entrevista - andreas huyssen

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Entrevista a Andreas Huyssen ana Fabíola Maurício * Andreas Huyssen é professor de Alemão e de Literatura Comparada na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde fundou o Centre for Comparative Literature and Society, tendo sido também director do Departamento de Lín- guas Germânicas. Vencedor do Prémio Mark van Doren, atribuído pela Uni- versidade de Columbia aos que demonstram «espírito humanitário, devoção à verdade e liderança inspiradora», Andreas Huyssen tem vindo a desenvolver o seu trabalho em torno de várias problemáticas que se interligam, e das quais se destacam questões relacionadas com o estudo do papel dos intelectuais, do modernismo, do pós-modernismo, dos fenómenos da memória histórica, e com a análise de diferentes aspectos da globalização. De uma forma sucinta, qual foi o seu percurso académico enquanto historiador? Os meus primeiros trabalhos foram sobre teorias românticas alemãs de tradução e de apropriação, um outro livro sobre teatro do século XVIII em contexto social, uma antologia sobre realismo burguês do século xix e uma edição dos ensaios políticos e literários de Friedrich Schlegel – tudo em alemão. Nos Estados Unidos eu tinha começado a escrever ensaios em inglês para uma revista de que fui co- fundador, chamada New German Critique, que era uma revista interdisciplinar de estudos germânicos e comecei a escrever sobre estas coisas, de que sempre quis escrever mas não podia, porque o «presente» não existia no currículo da academia alemã nos anos 60. Portanto, comecei a escrever sobre os assuntos do modernismo, da cultura de massas e sobre a pop, as artes visuais e o cinema. Isto resultou numa série de ensaios que se tornaram o meu primeiro livro em inglês, After the Great Divide, que se tornou, para minha surpresa, uma espécie de clássico no campo dos estudos do modernismo e do pós-modernismo. Porquê para sua surpresa? Bem, foi a minha primeira tentativa de publicar um livro em inglês e na ver- dade só o fiz porque uns amigos meus em Inglaterra diziam: «Oh, os teus ensaios são tão difíceis de obter, porque a New German Critique é sempre roubada nas bibliotecas (uma medida de sucesso, suponho); portanto, porque não compilas os teus ensaios?» Eu tinha pensado escrever outro livro, mas em vez disso juntei os ensaios, e isso tornou-se o After the Great Divide. Comecei a interessar-me pelo pós-modernismo porque tinha um colega em Wisconsin que falava sempre sobre como o pós-modernismo era vanguardista, e eu sempre pensei que isso era absurdo, mas levou-me a questionar-me: por- que é que os americanos estão tão interessados no pós-moderno? E, no que diz respeito à arquitectura, realmente fazia algum sentido: a arquitectura pós- -moderna, quer fosse Michael Graves ou Philip Johnson, ou quaisquer outros típicos arquitectos pós-modernos na Europa ou nos Estados Unidos, parecia realmente algo de diferente, havia muita ornamentação histórica, já não havia o estilo Bauhaus que tinha sido tão dominante na arquitectura empresarial dos anos 50. Portanto, fazia muito sentido em relação à arquitectura, mas na literatura e nas artes não fazia assim tanto sentido para mim, porque eu pen- sava que aquilo a que chamavam pós- modernismo era uma apropriação norte- -americana da vanguarda histórica europeia. E então tentei perceber por que motivo a vanguarda histórica era tão nova para eles. E a resposta era bastante clara, no fim de contas – e esta é a minha tese em After the Great Divide –, nos EUA houve uma canonização do alto-modernismo nas artes visuais, com o trabalho crítico de Clement Greenberg a ter muita influência. Foi uma cano- nização do alto modernismo que excluía, em grande parte, o surrealismo, o construtivismo soviético, o dadá berlinense... Tudo o que era político num sentido vanguardista era excluído, porque não encaixava no entendimento que a Guerra Fria fazia do modernismo, que, na constelação da Guerra Fria, confrontava o realismo socialista, o dogma do bloco soviético. E então percebi por que razão subitamente a vanguarda histórica se tornou tão interessante para as pessoas nos EUA, numa altura em que as constelações culturais da Guerra Fria se estavam a apagar... Os EUA tinham já ultrapassado o expressio- nismo abstracto: Happenings, Fluxus, Rauschenberg, Pop Art, etc. Até Warhol, e eu considero-o ainda como sendo um modernista, mas um modernista que se abriu à cultura de consumo. E foi isso que eu quis dizer, «a grande divisão» foi algo criado depois da Segunda Guerra Mundial, nesta canonização do alto- -modernismo, em oposição tanto à cultura de massas como ao realismo socia- lista. O que eu chamo de «a grande divisão» foi um fenómeno pós-Segunda Guerra Mundial, e aqueles que o desafiavam nos anos 60 começaram, cada vez mais, a ser chamados de «pós-modernistas». Foi um fenómeno muito norte- -americano. Por muitas razões, a noção de pós-moderno não fez muito sen- tido na Europa. Continuando com o tema de After the Great Divide, o Professor disse que, naquela altura, ninguém podia alegar que existia demasiada história. Com todos os «pós-» que existem, ainda pensa que, actualmente, não se pode dizer já que existe demasiada história? E, neste sentido, qual o papel dos museus em relação ao ensino público e ao debate? Talvez não «demasiada história». Não nos esqueçamos de que existe também um lamento justificado em relação ao facto de a nossa cultura sofrer de amné- sia histórica. Portanto, eu diria que existe talvez já «demasiada memória», especialmente fenómenos de memória, uma vez que estes têm sido extrema- mente comercializados. A história não é tão comercializada, acho eu; mas a memória, sim. Isto se pensarmos nos efeitos da cultura de massas, na memó- ria do passado, na memória das guerras, da Segunda Guerra Mundial espe- cialmente; e pode ver-se no Canal História nos Estados Unidos, por exemplo – eu costumo chamar-lhe o Canal Hitler, porque é predominantemente sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre a grande geração de americanos a comba- ter na «boa guerra» –, portanto é, na verdade, um Canal Memória. No debate pós-modernista deu-se um esquecimento da História, porque o pós-moder-

