entrevista helt araújo - volta ao mundo agosto 2013

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100 Volta ao Mundo agosto 2013 D a pureza e da simplicidade das paisagens da sua cidade natal de Benguela, passando pela voragem das cozinhas dos me- lhores restaurantes em Portu- gal e Espanha, Helt Araújo, de regresso a Angola, foi capaz de conservar as suas linhas vitais que o acompanharam ao longo deste percurso: uma ética de trabalho inculcada desde a adolescência e uma indo- mável paixão pela cozinha. Prestes a abrir o seu projeto mais pessoal, o restaurante Xenú na capital, Luanda, a ambição e o talento deste jovem chef aliaram-se para fazer deste lugar uma referência indispensável da gas- tronomia angolana, que aspira a conseguir a primeira estrela Michelin de África. Ao fim e ao cabo, Helt, depois de trabalhar no elBulli (três estrelas até à data do seu fecho) e também no restaurante do hotel Fortaleza do Guincho (uma estrela Michelin), sempre se sentiu confortável entre elas. Que papel desempenha a gastronomia em Angola hoje em dia? A cozinha é um bom termómetro para o de- senvolvimento de um país. Uma cozinha não pode evoluir em condições de instabilidade ou carências. Por isso, o facto de terem surgido tantos novos restaurantes de qualidade e chefs muito preparados em Angola nos últimos anos é também sintomático de um desenvolvimen- to integral da economia e da sociedade do país que permitiu lançar as bases necessárias para que a indústria gastronómica prospere. Quais são os atrativos da gastronomia angolana? Angola é um lugar virgem e por isso fascinan- te, mas tem grandes carências, pois a nossa tradição culinária não está estudada nem documentada. Apenas há informação sobre de onde vêm os pratos como o tortulho, o muzongue e a ginguba mas falta um trabalho de raiz de recompilação e catalogação para dar a conhecer estes pratos e as diferenças regionais na hora de os cozinhar, para que se conheçam melhor não só no interior do país como também no estrangeiro. Para exportar e defender o nosso património culinário devemos primeiro conhecê-lo a fundo nós próprios. Os mercados de rua são o coração da alta- -gastronomia que quer praticar? Sem dúvida! É nos mercados locais que nós, chefs, encontramos os produtos que chegam às mesas dos nossos clientes, mas o grande problema é a falta de regularidade na hora de os encontrar, porque um mesmo produto pode haver hoje, mas amanhã não. Aqui não há uma cultura de gestão e criação de produtos para abastecer um mercado de restauração e hoteleiro crescente e assegurar que estejam sempre disponíveis. Há que desenvolver esta indústria de produtos locais de primeira qua- lidade para que sejam parte integral, não de forma ocasional, mas todos os dias, dos menus dos restaurantes de topo deste país. Como definiria a sua cozinha? A minha cozinha é feita com amor, é uma co- zinha atual, mas com profundas raízes angola- nas. Sempre procurei o produto da nossa terra, valorizando-o e também reinventando-o e fundindo-o com influências mediterrânicas para que seja agradável aos paladares dos con- sumidores internacionais. O produto é sempre a base, e a mão do chef é o veículo que faz que estes extraordinários sabores cheguem ao seu prato com uma imagem atualizada que se adapte às exigências culinárias do século XXI e ao conhecimento gastronómico cada vez maior e mais sofisticado dos clientes. Neste sentido, a apresentação e a harmonia são também algo de que cuido muitíssimo mas, repito, a base de todas as minhas criações é sempre o produto da nossa terra. Que desafios enfrenta a indústria gastronó- mica em Angola? O grande desafio para Angola é a formação das pessoas para enfrentar o futuro e que se convertam nas engrenagens da máquina do futuro. Já está em andamento um importante A COZINHA É UM BOM TERMÓMETRO PARA O DESENVOLVIMENTO DE UM PAÍS Helt Araújo ANGOLA COZINHA

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Page 1: Entrevista Helt Araújo - Volta ao Mundo Agosto 2013

100 Volta ao Mundo agosto 2013

Da pureza e da simplicidade das paisagens da sua cidade natal de Benguela, passando pela voragem das cozinhas dos me-lhores restaurantes em Portu-gal e Espanha, Helt Araújo, de

regresso a Angola, foi capaz de conservar as suas linhas vitais que o acompanharam ao longo deste percurso: uma ética de trabalho inculcada desde a adolescência e uma indo-mável paixão pela cozinha. Prestes a abrir o seu projeto mais pessoal, o restaurante Xenú na capital, Luanda, a ambição e o talento deste jovem chef aliaram-se para fazer deste lugar uma referência indispensável da gas-tronomia angolana, que aspira a conseguir a primeira estrela Michelin de África. Ao fim e ao cabo, Helt, depois de trabalhar no elBulli (três estrelas até à data do seu fecho) e também no restaurante do hotel Fortaleza do Guincho (uma estrela Michelin), sempre se sentiu confortável entre elas.

