entremeios educacionais · o desenho universal para a garantia da acessibilidade e ferramenta para...
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ENTREMEIOS EDUCACIONAIS:
PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS
NA/DA FORMAÇÃO DO SUJEITO
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Jenerton Arlan Schütz
Renato de Oliveira Dering (Organizadores)
ENTREMEIOS EDUCACIONAIS:
PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS
NA/DA FORMAÇÃO DO SUJEITO
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Copyright © das autoras e dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos autores.
Jenerton Arlan Schütz; Renato de Oliveira Dering (Organizadores)
Entremeios educacionais: perspectivas teórico-metodológicas na/da formação do sujeito. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. 357p. ISBN 978-85-7993-705-7 [impresso] 978-85-7993-706-4 [Ebook] 1. Estudos da Educação. 2. Formação de professores. 3. Formação do sujeito. 4. Autores. I. Título.
CDD – 370
Capa: Andersen Bianchi Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito Conselho Científico da Pedro & João Editores: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil).
Pedro & João Editores www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP 2019
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SUMÁRIO
PREFÁCIO
Jenerton Arlan Schütz e Renato de Oliveira Dering
EDUCAÇÃO ESCOLAR E DIREITOS HUMANOS:
CONVERGÊNCIAS NECESSÁRIAS EM TEMPOS
SOMBRIOS
Cláudia Fuchs
Edinaldo Enoque da Silva Júnior
Jenerton Arlan Schütz
GÊNERO E EDUCAÇÃO: UMA ABORDAGEM
NECESSÁRIA NOS DIAS ATUAIS
Anaquel Gonçalves Albuquerque
DIVERSIDADE DE GÊNERO: DESAFIOS PARA A
FORMAÇÃO DOCENTE
Paula Geovanna Natal de Alcântara Cruz
Patrícia da Silva Fernandes Adorno
INCLUSÃO SOCIAL ESCOLAR: REALIDADE NO
IFTO CAMPUS PORTO NACIONAL
Cynthia Souza Oliveira
Albano Dias Pereira Filho
Tiago Soares dos Reis
ESTUDANTES NEGROS COTISTAS NO ENSINO
SUPERIOR E SEUS PERCURSOS DE
ESCOLARIZAÇÃO
Julia Borba Caetité Algarra
Benedito Eugenio
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27
43
71
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A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA EM ARISTÓTELES:
UMA APROXIMAÇÃO A PARTIR DE
ESTUDANTES DO ENSINO SUPERIOR PRIVADO
NO BRASIL
Rafael Gonçalves Campolino
Vilma Ribeiro da Silva
Roseli Alves Moreira da Silva
ECCE DOMINUS - OU, DE OUTROS TIPOS DE
DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO
Márcio Luís Marangon
Rudinei da Rosa
ANÁLISE CRÍTICA DA BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR – BNCC
Elcio Alcione Cordeiro
TRABALHANDO TEMAS DA ANTROPOLOGIA
SOCIAL E DA SOCIOLOGIA EM DISCIPLINAS
APLICADAS DE CURSOS DE GRADUAÇÃO: UMA
BREVE REFLEXÃO
Romilda De Souza Lima
EDUCAÇÃO DO CAMPO E ALTERNÂNCIA:
DIÁLOGOS PARA A FORMAÇÃO
CONTEXTUALIZADA
Leandro Luciano da Silva
Maria de Fátima Almeida Martins
LINGUAGEM, CINEMA E EDUCAÇÃO:
REFLEXÕES DIDÁTICO-METODOLÓGICAS
Renato de Oliveira Dering
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133
147
169
183
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PEDAGOGIA DO CAOS E PARTITURA DA
REVOLTA – TECENDO NOVAS RELAÇÕES COM
O CONTEÚDO TEATRAL
Ana Carolina Conceição
Tatiana Trindade
MATEMÁTICA APRENDE-SE BRINCANDO:
UMA PROPOSTA DE ENSINO Eduardo Dias da Silva
Leandro Américo Gomes Alves
O ENSINO DE HISTÓRIA NO SÉCULO XXI:
REFLEXÕES E PRÁTICAS
Pâmela Pongan
PERCORRENDO O CAMINHO DAS PEDRAS:
GRUPOS FOCAIS NA PESQUISA DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DE INGLÊS
Fernando Silvério de Lima
PROCESSOS AVALIATIVOS EM CURSOS
TÉCNICOS DE NÍVEL MÉDIO: A METODOLOGIA
SEMINÁRIO EM DISCUSSÃO
Januario Neto Pereira Sarmento
Alcyr Alves Viana Neto
Maria Madalena Rodrigues Teles
ACERVO DA ESCOLA ESTADUAL PROFESSOR
LEOPOLDO MIRANDA, DIAMANTINA-MG:
FONTES PARA
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Layane Campos Soares
Flávio César Freitas Vieira
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227
239
259
279
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CARTILHA DO DIREITO DO CONSUMIDOR
PARA IDOSOS
Ana Caroline Fernandes Parrião
Shavia Thaína Silva de Carvalho
O DESENHO UNIVERSAL PARA A GARANTIA DA
ACESSIBILIDADE E FERRAMENTA PARA O
PLANEJAMENTO URBANO
Tarcisio Dorn de Oliveira
Luis Gustavo de Melo Atkinson
Geovane Schulz Rodrigues
Igor Norbert Soares
Bruna Fuzzer de Andrade
A FALÁCIA DO INÚTIL
Lucca de R. N. Tartaglia
ORGANIZADORES
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341
359
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PREFÁCIO
Pensar em educação, em tempos de inúmeros conflitos sociais,
culturais, políticos, raciais, étnicos e de gênero, não é apenas
necessário, como também urgente. O século XXI precisa responder
as demandas que o seu antecessor não conseguiu. A escola,
enquanto instituição de ensino que conhecemos, é ainda muito
recente, principalmente em um país o qual sua Carta Magna ainda
é uma jovem de pouco mais de 30 anos. Dito isso, discussões no
âmbito educacional – seja formal ou não – carecem de um maior
debruçar e reflexões em suas distintas formas de apresentação/
representação.
É na urgência desse refletir sobre educação, bem como
problematizar acerca das esferas que a perpassa que esta coletânea
surge, como força motriz para desencadear outros olhares e novas
perspectivas sobre questões que precisam ser colocadas em
debates. Citando Paulo Freire, ponderamos que esses diálogos são
importantes, pois, estando no mundo, é preciso que nós saibamos
também estar nele. E, “saber-se nele”, vai além de um mero olhar
estereotipado; “saber-se nele” é o sentir, é o fazer a diferença no
mundo.
As ricas discussões que coletânea traz como presente é, sem
dúvida, um avanço no campo educacional, pois, com uma
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diversidade geográfica e temática, a obra tem como objetivo
proporcionar possibilidades nos “entremeios da educação” que
formam o sujeito. Por assim ser, os capítulos versam desde
questões sobre linguagem e cinema até ponderações acerca dos
Direitos Humanos e a educação escolar, perpassando pela BNCC,
formação de professores, democracia, entre outros. Convidamos
vocês a desfrutarem do enriquecimento cultural que essa obra
permite, por meio da leitura e diálogos futuros que ultrapassarão
os limites do livro.
Jenerton Arlan Schütz e Renato de Oliveira Dering
Organizadores
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EDUCAÇÃO ESCOLAR E DIREITOS HUMANOS:
CONVERGÊNCIAS NECESSÁRIAS EM TEMPOS SOMBRIOS
Cláudia Fuchs1
Edinaldo Enoque da Silva Júnior2
Jenerton Arlan Schütz3
Introdução
A tematização e discussão sobre os Direitos Humanos (DH)
iniciou-se após o genocídio conferido pelo regime nazista durante
a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o que culminou na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 e,
posteriormente, em 1993 ratificada na Declaração Universal de
Direitos Humanos (DUDH) de Viena. Tais declarações passaram a
introduzir uma concepção de direitos universais e inalienáveis.
Por isso, o tema dos DH tornou-se foco de preocupações no
século XXI, ele tem sido debatido em várias conferências
internacionais, também é objeto de políticas públicas em várias
nações do mundo, além de ser objeto de estudo para inúmeros
pesquisadores. Os DH envolvem o nosso cotidiano e estão
1 Mestranda em Educação nas Ciências (Unijuí). E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Educação nas Ciências (Unijuí). E-mail: [email protected]. 3 Doutorando em Educação nas Ciências (Unijuí). E-mail: [email protected].
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relacionados com a educação, com o trabalho, a exclusão social, a
diversidade, a igualdade, a alteridade, a ética, etc.
Diante do debate, a educação é um pré-requisito para adquirir
a liberdade civil, uma vez que os direitos civis são destinados para
o uso de indivíduos com mentalidades alargadas, que aprenderam
a ler, escrever, calcular e, principalmente, refletir sobre suas ações.
Não obstante, a implementação de uma Educação em e para os DH
torna-se urgente/necessária, visto que a sociedade em geral já
experimentou inúmeras formas de distorções na compreensão da
realidade social, isto é, uma verdadeira falseabilidade da
consciência que impossibilita e impede a reflexão.
Nesse ambiente de distorções e de falsa consciência, ou
melhor, nestes “tempos sombrios” de que falam Bertolt Brecht e
Hannah Arendt, tempos na qual a radicalidade se opõem à uma
Educação em e para os DH, torna-se, portanto, fundamental
apostar na educação das gerações vindouras.
Nessa direção, pensar uma Educação em e para os DH surge
como possibilidade de inverter essa falseabilidade da consciência,
propondo e estabelecendo caminhos possíveis para um mundo
comum, onde o humano esteja acima do mercado, dos obstáculos
da globalização neoliberal, objetivando intermediar um processo
crítico-reflexivo da realidade, realidade muitas vezes considerada
naturalizada.
Portanto, o presente capítulo de livro pretende tematizar a
possibilidade de uma Educação em e para os DH. A justificativa
tem a ver com o momento em que vivenciamos a crise de valores
públicos e privados e da sociedade como um todo, torna-se
necessário que os temas de igualdade, liberdade e dignidade
humana não estejam apenas inscritos nos documentos/textos
legais, mas que ultrapassem barreiras e sejam internalizados por
todos aqueles que, de modo formal ou informal, se responsabilizam
pelas novas gerações e o mundo comum.
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Conceituando os Direitos Humanos (DH)
Os Direitos Humanos (DH) podem ser compreendidos como
direitos do homem/cidadão, entretanto, com reação ao conceito, na
obra A Era Dos Direitos (2004), Bobbio considera que a palavra
“direito” presente na expressão “direito do homem” é um debate
constante e bastante confuso. São muitas as definições, contudo,
todas basicamente com o mesmo sentido, isto é, que são direitos do
homem aqueles direitos que cabem ao homem enquanto ser
humano. Bobbio (2004) ainda ressalta que estes direitos não são
fruto de uma concessão da sociedade política, todavia, são direitos
que a sociedade política precisa e deve aplicar e garantir.
Nesse sentido, não sendo os DH uma concessão da sociedade
política, eles são fruto de construções históricas marcadas por
confrontos e contradições da realidade, após a ocorrência de
injustiças e constantes desigualdades o debate sobre a necessidade
de exigir direitos a estes indivíduos que sofreram com essas e
outras violências. Ademais, os DH, por mais fundamentais que
possam ser, são construções históricas, isto é, nascem em diferentes
conjunturas, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra antigos modos de poder, por isso, nascem de
forma gradual e lenta.
Para Garcia e Lazari (2014, p. 33), os DH “[...] são aqueles
inerentes ao homem enquanto condição para sua dignidade que,
usualmente são descritos em documentos internacionalmente para
que seja mais seguramente garantidos”, grosso modo, podem ser
conceituados como a categoria jurídica instituída com a finalidade
de proteger a dignidade humana em todas as suas dimensões.
A doutrina constitucional reconhece três níveis de direitos
considerados fundamentais, conceituados por, primeira, segunda e
terceira geração e, para alguns pesquisadores, também há uma
quarta geração, podendo ser considerados também como
dimensões de direitos fundamentais.
Dessa maneira, os direitos de primeira geração referem-se às
liberdades individuais, ou seja, liberdades de expressão, de
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consciências, físicas, propriedade. Enquanto a segunda geração
refere-se ao grupo ou sociedade de indivíduos, dito de outra forma,
seriam os direitos sociais (econômicos, culturais e sociais). A
terceira geração de direitos refere-se aos direitos de solidariedade
e fraternidade, ou seja, os direitos ao desenvolvimento ou
progresso, ao meio ambiente saudável, à paz, à autodeterminação
dos povos. Todavia, há também aqueles direitos introduzidos no
âmbito jurídico pela globalização política, isto é, os direitos de
quarta geração, que são aqueles direitos que se referem à
democracia, informação e ao pluralismo, em outras palavras,
seriam os direitos do gênero humano.
Nesse contexto, Bobbio (2004) estabelece que os direitos da
primeira geração são aqueles que correspondem aos direitos de
liberdade, logo, não é o Estado que age; os direitos de segunda
geração são denominados pelo autor como direitos sociais, o que
corresponde ao agir (positivo) do Estado; os direitos de terceira
geração constituem-se, ainda, como uma categoria vaga e
heterogênea, referindo-se aos direitos do homem em âmbito
internacional, como viver uma vida digna, num ambiente sem
poluição; nos direitos de quarta geração, o autor considera que
estes referem-se as possibilidades de promover manipulações
genéticas em cada indivíduo, referindo-se a configuração dos
estudos que envolvem a bioengenharia, a biotecnologia, a bioética.
Em suma, os direitos de “primeira geração” referem-se aos
direitos civis e políticos, direitos que tratam das liberdades
individuais básicas: à vida, à expressão, participar da elaboração de
leis de sua comunidade política (direta ou indiretamente),
formando uma sociedade aberta e um Estado de Direito; a
“segunda geração” de direitos está relacionada aos direitos
econômico-sociais ou simplesmente direitos sociais, tornam o
Estado devedor de sua população, tendo como obrigação realizar
ações para garantir um mínimo de igualdade e de bem-estar social;
os direitos da “terceira geração”, referem-se aos direitos do homem
no âmbito internacional, destarte, estão presentes na consciência
coletiva da população que passa a exigir tais direitos do Estado com
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maior frequência. Referem-se aos direitos de ter um meio ambiente
não poluído/contaminado e viver em uma sociedade harmônica; os
direitos da “quarta geração” são ligados ao pluralismo e à
democracia, isto é, a possibilidade de ser diferente, direito à
informação, à pluralidade (nos mais diversos modos), ao respeito
das minorias e apátridas, em suma, podemos dizer que a “quarta
geração” se refere aos direitos das gerações vindouras. Por isso,
cabe à atual geração a responsabilidade e compromisso com o
mundo, a fim de que este seja igual, ou melhor, do que aquele que
recebemos das gerações passadas, isso implica na discussão e
transversalidade de todas as outras gerações de direitos.
Como observa Norberto Bobbio (2004), a DUDH é muito mais
do que uma sugestão, ela a busca por um valor ético, um programa
que age em conjunto com/para toda a humanidade. A declaração é
uma prova histórica do consenso mundial sobre um sistema de
valores. Por isso que, quando olhamos para a declaração temos o
sentimento que há muitos direitos deixados de lado/fora, todavia,
é preciso também compreender que os que estão presentes ainda
não se efetivaram por completo em todas as sociedades e a
conquista destes não ocorreu sem um longo processo de lutas.
Assim, diante da contextualização conceitual dos DH, torna-
se imprescindível pensar a educação nesta empreitada, uma vez
que na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de
1948, o direito à educação encontra-se destinado para “[...] o pleno
desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do
respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais”
(Art. 26). Desse modo, uma Educação em e para os DH já consta
como preocupação na DUDH, trazendo, inclusive, importantes
considerações aos docentes:
[...] Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos
resultam em atos bárbaros que ultrajam a consciência da humanidade e que
o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra,
de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi
proclamado como a mais alta aspiração do homem comum [...], uma
compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância
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para o pleno cumprimento desse compromisso (DECLARAÇÂO
UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).
No momento em que a sociedade perde a capacidade de ação
na busca pela solidariedade e dignidade humana, e passa a
justificar o uso extremo do arbítrio e da força, a coletividade perde
sua autonomia política, sua capacidade de estar-entre-homens, de
sentir, pensar e agir (ARENDT, 2009). Não obstante, as experiências
totalitárias do século passado nos mostram como se multiplicaram
as constantes práticas genocidas e os massacres em massa,
justamente em um momento em que a humanidade se preocupou
em criar e efetivar mecanismos de proteção internacional para
defender a dignidade humana, as liberdades e direitos dos povos.
Portanto, uma Educação em e para os DH torna-se
fundamental, pois, em nome de burocracias, regras, compromissos
e visões “egocêntricas”, estamos dispostos a aceitar atrocidades4, o
perigo à recaída da barbárie ainda é eminente: “Qualquer debate
sobre os ideais da educação é vão e indiferente em comparação com
este: que Auschwitz não se repita” (ADORNO, 1995, p. 104), grosso
modo, “a exigência que Auschwitz não se repeti é a primeira de
todas para a educação” (ADORNO, 2006, p. 119).
Possibilidades de educar em e para os Direitos Humanos (DH)
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
declara a universalidade e indivisibilidade dos DH, e entrega ao
Estado a tarefa e responsabilidade de educar (dever) e de ser
educado/ensinado (direito) em DH. Nesse sentido, Andrade (2013,
p. 24), considera que os DH devem ser promovidos e também
propagados na educação, pois, “sem dúvida, o campo educacional
tem muito a contribuir nesta tarefa de promoção dos direitos
humanos”.
4 Basta lembrarmos do caso de Adolf Eichmann, analisado por Hannah Arendt na
obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1999).
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Por isso, a educação é, antes de qualquer coisa, um
compromisso com o Outro, com a pessoa, com o ser humano, logo,
ninguém dela escapa. Não obstante, sendo ela um compromisso
com o Outro, ela não só pode como precisa desempenhar um papel
fundamental na construção e no desenvolvimento de uma
consciência cidadã, alicerçada na preocupação e na defesa dos DH.
Conforme o Art. 205 da Constituição Federal, “a educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2007),
estabelecendo uma direção clara em favor de uma educação que se
preocupe com a defesa dos DH.
Ademais, concordamos com Bittar (2011) quando indaga: Por
que devemos educar em DH, articulando a capacidade de sentir e
pensar, de vivenciar e pensar de modo crítico a realidade humana?
E como, nas experiências autoritárias, os indivíduos que exerciam
suas funções conseguem justificar a desresponsabilização pelos
atos e crimes contra a humanidade?
No escrito Educação após Auschwitz (2006), Adorno alerta para
o crescente potencial autoritário que paira e se reproduz na
sociedade moderna. Por isso, é fundamental reconhecer e
desenvolver a consciência dos mecanismos que tornam as pessoas
capazes de cometer barbáries contra a humanidade, ou seja, são
incapazes de autorreflexão crítica, ou, nas palavras de Agamben
(2003), exercem simplesmente o dever de ofício, separando-os da
consciência ética.
Não obstante, é de suma importância lembrar da contribuição
adorniana para que Auschwitz não se repita: é necessário aprender
e exercer o difícil direito de resistir à violência e à opressão, como
também construir uma cultura republicana do respeito às leis e à
responsabilização pessoal (ADORNO, 2006).
Comprova-se a necessidade de se educar em e para os DH,
uma vez que tal movimento deve possuir como objetivo a
discussão dos conhecimentos historicamente construídos pela
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humanidade sobre os DH, além de reafirmar valores e práticas que
possam consolidar a cultura dos direitos e o exercício do respeito,
bem como promover a valorização das diversidades – de cunho
étnico-racial, religioso, cultural, gênero, orientação sexual, entre
outros, somente assim criamos condições para que Auschwitz não
se repita.
No artigo de Höffe (2004), intitulado em Valores em Instituições
Democráticas de Ensino, o autor considera que:
Pode ser considerado justo, ou seja, portador pessoal da virtude da justiça,
aquele que, embora mais poderoso e inteligente, não busca dominar os
outros, mas orienta sua ação (por exemplo, de legislador, de juiz, de pai/mãe,
de professor ou de concidadão) na ideia da justiça política, mesmo quando a
legislação for falha, passível de diferentes interpretações ou ineficiente.
As instituições escolares contemporâneas devem sempre se
mover sobre o chão da constituição e respeitar, tanto na
transmissão de saberes quanto em seus relacionamentos, os valores
básicos de uma sociedade democrática. Destarte, a educação não
pode se restringir à instrumentalização dos indivíduos para a
sociedade, devendo sempre respeitar as dimensões de direitos.
Nesse sentido, a educação que se faz em e para os DH deve ser
compreendida como uma “ação pedagógica conscientizadora e
libertadora, voltada para o respeito e valorização da diversidade,
aos conceitos de sustentabilidade e de formação da cidadania
ativa” (BRASIL, 2009, p. 25), compreendendo que este processo não
está limitado ao espaço escolar, mesmo que seja neste espaço onde
ocorre a sua sistematização.
Por isso, uma Educação em e para os DH será sempre um
processo discursivo contra o biopoder5, em outras palavras, de toda
forma de poder que age sobre a sociedade e os indivíduos,
5 O biopoder se mostra em sua dupla face: como poder sobre a vida (as políticas
da vida biológica, entre elas as políticas da sexualidade) e como poder sobre a
morte (o racismo). Trata-se, definitivamente da estatização da vida
biologicamente considerada, isto é, do homem como ser vivente (CASTRO,
2009).
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buscando o controle pleno por parte do Estado. Em Foucault (2010,
p. 136), essa resistência contra o biopoder expressa-se da seguinte
maneira:
[...] contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se
apoiaram exatamente naquilo que ele investe – isto é, na vida e no homem
enquanto ser vivo. Desde o século passado, as grandes lutas que põem em
questão o sistema geral de poder já não se fazem em nome dos antigos
direitos, ou em função do sonho milenar de um ciclo dos tempos e de uma
idade do ouro. Já não se espera mais o imperador dos pobres, nem o rei dos
últimos dias, nem mesmo o restabelecimento apenas das justiças que se
creem ancestrais; o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida
como as necessidades fundamentais a essência concreta do homem, a
realização das suas virtualidades, a plenitude do possível. Pouco importa
que se trate ou não de utopia; temos aí um processo bem real de luta; a vida
como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada
contra o sistema que tentava controlá-la.
Por conseguinte, a Educação em e para os DH será o meio pelo
qual o indivíduo, sujeito de direito, empoderado e consciente de
seus direitos, irá se apropriar do discurso dominante sobre os
direitos humanos a fim de acioná-lo a seu favor e contra as práticas
totalitárias da biopolítica [ou do biopoder] contemporânea.
Nessa direção, em complementariedade, Maués e Weyl (2007)
destacam que uma educação em DH requer reflexão em torno das
condições de possibilidades, de reprodução e de justificação das
formas simbólicas, sociais e políticas permissivas, que, geralmente,
tornam banal a violação da natureza e vulgarizam diversas
violações e passam a naturalizar as relações humanas de
submissão, exclusão, exploração, discriminação, violência,
preconceito, apagamento etc.
No artigo Educação em Direitos Humanos: para uma cultura da
paz, os autores Gorzevski e Touchen (2008) defendem que uma
educação em e para os DH é essencial para a formação intelectual
e cultural a respeito da dignidade humana, por meio da promoção
e da vivência de atitudes e comportamentos, valores e hábitos,
como igualdade e solidariedade, tolerância e paz.
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Não obstante, segundo Claude (2005), a educação em DH se
constitui num direito social, econômico e cultural, o direito social
porque, no contexto da comunidade, busca promover o pleno
desenvolvimento da personalidade humana; direito econômico,
pois passa a favorecer a auto-suficiência econômica por meio do
emprego ou do trabalho autônomo; e, o direito cultural, já que a
comunidade internacional orientou a educação no sentido de
construir uma cultura universal de DH.
Ademais, uma Educação em e para os DH se insere numa
abordagem teórica crítica da educação, por isso, Candau considera
que o potencial crítico e transformador da Educação em DH tem
um aspecto sócio-crítico da educação. Assim, uma educação nesta
perspectiva, potencializa uma atitude questionadora, passa a
introduzir a necessidade de mudanças, tanto no currículo explícito,
como também no currículo oculto, afetando a cultura escolar
(CANDAU, 1998).
Diante do exposto, as instituições escolares passam a se
engajar em prol de uma formação geral, que esteja empenhada e
convergente com a promoção de uma conduta fundada em
princípios e valores éticos, valorizando os direitos e deveres
fundamentais da pessoa (CARVALHO, 2007), pois, sem este
esforço por parte da instituição escolar, o aperfeiçoamento isolado
de docentes não garante uma eventual melhoria do professor
encontre na prática diária as condições ideais/propícias para
melhor o ensino (AZANHA, 1995).
Consequentemente, uma Educação em e para os DH deve
impregnar o cotidiano escolar por meio de sua tematização
curricular e do fomento de práticas escolas em consonância com os
seus princípios (CARVALHO, 2007), realizando o aprimoramento
da conduta dos jovens/recém-chegados, buscando dar prioridade
ao processo de conscientização, de forma com que os alunos
apreendam que a liberdade de uns não é nada sem a liberdade de
todos; que a liberdade não é nada sem igualdade; que a igualdade
necessita estar no coração e na cabeça de cada um e não pode ser
adquirida por compra ou imposição (RIBEIRO, 1981).
21
Por isso, consideramos que uma Educação que se diz
preocupada com os DH, deve ser promovida tanto nas escolas
como também fora delas, com estrita preservação da verdade e da
memória, através da formação problematizadora em DH de
educadores e educandos, baseando-se, fundamentalmente, na
diversidade de formas, seja em publicações, teatros, vídeos, danças,
seminários, internet, palestras, pesquisas etc, dando-se sempre a
ênfase à cultura institucional e ao fomento de práticas em
consonância com os princípios éticos.
Essa busca essencialmente valiosa entre memória e educação
em e para os DH, é incorporada nas palavras de Bobbio (1997, pp.
53-54), onde:
O grande patrimônio do ser humano está no mundo maravilho da memória,
fonte inesgotável de reflexões sobre nós mesmos, sobre o universo em que
vivemos sobre as pessoas e os acontecimentos que, ao longo do caminho,
atraíram nossa atenção. [...] o mundo do passado é aquele no qual,
recorrendo as nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós
mesmo, debruçar-nos sobre nós mesmo e nele reconstruir nossa identidade.
Nesse sentido, a reconstituição da memória é, portanto, um
instrumento essencial e inafastável. Uma vez que é ela que constitui
o sentimento de identidade, de pertencimento, tanto individual
como coletivamente, na medida em que é também um fator de
extrema importância para a continuidade do mundo
humano/comum.
Ademais, uma educação que se diz em e para os DH mas não
trabalha o ato de pensar, também a partir do Outro, deixa-se embair
na boa sorte do que encontra como constituído nas subjetividades
unificadoras e totalizadoras dos processos educacionais, e na perda
do sentido do humano reduzindo a possibilidade da alteridade.
Portanto, o professor como mediador, tem o desafio de em cada
encontro (aula, discussão etc.) colocar-se aberto à alteridade pela
interpelação que vem do Outro, pois esta rompe um pouco ou
completamente o plano que apreende a relação. A educação em e
para os DH é, necessariamente, um empreendimento coletivo. Para
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educar – e para ser educado – é necessário que haja ao menos duas
singularidades em contato. Educar é um encontro de
singularidades.
Portanto, numa educação anônima, para parafrasear Arendt
(2013), não há pessoas que se revelam, nem experiências sobre as
quais possamos pensar e nas quais possamos encontrar algum
sentido para a educação e o Outro. Muitas vezes, há experiências e
momentos significativos que surgem, de modo inesperado, em
alguma escola, em alguma sala de aula - algumas luzes, como diz
Arendt. Assim, quem pensa o Outro e nele sua educação, tem de
tomar cuidado para não apagar essas luzes, pois elas nos lembram
a tarefa da educação: cuidar de um mundo que não dispensa as
pessoas (o Outro), mas depende delas, estas são as possibilidades
do vir-a-ser Educação em e para os DH.
Pois, nas palavras de Hannah Arendt (2013, p. 247), “a
educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o
bastante para assumirmos responsabilidade por ele [...] e [...] onde
decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-
las de nosso mundo”. Uma educação comprometida com os DH e
o mundo comum (eu, o Outro, e tantos outros), dá as boas-vindas
a todos na esperança de que possam amá-lo à sua maneira singular.
Considerações Finais
As possibilidades de se educar em e para os DH, buscando
construir e formar sujeitos pluridimensionais de DH, requer a
humanização do humano que está inserido no ambienta natural e
cultural. Nesse sentido, os processos educativos estão inseridos no
amplo espectro da interação humana e se desdobram em
aprendizagem e vivências.
A Educação em e para os DH, constrói-se na base de uma
compreensão pluridimensional do sujeito de direitos, promovendo
os espaços de aprendizagem como exercício de reflexão e ação
crítica. Por isso, a tarefa de acolher os novos e mostrar à eles como
o mundo é e introduzi-los nesse mundo público, através da
23
transmissão dos saberes teoréticos6, é papel da escola. É a escola
que deve apresentar aos mais novos as tradições, as histórias, suas
conquistas e os conflitos, é ela que cuida do mundo que
confiaremos às próximas gerações, agregando para a continuidade
dele. É a partir da educação que também se acolhe os recém-
chegados, que têm o direito de conhecer o mundo, de se apropriar
dele para depois buscarem seus próprios caminhos e intervir
naquilo que compartilham com os outros (SCHÜTZ, 2016).
Logo, uma Educação em e para os DH impõe a necessidade de
uma nova pedagogia. Necessitamos de uma pedagogia que não
oculte as barbáries e os gritos dos excluídos, que não consiga
ordenar, nomear, definir ou tornar congruentes os silêncios, os
gestos, os olhares e as palavras do Outro. Uma pedagogia do Outro
que volta e reverbera permanentemente é a pedagogia de um
tempo Outro, de um Outro tempo, de uma espacialidade outra, de
uma outra espacialidade. Uma pedagogia que talvez não tenha
existido nunca (SKLIAR, 2003).
É uma pedagogia que construa a participação na alteridade,
constituindo seres relacionáveis com posturas e posições plurais
capazes de escapar da massificação e dos esquematismos
individualista; uma pedagogia que compreenda os dissensos e os
conflitos, que crie mediações adequadas à sua resolução; uma
pedagogia que esteja aberta para o mundo comum, o que significa
dizer que a Educação em e para os DH forma sujeitos cooperativos
com a consolidação de condições histórias para efetivar
amplamente todos os DH de todas as pessoas.
6 Transmite-se saberes teoréticos, isto é, teoréticos vem da palavra teoria, que é
uma palavra lindíssima, que, por sua vez, vem do étimo grego theoria, que
significa visão, contemplação. Por isso, o ensino é definido como o processo de
“dar a ver”. Dar a ver, exatamente, por esses saberes que introduzem uma
visibilidade do mundo e dos seres que o habitam, visibilidade essa que tem
como característica fundamental poder ser objeto de transmissão discursiva.
(POMBO, 2002).
24
Portanto, educar nesta perspectiva é, essencialmente, estar
aberto para o novo, para o Outro, pois, como reitera Hannah
Arendt (2009, p. 531):
[...] todo fim da história constitui necessariamente um novo começo: esse
começo é a promessa, a única mensagem que o fim pode produzir. O começo,
antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem;
politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus
est – “o homem foi criado para que houvesse um começo”, disse Agostinho.
Cada novo nascimento garante esse começo; ele é na verdade, cada um de
nós.
Por isso, a nossa esperança reside nos novos, por serem
iniciadores, por nascerem não somente para a vida (nascimento),
mas também para o mundo (natalidade), são capazes de
interromper processos históricos e, futuramente transformar o
mundo e quem sabe criar espaços novos de interação e convivência.
Pois, é isso que lembra a tarefa da educação: cuidar do mundo e
acolher as crianças e jovens que vêm a fazer parte dele, e
possibilitar o “direito a ter direitos” (ARENDT, 2009, p. 330).
Fica aqui o registro para que as preocupações assumidas neste
estudo, e as inquietações e a ânsia por novos horizontes
provocativos, possam levar a outros caminhos, novas pesquisas,
novos problemas e possibilidades.
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27
GÊNERO E EDUCAÇÃO:
UMA ABORDAGEM NECESSÁRIA NOS DIAS ATUAIS
Anaquel Gonçalves Albuquerque1
Introdução
O presente artigo traz um recorte da dissertação “Violência de
gênero: Representações sociais de alunos do ensino Médio do CIEP
200- Professor Terli Fioravante da Rocha”, tendo por objetivo
possibilitar a reflexão sobre a relevância da temática de gênero ser
trabalhada no contexto escolar e compreendendo que as
desigualdades de gênero certamente colaboram para a construção
das relações de poder em nossa sociedade, constituindo um ato de
violência, enquanto “mecanismo de poder utilizado na luta de
preservação do status quo, na manutenção da organização social de
gênero baseada nas desigualdades e nos desníveis de poder entre
os gêneros.” (Priori, 2007, p.27)
Neste recorte apresentamos por meio de pesquisa bibliográfica
importantes questões relacionadas ao conceito de gênero, bem
1 Mestre em Humanidades, Cultura e Artes (UNIGRANRIO). Especialista em
Educação de Jovens e Adultos (UFF), Gestão Escolar (UFF) e Gênero e
Diversidade (UERJ). Graduada em Pedagogia (UERJ). Atuando como Apoio à
Direção da Escola Municipal Deputado Hilton Gama, pela Prefeitura Municipal
do Rio de Janeiro e como Tutora de Apoio ao Professor, pelo Consórcio CEDERJ.
E-mail: [email protected]
28
como os resultados obtidos através de rodas de conversa na escola
que expressam o interesse e concomitante desconhecimento dos
alunos sobre o tema em questão, evidenciando a importância deste
debate nas escolas, por considerar que a partir do momento em que
todos tiverem consciência dessas dimensões, contribuir-se-à para a
mudança de atitudes e comportamentos, deixando de lado os
estereótipos, as práticas naturalizadas com relação aos
comportamentos denominados femininos ou masculinos e as
normas sociais que determinam o que mulheres e homens devem
ser ou fazer.
Gênero: Um conceito em discussão
O conceito gênero tem significado polissêmico, de forma a
possibilitar diferenciadas interpretações, entretanto nos
utilizaremos da concepção apresentada por Bourdieu (1999), que o
relaciona a uma estrutura de dominação simbólica na qual “o
princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas. (...)
Sabendo assim, que o homem e a mulher são vistos como duas
variantes, superior e inferior (...).” (p. 23-24) Desta forma, a
diferença biológica existente entre os sexos seria utilizada como
justificativa para a diferença construída socialmente entre os
gêneros.
Neste sentido, acrescenta-se que os conceitos de gênero e sexo
relacionam-se entre si, mas não significam a mesma coisa. A
expressão sexo relaciona-se com a natureza, e descreve as
características biológicas que diferenciam, sexualmente, machos e
fêmeas de todas as espécies, enquanto gênero estaria relacionado à
cultura, designando os papéis e atributos de homens e mulheres
nas sociedades, de maneira que as diferenças biológicas são
constantemente transformadas em desigualdade de gênero.
Scott (1995) corrobora para a compreensão do conceito de
gênero, estando baseado nas diferenças percebidas entre os sexos,
sendo a primeira forma de significar as relações de poder. Neste
sentido, as desigualdades de gênero se fazem cada vez mais
29
presentes em nossa sociedade hierarquizando as diferenças entre
os sexos. Ainda em consonância com a autora, as identidades
subjetivas funcionam como um importante conceito para o
entendimento de gênero, sendo formadas por processos de
diferenciação e de distinção, caracterizando como princípio da
masculinidade uma necessária negação dos aspectos femininos, de
forma que um só pode ser percebido a partir da diferença que
possui para o outro.
Tendo em vista a prevalência de estereótipos ou ideias sobre
indivíduos, que preza por negar as diferenças individuais e
culturais de indivíduos, e mediante as várias concepções existentes
para o conceito de gênero, nos reportaremos a uma breve
abordagem sobre violência de gênero, na tentativa de suscitar a
importância de compreendermos as relações sociais por meio dos
conceitos, representações e práticas existentes, propagando o
respeito como base de qualquer relacionamento entre indivíduos.
Violência de gênero
Embora seja frequentemente utilizado como sinônimo de
violência contra a mulher e violência doméstica, a violência de
gênero consiste em qualquer ação ou conduta, baseada no gênero,
que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico
à mulher, tanto no âmbito público como no privado, sendo uma
manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre
homens e mulheres, em que a subordinação não implica na
ausência absoluta de poder. Destacamos aqui que a violência está
de mãos dadas com o poder patriarcal e com a educação "machista"
perpetuada ao longo dos séculos (Saffioti, 2015).
Apesar dos avanços e conquistas obtidas pelas mulheres ao
longo do tempo, ainda torna-se notório o alto índice de violência
praticada contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, sendo
este um dos fatores que deu origem à criação de uma lei específica
para tratar do assunto, intitulada Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340,
de 7 de Agosto de 2006). Por meio desta legislação são criados
30
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente de sua orientação sexual,
estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar.
A referida legislação também aborda aspectos importantes
como procedimentos, medidas protetivas, atuação do Ministério
Público, assistência jurídica e ações a serem realizadas por uma
equipe de atendimento multidisciplinar, dentre outros fatores,
representando significativas mudanças no que diz respeito ao
tratamento de casos de violência doméstica praticada contra a
mulher e tentando solidificar direitos humanos. Desta forma, há a
tentativa de que as mulheres tenham seus direitos respeitados e os
seus respectivos agressores não sejam somente punidos, mas
reabilitados, dentro de um contínuo ciclo de estímulo a ações de
respeito mútuo, já que tal violência é oriunda de um processo
histórico e cultural onde o homem deveria impor seu poderio de
macho.
Abrangendo as pessoas em função do gênero ao qual
pertencem, a violência de gênero é uma categoria geral, na qual a
mulher pode ser vítima. Destaca-se ainda que nem toda violência
de gênero recai sobre a mulher, a exemplo daquela praticada contra
os homossexuais, transexuais e transgêneros. Nessa perspectiva, a
violência de gênero manifesta-se por meio de uma agressividade
mais generalista, ou seja, mais abrangente, de homem para homem
e de mulher para mulher, embora no cotidiano predomine a prática
da violência do homem para com a mulher (Saffioti, 2015).
As relações assimétricas entre os gêneros vêm mostrando que
as sociedades patriarcais engendram e sustentam relações e modos
de produção, nos quais os homens como categoria social levam
vantagens sobre as mulheres, nas mesmas condições. Sobre isto,
Nunes (2002) ressalta que há ainda o machismo encalacrado nas
instituições familiares, nos valores, nas concepções de poder, na
divisão dos comportamentos, nas cores e na distribuição dos
brinquedos às crianças. É o patriarcalismo extratificado em todos
os segmentos de nossa cultura.
31
Tais fatos nos remetem a uma discussão necessária sobre o
respeito às diferenças, pois estas relações de poder se fazem
presentes nos mais variados espaços e
(...) a Escola, mesmo quando já liberta da tutela da Igreja, continua a
transmitir os pressupostos da representação patriarcal e sobretudo, talvez,
os que estão inscritos em suas próprias estruturas hierárquicas, todas
sexualmente conotadas, entre as diferentes faculdades, entre as disciplinas
entre as especialidades, isto é, entre as maneiras de ser e as maneiras de ver,
de se ver, de se representarem as próprias aptidões e inclinações.
(BOURDIEU, 1977, p. 103-104)
Contribuindo para a compreensão desta relação de poder,
destaca-se que
A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o
que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o
“lugar” dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Através
dos seus quadros, crucifixos, santas ou esculturas, aponta aqueles/as que
deverão ser modelos e permite, também, que os sujeitos se reconheçam (ou
não) nesses modelos [...] Currículos, normas, procedimentos de ensino,
teorias, linguagem, materiais didáticos, processo de avaliação [...], diferenças
de gênero, sexualidade, etnia, classe — são constituídos por distinções e, ao
mesmo tempo, seus produtores. Todas essas dimensões precisam, pois, ser
colocadas em questão. É indispensável questionar não apenas o que
ensinamos, mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/os alunos/as
dão ao que aprendem. (LOURO, 1997, p.58 e 64).
Assim, a partir do processo de socialização tais ideias e
concepções são passadas e reproduzidas como sendo algo natural
e logo na primeira instituição social da qual o indivíduo faz parte,
que é a família, já se estabelece como o indivíduo deve se comportar
no meio social. Posteriormente, o universo escolar toma um espaço
ainda maior, muitas vezes reforçando a segregação entre os sexos e
gênero.
Assim, para refletirmos sobre a importância da abordagem de
gênero nas escolas, apresentamos um recorte da pesquisa realizada
em uma escola pertencente à rede estadual de educação do Rio de
32
Janeiro, que se utilizou de técnicas de observação e rodas de
conversa como recursos metodológicos.
No que tange às rodas de conversa, Barbosa e Horn (2008)
afirmam que este é um espaço de aprendizagem coletiva, onde
todos se encontram em círculo, sendo considerados com a mesma
oportunidade para falar, observar e ouvir, interagindo entre os
participantes, pois não existe alguém ao centro com destaque,
favorecendo o diálogo como forma de socializar o saber do grupo.
A roda de conversa como instrumento metodológico abre espaço
para que os sujeitos envolvidos no processo de ensino e
aprendizagem estabeleçam um espaço de diálogo e interações no
contexto escolar, ampliando suas percepções sobre si e sobre o
outro, em um movimento de alteridade e compreensão sobre a voz
do outro em seu contínuo espaço de tempo.
Houaiss (2001) destaca que o conceito de roda estaria
relacionado a “círculo; peça circular que gira em torno de um eixo;
grupo de pessoas”. Como definição que se adequa a este trabalho,
expomos a de grupo de pessoas, ou seja, alunos do ensino médio
que formam uma roda para fins de debates, reflexão e aquisição de
novos conhecimentos. Por meio das rodas de conversa os sujeitos
envolvidos na pesquisa desenvolvem um espaço de diálogo e
podem ter ampliadas suas percepções sobre si e sobre o outro.
Estabeleceu-se como prioridade fazer com que os momentos
de encontro fossem verdadeiramente significativos e
transformados em espaço de construção do conhecimento para
cada um dos participantes da pesquisa, pois “a criança e o
adolescente não deixam de fazer coisas por serem difíceis, mas por
não terem sentido”. (Becker, 2003, p.23) Sendo assim, cada um dos
alunos ficou ciente da obrigatoriedade de respeito em relação aos
demais que deveria prevalecer em todos os encontros e receberam
o cronograma das atividades a serem desenvolvidas nos encontros
semanais.
As rodas de conversa foram gravadas a fim de evitar a perda
de informações importantes, assim como possíveis distorções na
interpretação das respostas. Acredita-se que este instrumento
33
permitirá apreender as concepções e experiências vivenciadas
pelos alunos e suas relações com o problema central da pesquisa
(Godoy, 1995).
Os sujeitos da pesquisa
A Unidade Escolar em que se deu a pesquisa está situada na
Baixada fluminense, no Rio de Janeiro. Dentre os 18 alunos
matriculados no 2º ano do ensino médio do curso de
Empreendedorismo apenas 10 estudantes tiveram presença
registrada em todos os encontros, sendo 7 do sexo feminino e 3 do
sexo masculino, conforme apresentado no gráfico abaixo, que por
questão de sigilo e segurança, se utiliza de nomes fictícios para os
participantes.
Acrescenta-se que embora o número de alunos selecionados
para participar da pesquisa possa parecer relativamente pequeno,
estes fazem parte de um grupo seleto de alunos com a característica
de interação e liderança frente aos demais alunos da instituição,
contribuindo para o propósito de que as reflexões realizadas ao
longo do trabalho sejam socializadas futuramente junto aos demais
alunos da Unidade escolar.
Características dos participantes
Nome Sexo Idade
João Pedro Masculino 15
Lucas Mateus Masculino 17
Thalisson Masculino 16
Thaysa Feminino 16
Soraia Feminino 14
Suely Feminino 16
Thayane Feminino 15
Maybelle Feminino 16
Stefânia Feminino 15
Isabela Feminino 16
34
As rodas de conversa
As rodas de conversa foram realizadas semanalmente por um
período de 2 meses. Cada encontro tinha a duração de
aproximadamente 1 hora e era realizado no tempo vago de aula da
turma.
Uma caixa contendo perguntas variadas sobre gênero era
passada de mão em mão com uma música tocando ao fundo. Os
alunos foram informados que quando a música parasse de tocar,
aquele que estivesse com a caixa em mãos deveria retirar dela uma
questão e respondê-la. Aos demais participantes da roda de
conversa também era oportunizado que se expressassem, fazendo
sempre uso do respeito à fala do outro colega.
A finalidade das questões propostas foi identificar o nível de
conhecimento destes jovens acerca do tema proposto (Gênero). A
seguir, são apresentados quadros com as respostas dos alunos para
cada questão específica.
Questão 1: O que você conhece sobre gênero e sobre a Lei Maria da
Penha?
Nome Resposta
Thayane Gênero é o homem e a mulher. E a lei é que fizeram contra a
violência da mulher.
Isabela Gênero é muita coisa, né...É a lei que defende a mulher, mas que
existem muitas mulheres que não denunciam as agressões por
medo das represálias do agressor
Soraia E os homens e as mulheres.
Thayane Gênero? Pois é. A violência, né... E a lei acho que não ajuda
muito não.
De acordo com as respostas apresentadas, o conceito de gênero
não é compreendido em sua significação. As respostas se
apresentam de forma incompleta e desconsiderando as várias
categorias envolvidas, expondo desconhecimento sobre esta
questão, fato que também ocorre ao ser abordada a Lei Maria da
Penha, que se relaciona diretamente com o conceito analisado.
35
Destaca-se que parte dos alunos preferiram não se posicionar
quanto a respostas para esta questão e aqueles que o fizeram
afirmam já ter ouvido falar na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06),
que coíbe a violência doméstica contra a mulher. Entretanto a
resposta dos indivíduos se mostra de maneira resumida e sem
apropriação, apresentando necessidade de aprofundamento
quanto à respectiva abordagem. A maioria dos alunos relata
inclusive que a referida lei foi promulgada para proteger a mulher
de agressões e maus tratos por parte do esposo/marido,
desconhecendo a abrangência da lei.
Em relação ao medo na questão da denúncia, citado em uma
das respostas, Rocha (2009) enfatiza que esse medo, muitas vezes,
paralisa as ações e impede a mulher de transformar o cotidiano
vivido. A manifestação do medo parece transformar as vítimas em
constantes reféns da violência. Chauí (1999) afirma que “a violência
é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra
alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas
pela opressão e intimidação, pelo medo e o terror.” (p.25)
Questão 2: Em que ambiente você considera que há maior incidência da
violência de gênero?
Nome Resposta
Thaysa Acho que dentro de casa, na rua também, na sociedade, no
trabalho, pode acontecer em qualquer lugar.
Soraia Assim, não tem o ambiente certo para a pessoa ser respeitada, a
pessoa é quem tem que se dar o respeito.
Suely Acho que várias vezes dentro da sua casa, algumas não sabem
nem com quem vivem direito, pensam que é uma coisa e na
verdade é outra.
Stefânia Acho que em festas porque geralmente em festas o pessoal bebe
mais e perde a noção tendo muita briga, eles pensam que podem
fazer o que querem.
Maybelle Assim, quando, não sei se tem a ver, quando a mulher tá no meio
de homens, quando está assistindo um jogo, se a mulher for dar
sua opinião, sua opinião não tem valor ali, para nenhum deles,
eles tão nem aí.
36
João
Pedro
Mais dentro de casa, porque fora de casa você tem as pessoas que
não lhe conhecem direito e vão lhe tratar melhor do que quem
convive com você. É isso, fugiu... Em casa as pessoas conhecem
e não vão medir as palavras, ofensas, uma coisa assim.
Lucas
Mateus
Acho mais em casa, onde a pessoa tem mais liberdade, ninguém
vai maltratar uma mulher que tá passando na rua, na escola...
eu acho mais em casa.
Thalisson Depende, porque tanto pode ser em casa, pode ser no trabalho, se
for um trabalho machista que não aceita mulher. Também tem o
trânsito, mas também tem essas mulheres que gostam de bar, aí
elas são mais desrespeitadas no bar.
Mostra-se interessante o destaque dado aos mais distintos
espaços como locais de reprodução da violência. Esta característica
na qual o machismo está associado à naturalização da violência é
enfatizada por Minayo (2005), ao buscar compreender como os
estereótipos machistas se apresentam dentre as variadas
modalidades de violência.
É preciso levarmos em conta que o processo de naturalização
da violência de gênero se dá desde a mais tenra idade, quando
atribuem valores e desafios diferenciados a meninos e meninas,
estimulando a concepção de que em detrimento das diferenças
biológicas, homens e mulheres também precisam possuir
comportamentos e características sociais diferentes. (Santos;
Bussinguer, 2017)
Em relação ao próprio lar enquanto ambiente onde a mulher é
aviltada com mais frequência, Penso (2009) afirma que em um país
de tradição machista e patriarcal como o Brasil, o ambiente familiar
expressa uma lógica de dominação do mais forte sobre o mais fraco,
de maneira que a mulher também se torna vítima de violência
dentro de sua própria casa.
As falas apresentadas, apesar de muito parecidas, geralmente
se apresentam de forma preconceituosa e tendo a violência sob um
foco naturalizado, de forma que após analisar todo o conteúdo das
falas dos alunos verificamos no discurso dos dez sujeitos da
pesquisa que, apesar da diversidade de opiniões, houve uma
37
concordância na maioria dos aspectos sobre a violência doméstica
contra a mulher, assim como a naturalização da violência.
Questão 3: O que pode ser feito nas escolas para prevenir a violência de
gênero?
Nome Resposta
Thaysa Fazer palestras, haver mais palestras. Porque até agora eu não vi
nenhuma. Deveria ter mais palestras para a gente entender
melhor. E que os professores esclarecessem esses assuntos numa
aula específica
Soraia Mostrar mais, quando a pessoa não vê ela acha que não existe,
sei lá... mostrar depoimentos de pessoas que sofreram violência.
É muito bom a pessoa dizer que passou por isso e denunciou.
Tem que mostrar a realidade.
Suely Palestras para as pessoas ter mais consciência do que tá
acontecendo pra amenizar mais este tipo de assunto. Faz falta ser
falado nas escolas, porque ninguém sabe o que tá acontecendo
dentro das casas.
Thayane Trazer pessoas que já passaram por isso, que sabem mais sobre
isso para dar palestras e fazer documentários. Isso é importante,
pois alguns alunos acham certo este comportamento e eles
assistindo isso vão mudar de opinião.
Stefânia Para incentivar e mostrar o que realmente é uma agressão
doméstica poderiam ser feitas palestras para dizer o que é, o que
leva e o que pode acontecer. As meninas aqui na escola são muito
vulgares e os meninos fazem brincadeiras e elas gostam. A
palestra poderia mostrar pra elas como a violência começa e a
necessidade de elas se valorizarem e mostrar o tipo de pessoas
com quem elas se envolvem.
Maybelle Várias coisas, como por exemplo, chamar mais os meninos,
porque isso acontece mais com homem de ele bater na mulher,
conscientizar eles desde crianças e não pensar que quando eles
forem adultos eles aprendem. Conversas que mostrem a
realidade, que isto não é certo.
João Pedro Eu acho que este projeto que a gente está tendo é maravilhoso
para isso, porque praticamente na escola que eu estudava a gente
não tinha essa chance de um projeto como esse assim de violência
38
de gênero. Acho que todas as escolas deviam ter um projeto assim
pra ajudar.
Lucas
Mateus
Projetos como esse que tá tendo são importantes para que
sociedade não seja tão violenta no futuro como é hoje.
Thalisson os professores tratarem desse assunto com os alunos nas aulas.
Os alunos destacam as palestras como recurso a ser utilizado
na escola para prevenir a violência de gênero e Lucas Mateus opina
por arregimentar multiplicadores: “Conscientizar as pessoas para que
saiam repassando essas informações.” Este argumento nos reporta ao
que diz Jaffe et al (2000, p.167): “Eventos conscientizadores podem
sensibilizar os estudantes para as diferentes formas de violência e
capacitá-los a empreender ações em suas vidas pessoais e na escola
que contribuam para pôr fim à violência”.
Sobre isto, o Fundo de Prevenção à Violência Familiar (Family
Violence Prevention Found, 2010), também destaca como recurso
para abordagem do tema a utilização de música, filmes e vídeo
games.
Outros recursos nomeados pelos alunos que poderiam ser
utilizados na escola para trabalhar o tema em tela formam aulas
específicas, conversas, dinâmicas, projetos, gincanas e cartazes em
sala de aula. Quanto à opinião acerca da importância desse tema
ser abordado em sala de aula, no discurso dos adolescentes foi
possível analisar que a todos agrada a inserção de assuntos ligados
a gênero no cotidiano escolar.
Entretanto, a abordagem sobre gênero nas escolas nem sempre
é algo de fácil aceitação, visto que nos encontramos em uma
sociedade marcada pela resistência e por valores muito rígidos de
conservação moral e social, de maneira que profissionais que se
utilizam de atividades nas escolas objetivando trabalhar a
diversidade são passíveis de denúncia ou até mesmo processos.
(Pougy, 2017)
Frente a um cenário marcado pela exclusão social, é de
fundamental importância abordar gênero nas escolas. Até mesmo
por se pensar em construir uma educação democrática que
39
possibilite a todos os seus agentes igualdade de condições e de
oportunidades (Casagrande, 2008). Há, portanto, que
sumariamente, considerar as crianças e adolescentes como atores
sociais. Nunes e Silva (2006) expressam que somente uma educação
emancipatória é capaz de contribuir para a superação das
condições de heteronomia e de propor reflexões sobre os contextos
de uma sexualidade, no sentido de promover uma formação que
auxilie os educandos a compreenderem a constituição das
concepções de gênero e suas vinculações às estruturas sociais. É
também necessário reconhecer que as aprendizagens (no que se
refere às questões de gênero) estão incorporadas em práticas
cotidianas formais e informais que nem questionamos mais
(Louro,1997).
Após a realização das rodas de conversa, também tornou-se
notório que apesar da temática gênero ser um assunto de interesse
coletivo, nem sempre é trabalhado nas escolas. Talvez pela
existência de um currículo extenso que contempla apenas os
conteúdos específicas da grade curricular, não possibilitando
articulações com assuntos importantes e de interesse dos alunos ou
até mesmo em razão da própria fragmentação da formação de
professores, que é extremamente conteudista. Assim sendo, a
abordagem de gênero nas escolas se caracteriza como mais uma
forma de busca pela erradicação da violência, mas para que de fato
esta prática seja implementada ainda há um longo caminho a ser
percorrido, não se esquecendo de que uma formação de professores
mais contextualizada e a elaboração de projetos políticos
pedagógicos que contemplem tais questões podem ser o princípio
para grandes conquistas nesta área.
Conclusão
Por meio do presente estudo foi possível verificar a
importância de abordar gênero no contexto escolar, dado o
desconhecimento sobre o tema e até mesmo curiosidade sobre
questões a ele relacionadas. Compreendemos que a realização
40
desta prática pode impedir comportamentos discriminatórios e por
isto a escola, juntamente com outras instituições, como a família e
a igreja, têm fundamental importância no processo de
desenvolvimento da consciência crítica e aceitação às diferenças,
devendo atuar de forma esclarecedora e emancipatória. Caso
contrário pode vir a reproduzir ideologias dominantes,
contribuindo assim para a perpetuação das relações
discriminatórias e de exploração existentes em nossa sociedade.
Através de debates, palestras, dinâmicas, aulas diferenciadas
e gincanas é possível contribuir para o tratamento de questões
relacionadas a gênero. Todavia é preciso inicialmente investir na
formação dos professores, para que esta abordagem não ocorra de
forma subjetivista, pois compreende-se que muitos profissionais
ainda encontram-se despreparados para esta abordagem.
Desta forma, lutar por uma sociedade mais justa e menos
excludente deve ser um dos principais papéis da educação,
estabelecendo diálogo com as vivências dos alunos e praticando
ações contextualizadas e interdisciplinares, a fim de que todo
indivíduo tenha a oportunidade de ressignificar de maneira crítica
e autônoma as diferentes situações encontradas no decorrer da
vida.
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43
DIVERSIDADE DE GÊNERO: DESAFIOS PARA A
FORMAÇÃO DOCENTE
Paula Geovanna Natal de Alcântara Cruz1
Patrícia da Silva Fernandes Adorno2
Introdução
O presente trabalho torna-se relevante em razão da falta de
preparo e formação dos docentes para enfrentar os desafios da
diversidade de gênero nas escolas. O intuito deste tema é enfatizar a
importância de os futuros docentes e atuantes da profissão receberem
uma formação livre de preconceitos, discriminações, violências e
exclusões. Neste sentido, Lins (p. 10, 2016) afirma que, “acreditamos
ser possível construir uma escola em que gênero não seja restritivo e
excludente, mas plural, uma escola em que se assegure uma educação
genuinamente inclusiva e transformadora”.
O trabalho propõe refletir sobre os papéis socio-históricos
estabelecidos pela sociedade como: “rosa é cor de menina” ou “azul
é cor de menino”, “essa menina não quer brincar de boneca” ou
“aquele menino não gosta de futebol”, ou seja, refletir sobre esses
modelos de práticas que foram socialmente construídas no
1 Graduada em Pedagogia no Centro Universitário de Goiás – Uni-
ANHANGUERA. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Ciências da Educação pela Universidade Autônoma de
Assunção (Paraguai) e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás.
Professora Assistente no Centro Universitário de Goiás – Uni-ANHANGUERA.
E-mail: [email protected]
44
contexto escolar, gerando muitos preconceitos. Segundo Lins (2016,
p. 10), “devemos tomar cuidado na forma como construímos e
elaboramos frases, para não reproduzir assimetrias de gênero, pois
arranjos de gênero colocados em prática na sociedade exercem uma
força sobre toda nossa vida cotidiana”.
A formação da atividade docente é importante para preparar
os mesmos para o exercício da profissão, portanto espera-se que os
educadores e educadoras busquem voltar o olhar para o ser
humano, um olhar transformador, livre de qualquer tipo de
estereótipo e discriminação, educar para a diversidade é o que se
espera da formação docente. Portanto, este trabalho fará uma
reflexão sobre os desafios desta formação para a diversidade de
gênero, onde o docente receberá uma formação voltada para
oferecer um ambiente inclusivo e transformador para os seus
educandos e educandas.
Colocando a formação docente como foco desta
problematização, por acreditar que esta é a mudança que a
educação precisa para se tornar um ambiente escolar inclusivo,
evitando assim a marginalização, exclusão e violência dentro das
escolas, este trabalho irá fazer uma reflexão sobre os desafios desta
formação para a diversidade de gênero, pretende-se então, atribuir-
se que “educar para a diversidade e a inclusão é fazer das
diferenças um trunfo, explorá-las na sua riqueza, possibilitar a
troca, proceder como grupo, entender que o acontecer humano é
feito de avanços e limites.”. (DINIZ, 2012, p. 102). Portanto, qual a
importância da formação docente para enfrentar os desafios quanto
a diversidade de gênero nas escolas?
Em busca de um espaço escolar diverso, plural e aberto,
precisa-se investir na formação docente, pois é na relação entre
aluno e professor que acontecerá a aprendizagem do respeito à
diversidade, pois são estes os profissionais que tornarão a sala de
aula um ambiente acolhedor, transformador e sem discriminação.
É na escola que as crianças constroem sua identidade e aprendem
o exercício da cidadania, por isso os educadores devem receber a
formação adequada para trabalhar com a diversidade de gênero,
45
esta formação é importante para que, durante a sua atuação em sala
de aula, o professor consiga fazer deste lugar um ambiente
democrático, inclusivo e seguro.
A educação necessita de docentes formados para a
diversidade, docentes inclusivos, transformadores e capacitados
para enfrentar os desafios da diversidade de gênero nas escolas,
desafios esses como os estereótipos, a generalização e as
expectativas de gêneros. A formação docente para a diversidade de
gênero é relevante para fazer da escola um ambiente escolar
democrático, inclusivo, acolhedor e livre de qualquer tipo de
preconceito ou discriminação, são estes um desafio a se enfrentar,
porém é necessário para que os futuros docentes tenham um olhar
humano e transformador, são estes os profissionais que podem
contribuir para a mudança da educação quanto à diversidade de
gênero e promover a paz nas escolas.
A relevância deste tema é que a diversidade está na sala de aula,
portanto, os educadores devem receber uma formação adequada para
trabalhar com tantas diversidades nas escolas, com o intuito de
construir um ambiente escolar plural, democrático, livre de qualquer
tipo de discriminação e desigualdade, estimulando assim a paz nas
escolas, a inclusão de todos os educandos rompendo com os
estereótipos e violência gerada pelos preconceitos.
Portanto, o presente estudo tem como objetivo, buscar
investigar a importância da formação docente para enfrentar os
desafios da diversidade de gênero no contexto escolar e refletir
sobre a importância de formar docentes para a diversidade de
gênero nas escolas, analisar a relevância da diversidade de gênero
no espaço escolar em busca de uma escola plural e propor uma
cultura sobre a paz nas escolas, com o intuito de romper com a
violência gerada pelos preconceitos.
Considerações acerca do termo “gênero”
Neste estudo sobre gênero buscou-se conceituá-lo e abordar o
mesmo nas escolas, pois a proposta deste trabalho é a formação
46
docente para enfrentar os desafios da diversidade de gênero no
ambiente escolar. A palavra “gênero” nunca havia sido citada para
se referir às relações entre o masculino e o feminino, foi na década
de 1970 o termo gênero passou a ser utilizado pela teoria social,
esse conceito manifestou-se através de estudos sobre a situação
feminina e as desigualdades existentes entre homens e mulheres.
De acordo com Lins (2016, p. 25),
O termo “gênero” se popularizou na década de 1990, mas começou a ser
utilizado pela teoria social na década de 1970 como forma de propor novas
maneiras de pensar as noções de feminino e masculino, além das explicações
biológicas, e inserindo-as em relações sociais de poder.
Na década de 1990, quando o referido termo se popularizou,
as feministas da época começaram a fazer parte da terceira onda do
feminismo, chamada “teoria queer”, segundo Lins (2016, p. 33), “[...]
a teoria queer se apresenta como uma forma de contestar os
próprios processos de normalização de gênero, vistos como
restritivos e excludentes”. Esses processos foram construídos para
aqueles indivíduos que não se identificam ou se enquadram nas
expectativas de gênero, desenvolvidas socialmente para o
masculino e feminino. Nesse sentido, Lins (2016, p. 33) cita que, “a
teoria queer não é uma identidade, mas uma aliança em direção à
pluralidade, ao respeito e aos direitos [...]”. Ou seja, esta teoria é
considerada uma aliança, onde as feministas da época lutavam
pelos seus direitos e pelo respeito, com a finalidade de extinguir as
desigualdades de gênero. Ainda sobre os movimentos feministas,
Lins (2016, p. 27) cita que, “[...] Também conhecido como
movimento de mulheres, o feminismo tem como um de seus lemas
históricos: “Homens, seus direitos e nada mais. Mulheres, seus
direitos e nada a menos”, frase que tem como foco a equidade de
direitos”. Neste sentido, entende-se que a luta pelos direitos iguais
em relação aos gêneros vem desde o século XX, foram anos lutando
pela equidade dos direitos, em busca de respeito e igualdade.
Sobre o conceito de gênero, Auad (2018, p. 21) diz que,
47
Gênero não é sinônimo de sexo (masculino e feminino). As relações de
gênero correspondem ao conjunto de representações construído em cada
sociedade, ao longo de sua história, para atribuir significados, símbolos e
diferenças para cada um dos sexos.
Portanto, gênero e sexo não possuem o mesmo significado,
cada um tem o seu conceito, neste caso, consideramos o gênero
objeto principal do trabalho proposto como uma construção social
atribuída pela sociedade, que ao longo dos anos contribuiu para o
fortalecimento da organização social que chamamos de masculino
e feminino.
De acordo com Viana e Ridenti (1998, p. 96-97),
O gênero começou a ser utilizado como uma maneira de se referir à
organização social entre os sexos, de insistir no caráter fundamentalmente
social das distinções baseadas sobre o corpo, e de destacar o caráter
relacional das definições normativas da feminilidade e da masculinidade,
isto é, mulheres e homens passam a ser definidos em termos recíprocos.
Gênero remete, portanto, a uma tentativa de incorporar, na análise, aspectos
que não são socialmente construídos, observando que cada cultura define o
que é masculino e feminino. Ou seja, trata de definições mutáveis, que
podem e, por vezes, devem ser alteradas.
Neste sentido, o foco do trabalho se volta justamente para a
compreensão do termo gênero ser utilizado para relacionar-se à
uma organização social entre os sexos, ou seja, homens e mulheres.
As relações entre os sujeitos são construídas no campo social, “já
que é no âmbito das relações sociais que se constroem os gêneros”.
(LOURO, 2014, p. 26). Nesta perspectiva, o conceito de gênero foi
construído através de uma organização social estabelecida pela
sociedade, dividida entre masculino e feminino.
Deve-se então, compreender o gênero como componente
formador da identidade dos sujeitos, compreendido como:
identidade sexual e de gênero. Sobre as identidades sexual e de
gênero, Louro (2014, p. 31) cita que,
Suas identidades sexuais se constituiriam, pois, através das formas como
vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de
48
ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se
identificam, social e historicamente, como masculinos ou femininos e assim
constroem suas identidades de gênero.
Essas identidades dos sujeitos estão sempre se transformando,
pois não são acabadas, ou seja, é difícil não relacionar as
identidades sexuais e de gênero, porém, não são a mesma coisa.
Segundo Louro (2014, p. 31), “Sujeitos masculinos ou femininos
podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais (e, ao mesmo
tempo, eles também podem ser negros, brancos, ou índios, ricos ou
pobres, etc.).”. Neste caso, a identidade sexual se refere as escolhas
sexuais e desejos dos indivíduos, já a identidade de gênero se
constrói socialmente e historicamente.
Ainda sobre as relações de gênero, Auad (2018, p. 19) diz que,
Vale ressaltar que as relações de gênero, do modo como estão organizadas
em nossa sociedade, são uma máquina de produzir desigualdades. As visões
naturalistas sobre mulheres, meninas, homens e meninos representam travas
para a superação dessa situação.
Essas desigualdades entre os gêneros masculinos e femininos
acontecem também no ambiente escolar, atitudes como
desigualdades, discriminações ou exclusões devem ser abolidas e
prevenidas pelos docentes e demais profissionais da educação.
Para Lins (2016, p. 16), “[...] Quando usamos o termo “desigualdade
de gênero”, nos referimos às relações de poder, privilégio ou
hierarquias sociais criadas a partir das diferenças percebidas entre
homens e mulheres, ou entre masculinidades e feminilidades”.
Portanto, quando usamos frases discriminatórias como “menino
não chora” ou “menina não senta assim”, estamos incentivando
estereótipos de gênero, essas atitudes devem ser prevenidas por
parte dos docentes e por isso ressalta-se a importância da formação
docente para a diversidade de gênero, já que a escola deve ser
transformadora, democrática e o docente deve ser acolhedor e
inclusivo.
49
A escola e a diversidade de gênero
Sobre o direito à educação, a Constituição Federal (2017, p.
160) afirma que, Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. Art. 206. O ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência
na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV
– gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
Portanto, toda pessoa tem direito à educação, sendo assim, a
escola precisa trabalhar diversas questões como a diversidade
como um todo, sendo: a de gênero, cultural, religiosa, etc,
promover a igualdade de ensino e o respeito pela pluralidade de
ideias de seus educandos, para garantir a permanência dos mesmos
no ambiente escolar, evitando assim a marginalização e a
invisibilidade desses atores sociais. A escola, muitas vezes, é o local
onde os indivíduos passam a maior parte do seu tempo, é na
convivência diária com o educador e com os colegas de turma que
acontece a socialização entre os mesmos e aprendem valores éticos,
morais e humanos, que regem nossa sociedade. De acordo com
Nascimento (2012, p. 40),
A escola é um dos espaços de socialização dos indivíduos. É através dela que
os alunos desenvolvem o senso crítico e aprendem valores éticos e morais
que regem a sociedade. A escola tem como responsabilidade ampliar os
horizontes cultural e expectativas dos alunos numa perspectiva
multicultural. É na escola que aprendemos a conviver com as diferentes
formas de agir, pensar e se relacionar; portanto, ela deve refletir essa
diversidade.
A escola é um dos lugares que abriga diferentes diversidades,
seja ela de gênero, sexual, religiosa, étnico-racial, cultural, entre
50
outras, torna-se então responsável por tomar medidas preventivas
sobre qualquer tipo de preconceito e discriminação dentro do
ambiente escolar. Nesse sentido, Louro (2014, p. 61) afirma que,
“Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso.
Na verdade, a escola produz isso. [...] Ela se incumbiu de separar
os sujeitos [...] ela imediatamente separou meninos das meninas”.
Pode-se compreender que a escola recebe diversos tipos de sujeitos,
porém, em vez de uni-los e abordar a questão do respeito e
igualdade, a mesma faz separar os meninos das meninas, criando
assim desigualdade, distinções e diferenças, além de
hierarquização, classificação.
Considerando a diversidade de gênero presente em toda a
sociedade, inclusive nas escolas, que representa também parte
desta mesma sociedade, encontramos diversos tipos de
preconceitos, discriminações e até mesmo, comportamentos como
expectativas de gênero. Sobre as expectativas de gênero, Lins (2016,
p. 19) comenta que,
O comportamento esperado na escola também é marcado por expectativas
de gênero. Quando pensamos que “matemática é coisa de menino”, que
“menina é mais caprichosa”, enfim, que certas coisas são próprias de
meninas e outras de meninos, estamos limitando as aprendizagens e as
experiências de vida das crianças ou adolescentes.
São atitudes como essas que não devem existir dentro das
escolas, pois além de gerar mais desigualdade de gênero, ainda
gera práticas discriminatórias reforçando o preconceito e até
mesmo, bullying. De acordo com Candau (2007, p. 03), “[...]
atualmente a questão da diferença assume importância especial e
transforma-se num direito, não só o direito dos diferentes a serem
iguais, mas o direito de afirmar a diferença [...]”. Nesse sentido, a
diferença torna-se um direito aos diferentes, não só pela busca ao
direito da igualdade, mas sim para reconhecer a diferença. “Não se
trata de afirmar um polo e negar o outro, mas de articulá-los de tal
modo que um nos remeta ao outro”. (CANDAU, 2007, p. 03).
Portanto, devemos ter a escola como um elemento para a
51
construção da igualdade, reconhecendo a diferença existente em
cada ser humano, pois esse é o primeiro passo para reconhecer a
igualdade.