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  • E n t r e v i s t a a A n d r e a s H u y s s e n ana Fabola Maurcio *

    Andreas Huyssen professor de Alemo e de Literatura Comparada na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde fundou o Centre for Comparative Literature and Society, tendo sido tambm director do Departamento de Ln- guas Germnicas. Vencedor do Prmio Mark van Doren, atribudo pela Uni- versidade de Columbia aos que demonstram esprito humanitrio, devoo verdade e liderana inspiradora, Andreas Huyssen tem vindo a desenvolver o seu trabalho em torno de vrias problemticas que se interligam, e das quais se destacam questes relacionadas com o estudo do papel dos intelectuais, do modernismo, do ps-modernismo, dos fenmenos da memria histrica, e com a anlise de diferentes aspectos da globalizao.

    De uma forma sucinta, qual foi o seu percurso acadmico enquanto historiador?

    Os meus primeiros trabalhos foram sobre teorias romnticas alems de traduo e de apropriao, um outro livro sobre teatro do sculo XVIII em contexto social, uma antologia sobre realismo burgus do sculo xix e uma edio dos ensaios polticos e literrios de Friedrich Schlegel tudo em alemo. Nos Estados Unidos eu tinha comeado a escrever ensaios em ingls para uma revista de que fui co-fundador, chamada New German Critique, que era uma revista interdisciplinar de estudos germnicos e comecei a escrever sobre estas coisas, de que sempre quis escrever mas no podia, porque o presente no existia no currculo da academia alem nos anos 60. Portanto, comecei a escrever sobre os assuntos do modernismo, da cultura de massas e sobre a pop, as artes visuais e o cinema. Isto resultou numa srie de ensaios que se tornaram o meu primeiro livro em ingls, After the Great Divide, que se tornou, para minha surpresa, uma espcie de clssico no campo dos estudos do modernismo e do ps-modernismo.

    Porqu para sua surpresa?