Que papel desempenha a gastronomia em Angola hoje em dia?A cozinha é um bom termómetro para o de-senvolvimento de um país. Uma cozinha não pode evoluir em condições de instabilidade ou carências. Por isso, o facto de terem surgido tantos novos restaurantes de qualidade e chefs muito preparados em Angola nos últimos anos

é também sintomático de um desenvolvimen-to integral da economia e da sociedade do país que permitiu lançar as bases necessárias para que a indústria gastronómica prospere.

Quais são os atrativos da gastronomia angolana?Angola é um lugar virgem e por isso fascinan-te, mas tem grandes carências, pois a nossa tradição culinária não está estudada nem documentada. Apenas há informação sobre de onde vêm os pratos como o tortulho, o muzongue e a ginguba mas falta um trabalho de raiz de recompilação e catalogação para dar a conhecer estes pratos e as diferenças regionais na hora de os cozinhar, para que se conheçam melhor não só no interior do país como também no estrangeiro. Para exportar e defender o nosso património culinário devemos primeiro conhecê-lo a fundo nós próprios.

Os mercados de rua são o coração da alta--gastronomia que quer praticar?Sem dúvida! É nos mercados locais que nós, chefs, encontramos os produtos que chegam às mesas dos nossos clientes, mas o grande problema é a falta de regularidade na hora de os encontrar, porque um mesmo produto pode haver hoje, mas amanhã não. Aqui não há uma cultura de gestão e criação de produtos para abastecer um mercado de restauração e hoteleiro crescente e assegurar que estejam

sempre disponíveis. Há que desenvolver esta indústria de produtos locais de primeira qua-lidade para que sejam parte integral, não de forma ocasional, mas todos os dias, dos menus dos restaurantes de topo deste país.

Como definiria a sua cozinha?A minha cozinha é feita com amor, é uma co-zinha atual, mas com profundas raízes angola-nas. Sempre procurei o produto da nossa terra, valorizando-o e também reinventando-o e fundindo-o com influências mediterrânicas para que seja agradável aos paladares dos con-sumidores internacionais. O produto é sempre a base, e a mão do chef é o veículo que faz que estes extraordinários sabores cheguem ao seu prato com uma imagem atualizada que se adapte às exigências culinárias do sécu lo xxi e ao conhecimento gastronómico cada vez maior e mais sofisticado dos clientes. Neste sentido, a apresentação e a harmonia são também algo de que cuido muitíssimo mas, repito, a base de todas as minhas criações é sempre o produto da nossa terra.

Que desafios enfrenta a indústria gastronó-mica em Angola?O grande desafio para Angola é a formação das pessoas para enfrentar o futuro e que se convertam nas engrenagens da máquina do futuro. Já está em andamento um importante

A COZINHA É UM BOM TERMÓMETRO PARA O DESENVOLVIMENTO DE UM PAÍS Helt Araújo

ANGOLA COZINHA

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plano de formação de quadros e, eu mesmo, como profissional nesta área, sinto que devo contribuir na medida que me seja possível. Neste sentido, tenho em marcha planos com projeção não só nacional como também in-ternacional. São projetos feitos com capital próprio e, agora mesmo, estou a trabalhar na abertura do restaurante Xenú, cujo objetivo será mostrar Angola ao mundo incorporando os ensinamentos que aprendi no estrangeiro e realizando encontros e intercâmbios com chefs internacionais, para que eles venham cá conhecer a grande cozinha angolana e, de caminho, contribuam com ideias para modernizar os conceitos culinários com a sua ótica de peritos na matéria.

Qual foi a maior motivação para regressar ao seu país?Estive nove anos fora e tinha muita vonta-de de regressar! Além disso, sinto que fui um afortunado por ter saído para o estrangeiro e ter trabalhado e aprendido com os melhores chefs do mundo, e parece-me ser o meu dever como angolano regressar e transmitir esses conhecimentos àqueles que têm a capacidade e o talento para serem chefs de topo, mas que não têm os meios ou a oportunidade para sair e aprender no estrangeiro. Creio que, além do mais, quando as pessoas que como eu estiveram fora com uma carreira de sucesso decidem voltar, estão a enviar uma mensagem muito positiva aos jovens, mostrando-lhes que também podemos alcançar aqui esses níveis de excelência em matéria de cozinha que têm alguns países do mundo, se trabalharmos para o conseguir.

Na sua opinião como é que o país mudou?Angola mudou muitíssimo nos últimos anos, não só a nível de desenvolvimento económico e de infraestruturas, como também do ponto de vista da preparação e da educação. A pre-paração dos quadros é cada vez mais completa e profissional. Angola tem tudo para se con-verter dentro de alguns anos numa verdadeira potência a nível africano e numa referência indiscutível dentro do continente. n

Entrevistado por Rafael Estefania

SABOR A ANGOLAHelt Araújo teve a oportunidade de trabalhar em restaurantes estrelados como o elBulli de Ferran Adrià, em Espanha, e a Fortaleza do Guincho, em Portugal. Mas o seu lugar é em Angola.