Em relação à escola, Nunes (2011, p. 20) destaca que “[...]
necessita ser democrática, inclusiva e acolhedora para todos [...]”.
Assim, aposta-se em uma educação cujo ambiente escolar seja
plural, democrático, livre de qualquer forma e expressão de
preconceitos ou práticas discriminatórias, onde a educação para a
diversidade seja cada vez mais estimulada nas escolas e a formação
docente para este assunto seja cada vez mais repensada, com o
intuito de investigar nos educandos a reflexão acerca dos valores
éticos, morais e humanos de forma clara e libertadora. De acordo
com Vieira (2013, p. 81),
Partindo destes pressupostos, qualquer intervenção educativa que vise os
combates às estereotipias de gênero, ou outras, deve promover junto das
pessoas envolvidas sobretudo o desenvolvimento de uma consciência crítica
sobre a realidade.
Sendo assim, a escola deve agir de forma transformadora, ou
seja, fazer intervenções que pretenda combater os estereótipos de
gênero e prevenir atitudes de preconceito, discriminação,
desigualdade e violência. É importante também, para propagar
uma cultura de paz no ambiente escolar, fazer intervenções
educativas e ações preventivas com o intuito de propiciar uma
educação emancipatória e incentivá-los a refletir e criticar a
realidade em que vivemos.
Na perspectiva de estabelecer respostas para os desafios da
educação, Nunes (2011, p. 31) cita que,
Para dar respostas aos grandes desafios da educação no mundo
contemporâneo e no futuro, a Unesco estabeleceu, em 1993, a Comissão
Internacional de Educação para o século XXI. Essa comissão foi presidida por
Jacques Delors e por um grupo de especialistas e pedagogos de várias partes
do mundo que produziram um relatório com sugestões e recomendações,
que passou a ser conhecidos como “Relatório Delors”.
52
Com o Relatório Delors, estabeleceu-se então, eixos
norteadores para a educação contemporânea e do futuro,
denominados como os quatro pilares da educação, caracterizados
como: aprender a ser, aprender a conviver, aprender a fazer e
aprender a conhecer. Nunes (2011, p. 32), afirma que “[...] o
relatório busca mostrar a importância de uma educação também
voltada para os princípios, valores e virtudes que devem ser
semeados em cada criança e jovem”. Nesse sentido, pode-se
entender que o relatório da Unesco destaca a importância de uma
educação voltada para a formação de princípios, valores e virtudes
nos seres humanos durante a infância e a juventude, com a intenção
de prepara-los para a vida. Assim sendo, Nunes (2011, p. 32) ainda
cita que, “A construção desses objetivos preconizados pela Unesco
visa a mudança de atitudes e comportamentos, entre outros,
direcionados na busca de uma educação para a paz e a superação
pacífica dos conflitos”. É justamente a busca por uma educação
voltada para a paz que as escolas devem se nortear, pois as
violências geradas por conflitos, discriminações, desigualdades,
estereótipos, etc. São situações que podem ser prevenidas se o
ambiente escolar se direcionar para a realização destes objetivos e
princípios orientados pelos quatro pilares da educação.
Enfatiza-se, então, a importância de se aprender a viver juntos,
a viver com o outros, é neste sentido que um dos pilares da
educação se volta para esta concepção, é o aprender a “conviver”.
Nunes (2011, p. 37) afirma que, “[...] através do qual a escola deve
ensinar o aluno a se relacionar melhor em seu meio, de forma
participativa, solidária e cooperativa. [...]”. Nota-se, portanto, a
importância deste pilar, é através da prática do mesmo que a escola
é capaz de ensinar aos seus educandos e educandas o valor de se
relacionarem com os outros de maneira participativa, solidária e
cooperativa.
Sobre o pilar da educação, aprender a “conviver”, Nunes
(2011, p. 37) afirma que,
53
[...] Aprender a conviver significa habilitar-se para um maior e melhor
exercício das relações humanas, tais como exercer uma boa comunicação, ter
maior participação social, realizar trabalhos cooperativos, possuir
habilidades em negociações e gerenciamento dos conflitos. Significa também
aprender a ter uma maior consciência e responsabilidade social,
desenvolvendo empatia, apreciação pela diversidade, respeito pelos outros
e espírito de solidariedade.
Aprender a conviver vai além de apenas saber viver juntos, o
objetivo de ter uma educação voltada para este pilar da educação,
é passar aos educandos o ensinamento do valor do respeito às
singularidades do ser humano, sem julgamentos pelas
diversidades, ter consciência e responsabilidade social, habilidade
em lidar com conflitos, etc. As escolas necessitam de educadores
preparados para levar este tipo de conhecimento para as crianças e
jovens, aprender a conviver mostra-se importante também para a
relação entre educador/educando e educando/educando, em busca
de uma educação voltada para os princípios da paz, da
solidariedade, reciprocidade, respeito mútuo, pois este pilar da
Unesco, assim como, aprender a ser, aprender a fazer e aprender a
conhecer, podem transformar a educação, na perspectiva de um
ambiente escolar cooperativo, amenizando qualquer violência,
valorizando a igualdade, o respeito e a convivência entre/com
todos.
Escola Plural: algumas reflexões
A escola é o lugar onde se encontra diversos tipos de pessoas
e culturas, portanto o ambiente escolar deve ser acolhedor para
receber essa diversidade, essa pluralidade de educandos e
educandas. A proposta de uma Escola plural se volta para as
singularidades do indivíduo, apresenta um ambiente democrático,
respeita as diversas visões de mundo, valores e saberes
promulgando valores humanos e éticos, além de educar para a
cidadania. Sobre a educação para a cidadania, Marinho (2012, p. 85)
cita que,
54
Educação para o exercício da cidadania, em conformidade com a Educação
em Direitos Humanos passou a significar uma possível inserção capaz de
dimensionar novas perspectivas de promover e estimular situações
relacionadas à prática da tolerância e do respeito às diversidades culturais,
sexuais, religiosas e étnicas, a partir do cotidiano escolar, visando à formação
de cidadãos(ãs) críticos(as) e conscientes de seus direitos e deveres.
A proposta da Escola Plural é norteada por eixos que são
considerados princípios orientadores, que segundo Miranda
(2007), “[..] são eles: uma intervenção coletiva radical, a escola como
espaço de produção e vivência cultural, as virtualidades educativas
da materialidade da escola, a sensibilidade em relação a totalidade
da formação humana, a vivência de cada idade de formação sem
interrupção, a socialização adequada de cada idade e uma nova
identidade da escola e do seu profissional”. Portanto, a Escola
Plural se preocupa com a formação do indivíduo como um todo,
conferindo a importância para os mesmos se expressarem,
produzirem, se socializarem e se descobrirem sem interrupções,
este projeto além de ser flexível, oportuniza seus educandos a
criarem e viverem diversos tipos de experiências, como a
socialização e interação com o próximo.
Segundo Miranda (2007, p. 7):
A Escola Plural propôs o rompimento com a concepção tradicional de ensino
e aprendizagem, passando a incorporar a realidade social, considerando as
questões e os problemas enfrentados pelos homens e pelas mulheres de
nosso tempo como objeto de conhecimento.
Entende-se que a Escola Plural estabelece um rompimento
com o tradicionalismo e incorpora a realidade social, com um olhar
voltado para o ser humano, com isso as questões sociais tornaram-
se o objeto de estudo de conhecimento da Escola plural,
fortalecendo a formação humana.
A importância desta escola é “[...] por muitas razões, um
projeto pedagógico muito inovador, uma das mais corajosas
tentativas de combater a evasão e a repetência e de resgatar o
direito e o prazer de aprender [...]”. (MIRANDA, 2007). Nessa
55
perspectiva, caracterizamos a Escola Plural como uma proposta
educacional democrática, aberta às diferenças sem desigualdade,
visando o respeito às singularidades de cada educando, buscando
oferecer para os mesmos um ambiente de paz, sem qualquer tipo
de violência, considerando que somos todos diferentes e não
desiguais.
No processo da busca de um ambiente de paz, Nunes (2011, p.
21) fala que,
Toda escola precisa dar condições para a discussão dos valores que levam à
conscientização e à autorreflexão crítica. A busca da paz constante não quer
dizer que não teremos conflitos na escola. Eles continuarão a existir, porque
fazem parte da condição humana, mas coexistirão dentro de uma perspectiva
de paz.
Neste sentido, a escola deve buscar a prevenção da violência e
levar discussões a respeito da conscientização da paz para o
ambiente escolar. Os docentes devem enfrentar os conflitos com
práticas pedagógicas dentro de uma perspectiva voltada para a
paz.
A Escola Plural aposta no valor das diferenças, na democracia
e na autonomia de seus educandos, este projeto tem como foco
principal formar pessoas que saibam ler o mundo, das mais
variadas formas, respeitando as diferenças, as diversidades de
modo geral e que desenvolvam a autonomia posicionando-se
perante a sociedade. De acordo com Benevides (1998, p. 157),
A educação é aqui entendida, basicamente, como a formação do ser humano
para desenvolver suas potencialidades de conhecimento, julgamento e
escolha para viver conscientemente em sociedade, o que inclui também a
noção de que o processo educacional, em si, contribui tanto para conservar
quanto para mudar valores, crenças, mentalidades, costumes e práticas. [...].
A Escola Plural é um projeto pedagógico com uma proposta
educacional diferente das escolas tradicionais, cuja finalidade é,
portanto, uma educação democrática que se volte para a formação
dos indivíduos para exercer a cidadania, sem preconceito,
56
violência, desigualdade, entre outros, respeitando assim, as
singularidades de cada um, além de contribuir para a construção
dos valores éticos, morais e humanos, busca-se com esta proposta
incentivar a valorização da autonomia e do respeito a todos.
O docente e a diversidade de gênero
O educador em seu dia a dia se depara com diversos desafios,
alguns fáceis e outros mais complexos, definir o grau de
dificuldade varia de professor para professor, de acordo com seus
valores, experiência na profissão, sua postura, etc.
No ambiente escolar o docente se depara com a diversidade de
gênero que, de acordo com Lins (2016, p. 10), “[...] é um dispositivo
cultural, constituído historicamente, que classifica e posiciona o
mundo a partir da relação entre o que se entende como feminino e
masculino [...]”. Esta compreensão do conceito por parte do
docente faz-se necessário para que o mesmo não reproduza
estereótipos de gênero, como por exemplo citar frases do tipo
“menino não chora” ou “senta-se como uma menina”, atitudes
como estas não devem ser reproduzidas no cotidiano escolar e na
prática pedagógica, pois não é papel do professor fazer associações
específicas de meninos e meninas, atitudes como essas são bases
para diversas situações de desigualdade.
Segundo Lins (2016, p. 17),
As diferenças percebidas entre o corpo feminino e o masculino foram
transformadas em desigualdades através de um processo histórico e cultural
cujo resultado foi a naturalização de vários estereótipos de feminilidade e
masculinidade.
Nota-se, portanto, a importância da formação docente para a
diversidade de gênero, com a finalidade de formar educadores que
valorizem as diversidades existentes, sem a formação adequada,
pode-se gerar situações de desigualdade ou atitudes
preconceituosas que são um desafio a se enfrentar, porém se torna
fácil de solucionar quando se tem conhecimento do assunto e o
57
mesmo seja trabalhado em sala de aula. De acordo com Nunes
(2011, p. 42), “O educador deve-se comprometer com uma
educação que [...] substitua a discriminação pela conscientização”.
É neste sentido que é ressaltado a relevância de se trabalhar a
conscientização do respeito pelas diferenças, pois com a
conscientização dos educandos a respeito das diversidades e
diferenças entre os seres humanos podemos evitar a discriminação,
com a finalidade de extinguir a mesma das escolas.
Neste sentido, Nunes (2011, p. 42) cita que,
A escola é um local marcado pelas diferenças de pessoas, cada um com a sua
história, sua aparência, sua visão de mundo e suas formas de agir e pensar.
Os alunos deverão trabalhar com constância para que se libertem de
possíveis atitudes discriminatórias em relação às diferenças apontadas,
devendo responder à diversidade étnica, etária, linguística, econômica,
cultural e de gênero de maneira positiva e socialmente responsável.
A escola por ser um local onde recebe diversos tipos de
pessoas, cada uma carregando a sua bagagem, entende-se que estes
educandos devem aprender a respeitar todas as diversidades, seja
ela étnica, cultural, gênero, etc, de uma maneira positiva,
responsável e sem violência, contribuindo para a igualdade e o
respeito a todos. Nesta perspectiva, Lins (2016, p. 24) afirma que,
“[...] Igualdade entre as pessoas não é anular as nuances e as
diferenças existentes entre elas, mas garantir que tais variações não
sejam usadas para se estabelecer relações de poder, hierarquia,
violência e injustiça”. Portanto, quando se refere à igualdade entre
as pessoas, não quer dizer que as diferenças estão sendo deixadas
de lado, mas sim, afirmar que as diferenças existentes devem ser
respeitadas, para que atitudes como violências e injustiças não
sejam reproduzidas.
Os educadores precisam desconstruir conceitos, pluralizar
conhecimentos, além de contribuir para a construção de um
ambiente escolar saudável, livre de preconceitos e desigualdades.
Abordar a diversidade em sala de aula é fundamental, sendo assim,
o educador necessita estar ciente da importância de se trabalhar e
58
tratar estas questões relacionadas à diversidade, é essencial que os
mesmos entendam que tratar a diversidade de gênero no ambiente
escolar é preparar seus educandos e educandas para a vida, pois, a
diversidade de modo geral está em todos os lugares.
Na perspectiva de uma educação para a diversidade, o
educador deve refletir com seus educandos a relevância da paz, do
saber conviver com todos, do respeito, da igualdade, dos direitos
humanos, além de buscar a prevenção da violência gerada pelo
preconceito, desigualdade, discriminação, entre outros. Deve-se
abordar a diversidade de gênero no contexto escolar com a
finalidade de desconstruir os conceitos e preconceitos estabelecidos
pela sociedade, tratar do masculino e feminino vai além de
estabelecer regras, atitudes, normas e conceitos, trata-se de
respeitar o próximo, com igualdade, com a compreensão de que a
educação não deve restringir ou apontar os dedos para as
diferenças percebidas, mas sim acolher, portanto, os educadores
precisam ser inclusivos, transformadores e democráticos na busca
de uma escola plural, aberta e acolhedora.
Formação Docente
Quando se fala em educação, logo se pensa em professores,
profissional este que para exercer a profissão deve-se primeiro
receber uma formação adequada para tal atuação. Neste sentido,
será abordado a importância da formação docente para que os
educadores sejam capacitados para exercer a profissão de forma
igualitária, acolhedora, transformadora e inclusiva.
Sobre a formação de professores, Silva (2002, p. 2) afirma que,
[...] A formação de professores é um processo contínuo de desenvolvimento
pessoal, profissional e político-social, que não se constrói em alguns anos de
curso, ou mesmo pelo acúmulo de cursos, técnicas e conhecimentos, mas
pela reflexão coletiva do trabalho, de sua direção, seus meios e fins, durante
a carreira profissional e antes dela.
59
Ressalta-se, então, que a formação docente seja atribuída não
apenas por cursos, técnicas e conhecimentos, mas sim, o conjunto
destes associados com as experiências adquiridas pela da carreira
profissional, como também por uma ininterrupta e inacabada
reflexão de seu trabalho. As escolas precisam de profissionais
capacitados para oferecer aos educandos uma educação longe de
qualquer tipo de preconceito, discriminação, intolerância e acima
de tudo, de qualidade.
De acordo com Silva (2002, p. 4),
A formação de professores é uma temática recorrente e central na pesquisa
educacional por serem estes os sujeitos sociais que estão ou estarão
trabalhando a formação de outros sujeitos sociais. Vale lembrar que a
atividade docente contém as formas de reprodução, resistência, produção de
valores e práticas sociais, sendo sua prática um resultado de mediações, ou
seja, ela é constituída por múltiplas determinações, entre estas a formação
inicial. [...].
É de fundamental importância que os docentes recebam uma
formação capacitada, adequada e de qualidade, preocupando-se
com o futuro da educação, que também estará nas mãos dos
docentes em processo de formação, portanto, os mesmos devem
estar preparados para ensinar, aprender, refletir, instigar, analisar,
orientar, etc, os educandos de forma construtiva, objetiva,
responsável e com conhecimento, pois estes são também sujeitos
sociais em processo de formação.
Durante a formação docente, os mesmos estudam diversos
conteúdos, que são a base para a atuação profissional, entretanto,
ressalta-se a importância de instruir conteúdos voltados para a
diversidade, o respeito às diferenças e a igualdade entre todos, a
inclusão, etc. Neste sentido, Nunes (2011, p. 42) afirma que, “o
desafio é construir uma pedagogia multicultural que respeite as
diferenças e não reproduza estereótipos, exclusões e padrões
sociais incompatíveis com o respeito à diversidade”. Portanto, os
docentes devem receber uma formação que busque desmistificar as
60
diferenças e os preconceitos em relação às diversidades em sala de
aula.
A formação docente vai além de preparar os mesmos para a
prática pedagógica, precisa-se formar docentes na perspectiva de
uma educação em direitos humanos, que segundo Marinho (2012, p.
37), “[...] a concepção de Educação em Direitos Humanos incorpora
a compreensão de cidadania democrática, cidadania ativa e
cidadania popular, embasadas nos princípios da liberdade, da
igualdade, da diversidade, na universalidade, indivisibilidade e
interdependência dos direitos”. Visto que os futuros docentes
devem receber uma educação voltada para estes princípios, para que
se formem e durante a atuação profissional se embasem na busca
pela igualdade, o respeito pelas diferenças, uma educação voltada
para a paz e que valorize as diversidades existentes e que tenha por
finalidade, prevenir a violência, os conflitos, preconceitos e
discriminações. Neste sentido, Nunes (2011, p. 22) afirma que,
Assim, a escola pode ajudar promovendo uma educação que valorize as
relações humanas e sociais e tenha como exercício cotidiano a busca da
solidariedade, da amizade, da cooperação, da construção da paz, do respeito,
da ética e dos valores fundamentais da pessoa humana [...].
Diante do tema do estudo abordado, os docentes devem
receber uma formação adequada para trabalhar com a diversidade
de gênero, que está presente em todos os lugares. O foco desta
formação voltada para tal diversidade é evitar que os docentes
reproduzam frases e atitudes preconceituosas e discriminatórias,
pois o ambiente escolar deve ser democrático, inclusivo e
transformador, livre de qualquer violência.
Em relação à diversidade de gênero, os docentes devem
receber uma formação voltada para o respeito às diferenças do
próximo, ser transformador, acolhedor, inclusivo, livre de práticas
discriminatórias como fazer filas de meninos e filas de meninas,
separando brincadeiras por gênero, citar frases como “azul é de
menino” ou “rosa é de menina”, até mesmo “futebol é brincadeira
para meninos” ou “boneca é brinquedo de menina”, frases e
61
atitudes como estas devem ser evitadas pelos docentes e nada
melhor para orientá-los do que a formação docente. Neste sentido,
Lins (2016, p. 101), afirma que, “acreditamos que as educadoras e
os educadores estão em constante formação, em processo de
reflexão contínua sobre seu ofício, sempre se alfabetizando (das
mais diversas formas), complexificando e transformando seus
saberes e práticas. [...]”. Portanto, os docentes estão sempre
buscando conhecimento, esta busca é importante para a
qualificação e para a ampliação do conhecimento e diálogo a
respeito da diversidade de gênero.
A formação docente para as diversidades, deve ser voltada
para o respeito e igualdade, a educação precisa de docentes
preparados para enfrentar os desafios que a diversidade de gênero
apresenta, as separações e as diferenças entre meninas e meninos
podem criar desigualdades, geradoras de várias violências como o
preconceito, discriminação, hierarquia, etc. Os docentes necessitam
desta formação para estar ciente de todas as necessidades a serem
tratadas e trabalhadas em relação a este assunto no ambiente
escolar, a formação adequada pode facilitar a prática pedagógica e
de acordo com o conhecimento adquirido, pode realizar o seu
trabalho com competência, respeitando todas as diversidades de
modo geral, sem discriminação, desigualdade, preconceito e
estereótipo.
Desafios da formação docente para a diversidade de gênero
A busca por uma educação emancipada de preconceitos,
desigualdade e violência é contínua, no entanto, cabe aos
educadores e educadoras refletirem sobre suas práticas
pedagógicas e analisarem como se comportam perante as
diferenças. Nesse sentido, Lins (2016, p. 100) afirma que, “[...] É
preciso estar sempre atento para as diferenças que se transformam
em desigualdades e marcam a experiência das pessoas e das
futuras gerações”. Nota-se a importância de estar alerta em relação
às diferenças, para que não prejudique a experiência de vida das
62
pessoas, tratar o próximo com desigualdade é errado, deve-se
tratar com respeito e igualdade, somos todos diferentes, mas não
desiguais.
A sociedade estabeleceu uma organização social dividida em
masculino se referindo aos homens e o feminino se referindo às
mulheres, porém, estes papéis socio-históricos foram
estabelecendo regras e normas para as formas de expressão destes
gêneros, transformando-os em estereótipos e desigualdades.
De acordo com Lins (2016, p. 16),
Além de serem regras restritivas, que tentam encaixar as pessoas em
estereótipos sociais, as normas de gênero são também a base para muitas
situações de desigualdade. Quando usamos o termo “desigualdade de
gênero”, nos referimos a relação de poder, privilégio ou hierarquias sociais
criadas a partir das diferenças percebidas entre homens e mulheres, ou entre
masculinidades e feminilidades.
As diferenças percebidas entre homens e mulheres não devem
ser motivos para desqualificá-los ou valorizá-los por conta do
gênero. Tratar da questão de gênero vai além de separá-los, excluí-
los ou privilegiá-los, atitudes como estas reforçam a desigualdade,
deve-se tratar esta questão com igualdade e respeito sem restrições.
Os docentes devem estar preparados para enfrentar os
desafios da diversidade de gênero nas escolas, fazendo do
ambiente escolar um espaço democrático, livre de qualquer prática
de violência, emancipador e seguro.
Nesta perspectiva, Lins (2016, p. 67), cita que,
O que buscamos, com esses cenários, é mostrar como as situações em que há
violência de gênero podem ser comuns no espaço escolar e trazer dilemas e
tensões para a prática das/os profissionais da educação. No entanto, podem
propiciar espaços de troca, reflexão e transformação que minimizem o
sofrimento daquelas e daqueles que são estigmatizados e atacados. [...].
A educação necessita cada vez mais de educadores
capacitados para transformar o espaço escolar, capaz de fazer da
escola e da sala de aula um lugar aberto, democratizado e
63
acolhedor. Para obter-se este resultado deve-se aprimorar a
formação docente, Lins (2016, p. 63) afirma que, “[...] a escola é o
espaço que concebemos para estimular a reflexão, o aprendizado e
o desenvolvimento de comportamentos mais compatíveis com a
diversidade e a democracia. [...]”. Neste sentido, a escola é o lugar
onde o docente deve estimular a reflexão e o aprendizado do
respeito às diversidades e a democracia, deve-se salientar a
importância de formar cidadãos para enfrentar os desafios da
sociedade e saber lidar com as diferenças, sem discriminação,
preconceito, violência, etc.
Nesta concepção, Lins (2016, p. 67) cita que,
[...] O objetivo é criar alunas e alunos mais equipados para lidar com um
mundo permeado de diferenças. Não podemos nos isentar da
responsabilidade e do compromisso de gerar espaços mais democráticos e
seguros. Por isso, quebrar o silêncio e encarar questões de diversidade e
direitos não devem ser ações realizadas somente em situações de exceção ou
problemáticas, mas cotidianamente e por todas/os as/os profissionais da
escola.
Portanto, sabe-se que a diversidade de gênero está presente
em nossa sociedade, quem lida com a mesma nas escolas são os
educadores, neste sentido, deve-se destacar a importância de uma
formação docente para a diversidade de gênero adequada e
qualificada, em busca de uma educação emancipada, livre de
estereótipos e preconceitos. Sendo assim, Lins (2016, p. 102) afirma
que, “[...] profissionais da educação têm um lugar privilegiado de
mudança social, quando engajados na transformação de
preconceitos e discriminações. São eles que nos educam nas mais
diversas formas de conhecimento: com letras, palavras, números,
histórias, afetos e valores”. Portanto, os educadores e educadoras
quando se comprometem com a mudança na educação, podem
buscar diversas formas para prevenir as escolas das mais variadas
formas de violência, desigualdade, discriminação, estereótipos e
preconceitos, promovendo um espaço democrático, aberto,
inclusivo, transformador, acolhedor, pacificado e preparado para
64
receber as diversidades de modo geral existentes na sociedade, com
respeito e igualdade.
BNCC - Base Nacional Comum Curricular e a diversidade de
gênero
Considerando as perspectivas e orientações da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), homologada no final de 2017, uma das
mudanças feitas na BNCC foi a retirada dos documentos
relacionados à identidade de gênero e orientação sexual. Sabe-se
que os currículos das escolas no Brasil eram norteados pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais, onde continha um capítulo
sobre as questões de gênero e sexualidade.
Sobre as relações de gênero na educação, os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1997, p. 144), afirma que,
A discussão sobre relações de gênero tem como objetivo combater relações
autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de conduta estabelecidos para
homens e mulheres e apontar para sua transformação. A flexibilização dos
padrões visa permitir a expressão de potencialidades existentes em cada ser
humano que são dificultadas pelos estereótipos de gênero. [...].
Entende-se que quando a escola retira estas questões voltadas
para o gênero e sexualidade, perde a oportunidade de tratar e
ensinar o respeito e a igualdade, pois ninguém é igual a ninguém,
todos somos diferentes, mas não desiguais. O termo identidade de
gênero, não aborda assuntos relacionados apenas ao masculino e
feminino, discute também o eu e as características de cada pessoa,
além de evitar violências físicas e emocionais, preconceitos,
estereótipos, exclusões e discriminações. Portanto, com a omissão
dos termos gênero e sexualidade na BNCC, a educação perde
grandes possibilidades de ensinar as pessoas a se respeitarem mais,
tratar o próximo com igualdade, pois é no convívio com as
diferenças que a sociedade é construída.
Em relação à diversidade, a Base Nacional Comum Curricular
(2017, p. 10), cita que,
65
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação,
fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos
humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de
grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem
preconceitos de qualquer natureza.
Se a BNCC não contém a identidade de gênero e orientação
sexual, provavelmente, os educadores não irão receber formação,
muito menos, capacitação para trabalhar com estas questões na
prática pedagógica, portanto, com a falta de discussões
relacionadas a estas questões, pode-se transformar a sociedade
mais preconceituosa e violenta do que já apresenta ser. A falta de
conhecimento dos educandos pode causar grandes conflitos e
violências, como homofobia, exclusões ou até mesmo,
discriminações, neste sentido, ressalta-se a importância do preparo
por parte dos docentes para mediar e lidar com estes confrontos.
Considerações
Conforme as observações apresentadas, é possível
compreender a importância de formar docentes preparados para
enfrentar os desafios da diversidade de gênero no ambiente escolar,
é a partir de uma formação adequada e de qualidade que os
educadores podem ser capazes de fazer uma transformação na
educação.
Geralmente nas escolas, não separam turmas por gêneros, ou
seja, as salas de aula são mistas, onde se misturam meninos e
meninas. Apesar desta mistura, existe educadores que ainda
exercem sua prática pedagógica mesmo que aparentemente
silenciosa, com preconceito, desigualdade e reforçando os
estereótipos, os mesmos deixam esclarecer estas formas de
violência, quando separam as filas por gênero, quando julgam
atitudes e ações dos educandos e educandas pelo gênero que lhe é
atribuído, como “menina é assim” ou “menino não faz isso”, frases
como estas podem deixar marcas negativas na vida dessas pessoas,
não é papel do educador definir o que é “coisa de menina e coisa
66
de menino”, práticas como esta apenas afirma a necessidade de
investir em uma educação emancipadora, de qualidade e
transformadora, ao passo de prevenir e buscar formas de acabar
com as violências geradas pelo preconceito.
Segundo Auad (2018, p. 23),
Ainda sobre as diferenças e as desigualdades, [...] “O contrário da igualdade
não é a diferença. O contrário da igualdade é a desigualdade. Uma diferença
pode ser culturalmente enriquecedora, ao passo que uma desigualdade pode
ser um crime”.
O presente estudo, foi elaborado segundo esta perspectiva,
onde o contrário da igualdade é a desigualdade e não a diferença,
deve-se tratar as diferenças com respeito e igualdade, tratar com
desigualdade é crime, pois somente através do reconhecimento da
diferença pode-se contribuir com a igualdade.
A diversidade de gênero está presente em todos os lugares,
inclusive na sala de aula e um dos vários desafios a serem
enfrentados pelos docentes é o de acabar com os estereótipos
estabelecidos pela sociedade quando dizem “meninos não choram”
ou “se comporta como uma menina”, atitudes como estas devem
ser banidas de dentro do ambiente escolar, este é um desafio a se
enfrentar e um objetivo a se alcançar, portanto salienta-se a
importância dos docentes receberem uma formação adequada para
saber lidar com estes desafios, sem preconceitos, violências,
discriminações ou até mesmo, a exclusão.
De acordo com Lins (2016, p. 75),
A formação continuada de professoras/es, gestoras/es e toda a equipe técnica
deve estar voltada para a percepção das questões de gênero. Em se tratando
de práticas naturalizadas em nosso cotidiano, é importante que muita
energia e esforço contínuo sejam despendidos no questionamento de nossas
ações e preconceitos, visando construir uma escola mais acolhedora.
A formação docente para a tal diversidade é importante para
fazer da escola um ambiente escolar democrático, inclusivo,
acolhedor e livre de qualquer tipo de preconceito ou discriminação,
67
são estes um dos desafios a se enfrentar na atualidade, porém é
necessário que os futuros docentes tenham um olhar humano,
transformador, são estes os profissionais que podem contribuir
para a mudança da educação quanto a diversidade de gênero e
promover a paz nas escolas.
Dentro da escola deve-se manter o ensinamento do respeito ao
próximo, o ambiente escolar deve ser democrático, transformador
e acolhedor, ideias e comportamentos preconceituosos devem ser
prevenidas e esta prevenção pode ser feita a partir de
planejamentos e projetos pedagógicos. De acordo com Nunes
(2011, p. 31), “A escola é o local adequado para aprimorar nosso
potencial de vivermos juntos, de alcançarmos objetivos comuns
criando habilidades de relacionamentos e de difundirmos práticas
de solidariedade e de cooperação. [...]”. Portanto, é por meio da
educação que podemos transformar a sociedade e alcançar
mudanças positivas para a cidadania, assim como romper com
padrões rígidos socialmente construídos e muitas vezes, reforçados
pela escola.
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Graziela Raupp Pereira e Maria Amelia de Souza Reis. – 1. Ed. –
Petrópolis, RJ :De Petrus et Alii; Rio de Janeiro :FAPERJ, 2013.
70
71
INCLUSÃO SOCIAL ESCOLAR: REALIDADE NO IFTO
CAMPUS PORTO NACIONAL
Cynthia Souza Oliveira1
Albano Dias Pereira Filho2
Tiago Soares dos Reis3
1 Possui Graduação em Serviço Social pelo Centro Universitário Luterano de
Palmas CEULP-ULBRA (2014). Graduação em Pedagogia pela Faculdades
Integradas de Ariquemes - FIAR (2018). Pós-Graduação Lato Sensu em Gestão
do Suas - Sistema Único de Assistência Social Pela - UCAM - Universidade
Candido Mendes. Mestrado profissional em Ciências Ambientais - Linha de
Pesquisa:- Saúde e Desenvolvimento Social dos Municípios Pela Universidade
Brasil (2018). Possui Qualificação Profissional em: Serviços de Meios de
Hospedagem; Planejamento e Organização de Eventos; Agenciamentos de
Serviços Turísticos Pela Escola Técnica Federal de Palmas ? 2007. Atuou como
servidora Publica na Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social,
sendo Coordenadora do Sistema Nacional de Informação do Sistema Único de
Assistência Social ? SUAS de 03/2013 à 02/2015. Servidora Publica na Secretaria
Municipal de Assistência Social- Coordenadora do CRAS Vila Nova. E-mail:
[email protected]. 2 Licenciado em Matemática pelo Centro Universitário Luterano de Palmas
CEULP-ULBRA (2004). Cursando Segunda Licenciatura pela Unidade Integrada
de Ensino Superior da Bahia. Especialização em Educação Matemática pela
Universidade Federal do Tocantins UFT (2006). Especialização em Avaliação
Escolar em Matemática pela Fundação Cesgranrio (2009). Mestre em Ensino de
Ciências e Matemática Pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA de
Canoas (2012). Doutorado em Educação Matemática Pela Universidade
Anhanguera de São Paulo (2018). Professor de Matemática nos Cursos Técnico
Integrado ao Ensino Médio e Licenciatura em Computação, Professor de
Estatística Aplicada no Curso Superior de Logística do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (IFTO) - Campus Porto Nacional.
Coordenador Institucional do Programa de Residência Pedagógica-IFTO. Vice -
Diretor da Sociedade Brasileira de Educação Matemática-Regional
Tocantins(SBEM-TO). [email protected]. 3 Possui graduação em Licenciatura em Computação pelo Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins IFTO (2016); Especialização em
Docência de Ensino Superior pela Faculdade SULDAMÉRICA (2017).
Atualmente é professor substituto no Instituto Federal de Educação, Ciências e
Tecnologias do Tocantins - campus Porto Nacional, onde ministra disciplinas
nos cursos de Técnico em Informática para Internet integrado ao Ensino Médio,
72
Introdução
Muito vem se falando sobre inclusão de alunos com
necessidades educacionais especiais em ambientes escolares. O
apoio da legislação e da comunidade são fatores importantíssimos
para que se cumpra a obrigatoriedade em acolher e matricular
todos os alunos, independentemente de suas necessidades ou
diferenças. Todavia, apenas esse acolhimento não é suficiente, esses
estudantes com essas características devem receber igualdade de
condições para o acesso, inclusão, permanência e sucesso na escola.
Nesse sentido, Duarte (2003) trata a inclusão social como
conjunto de meios e ações que combatem a exclusão aos benefícios
da vida em sociedade, provocada pelas diferenças de classe social,
educação, idade, deficiência, gênero, preconceito social ou
preconceitos raciais.
Entendemos que toda essa preocupação em um ambiente
escolar, deve ser no sentido de oferecer oportunidades iguais de
acesso a bens e serviços a todos, certo acolhimento afetivo, de modo
que favoreça o desenvolvimento de suas potencialidades,
auxiliando assim os processos de ensino e de aprendizagem e o
desenvolvimento de suas potencialidades.
Diante do exposto acima, no presente capítulo apresentaremos
relatos de uma pesquisa sobre inclusão social em um ambiente
escolar, fruto da oportunidade gerada pelo estágio supervisionado
do curso de graduação em Pedagogia no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins.
Desta forma, com o objetivo de estudar inclusão social no
âmbito do IFTO Campus Porto Nacional, por entendermos que,
não basta o reconhecimento da existência de muitos desafios, temos
que enfrentá-los coletivamente para que assim possamos garantir
Técnico Subsequente em Informática e Licenciatura em Computação. Tem
afinidade em docência em Computação com ênfase nas seguintes áreas:
Informática Básica, Redes de Computadores, Arquitetura em Computadores,
Banco de Dados e Programação Web. E-mail : [email protected] .
73
uma educação de qualidade social que possibilite a inclusão e
permanência dos/as estudantes com resultados positivos.
Buscamos na pesquisa, as ações do campus que evidenciam
uma política de inclusão que visasse à participação dos estudantes
com deficiência e de suas famílias nas diversas instâncias de
atuação da comunidade escolar.
Na pesquisa foram reveladas várias ações que incidem sobre a
política de inclusão. Destacamos entre elas os eventos de
seminários, palestras e semanas de dedicação ao assunto explicitam
nos calendários da instituição, tais como Seminário de Consciência
Indígena e Afro-brasileira-Inafro. Além dos núcleos de apoio;
Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena (Neabis) e Núcleo de
atendimento às pessoas com necessidades específicas (Napne).
Iremos detalhar os núcleos e o seminário no capítulo três deste
artigo.
Referencial teórico
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs)
e a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica
foram criados e tem dentre seus dos objetivos fortalecer os cursos
de licenciatura, bem como programas especiais de formação
pedagógica, com vistas na formação de professores para a
educação básica, sobretudo nas áreas de ciências e matemática, e
para a educação profissional” (BRASIL, 2008).
Nos últimos anos ocorreu uma expansão de Campi dos IFs,
consequentemente, vieram grandes desafios, dentre eles ações
afirmativas que garantem a inclusão social, de modo a diminuir a
exclusão social, seja ela causada por diferenças raciais, religiosas,
sociais, intelectuais, idosos, pessoas portadoras de deficiências,
índios, homossexuais, negros, mulheres e moradores de periferias,
seja ela por conta de orientação sexual ou de gênero.
O artigo Art. 27 da Lei Federal 13.146 de 2015 que institui sobre
a Inclusão da Pessoa com Deficiência que:
74
A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurado sistema
educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a
vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus
talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas
características, interesses e necessidades de aprendizagem.
Em seu artigo Art. 28. A lei traz que, cabe ao poder público
assegurar, criar, desenvolver, programar, incentivar, acompanhar
e avaliar. De modo assegurar educação de qualidade à pessoa com
deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência,
negligência e discriminação. Com relação ainda a educação, a lei
assegura que a acessibilidade deve ser para todos os estudantes,
trabalhadores da educação e demais integrantes da comunidade
escolar às edificações, aos ambientes e às atividades concernentes a
todas as modalidades, etapas e níveis de ensino (BRASIL, 2015).
Entendemos que a inclusão social na educação é de suma
importância para a redução da desigualdade e da exclusão social.
Oportunizando o acesso à educação, que direito a todos de todos
os cidadãos. Quando falamos em inclusão na educação, temos que
refletir que este fato, está relacionado diretamente com
a preparação da escola e a formação dos professores, para que
possam para saber lidar com diferentes grupos de alunos e com as
necessidades e individualidades de cada um.
A Educação Profissional e Tecnológica (EPT) em
conformidade com o disposto na LDB, com as alterações
introduzidas pela Lei nº 11.741/2008, no cumprimento dos objetivos
da educação nacional, integra-se aos diferentes níveis e
modalidades de educação e às dimensões do trabalho, da ciência e
da tecnologia. Permite-se na (EPT) colocarem-se, no escopo das
modalidades educacionais, as propostas de qualificação,
capacitação, atualização e especialização profissional, entre outras
livres de regulamentação curricular, além da formação de
professores para o atendimento educacional especializado, bem
como para o desenvolvimento de práticas educacionais inclusivas
nas classes comuns de ensino regular.
75
Desta forma, a (EPT) pode ser compreendida como uma
modalidade na medida em que possui um modo próprio de fazer
educação nos níveis da Educação Básica e Superior e em sua
articulação com outras modalidades educacionais, tais como;
Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial e Educação a
Distância.
O atendimento educacional especializado (AEE), previsto pelo
Decreto nº 6.571/2008, é parte integrante do processo educacional,
sendo que os sistemas de ensino devem matricular os estudantes
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino regular e
no atendimento educacional especializado (AEE). Com o
atendimento busca-se identificar habilidades e necessidades dos
estudantes, bem como organizar recursos de acessibilidade e
realizar atividades pedagógicas específicas que promovam seu
acesso ao currículo.
Metodologia
A investigação se coloca em uma perspectiva qualitativa
segundo Richardson (2012), sendo que e as etapas adotadas de
coleta de dados seguiram de uma entrevista semiestruturadas de
acordo as orientações de Minayo (2009).
Para Minayo (2009), a entrevista é a estratégia mais usada na
realização do trabalho campo e, portanto, todos os registros são
importantes. Para o autor, é no trabalho de campo, por meio da
entrevista e da observação, que interação entre pesquisador e
objeto/sujeito se dá. Minayo (2009) argumenta que dois tipos de
dados podem ser obtidos através da entrevista.
Dados secundários
São os considerados de caráter objetivo, passíveis de serem
encontradas em documentos oficiais e/ou outras fontes (censos,
relatórios, registros). Nesse caso, as entrevistas podem ser
76
contrapostas e/ou aferidas com dados obtidos de outras fontes
documentais - primárias ou secundárias.
Dados primários
Obtidos por meio de entrevistas ou de manifestações
espontâneas sobre o tema em investigação, mas que ainda não
foram coletadas e sistematizadas.
Richardson (2012) destaca seis recomendações para as quais o
pesquisador deve atentar visando validar cada etapa do processo
de pesquisa, destacamos: a seleção e familiarização com o local da
pesquisa; as relações com os entrevistados; a coleta de informações
e as análises de informações.
a) Seleção e familiarização com o local de pesquisa - a escolha
do local e a familiaridade do pesquisador com o grupo se
constituem um aspecto fundamental da pesquisa qualitativa.
O processo de escolha deve considerar: as formas de acesso aos
entrevistados; adequação das formas de registro e a destituição
de barreiras que possam inibir os entrevistados durante o
processo de investigação. A escolha do local deve ser, portanto
uma reflexão constante por parte do pesquisador.
b) Relação com os entrevistados - após contato com os possíveis
entrevistados, o caráter da relação pesquisador/investigado no
processo de investigação pode variar bastante desde contatos
breves a relações mais estreitas que podem durar meses ou
anos, dependendo da escolha do método de investigação
escolhido e dos objetivos da pesquisa. A administração do
relacionamento do pesquisador com os entrevistados é um
aspecto importante na validação da pesquisa qualitativa, posto
que o pesquisador deva evitar influenciar os entrevistados em
suas declarações e/ou comportamentos.
c) Coleta de informações - em face de disponibilidade de
técnicas disponíveis para a coleta de dados é preciso que se
atente para a validez durante a aplicação das técnicas.
Problemas com a dificuldade de registros, anotações
adequados e dificuldades de perceber para além das
77
aparências superficiais do cotidiano, das ideologias e dos
discursos do visível, devem ser contornados para assegurar o
caráter de validez e confiabilidade da pesquisa.
d) Análise das informações - elaboração de argumento
sequencial, incorporação de críticas das relações sociais à
estruturação dos tópicos da pesquisa, ou seja, são formas de
análises de dados capazes de assegurar maior confiabilidade e
validez as análises qualitativas.
A busca de dados ocorreu após revisão de literatura e análise
de dados secundários sobre a política de inclusão social do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins - Campus
Porto Nacional. O levantamento de dados para análise da realidade
concreta deu-se a partir de depoimento dos servidores lotados na
Coordenação Técnico-pedagógica (Cotepe) e na Coordenação de
Assistência ao Estudante (CAE), Gerência de Administração
(GAM) e Gerência de Ensino (GEN).
Devemos destacar que o estágio e conhecimento prévio da das
pessoas que trabalham na instituição, facilitaram nas etapas de:
Seleção e familiarização com o local de pesquisa, Relação com os
entrevistados, Coleta de informações e consequentemente na
Análise das informações.
Resultados
O que percebemos nos Gestores e na equipe pedagógica do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins -
Campus Porto Nacional, foi bastante comprometimento com o
tema inclusão social na escola. Existe um acompanhamento da
Coordenação Técnico-pedagógica (Cotepe) e da Coordenação de
Assistência ao Estudante (CAE).
Sempre com uma atuação do exercício político-pedagógico,
alinhada com os sujeitos da comunidade educativa, buscando na
medida do possível educar e cuidar de forma interativa, dentro dos
princípios e finalidades educacionais, obedecendo às concepções
curriculares.
78
O Napne
Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades
Específicas é uma implementação do Programa Educação,
Tecnologia e Profissionalização para Pessoas com Necessidades
Educacionais Específicas (TEC NEP) enquanto proposta de
expansão da educação profissional para os sujeitos com
deficiências.
Inicialmente no âmbito do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia criou-se Napne/IFTO/Campus Palmas. Onde
Se definiu por Napne o Núcleo de Atendimento às Pessoas com
Necessidades Específicas, destinado a realização de Ações
relacionadas às questões da educação Inclusiva, criado pela
Portaria nº 292/2008/GAB/Campus Palmas, que oficializa o Núcleo
de Atendimento às Pessoas com Necessidades Educacionais
Especiais.
Os servidores lotados no setor do NAPNE, que tem sua chefia
imediata a Coordenação de Assistência ao Estudante, informaram
que a ideia para criação no NAPNE no campus Porto Nacional,
partiu do assistente social do campus, sendo criado em 2017, tendo
em sua composição, docentes, assistente de aluno, servidor da
Coordenação Técnico-pedagógica enfermeira, pedagogo (a),
tradutora intérprete de LIBRAS e dois estudantes com
necessidades específicas.
Para os servidores do Napne, existe uma necessidade
fundamental de formação continuada para os docentes. Afirmam
que as ações previstas são de realizações de oficinas, palestras e
cursos de formação continuada voltada aos professores.
Afirmaram ainda que criaram um calendário de ações para serem
realizados durante o ano letivo, de acordo com o calendário
inclusivo. O calendário de ações será baseado em algumas datas
comemorativas em relação à pessoa com deficiência.
Para o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência em setembro,
foi realizado um curso básico de Libras. Assim, as capacitações
foram por meio de parcerias de profissionais de outras instituições,
os membros do núcleo ministrando formações, no Dia Nacional da
79
Libras em 24 de Abril, ocorreu a palestra no turno vespertino e
noturno, tendo como público servidores e alunos do ensino médio
e superior. Outra ação realizada foi o minicurso de Libras durante
a Semana Acadêmica no dia 21 de junho de 2018 com o tema
Atendimento ao Público em Libras, ministrada pela tradutora
intérprete e pela aluna surda do campus que também é membro no
núcleo.
Os servidores do núcleo afirmaram que, para o ano de 2019, os
está previsto, a inserção de pais de estudantes fazerem parte do
núcleo, bem como inserção de novos servidores. Com relação aos
objetivos do NAPNE, relataram que se trata de quebrar com as
barreiras arquitetônicas, na busca para que sempre haja
acessibilidade e respeito. Afirmaram que sempre que houver
necessidade de reforma, mudança e adaptações, os membros
estarão atentos à estrutura física do campus para sugerir mudanças
quando necessário.
Informaram que irão sempre buscar maior qualificação por
meio de seminários, fóruns que aconteçam em outras instituições.
Bem como material didático apropriado, o acervo do campus uma
vez que ainda é limitado.
Com relação à metodologia do NAPNE, informaram que é de
articular meios para proporcionar acessibilidade às pessoas que
necessitem, sejam arquitetônicas ou de comunicação, e não
ministrar aulas de reforço ou monitorias para os alunos.
Destacamos que, durante a realização do estágio
supervisionado, presenciamos as tradutoras intérpretes de libras
(duas servidoras) acompanhando uma aluna do curso técnico em
informática e o outro estudante no período noturno, acompanhado
um estudante do curso superior de Licenciatura em Computação
durante suas aulas. Cada tradutora intérprete de libras, acompanha
em um turno, realizando a comunicação para os professores.
Com relação ao Napne as pessoas do núcleo fizeram questão
de frisar que, o objetivo não é ministrar aulas extras ou reforço aos
alunos, mas, identificar quais são esses alunos e quais deficiências
existem no campus, auxiliar professores ou buscar mudanças de
80
estrutura física do campus e também conscientização para que se
houver preconceito entre alunos procurar meio de conscientização
para que não haja exclusão no nosso ambiente escolar, buscando
assim criar e programar políticas de inclusão.
Neabis
O Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena atuantes em
movimentos negros, indígenas e quilombolas. Tem como o
objetivo, promover discussão e suscitar reflexões, envolvendo
brasileiros afrodescendentes e indígenas. As ações sempre buscam
promover encontros com vistas à reflexão de servidores, estudantes
e sociedade em geral para o conhecimento e valorização da luta, da
cultura e da história dos povos africanos, afro-brasileiros e
indígenas e da diversidade na construção histórica e cultural do
país. Além da permanência e êxito escolar dos estudantes negros,
indígenas e quilombolas.
Dia da Consciência Negra é comemorado na data da morte de
Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro. Ele foi o último líder do
maior dos quilombos do período colonial, o Quilombo dos
Palmares. A data foi incluída no calendário escolar nacional em
2003 e em 2011 a Lei 12.519 institui oficialmente a data como o Dia
Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.
A data é feriado em mais de mil cidades brasileiras. Nem todos
os estados aderiram ao feriado. No estado do Tocantins somente
Porto Nacional tem lei municipal que determina feriado em 20 de
novembro. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Tocantins - Campus Porto Nacional, possui um Núcleo de Estudos
Afro-brasileiro e Indígena, além de outros eventos durante o ano,
tem-se o 20 de novembro para a realização de reflexões sobre o
tema.
Todos os anos o campus realiza atividades de Seminários
envolvendo os estudantes da educação básica e superior em prol
da temática. A semana em que a data incide a data representa no
calendário, como a semana da Consciência Negra. Quando se fala
do assunto a nível nacional, vários eventos acontecem nesta
81
semana, demonstrando a importância dessa raça. Matérias como
inclusão dos negros no mercado de trabalho, cotas em
universidades, discriminação por parte da polícia, moda e beleza
negra, entre outros, são os assuntos tratados com mais ênfase
durante essa semana.
A gestora do campus enfatizou ainda que, A Lei nº 10.639, de
9 de janeiro 2003 e a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei
de Diretrizes e Bases da Educacional Nacional) tornam obrigatória
a inclusão no currículo da educação básica da temática da história
e da cultura afro-brasileira. Para a servidora, a inclusão da história
e da cultura afro-brasileira e indígena nos currículos da Educação
básica e superior brasileira, através da promulgação das Leis 11.645
de 2008, trata-se de um marco histórico de suma importância para
o ensino da diversidade cultural no Brasil. Buscando assim
valorizar devidamente a história e a cultura de seu povo
afrodescendente e indígena, em uma tentativa de minimizar danos,
que se repetem há séculos, no que diz respeito à sua identidade e a
seus direitos.
A gerência de ensino do campus, afirmou que o assunto
também é abordado nas disciplinas do curso de Licenciatura em
Computação e do curso superior de Tecnologia em Logística, não
como componente curricular, mas são inseridas nos conteúdos de
disciplinas e atividades curriculares dos cursos de graduação,
discussões e reflexões as relações étnicas raciais, bem como o
tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos
afrodescendentes.
Nadhig
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Tocantins tem também o Núcleo de Apoio aos Direitos Humanos e
à Igualdade de Gênero (NADHIG) Ligada à Pró-reitoria de Ensino
na Reitoria. Esses são estruturadas por grupos para desenvolver
ações educativas de ensino, pesquisa e extensão ligadas às questões
de gênero, diversidade e sexualidade. Tal núcleo tem por objetivo
o cumprimento da legislação (nacional e internacional) direcionada
82
à dignidade da vida humana, ao respeito às diferenças, à promoção
da diversidade e à inclusão necessária para a eliminação do
preconceito e da discriminação.
Esse núcleo não tem representantes do campus Porto
Nacional, as ações são desenvolvidas, coordenadas e articuladas
entre as pró-reitorias do IFTO nas diferentes áreas da Educação,
buscam atender às demandas de pessoas com necessidades
específicas, bem como, por exemplo, membros da população
LGBT, pessoas com deficiência ou pessoas ligadas às demandas por
Igualdade Racial. Foram destacados pelos servidores da
Coordenação de Assistência ao Estudante, que existe sempre uma
prontidão da equipe de Coordenação de Ações Integradas a
Inclusão e Diversidade.
PBP
O Programa de Bolsa Permanência (PBP) é uma ação do
Governo Federal de concessão de auxílio financeiro a estudantes
matriculados em instituições federais de ensino superior em
situação de vulnerabilidade socioeconômica e para estudantes
indígenas e quilombolas. O recurso é pago diretamente ao
estudante de graduação por meio de um cartão de benefício.
Embora não citado diretamente pelos servidores como uma
política de inclusão, foi considerada na pesquisa como inclusão
escolar. Entendemos que sim, uma vez que, o Programa de
Assistência Estudantil tem como objetivo garantir a igualdade de
oportunidades, contribuir para a melhoria do desempenho
acadêmico e agir preventivamente, nas situações de retenção e
evasão decorrentes da insuficiência de condições financeiras de
alunos das classes populares socialmente vulneráveis.
Após análises dos documentos institucionais, encontramos
dentre as seguintes modalidades de bolsas:
Transporte urbano I
Caracteriza-se no repasse mensal de auxílio financeiro ao valor
gasto com transporte estudantil, principalmente para alunos dos
83
cursos superiores e subsequentes, nos dias letivos. Essa bolsa
corresponde ao valor de R$ 70,00 (setenta reais). O prazo de
concessão deste benefício será de 04 (quatro) meses, podendo ser
prorrogado, sendo suspenso em período não letivo.
Transporte urbano II
Caracteriza-se no repasse mensal de auxílio financeiro ao valor
gasto com transporte estudantil nos dias letivos, prioritariamente
estudantes do ensino integral. Essa bolsa corresponde ao valor de
R$ 110,00 (cento e dez reais). O prazo de concessão deste benefício
será de 04 (quatro) meses, podendo ser prorrogado, sendo
suspenso em período não letivo.
Transporte intermunicipal ou rural I
Consiste no auxílio para pagamento de transporte aos alunos,
principalmente para alunos dos cursos superiores e subsequentes,
residentes em área rural ou em outro município. Essa bolsa
corresponde ao valor de R$ 120,00 (cento e vinte reais). O prazo de
concessão deste benefício será de 04 (quatro) meses, podendo ser
prorrogado, sendo suspenso em período não letivo.
Transporte intermunicipal ou rural II
Consiste no auxílio para pagamento de transporte aos alunos
residentes em área rural ou em outro município. Essa bolsa
corresponde ao valor de R$ 180,00 (cento e oitenta reais), para
aqueles que têm despesa próxima a esse valor, prioritariamente
estudantes do ensino médio integrado. O prazo de concessão deste
benefício será de 04 (quatro) meses, podendo ser prorrogado, sendo
suspenso em período não letivo.
Moradia
Consiste no repasse mensal de auxílio financeiro para custear
o gasto com aluguel de imóvel. Essa bolsa corresponde ao valor de
R$ 200,00 (duzentos reais). O prazo de concessão do benefício é de
84
04 (quatro) meses, podendo ser prorrogado, sendo suspenso em
período não letivo.
Pais estudantes (auxílio creche)
Consiste em no repasse mensal de auxílio financeiro para
custear o gasto do aluno (a) assistido que possua filho de 0 (zero)
até 12 (doze) anos de idade incompletos. Essa bolsa corresponde ao
valor de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais). O prazo de concessão
desse benefício é de 04 (quatro) meses, podendo ser prorrogado e
suspenso em período não letivo.
Alimentação 1
Visa contribuir para a permanência e desempenho do
estudante, destinando recurso financeiro mensal para contribuir
com as despesas de alimentação, que comprovadamente façam
suas refeições nos restaurantes/lanchonetes no campus ou nas
proximidades, por residirem distante do campus que o
deslocamento interfira no tempo hábil dos horários de aula. Este
auxílio é destinado principalmente para alunos do Ensino Médio
Integrado que reside no município de Porto Nacional. Essa bolsa
corresponde ao valor de R$ 160,00 (cento e sessenta reais). O prazo
de concessão desse benefício é de 04 (quatro) meses, podendo ser
prorrogado, sendo suspenso em período não letivo.
Alimentação 2
Visa contribuir para a permanência e desempenho do
estudante, destinando recurso financeiro mensal para contribuir
com as despesas de alimentação, que comprovadamente façam
suas refeições nos restaurantes/lanchonetes no campus ou nas
proximidades, por residirem em outros municípios ou zona rural
que o deslocamento interfira no tempo hábil dos horários de aula.
Essa bolsa corresponde ao valor de R$ 200,00 (duzentos reais). O
prazo de concessão desse benefício é de 04 (quatro) meses,
podendo ser prorrogado, sendo suspenso em período não letivo.
85
Estudantes indígenas e quilombolas
Para os estudantes indígenas e quilombolas, são garantidos
um valor diferenciado, igual a pelo menos o dobro da bolsa paga
aos demais estudantes, em razão de suas especificidades com
relação à organização social de suas comunidades, condição
geográfica, costumes, línguas, crenças e tradições, amparadas pela
Constituição Federal. Ademais, os estudantes indígenas e
quilombolas matriculados em cursos de licenciaturas interculturais
para a formação de professores também farão jus a bolsa de
permanência durante os períodos de atividades pedagógicas
formativas na IFES, a bolsa de permanência até o limite máximo de
seis meses.
As inscrições sempre são realizadas por meio do Sistema de
Gestão da Bolsa Permanência - SISBP, pelo endereço
eletrônico http://sisbp.mec.gov.br e a documentação comprobatória
de elegibilidade do estudante são ser entregues na Coordenação de
Assistência ao Estudante do Campus.
Atualmente o campus Porto Nacional conta com 70
(cinquenta) estudantes bolsistas na condição de indígenas e
quilombolas, o valor da bolsa é de R$ 900,00 (novecentos reais).
Entendemos que essa política, faz parte da inclusão escolar destes
estudantes, buscando ainda auxiliá-los na permanência de êxodos
de seus estudos.
Conclusão
As análises dos dados revelaram que a política de inclusão
social escolar do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Tocantins - Campus Porto Nacional, é de sempre
atender seus estudantes de forma humanitária.
Além das entrevistas podemos constatar no momento de
ambientação escolar, que a infraestrutura desde sua entrada é
sempre com rampas para melhor atender os alunos. Foi
apresentado pela gerência de administração os pisos táteis que
serão alocados nos ambientes da instituição.
86
Desta forma, podemos concluir que além da organização por
meio de núcleos de apoio aos estudantes com necessidades
específicas, acompanhamento de estudantes no momento das
aulas, momentos de discussão dos assuntos em seminários e
palestras, inserção de assuntos que abordam a inclusão em
disciplinas do ensino médio e superior, existe uma preocupação
com toda parte de infraestrutura.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto n. 3.847, de 30 de mar. de 2017. IPI incidente
sobre os produtos que menciona, Brasília, DF, mar 2017.
BRASIL. Lei Nº 11.892, DE 29 DE DEZEMBRO DE 2008. Da Rede
Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica
Dsiponivel em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/lei/l11892.htm >. Acesso em 29 de junho de 2019.
BRASIL. Lei Nº 13.146, de 6 de Junho de 2015. Institui a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da
Pessoa com Deficiência) .<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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2019.
BRASIL. LEI Nº 11.741, DE 16 DE JULHO DE 2008. Altera
dispositivos da Lei no 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
redimensionar, institucionalizar e integrar as ações da educação
profissional técnica de nível médio, da educação de jovens e
adultos e da educação profissional e tecnológica. Disponivel em
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/
l11741.htm>Acesso em 29 de junho de 2019.
DUARTE, Jakeline. Ambientes de aprendizaje: una aproximación
conceptual. Estudos Pedagógicos.Valdivia, nº29, 2003.
MINAYO, M. C. de S.; DESLANDES, S. F. GOMES, R. (Org).
Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 28ª. ed. Petrópolis:
Vozes, 2009.
87
RICHARDSON, J. A pesquisa qualitativa crítica e válida. In:
RICHARDSON, R. J. et al. (Org) Pesquisa Social. 3ª ed. Revista e
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UNIÃO.Art. 1º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
Legislação Informatizada, Brasília, DF,jan 2003.
88
89
ESTUDANTES NEGROS COTISTAS NO ENSINO SUPERIOR
E SEUS PERCURSOS DE ESCOLARIZAÇÃO
Julia Borba Caetité Algarra1
Benedito Eugenio2
Introdução
A universidade brasileira, historicamente, sempre negou as
diversidades de raça e gênero, assim como os processos e
conhecimentos civilizatórios dos povos indígenas e dos afro-
brasileiros. Essa forma de produção do ensino superior trouxe uma
série de consequências para nosso processo de formação e
escolarização. O ensino superior elitizado, de matriz eurocêntrica,
cujo conhecimento monocultural sempre foi a tônica, foi
questionado em diversos momentos do século XX, principalmente
por meio da produção teórica de autora/es e pesquisadora/es
negros e negras. Contudo, é nos primeiros anos do século XXI que
as instituições universitárias foram convocadas, pela ação dos
1 Graduada em Pedagogia e Mestra em Relações Étnicas e Contemporaneidade,
ambos pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Professora de
Língua Espanhola. 2 Doutor em Educação (UNICAMP). Professor da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB)- graduação e Programas de Pós-graduação em Ensino
(PPGEn) e Relações Étnicas e Contemporaneidade (PPGREC).
90
movimentos sociais, a se repensar e adotar ações afirmativas com
recorte racial.
Podemos apontar que a implementação de políticas de ações
afirmativas no ensino superior, do ponto de vista das temáticas,
pode ser dividida em dois momentos: inicialmente, os
questionamentos referiam-se à constitucionalidade, as
modalidades (se social, racial, sociorracial), o impacto nos cursos
(nesse momento a questão do mérito e o questionamento acerca da
capacidade cognitiva dos cotistas foi a tônica dos discursos dos
grupos contrários às ações afirmativas). Posteriormente, questões
como o perfil do ingressante, a permanência, a mudança nos
currículos e na gestão acadêmica passaram a adquirir relevância.
No Brasil, as oportunidades de acesso ao ensino superior são
parte de uma “seleção excludente”, de mecanismo perverso
baseado no número de vagas e na “nota de corte”, destacando-se,
nesse processo, aqueles que têm o maior número de oportunidades
educacionais, sendo que esses sujeitos geralmente são os que fazem
parte das classes mais favorecidas e/ou de posse de capital cultural.
Segundo Bourdieu (2008, p. 41), “Um jovem de camada superior
tem oitenta vezes mais chances de entrar na Universidade que o
filho de um assalariado agrícola [...]”. Isso, contudo, não significa
que sujeitos dos meios populares não possam construir trajetórias
de longevidade escolar ou sujeitos das camadas média e alta não
fracassem em sua escolarização.
Estudos desenvolvidos no Brasil a partir da segunda metade
dos anos 1990, com o aporte da Sociologia da Educação, muito
contribuíram para desvelar os mecanismos pelos quais as
trajetórias de escolarização tanto das camadas populares quanto
das média e alta, conforme demonstra Eugenio (2011). Outro
elemento importante nesse processo foi a implementação de ações
afirmativas para o ingresso e a permanência no ensino superior.
O debate sobre as cotas “quebra” essa corrente de privilégios
através da implementação, a partir de 2002, das políticas públicas
de Ação Afirmativa, “como resposta imediata à III Conferência
Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
91
Intolerância correlata, realizada em Durban, África do Sul (2001)”
(JULIO; STREY, 2009, p. 2). Nesta Conferência, Fernando Henrique
Cardoso, presidente da República naquela época, se comprometeu
a combater o racismo e a discriminação, “[...] em resposta às
pressões do Movimento Negro por políticas de promoção da
igualdade racial, e não por mera benevolência e concessão do
Estado brasileiro” (ESTÁCIO, 2013, p. 2). Então, foi a partir desse
momento que começaram a se pensar em políticas públicas de ação
afirmativa, entre elas, as cotas nas universidades públicas e as
bolsas de estudo nas IES privadas.
Weller e Silveira (2008, p. 944) afirmam que:
A esperança de resultados palpáveis, depositada nas ações afirmativas, exige
a tomada de outras medidas nacionais, regionais e locais. Depende ainda que
o crescimento econômico visado pelas políticas específicas esteja associado
ao combate às desigualdades e com o aperfeiçoamento institucional
democrático.
Assim sendo, as cotas são compreendidas enquanto ações
compensatórias e distributivas voltadas para determinado grupo,
definido a partir de características como raça, etnia, origem,
condição social ou, ainda, de políticas de diversidade. Por isso,
Weller (2007, p. 147) diz que é importante percebermos e
compreendermos a dimensão política e “revolucionária” das cotas,
pois foram anos de lutas travadas pelos movimentos sociais e
entidades negras para alcançar essa conquista, sendo “[...] essencial
para que o ingresso na universidade por meio da política de cotas
não se torne uma mera escolha no momento da inscrição para o
vestibular”.
No entanto, mesmo após a implementação dessas políticas de
acesso, as universidades não têm garantido a permanência dos
sujeitos que fazem parte desse processo e, não somente a
permanência material (condições de subsistência – transporte,
alimentação e aquisição de textos e livros), mas também as
condições de permanência simbólica, em que os alunos criam
estratégias para permanecer, uma vez que “[...] a trajetória
92
acadêmica dos jovens na Universidade, sem uma adequada política
de permanência, não é uma tarefa fácil” (REIS; TENÓRIO, 2009, p.
7).
Este capítulo apresenta os resultados de pesquisa que temos
desenvolvido sobre a política de ações afirmativas para estudantes
negros e pobres e a interseccionalidade raça e gênero no ensino
superior. Nosso lócus de pesquisa é a Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia-campus de Vitória da Conquista. Neste texto
trabalhamos com as narrativas de estudantes cotistas,
autodeclarados negros, produzidas por meio da realização de
entrevistas narrativas e regularmente matriculados no segundo
curso mais concorrido da UESB, Direito.
Metodologia
Para a construção dos dados aqui apresentados, realizamos
uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, empregando a
entrevista narrativa com estudantes cotistas, autodeclarados
negros, do curso de Direito. Foram 03 estudantes do sexo
masculino e 01 estudante do sexo feminino. Os discentes são aqui
apresentados por nomes fictícios e todos assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
Para Minayo (1994, p.22), a pesquisa qualitativa explicita, em
seu desenvolvimento e no interior da análise, elementos subjetivos
e objetivos, sentidos, significados, valores, fatos, conflitos, ordens,
contradições e, principalmente, as vozes e os sujeitos que dela
participaram, voltando-se a um nível de realidade que não pode ser
mensurável, controlado, retificado, mas compreendido em
processo, sobretudo. Utilizando-nos das palavras da própria
autora, diríamos: “[...] trabalha com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde
a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis”.
93
Ainda segundo Minayo (1994, p. 244), “A abordagem
qualitativa realiza uma aproximação fundamental e de intimidade
entre sujeito e objeto, uma vez que ambos são da mesma natureza:
ela se volve com empatia aos motivos, às intenções, aos projetos
dos atores, a partir dos quais as ações, as estruturas e as relações
tornam-se significativas.” Ressaltam ainda que a abordagem
qualitativa só pode ser empregada para a compreensão de
fenômenos específicos e delimitáveis, mais pelo seu grau de
complexidade interna do que pela sua expressão quantitativa.
Tomando como base essas indicações, selecionamos 4
estudantes autodeclarados negros e ingressantes pela política de
ações afirmativas da UESB para a realização das entrevistas. A
localização dos entrevistados baseou-se em indicação efetuada
pelos próprios estudantes, no sistema “bola de neve”, em que um
discente entrevistado indica outro. O roteiro contemplou questões
relacionadas à trajetória de escolarização dos discentes e à política
de ações afirmativas para acesso e permanência no ensino superior.
As questões foram organizadas nos seguintes blocos: aspectos
socioeconômicos dos estudantes; identificação dos seus projetos de
estudos ao longo do processo educacional; tempo que levaram para
concluir o Ensino Fundamental e Médio e de qual rede de ensino
advêm; de que maneira a família e outras redes de apoio
contribuíram no processo de ascensão social; qual a escolaridade
dos pais; se já participou de cursinho pré-vestibular e como foi; se
ingressou no ensino superior pelo sistema de cotas e o que pensa
sobre as ações afirmativas da Universidade; se já sofreu algum tipo
de preconceito; quais as estratégias que utiliza para “permanecer”
no meio acadêmico; se tem alguma bolsa/auxílio; se já pensou em
desistir do curso e quais os seus planos para quando terminar a
faculdade.
Realizamos entrevistas semi-estruturadas, ou seja: [...] uma escuta ativa e necessária ao diálogo entre os interlocutores na busca
de dados pertinentes com o propósito de elucidar o fenômeno. O fato de não
possuir uma sequência rígida de questionamentos, não significa que seja
94
uma conversa livre e desprovida de objetivos, pois, com base nos
pressupostos teóricos e nas hipóteses construídas no decorrer do trabalho,
foi elaborado um roteiro, o qual serviu de itinerário, oferecendo o suporte
para a condução da entrevista, evitando a dispersão do assunto e fornecendo
princípios norteadores para análise posterior. (CARVALHO; EUGENIO,
2011, p. 96 – 97)
Em 2019 a UESB conta com 47 cursos de graduação e 29 cursos
de pós-graduação (17 mestrados acadêmicos, 05 mestrados
profissionais e 07 doutorados), além de 10 cursos de especialização
em andamento. No total, estão matriculados, em 2019, segundos
dados disponibilizados pela Gerência Acadêmica, 7942 discentes
nos cursos de graduação em seus três campi.
Resultados e discussão
Neste item do capítulo, apresentamos três das categorias
elaboradas com base nas entrevistas realizadas com os discentes
cotistas negros do curso de Direito e que nos auxiliaram a
compreender suas trajetórias de escolarização. Trajetória é aqui
compreendida como “toda trajetória social deve ser compreendida
como uma maneira singular de percorrer o espaço social, onde se
exprimem as disposições do habitus e reconstitui a série das
posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou por
um mesmo grupo de agentes em espaços sucessivos” (BOURDIEU,
1996, p. 120).
Conforme aponta Montagner (2007, p. 258):
perseguir uma trajetória significa acompanhar o desenrolar histórico de
grupos sociais concretos em um espaço social definido por esses mesmos
grupos em suas batalhas pela definição dos limites e da legitimidade dentro
do campo em que se inserem. Seguramente a origem social é um holofote
poderoso na elucidação dessas trajetórias, pois o habitus primário, devido ao
ambiente familiar, é uma primeira e profunda impressão social sobre o
indivíduo, que sofrerá outras sedimentações ao longo da vida.
95
Segundo Reis e Tenório (2009, p. 3), existem muitos estudos na
área das relações raciais, mas pouco se tem discutido sobre a
“permanência”, sendo necessário conhecer o significado da
palavra, que deriva do latim permanentia, e se constitui no ato de
permanecer, significando perseverança, constância, continuidade.
Assim, com a implementação das políticas de acesso ao ensino
superior, houve cada vez mais a presença de estudantes negros e
pobres na UESB nos cursos mais concorridos da instituição, como
o de Direito, Medicina, Enfermagem, Administração e Psicologia.
A implementação de políticas de ações afirmativas trouxe uma
série de modificações para o cotidiano da instituição, implicando
na constituição de outra cultura institucional. Novas demandas por
permanência, assim como a necessidade de formação continuada
para os professores dos cursos passaram a ser frequentes. As ações
afirmativas também trouxeram uma série de conflitos no cotidiano
lesbiano. A instituição de políticas com recorte racial sempre foi
extremamente conflituosa; muitos docentes concordavam apenas
com o recorte de classe. Uma das discussões presentes no cotidiano
da Uesb diz respeito ao mérito. Havia muitos comentários de que
os estudantes cotistas tiraram a oportunidade de outros melhor
preparados; também se dizia que a “qualidade” dos cursos
diminuiria com a entrada de negros, pobres, quilombolas, pessoas
com deficiência, indígenas.