    Bem, foi a minha primeira tentativa de publicar um livro em ingls e na ver- dade s o fiz porque uns amigos meus em Inglaterra diziam: Oh, os teus ensaios so to difceis de obter, porque a New German Critique sempre roubada nas bibliotecas (uma medida de sucesso, suponho); portanto, porque no compilas os teus ensaios? Eu tinha pensado escrever outro livro, mas em vez disso juntei os ensaios, e isso tornou-se o After the Great Divide. Comecei a interessar-me pelo ps-modernismo porque tinha um colega em Wisconsin que falava sempre sobre como o ps-modernismo era vanguardista, e eu sempre pensei que isso era absurdo, mas levou-me a questionar-me: por- que que os americanos esto to interessados no ps-moderno? E, no que diz respeito arquitectura, realmente fazia algum sentido: a arquitectura ps- -moderna, quer fosse Michael Graves ou Philip Johnson, ou quaisquer outros tpicos arquitectos ps-modernos na Europa ou nos Estados Unidos, parecia realmente algo de diferente, havia muita ornamentao histrica, j no havia o estilo Bauhaus que tinha sido to dominante na arquitectura empresarial dos anos 50. Portanto, fazia muito sentido em relao arquitectura, mas na literatura e nas artes no fazia assim tanto sentido para mim, porque eu pen- sava que aquilo a que chamavam ps-modernismo era uma apropriao norte- -americana da vanguarda histrica europeia. E ento tentei perceber por que motivo a vanguarda histrica era to nova para eles. E a resposta era bastante clara, no fim de contas e esta a minha tese em After the Great Divide , nos EUA houve uma canonizao do alto-modernismo nas artes visuais, com o trabalho crtico de Clement Greenberg a ter muita influncia. Foi uma cano- nizao do alto modernismo que exclua, em grande parte, o surrealismo, o construtivismo sovitico, o dad berlinense... Tudo o que era poltico num sentido vanguardista era excludo, porque no encaixava no entendimento que a Guerra Fria fazia do modernismo, que, na constelao da Guerra Fria, confrontava o realismo socialista, o dogma do bloco sovitico. E ento percebi por que razo subitamente a vanguarda histrica se tornou to interessante para as pessoas nos EUA, numa altura em que as constelaes culturais da Guerra Fria se estavam a apagar... Os EUA tinham j ultrapassado o expressio- nismo abstracto: Happenings, Fluxus, Rauschenberg, Pop Art, etc. At Warhol, e eu considero-o ainda como sendo um modernista, mas um modernista que se abriu cultura de consumo. E foi isso que eu quis dizer, a grande diviso foi algo criado depois da Segunda Guerra Mundial, nesta canonizao do alto- -modernismo, em oposio tanto cultura de massas como ao realismo socia- lista. O que eu chamo de a grande diviso foi um fenmeno ps-Segunda Guerra Mundial, e aqueles que o desafiavam nos anos 60 comearam, cada vez mais, a ser chamados de ps-modernistas. Foi um fenmeno muito norte- -americano. Por muitas razes, a noo de ps-moderno no fez muito sen- tido na Europa.

    Continuando com o tema de After the Great Divide, o Professor disse que, naquela altura, ningum podia alegar que existia demasiada histria. Com todos os ps- que existem, ainda pensa que, actualmente, no se pode dizer j que existe demasiada histria? E, neste sentido, qual o papel dos museus em relao ao ensino pblico e ao debate?

    Talvez no demasiada histria. No nos esqueamos de que existe tambm um lamento justificado em relao ao facto de a nossa cultura sofrer de amn- sia histrica. Portanto, eu diria que existe talvez j demasiada memria, especialmente fenmenos de memria, uma vez que estes tm sido extrema- mente comercializados. A histria no to comercializada, acho eu; mas a memria, sim. Isto se pensarmos nos efeitos da cultura de massas, na mem- ria do passado, na memria das guerras, da Segunda Guerra Mundial espe- cialmente; e pode ver-se no Canal Histria nos Estados Unidos, por exemplo eu costumo chamar-lhe o Canal Hitler, porque predominantemente sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre a grande gerao de americanos a comba- ter na boa guerra , portanto , na verdade, um Canal Memria. No debate ps-modernista deu-se um esquecimento da Histria, porque o ps-moder-

