2016), quando ela discute sobre as relações de poder

    na dança.

    Em sua tese ela entrevista coreógrafos e nota que alguns preferem

    selecionar bailarinos que tenham afinidade com suas concepções artísticas, mas

    que se mantenham disponíveis à criação sem interferências. Ela escreve algo

    que se assemelha ao trabalho dos bailarinos que entrevistei:

    Muitas vezes, torna-se um incômodo para o bailarino participar de uma montagem e aprender uma partitura que já estava pronta, ou mesmo estar num processo de criação, mas não poder interferir na composição de movimentos, principalmente, em casos de partituras executadas por grupos. Então surge a pergunta do intérprete: “devo reproduzir? ”. Ele sente que obedece a um comando, copiando o que viu ou executando a partir de um modelo externo e, em nenhuma dessas opções, reconhece espaço para autoria. (MACEDO, 2016: 65)

    Não identifiquei esse incômodo nos bailarinos que entrevistei, mas notei

    a preocupação pela excelência da sincronicidade dos movimentos ditados pelos

    coreógrafos. Ao observar os ensaios, refleti sobre a consciência dos movimentos

    que nascem de dentro para fora e o pouco espaço que os bailarinos tinham para

    explorar isso. De maneira nenhuma havia perda de qualidade, todos dançam

    muito bem, mas algo de seu mundo interno ficava aquém para uma atenção ao

    que vinha do ensaiador.

    Isso se contrapõe ao que vimos no capitulo “A voz do corpo” sobre Pina

    Bausch. Para ela o que importava era o que movia seus bailarinos. Seu

    compromisso estético estava na expressividade. Nesta imagem os corpos não

    estão alinhados da mesma maneira, mas todos estão com a mesma energia,

    algo que me parece ser do respeito ao limite individual e ao mesmo tempo da

    expressividade subjetiva de cada um. Não há sujeira coreográfica e sim corpos

    humanos dançando e o mais surpreendente é que o processo de criação contou

    com as narrativas do próprio elenco, como vimos na primeira parte.

  • 45

    Figura 4 – Tanztheater Wuppertal, Cena do Filme Pina de Wim Wenders (2011), Coreografia: A Sagração da Primavera

    Isso demonstra que o trabalho colaborativo é mais uma possibilidade de

    criação em dança. Por muito tempo o corpo do bailarino foi entendido como

    suporte para a criação do coreógrafo, a genialidade estava na rápida apreensão

    dos movimentos ou da boa conexão entre os dois. O balé contemporâneo

    aproxima a leitura de corpos que habitam a sala de aula e também dos corpos

    que habitam a cidade. De certo modo o bailarino é um radar atento, um

    pesquisador sensível a ler corpos, gestos, movimentos. É seu trabalho digerir e

    expressar no corpo e pelo corpo.

    Talvez o trabalho colaborativo coloque o bailarino em estado de atenção

    mais constante, pois ele fica implicado a observação e a realizar formulações

    para construção de uma obra. Mesmo não tendo tido uma formação que

    intencionasse esse desenvolvimento, há um potencial que pode ser despertado.

    Notei esse potencial na necessidade de se colocar, de contribuir com

    aquilo que se sente pela dança, como podemos ver na fala de Mariana Neves,

    bailarina que atua numa companhia de dança contemporânea: “Possibilidade de

    expressão, liberdade e amor”. Observando esta bailarina atuar é visível sua

    dedicação e amor nas aulas, ensaios e no palco. Existe uma disponibilidade

    quase absoluta de entrega que parece reduzir toda a existência a esses

    momentos, que a meu ver poderia ser também expl