Em um país acostumado com uma suposta meritocracia, em
que as condições objetivas para acesso ao ensino superior são
levadas em consideração, a implementação de ações afirmativas
revelou o quanto nossa suposta democracia racial é um mito, que o
racismo está arraigado em nossa estrutura social enquanto nação e
a imprescindível necessidade de discutirmos acerca dessas
questões na universidade.
Conforme aponta Coelho (2007, p. 40): A cor no Brasil é como aquele sujeito que está presente, mas não é referido –
ele está ali, mas ninguém vê, ninguém nota, ninguém se interessa. Há um
silêncio em torno de sua presença. Todos sabem que está, mas não há
96
manifestação, reconhecimento, valorização ou coisa que o valha que indique
que aquele sujeito está vivo, é importante, é querido.
No que se refere às trajetórias escolares dos estudantes, pode-
se dizer que existe a influência de variáveis econômicas e sociais,
caracterizando assim, o sucesso ou fracasso escolar, pois o sujeito
poderá ser influenciado conforme a realidade em que está inserido,
tornando-se a família de fundamental importância nesse processo.
Quando o assunto é a influência que a família exerce sobre o
indivíduo, Bourdieu (2008, p. 41 – 42) diz que “Na realidade, cada
família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas,
um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores
implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para
definir, entre coisas, as atitudes face ao capital cultural e à
instituição escolar”, ou seja, a herança cultural é uma das grandes
responsáveis pelas “taxas de êxito” dos sujeitos.
Mas a partir dos estudos realizados, pôde-se perceber que
ocorreram mudanças significativas, uma vez que os sujeitos
tornaram-se “agentes efetivos” da definição de seus objetivos e
“destinos” sociais, inclusive escolares, ou seja, a causa de sucesso
ou fracasso de indivíduos de um mesmo grupo social deixa de ser
somente por conta dessas variáveis sociais, econômicas e culturais.
Nogueira e Fortes (2004, p. 2) apontam que:
As diferenças entre percursos escolares de indivíduos de um mesmo grupo
social passam, então, a ser cada vez mais estudadas. Deixa de ser suficiente
apontar a relação entre origem social e destino escolar. Busca-se então
compreender como essa relação é construída ao longo das trajetórias
escolares.
É pensando nisso que Nogueira e Fortes (2004, p. 2) discutem
sobre o que vem a ser a “trajetória”, em outros contextos, como a
geometria, a meteorologia e a astronáutica, sendo “[...] a linha ou
caminho percorrido por um objeto móvel determinado...” ou, no
sentido mais convencional, é o caminho, percurso ou trajeto.
Portanto, a noção de trajetória escolar está relacionada com os
97
percursos diferenciados que os indivíduos ou os grupos aos quais
pertencem, realizam no interior do sistema educacional.
O percurso de escolarização até a universidade
A noção de trajetória escolar diz respeito [...] aos percursos diferenciados que
os indivíduos ou grupos de indivíduos realizam no interior dos sistemas de
ensino. Esses percursos podem ser caracterizados em termos absolutos ou
relativos, como mais ou menos bem-sucedidos. Em termos absolutos, é
possível falar de um sucesso maior ou menor em função da distância que o
sujeito percorre no sistema de ensino, da natureza mais ou menos prestigiada
dos ramos de ensino seguidos por ele e da velocidade com que ele realiza
seu percurso. (NOGUEIRA, FORTES, 2004, p. 59 – 60)
Portanto, cada indivíduo vai obter o seu percurso, havendo
diferenças entre eles, bem como graus distintos de sucesso e, é por esse e
outros motivos que esta categoria busca compreender de que maneira se
deu a trajetória/percurso de escolarização dos sujeitos entrevistados até o
ingresso na Uesb, levando em consideração o que Nogueira e Fortes (2004)
discutem sobre as diferenças existentes nessas trajetórias, pois cada um
terá as suas vivências e experiências, e não cabe a nós julgar, mas refletir
sobre cada uma delas, comparando-as quando possível.
Sobre esta questão, Bourdieu (2008, p. 43) discute o capital cultural,
no que se refere à influência do nível global da família, mas também sobre
levar em conta “[...] um conjunto de características do passado escolar,
como por exemplo, o ramo do curso secundário (clássico, moderno ou
outro) e o tipo de estabelecimento (colégio ou liceu, instituição pública ou
privada) [...]”, permitindo analisar os graus de êxito obtidos pelos
diferentes sujeitos.
Dos quatro entrevistados, apenas um teve a oportunidade de estudar
até o ensino fundamental I em rede particular, e no ensino médio estudou
no Colégio da Polícia Militar, que é muito bem conceituado, mas os outros
três sempre estudaram em escola pública, e buscavam outras formas de
estar “reforçando” os estudos em casa, com grupos de estudos, ou até
mesmo através de cursinho, uma vez que todos eles apontaram para o fato
de o ensino público não lhes dar as condições necessárias para o ingresso
no ensino superior, se comparado aos jovens que tiveram melhores
oportunidades, mesmo que tenham tido uma trajetória de bons resultados
durante a educação básica, não é suficiente.
98
Nas falas dos sujeitos, todos se referem a alguém que os
incentivou a buscar um ensino superior, mesmo que não tenha
partido dos pais. Alan por exemplo, os seus pais não concluíram os
estudos, e segundo ele, não tinham a noção da importância que era
estar fazendo faculdade, então quem o incentivou foi a sua
madrinha e a filha dela por quem ele tem a maior admiração e
respeito. Relacionando essa fala de Alan com o que Bourdieu (2008,
p. 68) discute sobre o capital social, e consequentemente sobre essa
“rede de relações”, percebemos que a mesma nada mais é que: [...] o produto de estratégias de investimento social consciente ou
inconscientemente orientadas para a instituição ou a reprodução de relações
sociais diretamente utilizáveis, a curto ou longo prazo, isto é, orientadas para
a transformação de relações contingentes, como as relações de vizinhança,
de trabalho ou mesmo de parentesco, em relações, ao mesmo tempo,
necessárias e eletivas, que implicam obrigações duráveis subjetivamente
sentidas (sentimentos de reconhecimento, de respeito, de amizade, etc.) ou
institucionalmente garantidas (direitos).
No caso de Lara, que obteve melhores condições de estudo que
Alan, - pois teve a oportunidade de fazer um mês de “aulão”
preparatório para o vestibular no Sêneca (um dos cursinhos mais
bem conceituados de Conquista), - ela sempre teve em mente que
faria um ensino superior, pois a sua mãe também lhe influenciava
a buscar isso, a ser independente. No caso de Igor, sua mãe, mesmo
sem condições de pagar uma escola particular, procurou uma das
mais conceituadas para seu filho estudar, e segundo Igor, a sua
irmã, que já fazia faculdade, lhe influenciava para prestar
vestibular para Medicina, mas acabou que ele não se identificou
com a área e optou por Direito. Ele relata ter estudado em casa, pois
não fez cursinho e passou direto: “[...] e ai o déficit na maioria das
escolas públicas é sobre a menção do cálculo, que é exatas, ai eu
tentei conciliar, estudando em casa... não precisei fazer cursinho,
passei direto, e hoje tô aqui, no terceiro semestre já.” Rodrigo,
também critica a escola pública, na seguinte fala:
99
A minha formação foi um pouco defasada por conta da falta de alguns
professores, o colégio, às vezes, não respondia a altura dos alunos, não tinha
aquela verdadeira resposta que você encontra numa instituição privada. Eu
não encontrei uma formação adequada que você precisa para ingressar numa
universidade. E foi preciso preencher com o cursinho pré-vestibular.
Com base na concepção da Nova Sociologia da Educação e nos
estudos voltados para essa área de pesquisa, a escola deixa de ser
vista como “neutra” e o desempenho escolar dos alunos passa a ser
visto não como um desempenho individual:
Nas últimas duas décadas, estudos no campo da sociologia da educação
produzidos no Brasil e no exterior vêm fornecendo indicadores teóricos
importantes para problematizar o que tem sido chamado “longevidade
escolar”, casos “atípicos” ou “trajetórias excepcionais” nos meios populares.
Trata-se de uma linha inovadora, haja vista ser relativamente recente na
disciplina o interesse pelos casos que fogem à tendência dominante, voltada
para o chamado fracasso escolar nesses meios sociais. (ZAGO, 2006, p. 1).
Notamos, portanto, que cada um dos sujeitos entrevistados
tiveram percursos de escolarização diferentes uns dos outros,
mesmo que em algum momento tenham se cruzado, por exemplo,
no caso de três deles terem estudado somente em escola pública e
todos criticarem o ensino público como não suficiente para
ingressar na universidade, uma vez que eles estariam
“despreparados” em vista daqueles que tem pais que tem
condições de pagar um ensino particular, portanto, esses sujeitos
“disparam” na frente, seja no vestibular (ocupando os melhores e
mais concorridos cursos da universidade), seja na vida profissional.
Mas todos eles lutaram para estar no lugar em que estão ocupando
atualmente e agradecem principalmente aos pais pelo apoio e
incentivo, pois mesmo com pais que não concluíram os estudos ou
que concluíram somente o ensino médio, e não tendo a noção do
quanto seria importante estar numa universidade, sempre os
apoiaram na busca por seus sonhos, e Bourdieu (2008, p. 42) diz,
sobre esta questão, que “Uma avaliação precisa das vantagens e das
desvantagens transmitidas pelo grupo familiar deveria levar em
100
conta não somente o nível cultural do pai ou da mãe, mas também
o dos ascendentes de um e outro ramo da família [...]”.
O papel da família no processo de escolarização
No que se refere à família, todos os quatro entrevistados
falaram sobre a importância que tiveram e tem a mesma em seus
percursos até o ingresso na universidade (influência), bem como na
ajuda dos custos (materiais), da forma como podem, uma vez que
não são de classe média alta, mas seus pais se esforçaram muito
para dar-lhes boas condições de vida e educação. Sobre a questão
da família como uma fonte de “transmissão” de bens materiais e
culturais, Nogueira (2005, p. 3), diz que, na década de 70, os
sociólogos dessa época e suas pesquisas, principalmente as de
Bourdieu e Passeron (1964 e 1970), falavam muito sobre a
transmissão de uma herança de caráter material ou simbólico
através da qual “[...] seria determinante para os resultados
escolares do indivíduo, beneficiando os grupos socialmente bem
aquinhoados com bens culturais e/ou materiais. Nesse processo, a
ação da escola seria, sobretudo, a de mascarar as diferenças sociais
sob a aparência de diferenças individuais”.
Dos quatro sujeitos, três são provenientes de outras cidades,
portanto, tiveram que morar em Vitória da Conquista para estudar,
ocasionando maiores gastos como estadia, transporte e
alimentação. Lara é a única que é de Vitória da Conquista, e mora
com os pais (trabalhadores autônomos), que sempre batalharam, -
como ela mesma relata - para lhe dar uma ótima educação, por isso,
no que se refere à sua família, Lara diz que:
Na verdade a família é essencial no sentido de que ela te dá condições
principalmente na questão material. Se a família tem uma boa condição, ela
irá te dar melhores condições favoráveis também. Na verdade, a minha
família é uma família [...] são trabalhadores autônomos, tanto a minha mãe
quanto o meu pai, mas que sempre se sacrificaram para dar a melhor
educação possível para mim e para os meus irmãos.
101
Os pais de Alan não foram diferentes, pois mesmo sua mãe
sendo doméstica e o seu pai pedreiro, e não tendo uma noção da
importância de um ensino superior, como Alan mesmo diz, eles
não hesitaram em ajudar seu filho, mesmo com aquele dinheiro
“contado”, uma vez que nunca fizeram questão de que ele e seus
irmãos trabalhassem enquanto estudava: [...] o único contato que meu pai tinha, que ele deslumbrava, era as filhas e
os filhos dos patrões, então era uma realidade assim, muito distante para eles
enxergarem no seu filho que ele poderia alcançar isso.
Rodrigo, o último entrevistado, a todo o momento falava sobre
a influência e apoio (simbólico e material) que sua família lhe deu
e ainda lhe dá, justamente por ser de outra cidade e por ainda não
ter uma bolsa auxílio dentro da universidade:
Minha família é a base principal e eu devo 100% a ela por estar na
universidade agora, se não fosse pelas condições que eles me deram, eu não
estaria aqui. Por não ter tido a possibilidade na época deles, ai eles queriam
dar o melhor para os filhos. Eu tive bastante incentivo quando eu disse que
queria entrar na universidade, apesar de ser pesado por ser em outra cidade,
manter um filho fora e tal, mas tive total apoio da minha família quanto a
isso.
Até a década de 70, as pesquisas em Sociologia da Educação
levavam em consideração a influência da família sobre os destinos
escolares dos filhos, mas essas pesquisas eram focadas
principalmente nos resultados educacionais dos alunos, e não
observavam, antes de tudo, os processos através dos quais os
padrões educacionais eram criados e "reproduzidos", uma vez que
valorizavam somente as condições de classe do grupo familiar, e
não pensavam no funcionamento interno (dentro de casa) e suas
relações com a escola (NOGUEIRA, 2014, p. 4). É a partir dos anos
80/90, que os olhares são desviados para outras questões, e surge a
“Nova” Sociologia da Educação:
102
Nesse processo – usualmente definido por um deslocamento do olhar
sociológico das macro-estruturas para as práticas pedagógicas cotidianas -
novos enfoques e objetos vêm emergindo - entre eles, o estabelecimento de
ensino, a sala de aula, o currículo, a família - numa clara demonstração de
que os sociólogos começam a voltar os olhos para as pequenas unidades de
análise (NOGUEIRA, 2014, p. 4).
Isso não quer dizer que não se discutia sobre o papel da família
na Sociologia, mas o que diferencia os estudos atuais, - se
comparados com os da década de 60/70 - é que os sociólogos e
pesquisadores vêm reservando a essa categoria/grupo (a família)
maiores espaços de discussões e um olhar diferenciado, levando-os
a criticar a ideia da “transmissão automática” do capital cultural,
uma vez que já se discute sobre o indivíduo optar por receber ou
não esses “valores”, podendo ascender-se socialmente. Um
exemplo disso é Igor, que em uma de suas falas, diz que sua irmã
lhe influenciava a prestar o vestibular para Medicina, mas quando
estava no 3º ano do Ensino Médio, ele percebeu que não era isso
que queria, e hoje está cursando Direito, porque foi o curso que
mais lhe chamou a atenção, e por gostar mais da área de humanas.
Pode-se dizer que existe a influência de variáveis econômicas
e sociais, caracterizando assim, o sucesso ou fracasso escolar, pois
o sujeito poderá ser influenciado conforme a realidade em que está
inserido, tornando-se a família de fundamental importância nesse
processo. Bourdieu (2008, p. 41 – 42) diz que,
Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que
diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores
implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre
coisas, as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar.
Ou seja, a herança cultural era tida como uma das grandes
responsáveis pelas “taxas de êxito” dos sujeitos, mas, a partir de
estudos realizados, pôde-se perceber que ocorreram mudanças
significativas, uma vez que os sujeitos tornaram-se “agentes
efetivos” da definição de seus objetivos e “destinos” sociais,
inclusive escolares, ou seja, a causa de sucesso ou fracasso de
103
indivíduos de um mesmo grupo social deixa de ser somente por
conta dessas variáveis sociais, econômicas e culturais. Essa questão
pode ser muito bem relacionada com o que Alan diz em uma de
suas falas sobre a influência e apoio da família em sua trajetória:
Eles me dão todo o apoio e condições no que é necessário... me
apoiam integralmente. Hoje eles já estão mais tranquilos, porque eu
deslumbro uma liberdade, uma autonomia que antes, estando em
casa, eles não conseguiam enxergar, não era palpável e agora é mais
tranquilo.
Essa liberdade e autonomia de que fala Alan, faz parte
justamente da sua busca por ascender-se socialmente, sendo a
universidade um meio importantíssimo para alcançar esse objetivo,
tornando-se sujeito de sua própria história, mas sem deixar de
considerar a importância que tem sua família nesse processo, pois
ainda depende dela e sua influência é fundamental para o incentivo
nessa caminhada. Nogueira e Fortes (2004, p. 2) apontam que:
As diferenças entre percursos escolares de indivíduos de um mesmo grupo
social passam, então, a ser cada vez mais estudadas. Deixa de ser suficiente
apontar a relação entre origem social e destino escolar. Busca-se então
compreender como essa relação é construída ao longo das trajetórias
escolares.
Estudos sobre trajetórias de sujeitos com maior ou menor grau
de sucesso analisaram que muitos dos pais que são considerados
como “renomados” socialmente, e que tiveram seus filhos
formados em alguma universidade pouco prestigiada, por
exemplo, foram vistos pela sociedade, como “mal sucedidos”, mas
os filhos de camponeses ou analfabetos, que tiveram concluído, no
mínimo, o Ensino Superior, foram vistos como “bem sucedidos”,
pois reverteram o quadro, e não tiveram o mesmo “destino” de
seus pais.
Esta é uma questão que causa muitas discussões, pois sabemos
que para alcançar esse sucesso, é muito difícil, uma vez que os
104
sujeitos que vem de uma família de pais operários ou camponeses,
por exemplo, não dispõe de recursos e apoios necessários e
suficientes, disparando na frente aqueles que são de camadas de
maior prestígio social, por isso a importância do apoio familiar, e a
força de vontade do próprio sujeito em alcançar seus objetivos e
traçar novos rumos para sua vida, sendo o Ensino Superior um
deles.
O percurso no interior da universidade
Existem muitos estudos na área das relações raciais, mas
pouco se tem discutido sobre a “permanência”, sendo necessário
conhecer o significado da palavra, que deriva do latim permanentia,
e se constitui no ato de permanecer, significando perseverança,
constância, continuidade (REIS; TENÓRIO, 2009, p. 3).
A partir da implementação das políticas de acesso ao ensino
superior, houve cada vez mais a presença de estudantes negros e
pobres a cursos tão concorridos como o de Direito, por exemplo, e
esses estudantes ficam conhecidos como aqueles que entraram
somente por causa das cotas, tirando a oportunidade de outros,
mas isso porque muitos ainda discordam dessa implementação, e
os próprios sujeitos desse processo acabam não se identificando
como tal, por sofrerem preconceitos dentro da Universidade.
O que mais eles lutaram para conseguir já se concretizou: a
entrada na universidade. Mas e agora, como manter-se nesse
espaço? Afinal os gastos são enormes e muitas vezes a família
sozinha não consegue arcar com tudo, então esses estudantes
buscam diversas “alternativas” para permanecer. Uma das mais
procuradas, para aqueles que não trabalham ou não querem
trabalhar para não atrapalhar os estudos, são as “bolsas” que a
própria universidade disponibiliza.
Com a resolução Nº 11/2008 (Programa de Assistência
Estudantil), a UESB passou a oferecer bolsa-auxílio como
transporte, moradia e alimentação (dentre outras coisas) para os
estudantes, desde que os mesmos comprovassem carência
105
econômica e social, de acordo com critérios estabelecidos, com vista
a contribuir para a permanência dos sujeitos e consequentemente
viabilizar a igualdade de oportunidades entre os estudantes. Claro
que estas medidas beneficiaram a muitos, principalmente depois
de muitas mudanças significativas, mas no que se refere a essa
“ajuda”, os entrevistados criticaram por haver poucas bolsas
disponíveis e não beneficiar a todos, além da meritocracia em
consegui-las. Abaixo algumas falas dos entrevistados sobre essa
questão, e também sobre como eles se mantêm na universidade:
[...] O próprio auxílio estudantil é uma meritocracia desnecessária, um
processo de humilhação inclusive, (...) mas agora eu estou com uma bolsa da
extensão, que está me dando uma segurança, que dá pra eu ficar de boa, me
alimentar bem, me locomover, pagar xerox, várias coisas. (Alan)
Tenho ajuda da família. Meus pais me ajudam, ai eu tentei a questão do
auxílio permanência, moradia e tal, mas não consegui porque... pela
quantidade de bolsas que tem, que não dá pra todos os alunos que precisam,
e ai eu fico como habilitado. Habilitado tem o direito à comida por um real,
ai saiu essa nova ação que é 100 cópias de xerox, e ainda os cursos livres como
inglês e espanhol. Eu também entrei na Iniciação Científica, que tem a bolsa
de R$380,00 da Uesb, por mês, mas que atrasa acho que 2 ou 3 meses. (Igor)
Eu tenho ajuda da família que não seria suficiente, porque eles têm que
desviar do orçamento para ajuda do estudante que está fora, ai eu tentei
entrar em contato com a universidade para ver algum tipo de recurso, mas
por conta da nossa situação atual, eles disseram que a universidade não
estaria tendo verba, no caso, a gente passou por um processo de seleção pelo
PRAE e eu fui até selecionado, mas não vai ter nenhum tipo de benefício
porque essa seleção seria para se caso chegasse uma verba para os auxílios,
mas nenhuma chegou até agora. Tem o bandejão que é interessante, e o
almoço fica a R$1,00 e eu continuarei tentando o auxílio até eles mandarem
uma verba mais significativa. Eu queria o de vale transporte ou residência
fixa, ai já ajudaria no aluguel da casa onde eu moro. No momento estou me
mantendo somente com o que a família me manda, e estou na busca por um
estágio, porque se eu conseguir um na área vai ajudar muito mais. (Rodrigo)
Reis e Tenório (2009, p. 6) contribuem com essas reflexões e
posicionamentos dos estudantes entrevistados, pois discute a
106
questão que envolve a dificuldade da permanência dos sujeitos no
espaço da universidade, uma vez que, [...] o desafio da Permanência Material do estudante na Universidade –
sobretudo na Pública em que as lacunas infra-estruturais obrigam os
estudantes a comprarem até mesmo parte dos equipamentos e materiais
didáticos e operacionais - é algo que se põe a todo o corpo discente,
marcadamente àquele mais pobre e, sobretudo, no caso dos cursos em que
se requerem a compra de equipamentos de alto custo (Odontologia,
Medicina, Direito) além da dedicação exclusiva. Mas é necessário se pensar
que para o estudante cotista, por sua história de vida econômica, o desafio
para assegurar a sua permanência e a formação de qualidade (participação
em atividades de pesquisa e extensão) é muito maior.
Nota-se, portanto, que é necessário não somente a criação de
políticas públicas de acesso ao Ensino Superior, mas também e
principalmente, uma política que garanta a permanência desses
estudantes que não têm condições de manter-se nesse espaço.
Brocco e Zago (2014) citam um trecho do Plano Nacional de
Educação (PNE), que foi elaborado a partir da CONAE (2010), em
que aborda essa questão da expansão do Ensino superior e a sua
democratização:
(...) observa-se que esse nível de ensino continua elitista e excludente. A
expansão ocorrida na última década não foi capaz de democratizar
efetivamente esse nível de ensino. É necessário, portanto, democratizar o
acesso dos segmentos menos favorecidos da sociedade (...). O acesso e a
permanência desses segmentos à educação superior implicam políticas
públicas de inclusão social dos/das estudantes trabalhadores/as, plano
nacional de assistência estudantil para estudantes de baixa renda, a exemplo
das bolsas permanência e do apoio financeiro para o transporte, residência,
saúde e acesso a livros e mídia em geral (BROCCO; ZAGO, 2014, p. 2-3).
Assim, mesmo após a implementação de políticas de
permanência, as universidades ainda não conseguem alcançar a
todos os estudantes, uma vez que os próprios entrevistados
discutem essa questão das bolsas de permanência como uma
meritocracia desnecessária. Dos quatro entrevistados, três deles já
107
tentaram o auxílio da Uesb, e somente um conseguiu durante um
certo tempo, mas no período da entrevista estava sem, e disse que
iria tentar novamente. Eles relatam que a própria universidade está
vivenciando um momento de crise, e que por isso havia muito
menos bolsas do que o esperado, não abrangendo a todos. Portanto,
a maioria desses estudantes busca uma “saída” através do auxílio
PRAE (Programa de Assistência Estudantil) e por não conseguir,
começam a se engajar em grupos de pesquisa e bolsas de Iniciação
Científica, Pibid, e estágios (dentro ou fora da universidade), sendo
algumas das estratégias que os mesmos utilizam para ajudar nas
despesas, pois os seus pais, sozinhos, não teriam condições de
bancar tudo, uma vez que os gastos são grandes, principalmente
para aqueles que estão longe de casa.
Considerações Finais
A construção e análise das trajetórias de escolarização
evidenciou que cada um dos estudantes carrega consigo vivências
e opiniões bem demarcadas, seja sobre a questão do racismo; da
permanência na universidade; da influência da família; do papel da
universidade na formação, assim como das ações afirmativas.
O conhecimento das trajetórias de escolarização possibilitou
entender que os sujeitos traçaram metas para as suas vidas e que,
mesmo diante das condições objetivas (materiais e simbólicas)
desfavoráveis, procuraram construir percursos de longevidade
escolar. Todos criticaram o ensino público por não os formar para
poder competir com alunos provenientes de camadas de alto
prestígio da sociedade, bem como de escolas particulares, mas
mesmo assim, constituíram uma trajetória de bons resultados, sem
reprovações durante o período escolar. Para isso, se viram
obrigados a criar estratégias de estudos (como os cursinhos pré-
vestibular, por exemplo), para consegui estar no lugar social que
ocupam atualmente.
108
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110
111
A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA EM ARISTÓTELES: UMA
APROXIMAÇÃO A PARTIR DE ESTUDANTES DO ENSINO
SUPERIOR PRIVADO NO BRASIL1
Rafael Gonçalves Campolino2
Vilma Ribeiro da Silva3
Roseli Alves Moreira da Silva4
1 Este estudo foi desenvolvido a partir do seminário Epistemología de las Ciencias
Sociales ministrado pelo professor Dr. Hector Oscar Arrese Igor. Agradecemos à
Faculdade de Ciências Humanas (FCH) da Universidad Nacional del Centro de la
Província de Buenos Aires (UNICEN) e, em especial, ao professor Dr. Arrese Igor,
pela rica e produtiva condução do seminário. O resumo ampliado deste capítulo
foi apresentado no XIII Seminário Nacional de Políticas Educacionais e
Currículo/II Seminário Internacional de Políticas Educacionais, Cultura e
Formação de Professores, promovido pela Universidade Federal do Pará
(UFPA) Brasil, 2017. 2 Mestre em Educação pela Universidad Nacional del Centro de la Província de Buenos
Aires – UNICEN/UNICAMP. Doutorando em Educação pela UNICEN –
Argentina. Pedagogo. Membro do Observatório de Gestão Escolar Democrática
(Observe) – Universidade Federal do Pará – Brasil. E-mail:
[email protected] 3 Mestre em Educação pela UNICEN/UNICAMP. Doutoranda em Educação pela
UNICEN – Argentina. Pedagoga. E-mail: [email protected] 4 Mestre em Educação Pelo Centro Universitário Moura Lacerda (CUML) -
PPGR/Riberão Preto, SP. Doutoranda em Educação pela UNICEN – Argentina.
Pedagoga. E-mail: [email protected]
112
O cenário brasileiro, nos últimos anos, tem sido marcado por
uma crise moral e ética, no que diz respeito aos diversos
mecanismos que colocam o país em situação perturbadora com
relação à questão da justiça e suas formas garantidoras. O Brasil
encontra-se inserido no contexto das “grandes” manifestações,
cujos participantes conduzem bandeiras com pedidos de justiça e
frases de ordem, denunciando a injustiça e o descaso no trato da
coisa pública [res publica].
Essas manifestações são tomadas de sentimentos, têm
abrangência nacional e considerável destaque midiático, tais como
ocorreu com a passeata dos 100 mil, de 1968; a das diretas já,
ocorrida no ano de 1984; a do impeachment, de 1992 e as mais
recentes, de 2013; pró e contra o impeachment de 2016, além das que
não reconhecem o governo atual e declaram que o Brasil vive um
golpe político.
A passeata dos 100 mil, ocorrida no ano de 1968, no Rio de
Janeiro, foi um movimento de reivindicação organizado por
diretórios estudantis, impulsionado pela onda internacional de
manifestações ocorridas na Europa, onde se questionava a gestão
do ensino e suas relações, ao passo que, nos Estados Unidos,
aconteciam as manifestações contra a guerra do Vietnã. No Brasil,
as manifestações atingiram “seu auge no dia 26 de junho de 1968,
quando reuniu 100 mil pessoas no Rio de Janeiro” (PRIORI, 2012,
p. 199-200), com reivindicações de justiça por causa do assassinato,
por militares, do estudante Edson Luís Lima Souto. Tanto nos
movimentos mais antigos quanto nos mais recentes que
antecederam o processo de impeachment de 2016, o que se pode
notar é a reinvindicação por justiça.
A realização desta pesquisa justificou-se devido à
possibilidade de oferecer uma visão, a partir dos sujeitos
participantes, sobre a compreensão conceitual da justiça com base
na leitura de Aristóteles e também pela relevância social do tema e
sua implicação na realidade formativa de estudantes do ensino
superior.
113
A perspectiva do capítulo aqui desenvolvido não foi a de
encontrar todas as respostas e caminhos conceituais no que diz
respeito à temática, mas, sim, atingir, com responsabilidade e ética,
os objetivos estabelecidos.
Nesta perspectiva, a presente investigação teve por objetivo
conhecer o conceito de justiça que os estudantes têm e, juntos,
construir uma leitura reflexiva a partir do Livro V/capítulo V do
livro Ética a Nicômaco, de Aristóteles, usando como plano de
fundo motivador a questão das manifestações recentes ocorridas
no Brasil e, ainda, conhecer o perfil da população investigada.
Para cumprir seus objetivos, o trabalho encontra-se dividido
em introdução, desenvolvimento e possíveis considerações. Na
parte introdutória é possível verificar as motivações para a
investigação, sua justificativa e seus objetivos; já no
desenvolvimento encontra-se uma resumida incursão no
Livro/Capítulo V, de Ética a Nicômaco, que trata da justiça, além
dos materiais e métodos utilizados para a consecução dos objetivos
e os principais resultados e discussões, finalizando com uma breve
conclusão. Na próxima sessão cuida-se de desenvolver a
investigação a partir do contexto da bibliografia base.
Ética a Nicômaco e a questão da justiça
O autor sobre o qual nos debruçamos a fim de melhor
conhecer é considerado um dos maiores filósofos de todos os
tempos e cujo “pensamento representa uma notável contribuição à
filosofia política” (RAMOS, 2014, p. 62), matemática, retórica, física,
metafísica, ética, biologia, entre outros assuntos que muito
influenciam a forma como conhecemos a gama de assuntos sobre
os quais o grego, nascido em 384 a.C., deu suas colaborações, uma
vez que os homens, ao filosofarem, “buscaram o conhecer a fim de
saber” (REALE & ANTISERI, 2003, p. 12).
Aristóteles (384-322 a. C.), filho do médico Nicômaco, na tenra
idade, foi aluno de Platão, em Atenas e, posteriormente, professor
de Alexandre, o Grande. Foi “na Escola de Platão que Aristóteles
114
amadureceu e consolidou a própria vocação filosófica, de modo
definitivo, tanto que permaneceu na academia por vinte bons anos,
ou seja, enquanto Platão viveu” (REALE & ANTISERI, 2003, p. 188)
e onde produziu uma significativa gama de conhecimentos.
Em Atenas, teve a oportunidade de desenvolver uma série de
estudos e influenciar o pensamento filosófico a partir de várias
temáticas e conceitos. Atualmente, quase todos os campos do
intelecto humano passaram por grandes reflexões aristotélicas,
sendo um dos maiores pensadores da história. Junto com seu
“mentor”, Platão, caracterizou a filosofia como uma atividade
“racional advinda do deslumbramento” (RAMOS, 2014).
Na visão de Reale & Antiseri (2003), todos os escritores
aristotélicos podem ser divididos em dois grupos, os exotéricos e
os esotéricos. Os primeiros dizem respeito às obras destinadas às
pessoas externas à academia, que foram escritos em forma
dialogada, já o segundo grupo, o dos “esotéricos”, é formado por
composições utilizadas em suas aulas na academia, mas representa
um material restrito aos seus discípulos, constituindo um
“patrimônio interno da escola”. Embora as produções de
Aristóteles sejam consideravelmente grande, só chegaram até nós
as obras esotéricas que cuidam de tratar da questão filosófica e
também das ciências naturais (2003, p. 188), entre eles o Livro Ética
a Nicômaco.
A fonte primária para reflexão neste trabalho é Ética a
Nicômaco, especificamente o Livro/Capítulo V, 4a edição, de 2014,
traduzido do grego por Edson Bini, da série Clássicos, da editora
Edipro. A edição inicia-se com uma breve apresentação da obra,
trazendo uma síntese sobre os principais temas tratados, seguida
das próprias considerações do tradutor e de notas com relação à 4a
edição, dos dados biográficos de Aristóteles, que permitem
constatar a grandiosidade do escritor, seguidos de sua cronologia,
em datas aproximadas, contando apenas com aspectos “filosóficos,
políticos e militares”.
A biblioteca disponível em Ética a Nicômaco é composta por
10 livros, conforme, quadro 1 abaixo, distribuídos em,
115
aproximadamente, 310 páginas, com notas de rodapé e à margem
esquerda, a numeração referencial de 1831, do tradutor Immanuel
Bekker.
LIVRO ABORDAGEM PÁGINA
Livro I
Composto por 13 sessões, cuida, essencialmente,
da questão da virtude humana, que ele divide em
duas categorias, virtudes éticas e virtudes
dianoéticas.
43-78
Livro II
Neste livro, ele aborda, nas nove sessões, a
questão da virtude, que é nomeadamente
intelectual e moral e está ligada à forma como o
homem é educado, em que a virtude assume
posição mediadora e é aplicada por meio de
hábitos ligados à justiça.
79-104
Livro III
Nas 12 sessões que seguem, é feita uma análise a
partir da capacidade em discernir, no contexto da
virtude, a questão das ações voluntárias e
involuntárias, relacionando as paixões e as ações
voluntárias, o poder de escolha e a vontade.
“Ninguém é voluntariamente mau, como não é
involuntariamente bem-aventurado” (p. 120),
mas o “indivíduo moderado é aquele que anseia
pelas coisas devidas, da maneira devida e
oportunamente, que é o que determina a razão”
(p. 141).
105-142
Livro IV
Cuida da questão da generosidade “em
consonância com os recursos de cada um” (p.
147), em que a virtude é apresentada como algo
mais relacionado a “beneficiar do que ser
beneficiado” (p. 146) e interage com o “recato”
(p.175). Apresentada em nove sessões, no total.
143-176
Livro V
Dedicado à questão da justiça, este livro será
tratado com maior profundidade por ser o foco
desde capítulo.
177-216
Livro VI
Trata-se de um livro diretamente relacionado ao
anterior, especificamente com relação à
“mediania” e sua determinação pela “reta razão”
(p. 219) e, ainda, a questão da virtude e traz cinco
pontos importantes para o alcance da verdade:
217-246
116
“arte, conhecimento, prudência, sabedoria e
entendimento” (p. 223).
Livro VII
Cuida de pontos que devem ser evitados pelo
homem, como “vício, descontrole e bestialidade”
(p. 249) e cita o poeta Eurípedes de Salamina (480-
406 a.C.) que, em síntese, afirma que “é
encantadora a mudança em todas as coisas” (p.
286).
247-286
Livro VIII
Neste livro ele aborda a questão da amizade que
“é ou envolve a virtude” (p. 288) e afirma que
“todos, ou a maioria, deseja o que é nobre, mas
opta pelo que é vantajoso” (p. 318) e faz um
paralelo com a “vida pública” (p. 320).
287-322
Livro IX
Com 12 sessões, traz a questão do amor e a
abordagem da amizade “porque a amizade
extrema assemelha-se ao amor por si mesmo” (p.
334), visto que “a amizade dos bons é boa e cresce
com a companhia mútua” (p. 354).
323-354
Livro X
Tratando do prazer do gênero humano, neste que
é o último livro, relata sobre o poder convincente
das “ações” em relação às “palavras” (p. 358) e a
questão da “felicidade, como um fim do ser
humano” (p. 372), encerrando com um convite à
reflexão a respeito de todos esses pontos para que
estejamos “melhor preparados para distinguir
qual é a constituição política mais excelente e
como estabelecer adequadamente cada uma
delas” (p. 390).
355-390
Quadro 1: O livro Ética a Nicômaco e suas divisões.
Fonte: Elaboração própria. Autores, 2016.
Com uma visão geral do livro, cuidamos agora de apresentar
o Livro/Capítulo V, objeto de análise. Nele, Aristóteles escreve para
Atenas, que vivia uma democracia direta, onde todos participavam
de forma coletiva, desde que possuíssem a cidadania grega, que, à
época, era bastante elitista. O autor aborda a questão da justiça, no
sentido completo, com seus mais diversos tipos e relações,
oferecendo uma série de exemplos que facilitam o entendimento do
leitor. No texto dividido em 11 sessões, ele parte da indagação,
117
precisa, a respeito de quais extremos o ato justo (to dikaion) é
considerado mediano.
Estabelece-se o conceito de justiça e injustiça, sendo o primeiro
“o estado que torna os indivíduos predispostos a realizar atos
justos e que os faz agir justamente e desejar aqueles atos”; já o
segundo relaciona-se aos indivíduos predispostos a agir
injustamente e a desejar atos injustos (ta adika) e, após tal
estabelecimento, apresenta um exemplo partindo do princípio das
ciências e faculdades, concluindo que o injusto é observado como
o “indivíduo” que não obedece às “leis”, ou, mesmo, aquele que
quer mais do que “aquilo que lhe é devido”, e o justo significa o
“legal e o igual ou equitativo”, que age dentro da legalidade em
comum acordo com a legislação vigente e que “produz e preserva
a felicidade e as partes componentes da comunidade política”
(ARISTÓTELES, 2014, p. 183-192).
O autor finaliza a primeira parte citando uma frase,
supostamente atribuída a Teógnis, revelando que “na justiça está
toda a virtude somada” (en de dikaiosyne syllebden pas arete ni), em
que a justiça é vista como disposição de caráter e que se aprende a
desejar/fazer o justo. Aristóteles aborda a questão da justiça como
uma forma de aplicação aos afazeres da coletividade, em que, em
uma visão simplista, o justo total é um ser que sabe obedecer, sendo
a obediência um predisposto da felicidade, surgindo a questão do
justo total, em que a justiça pode ser percebida e aplicada, e a
virtude, nesse sentido, é algo que pode ser aprendido e “não é uma
parte da virtude, mas a virtude total e a injustiça como a totalidade
do vício” (ARISTÓTELES, 2014, p. 183).
Ao abordar a justiça particular (justo particular), ele apresenta
a justiça distributiva, aparecendo três importantes questões que são
subordinação, proporcionalidade e o mérito dos envolvidos,
abordando três espécies do justo particular, ou seja, justo particular
distributivo, justo particular corretivo e justo particular da
reciprocidade.
A subordinação acontece quando há relação entre dois entes
distintos, soberano e súditos, com predomínio do interesse público.
118
Nesse sentido, a justiça distributiva ocorre quando o soberano tem
que distribuir bônus (benefícios) e ônus (encargos) aos súditos,
apresentando uma relação de subordinação.
Na justiça distributiva, observa-se uma justiça com capacidade
analítica que vai depender do regime político, em que os ônus e os
bônus podem variar, e vai estabelecer relação dependente que
“cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo suas
necessidades”, em que o estado aproveita o melhor de cada um de
acordo com seus talentos e aptidões.
Como exemplo de justiça distributiva, no Brasil, tem-se o
programa Bolsa Família, que é um amparo fornecido pelo Estado a
partir da necessidade de cada um e, ainda, o imposto de renda,
segundo o qual quanto maior a renda, maior o imposto, ou seja,
maior bônus encontra-se relacionado ao maior ônus, em suma, a
política da proporcionalidade.
Na justiça da proporcionalidade, observa-se o contexto social,
não apenas a questão matemática, mas objetiva corrigir
desigualdades para, no futuro, poder garantir igualdade,
evidenciando que “se as pessoas não são iguais, não receberão
coisas iguais” havendo a necessidade de “tratar os iguais
igualmente e os desiguais à medida de suas desigualdades”
(ARISTÓTELES, 2014) mediante análise do mérito em duas
vertentes, a primeira a partir do contexto social e a segunda
observando quem são essas pessoas.
A justiça distributiva caracteriza-se por subordinação entre o
soberano e o súdito; pela proporcionalidade e pela análise do
mérito, “pois a justiça na distribuição dos bens comuns sempre se
conforma à proporção” (ARISTÓTELES, 2014, p. 189).
Já o justo particular, a segunda espécie, estabelece uma justiça
corretiva, caracterizada por três aspectos que são relação de
coordenação, justiça aritmética e justiça formal. Na relação de
coordenação aparecem a justiça voluntária e a involuntária, que se
relacionam com a vontade do ente. Na justiça corretiva voluntária
aparece a justiça como conhecemos nos “tribunais”, como, por
exemplo, o ato de contratação, observado pelo direito civil
119
brasileiro, com necessidade de anulação quando um dos
contratantes é vítima de coação para o estabelecimento do vínculo,
onde não foi assegurada a bilateralidade, e a “justiça é como se
fosse o juiz dotado de alma” com o objetivo de “restaurar a
igualdade” (2014, p. 190/191).
Na justiça corretiva involuntária há uma relação
independentemente da vontade de participar, que pode ser bem
observada na questão do direito penal, como, por exemplo, em uma
situação de roubo, onde não há vontade da vítima de participar do
ato. Já na justiça da reciprocidade não é estabelecida uma relação
de subordinação, no entanto, apresenta-se a questão da
proporcionalidade, em que a reciprocidade se relaciona com a
“proporção e não com a igualdade” e “não se enquadra nem na
justiça distributiva nem na corretiva” (ARISTÓTELES, 2014, p. 192-
193), versando sobre a troca humana, uma relação de
intercambiabilidade.
O autor exemplifica a partir da relação de um artesão de sapatos
e um construtor de casa e suas trocas em função das habilidades e
necessidades. No entanto, não é fácil estabelecer a relação de
quantidade e, para tanto, “o dinheiro atua como uma medida que
transmite comensurabilidade aos produtos comercializados”, dando
o sentido de igualdade para os produtos e vinculando-os ao esforço
para produção e uso da matéria-prima (ARISTÓTELES, 2014, p. 196).
Por fim, o autor estabelece a questão da equidade e do equitativo,
conceitos utilizados pelos juristas romanos que, mais tarde, tornaram-
se o fundamento de todo o direito.
Para Aristóteles, a equidade serve para atenuar os rigores da
lei e o juiz a utiliza para racionalizar e atenuar o rigor da legislação,
dando flexibilidade ao julgamento, e usa a metáfora da régua de
plúmbea ou régua de Lesbos, devido à sua capacidade de
estabelecer regras, de medir, mas também à sua capacidade flexível
de estabelecer as medidas, deixando claro que “justo e equitativo
são o mesmo, sendo ambos bons, ainda que o equitativo seja o
melhor” (ARISTÓTELES, 2014, p. 211). Na próxima seção cuida-se
de apresentar os materiais e métodos utilizados na investigação.
120
Aspectos metodológicos
O presente estudo foi realizado na Faculdade Anhanguera de
Valparaíso de Goiás, GO, mantida pela Kroton Educacional, em um
município limítrofe com o Distrito Federal (DF), capital do Brasil
(CAMPOLINO et al, 2015).
Quanto aos meios, o estudo de caso surgiu como linha mestra
condutora da investigação, devido ao fato de ser essa forma de
estudo particularística e estabelecer análise sobre determinados
“fenômenos contemporâneos dentro de um contexto real” (YIN,
2001, p. 33), o que, de fato, culmina com os objetivos aqui descritos
(REIS, 2012). Optou-se pela abordagem mista, quantitativa e
qualitativa, com a utilização complementar da análise de conteúdo
concebida por Bardin (2006, 2011), por se tratar de um método
validado internacionalmente e muito utilizado em pesquisas
sociais (REIS, 2010, 2012; FLICK, 2005, 2004; MINAYO, 1994). A
análise de conteúdo concebida por Bardin (2006) é conhecida como
um método híbrido em que se utiliza uma série de técnicas de
análise (BARDIN, 2006, p. 42).
Os sujeitos foram selecionados de acordo com os seguintes
critérios: estar cursando o ensino superior, com campo de atuação
voltado para ao setor público ou seus stakeholders; ter tido contato
com o componente curricular de ética e terem assinado o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Seguindo tais critérios,
os participantes foram aqueles vinculados ao curso superior de
Tecnologia em Gestão Pública, último período, do turno noturno,
do segundo semestre de 2016.
Devido à preocupação com a fidelidade dos achados da
pesquisa, foi calculado o tamanho mínimo da amostra e, para tanto,
foi estabelecida a amostra aleatória simples do tipo probabilística,
fato pelo qual todos os elementos da população eleita aparecem
com a mesma probabilidade de pertencerem à amostra
(MORETTIN & BUSSAB, 2010).
Seguindo os parâmetros, a população pesquisada foi de 98
estudantes. O valor crítico representativo da variável normalmente
121
padronizada está associado ao grau de confiança da amostra, valor
este já conhecido pela sua frequência de uso comum tabelado.
Neste caso, foi definido um nível de confiança de 95% e valor crítico
correspondente de 1,96 e o erro amostral foi estabelecido em 5%,
gerando uma amostra mínima desejável de 79 estudantes
(FONSECA & MARTINS, 2008) que foi superada, tendo tido,
efetivamente, a participação de 82 estudantes. Destes, todos
responderam ao questionário composto por cinco questões, sendo
três destinadas a analisar o perfil dos participantes e as outras duas,
para investigar a questão do conceito de justiça.
Resultados e Discussões
Nesta seção apresentam-se os resultados e a discussão dos
dados gerados a partir da aplicação dos questionários. Nesse
aspecto, conhecer o perfil dos participantes permite fazer
comparações com outras investigações e, ainda, evitar erros na
comparação de resultados (MINAYO, 2001). Na tabela 1 apresenta-
se o extrato da primeira pergunta do questionário.
Tabela 1: Idade dos participantes.
Variável Categoria Frequência Frequência
absoluta relativa (%)
Idade
Menos de 20 5 6,1
21-24 33 40,24
25-30 22 26,83
31-34 8 9,75
35-40 7 8,54
41-45 5 6,1
Mais de 45 2 2,44
Fonte: Pesquisa de campo. Autores, 2016.
Os perfis retratados na tabela 1 apresentam as maiores
frequências na faixa etária entre 21 e 24 anos e 25 e 30 anos de idade,
totalizando, em frequência absoluta, 55 participantes, o equivalente
122
a 67,07%, demonstrando ser uma população jovem. A menor
frequência observada foi na faixa etária dos maiores de 45 anos, que
representam apenas 2,44% da população.
Com relação à participação dos jovens no processo político,
entender o conceito de justiça e sua aplicabilidade é ter a certeza de
investimento com retorno garantido, uma vez que, se o jovem já
inicia sua vida política com capacidade de pensamento na
coletividade, é bastante provável obter uma população, no futuro,
com uma capacidade maior de pensar e refletir sobre os diversos
problemas no contexto mundial (GAUTHIER & GRAVEL, 2003).
Gráfico 1: Participantes da investigação por sexo.
Fonte: Pesquisa de campo. Autores, 2016.
Em frequência absoluta, os dados do gráfico 1 revelam um
quantitativo de 53 participantes do sexo feminino e 29 do sexo
masculino, representando, respectivamente, 65% e 35%.
A próxima questão abordou o período, em anos, que os
estudantes demoraram para iniciar o ensino superior, conforme
disposto na tabela 2.
65%
35%
Feminino
Masculino
123
Tabela 2: Período em que ficou sem estudar antes de entrar no ensino superior
Variável Categoria Frequência Frequência
absoluta relativa (%)
Tempo em anos
Não fiquei sem estudar 8 9,75
Menos de 1 ano 13 15,86
Entre 2 e 4 anos 34 41,46
Entre 5 e 6 anos 16 19,52
Mais de 7 anos 11 13,41
Fonte: Pesquisa de campo. Autores, 2016.
Os dados da tabela 2 evidenciam que a maioria dos estudantes
“demorou” entre 2 e 4 anos para retomar seus estudos, contra
apenas 8 (9,75%) que não tiveram interrupção. Chama a atenção o
fato de que 13,41% ficaram mais de sete anos fora do sistema formal
de educação.
Ao fazer um cruzamento dos dados da tabela 2 com a idade
desses estudantes e o sexo, observa-se que, dos 11, apenas dois
tinham mais de 45 anos de idade e são do sexo feminino; cinco com
idade entre 35 e 40 anos, sendo quatro do sexo masculino; três do
sexo feminino estão na faixa de 31 a 34 anos e apenas um homem
na faixa etária de 24 a 30 anos. É possível afirmar que, entre os
participantes que “demoraram” mais de sete anos para retomar os
estudos, a maior frequência é do sexo feminino, ou seja, seis
participantes.
Neste contexto, a investigação conduzida por Avila & Portes,
por meio da abordagem microssociológica, realizada com mulheres
de camadas populares que frequentavam a universidade no
período noturno, revela que
é possível observar que as circunstâncias atuantes que levaram a tão grande
atraso em seu percurso escolar são demarcadamente repetitivas na
experiência de muitas delas: os limites acadêmicos impostos pela
concomitância trabalho-estudo noturno; a falta de incentivo por parte da
família; a pressão psicológica (nem sempre explícita) do grupo de amigos,
uma vez que muitos deles já haviam interrompido os estudos; e a entrada
124
precoce no mundo do trabalho, em grande medida, pelo trabalho doméstico
(AVILA & PORTES, 2012, p. 814).
As próximas questões envolveram aspectos relacionados ao
conceito de justiça para os estudantes e vincula-se às manifestações
em que se pode observar uma constante solicitação por justiça.
A análise do conteúdo permitiu categorizar as respostas
conceituais dos participantes, sendo definidas as seguintes
palavras categóricas: direito, descrença e obrigação, conforme pode
ser observado na tabela 3.
Tabela 3: Conceito de justiça para os sujeitos da pesquisa.
Pergunta Categorização Principais respostas
O que você
entende por
justiça?
Direito
É a forma de garantir direitos ao homem./
É a forma de manter a salvo os direitos das
pessoas./ Vejo a justiça como uma forma de
salvaguardar os diretos dos homens./ A
justiça é a forma com que o Estado garante
o direito dos cidadãos./ Na minha opinião,
justiça é quando somos atendidos nas
nossas necessidades sem pegar nada dos
outros e temos a consciência tranquila./ É a
garantia de que as coisas serão realizadas
de acordo com a necessidade das pessoas,
mantendo uma relação de igualdade entre
as pessoas, todas as pessoas./ Eu vejo a
justiça como algo maravilhoso, mas
infelizmente no nosso país ainda há muita
injustiça, mas temos visto a justiça se
cumprir não só para os pobres, mas
atualmente eu vejo ricos também sendo
presos./ Tem haver com os direitos e
deveres dos cidadãos, para que possam
viver em harmonia em comunidade./ A
justiça é a forma do Estado de garantir o
cumprimento de nossos direitos e deveres./
É a forma que o Estado tem para garantir o
direito para todos./ A justiça é uma
ferramenta de garantia do
125
desenvolvimento dos cidadãos./ A justiça é
uma ferramenta garantidora do direito e
em consequência, vincula-se à capacidade
de atender aos cidadãos com isonomia./ É a
forma de garantir liberdade de ação aos
homens./ Justiça é a forma de garantir
igualdade. É a materialização do princípio
da isonomia garantida pela Constituição
Federal./ É a forma de atender aos anseios
da população nos mais difíceis aspectos,
tratando todos com igualdade perante a
lei./ Vejo como algo fantástico e que,
devido às manifestações históricas, os
governantes têm levado mais a sério esse
aspecto. Eu acredito na forma libertadora
da justiça./ É a melhor maneira que o
Estado tem para garantir os direitos e
deveres das pessoas./ Na minha opinião, a
justiça é algo que se faz para garantir o
direito de todos./ A justiça é a única forma
que temos para ter nossos direitos
garantidos./ A justiça só acontece quando
estamos dispostos a respeitar os direitos
dos outros e a reconhecer nossas
obrigações./ Justiça para mim é a forma de
garantir a igualdade de todos diante da lei./
Na minha opinião, o conceito de justiça não
é algo totalmente objetivo, ainda há muita
subjetividade envolvida e muita gente
ainda não tem noção do que é realmente
garantir a justiça a todos, mas ainda há
muita injustiça, mas quando vemos a
justiça sendo feita, acreditamos mais e
confiamos nela.
Descrença
Esse tema me dá um nó na cabeça, pois eu
vejo muita injustiça com as pessoas, me
parece que não existe justiça, em alguns
lugares ainda temos as velhas amarras do
coronelismo, onde o direito era algo
simplesmente definido por ele./ A palavra
justiça me deixa um pouco desacreditado.
Eu vejo muita coisa injusta, mas, na
126
verdade, eu acho que a justiça está sempre
do lado de quem tem mais dinheiro, de
quem tem mais poder./ Vejo como uma
coisa muito distante de se alcançar, pois as
pessoas não estão dispostas a pagar um
preço para garantir o cumprimento da
justiça. Vivemos uma época onde tudo gira
em torno da corrupção, daí fica difícil
acreditar na justiça./ Não confio muito na
justiça. É algo que sempre observamos
como distante dos mais pobres e algo
sempre presente no cotidiano dos ricos./ A
justiça, muita das vezes, se apresenta como
algo surreal para nós brasileiros./ Sempre
haverá injustiça no contexto dos seres
humanos, pois cada um quer tirar proveito
em alguma coisa./ Para mim, a justiça é
algo que, infelizmente, não funciona no
Brasil.
Obrigação
Para mim tem relação direta com a vontade
de fazer a coisa certa, uma obrigação
enquanto pessoa.
Fonte: Pesquisa de campo. Autores, 2016.
Na maioria das respostas, obtidas por meios de uma pergunta
aberta, pode-se constatar que os conceitos formulados pelos
estudantes se encontram ligados ao fato de a justiça aparecer como
uma forma garantidora de direitos, como algo “fantástico e
maravilhoso”. No entanto, observou-se também que há uma certa
descrença quando o conceito é associado diretamente ao locus onde
os respondentes vivem, demostrando um conceito particular e
vinculado às experiências que tiveram ao longo da vida.
Apenas um respondente afirmou que o conceito de justiça tem
“relação direta com a vontade de fazer a coisa certa, uma obrigação
enquanto pessoa”, no entanto, pode-se observar que uso da palavra
obrigação não nos parece ocorrer em seu sentido denotativo, vez
que o participante deixa claro o desejo de fazer a coisa certa,
surgindo uma espécie de inadmissibilidade de coisa errada, ou, em
outras palavras, da prática da injustiça.
127
Na Tabela 3, os dados permitem a subcategorização da
categoria com maior expressão, sendo possível analisar a questão
do conceito de justiça dos respondentes em duas subcategorias, em
que ela aparece como um direito garantidor e também como um
direito inibidor da injustiça.
Tabela 04: Subcategorização do conceito de justiça para os sujeitos da pesquisa.
Pergunta Categoriza
ção
Subcategori
zação Principais respostas
O que
você
entende
por
justiça?
Direito
Garantidor
da igualdade
É a forma de garantir direitos ao
homem./ É a forma de manter a
salvo os direitos das pessoas./ Vejo
a justiça como uma forma de
salvaguardar os diretos dos
homens./ A justiça é a forma com
que o Estado garante o direito dos
cidadãos./ É a garantia de que as
coisas serão realizadas de acordo
com a necessidade das pessoas,
mantendo uma relação de
igualdade entre as pessoas, todas as
pessoas./ A justiça é uma
ferramenta de garantia do
desenvolvimento dos cidadãos./
Justiça é a forma de garantir
igualdade./ A justiça é a única forma
que temos para ter nossos direitos
garantidos.
Inibidor da
injustiça
Na minha opinião, justiça é quando
somos atendidos nas nossas
necessidades sem pegar nada dos
outros e temos a consciência
tranquila./ É a forma de garantir
liberdade de ação aos homens./ Na
minha opinião, o conceito de justiça
não é algo totalmente objetivo,
ainda há muita subjetividade
envolvida e muita gente ainda não
tem noção do que é realmente
garantir a justiça a todos, mas ainda
há muita injustiça, mas quando
128
vemos a justiça sendo feita,
acreditamos mais e confiamos nela.
Fonte: Pesquisa de campo. Autores, 2016.
A análise de conteúdo permitiu subcategorizar a questão
conceitual, vez que o conceito, na condição de direito, aparece
como um mecanismo garantidor da igualdade ou inibidor da
injustiça, o que nos faz retomar ao pensamento de Aristóteles que
orientou da seguinte forma: “o juiz restaura a igualdade, como se
de uma linha dividida em duas partes desiguais” (2014, p. 191).
Por mais que o conceito apareça como forma de produzir
igualdade, resgatamos a resposta de um participante que assim
define: “eu vejo a justiça como algo maravilhoso, mas infelizmente
no nosso país ainda há muita injustiça, mas temos visto a justiça se
cumprir não só para os pobres, mas atualmente eu vejo as pessoas
ricas também sendo presos”. Essa afirmação deixa claro que, por
mais que a injustiça exista em consideráveis proporções no Brasil,
há uma luz no fim do túnel, quando as pessoas começam a
depositar confiança na materialização da justiça, uma vez que o
papel do juiz “é como se fosse a justiça dotada de alma”
(ARISTÓTELES, 2014, p. 190).
Na próxima questão utilizou-se o padrão de respostas da escala
Likert5, em que os respondentes contavam com cinco padrões de
respostas que variavam de não concordo totalmente a concordo
totalmente. A questão partiu da seguinte assertiva: com relação à
abordagem de Aristóteles a respeito da justiça, o conceito de equidade
5Dr. Rensis Likert, a sociologist at the University of Michigan, who developed the
technique. His original report entitled “A Technique for the Measurement of Attitudes”
was published in the Archives of Psychology in 1932. A psychometric response scale
primarily used in questionnaires to obtain participants preferences or degree of
agreement with a statement or set of statements. Likert scales are a non‐comparative
scaling technique and are unidimensional (only measure a single trait) in nature.
Respondents are asked to indicate their level of agreement with a given statement by way
of an ordinal scale. Para saber mais consulte: DANE, Bertram (s. d.), Likert Scales;
disponível em: <http://poincare.matf.bg.ac.rs/~ -likert.pdf>. Acesso em 8 Nov.
2016.
129
é tratado pelo filósofo como “o justo, significa o legal e o equitativo”.
As respostas dos estudantes podem ser observadas no Gráfico 2.
Gráfico 2: Participantes da investigação quanto ao significado de justo.
Fonte: Pesquisa de campo. Autores, 2016.
Como pode ser observado no gráfico 2, a maioria absoluta
concorda com o conceito de justo trazido por Aristóteles. A soma
dos que concordam totalmente e concordam parcialmente atinge
96,34%, ou uma frequência absoluta de 79 estudantes, o que
representa um alto percentual.
A partir deste percentual é possível inferir que os estudantes
já conseguem, de fato, associar a questão da legalidade e do
equitativo com a justiça, embora duas pessoas tenham se
manifestado de forma indiferente e apenas uma não tenha
concordado parcialmente. Somadas dessas duas categorias de
resposta, tem-se um baixo valor, 3,66% do total de participantes.
Com a última questão buscou-se associar o conceito de
Aristóteles com a aplicação na atualidade, partindo da seguinte
assertiva: com base no Livro/Capítulo V de Aristóteles, que compõe
a biblioteca intitulada Ética a Nicômaco, o conceito de justiça,
embora antigo, suscita um conceito com aplicabilidade atual. As
repostas foram alocadas na escala Likert, tendo 72 concordado
totalmente e 10 concordado parcialmente, não havendo respostas
nas outras categorias.
0
1
2
16
63
0 20 40 60 80
Não concordo totalmente
Não concordo…
Indiferente
Concordo parcialmente
Concordo totalmente
130
Com base nos dados analisados das respostas dos estudantes
pode-se observar que, na maioria das vezes, o conceito trazido por
eles já representa, mesmo que em parte, pontos fundamentais do
conceito concebido por Aristóteles, uma vez que “a justiça é o bem
alheio” e vincula-se às “virtudes morais” (2014. p. 199/215).
POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES
Os ensinamentos de Aristóteles, no que se refere à questão da
justiça, abordados no Livro/Capítulo V, que compreende uma das
partes de Ética a Nicômaco, trata-se de uma incursão conceitual
com aplicabilidade atual e profundidade que desafia o
entendimento com relação à temporalidade dos escritos, vez que
demostram uma preocupação com os mais diversos problemas,
visto que o conceito de justiça é cabido em todos os aspectos
relacionados ao ser humano.
A presente investigação foi realizada com o objetivo de
conhecer o conceito de justiça que os estudantes, sujeitos da
pesquisa, têm, e, ainda, conhecer o perfil dos participantes. Nesse
aspecto, pode-se afirmar que os objetivos foram plenamente
atendidos e a visão do conceito, a partir de Aristóteles, possibilitou
constatar, entre os universitários participantes, uma abertura às
novas formas de olhar o conceito e entender o seu campo de
aplicabilidade desde uma perspectiva teórica à prática presente no
cotidiano.
Devido às limitações do estudo, seriam úteis e necessárias
mais investigações voltadas à temática, para que possa haver
comparações com os resultados encontrados e oferecer
possibilidades de cruzamento com os dados trazidos,
possibilitando outros olhares a respeito da temática.
131
REFERÊNCIAS
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adicionais e notas Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2014.
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YIN, R.K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2. ed. Porto
Alegre: Bookman, 2001.
133
ECCE DOMINUS
OU, DE OUTROS TIPOS DE DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO
Márcio Luís Marangon1
Rudinei da Rosa2
Introdução
“Do verme ao homem - do homem ao super-homem.
Mas em vós ainda há muito do verme” (Nietzsche)
No horizonte da história - escrita e registrada - nada parece
mais antigo que lascar pedras, domesticar animais e plantar
sementes. Nada mais “comum” e antigo que fazer guerras,
combater tiranos, construir templos e sepulturas. Nada mais
repetitivo que histórias de amores impossíveis, homens que falam
em nome de Deus, do estado e da democracia - ou outras formas
de governo.
A linha do tempo testemunhou a ascensão e queda de
civilizações, presenciou a Inteligência da raça humana- que
construiu pirâmides e inventou máquinas que alcançaram as
nuvens - e que voaram muito além delas. Uma raça que criou mitos
1 Doutor em Educação (UPF) – [email protected] 2 Graduado em Filosofia (URI-FW) e graduando em Teologia (IFIBE) -
134
e ritos para enfrentar seus medos, construiu abrigos para se
defender da chuva e da tempestade, decretou leis para organizar
suas cidades e, a preço de sangue, definiu territórios e fronteiras.
Por feitos como estes, debaixo do sol repetitivo da história,
ergueram-se templos para os profetas e criaram-se espaços
públicos democráticos para as estátuas - que decoram até hoje
nossas ruas e praças – condecorar a vida e a história de heróis
políticos e militares, que oscilam entre super-heróis e ditadores,
guerras e holocaustos.
Após séculos de teorias, guerras e revoluções, chegamos hoje
a uma situação de organização social humana - chamada sociedade
democrática - que conta para as novas gerações a mesma história e
vende os mesmos produtos; cultiva as mesmas estátuas e caminha
pelas ruas com orgulho do nome de seus antepassados. Mas seria
esta sociedade realmente democrática, ou na verdade ainda
vivemos em um estágio primitivo tribalista da lei do mais forte?
Mais antigo que o próprio homem, é o mundo que já existia
antes dele surgir e a verdade dogmática da fome, sede, instinto
sexual e a metafísica que o cerca – fatores que o ajudaram a lhe
constituir como indivíduo. Como lida-se com tudo isso na atual
“sociedade democrática”? Seria uma “sociedade democrática”
aquela que sob as leis da pólvora instituiu, e continua instituindo,
diretrizes hierárquicas sobre o pretexto do que é o “melhor para
todos”? Seria uma sociedade democrática aquela onde a
representatividade do povo é simplória e de fachada? Seria uma
sociedade democrática aquela que tiraniza a vontade de muitos
para satisfazer as vontades de poucos?
Sob tais perspectivas, este artigo pretende - de maneira poética
e descompromissada com os artífices rigorosos da ciência e da
escrita – trazer um olhar diferente sob a democracia. Unificando
um olhar filosófico e teológico, buscar-se-á levantar
questionamentos e apresentar novas perspectivas sobre uma
135
democracia3 que se confunde em vários momentos com a ideologia,
esquecendo-se, assim, de seu verdadeiro objetivo: propiciar a todos
na sociedade, espaço para a potencialização e realização de seu ser.
Um olhar técnico sobre a democracia
De praxe, para situar de maneira introdutória, é importante
recordar que o termo democracia vem do grego, sendo composto
pelas palavras demos (povo) e kratein (reinar, poder). A diferença
linguística impede uma tradução literal, mas, costuma-se traduzir
como o “povo no poder”, ou, algo próximo a “reinado do povo”.
Talvez, em seu Discurso de Gettysburg, Abraham Lincoln tenha se
aproximado muito de seu significado ao defini-la como um modo
de “governo do povo, pelo povo, para o povo”.
Neste contexto, falar em democracia torna-se um verdadeiro
desafio, pois, seguidamente a mesma confunde-se como uma
“capacidade de decidir os destinos”, chegando a ser confundida
com demagogia (ARANHA e MARTINS, 1986, p.207).
Por outro lado, como em Bobbio (1986, p. 18) pode ser vista
como “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que
estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e
com quais procedimentos”. Ambas as formas de perceber a
democracia tornam-se perigosas, pois, colocam-se em uma divisa
com a ditadura.
Becker e Raveleson (2011, p.06), demonstram que a
democracia exige um mínimo de garantias de liberdades básicas e,
direitos básicos. Por exemplo, direitos pessoais “à vida e o direito a
um desenvolvimento livre da personalidade”, que lhe garanta
segurança para desenvolver-se sem o perigo de sofrer violência de
qualquer tipo; direitos políticos e civis, que garantam que cada
3 Teremos como fundamento deste aspecto os países ocidentais que tem como
princípio político a democracia. Cremos que não teríamos espaço suficiente para
discutir aqui as formas não democráticas de governo, comparando-as com as
formas ditas democráticas na atualidade.
136
cidadão possa participar, sem restrições, na vida política da sua
comunidade - tento a possibilidade de opinar e discordar sobre
aquilo que fere seus ideais; e, direitos sociais e econômicos, que
assegurem “o abastecimento básico de todas as pessoas para a sua
sobrevivência” – incluindo educação e saúde (BECKER e
RAVELESON, 2011, p.07).
Da mesma forma, é possível apontar que a democracia exige
uma evolução contínua em sua comunidade, o que significa que
“os direitos humanos podem se desenvolver e não permanecem
para sempre no seu nível inicial”, o que inclui uma sucessiva
“redução do abismo entre os pobres e os ricos” além de uma
recuperação da natureza para que também as novas gerações
tenham a possibilidade de usufruir deste ecossistema (BECKER e
RAVELESON, 2011, p.07).
Assim sendo, a constituição democrática não é simplesmente
imaginar uma participação da comunidade, antes sim, significa que
a democracia precisa ser trabalhada e vivenciada; ancorada em um
processo evolutivo de direitos e deveres num processo de
participação ativa, que exige tomada de decisão e construção
conjunta da sociedade.
Como parâmetro desse modelo de participação, é possível
orientar-se pelas palavras de Díaz Bordenave (1986), o qual situa
três níveis de participação: ter parte, fazer parte e tomar parte.
Neste sentido, não basta aos indivíduos fazer parte do processo. A
ação da simples participação - sem a devida “tomada” da parte que
lhe cabe - é intitulada por ele de participação passiva, a qual difere
da participação ativa. Ou seja, para Díaz Bordenave (1986, p.23)
todos os indivíduos na democracia fazem parte do processo e têm
parte no processo democrático, mas, isso não configura uma
participação efetiva: “a prova de fogo da participação não é quanto
se toma parte, mas como se toma parte”. Ou, como a sociedade
permite a tomada de participação de cada um em seus direitos.
Diante do exposto, é quase impossível não questionar a
legitimidade da democracia na atualidade. Durante muito tempo,
é mister recordar, regimes monárquicos foram questionados pela
137
crueldade das situações e pelas formas desiguais de governo e de
condições de vida dos indivíduos. Regimes religiosos foram
acusados de retirar a democracia dos indivíduos em prol de
questões metafísicas inexistentes, ou ainda, de seus próprios
benefícios.
Mas, e na atualidade? Como definimos a democracia? A
igualdade, a condução da vida dos indivíduos e suas
possibilidades de aperfeiçoamento físico e espiritual? Seu acesso à
participação nas decisões e no cuidado como mundo e com os
outros? Qual a diferença da relação democrática atual e da
monarquia medieval?
Um olhar de senso (não) comum sobre a democracia
Nosso mundo atual é democrático (?). Nada orgulha mais o
discurso político do que falar em democracia. Passeatas em favor
da democracia, guerras em favor da democracia, compra de votos,
e obrigação de votar, em prol da manutenção da democracia.
Ironicamente podemos dizer que nada parece mais adequado
à democracia que a construção de presídios. Nada mais valoroso a
democracia que legalizar o aborto, do que decidir quem vive ou
quem morre. Afinal, aprendemos a matar desde que saímos do
lodo primordial oceânico e somente os fortes sobrevivem - os
antigos mitos bíblicos já narram um irmão assassinando outro
irmão.
Hoje, nada mais democrático, e não dogmático, do que os três
mandamentos do trânsito: verde (avança), amarelo (atenção) e
vermelho (pare). Quem ousaria ultrapassar o sinal e desobedecer a
estes mandamentos democráticos do trânsito? O deus que tudo vê,
fotografa e castiga, com a multa. E o que dizer do anjo chamado
“lombada eletrônica”? Ele não tem o poder de abrir mares e brotar
pastos no deserto, mas pode tirar o seu direito de dirigir, de ir e vir.
Os anjos eletrônicos vigiam nossos passos, casas e comércios, e tem
suas trombetas apocalípticas chamadas de alarme.
138
O mundo democrático tem suas peculiaridades. Enquanto a
religião fala da arrecadação de dez por cento, nosso estado fala da
arrecadação de 44% a 46% (por cento) para manter uma casta
sacerdotal política de deputados, senadores, prefeitos, vereadores
e secretários.