  • nismo americano pensava ser idntico ou prximo do ps-estruturalismo francs, e o ps-estruturalismo era muito a-histrico no seu modus operandi. Era a-histrico no sentido em que surgiu a morte do autor, a morte da obra de arte e, finalmente, a morte da Histria. Fukuyama s falou disso nos anos 90 a morte da Histria depois do colapso da Unio Sovitica! Mas lembro-me de uma conferncia no incio dos anos 80 em que Hayden White, um grande e importante terico da Histria, disse a alguns marxistas: No ouviram, meus? A Histria morreu! E, assim, na New German Critique insistimos nas leituras histricas de textos e das artes visuais. No tnhamos desistido da hermenutica crtica e tentmos repensar o marxismo cultural da Escola de Frankfurt. Isso no era muito popular na altura, porque o ps-estruturalismo era psicanaltico, semitico, desconstrutivista, mas no era histrico. Isto s mudou com o cada vez maior impacto do trabalho de Foucault. Foucault trouxe a Histria de volta ao discurso ps-estruturalista de formas importan- tes, embora nem sempre do agrado dos historiadores.

    De qualquer forma, eu acredito que a Histria, enquanto historiografia, e a memria no so por si opostas uma outra, e que elas podem trabalhar jun- tas de forma produtiva, tanto na instruo secundria e no saber, como em instituies como o museu, que tm uma funo pblica importante a desem- penhar na educao enquanto processo de compreenso. Especialmente os museus de arte e de histria, que esto na fronteira entre a historiografia e as narrativas da memria. E hoje, tanto a historiografia como os museus desen- volveram uma compreenso muito melhor do seu papel na construo de nar- rativas, mais do que acontecia no passado.

    O passado pode ser transformado em mito. O presente pode ser trans- formado em mito, e -o a uma velocidade incrvel hoje, e at em tempo real, chegando a ns atravs dos ecrs de televiso e de outros media. O que pensa que jaz no futuro talvez at no futuro prximo depois do vazio, quando j no conseguimos experimentar o presente de uma forma normal?