Se no mundo antigo falava-se do caminho para o céu e de
promessas de deleite nas nuvens, o mundo atual democrático fala
que não existe céu, nem inferno, nem diabos. Ele fala e prova que
existe a “Coca-Cola” - que traz felicidades, reúne a família e os
amigos-, apresenta os deuses do futebol, as deusas do carnaval e,
expulsas os demônios gerados no ventre de um partido político
escolhido como “boi de piranha4”. Nossa democracia apresenta
nosso país (Brasil) como país do carnaval - e eu, que não suporto
carnaval!
A democracia atual parece confundir-se com um velho
espetáculo romano: a educação, segurança pública e previdência,
são jogadas aos leões do parcelamento, do descaso e da indiferença.
Mesmo assim, ela se orgulha de afirmar que ama a todos (seria o
amor que rege a falta de saúde, de segurança, de previdência e de
empregos?).
Diante disso, atualmente em pleno século XXI os indivíduos
parecem presos à democracia. Cercados por marcas comerciais,
símbolos e ritos que impedem escolhas livres e questionamentos,
ficam reclusos em uma pretensa democracia que matou, não
somente a Deus, mas a mais divina das artes: a arte de filosofar.
A democracia atual não é um governo de filósofos, mas um
disfarce do mando e desmando de grandes empresas que ignoram,
na sua forma de entender o homem, que há um “certo” sofrimento
inerente ao ato de existir como enigma - como escrevia Nietzsche
(2006) em “Humano demasiado humano”. A democracia atual não
é, então, também existencialista. Não questiona o sentido e muito
menos o fundamento primeiro e último das coisas.
4 Expressão que refere-se a prática de sacrificar um boi em um rio infestado de
piranhas, com o objetivo de salvar o restante do rebanho.
139
Nossa democracia atual carece de espaço para a inteligência!
A massa é obrigada a votar, mas não é impulsionada a refletir sobre
seu voto e as consequências de sua ação, ou omissão. Tem-se
eleições, não cultura política.
Talvez ela se tornou demasiadamente religiosa, na sua face
sectarista e fundamentalista. Hoje, em cada esquina tem-se uma
igreja, um culto com gritos e louvores: seriam elas as filhas rebeldes
e mal-amadas da democracia? Seria este o único sentido que restou
da democracia: escolher em que religião quer participar e torcer
para ser aceito e chamado “irmão” em uma “comunidade” fictícia
onde, novamente, poucos ficam com os recursos arrecadados?
Caminho (novo) à democracia?
Disso tudo, uma pergunta parece não querer deixar-se
silenciar: o homem inventou esta democracia ou, essa
“democracia” criou o homem? Se o homem criou esta democracia
como expressão do melhor de si mesmo, então: como podemos ver,
espalhado em todo lado nos noticiários, o pior do homem em suas
palavras e ações? Por outro lado, se a democracia criou o homem a
sua imagem e semelhança, então, a democracia é uma mãe
degenerada que gerou filhos fragmentados e cheios de conflitos.
Neste cenário, as várias denominações religiosas surgem
como colonizadoras de um espaço vazio deixado pela cultura
democrática. Como nossa atual democracia não ensinou o homem
a pensar, ele se torna presa fácil do “crer sem compreender”.
Onde não se ensina a pensar, o pregador ignorante (que ignora
até mesmo os ensinamentos de seu Deus) ensina homens a
acreditar, a buscar em um Deus que não existe, a creditar a ele a
solução para os problemas criados por falta de planejamento e ação
política. Deus e milagres se tornaram os “placebos” para amenizar
a enfermidade democrática sem que a mudança real e necessária
aconteça no campo cultural e intelectual (O mal, como dizia o velho
sábio Sócrates, é a ausência do bem. A ignorância é a mãe de todos
os males).
140
Assim vive-se os efeitos da livre iniciativa e da democracia.
Hoje é preciso escolher, e aqui está o desafio: escolha pensar e
questionar ou, seja apenas “democrático”, onde tudo é válido.
Diante disso, no caminho (novo, que não é novo) da democracia,
será preciso escolher escalar a própria superação - é o que nos
aconselha Nietzsche (1977) em Gaia Ciência, para que lá e lá do alto,
com espírito livre, consciência tranquila e olhar sereno, possamos
contemplar a extensão e o brilho da nossa própria escalada-; será
preciso colocar-se a caminho, como filósofo, pois a vida é caminho
para além da bestialidade de que somos todos iguais e que tudo é
valido e necessário; será preciso, enfim, fazer com que a política volte
a ser pensada filosoficamente, como alguém que abra espaço a
questionar o sentido do nosso agir, existir e pensar.
Por isso, encanta-nos as provocações de Nietzsche (2006),
quando apresenta o filósofo do futuro como um peregrino, aquele
que se alegra por perceber que ainda há tantos caminhos não
trilhados, auroras que ainda não brilharam e histórias não escritas.
Assim, seu pensamento filosófico aponta para a possibilidade do
surgimento do filósofo do futuro: aquele que percebe com espanto
que há tantas vidas não vividas - ainda escondidas e esquecidas-,
que se atreve a pensar-se como enigma, a desvendar pouco a pouco
o sentido de ser e existir neste mundo.
Hoje mais do que nunca estamos saturados de discursos. Não
basta dizer democracia, liberdade, direito e dever, se esses princípios
não enriquecem o mundo próprio da vida em sua identidade,
naquilo que se repete desde o início do mundo. Não somos mais,
nem repetitivos, nem criativos. Somos reflexos automáticos do
barulho das ruas, das grades e dos alarmes, e não vivemos sem
internet. Morremos e somos sepultados em nome de direitos e
deveres, que a maioria da população nunca chega a compreender.
A democracia atual escraviza, domestica ao trabalho des
(humano), ao processo da mais valia, degradante e “indignificante”.
A sociedade ensina a trabalhar, ser técnico, rápido e eficaz, mas não
ensina a pensar.
141
Não é errôneo pensar que, na maioria dos casos, o que impede
o avanço do estado democrático (ou sua permanência) é a
ignorância da população sobre o que significa ser “humano” nos
seus questionamentos fundamentais de busca de sentido: o que
significa o esforço cotidiano do trabalho do trabalhador
assalariado, de suas ações, das riquezas que produz e que (quase)
nunca vê se reverter em melhoria em suas qualidades de vida.
Neste caminho, a sociedade atual e “democrática”, leva os
indivíduos a pensar que não deve se preocupar se há certo sofrimento
em existir como enigma: tendo-se onde trabalhar, “que importa”
pensar quem somos, de onde viemos e para onde vamos? Escuridão,
finitude, fatalidade, esquecimento, dor e sofrimento... a quem importa
questionar? – Eis perguntas sob as quais a lápide da sociedade atual
enterra a esperança (do verbo esperançar) do seu povo.
Logo, nesta lógica, percebe-se que o mal da sociedade
democrática é um problema de autoconhecimento, de tomada de
decisão. Um problema de percepção espaço-temporal. A
ignorância do ser humano sobre si mesmo gera todo tipo de males
no campo da economia, política e religião. Democracia, violência,
roubos e doenças são para todos! Autoconhecimento e filosofia, são
para quem?
Por isso, no caminho (novo, que não é novo) da democracia,
será preciso escolher a superação, a libertação das ideologias e
alienações, da TV e do Facebook, do Whatsapp e do religioso, que
transforma o verbo esperançar em esperar. Requer - antes de
qualquer coisa - o poder e o desejo de decisão e evolução de todos
aqueles que vivem e morrem na sociedade, e, para isso, formação
política e cidadã em níveis que talvez ainda não se viu na
humanidade.
Por uma educação contra-dominus
Em seu trabalho recende Robinson (2019), após analisar as
facetas da educação na contemporaneidade, preocupa-se em
enaltecer que a força das sociedades democráticas depende que a
142
maioria das pessoas sejam cidadãs ativas na urna e na comunidade,
sendo que “a urna é a ferramenta mais afiada da democracia”, mas,
ao contrário do que se espera, em muitas democracias, “ela está se
tornando perigosamente desimportante” e isso é preocupante,
visto que, “as escolas têm papéis vitais no cultivo do senso de
cidadania” (ROBINSON, 2019, p.53).
Para este autor, tal processo vem em decorrência do
movimento de padronização da educação que se estabeleceu nas
últimas décadas, através de programas e projetos educativos que
não fazem nada para lidar com desigualdades, e ainda, fazem tudo
para aumentá-las. Nas democracias, diz ele, a educação deveria
promover a cidadania ativa, assim como John Dewey preconizava,
ao afirmar que a democracia precisa nascer de novo a cada geração.
E, se precisa nascer sempre e sempre, a educação é a sua parteira.
Ora, para Dewey – vale lembrar - não se faz brotar cidadania
na sociedade sem que a cidadania já esteja envolvida nos processos
educativos. E não somente como conceito, mas como ação,
experiência. Aliás, educação e experiência não podem se dissociar
para o filósofo americano.
Então, vejamos: se educação e experiência não se dissociam,
isso significa que de algum modo - remetendo-se à democracia -
sempre há experiências de governo e cidadania em sala de aula. Na
escola como um todo. E como é essa experiência? Se falarmos em
decadência da democracia, qual é a experiência democrática de um
educando que precisa decorar conteúdos e escrever exatamente o
que seu professor traz a sala de aula para merecer uma nota
“aceitável” ao final do ano? Como agradar seu “deus” professor
sem obedecê-lo fielmente, sem não o questionar, sem aplicar as
fórmulas prontas que traz à sala de aula? É assim que renovamos a
democracia? Repetindo e obedecendo regras renovadamente
arcaicas? Alimentando novos deuses que suas velhas divindades?
Se jamais educa-se diretamente, e sim, indiretamente, por
meio do ambiente, como diz Dewey (1979), logo, não é o
ensinamento da palavra “democracia” que impulsiona(rá) sua
consolidação social, mas sim, a prática democrática que inicia na
143
sociedade e permeia em sala de aula, e na formação como um todo.
A participação dos alunos nas decisões coletivas, seus anseios
sendo atendidos, e, é claro, a possibilidade de reflexão dialética a
partir de cada movimento feito.
Para tanto, ao tratar da necessidade da educação como
experiência democrática, há um caminho a ser trilhado: o caminho
do autoconhecimento. Se “a prova de fogo da participação não é
quanto se toma parte, mas como se toma parte”, isso significa que
a tomada de decisão dos indivíduos necessita ser completa. Para
que seja completa, é preciso que haja - como mencionara Sêneca
(2004), em suas Cartas a Lucílio - uma conscientização espaço-
temporal subjetiva. Ou seja, para que o indivíduo consiga cuidar
de si, contemplar-se, é preciso que ele se entenda, que entenda a
sua condição no espaço e no tempo em que existe. Quando isso
ocorre este indivíduo consegue evoluir, e aqueles que estão a sua
volta são contemplados com sua evolução.
Logo, a democracia verdadeira precisa partir do princípio de
que os indivíduos precisam compreender o espaço e o tempo em
que vivem. Para que haja democracia efetiva em um país, é preciso
que um indivíduo compreenda a situação geográfica-espacial do
seu país, suas potencialidades, suas limitações, suas conexões. Ao
mesmo tempo, este indivíduo precisa compreender o tempo em
que vive: as tecnologias a disposição, a ciência, os problemas
globais e locais, as principais lacunas dos indivíduos a sua volta.
Compreendê-las significa percebê-las como possibilidade, e
não como exigência incontestável da qual deve-se partir.
Compreendê-las significa rever seu significado e questionar a
“divindade” de suas ações. Afinal, se há tanto tempo utiliza-se de
semáforos e medidores eletrônicos de velocidade, isso significa que
pouco conseguiu-se evoluir democraticamente em relação ao
trânsito diário. Da mesma forma, essa reflexão pode ser utilizada
para tantas outras experiências sociais, o que ajudaria a questionar
o que realmente corresponde a evolução social e a tomada do
“poder” de decisão e responsabilidade que a sociedade deveria
144
propiciar pela democracia, levando a perceber que o que falta na
democracia não é punição, mas formação.
E é a educação que deve preparar os indivíduos para a
liberdade, para a capacidade de assumir a tomada de decisão, mas,
para isso, ela precisa ter um fim em si mesma. Precisa deixar de
responder a “deuses” e responder a humanidade, a condição
humana, a evolução da própria sociedade. Responder ao esforço do
labor de todos e da compreensão de como isso ainda continua
alimentando “deuses” como nas primeiras tribos arcaicas. Essa é a
verdadeira redenção da humanidade. A redenção da democracia.
Considerações finais: “diga-me qual é o teu caminho!”
“Escolhe teu caminho. Segue-o”. A democracia “moderna”
parece não querer permitir isso. O democrático na atualidade
parece referir-se à escolha de sacerdotes modernos, plenos de
verdades e revelações. Parece ser uma nova celebração arcaica onde
um líder espiritual, único capaz de falar com os deuses, apontava
as direções e o povo dizia sim, ou era afastado de sua aldeia.
Porém, não é este o sentido da democracia. É claro que não é
demagogia. Mas, democracia não é uma síntese de concordâncias,
mas sim, uma síntese de interesses, nem sempre comuns, que
precisam ser equilibrados para que todos tenham lugar e parte
naquilo que é de todos: o mundo.
Para que haja este equilíbrio, no entanto, aponta-se que é
preciso que haja compreensão espaço-temporal, ou seja, é
imprescindível que aqueles vivem a democracia saibam ler e
interpretar seu tempo e seu espaço, para que saibam como
potencializá-lo e conservá-lo. Por sua vez, isso significa que, como
o tempo e o espaço modificam a cada dia, aqueles que vivem na
democracia devem estar em formação constante, e conscientes do
que significa o “poder” da tomada de decisão cotidiana.
Por isso, ao final de tudo, nada mais importante que almejar
uma educação que busque fundamentar a potencialização da
democracia e da cidadania com princípios contínuos e diários,
145
utilizando de princípios de autoconhecimento para que cada
indivíduo perceba sua existência no mundo e possa tomar a parte
que lhe cabe na história, contribuindo para a complementação do
quebra-cabeça social.
Como diz uma antiga carta bíblica: “Ora, o que envelhece e se
torna antiquado, está prestes a desaparecer” (Hb 8, 13). Assim, se
continuarmos a olhar para a democracia como um velho
“espetáculo romano”, sem questionar as facetas que vem ganhando
na atualidade, estamos fadados a ver seu sepultamento – como já
acontece, mesmo que disfarçadamente –na evolução dos
extremismos em várias partes do mundo.
REFERÊNCIAS
ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando:
introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
BECKER, Paula; RAVELOSON, Jean-Aimé A. O que é
Democracia?. Luanda: FriedrichEbert-Stiftung, 2011.
BÍBLIA sagrada. Rio de Janeiro: Pan Americana, 1995.
BOBBIO, N. O futuro da democracia; uma defesa das regras do
jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
DÍAZ BORDENAVE, Juan E. O que é participação. 4.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Lisboa:
Guimarães, 1977.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado
humano. São Paulo: Escala, 2006.
ROBINSON, Ken. Escolas Criativas: A Revolução que Está
Transformando a Educação (p. 53). Penso. Edição do Kindle, 2019.
SÊNECA, Lucio Anneo. Cartas a Lucílio. 2. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2004.
146
147
ANÁLISE CRÍTICA DA BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR – BNCC
Elcio Alcione Cordeiro1
Introdução
Apresentar-se-á uma breve análise crítica da Base Nacional
Comum Curricular – BNCC, a qual foi homologada em 2017, pelo
Ministério da Educação e, possui a pretensão de balizar a educação
básica no Brasil. Utilizar-se-á da própria introdução do documento
como aporte teórico capital no desenvolvimento do conteúdo. Ao
lado disso, referencia-se outros documentos importantes que
abordam a educação. A estrutura da reflexão consta de uma
conceituação histórica, de currículo, de pedagogia, formação
integral e, tipo humano que a BNCC contempla.
A conceituação histórica permitirá a compreensão de como foi
gestado o documento, o qual passou por uma série de revisões,
correções e inserções, até que em sua terceira versão foi aprovado.
Entender o contexto, influências e objetivos externos ao documento
permitirá compreendê-lo em sua totalidade.
1 Mestrando em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
Campus de Francisco Beltrão – UNIOESTE-FB. Professor de Filosofia no Colégio
Bom Jesus, Palmas – Pr. E-mail: [email protected]
148
O conceito de currículo comportará averiguar o caminho que
a BNCC pretende trilhar. De outro lado, a avaliação deste itinerário
por autores afins inserir-se-á a reflexão de que é necessário desvelar
os limites e possibilidades da própria abertura pretendida.
A concepção pedagógica inerente e subentendida na
introdução do documento corresponde ao que se entenderá sobre
competência, está explícito na BNCC, que todas as orientações
pedagógicas devem desenvolver as competências. Criticamente, a
escola seria um espaço onde o educando na interação com o
professor construiria seu conhecimento.
Muito se fala de educação integral, por isso é fundamental
entender a formação integral, analisando-a como uma visão
desvinculada de objetivos que contemplem o ser humano como um
meio para fins mercadológicos.
Por fim, acrescenta-se a reflexão de como a BNCC contempla
o ser humano, isto é, qual a concepção de ser humano se pretende
formar. Afinal, o principal envolvido na educação é o humano,
tendo em mente o diálogo com outros autores que permitirão uma
compreensão adequada do processo que forma seres humanos.
Em síntese, elenca-se alguns tópicos essenciais, para a análise
criteriosa da introdução da BNCC, os quais permitirão uma
instigante compreensão do documento em sua completude. Ao
lado disso, criticamente esboça-se reflexões que fazem sentido na
educação, tomando outros enfoques, caminhos e objetivos díspares
da BNCC.
Conceituação histórica
Historicamente, a Base Nacional Comum Curricular – BNCC,
teve seus primeiros passos em 2014: “O Conselho Nacional de
Educação (CNE) iniciou o seu processo de discussão sobre o tema
da BNCC, constituindo uma Comissão Bicameral, criada pela
Portaria CNE/CP nº 11/2014” (AGUIAR, 2018, p. 09).
Conforme Márcia Ângela Aguiar (2018), têm-se,
simplificadamente, o seguinte esboço histórico: paralelo ao CNE, o
149
Ministério da Educação já vinha estudando a hipótese da
construção da base a partir de 2014, então foi disponibilizado
através da Secretaria de Educação um estudo chamado: Por uma
política curricular para a educação básica. Em 2015 novos estudos
foram feitos pelo MEC, concluindo os mesmos com a ajuda de cerca
de 120 profissionais da educação e apresentando no mesmo ano a
primeira versão da BNCC, a qual foi disponibilizada em consulta
pública on-line de onde vieram muitas contribuições. Todas estas
contribuições foram compiladas por profissionais da Universidade
de Brasília (UNB) e da Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro
(PUC-RJ), que junto com o MEC elaboraram a segunda versão do
documento. Em 2016, esta versão foi discutida em seminários por
cerca de 9 mil educadores realizado pela União Nacional do
Dirigentes Municipais de educação (Undime) e pelo Conselho
Nacional de secretários de educação (Consed) e posteriormente
incorporado algumas sugestões. Em 2017, a comissão bicameral
promoveu cinco audiências públicas nacionais, ouvidas e
acrescentadas algumas propostas, deu-se então a terceira versão da
BNCC, que passou por muitas discussões e contradições até a sua
homologação em caráter emergencial.
Atualmente, o que se entende por Base Nacional Comum
Curricular:
[...] é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação básica, de modo
a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e
desenvolvimento, em conformidade com o que preconceitua o Plano
Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, Ministério da Educação, 2017, p. 05).
De outro lado, em uma visão crítica, Dermeval Saviani (2016)
relembra que a ideia de uma base comum nacional nasceu em um
movimento que começou a se articular no final de 1970, que
pretendia reformular os cursos de formação de educadores, sendo
que na Conferência Brasileira de Educação de 1980, na qual se
fundou o Comitê Pró Participação na Reformulação dos Cursos de
150
Pedagogia e Licenciatura, este que em 1983, se transformou em
Comissão Nacional pela Reformulação dos Cursos de Formação de
Educadores (CONARCFE), que deu origem em 1990 a Associação
Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANPOF),
todos estes momentos pretendiam e refletiam sobre uma base
comum.
Nestes respectivos eventos e posteriores organizações, a ideia
de uma base comum foi sendo alimentada, mas sempre como um
princípio a inspirar e orientar a organização dos cursos de
formação de educadores em todo o país.
A reflexão que expõe Saviani sobre a base (primeiras edições)
é que:
[...] seu conteúdo não poderia ser fixado por um órgão de governo, por um
intelectual de destaque e nem mesmo por uma assembleia de educadores,
mas deveria fluir das análises, dos debates e das experiências encetadas
possibilitando, no médio prazo, chegar a um consenso em torno dos aspectos
fundamentais que devem basear a formação dos profissionais da educação
(SAVIANI, 2016, p. 74).
Enfim, apresenta-se um caminho, isto é, tem-se um documento
(recente) que é objeto de muitas reflexões, interpretações e
discussões. Em seguida, ver-se-á o entendimento que a introdução
da BNCC traz sobre o conceito de currículo e suas atribuições,
como também análises críticas a esse respeito.
Conceito de currículo
Segundo o Ministério da Educação (2018) no documento da
BNCC, desde o fim do século XX até o início do século XXI, estados
e municípios brasileiros estão focando no desenvolvimento de
competências na construção de seus currículos.
Ainda, refletindo sobre a LDB de 1996, artigo 9º, inciso IV
demonstra que:
151
Nesse artigo, a LDB deixa claro dois conceitos decisivos para todo o
desenvolvimento da questão curricular no Brasil. O primeiro, já antecipado
pela Constituição, estabelece a relação entre o que é básico-comum e o que é
diverso em matéria curricular: as competências e diretrizes são comuns, os
currículos são diversos. O segundo se refere ao foco do currículo (BRASIL.
Ministério da Educação, 2018, p. 09).
Demonstra-se assim que os conteúdos curriculares devem
estar em consonância com as competências2. Isto é, o conhecimento
está atrelado e confundido com competência. Pois, é utilizado a
competência no sentido de mobilização e aplicação dos
conhecimentos. Omite-se assim, um projeto de sociedade, é preciso
olhar mais atentamente a essa realidade. Observe-se a seguinte
ideia em relação a pedagogia:
Ao nos referirmos à competência da pedagogia não pretendemos elencar um
conjunto de atribuições relativas ao desenvolvimento das atividades
pedagógicas, mas explicitar que a competência da pedagogia está
intimamente interligada à educação e, portanto, a um projeto de sociedade.
Assim, as concepções de pedagogia também são portadoras de contradições,
pois estão engendradas no movimento da realidade sócio-históricas
(PORTELINHA, 2015, p. 68).
Em uma visão crítica da BNCC, pode-se aferir que existe um
recuo da teoria, sabe-se que o pensamento teórico precisa confluir
na prática, se isto não acontecer, corre-se o risco de fazer algo que
não tenha significado histórico. Toda a concepção de pedagogia
deveria se alinhar a um projeto de sociedade, não contemplando
essa lógica fatalista. Na prática é necessário fazer a pedagogia
acontecer e, as bases sociológicas - filosóficas devem ser
contempladas. Alinhado a isso, Oliveira pontua:
2 No sentido de competência, Marise Ramos define que: “As competências seriam
as estruturas ou esquemas mentais responsáveis pela interação dinâmica entre
os saberes prévios dos indivíduos, construído mediante as experiências, e os
saberes formalizados” (RAMOS, 2010, p. 198).
152
Refém de um conteudismo tão ultrapassado quanto a estrutura
disciplinarista que o organiza, a BNCC pressupõe, equivocadamente, que a
melhoria da qualidade das aprendizagens seria produzida por meio de um
currículo único para estudantes de todo o país, controlado de fora da escola
por avaliações de larga escala e material didático padronizado, além de um
sistema de prêmios e castigo destinado ao controle de docentes, gestores e
estudantes (OLIVEIRA, 2018, p. 56).
Criticamente, analisando o contexto em que emergiu a BNCC
encontra-se várias situações que são dignas de reflexão. Vale
lembrar o que escreveram Theresa Adrião e Vera Peroni:
Importante frisar que essa política nacional de reforma curricular resultou
de uma ação coordenada pelo setor empresarial, ainda que associado
diretamente a agentes governamentais. Esta é a primeira e mais ampla
dimensão da privatização, um movimento de base empresarial que, por fora
do estado, é investido de prerrogativas de governo. Mesmo que o texto tenha
sido objeto de consultas pulverizadas e on-line, a participação organizada de
educadores e universidades foi insuficiente considerada (ADRIÃO;
PERONI, 2018, p. 52).
Desse modo de entender, não se levou em consideração ou não
se reconheceu os ambientes e culturas tão diferenciadas no espaço
geográfico brasileiro, pois pelo visto, nem mesmo na construção do
documento as variedades multiculturais foram ouvidas. Nesse
cenário, Durkheim deixou seu legado, em que é necessário
construir novos pensamentos a partir da história: “O futuro não
pode ser imaginado a partir do nada: só podemos construí-lo com
os materiais que o passado nos legou. Um ideal construído na
direção oposta do estado das coisas existentes não é realizável, já
que não possui raízes na realidade” (DURKHEIM, 2011, p. 94).
No mesmo sentido, João Paulo Nogueira de Souza3 escreve:
“[...] quando se pensou na Base Nacional Comum Curricular, a
ideia foi deixar de lado a fragmentação e tornar o currículo escolar
algo transdisciplinar e interdisciplinar, favorecendo assim a
3 Segundo o site: https://www.webartigos.com, João Paulo Nogueira de Souza é
pedagogo, especialista em gestão escolar e mestrando em Ciências da Educação.
153
aquisição do aprendizado pelos estudantes” (SOUZA, 2018, s/p).
Entende-se então que a disputa é mais mercadológica pelo
“negócio da educação” do que pelo ensino de qualidade.
A BNCC possui pretensão de normatizar toda a educação
básica brasileira. Todavia, o caminho de elaboração da própria
BNCC, conforme Aguiar:
[...] privilegia especialistas e subalterniza o diálogo com as comunidades
educacionais e escolares, em um modelo centralizador de tomada de
decisões, quanto nos consensos e dissensos que não forma suficientemente e
pedagogicamente tratados como requer a matéria (AGUIAR, 2018, p. 14).
Segundo o Ministério da Educação, a BNCC é um
instrumento: “[...] para além da garantia de acesso e permanência
na escola, é necessário que sistemas, redes e escolas garantam um
patamar comum de aprendizagens a todos os estudantes”
(BRASIL, Ministério da Educação, 2017, p. 06). Entrementes,
depende dos gestores e educadores na elaboração do currículo e na
aplicação do documento nas instituições escolares priorizar o que
lhes garante a qualidade da educação e, desconsiderar o
engessamento de ideias unilaterais produzidas de modo
generalizado e técnico.
Faz sentido pensar no que escreveu Dewey:
[...] muitas das novas escolas tendem a dar pouca ou nenhuma importância
a organização das matérias curriculares; a proceder como se a direção ou a
orientação dada pelo adulto significasse uma invasão da liberdade
individual e como se a ideia de que a educação deve se preocupar com o
presente e com o futuro significasse que o conhecimento do passado não
tenha nenhuma importância ou que desempenhe um papel menor na
educação (DEWEY, 2011, p. 24).
Assim, a educação teria bases fortes, fundamentos coerentes,
os quais lhe assegurariam a sua fortaleza de fundamentos e
concepções.
154
Concepção pedagógica
Ao longo da história da chamada civilização ocidental a
pedagogia foi se constituindo como correlato da educação,
entendida como o modo de aprender ou de instituir o processo
educativo.
A concepção pedagógica é o caminho a percorrer, o horizonte
a perseguir. Entende-se a pedagogia como: “A pedagogia é a
ciência que o educador precisa para si mesmo. No entanto, ele
também tem de possuir conhecimentos que lhe permitam
comunicar. Desde já confesso não conceber a educação sem ensino”
(HERBART, 2003, p. 16).
Encontra-se explícito na BNCC, que todas as orientações
pedagógicas devem desenvolver as competências. Nesta
concepção pedagógica os alunos devem saber fazer:
[...] sobretudo, do que devem “saber fazer” (considerando a mobilização
desses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver
demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e
do mundo do trabalho) (BRASIL, Ministério da Educação, 2017, p. 11).
Nesse intento, é preciso ampliar a noção de pedagogia, onde a
escola seria um espaço do educando na interação com o professor
para construir seu conhecimento. Dessa maneira, pode-se aludir a
seguinte reflexão: “[...] a pedagogia não transforma por si a práxis,
ela é um instrumento para a ação dos educadores e consiste não
apenas em compreender a prática educativa, mas voltar-se sobre
essa prática indicando seu aprimoramento” (PORTELINHA, 2015,
p. 88). É a atividade prática a centralidade da educação.
O documento indica que ao longo da caminhada da educação
básica o estudante deve desenvolver dez competências. O
Ministério da Educação, toma como compreensão de competência:
Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos
(conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e
socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da
155
vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho
(BRASIL, Ministério da Educação, 2018, p. 06).
Sobressai assim, a questão das habilidades, sobre isso,
criticamente comenta Dermeval Saviani:
Esta é uma concepção radicalmente diferente da que propõe um ensino
médio profissionalizante, caso em que a profissionalização é entendida como
um adestramento em uma determinada habilidade sem os conhecimentos
dos fundamentos dessa habilidade e, menos ainda, da articulação dessa
habilidade com o conjunto do processo seletivo (SAVIANI, 2016, p. 80).
Do mesmo modo, a questão da resolução de problemas
plantado no aluno, lança-o ao mundo do trabalho tecnicista. Nesse
sentido, (mesmo se referindo ao ensino médio), comenta Saviani:
O horizonte que deve nortear a organização do ensino médio é o de propiciar
aos alunos o domínio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas
na produção, e não o mero adestramento em técnicas produtivas. Não a
formação de técnicos especializados, mas de politécnicos (SAVIANI, 2016, p.
80).
As ideias norteadoras da BNCC apresentam-se atreladas ao
rigor sistemático do mercado de trabalho. Prioriza-se habilidades
para produção e não para emancipação e reflexão crítica. A noção
de emancipação humana é essencial para a educação. Veja-se o que
propõe Wolfdietrich Schmied Kowarzik:
Somente na medida em que a ciência da educação se compreende
dialeticamente a partir do interesse libertário do conhecimento de uma teoria
crítica da sociedade, voltado a emancipação e libertação dos homens, torna-
se possível a ela criticar, por sua vez, a realidade educacional descoberta
empiricamente mediante a determinação do sentido explicada
hermeneuticamente mediante sua realização na experiência, antecipando,
deste modo emancipatório, uma práxis educacional transformada
(KOWARZIK, 1983, p. 14).
156
A experiência, ou, a aproximação prática4 da realidade leva a
vislumbrar a emancipação humana de forma consciente da
realidade. Emancipar, significa fazer com que o ser humano cresça
e apreenda o seu contexto histórico consciente contendo pontos
positivos e negativos.
A educação alinhada a concepções mais ampla, por vezes, fica
esquecida na BNCC, veja-se, a noção de educação de Émile
Durkheim:
A educação é a ação exercida nas crianças pelos pais e professores. Esta ação
é constante e geral. Não há nenhum período na vida social e nem mesmo,
por assim dizer, nenhum momento do dia em que as novas gerações não
estejam em contato com os mais velhos e, por conseguinte, não recebam a
influência educadora destes últimos. [...]. Existe uma educação inconsciente
e incessante. Através de nosso exemplo, das palavras que dizemos e dos atos
que executamos, fabricamos a alma dos nossos filhos de modo constante
(DURKHEIM, 2011, p. 77).
Esta educação, não é contemplada na BNCC, uma visão
ampliada de educação, que considera a ação da família, dentro de
uma visão ampla de educar. O ideal pedagógico em Durkheim é a
adaptação da educação e do meio social no qual se vive, as práticas
educativas não devem serem isoladas e, objetivam buscar nas mais
diversas áreas a construção do conhecimento. O ideal pedagógico
deve estar em paralelo com os problemas sociais, esquadrinhar na
sociologia, na psicologia, na filosofia, os elementos para a
educação.
Nesta direção, pode-se perceber o perigo da educação
transformar-se em mera manipulação ao mercado de trabalho,
desenvolvendo um ser humano habilitado, porém sem capacidade
4 “Por prática designa-se originalmente toda a atividade humana diferenciada de
qualquer comportamento natural. E justamente porque a prática não ocorre de
modo imediato e sem intermediação, requerendo uma decisão consciente, acaba
sempre incluindo elementos teóricos. Por isso pode-se dizer que a prática exige
uma teoria que a constitua e dirija” (KOWARZIK, 1983, p. 20).
157
de pensar o conjunto da humanidade enquanto valores, condutas e
coletividade.
O ser social não se encontra pronto na constituição primitiva
do homem e também não resulta de um desenvolvimento
espontâneo. Para que possa formar um espírito inteligente e
preparado para a vida social é preciso, além da herança natural
uma legado cultural e social.
Enfim, segundo João Paulo Nogueira de Souza, os
pensamentos da BNCC são importantes, no entanto, os mesmos
não encontram isonomia na atual realidade brasileira:
[...] porém o que a prática, seja educacional, seja política, seja social tem
demonstrado o contrário, quando vemos situações de desrespeito e injustiça
e, além do mais, quando esses atos partem daqueles que deveriam garantir
os nossos direitos (SOUZA, 2018, s/p).
A BNCC explicita que o cotidiano dos alunos é a referência
fundamental para as atividades escolares. Isto é, só será
interessante o que tem utilidade para resolver os problemas do dia
a dia. Por consequência, nega o ensino, nega o professor e a teoria.
No mesmo sentido, Paulino José Orso, refletindo sobre a
reestruturação curricular no caminho inverso ao ideário da escola
sem partido, faz a seguinte análise, que cabe neste contexto de
reflexão:
Estamos vivendo um momento de extrema complexidade, que está impondo
inúmeros desafios a sobrevivência humana. As agressões do capital se
tornaram tão intensivas quanto extensivas e atingem todos os espaços da
sociabilidade. E a educação não está imune a estes ataques. Por trás da
suposta preocupação com o ensino, sorrateiramente, esconde-se o desmonte
da escola, a desvalorização dos profissionais e o esvaziamento das
possibilidades de ensinar, aprender e educar (ORSO, 2017, p. 133).
Pedagogicamente, formar para o mercado de trabalho, avistar
habilidades e desenvolver a capacidade de resoluções de
problemas práticos, é o que traz a BNCC. Nesse cenário, explica
Marise Ramos, sobre os métodos que assumem este papel:
158
[...] as políticas pedagógicas baseadas em competências, por um lado,
despertam um (neo) pragmatismo; por outro lado, um (neo) tecnicismo.
Neste último caso, vê-se que elas: a) reduzem as chamadas competências
profissionais aos desempenhos observáveis; b) reduzem a natureza do
conhecimento ao desempenho que ele pode desencadear; c) consideram a
atividade profissional competente como uma justaposição de
comportamentos elementares cuja aquisição obedeceria a um processo
cumulativo; e d) não colocam a efetiva questão sobre os processos de
aprendizagem, que subjazem aos comportamentos e desempenhos: os
conteúdos da capacidade (RAMOS, 2010, p. 205).
As competências requeridas a despertadas no processo de
produção aparecem na BNCC com naturalidade como modo de
conceber a educação. Compreendendo dessa forma, é importante
perceber como é concebido a formação integral do ponto de vista
da BNCC e, em contraposto, de autores que refletem este tema.
Formação integral
A intenção que transparece no documento da BNCC sobre a
educação integral é limitado, pois toma o conceito de educação
integral como: “[...] a construção intencional de processos
educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as
necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e,
também, com os desafios da sociedade contemporânea” (BRASIL,
Ministério da Educação, 2018, p. 12). Isto quer dizer, que alinhado
à educação integral existe um entendimento de considerar os
interesses particulares e não a educação integral em si mesma.
Da mesma forma, expressa-se no documento (BNCC) que:
“Está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que
visam a formação humana integral e a construção de uma
sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, Ministério da
Educação, 2017, p. 05).
Estabelecendo uma análise crítica, o documento (BNCC) é
bastante utópico, pois asseado à realidade brasileira, na qual
percebe-se grande disparidade de concentração de riquezas, o que
159
permite refletir em injustiça e divisão de classes. Nesse sentido,
Dermeval Saviani escreve: “O papel da escola democrática será,
pois, o de viabilizar a toda a população o acesso à cultura letrada
[...], para se libertar da dominação, os dominados necessitam
dominar aquilo que os dominantes dominam” (SAVIANI, 2016, p.
58). Esta maneira de pensar não aparece na BNCC como objetivo
para a educação.
Libertar o ser humano de suas amarras sociais e
ideologicamente pensado pela classe dominante não é a intenção
da BNCC. Precisa-se dessa reflexão libertadora se se quer seres
humanos integrais com postura de coletividade e de reflexão
crítica:
[...] a reflexão crítica é libertadora porque nos emancipa das visões críticas,
dos pressupostos, hábitos, tradições e costumes não questionados e das
formas de coerção e de dominação que tais práticas supõem e que muitas
vezes nós mesmos sustentamos, em um autoengano (CONTRERAS, 2002, p.
193).
Os indivíduos precisam participar, ser protagonista da
sociedade, com movimentos, pastorais, associações, sindicatos,
ong’s ... As lideranças começam a aglutinar e decidir os rumos da
nação. Ainda sobre o compromisso com a educação integral o
Documento da BNCC expressa:
Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do
adolescente, do jovem e do adulto, considerando-os como sujeitos de
aprendizagem, e promover uma educação voltada ao seu acolhimento,
reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e
diversidades (BRASIL, Ministério da Educação, 2017, p. 12).
Trata-se de desenvolver nos educandos capacidades de
mobilizar conhecimentos e habilidades para adaptar-se ao mundo.
Em analogia a isso, observa-se o que refletem; Bárbara, Cunha e
Bicalho: “[...] a produção de subjetividade na atual lógica neoliberal
coloca a pobreza como um problema individual e relacionada a
160
questões de mérito, o que, ao mesmo tempo, a ascende a esfera
privada e a coloca fora das políticas públicas” (BÁRBARA;
CUNHA; BICALHO, 2017, p. 113). Subentende-se que, existe uma
culpabilização do indivíduo no processo que contempla a BNCC,
retirando assim a responsabilidade de políticas públicas para a
educação. Em consonância a isso, demonstra Charlot:
A educação forma a personalidade, assim, para suportar todas as frustrações
ligadas à vida social, inclusive aquelas engendradas pela injustiça, pela
desigualdade e pela dominação de classe. A educação é política enquanto
constrói a personalidade a partir de bases psicológicas que tem um
significado político (CHARLOT, 2013, p. 60).
O ser humano não nasce pronto com suas concepções, no
decorrer de seu desenvolvimento vital ele se constrói e com ele suas
concepções e visões de mundo. A educação o forma, o faz ser
humano. É papel da educação integrar socialmente o indivíduo.
No processo de educação integral, criticamente e em analogia
com a reflexão sobre a formação integral busca-se em Gramsci um
paralelo para se compreender a integralidade da educação. Pois, a
proposta de escola gramsciana destaca-se como sendo integral, a
qual, prepararia os jovens a serem conscientes de seu mundo
vivido, como o próprio Gramsci desenvolveu:
A escola unitária ou de formação humanista (entendido este termo,
humanismo, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional), ou de
cultura geral, deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade social,
depois de tê-los elevado a um certo grau de maturidade e capacidade para a
criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na
iniciativa (GRAMSCI, 2000, p. 36).
A capacidade de autogovernar-se5 instaurada nas pessoas.
Assim se criará uma nova camada de intelectuais, elaborar
5 Importante pensar que: “Gramsci, também aqui, é claro: o socialismo que ele
propõe não se identifica com o governo dos funcionários, com o domínio da
burocracia, mas requer a construção de uma forte sociedade civil que assegure a
161
criticamente a capacidade de equilíbrio mental prático, para inovar
o mundo físico e social em busca de uma nova e integral concepção
de mundo. Assim, a formação integral é ampliada, não se restringe
somente ao indivíduo, mas alarga-se e encontra sua segurança no
processo histórico.
Diante da reflexão exposta, percebe-se que existe uma
proposta de ser humano. Afinal, que tipo humano a BNCC
idealiza?
Tipo humano que a BNCC contempla
Dentro de uma compreensão crítica, nas dez competências
gerais que a BNCC traz sobrepõe-se uma formação de cunho
mercadológico, isto é, quer-se um ser humano que saiba resolver
pequenos problemas de ordem prática. Pode-se inferir quando se
lê na segunda competência:
Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer a abordagem próprias das
ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação
e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular
e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos
conhecimentos das diferentes áreas (BRASIL, Ministério da Educação, 2017,
p. 07).
A resolução de problemas como sendo habilidade
fundamental de aprendizado aparece também na competência de
número cinco: “[...] acessar e disseminar informações, produzir
conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e
autoria na vida pessoal e coletiva” (BRASIL, Ministério da
Educação, 2017, p. 07).
A resolução de problemas com vistas ao mundo do trabalho
está expressa de forma central, ainda se encontra na competência
sexta: [...] entender as relações próprias do mundo do trabalho e
possibilidade de autogoverno dos cidadãos, ou seja, de uma democracia
altamente realizada” (COUTINHO, 1998, p. 25).
162
fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto
de vida, [...] (BRASIL, Ministério da Educação, 2017, p. 07). Isto é,
adaptar os alunos a sociedade da informação alinhada ao mundo
do trabalho.
Do mesmo modo, surge na BNCC o apoio a meritocracia na
educação, pois lê-se no documento, quando reflete sobre o regime
de colaboração entre União e estados: “A atuação do MEC, além do
apoio técnico e financeiro, deve incluir também o fenômeno a
inovações e a disseminação de casos de sucesso [...]” (BRASIL,
Ministério da Educação, 2017, p. 19).
Sobre isso, incide Inês Barbosa de Oliveira:
A perspectiva meritocracia de educação, claramente assumida pelo atual
governo nos modos como vem gerindo a política educacional do país, a
BNCC é apenas uma de suas expressões, produz a exclusão social na medida
em que responsabiliza as vítimas pelo fracasso que é do sistema, incapaz de
se adaptar as necessidades e possibilidades de grandes segmentos da
população, produzindo a exclusão ativamente por meio dos reducionismos
que a reafirmam, ou seja, fabricando-a pelo abandono dos mais frágeis e
necessitados em nome do sucesso, atestado pelo bom rendimento, dos mais
fortes (OLIVEIRA, 2018, p. 58).
Nesse sentido, Saviani (2016) apresenta a ideia de que esta
maneira de avaliar, que a BNCC contempla, ajusta o Brasil aos
parâmetros das avaliações gerais padronizadas, tomando como
exemplos outros países, como é o caso dos Estados Unidos,
adotado como referência para a elaboração da BNCC.
O processo de aprovação da BNCC foi alavancado por
instituições que na maioria das vezes não estão presentes na
educação. Existe grandes interesses financeiros mercadológicos por
detrás do documento, articula-se grupos empresariais e fundos de
investimentos que no fundo volta aos mesmos grupos. Veja-se o
que escrevem Adrião e Peroni:
Em relação a BNCC destaca-se o papel condutor e indutor de sua aprovação
e disseminação exercido pela fundação Lemann associada ao Cenpec,
Instituto Natura, Instituto Ayrton Senna, Instituto Unibanco, Fundação SM,
163
Insper e Instituto Fernando Henrique Cardoso (ADRIÃO; PERONI, 2018, p.
51).
Resultado de uma ação que foi coordenada pelo setor
empresarial associado a União. Assim, o objetivo principal não é
um ser humano íntegro. Pelo contrário, um ser humano que seja
propício de manipulação em vistas de objetivos financeiros.
Nessa mesma linha de reflexão, o tipo humano que a BNCC
contempla é um tipo “executor de tarefas”, que resolva problemas,
atendendo aos interesses do capital:
[...] o texto aprovado da BNCC alinha-se a orientações globais assentadas na
estratégia 2020 do banco mundial (BM) ‘Aprendizagem para todos Investir
nos conhecimentos e Competências das Pessoas para promover o
Desenvolvimento’, segundo o qual os sistemas educacionais deveriam ser
resignificados e entendidos como o conjunto de situações e estratégias de
aprendizagem ofertadas pelo setor público ou privado (ADRIÃO; PERONI,
2018, p. 51).
A educação, então, fica refém do capitalismo que a usa como
reprodutora de sua própria mão de obra. Contempla-se um ser
humano adaptado as necessidades da sociedade capitalista. Ou
seja, deve ser polivalente nas resoluções de problemas práticos.
É preciso abrir-se a possibilidade de um ser humano que seja
consciente ao seu contexto social, sendo sensível as situações de
interesse social. O ensino necessita ser inspirador nas funções
sociais em busca da transformação da sociedade.
Considerações finais
Ao apresentar uma análise crítica da Base Nacional Comum
Curricular – BNCC, aguça-se o entendimento para compreender tal
documento. O Documento é um caminho, uma maneira de
conceber a educação. Porém, não é a única forma de interpretar o
mundo educacional correspondente a um país abissal como é o
Brasil. Ideias diferentes e concepções díspares sobrevivem. No
164
diálogo crítico podemos perceber o melhor para nosso contexto
educacional.
Considera-se que a análise crítica da introdução do documento
(BNCC) alcançou alguns entendimentos que auxiliam a pensar
autenticamente a educação no Brasil. Pode-se averiguar que a
BNCC, segundo o Ministério da Educação, teve sua gênese em
2014. De outro lado, segundo pensadores, como Saviani (2016)
reflete que essa ideia de base comum iniciou ainda em meados de
1970.
Quando se focou a discussão no currículo, sobressaiu que os
conteúdos necessitam estar atrelados as competências básicas que
o documento traz. Assim, facilmente confunde-se entre o que é
conhecimento e o que é competência. Em uma análise crítica,
infere-se que nem mesmo a política de reforma curricular da BNCC
esteve ligado a educação como centralidade, mas esteve atrelado a
situações externas, como setor empresarial, existem dissonâncias
no modo de compreender a intencionalidade do documento como
real preocupação com a reta educação.
Concentrou-se a reflexão, da mesma forma, na pedagogia
empregada pela BNCC. Nessa análise pode-se perceber que suas
orientações estão em vistas do desenvolvimento das competências.
Assim, o ambiente escolar seria um espaço de interação entre os
educandos e os educadores. Sobressai nessa relação a resolução de
problemas, nitidamente lança o educando ao mundo do trabalho.
Sentiu-se fortes inclinações do Ministério da Educação, na
introdução do documento, na priorização pela especialização
mercadológica de produção capitalista.
Outro fator importante foi constatar que a educação integral
quer significar aprendizados sintonizados com as necessidades e
interesses dos estudantes. A integralidade se restringe aos desafios
que surgem no processo de aprendizado. Criticamente,
compreende-se que a BNCC assumiu uma visão simplista dos
educandos. O documento deixa o aluno como principal
responsável pela sua própria educação, assim as políticas públicas
de educação se ofuscam.
165
Sobre o tipo humano que a BNCC incorpora, entende-se que
colocar na centralidade questões como capacidade de resolução de
problemas e meritocracia é simplificar ao máximo a
responsabilidade pública da educação teórico-prática. É inspirador
defender o que lembra Contreras (2002), segundo ele, criticamente
é possível identificar as contrariedades e contradições nas quais
vive a educação.
Em síntese, eis uma breve pesquisa sobre a introdução da
BNCC, suas compreensões ao serem colocadas a “par e passo” com
a reflexão de outros autores, demonstram algumas fragilidades. É
impossível uma educação descolada da realidade social, socializar
o conhecimento é fazer políticas públicas que contemplem a
universalidade da população e não um grupo privilegiado. É
necessário intenso compromisso com a formação humana e
observar as condições de trabalho do professor.
Diante disso, supõe-se que a diferença no momento de encarar
e assimilar a BNCC quem vai fazer é o próprio educador. Se o
mesmo possui espírito crítico e traz consigo uma leitura de mundo
que segue princípios de emancipação e conscientização pode
resignificar os objetivos inseridos no documento que não condizem
com a sua realidade educacional brasileira. Confia-se na
responsabilidade dos educadores pela educação que forme o
humano em sua mais tenra humanidade.
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167
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webartigos.com. Acesso em: 11/10/2018.
168
169
TRABALHANDO TEMAS DA ANTROPOLOGIA SOCIAL E
DA SOCIOLOGIA EM DISCIPLINAS APLICADAS DE
CURSOS DE GRADUAÇÃO: UMA BREVE REFLEXÃO1
Romilda De Souza Lima2
Introdução
Este ensaio apresenta algumas reflexões acerca da experiência
em trabalhar disciplinas em dois cursos de graduação, a saber:
Nutrição e Serviço Social em uma universidade pública. As
disciplinas ofertadas nos referidos cursos são Sociologia Aplicada
à Nutrição (1º ano) e Antropologia da Alimentação (2º ano) no
curso de Nutrição, e Antropologia Social Aplicada ao Serviço Social
(1º ano) no segundo curso. Os conteúdos das disciplinas possuem
ementas específicas, descritas a seguir:
Sociologia Aplicada à Nutrição: Processo de formulação de
políticas públicas com ênfase em nutrição. Fome e desnutrição no
Brasil contemporâneo. A questão da obesidade como problema
social. O modelo alimentar ocidental. O impacto do sistema ciência-
tecnologia no consumo alimentar.
1 Este capítulo consiste em uma atualização e aprofundamento de trabalho
anterior de LIMA, 2017. 2 Profª. Adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Email:
170
Antropologia da Alimentação: Conceitos e discussão sobre
comensalidade. Conceitos teóricos de referência: homem, sociedade e
cultura. A evolução no processo alimentar e as histórias naturais,
técnica, econômica, social e cultural. Hábitos e ideologias alimentares.
Riscos alimentares e novos paradigmas da alimentação.
Antropologia Social Aplicada ao Serviço Social: A
constituição da Antropologia como disciplina; O campo e objeto de
estudo; Alteridade; Cultura e Sociedade; As expressões culturais da
sociedade brasileira a partir de abordagens teórico-antropológicas.
Etnocentrismo. Relativismo cultural. A formação da sociedade
brasileira; Questões étnico-raciais, culturais e sociais; História e
cultura afro-brasileira, africana e indígena; A imigração e seus
contextos políticos-culturais.
O foco, que aqui se apresenta, está na contribuição para se
pensar numa ótica multidisciplinar e interdisciplinar para a grade
curricular dos cursos e a importância de estar atenta às questões
específicas de cada curso para se pensar o conteúdo e a didática a
ser trabalhada nas disciplinas elencadas.
Planos Políticos Pedagógicos
O Plano Político Pedagógico de um curso de graduação se torna
mais interessante quando consegue ser, na medida do possível, uma
construção de disciplinas com viés multidisciplinar e interdisciplinar,
capaz de orientar os estudantes a compreender todas as interfaces que
permeiam a área em que pretende obter sua formação básica.
Nesse sentindo, acredita-se que a formação em Nutrição deve
ser construída para além do olhar clínico sobre a alimentação – que
seria aquele cujo foco central repousa nos aspectos fisiológicos e
biológicos do ato alimentar. Afinal, como apontado por Lima¹ ao
parafrasear Mintz,2 para além de ser um comportamento
automático e fisiológico, a sociologia, a antropologia e a história da
alimentação têm mostrado que comer é um comportamento que se
liga de forma íntima com o comensal ou o comedor. E é ainda um
171
ato carregado de representações, como defende Lody:3 “nenhum
alimento que entra em nossas bocas é neutro” (p.12).
De semelhante maneira, a formação em Serviço Social deve ser
pensada de forma complexa no intuito de permitir interlocuções
com todos os aspectos sociais que envolvem a sociedade e as
interações com as políticas públicas sociais.
Estudantes que, desde a graduação, conseguem obter uma
formação mais crítica e abrangente dos diversos “entornos e
contornos” dos temas que compreendem seu campo de estudo
poderão encontrar maior facilidade na compreensão dos desafios
posteriores na carreira profissional, além de estar mais apto a atuar
em setores que tratam das políticas públicas.
Não é uma ideia nova, considerando que este olhar está
previsto nas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de
Nutrição (Brasil, 2001), a capacitação do profissional para atuar na:
(...)promoção, manutenção e recuperação da saúde e para a prevenção de
doenças de indivíduos ou grupos populacionais, contribuindo para a
melhoria da qualidade de vida, pautado em princípios éticos, com reflexão
sobre a realidade econômica, política, social e cultural (Brasil, 2001, p.1).
No caso do Serviço Social, as Diretrizes Curriculares do Curso,
presentes na Resolução CNE/CES nº 15, de 13 de Março de 2002
(CFESS, 2002) apontam para o perfil profissional esperado:
Profissional que atua nas expressões da questão social, formulando e
implementando propostas de intervenção para seu enfrentamento, com
capacidade de promover o exercício pleno da cidadania e a inserção criativa
e propositiva dos usuários do Serviço Social no conjunto das relações sociais
e no mercado de trabalho (CFESS, 2002, p. 1).
Nutrição
Em pesquisa realizada sobreo ensino das ciências sociais e
humanas na grade curricular de cursos de Nutrição, Canesqui e
Garcia (2005), analisaram planos políticos pedagógicos do curso de
Nutrição de algumas universidades brasileiras, americanas e inglesas.
172
A conclusão a que chegaram é que as disciplinas dessas áreas são
inseridas nos currículos de forma pouco relacionadas com a área de
Nutrição, dando ênfase mais geral a cada uma das áreas das ciências
humanas e sociais, o que não necessariamente, se correlacionam com
a alimentação e nutrição. Como relatam as autoras: Os conteúdos ensinados nos cursos internacionais são menos dispersos e
tomam a alimentação ou a nutrição como objetos centrais de reflexão e
ensino. No caso brasileiro, percebe-se a grande heterogeneidade nos
enfoques e a dissociação dos conteúdos das ciências sociais em relação às
questões associadas à alimentação na sua totalidade e complexidade. Com
raras exceções, os programas se preocuparam em promover a interlocução
interdisciplinar da nutrição com as ciências sociais, o que demanda esforços
de reconstrução dos conteúdos ensinados e atualizações bibliográficas,
sabendo-se de sua escassez no Brasil, o que pode enriquecer e atualizar os
conteúdos de ensino, em especial da antropologia5 (p. 272).
As autoras destacam a resistência que ocorre tanto por parte
da área da nutrição, que valoriza como mais relevante as análises e
as pesquisas voltadas as áreas clínicas e fisiológicas, quanto por
parte das ciências sociais que muitas vezes não enxergam nas
categorias da alimentação e nutrição aspectos relevantes para
construir um assunto, ou um objeto de análise e pesquisa e
capacitar profissionais na área.
No que se refere a isso, García (2009), traz importante
contribuição ao refletir sobre o papel das ciências sociais,
principalmente a contribuição da antropologia para os estudos da
alimentação. Este autor aponta que, apesar de o tema da alimentação
ter sido importante para os antropólogos desde os primórdios – que
registraram em seus cadernos de campo os modos de comer, de
elaborar a comida e ainda, os principais alimentos consumidos pelos
grupos estudados – o ano de 1968 é considerado como sendo o início
aproximado dos estudos voltados mais especificamente para a
antropologia da alimentação, ou seja, quando a abordagem da comida
como cultura passa a ser analisada de forma mais institucionalizada
pela antropologia e o ano da primeira publicação do terceiro volume
173
da série “Mitológicas”, de Claude Lévi-Strauss (2006): As Origens dos
Modos à Mesa.
A principal contribuição de García (2009) se dá ao discutir com
muita propriedade sobre as possibilidades e alcances da
antropologia da alimentação em se relacionar com outras
disciplinas cujo tema central é a alimentação e constituir assim uma
abordagem interdisciplinar e multidisciplinar. Neste sentido, o
autor pondera que:
Para la Antropología el interés radica en encontrar la lógica significativa
social y cultural en la comida. (...) En ver cómo la comida clasifica hechos,
personas, espacios y tiempos y sugerir qué significados sociales se
desprenden de esas clasificaciones6 (p. 25).
Para a antropologia, o interesse reside na busca da lógica social e cultural
significativa na alimentação. (...) Em observar como a comida classifica fatos,
pessoas, espaços e tempos e sugere quais significados sociais são derivados
dessas classificações (tradução da autora).
Crotty (1993) defende que a prática alimentar abrange duas
acepções: aquela posterior à ingestão do alimento e que está
relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquímica), e aquela
anterior à ingestão. Esta última está relacionada às questões culturais
e sociais, ou seja, à natureza social do comer. Segundo a autora, no
campo da disciplina da Nutrição, dá-se pouco valor a este último
aspecto, até mesmo devido a seus objetivos técnico-científicos.
Concordando com a percepção de Crotty (1993) e Delormier; Frohlich;
Potvin (2009) defendem que não considerar o contexto social, os
aspectos sociais e culturais no campo de interesse, representa de certa
forma, uma limitação a qualquer disciplina. Os autores analisam,
ainda, que o processo de escolha alimentar, na maior parte das vezes,
não se dá primeiramente pela opção nutricional, mas pelas influências
do convívio social cotidiano, que podem estar presentes nas relações
familiares, mas também no local de trabalho, na escola e em outros
locais de convivência que permitem trocas e ajudam a moldar o
sistema alimentar dos indivíduos (Lima, 2015). Ponderam, ainda,
174
sobre o papel importante que as teorias sociais exercem na
compreensão dessa dinâmica:
People's eating patterns form in relation to other people, alongside everyday
activities that take place in family groups, work and school. Eating does
involve isolated choice, but it is choice conditioned by the context in which
it occurs. Social theory provides theoretical guidance for studying the social
nature of eating, approaching eating as integrally linked to context.
Sociological and social anthropological studies of food have
characteristically focused on food cultures and the collective character of
eating patterns among social groups (DELORMIER; FROHLICH; POTVIN
(2009, p.217).
Os hábitos (ou padrões) alimentares das pessoas se formam em relação a outras
pessoas, em função do convívio, das atividades cotidianas que ocorrem em
grupos familiares, no trabalho e na escola. Comer envolve escolha pessoal, mas
é escolha condicionada pelo contexto em que ocorre. A teoria social fornece
orientações teóricas para estudar a natureza social da alimentação,
compreendendo o ato de comer como estando integralmente vinculado ao
contexto da pessoa. Os estudos socioantropológicos e sociológicos dos alimentos
baseiam-se em culturas alimentares e o caráter coletivo dos padrões alimentares
entre os grupos sociais (tradução da autora).
Harris (2011) explica que os costumes culturais e as tradições
alimentares de cada sociedade é que orientam os hábitos
alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por
aqueles que estudam o tema da alimentação. “Como antropólogo,
también suscribo el relativismo cultural en materia de gustos
culinarios: no se debe ridiculizar ni condenar los hábitos
alimentarios por el mero hecho de ser diferentes” (p. 15).
Essa defesa também foi feita por Mary Douglas e
Ravindra Khare (1979), quando escreveram uma apresentação
sobre a antropologia da alimentação no importante periódico
“Social Science Information”. Nesse artigo, as autoras informaram
sobre a criação da “comisión internacional sobre la antropologia de la
alimentación”. A criação da comissão ocorreu em função da
necessidade de se discutir as políticas e estratégias que estavam
sendo desenvolvidas e implementadas nas situações de fome
175
aguda e/ou crônica em algumas nações naquela época. Pontuaram
neste artigo aspectos importantes que devem ser observados na
implantação de políticas alimentares para solucionar a fome. Estes
aspectos dizem respeito à necessidade de se planejar a solução de
problemas que acometem países em situação de fome que são as
questões que envolvem política sanitária e higiene, conhecimento
de técnicas de armazenamento e distribuição, mas chamaram a
atenção de forma enfática para o respeito aos aspectos culturais
também apontados por García (2009):
Ha de basarse em el análisis de la sociedad. La convicción de fondo es que
los patrones locales de selección de alimentos no pueden ser impuestos, sino
que dependen de la vida doméstica, de las ideas locales sobre procesos
fisiológicos, de división del trabajo, del horario...(p.30).
Essa argumentação deixa claro o entendimento diferenciado
das autoras sobre a necessidade da interação dos antropólogos da
alimentação com profissionais de outras áreas, nutricionistas,
ecologistas, economistas, agrônomos, políticos e outros atuantes
em políticas sobre o combate à fome, para que a cultura alimentar
seja respeitada nas intervenções sociais. Questão também
defendida por Valente (2003) ao criticar a limitação que existe nos
trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a
interdisciplinaridade na elaboração de projetos, porque, feitos de
forma isolada cada profissional tende a ver o problema da fome
com suas próprias lentes, desprezando outras possibilidades.
O profissional da saúde “enxerga” desnutrição e doença e propõe vacinação,
saneamento, aleitamento materno etc. O agrônomo “diagnostica” falta de
alimentos e propõe maior produção de alimentos, ajuda alimentar, etc. O
educador vê “ignorância e hábitos alimentares inadequados” e propõe
educação alimentar. Os economistas clássicos “identificam” má distribuição
de alimentos e propõem uma melhor política fiscal, geração de emprego e
renda etc. Os planejadores diagnosticam “falta de coordenação” e propõem
a criação de conselhos de alimentação e nutrição e capacitação (p.52).
176
A antropologia da alimentação propicia o entendimento sobre
alteridade, diversidade cultural, relativismo cultural associado aos
hábitos e práticas alimentares dos grupos. Nesta compreensão, o
campo da Nutrição atuacomo uma rede onde as diversas vertentes
da alimentação se entrelaçam facilitando o processo de escolhas
alimentares e de incorporação de dietas.
Nesta linha de entendimento, Canesqui; Garcia (2005)
apontam que:
As escolhas alimentares não se fazem apenas com os alimentos mais
'nutritivos', segundo a classificação da moderna nutrição, ou somente com
os mais acessíveis e intensivamente ofertados pela produção massificada.
Apesar das pressões forjadas pelo setor produtivo, como um dos
mecanismos que interferem nas decisões dos consumidores, a cultura, em
um sentido mais amplo, molda a seleção alimentar, impondo as normas que
prescrevem, proíbem ou permitem o que comer (p. 9).
Poulain (2013) ao analisar a contribuição das ciências sociais,
sobretudo, na percepção sociológica, aponta que a categoria
‘alimentação’ encontrou dificuldades para se inserir como campo de
estudo dessa área, surgindo “à primeira vista como um tema banal,
poder-se-ia dizer quase clássico, um tema sobre o qual as diferentes
escolas de pensamento aplicariam ‘seus paradigmas explicativos” (p.
17). No entanto, segundo o autor, no contexto contemporâneo de crises
alimentares cada vez mais os sociólogos são convidados por colegas de
áreas que atuam diretamente nas áreas das ciências dos alimentos, da
segurança alimentar e nutrição a elucidar algumas questões, como “o
que essas áreas designam como ‘a irracionalidade dos comensais ou
dos consumidores” (p. 18). Assim, o autor discute e analisa, eentre
outras, as questões alimentares contemporâneas como “as mudanças e
as permanências dos modelos alimentares”, “os impactos da
mundialização”, “a mcdonaldização e a reinvenção das cozinhas
regionais”, “os efeitos da transformação da organização da vida
cotidiana sobre as formas de comer”, “os sentimentos de riscos
alimentares modernos”, “medicalização da alimentação cotidiana”.
177
Questões essas, que permite o diálogo da sociologia com a área da
Nutrição.
García (2009) destaca que o caminho da sociologia em direção
a alimentação se amplia, sobretudo, em função das preocupações
no ocidente com as questões que permeiam a modernidade
alimentar e destaca o trabalho de dois sociólogos: Pierre Bourdieu
(2007) e Claude Fischler (1979).
Bordieu que en 1979 publica ‘La distinción. Criterio y bases sociales del
gusto’. Una obra que analiza las expresiones concretas de la diferencia social
en Francia. Uno de los aspectos tomados en cuenta es el de la alimentación,
elemento que le permite establecer una diferenciación entre alimentos de lujo
y alimentos de necesidad que serían los consumidos por clases burguesas y
populares, respectivamente (…) Fischler, que también en 1979, publica su
artículo de fondo para ‘La Nurriture’, de la revista Communications titulado
‘Gastronomía-gastroanomia’ tenía otro componente que es el que abre el
camino a los estudios sobre la modernidad alimentaria en occidente
(GARCÍA, 2009, p. 35).
A obra de Bourdieu, que não trata apenas dos aspectos da
distinção social da comida, mas destaca alguns pontos muito
interesantes neste sentido e contribui muito no diálogo entre a
Nutrição e as Ciencias Sociais e Humanas. Por exemplo, para
compreender o que no ocidente se convencionou designar como
“comida forte” e “comida fraca”, “comida de pobre” e “comida de
rico”, ou como as regras de etiqueta – ou “comer nos conformes” e
“comer sem formalidades” – termos utilizados pelo autor, e de
como tais aspectos podem interferir estão relacionados à formação
do gosto e como podem interferir nos hábitos e escolhas
alimentares. Nesta obra, Bourdieu também discute detalhes como
o tempo de dedicação que é empregado no preparo das refeições
pelas classes sociais altas e as baixas e de como cada uma delas se
relaciona com as práticas alimentares. “O gosto em matéria
alimentar depende também da ideia que cada classe faz do corpo e
dos efeitos da alimentação sobre ele, ou seja, sobre sua força, saúde
178
e beleza, assim como das categorias utilizadas para avaliar tais
efeitos” (BOURDIEU, 2007, p. 179).
A discussão anterior de Bourdieu é questão que se adequa
também ao campo do Serviço Social, considerando o significado
social que ela possui.
Já em seu artigo, Fischler (1979) discute sobre as causas que
levam os consumidores dos países desenvolvidos do ocidente a terem
tantos problemas de saúde relacionados à alimentação uma
inadequada. Para o autor, o que ocorre é que o consumidor da
sociedade ocidental moderna se alimenta cotidianamente de forma
quase compulsiva, beliscando aqui e ali, sem dar muita atenção ao que
ingere e com isso abastecendo o organismo com quantidades de
calorias muito acima do que consegue queimar, além da predileção
por alimentos com excesso de gorduras saturadas e açucares de
absorção rápida e pouca atenção é dada à saciedade do organismo.
Em função de tal comportamento, o comensal moderno está envolto
em problemas de saúde, em necessidades de fazer dieta, perder peso
e para isso precisando dominar a fome e o desejo de comer e, muitas
vezes, utilizando-se de remédios para emagrecimento.
O artigo de Fischler nos leva a ponderar sobre uma situação que
talvez não fosse necessária, exceto em casos específicos, se o ato
alimentar envolvesse muito mais prazer do que obrigação. Sinaliza
também para uma necessidade de investimento maior nessa sociedade
em educação alimentar considerando que o comensal moderno mal
consegue identifica ou conhecer realmente aquilo que ingere e isso tem
colocado em dúvida também a sua própria identidade alimentar. O
autor destaca, que em meio a essa situação de crise, novas formas de
relação com as práticas alimentares vão surgindo, o que é visível na
ampliação de programas de culinária, inclusive fortemente destacados
pelos meios de comunicação.
As questões pontuadas pelos autores nos falam de
necessidades de compreensão do ser humano, consumidor -
comensal (ou comedor, expressão mais utilizada por Fischler) em
seu conjunto e em seu contexto sociocultural. Se alimentar não é,
na contemporaneidade, uma tarefa simples e fácil de ser resolvida
179
no cotidiano e por isso as diferentes interfaces do ser humano e do
ambiente precisam ser muito bem compreendidas pelo profissional
de Nutrição. Nunca pensar a alimentação e a comida em seu
contexto multidisciplinar e interdisciplinar foi tão importante.
Serviço Social
Em muitas discussões do campo de alimentação e de nutrição,
elas estão diretamente ligadas ao campo de compreensão também
do serviço social, sobretudo, ao se discutir a temática de segurança
neste curso, por exemplo, ao se tratar aspectos relacionados às
políticas públicas de combate à fome e a pobreza; ou as questões
referentes a alimentação do trabalhador, mas não apenas. São
muitas as possibilidades do debate e compreensão multidisciplinar
entre essas áreas o que as enriquece quando assim amplificadas.
Em interessante artigo sobre a Sociologia nas Ciências Sociais,
Caria, César e Biltes (2013), discutem sobre a teoria e a prática no
trabalho social em Sociologia e em Serviço Social em Portugal. Ao
que é sinalizado pelos autores, o Serviço Social ao absorver e
compreender a teorização realizada pela Sociologia estaria mais
imbuído de conhecimentos para assim aplica-los na prática da
profissão de trabalho social.
Apesar de bastante simplista essa noção, o que assim também
é reconhecida pelos autores, pode-se dizer que tal ocorre em
relação à disciplina de Antropologia Aplicada ao Serviço Social. Os
estudantes estudam no intuito de compreender conceitos e
categorias básicas da antropologia social, o que lhes permite
compreender a importância da cultura, da diversidade e
pluralidade em todos os patamares da sociedade e dos grupos
sociais. Neste sentido, damos início à essa disciplina buscando
compreender alteridade e intesubjetidade. Sendo o profissional de
Serviço Social capaz de intervir na vida de indivíduos e grupos em
situação de risco, a noção de alteridade e intersubjetividade é
fundamental para atuar com sensibilidade e compreender tais
sujeitos em seus contexto cultural e social.
180
Considerações finais
Esse breve ensaio tem como objetivo trazer à discussão a
importância da sociologia e da antropologia social para as
disciplinas aqui elencadas de um curso lotado na grande área da
saúde e outro na grande área das ciências sociais aplicadas.
A experiência de atuação nessas disciplinas tem sido muito
rica e o retorno dados pelos estudantes muito positivo. Ao final da
disciplina eles são convidados a responder a importância que a
disciplina estudada tem no conjunto com o que foi estudado nas
outras disciplinas. As aulas sempre são trabalhadas no sentido de
apontar possibilidades de correlação do tema com as demais
disciplinas estudas pela turma naquele ano, além de deixar livre a
discussão durante as aulas que são expositivas-participativas.
Outra metodologia trabalhada consiste em discutir temas atuais de
interesse de cada área à luz da sociologia ou da antropologia de
acordo com a disciplina trabalhada.
O que observo, neste sentido, é que tais disciplinas têm
contribuído substancialmente para ampliar o olhar e a percepção
de vida em sociedade dos estudantes que acabam de se inserir na
vida acadêmica, já que estamos falando de 1º e 2º períodos de
graduação dos cursos aqui elencados.
As áreas de sociologia e de antropologia, bem como outras
áreas das ciências humanas e sociais são ricas e propiciadoras de
pensamento crítico, de questionamento e da liberdade para refletir
sobre o mundo que circula a vida estudantil, bem como na
orientação da trajetória que é construída ao longo da graduação e
que culminará na condução profissional futura, onde espera-se
predominar a ética, o respeito a um mundo plural, culturalmente
diverso e entrelaçado de complexidades e desafios a serem
vivenciados e superados.
181
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2003.