    Existem certos conflitos no mundo em que nos perguntamos at que ponto a sua persistncia alimentada pelos media. Tentemos uma experincia de pen- samento sobre o conflito israelo-palestiniano: se os media decidissem todos cessar a cobertura desse conflito durante um ano ou dois... Damos por ns a perguntar-nos qual seria o efeito; se as pessoas no se juntariam e resolveriam as suas diferenas. Claro que isto no uma proposio realista. Mas esta voracidade dos media de fazerem circular e de reciclarem constantemente tudo o que acontece (desastres, bombistas-suicidas...), acho que contribui para a patologia dos conflitos contemporneos. O que acontece no futuro, no sei... Bem, sou um historiador, no sou um profeta, e tenho demasiada conscincia de como as previses em dcadas recentes falharam. H alguns anos, quando escrevi o meu segundo livro sobre memria, Present Pasts, pen- sei que este boom da memria no podia durar para sempre, porque sabemos como a indstria cultural funciona: absorve coisas, precisa constantemente de novos materiais... E em alguma altura deu-se o momento em que subita- mente o passado era mais comercial do que o futuro (o captulo introdutrio de Present Pasts apresenta mais ou menos esta tese). Comeamos a ter modas retro, re-makes, moblia retro, nostalgias de todas as espcies, etc., etc. Dados os ciclos econmicos da indstria cultural, sabemos que em algum momento tero de fazer qualquer coisa de diferente. E pensei, h oito ou nove anos, que isto tinha de acabar, mas at hoje ainda no acabou, continua ainda. Primeiro houve um discurso da memria, depois outro discurso sobre nostalgia, hoje todos falam do arquivo, portanto est tudo neste ciclo, existem novos termos, mas a problemtica permanece a mesma, e no sei o que pode vir depois do arquivo mas... Portanto, no sei quanto tempo durar isto, mas existe uma poltica nisto, penso eu; e a poltica de lidar com o passado importante, no estou a dizer que a memria no importante. E a nossa conferncia aqui mostra, muito claramente, que este conhecimento das guerras passadas e do que sai deste conhecimento importante, importante pensar sobre o rumo do mundo reunindo preocupaes com a memria e a historiografia sria. Continuando o que eu estava a dizer sobre o ps-modernismo, existe um momento paradigmtico no debate ps-modernista, que foi em torno de um ensaio de Frederic Jameson Post-Modernism or the Logic of Late Capitalism. Jameson sempre considerou que j no existia marxismo, que no existia mais conscincia histrica na tradio marxista, que existia amnsia, etc., etc. Mas ele ocupou-se da problemtica do ps-modernismo e defendeu que o moder- nismo era acerca do tempo, da temporalidade, e que o ps-modernismo era acerca do espao, uma oposio binria que eu nunca aceitei. Quer dizer, era claro, modernismo-tempo, Proust, la recherch du temps perdu; ps-moder- nismo-espao, a arquitectura ps-moderna. E o ensaio de Foucault acerca de hetero-utopias e coisas similares, e a nova geografia de pessoas como a que propunham Edward Soja e David Harvey... Contra esta oposio binria, muito influente no incio dos anos 80, argumentei que no se pode separar tempo e espao. E o meu argumento consistia em ser claro que o ps-modernismo retirava a sua energia da memria da vanguarda histrica; era, portanto, uma reapropriao da vanguarda histrica. E a um dos ensaios em After the Great Divide chamei In Search of Tradition [Em Busca da Tradio], no sentido em que o ps-modernismo era qualquer coisa em busca da tradio; portanto, no fiquei surpreendido quando, nos anos 90, subitamente o discurso se dis- tanciou do ps-modernismo e tudo se transformou em memria. E ento teve lugar a transio, no meu prprio trabalho, da problemtica ps-modernista para a problemtica da memria. Que para mim, claro, como se sabe para a minha gerao de alemes, que dominada pela memria do Holocausto , a luta dentro da cultura alem para tornar a memria do Holocausto primria e central para as consideraes da cultura alem e da vida alem. Foi assim que me mudei do ps-modernismo para o discurso sobre a memria.

    Nos pases perifricos, bem como nas zonas mais rurais das naes desen- volvidas, o global sempre uma outra coisa, o Outro, no ns. O que que esta resistncia tem de rico e enriquecedor, e o que tem de pobre e empobrecedor?

    Tal como o perifrico, o rural, o sul global o Outro da metrpole ocidental. Dou muito valor resistncia globalizao financeira e s suas tendncias des- trutivas, que se tornaram claramente bvias, at no Ocidente, nos ltimos cinco meses ou no ltimo ano. No tenho grande considerao, contudo, pelas resis- tncias locais ao global, porque muitas vezes se iludem relativamente possibili- dade de manter algum espao que no esteja j contaminado pelo global. O que eu quero dizer que no existe o local puro. por isso que alguns investigadores nos anos 90 introduziram o neologismo glocal. Alm disso, se pensarmos em pases perifricos, se pensarmos nas antigas colnias, por exemplo, o que o local na ndia? O local na ndia muitas vezes completamente reaccionrio a nvel poltico, e tradicionalista no pior sentido; como o pode ser nos pases oci- dentais tambm. A resistncia globalidade no de todo sempre progressiva. Em Other Cities, Other Worlds, o livro sobre cidades no-ocidentais que publi- quei recentemente, sustento que no existe espao fora do global, cada stio do mundo afectado pela globalidade. O mundo tornou-se global, e no h volta a dar. Portanto, a

  • questo agora como que se repensa a globalidade depois do crash financeiro recente. Pode existir qualquer coisa como uma globalidade sustentvel? E quais seriam as suas instituies e agncias?

    Mas no pensa que, apesar de ser assim, as pessoas nos pases perifricos ou nas distantes reas rurais dos pases desenvolvidos ainda no vem isso como uma realidade? Podero viver assim, mas no verem a situa- o assim, podem ainda acreditar que no fazem parte do global, que so diferentes de alguma forma?