183
EDUCAÇÃO DO CAMPO E ALTERNÂNCIA:
DIÁLOGOS PARA A FORMAÇÃO
CONTEXTUALIZADA
Leandro Luciano da Silva 1
Maria de Fátima Almeida Martins2
A resposta ao sistema escolar inadequado é uma metodologia
pedagógica que supere as correntes e modos docentes existentes e
que responda à necessidade constante de adequação às realidades
distintas de cada lugar, dos adolescentes, jovens e adultos.
(MARIRRODRIGA; CALVÓ, 2010, p. 65)
Introdução
No ano de 2015, tivemos a felicidade de ter um texto publicado
no Caderno de Ciências Agrárias3 do Instituto de Ciências Agrárias
da Universidade Federal de Minas Gerais. O texto, sob o título de
Outra perspectiva para a Educação do Campo, propunha interpelar a
1 Doutor em Educação pela FAE/UFMG. Docente da Universidade Estadual de
Montes Claros – UNIMONTES. Docente do Centro Universitário FIP-Moc.
[email protected] 2 Doutora em Geografia Humana pela USP. Professora Adjunta da faculdade de
Educação da Uiversidade Federal de Minas Gerais – FAE/UFMG.
[email protected] 3 https://periodicos.ufmg.br/index.php/ccaufmg/article/view/2799 v. 7 n. 1 (2015):
ISSN-1984-6738
184
Educação do Campo enquanto proposta contra-hegemônica de
educação para as populações do campo.
Na oportunidade do artigo Outra perspectiva para a Educação do
Campo, sugerimos a Pedagogia da Alternância como essa outra
perspectiva, pois, o seu modus operandi, apresenta um modelo de
educação que leva em consideração as peculiaridades do campo e
de seus sujeitos, uma educação contextualizada. (SILVA; MARINS,
2015)
Neste momento, em 2019, recebemos o comemorado convite
de fazer parte deste livro, Entremeios Educacionais: perspectivas
teórico-metodológicas na/da Formação do Sujeito, que, além de receber
com carinho a incumbência, nos sentimos responsáveis, agora, com
mais maturidade, por responder a demanda em aberto no texto
publicado em 2015, pelo Caderno de Ciências Agrárias da UFMG,
ou seja, propusemos evidenciar, com a bagagem empírica
necessária, os motivos determinantes que nos levam a acreditar na
Pedagogia da Alternância como uma perspectiva para a Educação
do Campo, projeto contra-hegemônico para a formação do Sujeito
do campo.
A pedagogia da Alternância tem como característica principal
o desenvolvimento do movimento de ensino-aprendizagem em
dois tempos, Tempo Escola e Tempo Comunidade, porém, não são
tempos distintos, ou isolados, esses tempos se amalgamam no
processo de ensino-aprendizagem que tem como centralidade o
trabalho e a formação omnilateral do alternante.
O texto que se apresenta retoma reflexões da Tese Dois Tempos,
Vários Lugares: Trabalho e Emancipação em Alternância, desenvolvida
no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Conhecimento e
Inclusão Social em Educação, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais – FAE/UFMG, defendida
em dezembro de 2017, e que teve por objetivo evidenciar o
potencial emancipatório da Pedagogia da Alternância posto em
prática pela Escola Família Agrícola de Tabocal, EFA-Tabocal,
localizada no Município de São Francisco/MG.
185
O Projeto de Alternância da EFA- Tabocal
A EFA-Tabocal é uma escola de ensino médio e profissional,
com habilitação em agropecuária, que surgiu de um diagnóstico
para um projeto da Cáritas Diocesana de Januária/MG,
denominado Projeto Seriema. Durante a realização do diagnóstico
do projeto Seriema, identificou-se que, nos cinco municípios
atendidos pela Cáritas - São Francisco, Januária, Chapada Gaúcha,
Pintópolis, Cônego Marinho - haviam muitos jovens em idade
escolar, ensino fundamental e médio, fora da escola.
Com o desenvolvimento do projeto Seriema, e depois de todo
um processo de estruturação da EFA, com a criação de uma
comissão pró-EFA, e a instalação propriamente da EFA em
Tabocal, começaram as aulas. Esse percurso se iniciou em 2002,
sendo que as aulas começaram efetivamente em de outubro de
2005, mesmo sem a autorização do Conselho Estadual de Educação,
ou seja, da idealização da escola até seu início, foram mais ou
menos 3 anos.
Apesar de parecer que todas as Escolas Famílias Agrícolas
seguem o mesmo padrão para sua institucionalização, cada uma
tem sua especificidade, dependendo de fatores ambientais,
econômicos e sociais, e esses fatores ditam os caminhos e o ritmo
de cada Escola.
Analisar a Pedagogia da Alternância nessa dimensão é buscar compreender
seu propósito como opção ao projeto hegemônico de educação.
Compreendê-la no contexto social em que está inserida, revela as dimensões
de sua importância para os indivíduos, famílias e comunidades envolvidas
na sua existência, trata-se da educação proposta pelos seus próprios sujeitos
no cotidiano de suas lutas, outra perspectiva para a educação do campo.
(SILVA; MARTINS, 2015, p.90).
186
A EFA-TABOCAL não nasce como proposta de escola; a escola
não é oferecida à população do Gerais4; ela surge como alternativa
ao projeto de educação apresentado pelos estabelecimentos oficiais
de ensino.
A Alternância como projeto de educação apresenta
características próprias. Suas interfaces, escola – alternante –
família/comunidade, convergem-se na formação do aluno, não se
trata de uma proposta imposta pela direção da escola; trata-se de
um projeto coletivo. Assim como em sua trajetória, a EFA-Tabocal
é dotada de espaços de participação das comunidades integrantes
da Associação, reafirmando o compromisso de responsabilidade
conjunta pela formação do alternante.
[...] a estrutura associativa e estrutura pedagógica garantem um princípio
essencial do CEFFA, observado em seus estatutos: a responsabilidade que as
famílias desejam exercer na educação dos filhos. As famílias não são meros
colaboradores dos monitores na tarefa educativa, nem são usuários do
Centro Educativo ao enviam seus filhos, senão que amparam com sua
participação e apoio um centro educativo que garante a formação para os
jovens de acordo com as necessidades e características reais do meio em que
vivem (MARIRRODRIGA; CALVÓ, 2010, p. 193).
Não se refere apenas à participação da comunidade, mas
também da própria inserção dela no projeto pedagógico, e esse
movimento é marcante na construção do plano de formação da
escola, que, assim como deveria ser em outras EFA’s, os eixos
geradores são decididos em reunião de pais, em assembleia.
Esse primeiro momento de participação das
famílias/comunidades no processo educativo evidencia a
contextualização Educação por meio da Alternância, ao contrário
da proposta de educação rural, que se pautava em modelos ou
4 Sobre o Gerais Mineiro, na perspectiva antropológica ver a tese de Mônica
Celeida Rabelo Nogueira, “Gerais a dentro e a fora: identidade e territorialidade
entre Geraizeiros do Norte de Minas Gerais”, defendida em 2009 junto ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de
Brasília – UNB, sob a orientação de Paul Elliott Little.
187
pacotes impostos pelo Estado e dissociados das realidades do
espaço e das populações do campo (CALAZANS; CASTRO;
SILVA,1985 e RIBEIRO, 2012).
No caso da EFA-Tabocal, a análise dos eixos do Plano
Formação para o ano de 2015 e do perfil das comunidades
envolvidas com a escola permite afirmar que existe, no projeto da
escola, a preocupação de aproximação com as realidades locais
envolvidas no processo de formação do alternante; trata-se,
portanto, de uma proposta contextualizada, alinhada com os
interesses e demandas locais.
Nesse sentido, infere-se que, no caso em apreço, a “[...]
educação e a formação estão centradas na vida, na realidade
cotidiana [...]” (MARIRRODRIGA; CALVÓ, 2010, P. 64), pois são
transportadas para o espaço pedagógico da EFA as demandas
apresentadas pelas famílias e comunidades envolvidas no processo
formativo do alternante.
Em 2015, ano de realização da pesquisa em campo, a EFA-
Tabocal contava com 186 alunos de 68 comunidades de 12
municípios. Apesar de terem como característica comum a questão
hídrica, essas comunidades situam-se em regiões diferentes e
apresentam demandas diversificadas, sendo uma tarefa complexa
realizar a convergência dos interesses e peculiaridades de cada
comunidade em um projeto educação.
A proposta de contextualização da educação no âmbito da
EFA-Tabocal passa pela identificação do perfil das comunidades
envolvidas no processo educativo. Das comunidades envolvidas,
em especial as que foram visitadas para a elaboração deste trabalho
- Comunidade de São João da Água Limpa/Mirabela; Comunidade
de Boa vista/São João da Ponte; Assentamento São Francisco/São
Francisco; Comunidade Volta da Serra/Itacarambi; Assentamento
Alvorada/Pintópolis; Distrito de Serra das Araras/Chapada Gaúcha
- observou-se que, com exceção das comunidades de Boa Vista/São
João da Ponte e da comunidade de Serra das Araras/Chapada
Gaúcha, as demais comunidades são formadas por pequenos
grupos de famílias - menos que 50 famílias por comunidade.
188
Sob o aspecto produtivo, invariavelmente, todas as
comunidades podem ser caracterizadas pela produção de
autoconsumo, ou seja, produção para a manutenção da unidade
produtiva e a comercialização do excedente, nos comércios locais e
feiras.
As comunidades podem ser identificadas também pela
diversidade da produção, as unidades produtivas se prestam ao
cultivo de milho, feijão, abóbora, hortaliças, algum gado para corte,
leite e queijo, além de animais de pequeno porte, como frango,
cabras, suíno e algum equino para o trabalho do campo.
As características das comunidades dos alternantes são
refletidas na configuração do plano de formação da EFA-Tabocal
para esses alunos. Para o ano de 2015, os Eixos Geradores se
estabeleceram com os temas “A Família e Comunidade” para o
primeiro ano; “Meios de Produção” para o segundo ano; e
“Desenvolvimento do Meio e projeto profissional” para o terceiro
ano (EFA-TABOCAL, 2015).
Os eixos são amplos e se integram às comunidades nos Planos
de Estudos, que restringem a abordagem e contextualizam o
processo educativo. Nesse sentido, para o primeiro ano, identifica-
se a proposta de Plano de Estudo em temas como avicultura,
horticultura e medicina alternativa; para o segundo ano,
fruticultura, suinocultura e defensivos alternativos e
convencionais; para o terceiro ano, culturas anuais, alimentação de
animais no período da seca, bovinocultura, equinos, muares e
agricultura familiar (EFA-TABOCAL, 2015).
É importante destacar que, além do plano teórico [Plano de
Formação], a EFA-Tabocal integra-se às demandas das
comunidades dos alternantes também no plano estrutural, porque
o aluno continua em contato com a estrutura que se aproxima da
realidade de sua unidade produtiva e de sua comunidade.
A visita à escola revelou os espaços destinados aos
experimentos dos alunos, ao cultivo de hortaliças, inclusive com
produção de mudas, à avicultura, à suinocultura e à
caprinocultura, atividades integrantes do plano de formação e
189
também presentes nas comunidades de origem dos alunos da EFA-
Tabocal.
Figura 1 -Instalação da EFA-Tabocal – Capril.
Fonte: Dados da pesquisa (2015)
A proposta estrutural da EFA-Tabocal contribui para a
caracterização de uma Alternância Real ou Integrativa, que,
segundo Duffaure (2007, p. 120), “[...] não se limita a uma sucessão
dos tempos de formação teórica e prática, mas realiza uma estreita
conexão e interação entre os dois [...]”. No caso da EFA-Tabocal,
observa-se que a integração se materializa inclusive na reprodução,
pela escola, dos ambientes próprios das unidades produtivas dos
alternantes.
Essa reprodução do espaço produtivo do aluno na escola
coaduna com um dos objetivos da alternância, que
[...] além da formação integral, [é] criar possibilidades para que o jovem
desenvolva a sua propriedade, melhorando a renda e a qualidade de vida da
família, para que dessa forma ele possa viver e se desenvolver no meio rural”
(SAMUA; ZONTA; HILLESHEIM; ZONTA, 2013, p.123)
Como se observa, a EFA-Tabocal está no caminho daquilo a
que se propõe a Pedagogia da Alternância e a própria Educação do
190
Campo: uma escola que nasce da proposta e dos esforços coletivos
daqueles diretamente envolvidos no processo educativo; um plano
de formação integrado às realidades locais; e uma interação não
apenas entre os espaços, mas também com a própria reprodução
do ambiente produtivo do alternante na escola. Assim, chega-se à
educação contextualizada, especialmente uma educação onde o
alternante é o sujeito do movimento de aprendizagem e não seu
paciente. (FREIRE, 2007)
Ocorre que, para a formação integral e o sucesso desse modelo
de Educação, não basta um plano de formação que contemple as
realidades locais, não basta a estrutura, que além de atender aos
preceitos mínimos da formação, reproduz os espaços produtivos. É
necessário, também, que a Alternância essencialmente ocorra.
A formação contextualizada no projeto de Alternância da EFA-
Tabocal
Tempo Escola e Tempo Comunidade são dois tempos que se
procuram, que se relacionam, e não se pode, na Alternância, pensar
nesses dois momentos de forma separada. No Tempo Escola,
projeta-se o Tempo Comunidade, e, neste último provoca-se o
primeiro. Os tempos são contínuos no processo de aprendizagem,
não se vive a escola sem pensar na comunidade e vice-versa.
Na sede da EFA-Tabocal, encontram-se os dois tempos e os
vários lugares; são distritos, assentamentos, localidades,
comunidades, onde a Alternância possibilitou aos alunos viverem a
escola que seus pais, parentes e amigos construíram coletivamente.
O encontro desses tempos e lugares na EFA-Tabocal é
mediado pelo Plano de Estudo5, que movimenta para a escola as
5 Apesar de o Caderno de Acompanhamento da Alternância (Caderno Verde) ser
um elemento pedagógico que possibilita ao monitor e à família o
acompanhamento das atividades no ambiente escola e no ambiente
comunidade, o plano de estudo revela as unidades produtivas e comunidades
aos alternantes e aos monitores da EFA.
191
descobertas e demandas comunitárias relacionadas aos eixos
geradores estabelecidos para cada ano.
Parte-se, portanto, de que a posição normal do homem, “[...],
era de não apenas estar no mundo, mas com ele. A de travar
relações permanentes com este mundo, de que decorre pelos atos
de criação e recriação, o acrescentamento que ele faz ao mundo, que
não fez.” (FREIRE, 2007, p. 112). “O plano de estudo, como
instrumento de pesquisa ou guia de trabalho, determina, em boa
parte, a motivação do alternante e dos adultos que o acompanham.
Determina também a qualidade do estudo realizado.” (GIMONET,
2007, p. 34).
Durante a realização do campo da pesquisa, observou-se o
retorno dos alternantes e a socialização do plano de estudo que
estava relacionado à suinocultura.
A suinocultura é uma atividade predominante em todas as
comunidades dos alternantes, seja com maior ou menor
intensidade; não se trata de atividade especializada, ou em grande
escala, mas, sim, de criação para o autoconsumo e comercialização
do excedente.
Figura 2 – Representação de criação de suínos em comunidade de
alternante da EFA- Tabocal.
Fonte: Aquino (2014)
192
É importante destacar que a suinocultura divide espaço nas
unidades produtivas com outras criações de quintal, como frangos
caipiras.
Figura 3 – Representação de criação de frangos em comunidade de
alternante da EFA- Tabocal.
Fonte: Aquino, 2013.
A socialização dos trabalhos é dividida por séries, que ocorre em
dois momentos. Primeiro, avaliação do Caderno Realidade e do
Plano de Estudo em grupos divididos por ano. Segundo, a
Colocação em Comum.
193
Figura 4 – Detalhe de local de avaliação do Caderno Verde e do Plano de
Estudo.
Fonte: Dados da pesquisa (2015)
O Caderno Verde trata-se de um relatório das atividades
desenvolvidas pelos alunos na escola e nas comunidades - um
diário, que não se refere exclusivamente às atividades pedagógicas;
nele são descritas atividades domésticas e trabalhos desenvolvidos
na unidade produtiva e na comunidade.
Assim, são expostas ao grupo as práticas sócio-profissionais,
como realização de estágios, atividades de cuidados do lar,
trabalhos na unidade produtiva, atividades religiosas, participação
em grupos de oração, e participação em reuniões de associações ou
grupos da comunidade do alternante, que são endossadas por seus
pais.
Ocorrida a apresentação das atividades realizadas pelo
alternante, o Caderno Realidade é avaliado pelo monitor e, logo
após, passa-se à socialização do Plano de Estudo. Assim como
descrevem Borges et al, 2012, ao relatarem a experiência da EFA-
Dom Fragoso, Plano de Estudo, na EFA-Tabocal, é uma produção
que compõe o Caderno Realidade.
194
Cada estudante sistematiza os dados coletados na forma de um texto com
descrição dos fatos concretos, analises, comparações, reflexões e conclusão.
O registro das pesquisas do plano de estudo é feito no caderno realidade.
Ele se assemelha a um portfólio. Esse instrumento é um dos melhores meios
de avaliar o desenvolvimento da aprendizagem, da organização, da
responsabilidade, etc. dos estudantes. (BORGES et al, 2012, p. 53. grifo no
original).
Durante o campo desta pesquisa, foi possível acompanhar a
socialização do 2º ano, em que o Plano de Estudo estava relacionado
à suinocultura. Na socialização, os alunos apresentaram um
diagnóstico da comunidade e do objeto da pesquisa, as principais
“raças”, as características da alimentação; as condições das
instalações, as principais doenças, e os questionamentos dos
agricultores da comunidade.
É importante observar que, neste momento, o Plano de Estudo,
dentre outras funções, ajuda o alternante, a
[...] captar e entender melhor o ambiente onde cresceu, onde vive:
suas dimensões, suas riquezas, seus limites [...], importa permitir-lhe
não somente de enxerga-lo, mas também de analisa-lo, de discuti-lo
com espirito crítico (GIMONET, 2007, p. 39).
Depois de uma apresentação geral, cada aluno realiza a leitura
de seu relatório, que invariavelmente apresenta a mesma estrutura,
identificação da comunidade e município, tema do Plano de
Estudo, principais raças encontradas na comunidade, destinação
da produção, impressões sobre as instalações, avaliação quanto ao
manejo, principais doenças e os respectivos tratamentos,
problemas relacionados à assistência técnica; por fim, impressões
dos alunos sobre o PE para a comunidade.
Na comunidade existem 8 moradores que criam suínos, não existem
instalações adequadas na comunidade. As doenças comuns são o berne e
manchas pelo corpo, se alimentam com milho, ração, mandioca e cana. Não
existe política de apoio. (SILVA, 2015a).
195
Na tutoria, que, no caso da EFA-Tabocal, ocorre em grupos
pequenos, o monitor tem um papel importante no movimento de
ensino- aprendizagem; ele motiva os alunos a explanarem sobre as
possibilidades de instalações para a suinocultura, as alternativas de
alimentação, principais doenças, raças e suas características, a
partir das informações levantadas pelos alternantes durante a
realização da pesquisa do plano de estudo.
Nesse momento, os alunos trocam informações e impressões
sobre o objeto de estudo, exteriorizando as experiências
comunitárias e da unidade produtiva, apresentam os
questionamentos dos agricultores da comunidade e buscam
esclarecer suas próprias dúvidas quanto ao tema, principalmente a
identificação de raças, de doenças e de formas de manejo,
especialmente reprodução dos animais na unidade produtiva.
O que pode ser observado é que não se trata apenas da exposição
dos problemas ou realidades das comunidades e unidades produtivas
dos alternantes, no momento da tutoria; os alunos estreitam os laços,
não apenas entre eles, mas também entre as comunidades e regiões
onde vivem, evidenciando o plano de estudo como
[...] uma estratégia pedagógica para estudar melhor a realidade local, da qual o
aluno traz para escola os principais problemas, aspirações e potencialidades do
meio. É a partir desses fatos e dados que tenta reconstruir o processo produtivo
local, ou seja, uma nova organização do trabalho que vise melhorar cada vez
mais os meios de produção e de uso racional dos recursos naturais do trabalho,
enfim, reformando metódica e economicamente a administração do trabalho
familiar (RUBENICH, 2004, p. 60).
A avaliação do Caderno Verde e do Plano de Estudo com o
monitor, dura aproximadamente 30 minutos; depois das
apresentações, o monitor lança o visto nos cadernos. Encerrada a
avaliação, todos os alunos da quinzena se reúnem para a socialização,
apresentação para os demais alunos, colocação em comum.
196
Após a avaliação do Plano de Estudo6 pelo monitor, os alunos
socializam os resultados. O número de alunos da EFA-Tabocal
exige que um aluno seja escolhido pelo grupo para apresentar as
observações de campo. Trata-se de, segundo Passos e Melo (2012,
p. 246), “um ‘relato em comum’, a respeito dos resultados das
pesquisas dos trabalhos e estudos realizados com a família” e
comunidade. Segundo Gimonet (2007, p. 45),
Para explorar os ganhos adquiridos através da experiência, a colocação em
comum constitui a segunda atividade chave da pedagogia da alternância.
Seus efeitos formativos e educativos são consequentes porque ela
desempenha funções maiores.
Assim, a Colocação em Comum possibilita a articulação entre
os tempos e os espaços da alternância. Possibilita a socialização das
experiências individuais. Contribui para que cada alternante
ultrapasse seu caso particular, confronte, posicione-se e conquiste
autonomia a partir de seu próprio trabalho e da percepção dos
trabalhos dos outros alternantes (GIMONET, 2007).
Trata-se do momento em que, segundo Borges et al (2012, p.53),
“os estudantes apresentam os resultados da pesquisa no coletivo,
debatem, problematizam o tema e elaboram um texto grupal com
pontos de aperfeiçoamento nas áreas do conhecimento”.
A apresentação é um momento que requer certa formalidade
para o expositor. Apresenta uma descrição/diagnóstico prévio do
que foi verificado na comunidade, principais criadores, principais
raças, instalação, manejo, vacinação, doenças, comercialização da
produção, assistência técnica e políticas públicas de incentivo, bem
como a importância da atividade para sua comunidade.
Este momento representa, para o alternante, a transformação de um
trabalho escrito em uma conversa com os outros membros do grupo.
6 Socialização (colocação em comum) dos Planos de Estudo, alunos do
Assentamento São Francisco, Comunidade de Serra das Araras - Chapada
Gaúcha; Comunidade de Vista da Serra - Itacarambi, Assentamento Alvorada -
Pintópolis. 20 de agosto de 2015.
197
Cada um se vê, desta maneira, confrontando com as dificuldades e
exigências da expressão oral: a relação com os outros, a elocução, a
estruturação, a comunicação (GIMONET, 2007, 46).
Depois de exposto o diagnóstico, o monitor faz interferências
no sentido de desenvolver o assunto, visto que o tema já teria sido
debatido na roda de avaliação do Plano de Estudo. A partir desse
momento, o expositor se aprofunda na apresentação e expõe
informações não apresentadas ao grupo.
Além do monitor que não acompanhou o aluno na avaliação
do PE, outro monitor técnico acompanha a apresentação e faz
intervenções no sentido de questionar sobre quesitos técnicos,
buscando maior interação. Provoca a participação em temas
relacionados às doenças, manejo, instalações e custos.
Nesse aspecto, é importante observar que, no caso da EFA-
Tabocal, nem sempre os monitores que realizam as tutorias são
técnicos, ou seja, que têm a formação em técnico em agropecuária,
carência que é suprida no momento da colocação em comum.
Depois da apresentação realizada pelos alternantes, é
franqueada a palavra ao monitor/técnico, quando são apresentadas
sugestões, realizadas correções, adequações técnicas e propostas
relacionadas ao plano de estudo do aluno para serem levadas para
as comunidades. Nesse aspecto, a “animação pedagógica”
(GIMONET, 2007, p. 47) fica por conta do monitor técnico.
Percebe-se que, no momento da “Colocação em Comum”, é
que os alunos apresentam suas dúvidas e as de suas respectivas
comunidades; a presença do monitor técnico possibilita esse
diálogo. O monitor técnico realiza esclarecimentos quanto ao
manejo adequado, custo e comercialização da produção,
identificação técnica de doenças e raças, vantagens e desvantagens
quanto à instalação adequada para a criação, aspectos relacionados
à alimentação tanto convencional quanto alternativa. Por fim,
identifica, junto com os alunos, o que pode ser levado de volta para
a comunidade para possíveis melhorias em relação ao tema objeto
do Plano de Estudo.
198
O Plano de Estudo, como parte do projeto de formação do
aluno, não se encerra na Colocação em Comum, pelo contrário, é
nela que se identificam as diretrizes para continuidade do processo
de ensino- aprendizagem, porém a materialização deveria ocorrer
na unidade produtiva, uma vez que é na unidade produtiva que o
alternante coloca em movimento o conjunto de informações e
aprendizados que lhe é apresentado na socialização do Plano de
Estudo e na Colocação em Comum.
Assim, o movimento que se espera no processo da Alternância
envolve: o reconhecimento do alternante quanto a seu espaço, suas
variáveis e problemas; a socialização e o aporte teórico e técnico a ser
encontrado na EFA; e a volta para casa, com a possibilidade de
contribuir não só para a formação individual, mas também para o
atendimento das demandas locais e melhoria da unidade produtiva.
Considerações Finais
A proposta de uma educação contextualizada, um projeto de
educação contra-hegemônico, e que observe e atenda às demandas
locais é uma tarefa complexa.
Apesar da complexidade da proposta, é possível afirmar que
existe uma contextualização no projeto da EFA-Tabocal, seja da
elaboração conjunta - escola e comunidade – do Plano de Formação
do Alternante, seja na reprodução dos viveres da vida produtiva
no ambiente e na estrutura da escola.
Além disso, observa-se a educação contextualizada, pela
análise do Caderno Realidade e do Plano de Estudo dos
alternantes, que demonstram a aproximação da proposta da EFA–
Tabocal com as realidades das comunidades e das unidades
produtivas dos alunos.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a Escola Família Agrícola
Tabocal apresenta um projeto de Educação que envolve a
percepção das realidades onde está inserida. Não apenas observa
essas realidades, como também as insere no projeto da escola,
199
materializa-se como uma alternativa para a proposta do
movimento da Educação do Campo.
REFERÊNCIAS
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Francisco, MG. 2013.
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Praticada pelos CEFAs. In: ROCHA, Maria Isabel Antunes;
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comunidade e movimentos sociais. Belo Horizonte: Autêntica,
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CALAZANS, Maria Julieta C.; CASTRO, Luís Felipe Meira; SILVA,
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DUFFAURE, André. Os Contornos e os Componentes da
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200
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 30. Ed. Rio
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MARIRRODRIGA, Roberto Garcia; CALVÓ, Pedro Puig.
Formação em Alternância e Desenvolvimento Local – o
movimento educativo dos CEFFA no Mundo. Belo Horizonte: O
Lutador, 2010.
GIMONET, Jean-Claude. Praticar e Compreender a Pedagogia da
Alternância dos CEFFAS. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. (Coleção
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PASSOS, Maria das Graças; MELO, André de Oliveira. Casa
Familiar Rural da França à Amazônia: uma proposta da Pedagogia
da alternância. In: GHEDIN, Evandro. Educação do Campo –
epistemologia e práticas. São Paulo: Cortez, 2012. p. 237-250.
RIBEIRO, Marlene. Educação Rural. In: CALADART, Roseli Salete
et al. (Org.) Dicionário de Educação do Campo. São Paulo:
Expressão Popular, 2012. p. 293 - 304.
RUBENICH, Claudir José. Avaliação da eficiência da Escola
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Comunidades Rurais. 2004. 110f. Dissertação (Mestrado em
Desenvolvimento Local) – Universidade Católica Dom Bosco,
Campo Grande, MS, 2004.
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Batista; BURGHGRAVE, Thierry de. (Org.). Pedagogia da
Alternância e Sustentabilidade. Orizona,GO: UNEFAB, 2013. p.
181-189.
SILVA, Leandro Luciano. Socialização de Plano de Estudo –
Alternantes do Distrito de Serra das Araras, Chapada Gaúcha, MG.
São Francisco: 2015. Entrevista.
SILVA, Leandro Luciano. MARTINS, Maria de Fátima Almeida.
Outra perspectiva para a Educação do Campo. In: Caderno de
Ciências Agrárias. V. 7, N. 1. Jan/Abril, 2015. p. 89-101.Disponível
em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/ccaufmg/article/view/
2799.
201
LINGUAGEM, CINEMA E EDUCAÇÃO:
REFLEXÕES DIDÁTICO-METODOLÓGICAS
Renato de Oliveira Dering1
Introdução
A inserção do cinema na esfera escolar brasileira sempre foi
razão para discussões crítico-teóricas ao longo das últimas décadas
que fecharam o século XX e iniciaram o século XXI. Sua utilização
como ferramenta didática e suas possibilidades para o
desenvolvimento do senso crítico dos sujeitos estiveram sempre em
evidência nas pesquisas que foram surgindo nesse espaço-tempo,
principalmente nas universidades do país.
Contudo, ao passo que o desenvolvimento dos estudos de
cinema e educação ganharam o espaço acadêmico, o diálogo com
as escolas necessitava de um maior debruçar, visto que o que
acontece na sala de aula é urgente e, muitas vezes, diferente das
situações de análise propostas na teoria. Iniciamos, assim,
1 Professor Assistente no Centro Universitário de Goiás (Uni-ANHANGUERA).
Doutorando em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás, Mestre
em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Graduado em Letras –
Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Líder
pesquisador do grupo FORPROLL/CNPq/UFVJM. E-mail:
[email protected]. Orcid: 0000-0002-0776-3436
202
pensando que: “fechar os olhos para as mudanças sociais, históricas
e culturais é atirar-se de um precipício e acreditar que tudo ficará
bem” (ANDRADE; DERING, 2013, p. 217)
Observado tais aspectos, é importante uma discussão aberta e
que envolva aspectos que ainda urgem atenção acerca da utilização
da linguagem cinematográfica: a utilização do filme como um
“tapa buraco” para as aulas e demais problemas escolares e o uso
do filme como uma espécie de “muleta” para aulas mal planejadas.
Dado o exposto, o presente estudo, pautado em um modelo
ensaístico, busca discutir a intersecção entre linguagem, cinema e
educação e suas implicações didático-metodológicas.
Reflexões iniciais
“A evidência parece ser clara: o cinema é o meio de
comunicação que mais atraiu pessoas desde seu surgimento”
(DERING, FILETTI, 2013, p. 248), contudo, é interessante pensar
que faz mais de 100 anos de existência do “cinema” (desde a
primeira apresentação dos Irmãos Lumière, na França,
especificamente) e ele ainda continua sendo, em boa parte das
escolas, faculdades e universidades, um elemento figurativo para o
ensino. Tomamos por figurativo a ideia de que, em muitos casos,
ele é um instrumento decorativo de uma aula, mas não faz parte
dela em si. Passa-se o filme da Joana Dar’c, por exemplo, para
mostrar como a França perdeu a guerra; ou mesmo, o curta-
metragem “Ilha das flores” e pede-se um resumo ou uma resenha
do que foi exposto.
Isso acontece com qualquer filme e em quaisquer disciplinas.
Não é privilégio de “Joana d'Arc de Luc Besson” (1999), de Luc
Besson, ou “Ilha das Flores” (1989), de Jorge Furtado; tampouco da
disciplina de História ou Língua Portuguesa. Ocorre, pois, que a
evolução acelerada da sociedade e a otimização dos recursos
audiovisuais, sem dúvida, proporcionaram mudanças em todas as
esferas sociais, contudo, uma parece ter se estagnado frente a isso
tudo: a escola.
203
Entretanto, a culpa não é da esfera escolar, apenas, mas de
tudo que dialoga com ela. Para mudar a escola, é preciso mudar a
formação dos professores que gerem essa instituição, logo, mudar
o pensamento nas universidades. Trata-se de um ciclo em que um
desses lugares precisam criar estratégias de mudanças.
Em um artigo publicado em 2013, fruto do meu Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) no curso de Letras, da Universidade
Federal de Goiás (UFG), realizado em 2010, eu já trazia essa
discussão, a qual não é nova e parece que ainda irá permear os
próximos anos do século XXI. Na oportunidade, refleti que: “Antes
de quaisquer inferências [...] talvez não seja o ensino que se
encontre defasado, como o senso comum costuma dizer, mas as
práticas de ensino que não acompanham os inúmeros avanços do
atual contexto social”. (DERING; FILLETI, 2013, p. 247).
Alguns anos depois dessa reflexão, é, infelizmente, o que se
observa ainda. O cinema, como as demais linguagens artísticas, não
perdeu o lugar de prestígio na esfera escolar brasileira, pois nunca
o teve. A verdade é que as artes sempre foram vistas como um
empecilho para a formação bancária da qual Paulo Freire (1979)
tanto discutiu. Dizia ele que, nesse modelo:
[...] a educação passa a ser “o ato de depositar”, no qual os alunos são
os depósitos e o professor aquele que deposita. Em lugar de
comunicar, o professor dá comunicados que os alunos recebem
pacientemente, aprendem e repetem. É a concepção “acumulativa”
da educação (concepção bancária). (FREIRE, 1979, p. 41)
A arte faz pensar e fazer pensar é potencializar sujeitos. O “ato
de depositar” é a manutenção de um modelo de ensino que não
auxilia na formação de massas passivas, alheias ao pensamento
crítico. Por isso que, ao se conceber a “escola para todos”,
pretendeu-se criar um padrão de formação que gerisse as
necessidades advindas das revoluções industriais dos anos
anteriores e não a formação crítica dos sujeitos (MOSÉ, 2014). Essa
talvez, seja uma razão (das principais) para que o cinema tenha se
204
tornado obsoleto, ainda que seja um dos mercados mais
promissores da economia mundial.
Nessa perspectiva, diria eu, que se torna catastrófico pensar
que o filme ainda é muleta para se ensinar algo e, mais do que isso,
serve, para grande parte dos docentes em suas diversas áreas de
atuação, como uma espécie de “tapa buraco”, seja para professores
ausentes ou para “aulas preguiçosas”. Assim, cria-se dois padrões
no uso da linguagem cinematográfica: (1) “filme como tapa
buraco”, (2) “filme como muleta para aulas mal planejadas”.
O mal uso do cinema em sala de aula
Antes de mais nada, entendam que filme é linguagem
narrativa transposta em audiovisual, isto é, aquilo que assistimos.
Cinema, por sua vez, pode ter diversos significados: lugar que se
vai para assistir a filmes, toda a indústria de produção de filmes ou
sinônimo de filme, em um sentido mais simples. Neste ensaio,
cinema será livremente usado como sinônimo de filme, para
facilitar a leitura e compreensão da reflexão proposta.
Comecemos, então, com o “cinema como tapa buraco” das
aulas. Para falar dessa percepção, é necessário entender o cinema
como uma forma de expressão de linguagem. Logo, por assim ser,
ela é constituída de inúmeras possibilidades que vão do
entretenimento – do simples assistir pelo assistir – até a narrativa
ou escolha estética dos elementos fílmicos. “Os filmes são,
portanto, produzidos e vistos dentro de um contexto social e
cultural, por meio de suas narrativas, que vai além do prazer da
história” (TURNER, 1997, p.69).
Assim, a escolha de uma cena focar no rosto da pessoa ou não,
por exemplo, é um modo diferente de promover uma narração,
análise pouco realizada nas aulas de literatura. É preciso entender
que: Como linguagem rica e sensorialmente composta, o cinema, enquanto meio
de comunicação, está aberto a todos os tipos de simbolismos e energias
literárias e imagística, a todas as representações coletivas, correntes
205
ideológicas, tendência estética e ao infinito jogo de influências no cinema, nas
outras artes e na cultura de modo geral (STAM, 2008, p. 24).
Desse modo, ao passar um filme em sala de aula sem um
planejamento, um objetivo e sem um debruçar sobre a temática
proposta, sem dúvida, é diminuir a narrativa fílmica ao simples
entretenimento, que não é função das instituições de ensino. “Vale
lembrar que tomar filmes como objeto de estudo não implica negar
a magia e o encantamento que eles provocam em seus
espectadores” (DUARTE, 2009, p. 92). As grandes redes de cinema
do país, o YouTube, a Amazon e a Netflix já fazem isso e com muita
maestria, com preços variados.
Por isso que, nesse ponto, é importante ressaltar que o “filme
como tapa buraco” nas atividades escolares peca ao não permitir
que conceitos / preceitos / ideias / etc possam ser refletidos e
debatidos entre os sujeitos, bem como desautentica e desvaloriza a
sétima arte como produtora de conhecimento.
Ocorre, pois, que se falta professor, se quaisquer contratempos
surgem, deveria caber a escola – e seus agentes educativos, de
forma ampla – cobrir essas lacunas de maneira responsável,
buscando a relação dialógica do e com o ensino. No entanto, o que
se percebe, por trás desse uso, não é apenas a irresponsabilidade do
“passar um filme”, mas a hierarquização da própria escola sobre o
que é importante aprender e o que não é. A cinema produz
criticidade e isso é perigoso.
Em síntese: o “filme como tapa buraco” mostra que esse tipo
de arte é irrelevante, assim como mandar para a biblioteca o aluno
que não fez a atividade, passar uma redação para o aluno que
chegou atrasado ou dar uma bola para os meninos jogarem na
quadra (em um estereótipo ainda difundido de que meninos jogam
bola). Respectivamente, a biblioteca se torna um “lugar” / “espaço”
para punição, enquanto a redação é a “forma” / “maneira” de punir
os “maus alunos”. A Educação Física, nesse ponto, é a atividade de
mero entretenimento, que deixa “todos felizes”, contudo, tão
irrelevante quanto a redação, a biblioteca e o filme. São elementos
206
figurativos, como disse acima, irrelevantes para o ensino, pois
tapam buracos e não ensinam, quando trabalhados dessa maneira.
O segundo aspecto a ser levantado é o “filme como muleta
para aulas mal planejadas”. É importante entender primeiro que
uma aula dialogada não é uma aula mal planejada. É muito
comum, devido ao ensino tradicional – o qual preza a exposição
pela própria exposição – que uma aula que exija a participação do
aluno seja tomada como uma aula a qual a professora / o professor
não planejou. Pessoas com preguiça de ler e com dificuldade em
querer aprender difundem essa ideia.
Dois pontos são de extrema importância salientar. O primeiro,
o aluno não lê / assiste (a)o que se pede e já espera que a professora/
o professor dê as respostas mastigadas, isso não é uma aula
dialogada, é ainda a concepção da educação bancária. Na aula
dialogada, o professor é realmente mediador, pois espera que suas
alunas / seus alunos tragam conhecimento e dialoguem esse
conhecimento, primeiro com sua bagagem, depois com a de seus
colegas e, por fim, com a da professora / o do professor, não
necessariamente nessa ordem, mas em uma incessante troca de
saberes que serão construídos naquele momento.
O segundo ponto é que a professora / o professor deve
incentivar a organização dos saberes e a produção do
conhecimento e, por essa razão, enquanto mediadora / mediador,
fará com que suas alunas / seus alunos cheguem ao conhecimento
previsto, ou ao mais próximo dele, sem incutir a ideia de que ele
seja o melhor, pois não se deve hierarquizar saberes, todavia, ter a
percepção de que os saberes eles são diferentes. O saber da escola
não é melhor, porém um que foi validado pela sociedade, que nem
sempre precisa estar certa.
Mediar aqui, portanto, é uma ação dialógica de construção de
saberes e não um momento de exposição apenas, como ditava o
ensino tradicional. Vale lembrar que se engana que quando a
professora / o professor induz a resposta é algo dialogado. A
indução, diferente da incitação, é previsível e de uma mão só, pois
o que se espera deverá ser atendido. Quando se incita ao
207
pensamento, se promove o estímulo, o encorajamento e, mais do
que isso, um exercício de reflexão-ação-reflexão. Induzir indica
obter resposta esperada e indução é problematizar saberes.
Essa explicação pondera o que é uma “aula planejada” e uma
“aula mal planejada”, em nossa concepção. Uma aula planejada,
então, pode ser aberta, tomando, inclusive, caminhos diferentes do
esperado, pois a bagagem da estudante / do estudante pode variar
conforme as reflexões que forem surgindo. Portanto, é importante
ter a ciência que “não há comunicação sem dialogicidade e a
comunicação está no núcleo do fenômeno vital. Nesse sentido, a
comunicação é vida e fator de mais vida” (FREIRE, 1995, p. 74).
Assim, tomando como base que a comunicação é dialógica e que o
conhecimento não é estanque, isto é, único e parado, o
direcionamento da aula pode sim (e, talvez, deveria) sofrer
alterações.
Por outro lado, uma “aula mal planejada” é aquela na qual as
estudantes / os estudantes são direcionados à realizarem atividades
sem objetivos claros e/ou induzidos a acreditarem na importância
do filme sem a reflexão dele além do que é previsível e esperado.
Na aula mal planejada não há um diálogo, mas um monólogo
induzindo ao estímulo-resposta, em que a aluna / o aluno responde
apenas ao que foi pedido, não tendo voz ou com sua voz ofuscada
pelo direcionamento da docente / do docente.
Logo, “assim como o docente não é um palestrante, no sentido
restrito da palavra, o aluno não é um espectador, que digere seco o
que lhe é passado” (DERING, FILETTI, 2013, p.251). É de extrema
urgência, portanto, deslegitimar o professor como única
autoridade do conhecimento, mais do que isso, deslegitimar essa
visão social. Logo, “[...] não podemos nos colocar na posição do ser
superior que ensina um grupo de ignorantes, mas sim na posição
humilde daquele que comunica um saber relativo a outros que
possuem outro saber relativo” (FREIRE, 1984, p.15). Por assim ser,
o professor é detentor de um conhecimento de outros tantos que
coexistem em sala de aula.
208
O cinema em sala de aula
A esfera escolar é lugar de saberes e conhecimentos e a
linguagem cinematográfica, quando proposta em sala de aula é, de
fato, uma discussão que permite e potencializa diálogos, assim:
Se a escola é um espaço de desenvolver diálogos, pensamentos, reflexões,
discussões, sem dúvida, o cinema torna-se forte aliado dessas realizações,
visto que por ele se cria um espaço discursivo de diferentes visões,
interpretações e sensações. Por isso, as práticas educacionais com cinema
devem ser pensadas como um processo educacional de descoberta, no qual
os educandos têm acesso todos os dias e de diferentes modos. (SANTOS;
DERING, 2018, p. 281)
O trabalho com cinema em sala de aula, sem dúvida, precisa
de um planejamento, visto que o audiovisual é uma linguagem que
possibilita e potencializa saberes para que se tornem
conhecimentos. Para isso, destaco a importância de compreender
uma perspectiva metodológica, a da reflexão-ação-reflexão frente a
ideia de saberes e conhecimentos. Nela, pontuo que saber e
conhecimento são diferentes instâncias do processo ensino-
aprendizagem e que cada uma possui sua função, sendo este um
processo contínuo e ininterrupto.
O saber produz conhecimento e o conhecimento produz
saberes que, por sua produzem novos conhecimentos, em uma
reflexão-ação-reflexão contínua. Em outras palavras: nenhum saber
é consolidado, os saberes são momentos de reflexão. O
conhecimento, por sua vez, é a estruturação do saber, contudo, não
consolidado também, justamente por ele não ser absoluto. Assim,
o conhecimento é uma ação no modo de pensar, que está
estruturada conforme uma determinada vertente e, quando entra
em processo de um novo diálogo, volta a ser um saber que precisa
ser novamente estruturado.
A ideia, portanto, é entender que nenhum aprendizado é
completo nem suficiente em si, pois não se pode pensar em uma
hierarquização do conhecimento, como é implementada desde que
209
a escola se tornou um ambiente formal e formativo da transposição
de conhecimento. Compreender que todos possuem saberes e
produzem conhecimento é o primeiro passo para entender que
saberes e conhecimentos diferentes não devem ser tomados como
superiores ou inferiores, mas apenas diferentes. Logo, há
conhecimentos aceitos em determinadas esferas da sociedade e
outros que não são. A escola (a faculdade e a universidade),
enquanto instituição formal (e formativa), consolida um
conhecimento e, em um equívoco histórico, pontua que é o certo ou
errado. Se há saberes e conhecimentos plurais, pensar e subjugar
um conhecimento acima do outro é, no mínimo, pretensão teórica.
A lacuna entre os saberes acadêmicos e escolares, na formação
de professores, também, dialoga diretamente com a ideia de
autoridade do conhecimento que se vê na relação professor aluno,
no ensino básico. Visto que a conscientização, para Freire (1995),
não é do outro, mas ocorre para si, primeiramente, através da
dialogicidade, a consciência de mundo e a aquisição de
conhecimento é ampliada pela incessante interação. Não se pode
dizer que essa consciência e aquisição é “feita”, pois na verdade ela
não é estanque e não se inicia do zero.
Portanto, ao falar de cinema, é preciso compreender que todo
sujeito que ali se encontra é detentor de saberes e de conhecimentos
sobre diversos aspectos do filme, de conteúdo, éticos ou estéticos.
Como dito, uma vez que o cinema possibilita e potencializa, é
preciso saber que ele faz isso com todos os sujeitos envolvidos no
processo. Por assim ser, o primeiro ponto ao se trabalhar um filme
talvez não seja compreender por que o Thanos é o vilão nos
“Vingadores” ou por que Kevin foi esquecido em casa, em
“Esqueceram de mim”, mas sim compreender o que os sujeitos
compreendem das ações de Thanos e Kevin. Se um é vilão, o que
leva alguém a ser vilão? Se alguém foi esquecido, o que é ser
deixado de lado? Parece simplório, mas nas práticas docentes as
perguntas estariam relacionadas às contraposições de herói e vilão,
como se isso fosse igual para todos, bem como seria questionar de
que forma uma mãe pode esquecer o filho em casa.
210
A reflexão vai mais longe quando pensamos que Batman nada
mais é que um justiceiro, alguém que burla as regras da sociedade
para fazer justiça com aquilo que ele acha certo e, por essa razão,
ganha a empatia dos outros, por pensarem que “se a justiça não faz,
eu posso fazer”. Um desses casos de grande repercussão no Brasil,
em 2014, foi de um adolescente que, amarrado a um poste, foi
espancado por um grupo intitulado de “os justiceiros”. O lead da
notícia produzida pelo Jornal Extra já aponta tal atrocidade: “Um
adolescente foi espancado e preso a um poste por uma trava de
bicicleta, nu, na noite da última sexta-feira, na Av. Rui Barbosa, no
Flamengo, Zona Sul do Rio. Ele teria sido atacado por um grupo de
três homens, a quem chamou de ‘os justiceiros’” (LUCCIOLA,
2014). Sem a criticidade do sujeito, apenas com sua alienação sobre
certo e errado por um molde vertical imposto à sociedade, nesse
contexto, estaríamos todos em “Uma noite de crime” (2013)
contínua e sem precedentes. Clarificando, o filme de James
DeMonaco, traz como enredo a oficialização de 12 horas de morte.
Em sua sinopse:
Quando o governo norte-americano constata que suas prisões estão cheias
demais para receberem novos detentos, uma nova lei é criada, permitindo
todas as atividades ilegais durante 12 horas. Este período, chamado de Noite
do Crime, é marcado por milhares de assassinatos, linchamentos e outros
atos de violência por todo o país. O intuito, segundo o governo, é permitir
que todos os cidadãos libertem seus impulsos violentos, garantindo a paz
nos outros dias do ano (ADORO CINEMA, s/a).
Imagine se cada um resolvesse ser um Batman na vida? Não
haveria “Gotans City” suficiente para todos; Imagine 12 horas para
expurgar sua violência sem razão, tão pouco haveria parâmetros de
moralidade e imoralidade. A questão, então, é compreender que os
sujeito, nossas alunas e alunos, tem saberes que dialogam com o
conhecimento do filme e, a partir dessa intersecção é que se constrói
novos saberes, constrói-se a criticidade nos/dos sujeitos. Um sujeito
crítico é capaz de ir além do ditado sem se tornar um ditador.
Assim, quando o professor aceita que Charles Chaplin, em
“Tempos Modernos” (1936), reproduz o sistema fordista e
211
questiona apenas esse sistema, ele aceita a personagem de Chaplin
como sendo o único detentor do saber – como a escola tradicional
já apregoava. Esse tipo de aceitação fácil é que criam regimes
autoritários e ditatoriais, como vem ocorrendo em importantes
países da América Latina.
Logo, ao falar de criticidade é entender que “O cinema como
produtor de conhecimento vai além da simples exibição fílmica em
seus diferentes suportes. Na prática pedagógica, o filme também
deve ser visto como força motriz para o conhecimento” (SANTOS;
DERING, 2018, p. 280).
Considerações Finais
Dada as reflexões acerca da intersecção entre linguagem,
educação e cinema, percebemos que, por mais que haja uma
evolução social, as instâncias escolares ainda estão ineficientes nas
proposições didático-metodológicas. Por isso, enfoco, deve-se
incitar à reflexão na qual mostre que o filme é uma linguagem
aberta e de possibilidades múltiplas. Só se produz conhecimento,
quando os saberes dos sujeitos estão ali inseridos. Desse modo, o
trabalho com o cinema é, primordialmente, um trabalho coletivo,
em que a pluralidade dos saberes efetiva novos conhecimentos que,
posteriormente, se farão novos saberes, na contínua e ininterrupta
proposição do aprendizado.
Para finalizar, faço da frase de Harry Potter uma analogia para
o processo ensino-aprendizagem com o cinema em sala de aula: “O
mundo não se divide em pessoas boas e más. Todos nós temos Luz
e Trevas dentro de nós. O que importa é o lado que escolhemos
para agir. Isso é o que realmente somos”. Logo, em uma paráfrase
simples, o aprender não se divide em o que eu deveria saber e o
que eu aprendi. Todos temos saberes dentro de nós. O que importa
é se estamos efetivando esses saberes. Isso realmente é buscar o
conhecimento.
212
REFERÊNCIAS
ADORO CINEMA. Uma noite de crime. Disponível em: <
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-201653/ > Acesso em 26 jun
2019.
ANDRADE, Vanessa Silva; DERING, Renato de Oliveira. Perspectivas
de História e Ficção: Uma Leitura do Filme As Melhores Coisas do
Mundo. Revista Litteris, v. 11, p. 210-218, 2013.
BESSON, Luc. Joana D’Arc de Luc Besson. França: Sony Pictures, 1999.
CHAPLIN, Charles. Tempos modernos. Estados Unidos: Warner,
1936.
DEMONACO, James. Uma noite de crime. Estados Unidos: Universal
Pictures, 2013.
DERING, Renato de Oliveira; FILLETI, Elisandra. As novas mídias e as
práticas educativas: literatura e cinema em ambiente escolar. Revista
do curso de Letras da UNIABEU, Nilópolis, v.4, n.2, p. 246-257, 2013.
FREIRE, P. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’ Água, 1995.
___. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Cortez
& Moraes, 1979.
___. Educação e mudança. Petrópolis-RJ: Vozes, 1984.
FURTADO, Jorge. Ilha das Flores. Porto Alegre: Casa de Cinema de
Porto Alegre, 1989. Disponível em: < http://www.youtube.com/
watch?v=KAzhAXjUG28 > Acesso: 10 jan 2019.
MOSÉ, Viviane. A escola e os desafios contemporâneos. 3ª edição. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
SANTOS, Geovanna Coelho dos; DERING, Renato de Oliveira. O
cinema como produtor de conhecimento em sala de aula. In.
SKRSYPCSAK, Daniel; SCHÜTZ, Jenerton Arlan (Orgs). Debates
contemporâneos em educação. São Paulo: Dialogar, 2018.
STAM, Roberto. A literatura através do cinema: realismo, magia e a
arte da adaptação. Trad. Marie-Anne Kremer e Glaucia Renate
Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
TURNER, Graeme. Cinema como Prática social. São Paulo: Summus,
1997.
213
PEDAGOGIA DO CAOS E PARTITURA DA REVOLTA –
TECENDO NOVAS RELAÇÕES COM O
CONTEÚDO TEATRAL
Ana Carolina Conceição 1
Tatiana Trindade2
Arte é o que sustenta a vida, não a vida biológica
ou a duração dos astros que giram,
mas a vida eterna do pensamento.
(Paola Zordan)
Introdução
O presente texto é um exercício voluntário de duas
professoras, que perante os desafios apresentados na sala de aula,
tem o objetivo de - por meio do pensamento aberto e da escrita –
disseminar o conhecimento da linguagem teatral, em qualquer
1 Mestre em Artes pelo PROFArtes na linha Abordagens teórico-metodológicas
das práticas docentes, Professora do Centro de Ensino Médio 04 de Ceilândia,
da Secretaria de Educação do Distrito Federal, coautora do site
www.caoserevolta.com 2 Mestre em Artes pelo PROFArtes na linha Abordagens teórico-metodológicas
das práticas docentes, Professora do Centro Educacional 06 de Taguatinga, da
Secretaria de Educação do Distrito Federal, coautora do site
www.caoserevolta.com
214
ambiente: formal ou não formal, e em qualquer espaço: físico ou
virtual.
O terreno da educação tem se mostrado cada vez mais árido,
percebemos uma disputa política e ideológica que em muitos
contextos corroboram para a morosidade das soluções em todos os
setores vinculados ao sistema educacional.
Consideramos que a educação vive hoje um sepultamento
brutal. Pois, vivemos num momento em que se desvaloriza a
pesquisa, a cultura, o estudo, e as necessidades para que ocorra o
aprendizado. Existe uma superficialidade das informações, a
criação e divulgação de falsas teorias, bem como a falta de relação
com o outro.
Nos recusamos a participar do velório da educação que
acreditamos. Ela é bem diferente dessa baseada em conteúdos
desconexos da realidade, que prioriza a razão em detrimento da
imaginação. Afinal o que é a razão num mundo de tantas
perspectivas? Enquanto professoras nos sentimos tais quais
equilibristas sobre uma corda bamba, num meio de um turbilhão
de sentimentos.
Perante esse cenário, corremos o risco de cair num niilismo e
numa apatia medíocre que prefere procurar culpados a se
posicionar. No entanto, preferimos acreditar que a afetividade, o
reconhecimento dos saberes e vivências que cada um traz consigo
e a colaboração entre todos os agentes do processo educativo, traz
sentido a nossa jornada.
Jornada esta, que, como professoras de artes da Secretaria de
Educação do Distrito Federal -SEEDF, vivenciamos em todas as
suas facetas, positivas e negativas. Muitas das questões que surgem
no nosso contexto, a saber o do ensino médio, é foco constante de
nossas reflexões e pesquisas.
Tanto é assim, que durante a realização do Mestrado
Profissional – PROFArtes, desenvolvemos nossos projetos de
forma independente descrevendo a ação docente em sala de aula.
Uma pesquisa partiu dos pressupostos da pedagogia de
projetos para o ensino de artes resultando na proposta pedagógica
215
interativa - Real e Virtual: um passeio pelos projetos e afetos de
uma professora de artes numa escola de ensino médio. E, a outra,
construiu sua base de defesa da importância do ensino do corpus
teórico da linguagem cênica, trabalho denominado Adolescentes
espectadores: um olhar teatral sobre o aluno do ensino médio.
Numa atitude aberta ao diálogo, e com o uso de um olhar
generoso sobre a prática uma da outra foi constatado que o que
pode parecer o recorrente embate teoria versus prática, era na
verdade uma teia de conhecimentos complexos que se
retroalimentavam. Descobrimos nesse processo a Pedagogia do
Caos e a Partitura da Revolta.
Definimos pedagogia como profissão ou exercício de ensino; e
caos como sistema dinâmico, de caráter informe, ilimitado e
indefinido. Na pedagogia do caos o processo importa mais que o
resultado final, você só aprende se se arriscar, riscos levam ao erro,
pedagogia do caos é a aceitação das errâncias, é proporcionar aos
estudantes a autonomia para escolherem seus projetos e decidirem
seus caminhos e resultados, por fim, a pedagogia do caos entende
que uma sala em movimento não é uma sala bagunçada.
E a partitura da revolta?
Partitura: notação musical; revolta: agitação, manifestação
coletiva. A partitura da revolta é a comparação metafórica entre a
grafia do som e do silêncio e a escolha do que dizer ou deixar de
dizer acerca dos conteúdos teatrais. É, na aula, aproximar o
pensamento de tempos passados ao pensamento contemporâneo, é
mostrar que os desejos, angústias e anseios que determinados
dramaturgos, diretores, encenadores e atores viveram, são mais
próximos de nós do que podemos imaginar.
A partitura da revolta canta o despertar da consciência dos
estudantes pela crítica, comparação e sensibilização. Ela jamais
acontece unilateralmente, trata-se de uma ação reflexiva que se dá
coletivamente.
Nessa busca constante de inovar em sala de aula sem jamais
perder as bases fundamentais de nosso campo de conhecimento,
um dos problemas vivenciado é a baixa quantidade de compilação
216
dos conteúdos específicos da linguagem cênica para o ensino
básico.
Veloso, propõe para as abordagens de ampliação do repertório
estético em sala de aula, um recorte metodológico para que a
linguagem teatral seja estudada a partir de 03 (três) conjuntos de
objetos indissociáveis:
1)um corpus teórico – metodológico composto por diálogos com diversas
possibilidades de aproximação dos saberes teatrais, partindo desde a história
e a historiografia até o s suportes da comunicação virtual como instrumento
de aprendizagem, passando pela Filosofia, pela Dramaturgia, pela Literatura
Dramática, pela crítica, pelos estudos estéticos e pela própria pedagogia do
teatro; 2) um conjunto de saberes e fazeres formados pelas tecnologias
aplicadas ao espetáculo, o desenho da cena3, tudo que dá sustentação visual à
cena; 3)e, por último, o terceiro grupo, composto pelos fazeres do corpo, os
de dentro do palco simbólico do espetáculo, e os de fora, do lugar do
espectador. (2016, p. 40-41)
Assim sendo, ainda no mestrado, foi decidido tornar acessível
o material produzido durante a prática cotidiana junto aos discentes
das escolas da atuação de cada uma. Assim nasceu, em 2019, o Caos
& Revolta, plataforma com o domínio https://caoserevolta.com, em
que são escritos textos, principalmente, sobre os conteúdos de artes
cênicas cobrados em processos seletivos tais como programa de
avaliação seriada da Universidade de Brasília – PAS/UnB e do exame
nacional do ensino médio – ENEM e dicas de técnicas de estudos, de
aulas, além de percepções pessoais sobre essa área movediça que é a
educação brasileira.
Trazer a produção de um conteúdo teórico sobre a arte teatral
tem sido um exercício de uma liberdade criadora. Mesmo que
exista a necessidade de abordar os temas cobrados em processos
seletivos, percebemos que essas matrizes de conteúdos podem se
revelar mais como uma bússola do que como uma algema.
3 Inserção das autoras, desde 2011 há uma linha de pesquisa a qual as autoras se
identificam que traduzem todos os elementos cenotécnicos (cenário, luz,
sonoplastia) como Desenho da Cena.
217
Os textos produzidos, têm características bem subjetivas e
pessoais, são retratos da atitude docente, das mesmas, em sala de
aula, são presentes traços de afetividade, nota-se o esforço para se
aproximar do estudante virtual, da mesma forma que se busca
interagir presencialmente.
O uso das linguagens das redes sociais, como memes e gifs,
entre outros, atrelados a uma pesquisa séria com bibliografia
diversa, é um recurso de interação humana, pois o site não é
pensado apenas para estudantes, mas também para os professores
terem um acesso rápido e confiável para elaboração de suas aulas.
Para a realização do projeto do site foi necessário estabelecer
um dia fixo de encontro para organização dos conteúdos a serem
estudados, com pesquisa em livros, artigos acadêmicos e trocas de
impressões sobre como abordar as temáticas levantadas.
Dentre os objetivos almejados, o principal é difundir e
expandir o entendimento do conteúdo do teatro. Pois o teatro é um
organismo vivo, não só como espetáculo teatral, mas sim
considerando toda a sua carga de produção humana, filosófica,
técnica e artística. Acompanhando seu contexto histórico e social
estamos diante da trajetória da evolução humana.
Trazer este conteúdo também pelo meio virtual é uma forma
de reivindicar o uso dos eletrônicos como mecanismo de
aprendizagem e transformá-los em aliados ao invés de demonizá-
los, a melhor forma de não perdemos espaço de atuação diante
dessa nova era informacional é humanizar o nosso trabalho
ampliando o entendimento de como se dá o fenômeno do
conhecimento, urge que estejamos atentos às necessidades
contemporâneas e saibamos aproveitá-las como ferramentas de
mais interação, trocas e disseminação de saberes.
Desenvolvimento
A questão do desenvolvimento como professoras ao lado da
busca da formação de sujeitos autônomos, que aceitem o jogo do
pensamento como criação, é ponto nevrálgico dos nossos anseios.
218
E aqui caberia falar que seguimos uma pedagogia da autonomia de
como propõe o grande patrono da educação brasileira, Paulo
Freire, ou uma pedagogia histórico-crítica que ultrapasse o módus
operandi normalizador e normatizador, como apresenta Demerval
Saviani.
Afinal encontramos em nossas práticas, reverberações não só
dos autores já citados, como outros. A indagação constante de
como podemos ajudar nossos estudantes a receberem seus
conteúdos com o filtro verdadeiramente crítico, nos aproxima
bastante das reflexões de Freire quando escreve:
É nesse sentido, por exemplo, que me aproximo de novo da questão da
inconclusão do ser humano, de sua inserção num permanente movimento de
procura, que rediscuto a curiosidade ingênua e a crítica, virando
epistemológica. (1996, p. 66)
A ideia da inconclusão do ser humano se aplica a todos
envolvidos no processo educativo, o professor quando participa,
por exemplo, de uma formação continuada está ciente de sua
incompletude e se dispõe a realizar um exercício que proporciona
a possibilidade de empatia, de uma troca de papeis. Numa pós-
graduação como o mestrado, vivenciamos um encontro individual
com o nosso aluno interior que não é nem um pouco diferente dos
nossos alunos do ensino básico.
O ato de dar nomes às nossas práticas docentes nada mais é
que a afirmação e apropriação da nossa forma-agir e dar a conhecer
como ela opera. É nesse intuito que surge a Pedagogia do Caos e a
Partitura da Revolta. Quando utilizamos a palavra pedagogia
estamos falando dos procedimentos utilizados para que o sujeito
em formação tenha acesso a um determinado conhecimento e de
seus construtos.
Como já dito, entendemos o caos como esse movimento em
que tudo pode acontecer, ele não é uma bagunça ou algo sem
sentido ou resultado, ele é apenas um campo aberto. Tem uma
219
proximidade com o pensamento deleuziano quando este diz que o
único objetivo dos professores é desencadear devires.
E a revolta se dá como um tipo de violência que ataca sobre os
saberes consolidados, trazendo um estranhamento saudável, que
conduz da apatia para o interesse, é a busca consciente de gerar um
conflito entre o pensamento racional e a realidade de alguma
situação presente na nossa vida neste momento e agora. É a
reafirmação de Freire (1996) quando diz que “formar é muito mais
do que puramente treinar o educando no desempenho de
destrezas”.
As possibilidades de aprendizagem
As práticas educacionais são cheias de dualidades ─
inflexível/flexível, ordem/desordem, prazer/desprazer, teoria/prática,
ensino formal/informal, escola/internet. Essas relações antagônicas
parecem já ter se estabelecido de tal forma que só é possível
compreender o ensino a partir de um único viés, a escola.
A discursão que propomos é abrir as possibilidades de
interações e de intercâmbio educacional e cultural que a internet
pode proporcionar ao espaço formal de aprendizagem. Cabe
ressaltar que não estamos defendendo aulas de internet no
ambiente escolar e não queremos fazer uma abordagem de uma
proposta em detrimento a outra, na verdade, estamos defendendo
as várias formas que o ensino pode ter e se tornar agregador, e
assim, diminuir essa visão reducionista das dualidades.
Vemos o ensino como um grande organismo vivo, que
depende de vários elementos para a sua eficácia. Morin (2005),
argumenta que a escola tradicional nos ensinou a separar e analisar,
porém não nos ensinou a relacionar e interligar. Essa forma de
pensar originou uma divisão do homem em três partes, razão,
corpo e emoção, ignorando-se que essas três funções são aspectos
indissociáveis e complexos.
220
Com efeito, o reinado do paradigma da ordem pela exclusão da desordem –
paradigma que se traduzia por uma concepção determinista e mecanicista
do universo – fragmentou-se em inúmeras partes. Nos diferentes domínios
do conhecimento as noções de ordem e desordem exigem cada vez mais
prontamente serem concebidas de forma complementar e não mais apenas
antagônica apesar de todas as dificuldades lógica que essa relação envolve.
(2005, p. 89)
Essa concepção cartesiana não corresponde e nem cabe mais
nas definições das aulas em geral e principalmente na de Arte na
contemporaneidade. Por meio da subjetividade dessa linguagem,
traduz-se a vida de variadas formas ─ a visão, compreensão e
fruição de um indivíduo é distinta dos demais e isso proporciona
tamanha liberdade que permite múltiplas verdades.
Na busca de uma nova dimensão qualitativa de ensino, onde
se coloca o ato educativo voltado para a autonomia do discente,
pois ele se torna capaz de praticar a sua autoaprendizagem, no seu
tempo e um campo de pesquisa para professores e interessados por
ampliar o seu conhecimento da história do teatro é que surgiu o
blog .
Acreditamos que a grande contribuição do caos&revolta é,
proporcionar o contato com a matéria-prima do conhecimento da
linguagem teatral, a informação, de modo ágil, descontraída e
menos onerosa para o leitor. É importante salientar que a
informação é possibilitada pelos vários meios tecnológicos e que
esse acesso repercute e transforma o campo educacional e, isso se
dá, por como era compreendido a aprendizagem antigamente. Os
centros acadêmicos eram o reduto da produção de conhecimento e
da informação.
Entretanto, na contemporaneidade o que se tem é a
descentralização do conhecimento, não partindo somente mais de
um lugar, seja ele as instituições acadêmicas ou os docentes. Nessa
concepção a tecnologia mudou a forma como o professor é visto e
possibilitou mudanças no comportamento desse profissional, o
tornando um mediador ou facilitador e não mais o responsável por
transferir o conhecimento. Assim como defende Freire:
221
Meu papel fundamental, ao falar com clareza sobre o objeto, é incitar o aluno
a fim de que ele, com os materiais que ofereço, produza a compreensão do
objeto em lugar de recebê-la na íntegra de mim. (1996, p. 118)
Quando se reconhece o docente como um colaborador
cognitivo, entra em cena, novas possibilidades para esse
profissional, principalmente nos campos: intelectual, emocional e
ético.
A busca por uma plataforma
Desgranges, em Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo,
explica que:
(...) o autor da obra pode ser entendido como o outro do espectador, que
ressignifica a realidade social, base comum a todos, possibilitando que o
contemplador veja a vida (e a si mesmo) “pelos olhos dos outros” (...) o
contemplador capta na obra a realidade na qual está inserido. (2011, p.95)
As palavras do autor demonstram o quanto a linguagem
artística cabe em diversos espaços e pode ser desenvolvida em
vários formatos. É essa multiplicidade que promove a relação de
aproximação entre a obra e a realidade do estudante, despertando
a sua curiosidade, seu desejo de aprender e o seu interesse pelo
novo.
O aluno não é diferente do espectador de teatro. Ele anseia por
histórias que o representem, que o reflita de alguma forma ao que
está sendo representado. Existe a necessidade presente de cada
estudante que quer se reconhecer na ação, buscando as suas
afetividades, indagações e até mesmo, suas indignações e
frustrações.
O conteúdo teórico, em sala de aula, colabora para a
interpretação da realidade, expande novas possibilidades de
questionamentos e conhecimentos, provocando no estudante um
sentimento de segurança. Assim vai se incorporando à sua
verdade, ao seu discurso, ao seu corpo.
222
Quando a sala de aula vira um ambiente seguro e confortável
para os alunos e alunas, torna-se também o seu lugar de fala, depois
se estendendo para fora da escola. Cada conteúdo teórico, histórico
e crítico advindo do campo teatral tem um poder enorme de
promover transformações, relacionar-se com os outros campos do
saber e enriquecer o repertório de conhecimentos cognitivos e
pessoais.
Cabe ressaltar que para entendimento do nosso olhar é preciso
antes, se desvencilhar do pensamento que a prática está
relacionada exclusivamente as dinâmicas e movimentos corporais.
A reivindicação do espaço do ensino teórico da linguagem cênica
para a educação básica não significa uma oposição a metodologia
prática, mas sim uma adição de significado ao termo “prática”.
Sendo uma metodologia de ensino que consegue contemplar, no
estudante, a construção de seu desenvolvimento potencial, a partir
de questionamentos que geram uma prática reflexiva embasada na
teoria teatral.
O desejo que pulsa e nos move enquanto docente é o de que
seja proporcionada aos estudantes uma abordagem menos
simplista sobre o conhecimento teatral, uma montagem teatral
pode revelar-se potencialmente engrandecedora, porém essa
montagem com embasamento teórico, constrói no estudante a
percepção de seu lugar de fala. Além de promover uma busca de
identidade advinda da reflexão que desencadeia num desejo de
transformação.
Considerações finais
Em tempos em que o celular pode ser considerado quase uma
extensão do corpo humano, a internet pode ser um caminho da
possibilidade de encontros. O surgimento das novas tecnologias,
muito associadas ao advento da computação, transformou a
relação no modo de adquirir os saberes produzidos pela sociedade.
O pensamento de que existem conhecimentos que são essenciais
para o desenvolvimento pessoal e da humanidade como um todo,
223
que devem ser acessíveis a todos os indivíduos é corrente em
diversos discursos.
Acredita-se ainda que só o conhecimento pode ajudar a
humanidade alcançar padrões aceitáveis de convivência e
solidariedade, culminando no respeito às liberdades fundamentais.
Embora, durante muito tempo essa ideia não passasse de teoria
sem aplicações na prática cotidiana, fato é que novos meios
tecnológicos tem se mostrado revolucionária nesta questão.
Quando pensamos em disponibilizar conteúdos sobre o teatro
na internet a primeira motivação foi buscar o diálogo e aprofundar
temas que nos são caros. Da mesma forma que Freire propaga que
“nossa atitude comprometida- e não neutra- diante da realidade
que buscamos conhecer, resulta num primeiro momento, de que o
conhecimento é processo que implica na ação – reflexão do homem
sobre o mundo.” (1982, p.97). Nós assumimos que o teatro é uma
linguagem que prima, constrói, cultiva, e incentiva a ação-reflexão.
Escrever no site tem ampliado nossos conceitos, e quanto mais
conceitos podemos articular, maior é o nosso mundo e maior é o
alcance da nossa consciência. Realmente acreditamos que a
facilidade com que se circula as informações pela internet bem
como a facilidade de troca, funciona como uma via de mão dupla
em que todos temos um mundo de conceito engrandecido também.
O teatro é vivo e acompanha a história da humanidade, por que
não acompanharia a de cada pessoa da contemporaneidade?
O advento das provas admissionais como o Programa de
Avaliação Seriada – PAS/UnB e o Exame Nacional do Ensino Médio
– ENEM de cobrarem questões afeitas à disciplina, exigiu um novo
tratamento sobre o conteúdo do teatro, o que nos levou a intenção
de tecer redes tanto com estudantes, como com outros professores
da área, ( e de outras que se interessem pelo campo aberto da
transdisciplinaridade). É certo que estes fatores tiveram um grande
peso para a existência do caos & revolta.
Quanto a produção do conteúdo, nos organizamos em
encontros semanais, no qual dividimos da seguinte forma: 1)
Revisão de literatura : levantamento do material de pesquisa,
224
debate e confronto de autores, e diálogo e percepção de como
tratamos determinado conteúdo em sala de aula; 2) escrita do texto;
3) pesquisa dos recursos multimídias e materiais mais próximos da
linguagem midiática das redes sociais, filmes, cultura pop e outros
e 4) Publicação e divulgação do post.
A escolha da pauta se apoia na matriz do PAS/UnB e do
ENEM, entretanto isso não significa que não tomemos a livre
iniciativa de abordar outros assuntos tais como técnicas de estudos,
divulgação dos projetos de artes desenvolvidos nas nossas escolas
e até mesmo discussões sobre o que pensamos sobre a educação, a
escola, e as políticas públicas voltadas para esta área.
Entendemos que nosso papel como educadoras vai além de
passar um conteúdo, consiste em mostrar como ele pode ter relação
com a vivência de cada estudante, a sala de aula é lugar por
excelência da vida cotidiana, lugar de criação e produção dos mais
diversos discursos e lugares de fala do universo de nossos alunos,
contudo a internet apresenta potência para ampliar o debate e
aprofundar o entendimento dos construtos teóricos do teatro como
linguagem.
REFERÊNCIAS
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nem tanto. A ditadura da mídia, São Paulo: Anita
Garibaldi/Associação Vermelho, 2009.
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revolta? Disponível em https://caoserevolta.com/2019/03/12/por-
que-caos-revolta/ Acesso em 21/05/2019.
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dialogismos – 4ª ed.- São Paulo: Hucitec, 2017.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos.
6ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1962.
225
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Paz e Terra, 1982.
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2004.
MORIN, Edgar. Educação e Complexidade: os sete saberes e outros
ensaios/ Edgar Morin; Maria da Conceição Almeida, Edgard de
Assis Carvalho, (orgs.) 3ª ed. São Paulo: Editora Cortez: 2005.
VELOSO, Graça. Os saberes da cena e o recorte da pedagogia do
Teatro: uma possibilidade metodológica. In: O teatro e suas
pedagogias: práticas e reflexões /Luciana Hartmann e Graça
Veloso, [organizadores] Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2016.
226
227
MATEMÁTICA APRENDE-SE BRINCANDO:
UMA PROPOSTA DE ENSINO
Eduardo Dias da Silva1
Leandro Américo Gomes Alves2
Introdução
Brincando se aprende ou aprendendo é que se brinca?
Começamos esse artigo com uma pergunta que de fato não
objetivamos uma resposta curta e direta e sim, mostrar que ao
ensinar matemática para crianças não podemos deixar de lado que
o brincar, as brincadeiras e os jogos fazem parte do processo de
aprender e também do ensinar. Pois, ao iniciar sua vida escolar, as crianças iniciam o processo de alfabetização
não só em sua língua materna, mas também na linguagem Matemática,
construindo o seu conhecimento segundo as diferentes etapas de
1 Doutorando em Literatura e Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade
de Brasília (UnB). Professor e Pedagogo na Educação Básica da Secretaria de
Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Pesquisador nos Grupos CNPq
FORPROLL e GIEL. E-mail: [email protected] 2 Graduado em Engenharia Civil (2018) pela Universidade Paulista (UNIP),
campus Brasília/DF e licenciado em Matemática pela FIAR (2018). E-mail:
228
desenvolvimento cognitivo. Sendo assim, um bom ensino nesse período é
fundamental (SILVA & MORAES, 2016, p. 192).
Ainda de acordo com esses autores, podemos perceber que a
utilização de técnicas lúdicas – jogos, brinquedos e brincadeiras
direcionadas pedagogicamente em sala de aula – pode estimular os
alunos à construção do pensamento lógico-matemático de forma
significativa e à convivência social, pois eles, ao atuar em equipe,
superam, pelo menos em parte, seu egocentrismo natural. Os jogos
pedagógicos, por exemplo, podem ser utilizados como estratégia
didática antes da apresentação de um novo conteúdo matemático,
com a finalidade de despertar o interesse dos alunos ou, no final,
para reforçar a aprendizagem.
O motivo norteador que nos impulsionou a pesquisar essa
temática é o fato de ser um futuro professor e gostar muito de
Matemática e de perceber diariamente que há crianças e
adolescentes com dificuldades diversas, principalmente em torno
do desenvolvimento do pensamento lógico-matemático, e o quanto
essas crianças e adolescentes trazem de conhecimento para
socializar nos ambientes escolares. Além disso, também
percebemos o quanto os professores podem transformar tal
conhecimento em ferramenta lúdica de uso pedagógico para o
desdobramento de habilidades lógicas. Sendo assim, acreditamos
que
a Educação Básica precisa proporcionar momentos prazerosos [...] que
abarquem todo o contexto familiar e social em que o aluno está envolvido,
potencializando a formação de um sujeito crítico e reflexivo, pois é necessário
que as práticas do professor em sala de aula satisfaçam as necessidades reais
do aluno, considerando-o participante ativo do seu processo de ensino-
aprendizagem (SILVA, 2015, p. 232).
As crianças já chegam ao ambiente escolar com um
conhecimento de mundo bem amplo, competindo às aulas e aos
professores sistematizarem esses dados com propostas
pedagógicas que atendam às necessidades específicas em relação à
229
apropriação da Matemática e suas tecnologias. Assim, buscamos
responder ao seguinte questionamento: de que maneira o brincar,
como recurso pedagógico a ser trabalhado no ambiente escolar,
pode contribuir para o ensino-aprendizagem da Matemática?
Visando alcançar os objetivos propostos foi feita uma pesquisa
exploratória, com vistas a proporcionar maior familiaridade com os
problemas referentes à aplicação das atividades lúdicas de
incentivo à Matemática dentro do ambiente escolar,
proporcionando uma maior visibilidade à temática. Este tipo de
pesquisa foi adotado, pois “é o que mais aprofunda o conhecimento
da realidade, porque explica a razão, o porquê das coisas” (GIL,
1993, p. 46). A pesquisa exploratória “apresenta descrições
fidedignas de uma situação, tentando descobrir as relações
existentes entre seus elementos” (ALMEIDA, 1996, p. 105). Gil
ainda esclarece que a pesquisa exploratória, na maioria dos casos,
envolve um “levantamento bibliográfico [e] pessoas que tiveram
experiências práticas com o problema pesquisado” (1993, p. 45).
Portanto, o estudo em tela caracteriza-se como uma pesquisa
qualitativa, de acordo com Bauer & Gaskell (2013), posto que
consiste na escolha correta de métodos e teorias oportunos, no
reconhecimento e na análise de diferentes perspectivas, nas
reflexões dos pesquisadores a respeito de sua pesquisa como parte
do processo de produção de conhecimento e na variedade de
abordagens e métodos.
Matemática aprende-se brincando: uma proposta de ensino
Ludicidade não é um termo facilmente dicionarizado.
Progressivamente, ele está sendo inventado, à medida que
compreendemos de maneira mais adequada o seu significado,
tanto no sentido conotativo (real), quanto em sua extensão
denotativa (o conjunto de experiências que podem ser abrangidas
por ele), como destaca Luckesi (2000; 2005; 2014). De acordo com
esse autor,
230
Ludicidade é compreendida como experiência interna de inteireza e
plenitude por parte do sujeito. Para ensinar ludicamente, o educador
necessita cuidar-se emocionalmente e, cognitivamente, adquirir as
habilidades necessárias para conduzir o ensino de tal forma que subsidie
uma aprendizagem lúdica (LUCKESI, 2014, p. 01).
O lúdico tem sua origem no Latim ludus, que significa jogo,
brinquedo, brincadeira. Mas, esta palavra não se refere apenas ao
jogar, ao brincar, ao movimento espontâneo, como relatado por
Moraes (2014) e Silva & Moraes (2016), já que passou a ser
reconhecido como traço essencial do comportamento humano,
deixando de ser simples sinônimo de jogo. Sendo assim,
as implicações da ludicidade extrapolaram os limites do brincar espontâneo,
transformando-se em uma necessidade básica da personalidade, do corpo e
da mente. O lúdico integra as atividades essenciais da dinâmica do ser
humano, caracterizando-se por sua espontaneidade funcional e pela
satisfação que outorga ao sujeito que dele participa (MORAES, 2014, p. 62).
Entendemos, nesse estudo, crianças como sujeitos
muldimensionais e complexos3 que aprendem dentro de um
processo interacional e transdisciplinar, como elucidado por Morin
(2002; 2003), Nicolescu (2001) e Silva (2017), pois,
O sujeito em sua multidimensionalidade, não mais o reduzindo a uma
hipertrofia cerebral, mas observando o que acontece em sua corporeidade,
em seu emocional, em sua imaginação, como algo importante e significativo
nos processos de construção do conhecimento. Um pensamento que resgata
a integração corpo e mente, pensamento/sentimento,
conhecimento/autoconhecimento e reconhecendo a importância da
flexibilidade corporal, mental e espiritual nos processos de construção do
3 Pensamento Complexo de Morin (1990; 2003), no qual a complexidade é o seu
conceito mais expressivo, é um princípio que permite ligar as coisas, os
fenômenos, os eventos, implicando, portanto, uma tessitura comum que coloca
como sendo inseparavelmente associados o indivíduo e o meio, a ordem e a
desordem, o sujeito e o objeto, o professor e o aluno e todos os demais tecidos
que regem os acontecimentos, as ações e as interações que tecem a trama da vida,
conforme Moraes (2014).
231
conhecimento, bem como das atividades mais sutis relacionadas à intuição,
à ética e à estética. É, portanto, um conhecimento que colabora para religar o
que antes estava separado, que percebe que dentro de cada um de nós existe
um microcosmo dialogando com os objetos do macrocosmo, com as
disciplinas constitutivas dos diferentes níveis de realidade que nos cercam
(MORAES, 2014, p. 60-61).
É trabalho de toda a sociedade prover e promover o ensino
lúdico da Matemática e com qualidade para crianças anteriormente
da obrigatoriedade escolar imposta por lei, pois o mundo atual é
caracterizado por um período de rápidas mudanças em diferentes
contextos sociais. As várias transformações têm (res)significado
novas formas de relacionamento, do trabalho e da vida social,
conforme apontam Cope e Kalantzis (2000; 2006). Sendo assim,
compreendemos que os ambientes escolares de Educação Básica,
dentre outros, são lugares de instrução e socialização dos
conhecimentos matemáticos.
Desse modo, a importância deste estudo é tornar conscientes
os professores e futuros professores de Matemática para crianças e
jovens sobre a utilização do lúdico no ensino-aprendizagem na
Educação Básica.
A Educação Básica, essa que almejamos ser prazerosa e
divertida, além de instrutiva, precisa ter profissionais engajados
em formação inicial e continuada para melhor exercer o papel de
mediadores na interação social educativa proporcionada pela
Matemática de forma lúdica no ensino-aprendizagem. Pois,
reverberando Paulo Freire,
não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar
das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do
outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina a aprender.
Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém (FREIRE, 1996, p. 25).
Mais que sugestões de atividades lúdicas, propomos
alternativas de ensinar Matemática na Educação Básica de forma
prazerosa e divertida. Não temos a pretensão de ditar o certo ou
232
errado no ensino da Matemática nessa pesquisa, embora saibamos
que
o componente lúdico faz parte da formação e do desenvolvimento do
ser humano, no que diz respeito à sua subjetividade e à sua relação
social com o seu meio. Quando pensamos em lúdico, logo nos vêm à
mente palavras como diversão, compartilhamento, alegria e tantas
outras. O lúdico, também, está diretamente relacionado às crianças,
já que a especialidade da criança é brincar, entretanto entendemos
que ele traz consigo algumas dimensões que nos permitem entendê-
lo como elemento indispensável para o processo educativo (MELO,
2013, p. 44).
Ao planejar atividades lúdicas (jogos, brincadeiras,
brinquedos) no ensino da Matemática na Educação Básica, é
fundamental que os professores tenham como ponto de partida a
realidade, os interesses e as necessidades das crianças. Nessa
perspectiva, Almeida (1992), Silva (2014; 2017) e Silva & Moraes
(2016) afirmam que é necessário se conscientizar de que, ao
desenvolver o conteúdo, por intermédio do ato de brincar, não
significa que está ocorrendo um descaso com o ensino-
aprendizagem do conteúdo por parte das crianças, já que, em uma
atividade lúdica, não importa somente o resultado, mas a ação
vivenciada. A extensão do lúdico é a ludicidade, a qual faz parte do
processo no ato lúdico. De acordo com Santos (2011, p. 12),
A ludicidade é uma necessidade do ser humano em qualquer idade e não
pode ser vista apenas como diversão. O desenvolvimento do aspecto lúdico
facilita a aprendizagem, o desenvolvimento pessoal, social e cultural,
colabora para uma boa saúde mental, prepara para um estado interior fértil,
facilita os processos de socialização, comunicação, expressão e construção do
conhecimento.
A ludicidade no ensino da Matemática na Educação Básica
possibilita situações de aprendizagem que contribuem para o
desenvolvimento integral da criança, mas deve haver uma
dosagem entre a utilização do lúdico instrumental, isto é, a
233
brincadeira com a finalidade de atingir objetivos escolares, e
também a forma de brincar espontaneamente, envolvendo o prazer
e o entretenimento, neste último, o lúdico essencial, segundo Maria
et al. (2009), Silva (2014; 2017) e Silva & Moraes (2016).
Perrotti (1990), Silva (2014; 2017) e Silva & Moraes (2016)
explicam a diferença entre o lúdico instrumental e o essencial. No
primeiro, os jogos, os brinquedos e as brincadeiras são
compreendidos enquanto recursos motivadores, simples
instrumentos para a realização de objetivos que podem ser
educativos, publicitários ou de outras naturezas. No segundo, os
jogos, os brinquedos e as brincadeiras são vistos como atitudes
essenciais, como uma categoria que não necessita de uma
justificativa externa, alheia a ela mesma para se validar. No
primeiro caso, estão centralizados na produtividade, têm caráter
utilitário; no segundo, a produtividade é o próprio processo de
brincar, uma vez que, nessa concepção, as atividades lúdicas são
intrinsecamente educativas, são essenciais enquanto formas de
humanização.
Segundo Santin (1996) e Silva (2017), o significado de
ludicidade surge da própria palavra relacionada à liberdade,
criatividade, imaginação, participação, interação, autonomia, além
de outras qualificações que podem ser atribuídas a uma infinita
riqueza que há nela mesma, possibilitando, assim, um ensino da
Matemática de forma prazerosa e divertida às crianças e aos jovens
na Educação Básica, uma vez que,
na atividade lúdica, o que mais importa é o momento vivido, o processo, as
experiências, as sensações, a atenção focada, o grau de satisfação obtido e
não apenas o resultado de quem a vivencia. Conforme a intensidade e o grau
de percepção da experiência lúdica vivida, tal experiência leva ao encontro
consigo mesmo e com o outro, ao desenvolvimento da fantasia e do
imaginário, a viver momentos de ressignificação e percepção mais intensa e
apurada, de autoconhecimento e reconhecimento do outro, de cuidar de si e
poder olhar para o outro e reconhecê-lo. Enfim, são momentos de vida
intensos e significativos (MORAES, 2014 p. 64).
234
No decorrer deste artigo, os teóricos como Santos, Moraes,
Silva, Luckesi, Melo, Morin, Freire, dentre outros, contribuíram
muito no sentido de conduzir as discussões, evidenciando a
importância do ensino lúdico da Matemática como atividade
funcional da comunicação e do ensino-aprendizagem, bem como
deixando explícita a relevância da mediação docente no processo
de seleção e sistematização do raciocínio lógico-matemático. O
contato sistêmico da criança e do jovem com variados métodos bem
como com uma proposta pedagógica que considere o contexto
social da criança e do jovem como um momento de construção de
habilidades e estratégias possibilitará avanços positivos no
processo de desenvolvimento do ensino da Matemática.
Considerações Finais
Ao final desse artigo, concluímos que o ensino lúdico da
Matemática é o caminho para a transformação, desde que
trabalhado em todas as suas dimensões, pois só assim garantirá
aspectos positivos na formação das crianças e jovens, formando
seres pensantes que questionam o mundo real em que vivem. O
ambiente escolar necessita cumprir esse ideal que tanto deixa a
desejar. Portanto, como os professores estão sempre em formação,
é necessário que estes façam uma reflexão sobre como vem sendo
trabalhada a Matemática em sala de aula. Com certeza essa reflexão
irá contribuir para abrir caminho à conscientização do objetivo
maior da leitura, que é o de formar pessoas autênticas, autônomas,
críticas, dentre outros, como elucidado por Silva (2015; 2017).
Buscamos, ao longo dessa pesquisa qualitativa, caminhos para
que o ensino lúdico da Matemática na Educação Básica ocorra de
maneira engajada, por meio de atividades lúdicas que considerem
as crianças como sujeitos do processo no ensino-aprendizagem,
através de uma abordagem interacional de ensino, na qual o
professor adquira os conhecimentos indispensáveis desta práxis, e
que ela seja colocada em ação nos ambientes escolares,
235
principalmente com crianças, pois, pela própria faixa etária,
necessitam aprender de forma lúdica.
Portanto, o lúdico pode agir diretamente na afetividade das
crianças, no sentido de contribuir para que o processo de ensino-
aprendizagem da Matemática ocorra de maneira mais envolvente
e livre de tensões. Com isso, esse processo acontecerá de forma
mais descontraída e divertida, de modo que a interação matemática
fluirá espontânea e naturalmente. Contudo, o lúdico deve ocorrer
de forma sistemática e objetiva, visando sempre à apropriação do
raciocínio lógico-matemático e, também, para o desenvolvimento
da comunicação nela através da interação social de forma lúdica.
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238
239
O ENSINO DE HISTÓRIA NO SÉCULO XXI:
REFLEXÕES E PRÁTICAS
Pâmela Pongan1
Introdução
A História foi implantada como disciplina nas escolas
brasileiras no século XIX, estruturada nos moldes positivistas e
conceituada na Ciência Moderna. Resumindo-se assim, ao estudo
dos “grandes homens” e seus “grandes atos”, usando tempo linear
através da noção de evolução por etapas. Além de a concepção
positivista tender para o ensino do passado com verdade única,
vendo os documentos como comprovantes dessa verdade.
A partir das reflexões e regulamentações presentes das
Diretrizes Curriculares e Leis que passaram a reger o ensino
nacional, o ensino de História passou a ter por objetivo formar
cidadãos, a partir de uma função política, como já acontecia em
outros países. Partindo disso, ensinar História está diretamente
relacionada com a compreensão da realidade de vida de cada
aluno, pois ao compreender sua própria experiência, ele conseguirá
entender os acontecimentos ocorridos na vida de tantas pessoas ao
longo do tempo.
1 Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade de Passo Fundo/RS – PPGH/UPF.
240
Com as transformações ocorridas na sociedade
contemporânea e com as novas perspectivas historiográficas,
surgiu a necessidade de utilizar uma nova metodologia no ensino
de História, com diversificados conteúdos e métodos. Partindo
disso, esse artigo busca refletir a respeito das práticas no ensino de
História presentes no século XXI.
O ensino de História
O ensino de História foi visto até a década de 1970 como linha
linear e cronológica que estava muito longe dos alunos. O que
causava certo desconforto, pois estes não estavam preparados para
trabalhar com concepções abstratas de tempo e noções históricas.
A partir de 1970 surgiram novas teorias em relação ao ensino
de história, acreditando que com essa nova perspectiva, as crianças
e os jovens pudessem, sim, lidar com a temporalidade e outros
conceitos históricos fundamentais, e, portanto, a história.
Surgiu então a perspectiva da Educação Histórica:
A Educação Histórica se preocupa com a busca de respostas referentes ao
desenvolvimento do pensamento histórico e a formação da consciência
histórica de crianças e jovens. Essa perspectiva parte do entendimento de que
a História é uma ciência particular, que não se limita a compreender a
explicação e a narrativa sobre o passado, mas possui uma natureza
multiperspectivada, ou seja, contempla as múltiplas temporalidades
pautadas nas experiências históricas desses sujeitos. Parte também dos
referências epistemológicos da ciência da História como orientadores e
organizadores teórico-metodológicos da investigação histórica (SCHMIDT,
1998, p.13).
Os estudantes passaram a ser compreendidos como agentes de
sua própria formação, com ideias históricas prévias sobre a
História e com várias experiências, assim como o professor passou
a ter um papel de investigador constante, necessitando
problematizar suas aulas em diversas situações.
Então é a partir da percepção de presente de cada um que o
conhecimento do passado acontece. Não interessa saber História, e
241
sim o uso que se faz dela. “A compreensão do passado deve ser
utilizada para orientação temporal dos sujeitos, ou seja, para
SOBANSKI (2009) é através da consciência histórica que se embasa
a preocupação com o saber histórico, com o pensar historicamente
de crianças e jovens, bem como de professores. Chamamos esta
capacidade de ler o mundo historicamente de literacia histórica.
Literacia histórica quer dizer, saber “ler” a informação, debater e selecionar
mensagens, fundamentalmente é preciso saber interpretar fontes, analisar e
selecionar pontos de vista, comunicar sob diversas formas, apostar em
metodologias que envolvam os alunos no ato de pensar historicamente
(SOBANSKI, 2009, p.12).
O professor tem de desenvolver uma atividade questionadora
para conhecer aquilo que o aluno já sabe e desafiá-lo e acompanhá-
lo na construção de sua aprendizagem. Seu trabalho de
investigação se baseia sobre a utilização de diferentes fontes e
narrativas históricas com o objetivo de promover nos alunos a
competência histórica de compreender que a História é construída
com diversas perspectivas.
Os professores de história e o novo desafio de ensinar no século
XXI
Na perspectiva de Educação Histórica, a existência das ideias
prévias revela uma grande preocupação de como crianças e jovens
fazem a leitura histórica do mundo. Essas ideias prévias são
memórias que os sujeitos têm de suas experiências com o passado.
A partir dessa concepção o historiador Jörn Rüssen
compreendeu as ideias prévias como protonarrativas:
O quotidiano das crianças e dos jovens está cheio de elementos fragmentados
das histórias, de alusões a histórias, de parcelas de memória, de “narrativas
abreviadas”. A compreensão desses fragmentos narrativos, portanto, da
protonarrativas, é possível a partir da consciência da estrutura de uma
narrativa histórica: alguém conta a alguém uma história, na qual o passado
242
é tornado presente, de forma que possa ser compreendido, e o futuro é
esperado (RÜSSEN, 2001, p.159).
Mais uma vez o professor possui um papel significativo, pois
tem uma relação muito importante relacionando as ideias prévias
(protonarrativas) e a leitura de mundo que devem realizar nas
aulas. Por isso, o professor de História Henrique Theobald defende
a ideia de que os professores de História devem ser entendidos
como intelectuais e, portanto, produtores do conhecimento.
O viés do professor como intelectual transformador, o qual se busca
compreender aqui, vai além da perspectiva que assume sua função política
na construção da cidadania. Trata-se também de se levar em conta o
professor que investiga elementos de sua prática e domina o processo de
produção do conhecimento com que lida, além de transformar o ensino
(THEONBALD, 2007, p.47).
Outros trabalhos, como o da pesquisadora Olga Magalhães,
vêm fomentar a importância de reelaborar a formação dos docentes
de História, dando a estes competências básicas que lhe permitam
compreender locais e momentos de reflexão, principalmente em
torno da cognição histórica situada, para que esta realize uma real
interação dos conhecimentos teóricos e o desenvolvimento da
prática docente.
A cognição situada na História se preocupa em investigar quais seriam os
mecanismos de uma aprendizagem criativa e autônoma, que possam
contribuir para que os alunos transformações em conhecimentos,
apropriando-se das ideias históricas de forma mais complexa. O pressuposto
é buscar a construção de uma literacia histórica, ou seja, da realização do
processo de formação histórica de cada um (SCHMIDT, 2009, p 38)
.
Um problema de cunho prático para a pratica da docência em
história é a seleção dos conteúdos significativos em história, pois
podemos afirmar que as noções de significância histórica são
construções pessoais, culturais, políticas e historiográficas
transmitidas de forma diversificada aos membros de uma
sociedade. Temos dois conceitos de significância histórica:
243
No primeiro conceito de Peter Seixas (1994 apud Chaves, 2006,
p. 28):
Primeiro, os historiadores avaliam se o fenômeno afetou um grande número
de pessoas por um longo período de tempo. Segundo, estabelecemos sua
relação com outros fenômenos históricos. Terceiro, estabelecem a sua relação
com o presente, e também, com suas próprias vidas.
No segundo conceito de Keyth Barton e L.S. Levstik (2001,
apud CHAVES, 2006) apresentam uma conceituação de caráter
antropológico, pois entendem que as ideias referentes à
significação histórica:
São construções culturais transmitidas aos membros da sociedade através de
várias fontes de informação. Essas fontes produzem versões do passado que
possibilitam a produção de inferências históricas tais como a construção de
ideias e imagens acerca do passado e considera as produções subjetivas,
sociais, culturais, políticas e historiográficas comunicadas de formas
variadas aos membros da sociedade através de várias fontes de informação
– a família, a escola, as mídias, os museus (p. 34).
É assim que essa perspectiva de ensino determina aos
professores certas competências para dar aulas de História, como
contextualizar, problematizar o passado e criar pressuposições a
respeito do presente.
A consciência histórica, portanto, emerge do encontro do
pensamento histórico científico com o pensamento histórico geral.
Dessa formatemos uma historiografia que colaborou para
construirmos uma determinada consciência. Aqui está o papel da
Educação Histórica.
Por uma história prazerosa de ensinar e aprender
A grande causa de dúvidas da eficácia educacional dos livros
e a utilidade dos professores como agentes de ensino e
consequentemente das propostas curriculares ligadas às realidades
244
nacional e local está nas mudanças políticas e econômicas ocorridas
no final do século XX, a difusão das novas tecnologias globais.
Pesquisadores veem com preocupação que os alunos troquem
a investigação bibliográfica por informações superficiais dos sites
de pesquisa, em uma substituição do livro quando deveria ser um
complemento. O desafio é desenvolver uma prática de ensino de
História adequada aos novos tempos e também a esses novos
alunos, onde tenhamos um conteúdo rico, socialmente responsável
e sem o professor passar por ingênuo ou nostálgico.
O grande desafio que se apresenta neste novo milênio é adequar nosso olhar
às exigências do mundo real sem sermos sugados pela onda neoliberal que
parece estar empolgando corações e mentes. É preciso, nesse momento,
mostrar que é possível desenvolver uma prática de ensino de História
adequada aos novos tempos (e alunos): rica de conteúdo, socialmente
responsável e sem ingenuidade e nostalgia. Historiador/professor sem utopia
é cronista e, sem conteúdo, nem cronista pode ser. PINSKY, 2010, p. 19).
E nesse ponto o papel do professor de História é o de se
conscientizar de sua responsabilidade social perante esses sujeitos
históricos e ajudá-los a compreender e melhorar o mundo em que
vivem. E para isso mais do que o livro, esse professor precisa ter
conteúdo, precisa ser um assíduo leitor, pesquisador, motivador,
que tome as questões sociais e culturais como referência das
problemáticas humanas e trabalhe temas ligados a desigualdades
sociais, raciais, sexuais, diferenças culturais, sem, entretanto,
distorcer o acontecido.
E nesse universo despertar o interesse do aluno com
demonstração na atualidade de coisas cronologicamente remotas
como a situação das mulheres na Idade Média, a insatisfação dos
plebeus na Roma Antiga, as aspirações ambíguas dos burgueses no
século XVIII, conceitos de democracia, cidadania, práticas como a
manifestação da religiosidade, reconheçam o preconceito, até
mesmo o uso e abuso da história a longo do tempo como poder
emanado por grupos políticos, nações e facções.
245
Para vencer esses novos desafios, Pinsky (2010), sugere o
trabalho integrado entre a História social e a História das
Mentalidades e do Cotidiano, onde a primeira buscaria a percepção
das relações sociais a outra privilegiaria cortes temáticos. Para que
o aluno possa sentir a História como algo próximo a ele.
Assim, não vemos uma incompatibilidade entre a História Social e a História
das Mentalidades e do Cotidiano. Na verdade, as duas abordagens não
apenas não se opõem necessariamente, como se complementam. A
abordagem da corrente da História Social busca a percepção das relações
sociais, do papel histórico dos indivíduos e dos limites e possibilidades de
cada contexto e processo histórico. A das Mentalidades privilegia cortes
temáticos. Frequentemente, a primeira busca a floresta; a segunda, a árvore;
uma, o telescópio; a outra, o microscópio. Bem utilizados, ambos os
procedimentos são recomendáveis. Se trabalhados de forma integrada,
chega-se aos melhores dos mundos, olha-se a partir de diferentes pontos de
vista. Além disso, por meio desses olhares, poderá o professor (re)aproximar
o alunos do estudo da História (PINSK, 2010, p.27)
Portanto, diferentes recortes da História permitem que os
alunos abram enormes horizontes que podem acolher,
inicialmente, sua curiosidade, depois, sua análise e, finalmente, sua
identificação com essa “gente como a gente” que construiu o
processo histórico do qual ele mesmo faz parte.
Como selecionar os conteúdos de História?
Primeiramente, devemos ter em mente que o ensino da
história deve ter como objetivo auxiliar o aluno a pensar
historicamente, ou seja, ter a capacidade de relacionar a experiência
humana com a vida prática de cada sujeito, transitando entre
diferentes argumentos, e interpretando o passado seguindo os
métodos da ciência da história.
A história [...] contribui em primeiro lugar para entendermos o mundo
presente. Como em uma cidade coexistem através da arquitetura, das
crenças, dos mitos e superstições do passado e presente. A história ajudaria
a decifrar esta paisagem. A História também ajudaria a entender que além
246
de tudo o que está gravado na pedra ou sepultado debaixo da terra as
atitudes e os comportamentos humanos perante a doença, o sofrimento, a
morte, as idades da vida não são eternos. Pertencem à temporalidade, têm
um princípio e um fim. A história é a arte de aprender que o que é nem
sempre foi, que que o que não existe pôde alguma vez existir; que o novo não
o é forçosamente e que, ao contrário, o que consideramos por vezes eterno é
muito recente. Esta noção permite situarmo-nos no tempo, relativizar o
acontecimento, descobrir as linhas de continuidade e identificar as rupturas.
(WINOCK apud MATTOZZI, 1998, p.26)
Por isso, assim, como o saber da história se preocupa com
grupos humanos, suas relações entre si e com o meio, o ensino da
história precisa interagir com os alunos, sua história e seu papel
enquanto sujeitos históricos.
Nesse contexto, entra o papel do professor, que é responsável
pela seleção dos conteúdos, manuais e livros a serem utilizados em
sala de aula.
As definições de conteúdos históricos escolares envolvem também as
demandas relacionadas aos poderes constituídos, nesse sentido definir o que
se ensina na disciplina de história caracteriza-se antes de qualquer coisa por
disputas em torno da memória e constituição da nação e de seus sujeitos.
Cada sociedade marca e reproduz passados ancorados na história que os
contam. Todas as culturas necessitam de um passado, mas nem sempre este
passado é aquele referendado pela investigação histórica. (CAINELLI, 2010,
p.20)
Tudo que é ensinado na escola sobre história é um
conhecimento produzido por historiadores difundidos através dos
currículos e livros didáticos. Nesse sentido, aumenta a
responsabilidade do professor em relação a seleção do que ensinar,
pois há uma imensidão de possibilidades de escolhas, mas será que
tudo é história?
Segundo Hobsbawn (1998, p.71),
[...] todo estudo histórico, portanto, implica uma seleção minúscula, de
algumas coisas da infinidade de atividades humanas do passado, e aquilo
que afetou essas atividades. Mas não há nenhum critério geral aceito para se
fazer tal seleção.
247
Por isso, a tarefa de selecionar conteúdos é muito complexa,
sendo assim, o livro didático passa a ser visto como orientador e
até definidor dos conteúdos a serem abordados. Com isso, a prática
em sala de aula acaba sendo definida e resumida por ele, pois as
dificuldades em seletar outros materiais, ou pela falta de tempo
mesmo, faz com que os professores optem pela facilidade do livro
didático.
Entretanto, não se pode esquecer que mesmo o livro sendo um
propagador de conhecimento legitimo e autorizado pela ciência
histórica, também é visto como formador de ideias. Pois além de
conter os conteúdos apresentados em programas e currículos, já os
traz selecionados e ordenados na sequência didática sugestiva.
Porém, não possui nada a respeito da história local e como
trabalha-la.
A história loca tem sido indicada como necessária para o ensino por
possibilitar a compreensão do entorno do aluno, identificando o passado
sempre presente nos vários espaços de convivência – escola, casa,
comunidade, trabalho, lazer – e igualmente por situar os problemas
significativos da história do presente. (BITTENCOURT, 2004, p.168)
Assim, a história local permite ao professor desenvolver nos
alunos a capacidade de associar a história com seu mundo,
tornando significativa sua aprendizagem.
Desta forma, é necessário ao professor ter em mente, no
momento de fazer a escolha dos conteúdos, a perspectiva sobre o
pensamento histórico que pretende repassar na formação de seus
alunos. Sem esquecer que a narrativa é, ainda, um dos métodos
mais eficazes na aprendizagem do ensino de história.
Nesse sentido, Mattozzi (1998, p.28), afirma que “a essência do
ensino seria a constituição de narrativas concebidas pela descrição,
análise e explicação.” Outro princípio importante no ensino da
história é o levantamento de hipóteses. Esses métodos têm como
objetivo ensinar história criando experiências incomparáveis,
mesmo que complexas, visando a construção de um pensamento
248
histórico consciente, deixando para traz o ensino através de
repetição.
É através do desenvolvimento do pensamento histórico que os
alunos passarão a ver a História como algo significativo, que tem
relevância no seu passado e presente, pois lhes permitirá
questionar e analisar seu entorno a partir de uma visão crítica e
consciente.
O professor deve apresentar ao aluno que “aprender história
seria: discutir evidencias, levantar hipóteses, dialogar com os
sujeitos, os tempos e os espaços históricos. Olhar para o outro em
tempos e espaços diversos” (CAINELLI, 2010, p.27). É por isso que
a seleção de conteúdos é tão importante, pois são eles que
possibilitam construir a criticidade nos alunos, a partir do
levantamento de questões diante dos temas propostos em
discussão na sala de aula.
Especificamente por isso, o professor não deve deixar suas
aulas serem resumidas e orientadas exclusivamente pelo livro
didático e pelos currículo e programas, que visam apenas
desenvolver habilidades didáticas ao invés de construir o
pensamento histórico consciente, pois se resumem a selecionar,
sintetizar, resumir e comparar. Enquanto a aprendizagem
relacionada ao desenvolvimento do pensamento histórico permite
e exige deduções, levantamento de hipóteses, narrativas e uma
compreensão total. Desta maneira, o ensino de história tem muito
a melhorar nas salas de aula brasileiras, a partir da construção do
pensamento histórico primeiramente nos professores, para depois,
consequentemente, nos alunos.
O uso dos livros didáticos e paradidáticos no ensino de História
Atualmente, o livro didático é, nas escolas brasileiras, a
principal fonte de estudo dos alunos, sendo determinante no
processo de ensino-aprendizagem. Por isso, se tornou alvo de
pesquisas e debates realizadas por inúmeros pesquisadores que
buscam saber qual o caminho que ele deve seguir: ser abolido,
249
complementado e/ou diversificado para melhor a qualidade do
processo de ensino.
O livro didático é, de fato, o principal veiculador de conhecimentos
sistematizados, o produto cultural de maior divulgação entre os brasileiros
que têm acesso à educação escolar. Alguns educadores, ao se referirem ao
uso recorrente do livro didático, afirmam: “Ruim com ele, pior sem ele”.
(FONSECA, 2003, p.49)
É assim no ensino de História também. O livro didático de
História é amplamente utilizado, principalmente nos anos finais do
ensino fundamental e no ensino médio. Isso é consequência da
estreita relação entre as mudanças ocorridas no ensino de História
no século XX e o desenvolvimento da indústria cultural.
As mudanças na produção do conhecimento chegam à escola básica e ao
público em geral não só pelos novos currículos, mas, sobretudo, pelo
material de difusão, produto dos meios de comunicação de massa: livros
didáticos e paradidáticos, jornais, revistas, programas de TV, filmes e outros.
Assim, pensar o ensino de história e os materiais didáticos implica refletir
sobre as relações entre indústria cultural, Estado, universidade e ensino
fundamental e médio. (FONSECA, 2003, p.50)
É dever do Estado repensar o papel da escola, assim como lhe
cabe a produção e difusão do conhecimento. No Brasil, isso gerou
uma a massificação do ensino, como consequência da alta demanda
por vagas na rede escolar pública, principalmente nos anos 60 e 70.
Assim, o Estado acabou fomentando a indústria cultural,
associando-a diretamente “[...] ao processo de democratização,
ampliação ou massificação do ensino” (FONSECA, 2003, p.50).
Ao observarmos os currículos de História, constatamos que a
partir de 1970, eles se materializaram nos livros didáticos. Neste
período, verificou-se uma admissão em massa de livros,
impulsionadas pelo Estado e pela indústria editorial brasileira, que
estava em crescimento por conta dos incentivos estatais que
recebia. “O livro didático assumiu, assim, a forma do currículo e do
saber nas escolas” (FONSECA, 2003, p.50).
250
Com o grande apoio estatal à indústria editorial, iniciada nos
governos pós-1964, o livro passou a ser uma das mercadorias mais
vendidas, resultando em sua massificação.
Portanto, a indústria cultural e a educação escolar, sobretudo, a partir da
reforma educacional de 1971, estiveram intimamente relacionadas, tendo
como objetivo o projeto de massificação do ensino e da cultura. Esse projeto
beneficiava o modelo de desenvolvimento, os ideais de segurança nacional e
correspondia aos interesses de multinacionais no Brasil e na América Latina.
Os vínculos entre o Estado, o capital e a educação não se resumiam ao campo
da editoração de livros didáticos; seus mecanismos conseguiram abarcar
vários setores da vida cultural do país. (FONSECA, 2003, p.52)
Foi com essa política de incentivos estatais na produção de
livros didáticos, que elevou a indústria editorial brasileira entre as
maiores do mundo. Entretanto, isso não garantiu um aumento na
qualidade do ensino, pois o Brasil permaneceu entre os países
pobres e atrasados quanto ao seu índice educacional. Isso se deve,
principalmente, ao fato de que essa relação estabelecida na
produção e venda dos livros permitiu uma difusão de saberes e
conhecimentos históricos específicos, abordando-os sempre de
forma simplificada.
O processo de simplificação no âmbito da difusão implica tornar definitivas,
institucionalizadas e legitimadas pela sociedade determinadas visões e
explicações históricas. Essas representações transmitidas simplificadamente
trazem consigo a marca da exclusão. O processo da exclusão inicia-se no
social, em que “alguns atos” são escolhidos e “outros” não, de acordo com
os critérios políticos. Na academia, o trabalho do historiador pode tanto
excluir como recuperar ou resgatar “atos” excluídos; no livro didático o
processo de exclusão de ações e sujeitos faz parte da lógica da didatização.
(FONSECA, 2003, p.53)
Já nos anos 80, o crescimento de pesquisas no campo da
História e os movimentos de reflexão sobre o ensino ocasionaram
uma mudança na posição da indústria cultural em relação ao
processo de ensino. Esta passou a participar de debates
251
acadêmicos, aliando-se a setores intelectuais, o que resultou em
uma adequação e renovação de seus materiais.
Essa nova relação ocasionou mudanças significativas,
principalmente no ensino fundamental e médio, quanto ao ensino
de História. Assim, enquanto se expandiam as pesquisas históricas,
iniciou-se publicações alternativas em diversos campos a respeito
de experiências no ensino de história. E o mercado editorial soube
aproveitar essas novidades.
Constatamos um duplo movimento de renovação. O primeiro tratava de
rever e aperfeiçoar o livro didático de história, ajustando aquela mercadoria
altamente lucrativa aos novos interesses dos consumidores. Conceitos e
explicações foram renovados de acordo com as novas bibliografias. Foram
propostas mudanças na linguagem e na forma de apresentação, com a
inclusão de alternativas como a seleção de documentos escritos, fotos,
desenhos e seleção de textos de outros autores. Um outro movimento foi o
lançamento de novas coleções visando atingir o leitor médio. Os livros dessas
coleções, denominados para didáticos, tornaram-se um novo campo para as
publicações dos trabalhos acadêmicos. A nova produção historiográfica,
abordando temas até então pouco estudados, tornou-se mercadoria de fácil
aceitação no mercado dos livros. (FONSECA, 2003, p.54)
A expansão das publicações de livros paradidáticos foi
consequência da busca por parte dos especialistas, antes voltados
somente ao meio acadêmico, em compartilhar o saber histórico,
através de associações com as editoras. Porém, mesmo os livros
paradidáticos tendo diferentes tipos e enfoques, não superou a
produção e venda dos livros didáticos. Isso porque o mercado
consumidor dos livros didáticos é o Estado, o que implica
diretamente no nível de produção, circulação e consumo.
Com a preocupação atual da sociedade em desenvolver uma
educação básica de qualidade, é indispensável o aperfeiçoamento
da política nacional do livro didático. Um método é avaliar
constantemente e permanentemente a produção já disponível no
mercado.
252
O Estado e as escolas públicas e privadas, os maiores compradores, devem
exigir seus direitos como consumidores exigentes, propondo mudanças
qualitativas às editoras, inclusive exigindo revisão ou a retirada do mercado
dos livros desatualizados, dos que contenham erros conceituais e dos que
veiculem preconceitos raciais, políticos e religiosos. A política do Ministério
da Educação de avaliação permanente da qualidade das obras e coleções
possibilita oferecer aos professores e às escolas em geral, opções e critérios
para a escolha do material mais adequado às diferentes realidades.
(FONSECA, 2003, p.55)
Em segundo, é necessário pensar em como ensinar história nas
salas de aula deixando o uso exclusivo do livro didático. Logo, isso
requer o uso de textos e obras alternativas, pois é praticamente
impossível construir um conhecimento histórico sem texto escrito,
pois essa é a principal fonte histórica no processo de ensino-
aprendizagem. Essa atitude exigirá do professor uma dedicação de
tempo maior na preparação e organização dos textos, pois o uso de
uma só fonte, seja ela o livro didático ou qualquer outra obra, de
forma exclusiva, acaba simplificando o currículo e o conhecimento
abordado em sala de aula. Além de que esta metodologia acabará
desenvolvendo nos alunos uma postura auto excludente, com uma
concepção de “verdade absoluta”, e uma visão de livro didático
como fonte inquestionável.
Complementar o livro didático e diversificar as fontes historiográficas, como
os paradidáticos em sala de aula, são opções que não descartam ou
consideram o livro como mero “bode expiatório”, culpado por todos os
males do ensino, mas partem de um pressuposto básico: o livro didático é
uma das fontes de conhecimento histórico e, como toda e qualquer fonte,
possui uma historicidade e chama a si inúmeros questionamentos.
(FONSECA, 2003, p.56)
E este tem sido o maior desafio dos professores atualmente,
diversificar as fontes para adotar em sala de aula, superando a
exclusividade do livro didático. Isto exige uma postura crítica
diante dos conteúdos presentes nas diversas publicações
veiculadas disponíveis. “Analisando os livros didáticos de história
utilizados atualmente percebe-se que a simplificação de temas
253
amplos em fatos isolados, principal característica, permanece”
(FONSECA, 2003, p.56)
É claro que ao longo do tempo, com todas essas mudanças, o
livro didático adquiriu algumas características importantes.
Fonseca (2003) destaca, como principais renovações, “[...] a
introdução de novos temas, ligados à história das mentalidades do
cotidiano. O livro didático deixou de se dedicar quase que
exclusivamente aos fatos da política institucional e alargou o
campo do conhecimento histórico ensinado nas escolas. Segundo,
a tendência de não mais organizar os conteúdos de história do
Brasil, história da América e história geral isoladamente, mas
articulados ao longo de quatro séries, sem recorrer às categorias
dos ‘modos de produção’ como articuladores”.
Com esse processo de mudanças e renovações na produção de
livros didáticos e paradidáticos fica nítido que, nos últimos anos,
foi a indústria editorial que definiu o que ensinar e como ensinar
em história nas escolas brasileiras. Por isso, cabe ao professor de
história estabelecer diversas abordagens que contribuam para a
formação de alunos com pensamento crítico e reflexivo, buscando
construir uma concepção e prática de cidadania e democracia. Pois
é o exercício da crítica a principal ferramenta da história.
Reflexões em relação a prática docente na disciplina de História
no século XIX
Nos últimos anos do século XX, iniciaram-se debates a respeito
do ensino de História nas escolas brasileiras, a partir do processo
de discussão e modificação curricular. A partir deles levantaram-se
inúmeras propostas de renovação das metodologias, dos temas, da
organização e dos problemas do ensino que são visualizados nas
salas de aula. É através de todo esse processo de mudança, que a
História e a geografia para a ser valorizadas como áreas especificas
do conhecimento.
254
Do movimento historiográfico e educacional é possível apreender uma nova
configuração do ensino de história. Houve uma ampliação dos objetos de
estudo, dos temas, dos problemas, das fontes históricas utilizadas em salas
de aula. Os referenciais teórico-metodológicos são diversificados; questões
até então debatidas apenas no ensino de graduação chegam ao ensino médio
e fundamental, mediadas pela ação pedagógica de professores que não se
contentam com a reprodução dos velhos manuais. (FONSECA, 2003, p.243)
Atualmente, existem no Brasil, inúmeras formas de ensinar e
aprender História. O que é positivo, pois há disponível diversas
concepções teóricas, ideológicas, políticas e metodológicas quanto
ao ensino de História. Pluralidade essa, permitida pelas novas
pesquisas historiográficas, pelas renovações nos currículos, nos
PCNs, assim como, pelas experiências dos próprios professores,
que vieram para contrapor a história tradicional.
Entretanto, é nítido que tudo que o aluno aprende ou não, bem
como aquilo que o professor ensina ou deixa de ensinar, vai além
do que é apresentado pelos currículos e livros didáticos. Por isso, é
muito importante um diálogo baseado na criticidade entre os
sujeitos ligados a construção dos saberes históricos em todos os
espaços, sejam educativos, sociais e culturais.
Acreditamos que o professor de história não opera no vazio. Os saberes
históricos, os valores culturais e políticos são transmitidos e reconstruídos na
escola por sujeitos históricos que trazem consigo um conjunto de crenças,
significados, valores, atitudes e comportamentos adquiridos nos vários
espaços. Isso implica a necessidade de nós, professores, incorporarmos no
processo de ensino outras fontes de saber histórico, tais como o cinema, a TV,
os quadrinhos, a literatura, a imprensa, as múltiplas vozes dos cidadãos e os
acontecimentos cotidianos. O professor, ao diversificar as fontes e dinamizar
a prática de ensino, democratiza o acesso ao saber, possibilita o confronto e
o debate de diferentes visões, estimula a incorporação e o estudo da
complexidade da cultura e da pesquisa histórica. (FONSECA, 2003, p.244)
Nesse sentido, as mudanças só acontecerão de forma
significativa e positiva, quando acompanhadas de melhorias nas
condições de trabalho docente e na formação inicial e continuada
dos professores de toda a rede pública e privada do Brasil.
255
Entretanto, a formação vai além de cursos e debates. Envolve
também as experiências, as ações desenvolvidas ao longo do tempo
do trabalho docente. A ação e os saberes de cada professor são
reconstruídos ao longo do tempo ganhando novos significados a
partir da observação e reflexão sobre os resultados obtidos. Isso
exige uma postura crítica, sensibilidade e reflexão permanentes por
parte dos professores a respeito de suas ações no cotidiano escolar,
visando rever as práticas e saberes.
“[...] ensinar história no atual contexto sociopolítico e cultural
nos conduz à retomada de uma velha questão: o papel formativo
do ensino de história” (FONSECA, 2003, p.245). Não devemos
esquecer do papel da história quanto disciplina escolar, que é a
formação do indivíduo, este que é um cidadão em uma sociedade
composta por diferenças e contradições.
Isso requer assumir o ofício de professor como uma forma de luta política e
cultural. A relação entre ensino e aprendizagem deve ser um convite e um
desafio para alunos e professores cruzarem, ou mesmo subverterem as
fronteiras impostas entre os diferentes grupos sociais e culturas, entre a
teoria e a prática, a política e o cotidiano, a história, a arte e a vida. Como?
Certamente um dos caminhos é buscar renovar, cotidianamente, nossas
práticas dentro de fora da escola. É procurando agir como cidadãos, sujeitos
da história e do conhecimento. É criando possibilidades de mudanças.
(FONSECA, 2003, p.245)
Porém, a força da tradicional concepção de ensino da História
resiste, inibindo os processos de mudança, de reconstrução do
saber. Nessa prática o professor acaba cristalizando ideias, valores
e fatos como verdades absolutas, dificultando o desenvolvimento
da criticidade no aluno. Isso gera uma metodologia baseada no
professor como reprodutor de conteúdos e o aluno como mero
espectador passivo. Essa ação, segundo Fonseca (2003, p.245) acaba
[...] perpetuando a chamada ‘memória dos vencedores’, via ‘história oficial’.
E, ao mesmo tempo em que dificultava a compreensão da história como
experiência humana de diversos sujeitos e grupos, era um limite ao
desenvolvimento de novas práticas pedagógicas que pudessem romper com
a forma tradicional de ensinar e aprender história na sala de aula.
256
Em contrapartida, hoje, é nítida a percepção de que a escola
vai além disso, pois é um espaço de debates e reflexões. Logo, se
torna um lugar com distintas possibilidades de ensinar e aprender.
Nesse sentido, se faz necessário uma nova concepção de história,
de seu ensino e aprendizagem, através da construção de novas
práticas educativas.
Por isso, devemos ver o ensino de História como formador da
consciência histórica nos sujeitos, que permita a compreensão do
“eu”, a afirmação quanto indivíduo no tempo, no espaço, na
sociedade em que vive, onde assume um papel ativo capaz de
construir e transformar.
Considerações Finais
Entretanto, para que o aluno compreenda e interprete o
passado de forma adequada, é necessário que o professor tenha
uma consciência de seu modo de perceber o passado, evitando o
anacronismo, dando ao ensino da História uma função formativa
para a formação de uma cidadania crítica e atuante. Para assim,
auxiliar o aluno a se sentir um sujeito histórico, que tem um papel
ativo na sociedade.
É fundamental que o professor, durante todo o processo de
ensino-aprendizagem, leve em consideração os saberes históricos
que o aluno adquiriu através de suas relações familiares, sociais e
escolares. Mesmo estes conhecimentos não sistematizados são
importantes para a aprendizagem do aluno, através da relação que
ele mesmo fará entre esses conhecimentos e os novos que irá
adquirindo na escola, buscando reformular esses conceitos, além
de buscar aperfeiçoar, adquirir e descobrir novas habilidades.
Para efetivar isso, é necessário que o professor busque
conhecer a história de cada aluno, além de saber suas dificuldades.
Isso se fará através da relação professor-aluno durante o ano letivo,
onde o professor criará situações que oportunizem a construção
desse conhecimento.
257
Assim o professor pode transpor as atividades e conteúdos
abordados em sala de aula com a realidade dos alunos, pois
conhecendo seus alunos, poderá interagir e dialogar com eles de
forma clara e segura quanto ao êxito de sua metodologia. Enquanto
cabe a escola “buscar viabilizar, socializar e sistematizar os
conhecimentos dos alunos, ampliando suas potencialidades de
manejo e aquisição do saber elaborado” (BRODBECK, 2012, p.18).
Pois, assim como em outras áreas do conhecimento, aprender
História é construir e dominar conceitos, que se ampliam e ganham
novos significados através de uma relação dinâmica com outros
conceitos que são apresentados, afim de desenvolver um
pensamento crítico acerca dos acontecimentos passados e
presentes.
REFERÊNCIAS
BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e
métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
BRODBECK, Marta de Souza Lima. Vivenciando a história:
metodologia de ensino da história. Curitiba: Base Editorial, 2012.
CHAVES, Edilson A. A música caipira em aulas de História:
questões e possibilidades. Curitiba: UFPR, 2006.
CAINELLI, Marlene. História. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o
Ensino)
FONSECA, S. G. Didática e prática de ensino de história:
experiências, reflexões e aprendizados. São Paulo: Papirus, 2003.
HOBSBAWN, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
MATTOZZI, Ivo. A história ensinada: educação cívica, educação
social ou formação cognitiva. In: Revista O Estudo da História, n.3.
Actas do Congresso O ensino de História: problemas da didática e
do saber histórico. Braga: Universidade do Minho, 1998, p.23-50.
258
PINSKY, Jaime. História na sala de aula: conceitos, práticas e
propostas. São Paulo: Contexto, 2010.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da História: os fundamentos
da ciência histórica.
SCHIMIDT, Maria A. A formação do professor de história e o
cotidiano da sala de aula. In: BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber
histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998.
SOBANSKI, Adriane de Q. (Org.) Ensinar e aprender História:
histórias em quadrinhos e canções. Curitiba, Base Editorial, 2009.
THEOBALD, Henrique R. A experiência de professores com
ideias históricas: o caso do “Grupo Araucária”. Curitiba: UFPR,
2007.
259
PERCORRENDO O CAMINHO DAS PEDRAS:
GRUPOS FOCAIS NA PESQUISA DE FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE INGLÊS
Fernando Silvério de Lima1
Considerações Iniciais
“Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca
inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no
mundo, com o mundo e com os outros…” (Paulo Freire,
Pedagogia do Oprimido, 1970)
Este capítulo está organizado em uma combinação de duas
vozes. Como autor, buscarei resgatar as experiências de uma
professora de inglês em formação em seus relatos quando ela ainda
buscava a formação em Letras. Mas antes disso, começarei pela
minha voz. Enquanto formador de professores de inglês como
língua estrangeira, um dos aspectos que mais desperta minha
1 Professor Adjunto de Língua Inglesa no Departamento de Letras da
Universidade Federal de Ouro Preto (DELET – ICHS/UFOP). Doutor em
Estudos Linguísticos pela UNESP de São José do Rio Preto, com estágio doutoral
na Universidade da Califórnia, San Diego, pelo Laboratory of Comparative
Human Cognition (LCHC/UCSD). Bolsista FAPESP (Processo 2013/04431-6 e
Processo BEPE 2015/01495-9). Mestre em Letras pela Universidade Federal de
Viçosa (UFV). [email protected]
260
atenção é o processo que os alunos de Letras vivenciam da chegada
ao curso até sua conclusão (os altos e baixos). Dessa forma, como
proposta de pesquisa, estudei a trajetória de formação inicial de três
alunas de Letras (Português e Inglês) de uma universidade pública
estadual do sul do Brasil (cf. LIMA, 2017). Ao longo de
aproximadamente quatro anos, as estudantes compartilharam suas
histórias em sessões de grupos focais. Enquanto um recurso
metodológico, grupos focais são formados por pessoas reunidas
para conversar sobre diferentes tópicos ou expor suas opiniões
pessoais sobre diferentes assuntos (a este respeito veja BARBOUR,
2009; BARBOUR; SCHOSTAK, 2005; BLOOR, FRANKLAND,
THOMAS; ROBSON, 2001; GOEBERT; ROSENTHAL, 2002;
HENNIK, 2007, 2014; PUCHTA; POTTER, 2004).
Na pesquisa qualitativa, esse instrumento de pesquisa tem
sido utilizado com intuito de agregar ou reunir pessoas com
experiências semelhantes ou diferentes para compartilhar histórias
e promover reflexões e conscientização sobre questões variadas.
Em meus interesses de pesquisa, comecei a trabalhar com grupos
focais compostos por professores em formação para tentar
compreender o sentido que eles e elas construíam sobre o processo
de desenvolvimento profissional e as mudanças características
deste período (cf. LIMA, 2017, 2018, 2019b). Conversar com estes
professores, no entanto, não se limitava apenas ao âmbito das
histórias vividas no ensino superior e das primeiras experiências
de trabalho. As histórias eram atravessadas também pela vida
pessoal do sujeito como tais eventos impactavam a formação inicial
das professoras de inglês.
É neste momento que a segunda voz emerge neste capítulo.
Uma das participantes irá compartilhar algumas de suas histórias,
enquanto comentarei os excertos para ilustrar as experiências de
utilizar grupos focais na pesquisa de professores em formação. O
ponto central dessa discussão será refletir sobre o potencial dos
grupos focais para ter acesso ao conjunto de questões tão
particulares que envolvem o desenvolvimento da carreira docente
261
e que emergem nas discussões promovidas durantes as sessões de
grupo focal.
Considerações sobre a formação de professores para os dias
atuais
No Brasil há uma longa tradição no campo de formação
docente centrada na experimentação, ou seja, na busca de
formadores e educadores de encontrar as alternativas mais
apropriadas para lidar com desafios mais recorrentes como a
indisciplina, o baixo rendimento escolar, falta de condições
adequadas para o ensino, apenas para ilustrar alguns exemplos.
Nas últimas décadas, um dos paradigmas mais influentes na
formação de professores foi a chamada abordagem reflexiva. Os
pesquisadores brasileiros tiveram acesso aos trabalhos seminais
The Reflective practicioner (SCHÖN, 1983) e Reflective Teaching
(ZEICHNER; LISTON, 1996) a partir de suas colaborações com
pesquisadores portugueses. A noção de reflexão se tornou um
aspecto central nos estudos pedagógicos nacionais, ainda que os
professores tenham sentido dificuldade de compreender o que
realmente significava ser “reflexivo” em face de um contexto de
trabalho que oferecia inúmeros tipos de desafios.
A noção de reflexão, no entanto, não era nova no país. Durante
décadas, os trabalhos de Freire (1967, 1970, 1979) eram enfáticos
sobre a necessidade de direcionar o ensino como forma de
promover mudança social (maior número de pessoas alfabetizadas,
desenvolver a leitura crítica da realidade, dentre outros exemplos).
Freire concebia a autonomia como ponto chave para transformar a
sociedade e isto seria alcançado por meio da prática educacional.
Essa premissa é fundamental na obra freiriana, mas nem sempre é
compreendida pelos leitores brasileiros ou a sociedade em geral
Esta mudança, no entanto, não dependia apenas de formar alunos
autônomos, mas de possuir professores preparados para ensinar
estes alunos a ler o mundo criticamente e questionar as diferentes
leituras da vida em sociedade.
262
Dentre os diferentes referenciais teóricos disponíveis, a
formação de professores de línguas emergiu como um campo
promissor buscando definir as especificidades de preparar as
pessoas para ensinar outras línguas. Com a popularidade do termo
reflexão, no entanto, os estudiosos pareciam ser mais influenciados
pelas ciências cognitivas e pelo construtivismo piagetiano (FACCI,
2004). Refletir era um processo de construção de conhecimento por
parte do indivíduo que contava com suas competências cognitivas.
Tanto o contexto quanto outras questões socioculturais (interações
com outras pessoas, o ambiente, dentre outros) eram de alguma
forma desconsideradas ou tratadas parcialmente.
Ao mesmo tempo, desde a década de 1980, os trabalhos de L.S
Vygotsky tornaram-se disponíveis traduzidos primeiro de
manuscritos de outras traduções em inglês e espanhol e
posteriormente nos primeiros livros (VYGOTSKY, 1989, 1991). Na
Linguística Aplicada brasileira, Vygotsky interessou leitores
motivados pelos ventos de mudança que vieram com a
fortalecimento do ensino comunicativo (foco na interação e não
apenas nas estruturas gramaticais). Os professores de línguas
passaram a questionar o aspecto tradicional de ensino que
preconizava a aprendizagem consciente das regras gramaticais
como forma de aprender a falar um idioma. Discussões sobre o
papel do contexto, da interação com fins autênticos emergiram
como alternativa para superar os desafios de como fazer os
aprendizes se comunicarem. Neste cenário, os trabalhos de
Vygotsky, que na época eram recentemente traduzidos,
apareceram como referências quando o ponto central era a
interação.
Dentre diferentes razões que justificam o impacto da leitura
das obras vygotskianas no ocidente, é o fato de que ela “revela os
traços de um projeto científico sensível aos problemas sociais, que
via na ciência a possibilidade de encontrar os caminhos mais
apropriados de transformação das pessoas por práticas culturais
como a educação" (LIMA, 2018, p.138). Muito embora suas ideias
sobre o desenvolvimento histórico-cultural da mente influenciam
263
diversos estudos até os dias atuais, pesquisas baseadas numa
perspectiva vygotkiana são ainda recentes (veja LIMA, 2012 para
alguns exemplos no exterior e LIMA, 2017, 2019a para uma revisão
de trabalhos no Brasil). Alguns pesquisadores consideraram a
teoria da atividade como possível arcabouço teórico (em especial as
interpretações de Y. Engeström) para conduzir pesquisas
interventivas, todavia, outros autores buscam um resgate das obras
e ideias originais de Vygotsky, no intuito de não se distanciar de
suas bases teórico-metodológicas.
Diferentemente de tradições científicas como a da América do
Norte (COLE, 1985; COLE; SCRIBNER, 1978; WERTSCH, 1985) e
da Europa (ELLIS; EDWARDS; SMAGORINSKY, 2010), onde a
teoria histórico-cultural encontrou diferentes leitores da Educação,
Psicologia e Linguística, somente nas últimas décadas no Brasil é
que a pesquisa de formação de professores de línguas ofereceu
mais estudos com ênfase histórico-cultural. A respeito dessa
perspectiva teórica, vale destacar que ela “considera o papel da
comunicação na constituição do desenvolvimento humano e sua
vida social, e assim, ensinar e aprender uma nova língua são
processos edificados por meio da interação (LIMA, 2019a, p.61)”.
Dessa forma, interação não é simples troca de palavras, mas
construção de sentidos.
Em linhas gerais, este é um pequeno esboço de mudanças que
ocorreram no campo de formação. Neste capítulo, não tenho como
objetivo pormenorizar todos os detalhes, mas busquei situar o
cenário a partir do qual minha voz emerge contemporaneamente:
da pesquisa de formação de professores em diálogo com Vygotsky.
Nesta tendência atual de resgatar as obras originais com foco no
papel da instrução (ensino-aprendizagem) é que este estudo se
situa, em diálogo com outros estudos já realizados (LIMA, 2017,
2018, 2019a, 2019b). Como parte da comunidade de linguistas
aplicados interessados no processo de tornar-se professor, busquei
encontrar formas de estudar um aspecto pessoal na perspectiva dos
sujeitos e tal interesse me levou aos estudos dos grupos focais, que
será foco da próxima sessão.
264
Grupos Focais na pesquisa de formação de professores
Apesar de sua popularidade nas ciências humanas, grupos
focais tiveram seu pioneirismo na pesquisa mercadológica. Esses
grupos consistiam na reunião de pessoas para testar ou observar a
percepção das pessoas sobre um produto ou marcada que poderia
ser lançado para consumo. Inicialmente, as empresas utilizavam os
grupos como forma de uma amostragem de público, a partir de
perfis que pudessem representar o possível público alvo de um
determinado produto. O retorno dos participantes durante a sessão
(opiniões, julgamentos, avaliações e críticas) era observado a partir
do potencial do produto ou se o mesmo necessitava de
reformulações para ir ao encontro do desejo de consumo de seus
clientes. Já na esfera pública os grupos focais emergiram nas
pesquisas aplicadas e como sugere Hennik (2014, p.14), a
“[i]nformação dos grupos focais é geralmente usada para projetar
melhorar, ou avaliar um serviço público, tais como um programa
social, política pública ou estratégia de marketing social”. Como se
observa, este recurso é aplicável aos mais diferentes contextos.
Em um olhar retrospectivo, a década de 1980 trouxe grandes
mudanças nas ciências humanas e mais especificamente na
expansão metodológica das investigações qualitativas de áreas
como Educação e Ciências Sociais (CZARNIAWSKA, 2004;
ELLIOT, 2005; HENNIK, 2007, 2014). Segundo Barkhuizen, Benson
e Chick (2014), o interesse pelas histórias pessoais nas pesquisas
ficou conhecido como a virada narrativa. As pesquisas atentaram
mais para a dimensão subjetiva da experiência humana (BRUNER,
2010) e como estes significados se relacionavam ao que as pessoas
viviam. Como os grupos também possibilitavam esses tipos de
dados, sua combinação com as narrativas tornou-se comum.
Considerando o interesse por outras áreas, vale a ressalva de
Hennik (2014, p.12), segundo a qual “várias disciplinas
acrescentaram suas próprias adaptações específicas às discussões
de grupos focais e advogam por sua própria abordagem específica
265
ao contexto de usar o método”. A flexibilidade dos grupos neste
caso favoreceu sua aceitação por diferentes pesquisadores.
Além dos instrumentos tradicionais como questionários e
entrevistas, mais pesquisas incorporaram as narrativas
(CLANDININ, 2015; ELLIOT, 2005) e os grupos focais (BARBOUR,
2009; BARBOUR; SCHOSTAK, 2005; BLOOR, FRANKLAND,
THOMAS; ROBSON, 2001; GOEBERT; ROSENTHAL, 2002;
HENNIK, 2007, 2014; PUCHTA; POTTER, 2004). Em especial, os
grupos focais se destacam pela gama metodológica de geração de
dados (de breves julgamentos até histórias pessoais) pois
possibilitam, dentre tantos aspectos:
Explorar tópicos sobre o que é pouco sabido ou onde questões não estão
claras.
Explorar comportamentos ou crenças específicas e as circunstâncias em que
elas ocorrem.
Avaliar um serviço, programa ou intervenção e compreender as razões para
seu sucesso ou fracasso.
Planejar um levantamento de dados ou estudo experimental identificando
questões, terminologia, ou componentes para inclusão.
Adquirir diversidade de experiências e perspectivas acerca do tópico
estudado.
Compreender o contexto, cultural ou normas culturais que cercam os
problemas de pesquisa, pois a moderação social pode distinguir
comportamento típico do incomum.
Compreender os processos de grupo (por exemplo, a tomada de decisão)
observando como os participantes discutem uma questão, influenciam uns
aos outros, ou decidem por uma estratégia de ação. (HENNIK, 2014, p.16).
Partindo dessa caracterização, duas razões podem ser
apontadas para o potencial dos grupos nas pesquisas qualitativas.
Em primeiro lugar, os grupos focais criam um espaço confortável
para compartilhamento de histórias, mesmo entre pessoas
desconhecidas. Considerando que os professores possuem seus
próprios desafios e suas limitações profissionais, reuni-los para
discussões retoma o aspecto original dos grupos focais (BLOOR;
FRANKLAND; THOMAS; ROBSON, 2001; BARBOUR;
SCHOSTAK, 2005; GOEBERT; ROSENTHAL, 2002; HENNIK,
266
2007; PUCHTA; POTTER, 2004) que é a oportunidade de falar
sobre questões diversas, mesmo que eles não se conheçam.
Em segundo lugar, além dos tópicos semelhantes, as pessoas
selecionadas para compor os grupos focais podem se identificar
por outros traços. Considere, por exemplo, um grupo formado por
participantes que atuam no ensino de inglês do ensino
fundamental. Diferentes níveis de experiência (professores em
início de carreira, professores com anos de carreira) gerariam
conversas sobre tópicos muito específicos para aquele grupo, e essa
especificidade é conhecida como composição de grupos pré-
existentes.
Tendo em vista esse panorama, considerei o uso de grupos
focais para pesquisar as histórias narradas por professoras em
formação. Para ter acesso a esse grupo de questões pessoais de cada
participante, as inseguranças e os medos, era necessário um
instrumento metodológico que favorecesse a liberdade do
indivíduo de expressar opiniões. Considerando que nem sempre os
professores em formação encontram espaço para falar
informalmente sobre a vivência da licenciatura, encontrei nos
grupos focais a alternativa para favorecer o ambiente seguro para
contar as histórias, contando com apoio de outras pessoas que
também compreendiam o que cada participante vivia.
Trajetórias em construção: apresentando a professora Sarah
As narrativas que aqui serão apresentadas fazem parte de um
projeto de pesquisa desenvolvido entre 2012 e 2015 que tinha como
objetivo compreender como professores de inglês lidam com as
mudanças que constituem o processo de formação inicial (cf.
LIMA, 2017). O estudo se caracteriza como longitudinal, uma vez
que o tempo mínimo de conclusão do curso de Letras que as
participantes estudavam era de aproximadamente quatro anos. A
metodologia adequada para este estudo era a pesquisa narrativa,
ou seja, o estudo da experiência humana narrativizada. Meu
interesse pela construção de sentido pelos participantes me levou
267
ao estudo das narrativas orais (histórias contadas) e a sensibilidade
dessas histórias a serem compartilhadas me levaram aos grupos
focais. Uma vez que os aspectos metodológicos estavam definidos,
foi necessário convidar os participantes.
Enquanto professor formador, eu estava em contato com
diferentes alunos de graduação, dessa forma, convidei três alunas
do curso de Letras que, na época estavam no primeiro ano de curso
(primeiro e segundo período). Uma vez que assinaram os termos
de consentimento e escolheram nomes fictícios (Julia, Amanda e
Sarah) para ser usado na pesquisa, as participantes contribuíram
com suas histórias até o fim da graduação. Por questões de espaço,
neste artigo considerarei os relatos da participante Sarah e iniciarei
com um preâmbulo narrativo. A perspectiva das demais
participantes estão disponíveis em outros trabalhos (LIMA, 2017,
2018).
Sarah recorda aprender inglês pela primeira vez no jardim de
infância. Alguns anos mais tarde, por volta dos oito anos de idade,
ela começou um curso de inglês em uma escola de idiomas, mas
desistiu meses depois por desinteresse, algo que explica ter
acontecido por ser muito jovem na época. Durante o ensino médio,
suas matérias favoritas eram a língua inglesa e a literatura. Este
interesse pessoal motivou seu ingresso no ensino superior e na
licenciatura em Letras. No entanto, apesar de gostar muito da
língua inglesa, ela reconhece que chegou ao curso com baixa
proficiência.