    Bem, sim, at nos pases ocidentais. Existem pessoas nos EUA que no querem ter nada que ver com o global nas suas prprias vidas. O mito do excepciona- lismo americano forte. Muitos alemes tm sentimentos negativos acerca da globalidade, temem pela sua cultura, pelo desaparecimento da sua cultura, no s pela Europa, por Bruxelas, mas pelo capital global, etc. Mas eu acho que existe uma espcie de transformao, uma transformao que dif cil de des- crever, mas, como disse antes, acho que os protestos contra a natureza voraz do capital financeiro so uma coisa boa. Seria bom que houvesse mais. Porm, a globalidade como uma realidade vivida est aqui para ficar. Por exemplo: o que que so, neste momento, empresas nacionais? Nos EUA, por exemplo, a General Motors est em perigo de falir, mas o que acontece linha de pro- duo europeia da GM, Opel? A Toyota est a ser produzida nos EUA por trabalhadores americanos, e a mesma coisa acontece em todo o mundo, em diferentes linhas de produo. A ligao entre economias nacionais e territrio nacional foi quebrada com o crescimento das TNC (empresas transnacionais). No se pode simplesmente voltar atrs. E os pases perifricos (e eu no gosto desse termo por completo) tornaram-se parte da globalidade precisamente como uma funo da sua situao perifrica. Sabemos que muita da frica Subsariana est a afundar-se e experiencia a globalidade nos termos mais nega- tivos possveis.

    Mas pensa que a globalizao sustentvel?

    Sustentvel uma palavra importante. Eu no sou um economista, no posso dizer como alcanar a sustentabilidade, mas sei que precisamos de caminhar em direco a um modelo e ser um modelo de capitalismo, no existe alter- nativa que seja baseado em ideias fortes de sustentabilidade. E no s sus- tentabilidade das economias ocidentais avanadas, mas sustentabilidade em frica, abaixo do Sara, na ndia, etc. Essa a tarefa da prxima dcada, ou mais. Conscincia planetria, como alternativa ao discurso global. S o facto de mudar um pouco a linguagem pode ajudar: quando se diz planetrio tem- -se aquela imagem de olhar para a Terra a partir do espao; v-se o planeta azul e pensa-se em ecologia. A planetariedade, como defende a minha colega Gayatri Spivak, e a sustentabilidade so as tarefas-chave que temos pela frente. E diria ainda que o conhecimento histrico tem de permanecer connosco, talvez no sempre na forma de celebraes da memria, mas no sentido de que temos de entender que a globalizao em si tem uma histria profunda. A globalizao no existe de forma igual e simtrica em todo o mundo: existem enormes assimetrias dentro da globalizao, e temos grupos. Temos a Europa Ocidental e a Europa de Leste; temos um grupo sul-asitico (Austrlia, ndia, Malsia); temos um grupo da sia de Leste (Japo, Coreia, China); temos um grupo americano do Norte, Centro e Sul da Amrica, que onde as per- meabilidades culturais e as ligaes mais fortes existem. Se formos Amrica Latina, a China um outro lugar; se formos a Hong Kong, a Amrica Latina pode nem estar no mapa mental das pessoas. E a frica Subsariana sai com- pletamente fora da equao da globalizao. por isso que alguns dizem que a globalizao um mito; mas, tal como todos os mitos, tem um ncleo real. Temos de pensar em termos de tenses e de paradoxos, mais do que em termos de um movimento homogeneizador da globalizao pelo mundo fora.

    Ter a narrativa que nos vendeu a anterior Administrao americana aprofundado uma diviso na sociedade dos Estados Unidos que nica e irrevogavelmente idiossincrtica destes tempos? possvel v-la como corolrio desta poca, de uma diviso que vem atravessando a cultura americana desde h algumas dcadas?