Enquanto um contexto sociocultural, a licenciatura introduziu
diferentes práticas culturais para familiarizá-la com a profissão.
Sarah chegou com suas próprias ideias do que era ensinar inglês e
as expectativas da futura carreira. Em seguida, estudou teorias e
conceitos de campos como Educação, Psicologia e Linguística
Aplicada e partir das aulas foi avaliada sobre como compreendia
tais conceitos. Nas experiências em sala e demais atividades, Sarah
estudou com professores que ofereciam ferramentas pedagógicas
que mediavam sua trajetória. Da escrita de diários pessoais,
ensaios, relatórios, artigos, dentre outros tipos de ferramentas, ela
268
ia em busca da formação em Letras lidando com diferentes
desafios. Para se manter no ensino superior, ela trabalhava durante
os dois períodos do dia conciliando os horários com suas aulas
noturnas.
Além dos desafios já antecipados, comuns ao aluno
universitário ingressante, outros problemas emergiram e ela não se
sentia confortável em pedir ajuda de seus professores com receio
de que eles interpretassem sua dificuldade como sinal de fraqueza.
Como parte do projeto de pesquisa, ela estava em contato com
outras duas colegas e comigo. Sarah aproveitava as sessões de
grupo focal para compartilhar suas angústias e encontrou um
espaço onde sentia que não seria julgada ou avaliada por suas
opiniões. Este é o ponto central deste capítulo, explorar as lições
que foram aprendidas ao conduzir grupos focais com futuros
professores de inglês e como eles utilizavam o espaço criado para
compartilhar histórias. Dessa forma, as próximas sessões
detalharão as lições aprendidas pela experiência de poder
conversar com essas alunas. A primeira delas é como os grupos
focais incentivam histórias que normalmente seriam silenciadas e a
segunda como os grupos se caracterizavam como espaço
terapêutico de interações.
Compartilhando histórias de experiência: o que o curso não
preparou
Uma das primeiras lições que aprendi com grupos focais
realizados com professores de inglês em formação é o específico
“espaço conversacional” (ELLIOT, 2005, p.10) que eles criam. Os
grupos focais foram originalmente criados para a pesquisa
mercadológica (BARBOUR, 2009; BARBOUR; SCHOSTAK, 2005;
BLOOR, FRANKLAND, THOMAS; ROBSON, 2001; GOEBERT;
ROSENTHAL, 2002; HENNIK, 2007, 2014; PUCHTA; POTTER,
2004) para verificar como o público reagiria aos novos produtos de
diferentes marcas. Campos das ciências humanas como a
Linguística e a Educação introduziram essa ferramenta
269
metodológica como alternativa qualitativa para estudar histórias
privadas e pessoais (HENNIK, 2007) ao reunir pessoas para
discutir temas distintos.
No processo de tornar-se um professor de línguas, três
estudantes de Letras se reuniam para falar sobre as experiências
enquanto elas aconteciam. Na vinheta a seguir, Sarah comenta com
o grupo suas primeiras experiências profissionais que surgiram na
época da faculdade. As escolas buscavam professores temporários
para contratos de curta duração e considerando que, naquela
época, Sarah tinha completado metade de seus créditos, ela poderia
ser contratada para ensinar turmas do ensino fundamental.
Vinheta 1
[Contexto: Sarah está comentando sobre seu trabalho como professora temporária. Ela
foi contratada por um período de seis meses para ensinar língua inglesa em duas escolas,
substituindo uma colega que estava afastada. Ela está descrevendo para o pesquisador
os desafios que encontrou nas diferentes escolas]
PESQUISADOR: Sarah, e você que ficou com contrato aberto, como que ficou?
SARAH: Então, eu continuo nas turmas, só que esse ano eu não estou no ensino
médio. Só fundamental por enquanto. Aí no colégio A eu tenho três turmas,
sexto, sétimo e oitavo. E no colégio B eu tenho oitavo e nono. Só que assim, são
dois colégios diferentes, porque o Olavo é um colégio de superação. Então
querendo ou não, se o aluno sabe ou não [o conteúdo] você precisa dar um jeito
para o aluno subir [as notas].
PESQUISADOR: E o que é um colégio de superação?
SARAH: É aquele colégio que não pode ter um nível de reprovação alto. Se
tiver um nível de reprovação alto dá problema.
PESQUISADOR: Problema pra quem? Pra vocês?
SARAH: Pro colégio todo. Pra equipe pedagógica e pra direção. Porque já tem
muita desistência. É aquele programa de evasão. Aí é um colégio de superação,
tem que ser um colégio que dá resultado.
PESQUISADOR: Então vocês recebem no começo esse tipo de informação?
270
SARAH: Tem que dar resultado. Agora no colégio B já é outro caso. Lá é um
colégio normal e se o aluno está indo mal... Esses dias o núcleo regional mandou
uma carta para todos os colégios. Como eu trabalho em dois colégios eu li a
mesma carta. [Ela dizia que] os alunos estavam com muitas notas baixas e que
teria que ser feito um gráfico pela equipe pedagógica e pela direção para
mostrar o que estava acontecendo. E falava para nós professores melhorarmos
nossa metodologia. Então a culpa é sempre do professor.
[Grupo Focal Ano 2 - Fase 1: participante Sarah]
Sarah narra as experiências de ser introduzida aos desafios reais
da profissão que os professores em exercício lidam diariamente no
sistema público brasileiro. Ela foi designada para trabalhar em duas
escolas diferentes (colégio A e B) e logo percebeu as especificidades
que diferenciavam um contexto do outro. Na escola de superação
(colégio A) ela aprendeu sobre os altos níveis de evasão escolar e as
pressões que a equipe escolar inteira sentiu (especialmente os
professores) de diminuir esses índices. Enquanto isso, na escola
modelo (colégio B), ela não se deparou com o mesmo problema, mas
notou que o desempenho insatisfatório dos alunos já tinha chamado
a atenção das autoridades da secretaria de educação2. Apesar de tais
diferenças, ela percebe que em ambos os contextos a
responsabilidade é atribuída aos professores, de forma que se
melhorarem sua prática pedagógica, sua metodologia, os problemas
serão resolvidos. Esse aspecto causou um desconforto inicial na
professora ainda em formação, pois ela percebe que os tais
problemas não dependem exclusivamente da qualidade de sua aula.
Ainda que ela se encontre no ensino superior, ela já está em
contato com problemas contemporâneos dos professores que já estão
inseridos em sala de aula. A partir desses eventos, ela se dá conta de
que apesar da complexidade do problema, os professores acabam
sendo responsáveis por solucioná-lo. Isso, no entanto, é algo novo
para ela, uma vez que se surpreende com esse fenômeno das cartas
que as escolas receberam. Ao mesmo tempo, considerando que este
2 Em outros estados brasileiros, usa-se também os termos superintendência de
educação, secretaria educacional, dentre outros.
271
tópico possivelmente não era contemplado no curso de formação, ela
aproveitava o grupo focal como o espaço apropriado para dar voz às
suas preocupações. Sua reflexão inicial neste momento é o fato de que
sua formação em Letras já é complexa, difícil, mas não prepara para
todos os desafios ainda mais pelo fato de Sarah já trabalhar antes de
ter finalizado a formação.
Enquanto mediador dos grupos focais, busquei estar aberto e
incitar a curiosidade como possibilidade da participante expressar
suas visões sobre as experiências profissionais iniciais. Meus
comentários eram breves e a cada nova questão, eu queria
compreender melhor esses desafios que a Sarah explicava. Como
ela utilizava esse espaço conversacional para narrar eventos que ela
já estabelecia sentido, percebi que ela buscava interpretar as
constantes pressões que os professores lidam apesar de suas outras
atribuições (ensinar, planejar aulas, avaliar e discutir o
desempenho dos alunos, dentre outros). Sarah também
aproveitava os grupos focais e seus interlocutores para falar sobre
o que vivenciava no ensino superior e como isso a afetava. Esta é a
segunda lição aprendida com grupos focais.
Compartilhando histórias de experiência: um espaço terapêutico
Além de falar sobre experiências como professora, os grupos
focais providenciaram um espaço seguro para comentar sobre
como os eventos do curso de Letras impactaram a vida dos
participantes. Esse aspecto é comumente definido como o potencial
de compartilhamento de histórias sensíveis (BARBOUR;
SCHOSTAK, 2005; PUCHTA; POTTER, 2004), ou seja, histórias
arraigadas em emoções intensas e profundas. A principal lição que
aprendi é que quando as pessoas se sentem encorajadas a
compartilhar, elas encontram uma maneira própria de falar com
segurança e liberdade. No próximo exemplo, Sarah comenta o caso
de fazer disciplinas avançadas de inglês e a complicada relação com
a professora que, segundo a aluna, parecia não reconhece-la como
alguém que deveria estar ali naquela sala. Observe a vinheta:
272
Vinheta 2
[Contexto: Sarah está explicando como se sente em uma das aulas de inglês na
faculdade. Ela detalha as dificuldades de aprender enquanto sente que não está se
desenvolvendo como aprendiz]
PESQUISADOR: E a coordenação do estágio?
SARAH: Era isso que eu queria comentar. Eu não posso ter atrito com a
coordenadora, porque além de coordenadora geral de estágio, ela é minha
professora de língua inglesa. Ela coordena projetos de iniciação à docência,
então, está totalmente interligada com as coisas. E eu sinto muito... nisso... com
ela, é uma pessoa que está à frente de várias coisas na faculdade, e discrimina
os alunos que não são fluentes na sala.
PESQUISADOR: Você se sente assim [discriminada] na aula dela?
PESQUISADOR: Eu me sinto [discriminada]. Porque quando ela vai se
direcionar a alguém... primeiro ela pergunta para todos os que sabem. Por
último, quando você nem tem mais o que falar, ela pergunta para você. Aí você
fala o mesmo que a fulana falou antes. É isso que eu sentia na aula dela e no
começo fiquei muito desanimada. Aí eu decidi que ia dar um jeito, ia fingir que
não estava vendo isso. Mas eu sinto que ela dá aula para metade da sala e só
puxa farinha para os que ela tem mais contato.
PESQUISADOR: Tenta não deixar essa imagem ruim refletir na disciplina.
Tente não deixar, eu sei que é difícil, [mas não deixe que] essas coisas chatas te
fazerem pensar que você é menos ou inferior aos outros alunos.
SARAH: É isso que eu percebi, eu me senti péssima. E ela fez eu me sentir
assim. Até conversei com a minha mãe e com uma amiga que passou pela
mesma coisa. E a gente chegou à conclusão que tem que achar um jeito de não
deixar ela [a professora] colocar a gente para baixo. Mas, se dependesse da
professora, a gente já tinha trancado [a disciplina de] inglês, e eu não me
conformo! Porque uma professora que está tão à frente dos principais projetos
da universidade trata os alunos desse jeito. É fora do normal.
PESQUISADOR: Fica uma situação bem desconfortável e...
SARAH: Se eu tiver um atrito com ela vai ser fatal. Mesmo discordando do jeito
que ela me trata. Mesmo eu discordando da metodologia dela, apesar de adorar
algumas atividades que ela fez na sala. Eu gosto, mas não gosto da maneira
com que ela trata a gente. Eu me sinto totalmente inferiorizada.
[Entrevista Individual Ano 3 - Fase 1: participante Sarah]
273
Essa vinheta retrata as dificuldades de Sarah com uma
disciplina de língua inglesa (avançada) que ela fazia na faculdade.
Ela descreve a percepção que sua professora parecia não prestar
atenção nela ou desconsiderá-la. No ponto de vista de Sarah, havia
um grupo de alunos com quem a professora sempre interagia e
Sarah era raramente um desses sujeitos. Ela descreve essa
experiência como se sentindo invisível. Tal cenário começou a
afetá-la pessoalmente, inclusive na maneira de interpretar a sala de
aula (as tarefas, as responsabilidades, as avaliações, dentre outras).
Com aquilo em mente, como mediador do grupo focal notei o
desconforto que poderia desencorajá-la. Como mostra a vinheta,
tentei sugerir que, por mais difícil que isso fosse, ela não deveria
assimilar essas ideias que a fariam se sentir inferior por saber
menos ou ter dificuldade. Sarah demonstra compreender o
conselho e acrescenta que continua pensando sobre como esses
eventos têm afetado sua trajetória como aprendiz de inglês.
Por mais trivial que isso possa parecer para outras pessoas,
para Sarah ser tratada dessa forma tinha um forte impacto. Em
primeiro ligar, como mencionei anteriormente ao apresentar a
participante, ela veio de uma trajetória em que escolheu o curso de
Letras para tornar-se professora de uma língua que ainda não
falava. Na faculdade, teve várias dificuldades para aprender, mas
não a desencorajaram. Na verdade, ela ousou encarar a sala de aula
mesmo antes de terminar a licenciatura, para que pudesse tanto
adquirir experiência profissional quanto se manter
financeiramente. Em meio a esse processo, ela se sentia ignorada
pela professora por ser uma aluna com dificuldade e isso gerou a
sensação de inferioridade, como se seus esforços não tivessem
valor. Sarah buscou comentar isso com seus amigos e familiares lhe
deram o devido apoio. Os grupos focais, no entanto, colocaram ela
em contato com um grupo pré-existente (BLOOR; FRANKLAND;
THOMAS, 2001), ou em outras palavras, pessoas que eram
familiarizadas umas com a outras e se sentiam capazes de
compartilhar histórias em um local em comum. Cada participante
contava sua história e era ouvida por mim e pelas demais colegas,
274
sem pressão e julgamento. Ao fim, ela parece perceber o conselho e
dá sinais de que tenta não se influenciar por essa sensação ruim.
Sarah não desistiu da disciplina de inglês, apesar do relato, e
mesmo a relação com a professora ter permanecido a mesma, ela
conseguiu aprovação na disciplina e posteriormente avançou para
o fim da licenciatura. Ainda que eu não considere o grupo focal
como único responsável pela superação do problema (lembre-se
que ela também conversou com familiares e amigos), considero o
espaço conversacional que ele ofereceu para que Sarah criasse
sentido de questões que provavelmente ela não conseguiu falar
sobre no curso de Letras. Como os grupos focais capturam eventos
conforme eles acontecem (BARBOUR; SCHOSTAK, 2005), eles
registraram as vozes das alunas professoras que criavam sentido
dos eventos vividos e que eram socializados com outras pessoas.
Sobre as lições que aprendi: comentários finais
Ao longo deste trabalho, duas vozes emergiram ao tentar
reconstruir algumas experiências de Sarah. Em um primeiro
momento, me apresentei como formador de professores
considerando desafios contemporâneos da formação de
professores e a pesquisa que conduzi com professores em formação
a partir de grupos focais. As vinhetas apresentaram a voz de Sarah
explicando eventos vividos na formação em Letras sobre iniciar no
mercado de trabalho antes da conclusão da licenciatura e os
conflitos pessoais com a professora de uma disciplina específica.
Os grupos focais não são novidade, mas são alternativas
inovadoras para a pesquisa convencional da formação de
professores geralmente centrada nas entrevistas, nos questionários
e nas observações de sala de aula. Dentre as várias lições
aprendidas, duas foram o foco deste trabalho. A literatura
especializada defende que os grupos focais são considerados
apropriados para compartilhar histórias de experiência. Sarah
narrou o processo de criar sentido da profissão que busca no ensino
superior e os desafios que encontrou ao ingressar no mercado de
275
trabalho antes do tempo. Enquanto suas aulas estavam centradas
em teorias e metodologias de ensino, a participante se deparou com
as pressões constantes do professor de inglês de escola pública. O
grupo focal não era apenas o momento ou o local de compartilhar
histórias, mas de perceber problemas e desafios que uma
professora em formação vivia enquanto não encontrava a
oportunidade de processar todas essas informações. Os professores
têm um ofício desgastante e o simples exercício cognitivo-afetivo
de processar experiências (refletir sobre elas) nem sempre acontece
por uma miríade de razões como a falta de tempo, falta de apoio
dos pares, dentre outras possibilidades.
Além disso, considerei os tópicos sensíveis de como grupos
focais poderiam oferecer o espaço conversacional para expressar as
sensações que as participantes tentavam compreender. No
exemplo, Sarah narrou sua dificuldade com uma disciplina e a
relação complexa com sua professora. Conforme discuti a partir da
vinheta, não se tratava apenas de ter um momento para falar sobre
o assunto. Esse era, na verdade, apenas o pontapé inicial. A partir
do momento em que Sarah se deu conta de que tinha uma
oportunidade, ela dividiu conosco eventos de sua vida pessoal e
profissional e como isso a afetava naquele momento. Quando atuei
como mediador, ao mesmo tempo em que buscava demonstrar
interesse em seus relatos, também busquei incentivar que ela
falasse mais a fundo sobre o impacto das histórias que ela contava.
Minhas palavras nos excertos eram mais breves, intencionalmente,
pois o objetivo era valorizar a voz do sujeito e não silenciá-lo. Sinais
de resiliência foram percebidos ao fim, quando ela explicou que
apesar dos desafios tentaria seguir adiante e ao fim, concluiu a
licenciatura.
Apesar da vida social oferecer todos os tipos de experiência
relativamente similar (fazer amigos, tornar-se profissional, formar
família, dentre outros), as pessoas interpretam cada um deles de
uma forma diferente. Enquanto um professor formador, conduzir
grupos focais me ensinou a importância de explorar os aspectos
pessoais da profissão e o sentido do sujeito. Além dos conceitos
276
novos que eu ensino ou das ferramentas pedagógicas com as quais
trabalho, é importante considerar como meus alunos interpretam
essas atividades a cada etapa ao longo da trajetória docente. Dessa
forma, a formação de professores envolverá uma visão integrada
de ensino e de aprendizagem, uma que possibilite um momento ou
local propício para processar o que fará parte do processo de
ensinar inglês. A esperança para o futuro é que os alunos de
licenciatura sejam capazes de contar outras histórias com menos
sofrimento e mais desenvolvimento. Ou nos termos de Freire (1967,
1970, 1979), com mais compreensão crítica da realidade, de forma
que a educação seja o caminho para a mudança social.
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279
PROCESSOS AVALIATIVOS EM CURSOS TÉCNICOS
DE NÍVEL MÉDIO: A METODOLOGIA SEMINÁRIO
EM DISCUSSÃO
Januario Neto Pereira Sarmento1
Alcyr Alves Viana Neto2
Maria Madalena Rodrigues Teles3
Introdução
O ato de avaliar, dadas as suas peculiaridades, continua
sendo uma dificuldade a ser superada pela grande maioria dos
educadores, isso em todo os níveis e modalidades da educação,
ou seja, aí inclui-se, também, a educação técnica de nível médio.
Nesta perspectiva é que se originou a necessidade de analisar o
seminário enquanto metodologia de avaliação em cursos
técnicos em uma unidade da Rede Federal de Educação
Profissional, Científica e Tecnológica.
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa quali-
quantitativa, cujo instrumento de coleta de dados foi um
questionário semiestruturado. A realização do estudo objetivou
analisar, a partir da visão dos próprios estudantes, a
1 Professor do Instituto Federal do Tocantins (IFTO) 2 Professor do Instituto Federal de Goiás (IFG) 3 Professora do Instituto Federal do Tocantins (IFTO)
280
implementação da metodologia “Seminário” como forma de
avaliação da aprendizagem em Cursos Técnicos de Nível Médio.
A problemática geral da pesquisa insere-se nas formas
possíveis de se avaliar a aprendizagem nos Cursos Técnicos de
Nível Médio da Rede Federal de Educação Profissional, Científica
e Tecnológica, com recorte para a metodologia seminário. Nesses
termos o questionamento principal é o que consta a seguir: Como
os estudantes dos Cursos Técnicos de Nível Médio percebem o
emprego da metodologia seminário, quando o professor lança mão
desse instrumento como forma de avaliação da aprendizagem?
No mínimo três razões, que interagem entre si, justificou a
importância da realização deste trabalho: primeiro, pela
necessidade de se discutir e rediscutir continuamente o processo
avaliativo, sob risco deste tornar-se mero “cumpridor de
protocolo” nas instituições escolares, perdendo, assim, seu foco
principal; segundo, porque a metodologia seminário é uma
forma de avaliação que, além de (re)direcionar o processo
ensino-aprendizagem, é, também, uma metodologia ativa, o que
leva o estudante a protagonizar todo ou quase todo o processo;
terceiro, porque a própria diversidade de níveis e modalidades
que a Educação Profissional e Tecnológica (EPT) abrange leva à
necessidade de se (re)pensar os modelos avaliativos aí presentes.
Autores como Hoffman (2001), Libâneo (1994), Masetto
(2012), Freire (1983), Zabala (1998), Luckesi (1984) entre outros
constituiram a base de sustentação teórica do presente estudo.
O objetivo geral da pesquisa foi analisar, a partir da visão dos
próprios estudantes, a implementação da metodologia
“Seminário” como forma de avaliação da aprendizagem em
Cursos Técnicos de Nível Médio. Já, quanto aos objetivos
específicos, foram delimitados os seguintes: verificar se a
apropriação dos conhecimentos pelos estudantes, na realização do
seminário, supera suas expectativas; conhecer as inclinações dos
estudantes, quanto aos modelos de avaliação mais preferido, se as
provas tradicionais ou se o seminário; conhecer as dificuldades
enfrentadas pelos estudantes para realização do seminário.
281
A realização da pesquisa partiu da hipótese inicial de que há
viabilidade no emprego da metodologia seminário como forma de
avaliação da aprendizagem em Cursos Técnicos de Nível Médio, da
Educação Profissional e Tecnológica, assim como já acontece
frequentemente nos cursos superiores. Guardadas as peculiaridades
desse nível de ensino, alguns pressupostos são centrais para se
pressupor a viabilidade: necessidade de metodologias mais ativas
em todo o processo educacional; respeito ao educando como sujeito
e não objeto do processo educacional; centralidade do estudante na
educação como um todo.
Com a finalização da pesquisa, ficou constatado que há
viabilidade no emprego da metodologia seminário, enquanto
forma de avaliação da aprendizagem na modalidade de cursos
supramencionados. Percebeu-se ainda que, entre atividade
escrita e seminário, os estudantes preferem esta última forma de
avaliação. Já, no que tange à dificuldade que mais aflige os
estudantes com relação à metodologia seminário, a exposição
em público foi a que mais se destacou.
Referencial teórico
O ato de avaliar é parte que não se pode prescindir quando
se busca o sucesso de qualquer atividade. No caso da Educação
Profissional Técnica de Nível Médio isso não se torna diferente.
Ressalta-se, a propósito, que a avaliação que aqui se discute não
está atrelada ao processo meramente classificatório, como o
fazem muitas instituições de educação (LUCKESI, 1984).
A avaliação da aprendizagem é um ato necessário e não
deve ser encarado como um fim em si mesmo. “A finalidade
primeira da avaliação é sempre promover a melhoria da
realidade educacional” (HOFFMANN, 2001, p. 41). É através da
avaliação que o professor pode reorientar sua prática em prol do
desenvolvimento de habilidades e competências dos estudantes.
Conforme Libâneo (1994), a avaliação é um componente do
ensino que tem como propósito verificar e qualificar os
282
resultados obtidos, determinar a correspondência destes com os
objetivos propostos e, a partir daí, orientar a tomada de decisões
em relação às ações didáticas seguintes.Masetto (2012, p. 171),
esclarece que:
[...] o processo de avaliação que procura oferecer elementos para verificar
se a aprendizagem está se realizando ou não deve conter em seu bojo uma
análise não só do desempenho do aluno, mas também da atuação do
professor e da adequação do plano aos objetivos propostos.
Nesse sentido, a avaliação da aprendizagem, num caráter
emancipatório, ao invés de prender-se à verificação de quanto o
aluno apreendeu dos conteúdos escolares, deve servir de
parâmetro para o professor avaliar sua ação docente, sobretudo
porque os processos de ensino e de aprendizagem caminham
juntos. E não para por aí, deve proporcionar reflexão sobre a
instituição como um todo, deve promover abertura ao diálogo
entre os estudantes e o docente e entre estes e a comunidade em
geral. E isso é, também, uma forma de se proporcionar ao
estudante uma formação humana mais completa (geral) e não
apenas um adestramento para atender ao mercado de trabalho
(FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005), pois a Educação
Profissional e Tecnológica não pode ser tratada como moeda de
valor tão insignificante.
Considerando que cada estudante tem o seu tempo e o seu
modo de aprender, é fundamental que as formas de ensinar
sejam variadas assim com as formas de avaliar.
Etimologicamente, a palavra seminário está ligada à semeadura,
vida nova, ideias que surgem. É uma técnica importante de
aprendizagem que possibilita ao aluno desenvolver sua
capacidade de construir conhecimento através da pesquisa, da
comunicação, da organização e fundamentação de suas ideias,
além de possibilitar a elaboração de relatório de pesquisa, de
forma coletiva (MASETTO, 2010).
O seminário é considerado uma técnica valiosa porque “por
sua característica de metodologia ativa, possibilita, cada vez
283
mais, o desenvolvimento da autonomia intelectual dos
estudantes, por meio do debate, da reflexão e da análise das
ideias e temas abordados nas discussões em grupo” (PÁDUA,
2010, p. 171). Dessa maneira, o estudante assume uma postura
autônoma, crítica e reflexiva na busca e construção de
conhecimentos, além de desenvolver habilidade de “[...] leitura,
análise e interpretação de textos e dados sobre a apresentação de
fenômenos vistos sob o ângulo das expressões científicas,
analíticas, reflexivas e críticas (BARROS, 2007, p. 25).
Ao utilizar a técnica do seminário, o professor abandona a
tradicional postura de ser superior que despeja conteúdos aos
seres ignorantes como se esses fossem depósitos do educador e
passa a assumir uma nova postura de provocar a curiosidade,
de incentivar o estudante a querer construir o conhecimento, de
ensinar o aluno a aprender. Nessa perspectiva, concordamos
com Freire (1983, p. 28) quando afirma que “o homem deve ser
o sujeito de sua própria educação”.
Partindo da concepção construtivista da aprendizagem,
Zabala (1998, p.37) alerta que
Não basta que os alunos se encontrem frente a conteúdos para aprender; é
necessário que diante destes possam atualizar seus esquemas de
conhecimento, compará-los com o que é novo, identificar semelhanças e
diferenças e integrá-las em seus esquemas, comprovar que o resultado tem
certa coerência, etc.
Nessa concepção, o estudante se torna protagonista sem
dispensar a necessidade de o professor ativo e organizador de
um ambiente no qual, a partir da avaliação, ele fará as
intervenções necessárias. Essa natureza de intervenção
pedagógica estabelecerá os parâmetros em que poderá se mover
a atividade mental do aluno no qual passará por processos
sucessivos de equilíbrio, desequilíbrio e reequilíbrio (COLL,
1996).
284
Sendo assim, a partir da técnica do seminário, o estudante
será capaz de avançar nos seus processos de aprendizagem e
desempenho escolar.
Materiais e Métodos
A pesquisa foi realizada em uma unidade da Rede Federal
de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Campus
Porto Nacional do Instituto Federal do Tocantins – IFTO), tendo
como sujeitos participantes um total de 44 estudantes dos
Cursos Técnicos Integrado ao Ensino Médio e Subsequentes. Já
a coleta de dados foi feita por meio de um questionário
semiestruturado, que foi aplicado a cada um dos estudantes logo
após a participação ativa em seminários avaliativos das
disciplinas do currículo. O período de aplicação dos
questionários foi a segunda quinzena do mês de junho de 2018.
No que tange à abordagem, a pesquisa foi considerada
quali-quantitativa, ou seja, trabalhou com dados mensuráveis
(quantitativos), mas também se ocupou de outros aspectos mais
abrangentes e não quantificáveis (qualitativos). “A metodologia
qualitativa preocupa-se em analisar e interpretar aspectos mais
profundos, descrevendo a complexidade do comportamento
humano. Fornece análise mais detalhada sobre as investigações,
hábitos, atitudes, tendências de comportamento etc.”
(MARCONI; LAKATOS, 2011, p. 269). Por outro lado, pesquisa
quantitativa, conforme Prodanov e Freitas (2013, p. 69) é aquela
que “requer o uso de recursos e de técnicas estatísticas
(percentagem, média, moda, mediana, desvio-padrão,
coeficiente de correlação, análise de regressão etc.)”.
No que se refere aos procedimentos técnicos, a pesquisa foi
considerada um estudo de caso, que, “consiste em coletar e
analisar informações sobre determinado indivíduo, uma família,
um grupo ou uma comunidade, a fim de estudar aspectos
variados de sua vida, de acordo com o assunto da pesquisa”
(PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 60).
285
Resultados e discussões
Apropriação de conhecimentos e vantagens percebidas pelos
estudantes na realização do seminário
Avaliando-se as possibilidades de construção de conhecimento
no processo de preparação e realização do seminário, a ampla
maioria dos participantes da pesquisa apontaram que a
experiência foi positiva. Nesse sentido, 80% dos sujeitos da
pesquisa afirmaram ter alcançado nível 04 ou 05 de aprendizado
(ver figura 01). Foi atribuído, por meio de autoavaliação dos
estudantes, nível 01, quando o alcance de aprendizado foi
mínimo; e nível 05, quando o aprendizado alcançado foi
considerado máximo (respostas dos próprios estudantes).
Figura 1 - Nível de aprendizado alcançado com a preparação/realização do
seminário.
Fonte: Os próprios autores (2018).
A partir dos dados tabulados na figura 01 ainda se pode extrair
outras informações importantes: mesmo aqueles estudantes que
afirmaram ter um nível menor de aprendizagem durante o
seminário, reconheceram que houve, em algum instante,
evolução de sua condição de aprendiz; nenhum estudante
286
registrou que sua aprendizagem foi no nível mínimo, ou seja,
nível 01. Ora, vê-se que os resultados coadunam diretamente com
o posicionamento de Zabala (1998) no que concerne à atualização
dos esquemas de conhecimento que detinham antes em relação
àquilo que fora apropriado no processo.
Essa atualização dos esquemas (ou conhecimentos) por parte
dos estudantes foi percebida quando os mesmos relataram que
houve progressão do aprendizado entre o momento anterior e
posterior à realização do seminário. De igual modo, Masetto
(2012) ao discutir a avaliação, propõe que a importância deve-se
voltar para a percepção do crescimento do aprendizado dos
estudantes.
Outro fator a ser destacado, e que a pesquisa apontou, foi quanto
às vantagens que mais alcançaram após realizar o seminário.
Nesse quesito, destacam-se dois fatores: o aprendizado alcançado
ao longo do processo e a preparação para falar em público,
conforme figura 02.
Figura 2 - Vantagem percebida na realização do seminário.
Fonte: Os próprios autores (2018).
Por um lado, os dados da figura 02 confirmam o nível de
aprendizado que os estudantes alcançaram no processo de
preparação/realização do seminário. Por outro lado, quando os
287
estudantes afirmam (46%) que o seminário lhes proporcionou a
vantagem de prepará-los para falar em público, tal percepção não
pode ser desprezada. Pelo contrário, fica esclarecido que o
processo avaliativo é, também, um espaço para a construção de
outras habilidades e não somente para verificação do rendimento
acadêmico dos estudantes. Ou seja, ao processo de aprendizagem
(aí incluso o processo avaliativo) se inclui a apropriação de
conhecimentos para além dos conteúdos das ementas dos
projetos pedagógicos dos cursos, visto que a escola forma para a
vida.
Avaliação escrita ou seminário: qual a preferência dos
estudantes dos cursos técnicos?
No que se refere à preferência dos estudantes, fazendo-se uma
comparação entre o seminário e a avaliação escrita, houve maior
inclinação para o seminário. Conforme a figura 03, cerca de 75%
dos estudantes optaram pelo seminário, em face de apenas 25%
que mostraram maior preferência pela avaliação escrita.
Figura 3 - Preferência dos estudantes entre dois modelos de avaliação.
Fonte: Os próprios autores (2018).
288
É fato que o presente trabalho de pesquisa não tem como
finalidade definir um “modelo ideal” avaliação para os cursos
técnicos. Todavia, os dados podem ser sugestivos da
necessidade de se refletir mais a respeito da diversificação dos
processos avaliativos. E mais, podem ainda sugerir o grau de
relevância que a metodologia seminário, já muito disseminada
na educação superior, também precisa estar incluída nos
processos avaliativos dos cursos técnicos. Contudo, vale
registrar que a inserção da metodologia seminário na educação
técnica de nível médio não pode ser feita apenas por modismos
ou porque tenha alcançado sucesso com outro tipo de público.
Não se pode desconsiderar as finalidades do processo
avaliativo, tendo sempre em vista que ao avaliar se busca o
aperfeiçoamento da educação que é concretizada no seio da
escola (HOFFMANN, 2001).
As justificativas que levaram os participantes da pesquisa a
optarem pelo seminário, quando comparado com a avaliação
escrita, são as mais diversificadas possíveis. Contudo,
comparando-se as respostas umas às outras, nota-se que a
maioria afirma que o aprendizado é maior no processo de
preparação e realização do seminário. Consta, logo a seguir,
algumas das respostas que os estudantes apresentaram nessa
linha de raciocínio:
“Acho uma maneira mais eficiente, e uma forma menos teórica com mais
aprendizado”. “É melhor o aprendizado na hora de estudar”.
“Fixa mais o aprendizado em todas as pessoas (os alunos)”.
“Por que a gente tem um entendimento melhor do tema que foi dado estudando”.
No seminário, diferente da avaliação escrita elaborada pelo
professor, o estudante passa a ser coautor do processo, ou seja,
se antes era um sujeito passivo (na avaliação escrita), agora
torna-se ativo (no seminário). Conforme Freire (1983, p. 28) o
educando deve ser tratado como sujeito ativo do processo e não
289
mero espectador. Logo, não se pode conceber a ideia de um
estudante que, à semelhança de um robô, apenas executa o que
lhe fora predeterminado, como acontece em várias
metodologias de avaliação.
As respostas dos estudantes, transcritas na sua literalidade,
ratificam a sensação de pertencimento no processo avaliativo.
Dificuldades enfrentadas pelos estudantes na preparação/
realização do seminário
Como todas as demais formas de avaliações, o seminário,
também apresenta suas dificuldades, não somente para o
estudante, mas também para o docente.
Quadro 01 - Dificuldades na preparação/realização do seminário.
Fonte: Os próprios autores (2018).
A pesquisa procurou elencar as principais dificuldades
enfrentadas pelos estudantes, a partir do instrumento de coleta de
dados (questionário). Para um alcance o mais amplo possível,
290
optou-se por um questionamento aberto, quando os respondentes
puderam descrever suas dificuldades livremente. Para facilitar a
análise, o quantitativo de 44 respostas apresentadas pelos
estudantes foi classificado em cinco grupos, conforme o quadro 01. Nota-se, desde logo, que as maiores dificuldades
enfrentadas pelos estudantes, com relação à metodologia
seminário são: dificuldade na exposição do trabalho em público
e organização do trabalho em equipe. Essas dificuldades podem
estar vinculadas diretamente ao contexto avaliativo mais
predominante em grande parte das instituições escolares
brasileiras, ou seja, provas escritas e realização individual, sem
consulta. Tais dificuldades são passíveis de soluções, a partir de
um trabalho interativo do docente com os estudantes. Aliás, o
próprio processo de superação é, também, um processo de
aprendizado e crescimento acadêmico.
Considerações Finais
A realização da pesquisa foi reveladora da importância que
o seminário, enquanto modelo de avaliação, assume no processo
de aprendizagem, principalmente por ser uma metodologia que
vai além da mera verificação quantitativa de conhecimentos que
o estudante conseguiu apropriar-se, em um determinado espaço
temporal. Observa-se que há uma consciência do discente em
relação a todo o processo, mesmo porque é ele quem direciona
a maior parte das atividades, tanto na preparação como na
realização do seminário.
No que se refere à apropriação de conhecimentos, durante
a preparação/realização do seminário, não há dúvidas de que os
estudantes percebem a concretude do alcance desse objetivo.
Isto ficou claro porque, do total de participantes da pesquisa,
nenhum registrou que o aprendizado foi mínimo (nível 01). Por
outro lado, nesse mesmo quesito (apropriação de
conhecimentos), a grande maioria dos estudantes afirmaram ter
alcançado nível máximo ou próximo ao máximo (nível 04 ou 05)
291
na construção dos conhecimentos, enquanto preparavam e/ou
realizavam o seminário.
Outro fator interessante, e que o estudo demonstrou, é que,
uma vez dada ao estudante a opção de escolher entre prova
escrita e seminário, a maioria prefere ser avaliados por meio de
seminário. Entre as dificuldades mais perceptíveis na
preparação/realização do seminário, os estudantes deram
destaque para duas, entre várias apontadas: a dificuldade que
mais causa empecilho é a exposição em público; em segundo
lugar aparece a problemática da organização do trabalho grupal.
Em que pese as lacunas que a pesquisa não conseguiu
responder, ela se mostrou deverasmente relevante, inclusive
servindo como fonte de consulta para novas pesquisa ou mesmo
para o direcionamento do trabalho docente na educação técnica
de nível médio e, quiçá, nos diversos outros níveis e modalidade
da educação nacional. Sugere-se como novas temáticas de
pesquisas as listadas a seguir: possibilidades de combinação de
metodologias avaliativas, incluindo-se o seminário, nos cursos
técnicos; o seminário enquanto metodologia construtivista na
EPT; a utilização do seminário como metodologia avaliativa,
considerando-se a visão e experiência dos docentes.
REFERÊNCIAS
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científica. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2007.
COLL, César. Desenvolvimento psicológico e educação:
psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
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292
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setas do caminho. Porto Alegre: Mediação, 2001.
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ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto
Alegre: Artmed, 1998.
293
ACERVO DA ESCOLA ESTADUAL PROFESSOR LEOPOLDO
MIRANDA, DIAMANTINA-MG: FONTES PARA
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Layane Campos Soares1
Flávio César Freitas Vieira2
Introdução
A presente pesquisa originou-se de um projeto de iniciação
científica no campo da história da educação, com previsão de um
ano e tendo como objeto de estudo o levantamento de fontes
primárias sobre educação em instituições educativas na cidade de
Diamantina e região. Entre os resultados obtidos, foi possível
evidenciar que os processos e os percalços da escolarização nessa
região se destacaram para uma minoria da população nos séculos
1 Doutoranda em Estudos linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia.
Membro do Grupo de Pesquisas e estudos em Análise de Discurso Crítica e
Linguística Sistêmico Funcional, da UFU, cadastrado no Diretório dos Grupos
de Pesquisa do CNPq. E-mail: [email protected] 2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Professor do
Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Educação na
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Membro do Grupo
de Estudos e Pesquisa Sócio Históricas dos Vales (GEPSHE), da UFVJM.
Coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educadores
(LIFE) na UFVJM. E-mail: [email protected]
294
XVIII e XIX, sendo associados à atividade econômica na área da
mineração. Além disso, as peculiaridades do Vale do
Jequitinhonha, região na qual Diamantina torna-se uma referência,
tem um potencial expressivo para desenvolvimento de várias
pesquisas na área da educação vinculada às questões
socioeconômicas e culturais.
O trabalho de pesquisa foi realizado na Escola Estadual
Professor Leopoldo Miranda (EEPLM), como uma das primeiras
ações de busca de fontes entre as instituições educativas avaliadas
e consultadas. Essa instituição foi selecionada, por sua pronta
disponibilidade oferecida pela diretoria à época, bem como por ter
fontes primárias que necessitavam de tratamento emergencial de
higienização e básicos de identificação, catalogação e
sistematização para posterior uso nas pesquisas, numa ação
consciente de preservação do patrimônio histórico da instituição.
Nesse projeto, o objetivo da investigação foi o de elaborar uma
análise sobre o processo de organização de instituições educativas
em Diamantina e/ou região, no final do século XIX e no período
republicano. Isso se deu em razão de já ter sido realizada a
identificação nos procedimentos da Câmara Municipal de
Diamantina sobre discursos e ações vinculadas pelo viés político-
ideológico, da legislação educacional (VIEIRA; OLIVEIRA, 2002),
como também da destinação de recursos e a participação dos
sujeitos no processo de consolidação dessas instituições educativas
para a escolarização da sociedade diamantinense, num contexto
circunscrito no município pedagógico (GONÇALVES, 2012).
A metodologia utilizada foi a da pesquisa documental, com
revisão bibliográfica, norteada por categorias de análises para
efetivar o levantamento e a identificação das fontes pesquisadas.
Isso ocorreu seguido do processo de constituição de cadastro das
fontes manuseadas com a finalidade da construção do banco de
dados do acervo da escola trabalhada. Paralelamente, foram
realizadas ações de pesquisa em arquivos públicos e acervos
particulares na busca de complementação de dados, diante da
295
ausência de fontes para contribuir no sentido de alcançar os
objetivos propostos.
A exposição da presente pesquisa se desenvolverá por dois
tópicos, o primeiro trata da constituição do cenário político-
educacional, circunstanciado à época da primeira etapa da
existência Escola Normal Oficial de Diamantina. O segundo
apresenta parte dos resultados obtidos na constituição do acervo
advindo da pesquisa sobre a trajetória da Escola Estadual Professor
Leopoldo Miranda.
Escola Normal Oficial de Diamantina e o cenário Político
Educacional
A Escola Normal Oficial de Diamantina tem sua oficialização
pelo Decreto n. 8.820, em 12 de outubro de 1928. Na imprensa local,
nessa época, fora divulgado a seguinte manchete, com destaque à
dívida que a população local teria com o Presidente do Estado pelo
ato de absorver a Escola Normal na esfera pública de ensino:
“Somos devedores ao Presidente Antonio Carlos da realização de
uma das mais ardentes aspirações do povo diamantinense: A
creação da escola normal official de Diamantina. Um gesto
magnífico do eminente Chefe do Executivo Mineiro”
(DIMANTINA, 04 jan. 1929, p.1).
Esse discurso convergiu com o movimento vinculado aos
princípios fundamentados pela República de valorização à
modernidade, principalmente, na questão da constituição de
espaços arquitetônicos sofisticados, ocupando local central na
sociedade, associado à valorização da formação de professores em
metodologias de ensino e aprendizagem renovadas pelo
conhecimento das novas ciências (FARIA FILHO, 2000). Ao
analisar o discurso publicado no periódico local, denominado por
Diamantina, encontramos evidências de vinculação com esse
movimento de valorização da educação para moldar a sociedade, a
exemplo da Escola Normal Oficial de Diamantina, que foi
296
construída no final dos anos 1920 na cidade. Ela foi projetada para
ser instalada em prédio com localização central.
Para condignamente installar a escola normal official desta cidade,
auctorizou o presidente Antonio Carlos a construcção de um predio
apropriado, de estylo colonial, que será o mais bello e um dos mais espaçosos
da cidade. [...] a Camara Municipal havia doado ao Estado, para essa
instalação, o proprio Paço da Cidade (DIAMANTINA, 04 jan. 1929, p.1).
Figura 1- Escola Normal Oficial de Diamantina
Fonte: Acervo da Escola Estadual Professor Leopoldo Miranda.
A Escola Normal Oficial de Diamantina foi mantida em
funcionamento até 15 de janeiro de 1938, quando foi suprimida
pelo Decreto n. 63, assinado pelo governador do Estado de Minas
Gerais, Benedito Valadares. O Governador justificou a decisão de
fechar seis escolas no Estado de Minas Gerais, no Decreto 63 de
1938.
O Governador do Estado de Minas Gerais, usando de suas atribuições;
considerando que vai ser reformado o plano do ensino normal do Estado, já
estando em elaboração o anteprojeto [...] considerando que existe no Estado
grande número de Escolas Normais reconhecidas e [...] que, em muitas
cidades, o Estado mantém, ao lado dessas escolas, estabelecimentos oficiais,
cujos alunos poderão continuar o curso sem prejuízo do ensino, resolve: Art.
297
1o. Ficam suprimidas as Escolas Normais Oficiais situadas nas cidades de
Diamantina, Montes Claros, Curvelo, Campanha, Uberaba e Itabira (MINAS
GERAIS, 1940, p. 41).
Até presente momento, não foi possível contextualizar a
argumentação do então Governador Valadares. Todavia, está em
nossa pretensão aprofundar o conhecimento sobre essa
interrupção, contraditória ao movimento de expansão das
instituições educativas no país à época.
O Brasil, nos anos 1930, vivenciava uma situação bastante
crítica no âmbito educacional, marcado pela presença de um
movimento de renovação política com discursos de melhorar a
qualidade do ensino e o acesso à educação, e assim
democratizando-a, diante de um cenário em que as escolas estavam
passando por um processo de sucateamento na educação devido à
falta de assistência e manutenção do ensino pelos órgãos públicos.
Nesse sentido, Peixoto (2000, p. 86) argumenta que “[...] o governo,
reconhecendo a importância da educação como instrumento de
controle e persuasão e vendo nela um importante indicativo de
seus propósitos democratizantes e de sua preocupação em
imprimir caráter científico ao tratamento das questões sociais (...)”.
Esse mesmo argumento pode ser notado no discurso
Presidente Getúlio Vargas (1930-1945), tendo em vista que: "[...]
nunca no Brasil, a educação foi encarada de frente, sistematizada e
erigida como deve ser, um legítimo caso de salvação nacional"
(BIBLIOTECA DA REPÚBLICA, 1933, p. 12). Desse modo, Vargas
criou o Ministério de Educação e Saúde Pública (MESP), que
desencadeou uma série de mudanças com a intenção de orientação
do padrão da educação no país em âmbito nacional.
No governo de Vargas, a atuação voltou-se para atender as
demandas advindas das classes desfavorecidas no contexto social,
para o movimento de inclinação religiosa católica e para o
movimento militar, visando a educação uma forte aliada para a
construção de cidadãos com uma formação voltada para o civismo
298
e a moralidade, favorecendo a criação da imagem do Estado
educador, e do novo cidadão republicano.
O período que se estende entre 1930 a 1937 marca a atuação do governo
provisório e as lutas ideológicas sobre a forma que deveria assumir o regime
no campo político; a atuação do governo no setor econômico (tentativas de
superação da crise econômica), no setor social e educacional (tentativa de
solução para os problemas relacionados ao disciplinamento da força de
trabalho). Trata-se de um período muito rico em debates e em medidas no
campo institucional, no sentido do estabelecimento, pela primeira vez no
país, desde o Ato Adicional, das bases para uma política nacional de
educação (PEIXOTO, 2006, p. 87).
O Governo Vargas, denominado por Estado Novo, foi
marcado pelo nacionalismo, autoritarismo e censura, fato que pode
ser visto como forma encontrada por Vargas para se legitimar na
presidência da república. Sob essa ótica, percebemos outros
movimentos políticos, em algumas cidades do Estado de Minas
Gerais, que foram demarcados por conflitos, sobretudo, em relação
ao movimento político de valorização da educação pública.
Como consequência dessa política, vimos no ano de 1938, em
Minas Gerais, a realização de uma reforma educacional feita pela
Governador do Estado, que culminou no fechamento de escolas
públicas primárias e normais. Diante dessa situação, houve a
inclusão da Escola Normal Oficial de Diamantina, que teve o seu
fechamento com base o Decreto n. 63 de 1938. Em uma entrevista
concedida a Peixoto (2006), Ayres da Matta Machado Filho,
professor diamantinense, em poucas palavras fez um balanço sobre
ação negativa do governo de Benedito Valadares, enquanto
governador do Estado de Minas Gerais, em sua atuação na
educação mineira, e diz:
Posso afirmar que o período mais negativo para a educação foi mesmo o
período do Valadares. Além de outras coisas, Benedito Valadares suprimiu
várias escolas normais - a de Montes Claros, Diamantina e outras. A
explicação que se costuma dar é que as escolas católicas teriam começado a
se queixar, através dos bispos, da concorrência que as escolas públicas, com
299
o seu ensino gratuito, estavam fazendo às escolas particulares... É uma coisa
que não se perdoa ao Valadares (MACHADO FILHO apud PEIXOTO, 2000,
p. 102).
O argumento de Machado Filho pode ser considerado válido,
pelo menos em Diamantina, que tem notória presença da Igreja
Católica, desde metade do século XIX, e sua representatividade no
âmbito de instituições educacionais, desde 1864, com a instalação do
Seminário Arquidiocesano de Diamantina (FERNANDES, 2005). No
decorrer de mais de sete décadas, o cenário educacional local foi
alterado, e consideremos possível que a presença da Escola Normal
Oficial de Diamantina, instituição pública na qual dispunha de um
ensino diferenciado em relação à maioria das instituições da época,
pode ter causado incômodo a instituição de ensino confessional que,
por sua vez, é possível ter influenciado no fechamento da instituição
em 1938. A importância dessa instituição de ensino pode ser
compreendida pela preocupação dela em ter a sua materialização
arquitetônica construída na área central da cidade, o que eleva o seu
status, à época, pois as escolas centrais atendiam as “melhores
camadas da sociedade” (LEMOS, 2011, p. 4).
As fontes disponíveis não foram suficientes para esgotar
plenamente a questão sobre a oficialização e supressão da Escola
Normal Oficial em Diamantina, inclusive há necessidade de
contato com a documentação dessa instituição referente ao período
de 1928-1938, que foi transferida para Belo Horizonte sob a
responsabilidade da Secretaria Estadual de Educação. Optamos
por descrever os cinco primeiros anos da instituição, baseando-se
no livro Atas de Reuniões da Congregação dos Professores (1952 a
1969), julgando necessária essa descrição que relata o momento de
reinstalação dessa instituição, marcado pelo ato do Governador do
Estado de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, ao assinar a Lei n.
840, de 26 de dezembro de 1951.
300
O Acervo da Escola Normal Oficial de Diamantina
A Escola Normal Oficial de Diamantina foi reaberta pela Lei n.
840, de 26 de dezembro de 1951, e se mantém em atividade na
cidade, mas com outra denominação, atualmente, Escola Estadual
Professor Leopoldo Miranda. Houve, entre 1951 até o presente
momento, a existência de cinco designações para essa mesma
instituição educativa, validada por ato legal. A primeira foi Escola
Normal Oficial de Diamantina, citada anteriormente; a segunda,
Colégio Normal Oficial, pela Lei Estadual 2945/08 em novembro de
1963; a terceira, Colégio Estadual de Diamantina, pela Lei 4.941, 12
de setembro de 1968; a quarta, Colégio Estadual Professor
Leopoldo Miranda, pela Lei 5.175, 06 de maio de 1969 e, a última
designação; Escola Estadual Professor Leopoldo Miranda, pelo
Decreto nº 16.244 de 08 de maio de 1974. As alterações nas
denominações dessa instituição educativa ocorreram para
adequação às alterações na legislação educacional brasileira, bem
como de atender à reivindicação da comunidade local em prol de
homenagear o professor Leopoldo Luís de Miranda.
Com desenvolvimento da pesquisa, houve empenho em
constituir o acervo da Escola Estadual Professor Leopoldo
Miranda, na catalogação de cerca 592 documentos, divididos em 23
pastas. Os documentos encontrados são de temáticas variadas,
como: ofícios, livros atas, correspondências, diplomas, documentos
fiscais e financeiros, declarações, entre outros. Além desses
documentos, trabalhamos também com iconografias e livros
antigos da biblioteca da escola. Fizemos um resgate de fontes no
âmbito do patrimônio material da instituição, analisando
arquitetura do prédio escolar, mobiliário, equipamentos utilizados
nas atividades escolares. Buscamos outras fontes para que
complementassem a pesquisa, como a imprensa local e
documentos de outras instituições educativas, com intuito desvelar
a história da instituição de acordo com as fontes encontradas.
301
Tabela 01 – Catálogo do Acervo da Escola Estadual Professor Leopoldo Miranda
Nome da Pasta Códigos da Pasta Número de
Documentos
Atas 1 ATA 36
Atestados 2 ATESTADO 14
Documentos de Professores 3 DOCPROF 18
E.E. Professor Leopoldo Miranda 4 E.E.P.L.M 19
Escola Normal Oficial 5 E. NORMAL 19
Abaixo Assinado 6 ABA 02
Diplomas 7 DPL 18
Documentos Pessoais 8 DP 40
Carteirinhas 9 CARTEIRINHAS 05
Certidões 10 CERTIDÕES 05
Certificados 11 CERTIFICADOS 09
Correspondências 12 CORRESP 27
Administrativo 13 ADM 176
Livros 14 LIVROS 46
Termos 15 TRM 04
Formulários em branco 16 MOD 31
Ofícios 17 OFC 59
Declarações 18 DCL 12
Jornais 19 JOR 08
Legislação 20 LGL 12
Programas 21 PRO 06
Reunião 22 REUNIÃO 13
Financeiro 23 FINC 33
Total 23 592
Fonte: Elaborada pelos autores.
No conjunto de Atas da Escola Normal Oficial de Diamantina
(ENOD), do período de 1952 a 1969, foram realizadas leitura e
análise desses documentos, no primeiro ano de pesquisa. Com base
nessa fonte, verificamos a relevância dessa Escola no que tange
suas práticas educacionais inseridas na sociedade, no contexto
circunscrito no município pedagógico de Diamantina, enfatizando
suas relações políticas e educacionais, que a nortearam em um
período de cinco anos aproximadamente.
A escolha por trabalhar o período citado anteriormente,
advém de um processo de reinstalação da escola, após ela ficar em
302
torno de treze anos fechada, e reaberta oficialmente pela Lei n. 840,
de 26 de dezembro de 1951, por ato do Governador do Estado de
Minas Gerais, Juscelino Kubitschek (31/01/1951-31/03/1955).
O livro de atas analisado tem cinquenta páginas já amareladas
e com as bordas em algumas partes corroídas, no qual são relatadas
as reuniões da Congregação dos Professores da Escola Normal
Oficial de Diamantina, de 1952 a 1969. Nesse livro, notamos
algumas ações da instituição educativa, identificando situações
atípicas e rotineiras, mas fundamentais para o seu crescimento e a
sua consolidação.
Figura 2: Termo de abertura do Livro de Atas da Congregação dos Professores da
Escola Normal Oficial de Diamantina (24 abr. 1952)
Fonte: Acervo da Escola Estadual Professor Leopoldo Miranda
Ressalta-se que há nas relações políticas, sociais, econômicas e
até mesmo religiosas da sociedade de Diamantina, a influência
advinda da reabertura da Escola Normal Oficial de Diamantina
(ENOD), que se tornou elo norteador e referência no
entrelaçamento com outras instituições de ensino. No conjunto de
Atas existentes no livro, verifica-se todo um apelo político em torno
da reabertura da escola, tendo em 24 de abril de 1952, a sua
primeira reunião com presença de funcionários e professores da
instituição. A presença de autoridades locais de diversas áreas e
303
personalidades políticas influentes marcaram a solenidade de
reabertura da escola, como encontra-se explícito na terceira Ata do
livro:
Às 16 horas do dia 6 de maio de 1952, com a presença ilustre Governador do
Estado Dr. Juscelino Kubitschek; o Sr. Governador do território do Acre Dr.
João Kubitschek de Figueiredo; Dr. Odilon Behrens, secretário da Educação;
Dr. Joubert Guerra, presidente do Tribunal de Contas do Estado; Dr. Celso
Murta, diretor do Departamento de Estradas de Rodagem; Dr. Oswaldo
Penido, oficial de Gabinete do Ministério da Justiça; Major Afonso
Heliodoro, assistente Militar do Governador do Estado; o arcebispo D.
Serafim G. Jardim; Dr. Moacyr Pimenta Brant, Juiz de Direito da Comarca;
Dr. Lomelino Ramos Couto, prefeito; Sr. Anselmo Barreto; Inspetor Técnico
do Ensino, o Sr. Diretor, professores e alunos do estabelecimento, realizou-
se a reinstalação solene da Escola Normal Oficial (CONGREGAÇÃO, 1952,
p. 3).
Em conformidade com a leitura realizada, notamos que a
presença dessas autoridades na solenidade denota a importância
política e cultural da instalação de uma instituição educativa em
Diamantina, por exemplo, o governador do Estado de Minas
Gerais, Juscelino Kubitschek, natural de Diamantina,
acompanhado de representantes dos governos estaduais e do
executivo federal, do judiciário, da área militar, bem como
representantes da Igreja Católica. Esse fato nos chama a atenção,
pois a reabertura dessa escola foi palco para a materialização desse
ato político. Percebemos que a presença da autoridade religiosa
nessa solenidade, o bispo da região D. Serafim, que na situação
abençoou o edifício e à entronização da imagem do crucificado no
salão da diretoria.
Figura 3 - Registro fixado no verso do
Crucifixo doado pelo Governador do
Figura 4 - Frente do Crucifixo doado
pelo Governador do Estado Minas
304
Estado Minas Gerais, Juscelino
Kubitschek e foi benta pelo Exmo.
Arcebispo D. Serafim Gomes Jardim,
15h, do dia 06 de maio de 1952.
Gerais, Juscelino e benzido no dia 06
de maio de 1952.
Fonte: Acervo da Escola Estadual
Professor Leopoldo Miranda
Fonte: Acervo da Escola Estadual
Professor Leopoldo Miranda
A presença de personalidades nos ajuda a perceber a
importância da reabertura dessa instituição educativa na época,
para os agentes políticos, bem como para a própria sociedade, pois
essa escola ofereceria oferta de vagas para formação de professores
que atuariam na formação da sociedade. A ENOD marcou
profundamente a sociedade diamantinense, que preservou a
existência da Escola Normal em sua memória coletiva e a preserva
até os dias atuais, mais do que a identidade do atual nome da
EEPLM. Segundo Werde, Britto e Colau (2007), a presença de uma
escola é muito significativa para todo o município, isso independe
do contato direto das pessoas em relação à instituição, pois existe
uma afinidade estabelecida entre ambos.
A apropriação dos elementos que constituem a base material da instituição
escolar não é um processo circunscrito à comunidade interna, mas
ampliando para a cidade. A materialidade da escola tem significado para a
identidade institucional e para a sociedade, para os moradores das cercanias
do prédio escolar. Implica na vida dos moradores da cidade, mesmo que
estes não tenham estudado, trabalhado ou enviado seus filhos e netos para
aquele estabelecimento de ensino. À cidade como um todo pertence à escola
e, portanto, a preservação da memória de instituições escolares está afeta ao
ambiente no qual a escola se insere, às ruas e demais prédios, à vizinhança,
bairro (WERDE; BRITTO; COLAU, 2007, p.160).
305
O evento de reabertura e o retorno às atividades da ENOD,
além da expressiva presença de autoridades, movimentaram
também a equipe interna da própria instituição educativa, da
diretoria, de professores e demais servidores, que tiveram de tomar
decisões visando o melhor funcionamento do estabelecimento. Nas
Atas da Congregação, foram encontradas discussões dos temas
recorrentes nas reuniões: horários, livros, programa etc. Em 24 de
abril de 1952, durante a primeira reunião da escola, o diretor,
seguindo a indagação de uma professora, nomeou uma comissão
composta por três professoras para lidar com a questão dos
uniformes. Posteriormente, o inspetor fez alguns pedidos aos
presentes, para uma melhor relação entre todos os funcionários do
estabelecimento, bem como solicitou a presença discreta do diretor
da escola no cotidiano das aulas ministradas nas salas de aula,
como uma forma de manter a disciplina. Ele finalizou e fez
agradecimentos a todos que colaboraram com a organização do
espaço físico para a implantação da escola, conforme podemos
notar na Ata da Congregação (1952).
Na segunda reunião do corpo docente, em 04 de maio do
mesmo ano, ocorrida dois dias antes da reabertura oficial da escola,
o diretor deixou claro que os representantes políticos viriam a
cidade de Diamantina e instalariam o Grupo Escolar “Julia
Kubitschek” (CONGREGAÇÃO, 1952). A instalação de duas
instituições educativas, na mesma cidade, na mesma época,
demonstra o investimento e a preocupação do Governo do Estado
com a educação local e da região, validando o prestígio dessa
cidade diante de outras cidades do Vale do Jequitinhonha, que já
tinham recebido o estigma de uma região pobre e miserável. A
educação está em estreita relação com as áreas econômica e política,
que interferem substancialmente nos processos educativos.
Consideramos que os princípios republicanos de escolarização
para todos, nessa época, havia atingido parte da população, porém,
outras estavam ainda por ser abarcadas, sendo o foco de
investimento político e/ou econômico.
306
Apesar da escola pública brasileira nas primeiras décadas do século XX, ter
como objetivo a escolarização das camadas populares, só foram integrados
aqueles pertencentes aos setores ligados ao trabalho urbano, deste
contingente ficaram fora da instrução pública promovida pelo Estado os
pobres, os miseráveis e os negros. Setores que por volta de 1920 começam a
reivindicar o seu espaço na instituição pública escolar, despertando na elite
brasileira a preocupação com organização do sistema capitalista, que
dependia da preparação da massa para o mercado de trabalho (PEREIRA;
FELIPE; FRANÇA, 2007, p. 9).
A preocupação com a educação, em grande parte do Brasil,
nessa época, voltou-se para atentar ao movimento de
desenvolvimento do país, com a necessidade de oferecer uma
formação profissional para a população que estava crescendo em
número e migrando para as áreas urbanas. O ensino seria voltado
para a massa com o intuito de formar mão de obra qualificada para
a realização de trabalhos principalmente na área industrial. Assim
sendo, consideramos que o desenvolvimento econômico está
interligado com o desenvolvimento educacional, e, para tal, precisa
de investimentos financeiros para o custeio e a manutenção de sua
expansão e da sua qualidade em termos de ensino. Contudo, o que
se têm observado nos registros demonstra outra realidade
vivenciada, principalmente, na Escola Normal Oficial de
Diamantina. Seguindo as análises realizadas por meio das atas,
verificamos que em um curto espaço de tempo, posteriormente, a
sua abertura, a própria instituição passou por momentos difíceis
em decorrência da escassez de investimentos do próprio Estado.
Em 1953, depois de ter se passado um ano, após a abertura da
escola, é que se percebe uma preocupação, constada na Ata de
reunião, acerca do uso de uniformes pelos discentes. Além disso,
percebemos que nesse mesmo período, foi tomada a decisão de
constituir um “Caixa”, a fim de beneficiar os alunos necessitados
com os uniformes exigidos. A preocupação com a disciplina volta
a ser pauta, além da tentativa de tornar o Curso Ginasial mais
homogêneo com a modificação de horários (CONGREGAÇÃO,
1953).
307
No início do ano de 1954, houve uma reunião de professores e
dentre os assuntos em pauta estavam os seguintes: a recepção de
uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, em uma visita ao
estabelecimento, necessidade de desenvolver a vida social escolar
e pontualidade dos professores com a entrega de notas mensais.
Mas, esses fatos não chamam tanto a atenção como o último tema
discutido no final da reunião. Trata-se do recolhimento de taxas de
Laboratório e Biblioteca, em que aprovam a constituição de um
“Caixa”, para custear despesas necessárias, assim como efetuar
compra de material para a conservação e higiene da casa. As taxas
deveriam ser recolhidas à coletoria local para a manutenção das
atividades básicas da escola, conforme podemos notar na Ata da
Congregação (1954).
Em 1955, o diretor marcou uma reunião com o corpo docente
da escola para pedir exoneração do cargo, sendo uma decisão
motivada pela falta de recursos materiais no próprio
estabelecimento. Desse modo, o diretor não se contentou somente
em fazer pedidos, ele se ausentou da escola, por cinco dias, em uma
tentativa frustrada de encontrar pessoalmente com o governador
do Estado. Ficou decido, pelos professores, que o diretor não
deveria pedir demissão do cargo de diretor, pois essa atitude não
sanaria os problemas da escola, segundo consta na Ata da
Congregação (1955).
Contraditória foi essa situação vivenciada pela diretoria dessa
instituição, que nesse momento, não bastasse à falta de manutenção
do ensino pelo próprio Estado, o diretor da escola não fora recebido
pelo governador do Estado de Minas Gerais, Clóvis Salgado da
Gama (31/03/1955-31/01/1956). A intenção do diretor da ENOD era
de expor a realidade e as carências dessa escola, que não tinha
condições de proporcionar um ensino de qualidade naquele
momento.
Nesse contexto, a relação do Estado com a instituição
educativa torna-se paradoxal, em um período três anos, após a sua
instalação, a escola passa por problemas ocasionados pela falta de
assistência. O discurso presente na reabertura dela, promovido
308
pelo Secretário da Educação, foi incoerente com as atitudes
realizadas e narradas nas Atas, atingindo o ápice no ano de 1955.
Em um curto espaço de tempo, a escola que havia vivenciado o
brilho de sua reabertura, assistida pelo Estado e por parte da
sociedade diamantinense, deparou-se com a falta de
comprometimento do governo do Estado.
Os problemas ocasionados pela falta de comprometimento do
Estado, em relação à educação, são refletidos no final do ano letivo,
com grande número de reprovação de discentes na própria escola.
Em decorrência disso, o assunto foi pautado na reunião da
Congregação da ENOD, e foram elaboradas argumentações da
possível causa e solução, por parte de uma professora sobre o baixo
resultado obtido, passando pelos processos de seleção,
enturmamento, atitude de acompanhamento da direção e
envolvimento com as famílias dos alunos. A solução, então, seria
uma divisão mental dos alunos, será que esse seria o problema de
fato? Consideramos outras questões que poderiam contribuir para
o baixo resultado no aproveitamento dos alunos, que inclui o
material didático, entre outras coisas.
Finalmente uma das professoras presentes foi de opinião que as turmas não
teriam sido bem divididas quanto ao grau mental dos alunos, sugerindo que
se fizesse no início de ano um teste para selecioná-las, em vista da
diversidade mental entre os mesmos. Disse também que, se nos primeiros
meses fosse baixo o resultado de uma turma, tornassem os professores
providências quanto ao aproveitamento da mesma, chamando o aluno ao
diretor, comunicando aos pais, etc... Enfim, que se estudasse uma forma de
encaminhar os alunos ao estudo (CONGREGAÇÃO, 1955, p. 7).
Nos anos que se seguiram, foram projetados debates
constantes entre professores, em que cada um expôs seus métodos
de ensino para ser discutido no corpo docente. Houve incentivo da
diretoria para a organização do Grêmio e da biblioteca da escola
para consulta dos alunos. Essa ação visou criar um ambiente
escolar capaz de atrair os alunos, estimulando-os o gosto pelo
estudo (CONGREGAÇÃO, 1955).
309
No ano seguinte, a escola aparece com uma nova diretora na
reunião do corpo docente. Uma das pautas discutidas foi à
organização de um regimento interno. Posteriormente, a diretora
discursa a respeito da organização da biblioteca, essa passagem
pode ser notada por meio do seguinte trecho:
Disse a Sra. Diretora que todos os alunos estão interessados e trabalhando no
sentido de adquiri-la, entretanto, eles lançam um apelo ao corpo docente da
Escola, para que colabore com eles, sugerindo a ideia de cada professor dar
no início a quantia de C$ 50,00 e a contribuição de C$ 10,00 mensais. Os
professores presentes concordaram e aplaudiram a ideia (CONGREGAÇÃO,
1956, p. 8).
Foi criada, então, uma comissão de professores para
selecionarem os livros a serem adquiridos. Um dos professores
presentes ficou encarregado de fazer circulares dirigidos ao
comércio e indústria para colaborarem na compra dos livros,
conforme consta na Ata da Congregação (1956). Um aspecto
imprescindível foi a contribuição financeira por parte dos
professores, viabilizando financeiramente a constituição da
biblioteca. Uma das saídas encontradas para conseguir o material
didático necessário para a biblioteca foi pedir ajuda ao comércio
local. Diante dos fatos relatados, a precariedade da ENOD é
evidenciada em termos relacionados à aquisição de livros para a
criação e manutenção de uma biblioteca escolar, em razão da
oscilação do Estado na existência dessa instituição educativa. À
época, questionaram se essa função da construção de uma
biblioteca e a aquisição de livros não seria do Estado. Não seria isso
um investimento para a educação? Outro assunto debatido nessa
reunião foi a criação de uma associação dos pais e alunos, pois para
um bom rendimento escolar é fundamental a cooperação dos pais.
Em cinco anos de funcionamento da instituição educativa,
posteriormente a sua reabertura, foi verificado que o seu cotidiano
foi marcado por constantes lutas visando a sua manutenção e a
busca por melhorias no ensino a ser oferecido aos seus alunos.
Enquanto o Estado, por alguns momentos, não priorizava a
310
educação, deixando alguns estabelecimentos às mazelas, o
professorado se tornou questionador e assumiu frente de trabalho,
a partir do momento que se propôs a desempenhar funções para
além da sua incumbência posta nos suportes legais. A inconstância
dos investimentos oriunda das prioridades e das diretrizes de cada
governo estadual promoviam reações do professorado da ENOD
com vistas a manutenção da própria vida da instituição educativa.
Toda e qualquer evidência é útil para narrar uma história,
sabemos que ainda temos um longo caminho pela frente. O campo
da educação tem-se consolidado, apresentando uma vasta
possibilidade para a realização de estudos que proporcionem uma
melhor compreensão e entendimento de processos educativos.
Do distanciamento temporal decorrem implicações para o relato
especialmente o foco de suas características materiais, espaços,
equipamentos, mobiliário, decoração, instrumentos e materiais pedagógicos.
Mesmo em instituições que ainda estejam em funcionamento, se não houver
quem ou o que explique as articulações espaciais, se não houver um conjunto
de imagens que consigam explicitar minimamente as formas de
funcionamento dos espaços, dificilmente poderemos armar relatos
suficientemente claros e articulados. Imagens, fotografias e plantas
arquitetônicas isoladas com frequência poderão constituir apenas fração a
que não se consegue dar inteligibilidade com suficiente articulação. As
reformas, ampliações, intervenções no sentido de modernizar e prover mais
segurança ao prédio são fatores que implicam na configuração da cena e na
compreensão acerca da forma como a instituição se desenvolveu e
respondeu a demandas por expansão ou por especialização de serviços
(WERLE; BRITTO; COLAU, 2007, p. 152).
A história de toda instituição, para ser entendida, é necessário,
antes de tudo, a construção de um quebra-cabeça, de modo a juntar as
peças. É assim que conseguimos entender os processos conjuntos, na
tentativa de reconstruir a história das instituições educacionais, de
modo a compreender os seus processos, a sua trajetória, bem como os
seus percalços. Nesse contexto, cada elemento encontrado torna-se
uma importante evidência, que nos ajuda a explicar com detalhes o
funcionamento dos espaços educacionais.
311
Considerações Finais
A Escola Estadual Professor Leopoldo Miranda, espaço de
escolarização da sociedade de Diamantina e região, foi o foco dessa
pesquisa. Todavia, com os documentos contidos no acervo, é
possível redescobrir e revelar fragmentos da história da educação
das diversas instituições que existiram em seu prédio escolar.
Iniciamos pela da oficialização da Escola Normal Oficial, fato que
ocorreu em 1928 e pelo seu fechamento, em 1938, pelo ato do
governador Valadares.
Os documentos desse período não foram encontrados na
EEPLM, pois eles foram retirados pela Secretaria de Educação do
Estado de Minas Gerais, levando-os para a capital do Estado. Cerca
de treze anos passados, a Escola Normal Oficial foi reaberta. A
equipe de pesquisa, após as primeiras ações de higienizar e
identificar os documentos dispostos pela diretoria da atual EEPLM,
tomou-se logo a ação de digitar todo o livro Ata das reuniões dos
professores da ENOD, com registros de reuniões de 24 de abril de
1952 a 10 de janeiro de 1969.
As primeiras análises estão postas e outras em sequência
surgirão, à medida que os dados possam ser complementares a
esses primeiros. Os cinco anos analisados apresentam um corpo
docente e uma direção comprometidos em buscar soluções para a
manutenção e melhoria da qualidade de ensino, mesmo com a
oscilação da presença de recursos, por parte do governo do Estado.
Notamos, assim, uma presença ativa do professorado com vistas a
superar a falta de recursos, principalmente, em momentos de
alteração dos governantes estaduais. A recuperação e a
manutenção do acervo da EEPLM têm sido importantes para a
realização de estudos e pesquisas na área da história da educação,
com a finalidade de compreender a identidade da própria
instituição educativa, bem como do processo escolarização
ocorrida em Diamantina e região.
312
REFERÊNCIAS
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pronunciado, na capital da Baía, em 18 de agosto de 1933. Fonte
disponível em: https://pt.scribd.com/document/233081877/
Discurso-Vargas-03-Na-Capital-Da-Baia-1933-Ed-Prof. Acesso em:
Acesso em: 13 ago. 2012.
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OFICIAL. Atas de Reuniões da Congregação dos Professores – 24
abr. 1952 a 10 jan. 1969. Sala de Reuniões da Escola Normal Oficial
de Diamantina, MG. p. 1-50.
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UPF, 2000.
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(UESB), 26 a 29 de julho de 2011. Disponível em:
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PEIXOTO, A. M. C. Triste retrato: a educação mineira e o Estado
Novo - Parte I. Este documento faz parte da SEE-MG – Lições de
313
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PEREIRA, L. A; FELIPE, D. A; FRANÇA, F. F. Origem da escola
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fae.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada7/_GT3%20PDF/OR
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VIEIRA, F. C. F; OLIVEIRA, M. M. P. Instrução no município de
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república. Campinas, SP: Editora Alínea, 2012, p. 233-249.
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e história das instituições escolares. Diálogo Educ., Curitiba, v. 7,
n. 22, p. 147-163, set./dez. 2007.
314
315
CARTILHA DO DIREITO DO CONSUMIDOR PARA IDOSOS
Ana Caroline Fernandes Parrião1
Shavia Thaína Silva de Carvalho2
Introdução
De maneira geral a compreensão de leis e ordenamentos
jurídicos torna-se de difícil assimilação, levando em consideração o
vocabulário rebuscado e textos complexos para pessoas que não
são da área jurídica. Além de ser um assunto atual e necessário,
uma vez que os velhos são considerados pelo Código do Direito do
Consumidor como hipervulneráveis e os índices são altos em
relação a práticas abusivas e fraudes. Desta forma, justifica-se
discutir a questão, objetivando minimizar a situação.
Os cursistas do Mestrado em Educação, em especial os
proponentes deste artigo, se preocupam com a situação da idosa
frente as relações de consumo. Esta pesquisa serviu para uma
1Graduada em Direito pela Universidade Católica do Tocantins, Pós-Graduada em
Direito Constitucional, Advogada na comarca de Porto Nacional – Tocantins,
Mestranda em educação pela Universidade Federal do Tocantins. E-mail:
[email protected] 2 Graduada em Pedagogia, Licenciatura em Informática e Tecnóloga Ambiental,
Pós-Graduada em Gestão, Orientação e Supervisão Escolar, Professora na Rede
Municipal de Porto Nacional, Mestranda em educação pela Universidade
Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]
316
discussão acerca do tema, bem como a ampliação de nosso
conhecimento em torno da seara consumerista. Objetivamos
também, discutir se os idosos conhecem sobre seus direitos, na
medida em que ampliam seus conhecimentos. Além de ampliação
do conhecimento em relação ao direito do consumidor por parte
dos pesquisadores, pretende-se compreender o porquê ocorrem
causas prejudiciais ao consumidor velho. Da mesma forma,
produzir um conhecimento científico em torno da discussão, a
velhice e a compreensão dos estudantes da Universidade da
Maturidade em torno da temática.
Educação Interdisciplinar para Idosos
O processo de envelhecimento humano no Brasil representa
uma pauta de relevante enfoque, tendo em vista que a qualidade
de vida aumentou e com isso a expectativa de vida dos idosos
caminha juntos com essa estimativa de dados oficiais que
confirmam de forma acelerada e conclusa. Dessa maneira o
planejamento de políticas públicas voltadas para essa faixa etária
principalmente voltadas ao ensino, como por exemplo
Universidades para a melhor idade, Centros Interdisciplinares que
culminam para um objetivo em comum de fornecer mais dignidade
na velhice.
A velocidade do envelhecimento populacional traz questões a
serem trabalhadas, tanto para gestores como para pesquisadores da
educação contemporânea. Embora envelhecer seja um grande
triunfo, deve ser considerado que não basta gerar números e
estimativas, mas também deve-se observar melhores condições de
vida o que envolve mudança em diversos setores da sociedade
atual, de maneira que abranja todas as áreas sobre: educação,
saúde, direitos sociais, acesso à justiça dentre outros.
Com enfoque no âmbito educacional em estudos e propostas
de como levar Ensino- aprendizagem para idosos. Partindo deste
pressuposto o conceito de interdisciplinaridade admitiu uma
grande melhoria na ideia de integração do currículo e os interesses
317
de cada disciplina são conservados. Os princípios da
transversalidade e de transdisciplinaridade buscam ir além da
concepção de disciplina, buscando-se uma intercomunicação entre
elas.
Os temas transversais são conceitos essenciais para a
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade em consonância com
os ramos do conhecimento, pois ao usar a criatividade de forma a
preservar os conteúdos programáticos vinculam-se aos contextos,
que podem ter enfoque prático na vida real, social e familiar do
aluno. Vale ressaltar que a ética e a cidadania são temáticas que
devem ser inseridos de maneira que abranja todas as disciplinas,
desse modo os paradigmas interdisciplinar e transdisciplinar
contribuem para a qualidade da construção de saberes e valores
cognitivos, afetivos e sociais. Partindo desse pressuposto do envelhecimento demográfico,
percebe-se a necessidade de trabalhar estratégias que possam
fornecer um suporte adequado à população idosa crescente. Neste
sentido, as competências na atuação profissional junto aos idosos
tem objetivos novos parâmetros para o conhecimento
contextualizando nos processos sociais do envelhecimento e na
prestação de serviços sociais para a comunidade. Portanto, é
necessário considerar a situação da capacidade de atuação diante
de múltiplas diversidades e de situações inerentes ao
envelhecimento, desenvolvendo trabalhos com equipes
multiprofissionais, buscando a atuação integral ao mesmo nível de
todos os profissionais, das estruturas organizacionais e dos
arranjos políticos.
Aplicação do Ensino Transversal na prática
O ensino tem como base a transversalidade que diz respeito à
possibilidades de se introduzir nas práticas educativas, analogias
entre aprendizados conhecimentos teoricamente sistematizados,
aprendendo sobre as realidades e as diversas questões da vida real,
o que torna-se a concretização de aprendizados na prática. A escola
318
vista por esse ângulo educacional, deve transmitir uma visão mais
ampla e eficaz, ceifando com a fragmentação do conhecimento,
pois somente dessa maneira se apossará de uma cultura
interdisciplinar. A transversalidade e a interdisciplinaridade são
conceitos de trabalhar o conhecimento que buscam reintegração de
procedimentos acadêmicos, que ficaram isolados uns dos outros
pelo método disciplinar.
Necessário se faz tornar uma visão mais abrangente da
realidade, que muitas vezes se nos apresenta de maneira
fragmentada. Por meio dessa ênfase pode-se intervir na realidade
para transformá-la. Quando nos referimos aos temas transversais
nos os colocamos como um eixo unificador da ação educativa, em
torno do qual organizam-se as disciplinas. A abordagem das temáticas transversais deve orientar-se
pelos processos de vivências da sociedade, pelas comunidades,
educandos e educadores em seu cotidiano. Os objetivos e conteúdo
desses temas transversais devem estar inseridos em múltiplos
cenários de cada uma das disciplinas do currículo. Considera-se a
transversalidade como o modo correto para a ação pedagógica
destes temas.
A transversalidade só tem sentido dentro de uma
compreensão interdisciplinar do aprendizado, sendo
implementado com propostas didáticas que possibilitam a
abordagem compreensiva de conteúdos de forma a integra-las em
todas as áreas do conhecimento. A transversalidade e
interdisciplinaridade têm como parâmetros educativos propostas
de uma educação comprometida com a cidadania e o enfoque
social, conforme regulamentam os Parâmetros Curriculares. Os alunos do Mestrado da Universidade do Tocantins, na
disciplina de Tópicos em Educação Intergeracional, visando
atender uma necessidade e propor novas orientações de forma
interdisciplinar a fim de disseminar o conhecimento acerca dos
direitos do consumidor para velhos, principalmente na prevenção
de golpes e fraudes.
319
Segundo Pablo Jimene Serrano (2003) o Direito do
Consumidor serve principalmente para suprir as insuficiências do
Direito Civil, preencher lacunas jurídicas existentes ao se tratar de
uma relação de consumo utilizando o Código Civil, lacunas estas,
que impedem uma justa proteção do consumidor velho frente os
fornecedores de produtos e serviços.
A presente pesquisa que foi baseada em referenciais teóricos, e
entrevistas com os cursistas da UMA- campus de Porto Nacional,
buscou abordar e dimensionar qual o conhecimento que os velhos têm
sobre o direito do consumidor? Como agir em uma situação de golpe
ou fraude? Com base nesses questionamentos relacionando com a
legislação vigente, jurisprudências e doutrinas atualizadas, para obter
uma maior compreensão acerca dos direitos do consumidor no
âmbito da classe que é considerada hipervulnerável, partindo do
Código de Defesa do Direito do Consumidor, lei nº 8.078, de 11 de
setembro de 1990, objetivando aplicar o ensino do direito do
consumidor na Universidade da Maturidade - UMA do campus de
Porto Nacional /TO, confeccionando uma cartilha explicativa que
expõe os principais direitos consumeristas para os velhos, atuando na
prevenção de golpes.
Partindo deste pressuposto, observaram-se índices altos em
relação a práticas desrespeitosas, fraudulentas relacionadas aos
direitos dos velhos nas operações de consumo. O envelhecimento é
uma fase natural do cotidiano humano e não deve ser restringido
somente por perdas de capacidades. Segundo Simone Beavouir que
observa a velhice como resultado de um processo que envolve
vários aspectos e geram mudanças contínuas no curso da vida.
Não basta, portanto, descrever de maneira analítica os diversos
aspectos da velhice: cada um deles reage sobre todos os outros e é
afetado por eles; é no movimento indefinido desta circularidade que
é preciso apreendê-la (BEAUVOIR, 1990, p. 16).
Desse modo a Cartilha do Consumidor buscou sanar um
desconhecimento dos direitos do consumidor que são inexplorados
320
pela velhice. Se o velho não sabe seus direitos essa deficiência vem
desde fases anteriores, não sendo esse desconhecimento uma
característica da velhice.
Inexistem políticas públicas que ensinam os direitos em gerais
para os cidadãos, devendo assim um indivíduo que não pertente a
seara jurídica, buscar informações concernentes aos seus direitos
de forma individual e mitigada, o que não gera satisfação tendo em
vista a complexidade das nossas leis.
Foi perceptível a desinformação das pessoas com idade mais
avançada frente às questões jurídicas, contratuais e financeiras.
Essa deficiência vem de uma construção histórica, onde os leigos
não tinham acesso aos ordenamentos jurídicos. Daí,
aproveitando-se da situação, muitas empresas impõem seus
produtos de forma exagerada ao consumidor idoso, sendo essa
conduta enquadrada em prática abusiva, vedada pelo CDC3.
O artigo 39 do citado código esclarece que é vedado ao fornecedor
de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas, prevalecer-se
da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade,
saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus
produtos ou serviços. A pesquisa buscou por meio das entrevistas
realizadas verificar por critério de observação os principais meios
pelos quais a população em geral tem acesso ao conhecimento de
seus direitos como consumidores, visto ser intrínseco ao bom
andamento da paz social o conhecimento por parte do cidadão, em
sentido “lato”, que dele necessita.
Antes mesmo de iniciar a pesquisa já é detectado a falta de
acesso, incompreensão das normas aplicadas a sociedade. São
poucos indivíduos da sociedade atual que conhecem a gama de
direitos básicos trazidos pela Constituição Federal de 1988. Quando
3 O Código de Defesa do Consumidor é uma lei 8.078/90, que estabelece normas
de proteção e defesa do consumidor, abrangendo e tratando das relações de
consumo dentre as esferas: cíveis, penais e administrativas. Define as
responsabilidades, vedações e mecanismos para a reparação de danos causados.
Segundo o CDC práticas abusivas são condutas, cláusulas contratuais
caracterizadas como ilícitas, podendo serem encontradas em seu artigo 39.
321
se observa nas áreas especificas do direito como, por exemplo, o
direito do consumidor examina-se uma extrema carência de
conhecimento, de informações básicas que deveriam ser
esmiuçadas para toda a população em caráter emergencial.
Tendo em vista toda essa problemática abordada, o tema da
pesquisa é válido, a UMA – campus de Porto Nacional torna-se o
lugar ideal para iniciar a disseminação do ensino do direito do
consumidor, a aplicação da cartilha explicativa como uma forma de
ensaio para quem sabe partindo desse início para que essa
transmissão de conhecimento percorra todas as faixas etárias, toda
a população tocantinense e brasileira.
A UMA é a Universidade da Maturidade, um projeto com uma
proposta pedagógica que visa a melhoria da qualidade de vida dos
adultos e velhos. É um espaço destinado para o conhecimento e
troca de vivências para o envelhecer digno e funcional. Com dez
anos na conquista de uma velhice ativa, o curso já formou mais de
mil idosos. A proposta pedagógica do programa visa à melhoria da
qualidade dos idosos, a partir de uma educação centrada nos eixos
da cultura, saúde e lazer na maturidade. Essa universidade foi
fundada pela Doutora Professora Neila Osório que tem como
missão de vida propiciar melhores condições nas abordagens
pedagógicas para pessoas de terceira idade.
A Universidade da Maturidade está presente em oito cidades
no Estado do Tocantins e no campus de Porto Nacional que fica
dentro na Universidade Federal do Tocantins tem sido
desenvolvido um trabalho com maestria envolvendo mais de 40
idosos com prioridade em atividades educativas promovendo o
resgate da cidadania. A proposta da pesquisa de trabalhar uma
cartilha com velhos na universidade foi muito bem recebida pelos
alunos.
Com base em instrumentos legais positivados na legislação
pátria, buscou-se extrair do Estatuto do Idoso, além de outros
dispositivos legais como o Código do Consumidor Brasileiro, por
exemplo, conceitos simples e objetivos sobre dez passos para a
pessoa idosa, que exprimissem de forma clara as principais ideias
322
trazidas pelo legislador ao construir as leis, a fim de alcançar toda
uma coletividade, independente da instrução acadêmica. A
Cartilha foi estruturada com base nos questionamentos e dúvidas
dos alunos da Universidade da Maturidade.
Em uma aula ministrada no dia 05/06/2019 primeiramente foi
distribuído um questionário com perguntas objetivas a respeito do
conhecimento dos velhos em relação ao direito consumerista,
também foi perguntando se os velhos já tinham sido vítimas de
algum golpe que envolvesse o direito do consumidor.
A pesquisa em questão foi de natureza aplicada, do ponto de
vista dos objetivos foi estatística, uma vez que pretendeu fixar os
objetivos e teve sua formulação de hipóteses na tentativa de buscar
um novo enfoque para a temática do direito do consumidor.
Utilizamos revisões bibliográficas, e pesquisas documentais, numa
abordagem qualitativa. Para que a pesquisa alcançasse os
resultados planejados trabalhamos também com pesquisa
bibliográfica.
Os instrumentos utilizados foram: a aplicação do Ensino da
Cartilha do Direito do Consumidor e duas entrevistas com
questões pré-definidas e análise de doutrinas e legislações,
objetivando conhecer e aprofundar mais no tema. Segundo Santos
e Araújo (2007) o processo vivenciado pelo pesquisador e
entrevistado traduz o êxito da entrevista e no diálogo estabelecido
entre ambos.
Cartilha para idosos sobre os direitos do consumidor
Então elaborou-se uma cartilha com 15 páginas, com
introdução, descrição dos objetivos da cartilha , os dez passos para
o conhecimento e a prevenção de golpes e fraudes sendo eles
divididos em: Direitos Básicos do Consumidor, Cuidado com
documentos e informações pessoais, esclarecimento sobre golpes e
fraudes, Empréstimos consignados, saúde, cultura, esporte, lazer,
atendimento preferencial, transporte, compras na internet, prazos
para reclamar, além de esclarecer telefones e informações úteis da
323
cidade de Porto Nacional . Além disso, a Cartilha conta com
quadros simplificados que fornecem as informações, afim de que
os velhos compreendam informações simples sobre o tema
pertinente de cada direito.
A cartilha elaborada foi apresentada para os estudantes. Com
base no questionário respondido inicialmente, antes da
apresentação da cartilha, já era possível dimensionar o nível do
conhecimento dos velhos e suas principais queixas e dúvidas.
A apresentação ocorreu de forma lúdica e detalhada,
primeiramente a cartilha foi apresentada em forma de slides em um
telão onde possibilitou que os alunos fixassem bem o conteúdo.
Posteriormente foi entregue as cartilhas impressas custeadas pelos
acadêmicos do mestrado, sendo distribuídas para cada um, no total
foram disponibilizadas 35 cartilhas explicativas acerca dos direitos
do consumidor em questões mais frequentes no cotidiano dos
velhos.
O estudo do tema no referencias teóricos foram muito
relevantes o que possibilitou que aos acadêmicos aprofundar-se no
tema para que as informações repassadas aos alunos fossem
concisas e de fácil compreensão, utilizando-se uma linguagem mais
informal afim de que o conhecimento fosse repassado e capitado
em sua integralidade, com a discussão baseada no conteúdo e
ilustração da Cartilha.
Após a entrega das cartilhas foi repassado mais questionário
com perguntas como: A aula sobre o Tema: Cartilha do Ensino do
Direito do Consumidor para velhos foi proveitosa? Algum ensinamento
ficou gravado sobre os Direitos do Consumidor? O entrevistado se sente
mais seguro em relação ao conhecimento dos seus Direitos
Consumeristas? Qual a chance de 0 a 10 de o entrevistado cair em algum
golpe relacionado depois das aulas e da cartilha apresentada?
Ao analisarmos as respostas obtemos um resultado conclusivo
de que esse tema abordado é de suma importância para está faixa
etária, uma entrevistada que não quis se identificar relatou que:
“Durante o ano de 2018 eu fui vítima de um golpe onde por ingenuidade
324
entrei meus documentos para estranhos e eles fizeram empréstimos no
valor de quinze mil reais...”
Em uma análise geral dos entrevistados que afirmaram que a
cartilha permitiu perceberem a seriedade do assunto e que os dez
passos foram válidos para um conhecimento que até então lhes
eram desconhecidos por acharem que o Código do Consumidor
não tratava de assuntos pertinente a velhos.
Foi possível colher os dados de que aproximadamente 80%
dos acadêmicos entrevistados já tiveram seus direitos lesados e não
sabiam como agir ou a quem recorrer nesse tipo de situação.
Finalizamos a aula com a transmissão de uma entrevista
gravada na Sede da Polícia Cível de Porto Nacional, onde a
delegada Daniella Toigoi4, relatando que na 1º DCP, 75% dos casos
que chegam até a delegacia são de golpes e fraudes contra idosos e
que é de suma importância de que os velhos se resguardem e
estejam sempre atentos para que não sejam vítimas desse tipo de
ocorrência.
Conclusão
De nada adianta a existência de uma lei se as pessoas não a
conhecerem. De nada adianta a impressão de infindáveis exemplares
de um material, se ele contém apenas a letra fria da lei, de difícil
compreensão a grande massa popular. E para que ocorra a defesa
efetiva dos direitos da pessoa idosa é necessário que estes sejam
plenamente conhecidos e difundidos pela sociedade. A Cartilha do
Consumidor Velho é um material único e de referência nacional,
4 A entrevista foi realizada pela mestranda Ana Caroline Fernandes Parrião na
Delegacia da Polícia Cível de Porto Nacional. A gravação foi feita para a
pesquisa do artigo de mestrado com base na temática dos golpes que ocorrem
na comarca de Porto Nacional contra idosos. A delegada apresentou índices e
exemplos dos casos mais frequentes que se consumam por meio de ligações
fraudulentas onde os golpistas forjam situações corriqueiras, solicitando dados
pessoais e bancários dos idosos e os mesmos acabam repassando essas
informações sendo vítimas de atividades criminosas.
325
materiais estes que devem instrumentalizar toda a sociedade, tendo o
seu conteúdo cada vez mais popularizado e acessível a todos. Afinal,
“respeitar as pessoas idosas é tratar o próprio futuro com respeito”
(texto inicial da Cartilha do Consumidor Velho)
Infere-se que a aplicação de ensinos transversais e
interdisciplinares para os idosos é que grande valia, vale a pena
ressaltar que, atualmente, existe importante inclinação acadêmica
para a formação de profissionais especializados em determinada
área do conhecimento, o que pode ser visto como importante
contribuição para o avanço técnico-cientifico. No entanto, a
constituição de uma equipe multidisciplinar é considerada
requisito essencial para a promoção de estudos e pesquisas que
poderão propiciar à sociedade conhecimentos pautados no
conceito da interdisciplinaridade, evitando-se que a abordagem do
indivíduo ocorra de forma estratificada, comprometendo a análise
dos resultados obtidos. As linhas de pesquisa sobre a temática do
envelhecimento humano e como lidar com esse processo.
REFERÊNCIAS
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Helena Franco Monteiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
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Brasília/DF, 200
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Atlas, 2008.
SERRANO, Pablo Jimenez. Introdução ao Direito do Consumidor.
São Paulo: Manole, 2003.
326
327
O DESENHO UNIVERSAL PARA A GARANTIA DA
ACESSIBILIDADE E FERRAMENTA PARA O
PLANEJAMENTO URBANO
Tarcisio Dorn de Oliveira1
Luis Gustavo de Melo Atkinson2
Geovane Schulz Rodrigues3
Igor Norbert Soares4
Bruna Fuzzer de Andrade5
1 Doutor em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Mestre em Patrimônio Cultural pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bacharel em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Professor Adjunto do
Departamento de Ciências Exatas e Engenharias (DCEEng-UNIJUÍ). Líder do
Grupo de Pesquisa Espaço Construído, Sustentabilidade e Tecnologias (Gtec-
UNIJUÍ). 2 Estudante de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Bolsista de Iniciação Científica
(PROAV-UNIJUÍ). 3 Estudante de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Bolsista de Iniciação Científica
(PROAV-UNIJUÍ). 4 Mestre em Engenharia Civil e Ambiental pela Universidade de Passo Fundo
(UPF). Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Cruz Alta
(UNICRUZ). Docente dos Cursos de Engenharia Civil e Arquitetura e
Urbanismo da UNIJUÍ. Integrante do Grupo de Pesquisa Espaço Construído,
Sustentabilidade e Tecnologias (Gtec-UNIJUÍ). 5 Mestra em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Franciscana (UFN).
Docente dos Cursos de Engenharia Civil e Arquitetura e Urbanismo da UNIJUÍ.
Integrante do Grupo de Pesquisa Espaço Construído, Sustentabilidade e
Tecnologias (Gtec-UNIJUÍ).
328
Considerações iniciais
O desordenado crescimento urbano nas últimas décadas,
principalmente nas áreas urbanas, tem fomentado discussões sobre
o desenvolvimento das cidades pelo viés da acessibilidade, haja
vista, que a mesma (ou a falta dela) pode intervir, tanto no meio
urbano como na vida das pessoas que habitam tais espaços. Diante
da pluralidade social é notório a falta de um planejamento
sustentável que torne o meio ambiente urbano mais saudável e
acessível a todos – estabelecendo com que muitas pessoas sejam
impedidas de praticar suas atividades diárias de forma segura e
autônoma.
Nesse viés, o planejamento urbano adequado de uma cidade
deve permitir a equidade no uso dos espaços, a fim de propiciar
um amplo e democrático acesso a todas as oportunidades que uma
cidade pode oferecer. Logo, a promoção da acessibilidade é
inerente a todos os ambientes construtivos, pois o exercício da
cidadania está diretamente ligado aos espaços. A acessibilidade
deve proporcionar que todos os cidadãos possam usufruí-lo de
forma igualitária. Para Guarinello (2013, p.46):
[...] cidadania implica sentimento comunitário, processos de inclusão de uma
população, um conjunto de direitos civis, políticos e econômicos e, significa
também, inevitavelmente, a exclusão do outro. Todo cidadão é membro de
uma comunidade [...] a essência da cidadania, se pudéssemos defini-la,
residiria precisamente nesse caráter público, impessoal, nesse meio neutro
no qual se confrontam, nos limites de uma comunidade, situações sociais,
aspirações, desejos e interesses conflitantes. [...] só há cidadania efetiva no
seio de uma comunidade concreta, que pode ser definida de diferentes
maneiras, mas que é sempre um espaço privilegiado para a ação coletiva e
para a construção de projetos para o futuro.
Diante do que um espaço urbano deve oferecer, o mesmo tem
que proporcionar a integração e, jamais, a segregação. Nesse
sentido, é de extrema importância que todos sintam-se inclusos nos
espaços que ocupam, pois, a promoção da acessibilidade dentro
329
dos espaços urbanos é intrínseca ao sentimento de pertencimento.
Para garantir a democracia nas cidades e nos espaços que as
compõem, inúmeras normas e legislações foram desenvolvidas.
Contudo, há um grande descompasso entre o que está descrito nas
normativas e o que pode ser encontrado na realidade. A falta de
infraestrutura necessária para garantir o bem-estar de todos os
cidadãos faz com que sejam criadas barreiras, tanto físicas quantos
sociais, acarretando em problemas que podem ser vistos e sentidos
por todos e, por consequência, diminuindo a qualidade de vida das
pessoas nas cidades.
Para a elaboração do presente artigo6 foram realizados
levantamentos bibliográficos desenvolvidos com base em material
já elaborado. A partir dos dados obtidos, realizou-se a análise e
interpretação das informações, mesclando-as de maneira a
conseguir uma maior compreensão sobre o tema abordado. Assim,
o presente ensaio busca refletir a acessibilidade e a inclusão social
nos espaços urbanizados entendendo o Desenho Universal como
uma ferramenta para o planejamento e desenvolvimento local afim
de garantir o acesso amplo e democrático no meio ambiente
construído.
Desenvolvimento
A cidade caracteriza-se como um lugar em que diferentes
personalidades desfrutam dos mesmos espaços pleiteando a
garantia de seus direitos e a igualdade através da ideia de
diversidade, formando um pensamento de convívio entre as
diferenças e a igualdade de direitos. Segundo Almeida, Giacomini
e Bortoluzzi (2013), para se ter uma cidade acessível e igualitária é
preciso respeitar a diversidade em todos os seus aspectos, para que
6 Desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa Espaço Construído, Sustentabilidade
e Tecnologias – Gtec da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul – UNIJUÍ através do Projeto de Pesquisa Espaço construído e inclusão social:
levantamento e análise da acessibilidade da área urbana de Ijuí / RS.
330
diante das mudanças físicas ou sensoriais decorrentes do passar da
vida, o meio ambiente urbano ainda seja um local acolhedor.
Avelar e Carvalho (2010) colocam que a acessibilidade é um
dos principais fundamentos para a qualidade de vida e o
exercício da cidadania pelas pessoas portadoras de deficiências.
Ainda, os autores ressaltam que, por mais que se tenha
consciência do regulamento que determina a eliminação de
barreiras arquitetônicas e urbanas, nota-se que a acessibilidade
nos espaços em geral é muito restrita no país. Relatam ainda que,
dessa forma, muitos portadores de deficiência encontram
dificuldades de locomoção nas vias públicas e de acesso aos
transportes públicos. Esses indivíduos são vítimas de inúmeros
constrangimentos, que inviabilizam o exercício pelos direitos à
educação, à saúde e ao trabalho.
A acessibilidade espacial deve ser entendida como uma
possibilidade de acesso e uso à todas os sujeitos, garantindo seu
direito de ir e vir. Dischinger e Machado (2006), esclarecem que a
acessibilidade significa poder chegar a algum lugar com conforto e
independência, entender a organização e as relações espaciais que
este lugar estabelece e participar das atividades que ali ocorrem
fazendo uso dos equipamentos disponíveis. A inclusão social
através da acessibilidade permite o exercício da cidadania, que
para Pinsky (2013, p.09), cidadania “é ter direito à vida, à liberdade,
à propriedade, à igualdade perante a lei [...] em resumo é ter
direitos civis. [...] direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à
saúde, a uma velhice tranquila”.
Diante da pluralidade social hoje evidenciada, o planejamento
e o desenvolvimento atrelados à acessibilidade, à inclusão social e
à cidadania podem oferecer à todas as pessoas a livre circulação e
o direito à vida, bem como, a pratica de seus deveres como cidadão
no dia a dia, fazendo as próprias escolhas e construindo seus
futuros participando do enredo social. O desafio de efetivar a
acessibilidade urbana está em entender o desenvolvimento como
possibilidade de acesso amplo e democrático à cidade, assim:
331
Considerada uma das funções–chave da cidade, desde Le Corbusier (1989) a
circulação e, atualmente, acessibilidade urbana constituem funções sociais
da cidade, objeto da política de desenvolvimento urbano a que se referem à
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade de 2002. Assim, planejar
desenvolvimento urbano é, sem dúvida, pensar formas economicamente
viáveis, de acesso a equipamento urbanos e serviços públicos por todos os
habitantes da cidade, inclusive por minorias como pessoas de mobilidade
reduzida (AZEVEDO; CALEGAR; ARAÚJO, 2006, p.1).
O ambiente urbano deve ser capaz de oferecer meios pelos
quais a população possa exercer seu direito de ir e vir e a
mobilidade urbana diz respeito a forma que o indivíduo chega aos
locais para exercer suas atividades. Pensar em planejamento
urbano é também pensar na forma em que o uso dos espaços e a
organização da cidade pode garantir a livre circulação e acesso para
todos e não atrelar a mobilidade urbana apenas aos meios de
transportes e ao trânsito. Portanto, sendo a mobilidade o meio de
locomoção que o indivíduo dispõe dentro do meio ambiente
urbano, a acessibilidade tem função de garantir que o translado por
esse meio seja feito de forma autonomia e segurança, garantindo
também através da Constituição Federal da República Federativa
do Brasil de 1988 a proteção e integração social (BRASIL, 1988).
Oliveira e Callai (2018) observam que o espaço pode libertar
ou aprisionar e, neste sentido, cabe a ideia de que a inclusão deve
acolher a todos, sem exceção, independentemente das condições. A
cidadania reserva um conjunto de direitos e deveres no usufruto
dos espaços e na possibilidade em poder acessá-lo, (re) conhece-lo
e transformá-lo. Para os autores supracitados, é preciso ter o
entendimento que todo sujeito possui identidade e pertencimento
– que é social, mas também é espacial – o que encaminha
desenvolver e a promover a cidadania.
Com o passar dos anos, principalmente na
contemporaneidade, tanto o conceito quanto a pratica social da
acessibilidade desenvolveu-se amplamente sendo agregada às
experiências do cotidiano. Hoje o exercício da cidadania evidencia-
se, principalmente, pelo espaço e o que ele tem a oferecer para que
332
todos possam desfruta-lo de forma igualitária. Para Souza (2001),
um dos principais problemas na sociedade moderna é que primeiro
as pessoas se estabelecem nos espaços de forma desordenada e,
somente depois disso, os governantes tentam levar racionalidade e
planejamento para esses espaços. A busca pela autonomia e
segurança a partir da eliminação de barreiras tanto sociais quanto
arquitetônicas, públicas ou privadas, viabilizam a promoção da
acessibilidade em todas as camadas sociais (ABNT, 2015).
Para Carletto e Cambiaghi (2016) o ser humano “normal” é
precisamente o ser humano “diverso” e é isso que nos enriquece
enquanto espécie. Portanto, a normalidade é que os usuários sejam
muito diferentes e que deem usos distintos aos previstos em
projetos. Nesse viés, o Desenho Universal é uma ferramenta de
inclusão embasada na formação e informação, disponibilizando
uma vida social a pessoas que vivem à margem da sociedade,
devido à suas diferenças – este conceito é capaz de democratizar e
transformar a vida das pessoas em diversas perspectivas, seja nas
edificações, infraestrutura urbana e até os produtos utilizados
diariamente.
Ao decorrer da vida, o ser humano passa por inúmeras fases,
sempre em transição mudando características e atividades. Ainda
os autores supracitados reforçam que quando crianças, nossas
próprias dimensões nos impedem de alcançar ou manipular uma
série de objetos, às vezes, por segurança, às vezes, porque a criança
não foi pensada como usuário. Quando adultos, nos encontramos
em inúmeras situações que dificultam, temporariamente, o nosso
relacionamento com o ambiente – como gestação, fraturas,
torcicolos, quando carregamos pacotes muito grandes ou pesados,
entre outros. Ao alcançarmos mais idade, nossa força e resistência
decrescem, os sentidos ficam menos aguçados e a memória decai.
Também é possível, mesmo que não frequentemente, ao logo da
vida, adquirir alguma deficiência, seja ela física, psíquica ou
sensorial.
Após a Revolução Industrial questões sobre a grande massa
dos processos produtivos surgiram, principalmente às imobiliárias,
333
em que o questionamento constante era sobre a criação de
ambientes adaptados as necessidades reais dos usuários. Neste
momento começa a surgir os primeiros entendimentos sobre
Desenho Universal, que para Carletto e Cambiaghi (2016), a
concepção de conforto está intimamente ligada a fatores pessoais:
altura, dimensão, idade, destreza, força e outras características.
Pensando nisso, em 1961, países como Japão, EUA e nações
europeias, reuniram-se na Suécia para discutir como reestruturar e
recriar o velho conceito que produz para o dito “homem padrão”,
que nem sempre é o “homem real”.
Na cidade de Washington, no ano de 1963 surge a Barrier Free
Design, que mais tarde chamar-se-ia de Universal Design – Comissão
que tinha como objetivo abordar questões como o desenho de
edifícios, áreas urbanas e equipamentos para a inclusão de pessoas
com mobilidade reduzida ou deficiência visando atender as
necessidades de todas as pessoas, pensando em uma maneira
universal de atender a todos, sem pensar no “homem padrão”
estabelecido. Para Carletto e Cambiaghi (2016), o projeto universal
é o processo de criar os produtos que são acessíveis para todas as
pessoas independentemente de suas características pessoais, idade
ou habilidades – os produtos universais acomodam uma escala
larga de preferências e de habilidades individuais ou sensoriais dos
usuários.
Ron Mace foi o arquiteto e criador do termo Universal Design
(Desenho Universal) no ano de 1987. Mace era cadeirante e
respirava por meio de aparelhos e acreditava que o conceito se
tratava de uma percepção da a utilização de diversos objetos,
edificações e ambientes para todos, sem restrições. Durante a
década de 1990, juntamente com outros arquitetos, Mace criou um
grupo para defender o conceito do Desenho Universal,
estabelecendo sete princípios. Este conceito foi aprimorado na
Universidade de Carolina do Norte – EUA, pelos profissionais da
área de arquitetura, pensando em ambientes íntegros e acessíveis
de fácil acesso para qualquer cidadão sem criar a necessidade de
adaptações para portadores de deficiência. Por exemplo, qualquer
334
produto ou ambiente pode ter o seu uso usufruído de maneira
igualitária indiferente da mobilidade, corpo ou postura – o
Desenho Universal é uma tecnologia direcionada a todas as
pessoas, não apenas aquelas que necessitam.
O Desenho Universal apresenta sete princípios, que foram
definidos durante o Center for Universal Design – Evento realizado
na Universidade da Carolina do Norte – EUA, durante os anos 90,
em que um grupo de arquitetos estabeleceu critérios para as
edificações, produtos, ambientes internos e urbanos, focado na
arquitetura e design centrado nas diversidades do ser humano
atendendo um maior número de usuários universais. Tais
princípios foram primordiais para uma nova compreensão no
planejamento e ordenamento das cidades, pois visam a democracia
dos ambientes públicos e privados para todos os usuários.
a) Uso Equitativo: tem o intuito de propor produtos, objetos e
espaços que permitam o uso a qualquer cidadão, indiferente de
suas capacidades, evitando segregação, oferecendo segurança,
privacidade, proteção e sendo atrativo a todos usuários;
b) Uso Flexível: observa as diferentes habilidades dos
usuários, assim como preferências divergentes, admitindo
adequações em seu uso;
c) Uso Simples e Intuitivo: permite a fácil compreensão do
espaço indiferente do grau de conhecimento, linguagem,
compreensão e habilidade do indivíduo, removendo obstáculos
desnecessários, facilitando o uso intuitivo;
d) Fácil Percepção: dá-se pela utilização de diferentes meios de
comunicação – é um dos aspectos principais, a simbologia,
informações sonoras e táteis são empregadas, para a compreensão
de todos usuários, indiferente das dificuldades individuais ou
culturais, maximizando com clareza as informações essenciais;
e) Tolerância ao Erro: prioriza a segurança dos usuários
minimizando os riscos e consequentemente os acidentes;
f) Princípio do Esforço Físico Mínimo: os equipamentos e
elementos devem ser planejados para uma utilização eficiente,
335
confortável e segura, exigindo o mínimo de fadiga, minimizando
esforços físicos e ações repetitivas;
g) Dimensionamento de Espaços para Acesso e Uso
Abrangente: o uso confortável é estabelecido aos usuários, tanto de
pé quanto sentados, definindo um bom alcance visual de produtos
e ambientes, oferecendo condições de contato e manuseio
indiferente das condições ergonômicas, possibilitando o livre
exercício de suas atividades cotidianas para usuários do tamanho
do corpo, uso de muleta, cadeira de rodas, próteses, entre outras.
Na década de 1980 teve início o debate sobre os princípios do
Desenho Universal no Brasil, em que o principal objetivo era
informar e conscientizar os profissionais da arquitetura e da
construção civil. No ano de 1981 a Declaração do Ano Internacional
de Atenção às Pessoas com Deficiência teve grande repercussão no
Brasil, aprofundando o debate sobre o Desenho Universal e
fortalecendo o debate existente que sobre a eliminação de barreiras
arquitetônicas às pessoas portadoras de deficiência. No mesmo ano
algumas normativas nacionais foram promulgadas com o objetivo
de regularizar o acesso para todos os cidadãos indiferente das
dificuldades de mobilidade ou deficiências.
A primeira Norma Técnica brasileira referente à acessibilidade
surgiu no ano de 1985 criada pela ABNT (Associação Brasileira de
Normas Técnicas) chamada de “Acessibilidade a edificações,
mobiliários, espaços e equipamentos urbanos à pessoa portadora
de deficiência” – NBR 9050. Esta Norma ainda regulamenta as
questões de acessibilidade no país, onde a mesma foi revisada nos
anos de 1994, 2004 e 2015. A referida Norma observa a
acessibilidade como a possibilidade e condição de alcance para a
utilização, com segurança e autonomia, de edificações, espaços,
mobiliários e equipamentos urbanos buscando um Desenho
Universal.
O Desenho Universal ou Desenho para Todos visa à concepção
de objetos, equipamentos e estruturas do meio físico destinadas a
serem utilizados pela generalidade das pessoas, de modo a
simplificar a vida de todos – pode ser entendido como a ampliação
336
das possibilidades de uso, tanto na infraestrutura urbana como de
produtos, em que possa ser acessado de maneira igualitária por
todas as pessoas. Atualmente o debate no país encontra-se em
crescimento e a conscientização por parte dos profissionais,
usuários e gestores vem aumentando, pensando na qualidade de
vida e inclusão social de todas as pessoas nos espaços construídos.
Os conceitos de mobilidade urbana, planejamento e
desenvolvimento das cidades apresentam-se na perspectiva de
uma qualidade de vida mais digna e adequada às pessoas.
Considerações finais
Grande parte da população enfrenta dificuldades em algum
momento da vida – seja para locomover-se, localizar-se,
compreender informações ou, até mesmo, para executar tarefas
cotidianas, trazendo grande desconforto e, em alguns casos,
resultando exclusão social e descaso. Fica evidente a necessidade
de fazer com que todos os ambientes urbanos sejam acessíveis –
para que, independentemente de quem usá-los, possa ter a
convicção que o espaço urbano, através de um planejamento
adequado e inclusivo, apresente tudo o que for necessário para
atender as singularidades e as necessidades de cada indivíduo.
A inclusão social é uma preocupação recorrente na área de
arquitetura e urbanismo, visto que os profissionais da área são os
responsáveis por planejar a cidade para as pessoas, através de seus
entendimentos alterando e adaptando a paisagem urbana.
Fomentar o debate do planejamento urbano pela inclusão social e
acessibilidade é importante para que a sociedade tenha em mente
de que a cidade é de todos e que a mesma deve ser capaz de abraçar
a diversidade que compõe o meio urbano.
A inclusão social das pessoas com diferentes habilidades,
tamanhos e diferentes culturas é uma ação muito importante para
a sociedade, pois foge do conceito do homem padrão – o Desenho
Universal aborda questões que tem o intuito de implantar no
cotidiano, basicamente o usufruto igualitário da infraestrutura sem
337
segregações. Nesse sentido, o conceito de Desenho Universal surge
para suprir as necessidades humanas visando facilitar a vida de
todos os cidadãos, pois pensa na infraestrutura necessária para que
todos tenham as mesmas capacidades de executar atividades
rotineira.
O Desenho Universal propicia a qualidade de vida nos centros
urbanizados prevendo e eliminando barreiras nas atividades
cotidianas da população, pois prioriza a segurança, a autonomia e
a inclusão. Praticamente todas as pessoas, em algum momento da
vida, encontrarão dificuldades, sejam elas geradas por acidentes,
doenças ou simplesmente o envelhecimento. A acessibilidade em
todas as suas esferas é, portanto, um direito de todos os cidadãos,
pois, através dela é exercido o direito de ir e vir em toda sua
plenitude, sendo capaz de criar um ambiente mais inclusivo e
menos segregado.
É a partir de um planejamento urbano adequado que se obtém
a inclusão social e assim permitindo que o direito de todos seja de
fato exercido, criando um meio ambiente urbano mais saudável e
oportunizando com que novos caminhos sejam feitos para alcançar
uma sociedade mais democrática. A pratica do exercício da
cidadania, através da inclusão social, dá-se pelo desenvolvimento
efetivo de políticas públicas que visam um planejamento urbano
abrangente e, principalmente, cumprindo o que já foi estabelecido
pelas legislações e normativas.
A cidade planejada para oferecer acessibilidade em seus
meios, apresentará automaticamente em sua malha urbana e
ambientes mais acessíveis quando comparada com uma cidade que
surgiu sem um prévio planejamento. O planejamento tem um
papel extremamente importante, não apenas para resolver
problemas já existentes, mas também evitar que os mesmos
apareçam. Um planejamento urbano adequado e sensível à
inclusão social, nada mais é, do que o resultado do livre direito à
vida, alcançada através da liberdade do usufruto dos espaços que
compõem o meio ambiente urbano, garantindo o direito de todos
338
participarem da trama social de forma efetiva usufruindo do
espaço como cidadão.
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340
341
A FALÁCIA DO INÚTIL
Lucca de R. N. Tartaglia1
Inútil
No dia 26 de abril de 2019, o presidente Jair Messias Bolsonaro,
através de um post no Twitter, confirmou o corte de investimentos
nas faculdades brasileiras de ciências humanas, que havia sido
anunciado, na noite anterior, pelo ministro da educação, Abraham
Weintraub2. De acordo com o chefe do executivo, a “função do
governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os
jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere
renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a
sociedade em sua volta”. Ainda de acordo com Bolsonaro, o
objetivo era “focar em áreas que gerem retorno imediato ao
contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”3.
1 Doutorando da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro pesquisador
do grupo FORPROLL. 2 Na noite anterior, Weintraub, durante uma transmissão ao vivo pelo Facebook,
salientou: “A função do governo é respeitar o dinheiro do pagador de imposto.
Então, o que a gente tem que ensinar para as crianças e para os jovens? Primeiro,
habilidades: poder ler, escrever e fazer conta. A segunda coisa mais importante:
um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família dela, que
melhore a sociedade em volta dela”. 3 Cf. Anexo único.
342
A visão utilitarista presente nas declarações encontra ecos na
reforma do 1º e 2º grau, realizada durante o governo de Emílio
Médici, no ano de 1971. Em uma mensagem que acompanhava o
projeto da Lei 5.692, o então ministro da educação, Jarbas
Passarinho, defendia que a reforma proposta implicava em
“abandonar o ensino verbalístico e academizante para partir,
vigorosamente, para um sistema educativo de 1º e 2º grau voltado às
necessidades do desenvolvimento”. Tais alterações, visando atender
ao surto desenvolvimentista que acompanhou o “milagre
econômico”, colaboraram para a cisão profunda, por exemplo, entre
a gramática e a lógica4, “separou-se a faculdade de Filosofia da de
Letras [...], suprimiu-se o curso clássico, eliminaram-se do currículo
escolar o Latim e o Francês, privilegiaram-se umas Ciências ditas
‘exatas’ e um Inglês ordenados estritamente ao técnico-comercial”,
restringindo “o ensino da Gramática à transmissão de regrinhas e
‘macetes’ que capacitassem para a aprovação em concursos e
vestibulares”. (NOUGUÉ, 2015, p. 27-28).
A ideia de “focar em áreas que gerem retorno imediato”, de
atender “às necessidades do desenvolvimento”, coloca em
evidência a desvalorização dos saberes humanísticos em
detrimento de outros, que, por estarem ligados, diretamente, ao
lucro e a fins mais comerciais, são considerados como “úteis” (ou
mais úteis) para a sociedade – no que diz respeito, principalmente,
aos aspectos econômicos.
4 Em “De Bagno a Nougué: Fragmentos de gramática e política”, apontamos
algumas das consequências provenientes da separação, no longo prazo, da
faculdade de Filosofia da de Letras: “A cisão entre a gramática e a lógica no
ensino, levada a cabo pela separação das faculdades de Letras e Filosofia,
corroborou para a criação de um gap significativo, já que – como explica Nougué
– o gramático, sem conhecimento suficiente da lógica, perde “consistência
teórica e, portanto, normativa” (NOUGUÉ, 2015, p. 28). Além disso, a lacuna
gerada impossibilita que o estudante perceba a base que sustenta as estruturas
gramaticais, conduzindo os estudos, inevitavelmente, para os “macetes” e para
as “decorebas”. Frente a uma nuvem de categorias aparentemente sem
fundamento, o estudante não vê sentido na gramática; a gramática, para ele, não
importa e, como tudo o que é excesso, acaba sendo deixada de lado”.
343
Aprovada, parcialmente, em 2017, a Base nacional comum
curricular (BNCC) – já prevista na Constituição de 1988, na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, e no Plano
Nacional de Educação (PNE), de 2014 – “expressa”, de acordo com
Mendonça Filho na versão dedicada ao Ensino médio, “o
compromisso do Estado Brasileiro com a promoção de uma
educação integral e desenvolvimento pleno dos estudantes” e,
segundo Rossieli Soares da Silva na apresentação à versão
completa, garante “o conjunto de aprendizagens essenciais aos
estudantes brasileiros, seu desenvolvimento integral por meio das
dez competências gerais para a Educação Básica, apoiando as
escolhas necessárias para a concretização dos seus projetos de vida
e a continuidade dos estudos”. Vejamos, antes de prosseguirmos,
as ditas dez “Competências gerais da educação básica”: 1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o
mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade,
continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa,
democrática e inclusiva.
2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das
ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação
e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular
e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos
conhecimentos das diferentes áreas.
3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais
às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção
artístico-cultural.
4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como
Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como
conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se
expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em
diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.
5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e
comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas
práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e
disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e
exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de
conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações
344
próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da
cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência
crítica e responsabilidade.
7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para
formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que
respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e
o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com
posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do
planeta.
8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional,
compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e
as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.
9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação,
fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos
humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de
grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem
preconceitos de qualquer natureza.
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade,
flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em
princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.
(BRASIL, 2018, p. 9-10)
Nenhuma das competências pode ser desenvolvida partindo,
unicamente, da visão utilitarista, desenvolvimentista e
instrumental citada nos parágrafos iniciais e reiterada, com uma
espantosa frequência, pelo atual governo.
Para além dos documentos norteadores já mencionados, vale
destacar também que a formação pautada, unicamente, no “útil” –
ou em uma ideia específica de utilidade – assume um caráter
criminoso ao contrariar, por exemplo, o artigo 205 da carta magna
– ou o artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)5 ou,
5 Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno
desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I – igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado por seus
educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às
instâncias escolares superiores; IV – direito de organização e participação em
entidades estudantis; V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua
residência. Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do
345
ainda, o artigo 2º, presente no título II, da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional6. Na Constituição cidadã, lê-se:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 2016, p. 123).
Sem os meios necessários para a sua realização, o direito à
liberdade civil, ao exercício da cidadania, torna-se impraticável e
converte o sistema de representação democrática em um jogo de
hipocrisias, fomentando processos de alienação e alimentando a
ignorância. Os indivíduos, ignorando as regras que coordenam as
peças no tabuleiro, passam a figurar “como alvos fáceis para
aqueles que, em posição de domínio dentro dos diferentes campos,
de forma mais ou menos lúcida, recorrem a manipulações das mais
variadas ordens para atingir fins dos mais variados tipos”.
(TARTAGLIA, 2018, p. 270).
Uma ideia tão restrita – e, ao mesmo tempo, tão restritiva –
mostra-se incompatível, inclusive, com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos – da qual o Brasil é signatário e que tem, nas
suas bases, a sombra de documentos importantes, como a
Declaração da Independência dos EUA, de 1776, e a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 – ao contrariar o inciso
II do artigo 26, a saber:
A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais
processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas
educacionais. (BRASIL, 2017, p. 46). 6 Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 2018, p. 8).
346
ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da
manutenção da paz. (ONU, 2019, p. 14).
Considerar o ser humano não a partir de sua complexidade,
mas de uma perspectiva reducionista, simplista e generalizante,
colaborando para o desenvolvimento parcial das suas
potencialidades, é afastar-se também, enquanto caminhamos para
longe dos pontos de referência, da Meta nº 6, apresentada no Plano
Nacional de Educação – e de outros postulados presentes em
documentos diversos, como no Decreto nº 7.083, de 27 de janeiro
de 2010, na Portaria Normativa Interministerial nº 17, de 24 de abril
de 2007, etc – que destaca o objetivo de “oferecer educação em
tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das
escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco
por cento) dos(as) alunos(as) da educação básica”. Deve-se
considerar, para uma melhor compreensão dos termos, as
diferenças básicas entre educação integral e tempo integral. Como
buscamos salientar em “Para pensar a educação integral”,
apesar de se confundirem e, com alguma frequência, caminharem juntos, os
termos educação integral e educação em tempo integral não funcionam como
sinônimos e não apontam, necessariamente, para as mesmas práticas. O
tempo integral diz respeito à ampliação da jornada escolar – ligada,
geralmente, à ideia de que, com mais tempo disponível, haverá mais
qualidade no ensino. A educação integral, por sua vez, passa pela noção
grega de Paidéia, pela Humanitas, dos latinos, pelo humanismo
renascentista dos séculos XIV e XV, pelos jacobinos, na Revolução Francesa,
com seus ideais iluministas de transformação através da instrução, por
pedagogos (ou pedagogistas) notáveis e suas “escolas experimentais”, como
Paul Robim e o Orfanato Cempuis, Sébastien Faure e a Colmeia (La Ruche),
Alexander Sutherland Neill e a (ainda em ativa) Summerhill, Anísio Teixeira
e o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, até nomes e feitos mais
contemporâneos, como o de Darcy Ribeiro e os CIEPs (Centros Integrados
de Educação Pública), e o do luso-brasileiro José Pacheco, com a Escola da
Ponte, em São Tomé de Negrelos, o Projeto Âncora, em São Paulo, a CAP
(Comunidade de aprendizagem do Paranoá), em Brasília, inaugurada em
2018, e muitos outros projetos. (TARTAGLIA, 2018, p. 270-271).
347
Dessa forma, podemos considerar que a “educação integral,
reconhecendo as variadas e complexas dimensões do homem, teria
por objetivo (...) transmitir as técnicas e saberes que melhor
servissem à superação dos problemas apresentados pela vida na
contemporaneidade”, abarcando as várias áreas da vida, passando
pela ética e a estética, pelo emocional e o social, etc. “Ocorre, porém,
que as mudanças – nunca como agora – têm seguido num ritmo
cada vez mais acelerado e novas situações, inéditas na história
humana, têm surgido a cada dia, exigindo respostas para perguntas
que, até “ontem”, não tínhamos. (TARTAGLIA, 2018, p. 272).
Talvez, a capacidade de ir além da leitura elementar e da escrita
instrumental, além das quatro operações básicas, nunca tenha sido
tão imperiosa. Talvez, a despeito do que sempre apareceu nos
documentos reguladores, a filosofia, a sociologia e as artes, de
forma geral, nunca tenham se mostrado tão necessárias, tão “úteis”.
Frente a inseguranças profundas e radicais, num tempo de obstáculos cada
vez mais alargados, obstáculos que têm proporção global (terrorismo,
conflitos nucleares, colapso ecológico, etc), muitos países, de maior ou menor
expressão, como a Inglaterra, a Hungria, a Índia, os EUA, as Filipinas, a
Argentina, a Rússia e o Brasil, têm se fechado num nacionalismo de reação,
transitando entre o patriotismo sadio e o extremismo dos ultranacionalistas.
Os avanços na área da biotecnologia, unidos à capacidade atual de
processamento, oferecem cada vez mais informações para o(s) sistema(s). Os
algoritmos, a cada novo upgrade, aprendem e decidem mais acerca de tudo.
Em breve, todos os gigantes da internet – Google, Facebook, Netflix,
Amazon, Apple, Twitter, etc – saberão, muito antes de nós, qual é o conteúdo
que melhor nos consome. Na era das “coisas espertas”, smart things for dumb
people, temos gadgets e apps para quase tudo: para gerenciar finanças pessoais,
agendar compromissos de trabalho, dizer por onde devemos seguir e onde
devemos parar e onde devemos comer, para medir a qualidade do sono e
para nos lembrar de beber água mais vezes durante o dia. No entanto, se a
bateria acaba ou, por alguma razão, o sistema falha, entramos em stand by
(ou, a depender da situação e do vício, em desespero). Estamos obcecados e,
num surto prolongado de cronofobia, através das infindáveis funções dos
smartphones e afins, registramos compulsivamente – fotografamos tudo,
filmamos tudo, gravamos tudo para ter a experiência depois, para
experimentar mais tarde o que, por falta de tempo, não voltaremos nunca a
ver, a experimentar. Por todos os lados, apelos publicitários anunciam novas
348
necessidades, produtos indispensáveis para uma vida equilibrada, pílulas
miraculosas que asseguram o bem-estar, artefatos fundamentais para
garantir a produtividade – e mesmo aqueles que foram excluídos do
consumo, como bem apontou Lipovetisky, se tornam hiperconsumistas,
porque todos ambicionam fazer parte do “mundo do consumo, dos lazeres
e das grifes famosas”. Lidar com tudo isso – e com a inconstância que,
essencialmente, faz e fará parte das nossas vidas – implica níveis absurdos
de esgotamento físico, emocional e mental. (TARTAGLIA, 2019, p. 273-274).
Ler, escrever e fazer contas, no século XXI, não será o suficiente
para garantir o pleno desenvolvimento, o exercício – real – da
cidadania e, nem tão pouco, a qualificação para o trabalho, porque,
visando ao “pleno desenvolvimento da pessoa” humana, ensinar
“a leitura, a escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere
renda” não é o bastante para assegurar o “bem-estar” e/ou as
melhorias na comunidade circundante. A função do governo, nesse
sentido, é respeitar não o dinheiro do contribuinte, mas o cidadão
– que é um contribuinte, certamente, e muito mais –, ensinando
para as crianças e os jovens, conforme previsto na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, na Constituição Federal, no ECA,
na LDB, na BNCC, e em tantos outros documentos norteadores, a
partir de uma perspectiva integral e de um paradigma ajustado às
demandas do século XXI, porque só “uma educação que leve em
conta as muitas dimensões do humano poderá oferecer alguma
estabilidade em tempos tão instáveis e movediços”, só uma
educação “voltada para o desenvolvimento de habilidades que
ajudem a discernir o que é do que não é importante, habilidades de
curadoria do conteúdo, que preparem o indivíduo para lidar com
o turbilhão de estímulos que chegam, quase de forma ininterrupta,
por todas as frentes, poderá conduzir à autonomia individual e à
autogestão social”, assim como ao pleno desenvolvimento da
pessoa, ao exercício da cidadania e à qualificação para o trabalho,
tendo em vista um mercado cada vez mais agressivo e volátil.
Assim, o objetivo deve ser – ou deveria ser – investir em áreas que
gerem retorno a curto, médio e longo prazo, tanto ligadas aos
349
saberes humanísticos como aos demais saberes, para evitar o nosso
fracasso imediato como sociedade.
Em suma, se já sabemos, por suposto, a respeito das muitas
utilidades de áreas como a medicina, a engenharia e a veterinária,
precisamos nos perguntar – tendo sempre em vista os objetivos, as
metas e os caminhos apresentados desde a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, no pós-guerra, até a Base Nacional Comum
Curricular –, se a literatura, assim como as outras artes, tem alguma
serventia, para que, afinal, ela serve?
Útil
Alguns poderiam recorrer à conveniência de um oximoro
como aquele utilizado por Ordine, “a utilidade do inútil”, dizendo
que o inútil é útil para tudo aquilo que o útil é inútil, ou, ainda, que
o útil é inútil frente ao que valida o inútil como útil. No entanto,
nada ou muito pouco é o que se conclui dessas afirmações – ao
menos durante uma primeira vista e a partir de uma leitura binária.
Um pouco no contrassenso, acreditamos, realmente, que os textos
literários têm uma função social, ainda que não possam – e não
devam – ser resumidos a tal função e não cumpram,
obrigatoriamente, com ela. Antônio Cândido, no célebre ensaio “O
direito à literatura”, encerra o texto com a seguinte passagem:
“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos e
a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos
os níveis é um direito inalienável” (CANDIDO, 2004, p. 191).
Cândido, ao adotar uma visão mais alargada do conceito de
literatura – apropriada, deve-se dizer, para o propósito do ensaio –
salienta:
Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a
literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é
possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não
haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável
de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade,
inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente.
350
Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes
de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar.
(CANDIDO, 2004, p. 175).
Mesmo concordando com a ideia de que “talvez não haja
equilíbrio social sem literatura”, temos de lidar com a seguinte
questão: por que e como ela, a literatura, é “fator indispensável de
humanização”? Se entendermos “humanização” como o processo
de aquisição ou assimilação de um conjunto de características
voltadas para a formação do homem enquanto humano e, por
conseguinte, para a noção de humanidade – percebendo
“humanidade” nos termos da humanitas, dos antigos romanos, ou
da paidéia grega – podemos considerar, de forma um tanto
genérica, que a indispensabilidade da literatura como fator, ou seja,
como elemento que coopera para a obtenção de um resultado,
reside na sua heterodoxia, na sua condição insubmissa e no
importante papel que essa insubmissão tem no desenvolvimento
de cada indivíduo.
Seguindo por essa via, a literatura – enquanto conceito aberto7
– e a leitura de textos literários favorecem, dentre outras coisas, a
formação dos três pilares apontados por José Pacheco8, que dão
sequência, por sua vez, aos quatro9 indicados pela Comissão
7 Tratamos acerca do “potencial de abertura” do conceito em “Elucubrações
filosófico-literárias” e acreditamos, ainda hoje, que a “crença em um conceito
absoluto não só prejudica os diálogos, produzindo desavenças dos mais
variados níveis e, por conseguinte, afastamentos, como também transforma em
estéril, em infértil qualquer tentativa de reflexão acerca do novo. Não se trata de
ser vanguardista ou de estar na retaguarda, de um posicionamento conservador
ou revolucionário, mas de considerar os termos “literatura” e “literário” em toda
a sua potência, em toda a sua potencial abertura”. Cf. TARTAGLIA, Lucca.
“Elucubrações filosófico-literárias”. Revista Forproll, vol. I, nº 02 (Ed. Especial),
2017, pp. 171-194. 8 Cf. PACHECO, José. “Os pilares”. Revista Educação. Disponível em:
https://www.revistaeducacao.com.br/os-pilares/. Acesso em: 11 jun. 2019. 9 Presentes na versão editada do relatório, publicada em formato de livro,
Educação: um tesouro a descobrir, os quatro pilares são: aprender a conhecer,
aprender a fazer, aprender a viver juntos e, finalmente, aprender a ser.
351
Internacional sobre Educação para o Século XXI num relatório para
a UNECO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura). Pacheco apresenta, em um artigo publicado
na Revista Educação, os “sustentáculos” complementares: o
aprender a desaprender, o aprender a desobedecer e o aprender a
desaparecer.
A escrita com fins instrumentais, ou seja, voltada
exclusivamente à comunicação cotidiana, à coesão, coerência e
concisão da mensagem transmitida, e a leitura elementar, focada na
compreensão e seleção de uma ou mais unidades de informação,
observando certas condições, em textos diversos de extensão
média, realizando pequenas inferências em situações do cotidiano
doméstico ou social, são de natureza ortográfica e, nessa lógica,
colaboram para a perpetuação da ortodoxia vinculada ao senso
comum dominante, enquanto a literatura é, no seu contato com as
normas, heterográfica e, portanto, heterodoxa.
A literatura ensina a desaprender (a desconstruir) o que nos
prende, o que nos aferrolha, o que nos mantém presos às
circunstâncias e a ideias pré-conceituadas, porque subverte as
normas e brinca com as regras ao trabalhar, por entre os limites da
linguagem, o duplo sentido, a plurissignificação das palavras, as
possibilidades de interpretação, etc. A literatura nos mostra os
elementos latentes e os aspectos artificiais submersos na tessitura
psicossocial dos comportamentos e das cosmovisões que se
tornaram, de lento a lento, o “natural”, no que é, ou passou a ser,
manifestadamente, insuspeito e óbvio, revelando, nas paisagens de
sempre, o que nunca tínhamos visto. A literatura ensina a
transgredir, a reconhecer o direito à desobediência civil, o direito a
desobedecer às condutas, aos preceitos e aos pré-juízos que
normalizam e normatizam as condições precárias de determinados
estados socialmente vulneráveis. A literatura, finalmente, ensina a
desaparecer, porque no exercício de “outrar-se”, implicado na
leitura de um texto literário, o indivíduo experimenta as bases de
uma autonomia interdependente, percebe a existência de um outro
e “dessa percepção surge, através do estimulo à reflexão, ao
352
posicionamento crítico, à participação e à solidariedade, uma gama
de questionamentos importantes para o desenvolvimento de
espaços democráticos”10. (TARTAGLIA, 2018, n.p). Assim, a
literatura se firma como um discurso herético, contribuindo não
somente para desatar os nós que prendem o indivíduo ao senso
comum11, “professando publicamente a ruptura com a ordem
ordinária”, mas também para a produção de um novo senso
comum, imbuído das práticas e das experiências “até então tácitas
ou recalcadas de todo um grupo”. (BOURDIEU, 2008, p. 119).
Em um pequeno ensaio publicado na Revista Contemporartes,
“Verificações de guardanapo: a literatura em uma sociedade de
universos insulares”, buscamos apontar, de forma sucinta, o que
nos parece ser um dos aspectos essenciais da leitura de textos
literários enquanto promotora de condições favoráveis ao
desenvolvimento da simpatia e da empatia.
Quando o escritor consegue, através do seu exercício de outrar-se, arranhar
a superfície da solidão, causando tremores na fundura mais distante do sem
nome, nas profundezas do nosso lugar – como pedra que tocasse a superfície
de um lago – reconhecemos, na obra, um vulto conhecido, mas não é o “lugar
do outro” que desponta, é o nosso lugar ampliado por um exercício de
compaixão (co-paixão). Através da literatura, podemos sentir juntos, sentir
“com” o outro, mas não chegamos a sentir o mesmo que o outro. Ao ler A
cidade de Deus, do Paulo Lins, Quarto de despejo, da Carolina de Jesus, Dom
Quixote, de Cervantes, ou A geração da utopia, de Pepetela, não vivemos o que
aqueles personagens vivem, mas sentimos a vida daqueles personagens
através do que nós mesmos já vivemos, através das nossas próprias
experiências. O que surge é uma terceira vivência, que não é nossa, que não
é deles, mas que é compartilhada. (TARTAGLIA, 2018, n.p.).
10 Cf. TARTAGLIA, Lucca. “Literatura e democracia”. Revista Contemporartes.
Disponível em: http://revistacontemporartes.com.br/2018/08/09/literatura-e-
democracia/?stmenuid=166&stcategory=1. Acesso em: 08 mai. 2019. 11 Para compreender melhor o que queremos dizer ao mencionar a ideia de “senso
comum”, consultar: TARTAGLIA, Lucca. “Sobre o gosto e o senso comum”.
Revista Forproll, vol. III, n. 01, 2019, pp. 217-224.
353
O aprendizado através da leitura e da experiência estética,
partindo de uma vivência que oscila entre o posicionamento
simpático e uma posição empática, está presente na leitura tanto de
clássicos da língua inglesa, como Orwell e Huxley, John Steinbeck
e Henry David Thoreau – you know, we're all living in America –
quanto de autores modernos e contemporâneos de língua
portuguesa, como, no Brasil, Lima Barreto e Monteiro Lobato,
Julián Fuks e Ferrez; em Angola, Agualusa e Onjack; em Portugal,
Saramago e Valter Hugo Mãe; em Moçambique, Mia Couto e
Paulina Chiziane, dentre tantos outros nomes.
Em última instância, a literatura, vista a partir da perspectiva
até aqui apresentada, serve à formação estética, sensível – e,
portanto, também ética – do ser humano, assegurando, por
exemplo, na medicina, na engenharia e na veterinária, médicos,
engenheiros e veterinários mais simpáticos e empáticos12, ou seja,
mais atentos e preocupados com a administração responsável da
vida humana, animal e ambiental, zelando, enquanto procuram
melhorar a sociedade em sua volta, pelo bem-estar da “família
humana e da casa comum”.
Fútil
De acordo com o Dicionário etimológico da língua portuguesa, a
palavra “fútil” vem do latim “futĭlis” e significa “frívolo,
insignificante”. (CUNHA, 2010, p. 305). Encararmos de maneira tão
leviana, inconsistente e superficial o ser humano no processo de
12 Os termos “simpáticos” e “empáticos” são aqui utilizados tendo em vista,
principalmente a sua etimologia. De acordo com o Dicionário etimológico de língua
portuguesa, “sim-” deriva do grego “syn-”, “que expressa a ideia de
simultaneidade”, e “em-”, também derivado do grego, tem o “sentido de posição
interior, movimento para dentro” (CUNHA, 2010, p. 242; 597). Tendo em
consideração que “-páticos” remete a “phatos” – “sentimento” em grego –, o
simpático é aquele que sente junto, que sente com (e, nesse sentido, aproxima-se
da ideia de co-paixão), enquanto o empático seria o que sente dentro, que,
verdadeiramente, traz para o interior, que se importa e, ao importar-se,
transforma em seu o sentimento alheio.
354
educação é sermos, irremediavelmente, fúteis e irresponsáveis.
Ensinar a leitura, escrita e a fazer conta não será suficiente se
ambicionamos, de fato, como sugere a Constituição cidadão de 1988,
colaborar para o “pleno desenvolvimento da pessoa”, fazendo
cumprir a Declaração Universal do Direitos Humanos, da qual o
Brasil é signatário. Para atingirmos as metas do PNE,
desenvolvendo as competências expostas no BNCC e acatando as
diretrizes dos demais documentos norteadores, precisaremos
reconhecer a utilidade dos saberes humanísticos e da literatura,
aceitando o ser humano na sua profunda complexidade, nas suas
diversas e múltiplas dimensões. Além do mais, há uma diferença
crucial entre ler e escrever certo, conforme as regras gramaticais
aceitas e seguindo os parâmetros socioculturais perpetuados por
tais regras13, e ler e escrever bem. Só assim será possível
proporcionar, de forma concreta, o pleno desenvolvimento da
pessoa, os instrumentos para o exercício da cidadania e as
habilidades necessárias no que se refere à qualificação para o
trabalho no século XXI. Queremos um país de leitores, de
indivíduos aptos a ler o mundo em sua profundidade, como um
grande, complexo e intrincado texto14, ou seja, como uma estrutura
sígnica real, e não uma multidão de ledores alienados que passam
por tudo como que nada passasse por eles. Sem os elementos e
conhecimentos necessários para a sua realização, a democracia não
13 A respeito do caráter político da(s) gramática(s), ver: TARTAGLIA, Lucca. “De
Bagno a Nougué: fragmentos de gramática e política”. Revista Forproll, vol. II, nº
01, 2018, pp. 353-369. 14 No contexto do raciocínio apresentado, utilizamos a palavra “texto” num
sentido mais amplo, à maneira dos semioticistas. A respeito propósito dessa
“ampliação” do sentido, Claus Clüver salienta: “Quero aqui apenas indicar que,
sobretudo entre semioticistas, uma obra de arte é entendida como uma estrutura
sígnica – geralmente complexa –, o que faz com que tais objetos sejam
denominados ‘textos’, independente do sistema sígnico a que pertençam.
Portanto, um balé, um soneto, um desenho, uma sonata, um filme e uma
catedral, todos figuram como ‘textos’ que se ‘lêem’; o mesmo se pode dizer de
selos postais, uma procissão litúrgica e uma propaganda na televisão”.
(CLÜVER, 2006, p. 15).
355
passa de um engodo e só a educação integral – indo além dos
desvarios teóricos e dos impulsos reducionistas – pode assegurar,
com alguma assertividade, a soberania do povo.
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Disponível em: http://revistacontemporartes.com.br/2018/09/13/
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ANEXO ÚNICO
Fonte: https://bit.ly/2YCbOMa.