    Eu penso que o governo de Bush foi excepcional no sentido mais negativo possvel. Claro que existe uma longa tradio de excepcionalismo americano, e uma poltica externa algo imperialista. Por vezes, um imperialismo bene- volente, e foi assim em relao Europa Ocidental depois da Segunda Guerra Mundial, ao passo que na Amrica Latina foi muito mais uma intromisso imperialista tradicional; foi uma poltica horrivelmente violenta, em que os EUA apoiaram ditadores militares, treinaram para contra-insurreio foras policiais opressivas, etc. Portanto, a tradio existe e foi fortemente criticada por muitos americanos. Mas o governo Bush queria mudar a prpria Am- rica. Estava a minar a Constituio, a dar poder ao presidente que o presi- dente no devia ter, aboliu o habeas corpus, entrou em guerras de escolha. Confio numa certa espcie de instinto democrtico do pas, mas, como muitos outros, estava a ficar preocupado com o dano que o governo de Bush estava a infligir nas instituies americanas e nos direitos civis bsicos. Mas como se viu com a ltima eleio, o esprito democrtico, se lhe quisermos chamar assim, reafirmou-se muito poderosamente com a eleio de Obama. Mas os efeitos ficam connosco, de um minar radical dos princpios polticos america- nos que aconteceu com Bush, e isso foi novo. Os europeus dizem por vezes: Oh, isso a Amrica como sempre foi... E eu acho que isso absurdo. Exis- tiam certos aspectos de continuidade em relao ao passado, mas o que foi novo na Administrao Bush foi que ela realmente minou e ameaou certas instituies bsicas da democracia americana a partir do seu interior. Pode levar muito tempo talvez demasiado a restaur-las. Ser revelador a forma como Obama ir lidar com Guantnamo, com a questo da priso indefinida e com os problemas da imigrao legal e ilegal.

    Pensa que, h dez ou vinte anos, a Administrao Bush poderia ter feito o que fez?Sem o 11 de Setembro no o conseguiriam ter feito. Mas eu sempre pensei que os actos terroristas produzem sempre as piores reaces

  • possveis por parte dos governos das democracias, eles minam as democracias. Foi o mesmo com a RAF e as Brigadas Vermelhas nos anos 70 na Alemanha e na Itlia. Claro que no devia ser to fcil. O estudo dos anos ps-11 de Setembro podem fornecer lies vlidas acerca do potencial de autodestruio de uma democracia, at da americana.

    No seu discurso de agradecimento pelo Prmio Mark Van Doren, defen- deu que, relativamente aos professores e ao ensino, melhor ter a assi- metria da verdadeira opinio e da verdadeira busca, do que a repetio homognea dos vrios consensos da Histria. O que que nos mantm a acreditar nesta espcie de objectividade do conhecimento, ao ponto de a repetio ser o caminho mais facilmente escolhido?

    Eu no acredito na capacidade de se atingir alguma objectividade de conhe- cimento nas humanidades e nas cincias sociais. Penso que todo o conheci- mento situado. Situado no presente, na histria da investigao, situado pela metodologia que utilizamos; mesmo as metodologias e teorias so historica- mente situadas. No acredito em metateorias. O ideal de objectividade um horizonte em direco ao qual queremos trabalhar, mas entender certas limita- es um sine qua non, e as limitaes podem at ser mais interessantes do que a promessa de alcanar alguma espcie de conhecimento puro. Mas no quero defender que todo o conhecimento simplesmente construdo, semelhana das posies ideolgicas, e que qualquer construo to boa como qualquer outra. Uma perspectiva assim leva ao relativismo cultural, social e poltico, que no nos permite argumentar contra o sistema de educao dos Taliban para rapazes (as madrassas onde apenas aprendem o Coro), contra os Taliban des- trurem escolas para raparigas, contra a cliteroctomia das raparigas em frica, ou contra a negao dos direitos das pessoas em muitas partes do mundo. Quando se fala de direitos humanos inaceitvel o argumento de que, bem, eles tm a sua cultura, temos de respeitar a sua cultura, temos de reconhecer a sua cultura, mesmo que no gostemos.... Eu no quero reconhecer essas pr- ticas. Eu acredito numa espcie de horizonte de verdade e de direitos, e, assim, penso tambm que temos de trabalhar com noes de universalismo. Com uma noo de universalismo que entende a problemtica do domnio ocidental e a histria do colonialismo, e que pode ser crtica da sua prpria histria. Mas sou contra uma poltica de culpa liberal e de demonstraes encenadas de remor- sos. Existem certos assuntos em que acho que temos de nos afastar da ideia de que as noes ocidentais de direitos humanos, de iluminismo, de uma espcie de secularismo que aceita a religio como uma realidade, mas rejeita polticas teocrticas, que todas estas ideias so simplesmente eurocntricas ocidentais e imperialistas. Foi assim durante muito tempo, no h dvida, mas no h razo para dizer que no podem ser praticadas de forma diferente.

    No seu discurso tambm refere que ensinar pode ter os seus melhores efeitos no-intencionais quando o professor no tem todas as respostas. evidente que a existncia de dvidas enriquece qualquer campo de estudos. A minha questo a seguinte: nesta altura de desconfiana nas narrativas, ser que uma narrativa que permite a existncia de dvidas e o proclama pode vingar? E apesar dos muitos exemplos em contrrio, acredita que estamos a comear a ver esta questo de um modo diferente na arena poltica?

    Bem, isso uma boa pergunta... Penso que devemos, efectivamente, duvi- dar das narrativas. Este pode ser um dos maiores benefcios dos estudos em humanidades. Mas devemos duvidar das narrativas ao nvel dos seus conte- dos e no necessariamente das suas formas, pois penso que narrativizar uma necessidade humana fundamental. Mesmo a nvel antropolgico, no existe vida humana sem narrativas, isto devido temporalidade, transitoriedade da vida. Concordo completamente com a desconstruo de metanarrativas, at porque tivemos j vrias dcadas de uma rejeio radical de todos os tipos de narrativas, e penso que essa rejeio errada, porque no se trata de uma rejeio dos contedos de certas narrativas, mas sim de uma rejeio da nar- rativizao em si. E, quando se rejeita a prpria narrativizao, o que que nos resta? Um dos resultados da rejeio radical da narrativa a anarquia e, de forma sucinta, os estados falhados, e penso que os estados falhados so o pior para as pessoas. As vanguardas histricas deram-nos vrios modelos de desconstruo de narrativas, os historiadores comearam a dizer-nos como que as narrativas so construdas e, assim, penso que podemos escolher como que vamos construir as narrativas do nosso mundo. E a a questo qual a influncia do ensino?. A nossa funo como professores na universidade conseguir que os estudantes percebam aquilo que est em jogo nas narrativas, porque s depois de o compreenderem que sero capazes de criticar e de utilizar as narrativas de forma benfica.

    A necessidade de grandes narrativas est ligada a um certo elemento de significado e a uma certa necessidade de sentido, pois o sentido preenche um certo vazio que existe nos seres humanos. Ser possvel viver sem nar- rativas, ou isso contrrio natureza humana?

    Sim, diria que contrrio natureza humana tentar viver sem narrativas e sem significado (sentido). Existem vrios nveis de sentidos: a nossa vida pessoal, a vida familiar, sentidos ao nvel da vida da comunidade local, sentidos a nvel nacional, sentidos a nvel global. Assim sendo, a questo sempre: qual o nvel a que damos resposta? Mas penso que, se tentarmos viver sem narrativas e sem qualquer sentido e significado, no teremos nenhuma ncora. E ns precisa- mos de ncoras, que possam, claro, ser iadas quando necessrio e mergulha- das num outro stio. Todos recordamos o grande ataque s metanarrativas por parte de Lyotard, entre outros, que foi importante na altura. Mas agora temos uma nova metanarrativa sobre o fim de todas as narrativas. Essa situao tor- nou-se uma metanarrativa em si mesma. Isto j no produtivo. Vivemos num momento muito carregado da Histria, e tanto precisamos de narrativas sobre o passado, como precisamos de reanimar as narrativas sobre possveis futuros, alternativas em relao a tudo o que correu mal no sculo xx.

    (entrevista realizada na Faculdade de Cincias Humanas da Universidade Catlica Portuguesa em Maio de 2009) _______________* Mestre em Cincias da Comunicao, doutoranda em Estudos de Cultura na Faculdade de Cincias Humanas da Universidade Catlica Portuguesa