entrevista prof. dr. françois hartog

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  • 8/13/2019 Entrevista Prof. Dr. Franois Hartog

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    Entrevista com o Professor Doutor Franois Hartog(EHESS)

    Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG Vol . 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 10

    EntrevistaProf. Dr. Franois Hartog

    cole de Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS)

    EntrevistadoresDanilo MarquesDbora Cazelato

    Deise Rodrigues

    TraduoRassa Palma

    (Aliana Francesa Ouro Preto)

    Reviso tcnicaDanilo MarquesDeise Rodrigues

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    Entrevista com o Professor Doutor Franois Hartog(EHESS)

    Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG Vol . 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 11

    Temporalidades : Na sua trajetria intelectual o senhor caminhou da histria antiga

    historiografia, histria da histria. Como foi essa transio de uma rea para outra? Osenhor se considera um historiador-filsofo que busca valorizar o dilogo entre ahistoriografia e a filosofia?

    Professor Franois Hartog : Sim e no. Sim, pois a partir do meu livro sobre Fustel deCoulanges,Le cas Fustel de Coulanges (O caso Fustel de Coulanges), trabalhei diretamentesobre outros perodos, no caso, o sculo XIX. No, pois o meu primeiro livroLe MiroirdHrodote (O Espelho de Herdoto) j tinha sido alvo de um questionamentohistoriogrfico, devido ao prprio ttulo: Herdoto, considerado como este espelho no quala histria ocidental no parou de se observar, e onde eu havia buscado respostas paraalguns momentos-chave. Como possvel que aquele que foi designado como o "pai" dahistria tenha tambm sido considerado pela tradio como um "mentiroso"?

    A filosofia outra questo: a minha formao no a de um filsofo, apesar de terlido e continuar lendo filsofos. Na Frana, especialmente, a histria se constituiu comodisciplina, dando as costas (por razes que levariam muito tempo para se explicar) para a

    filosofia da histria. uma posio prejudicial: eu acho que os filsofos podem fazerperguntas filosficas histria, assim como os historiadores podem fazer perguntashistricas filosofia, e que deve haver, consequentemente, um espao comum de reflexo.

    Temporalidades : Tem-se presenciado nos ltimos anos, pelos Departamentos de Histriadas mais diversas universidades, uma verdadeira expanso das reflexes conceituais emtorno de teorias da histria e histrias da historiografia. A que o senhor atribuiria essacrescente seduo da histria pela epistemologia?

    Professor Franois Hartog : Eu no estou certo se o que vocs afirmam poderia ser verificado em todos os lugares, mas percebe-se, particularmente no Brasil, tal fenmeno.Mais precisamente, eu veria um movimento triplo: uma questo de mtodo, de teoria e deepistemologia (muitas vezes essas palavras so usadas um tanto quanto indistintamente).Mais recentemente, uma virada arquivstica, o que conta so os arquivos, aqueles que iro

    ajudar a construir uma boa histria (arquivos familiares, jornais, registros judiciais, policiais,

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    etc.): uma valorizao do arquivo e um refinamento considervel no seu tratamento e,finalmente, uma virada tica, especialmente em casos de memria e justia. Como articularhistria e tica? Essas trs esferas (no rotativas)1, que tm cada uma sua especificidade,parecem apontar para a mesma direo: a de uma perda de segurana do discurso histricocomum ou cannico. Elas so, ao mesmo tempo, os sintomas de uma situao e respostas,mais ou menos organizadas, para esta situao.

    Temporalidades : Assim como o conhecimento histrico vem sendo construdo emdilogo com outras formas de saber, temos histrias que so escritas por pessoas de outraformao, os jornalistas, por exemplo. No Brasil, nos ltimos anos, houve um crescimento

    da produo histrica por historiadores no profissionais, algo que parece incomodaralguns Departamentos de Histria. Ao mesmo tempo, existe um movimento pelaprofissionalizao do historiador no Brasil. Como o senhor v essas duas questes sobre ahistria nostricto sensu e o processo de regulamentao da profisso do historiador?

    Professor Franois Hartog : A codificao das regras domtieranda de mos dadas com ainstitucionalizao da disciplina. Os grandes codificadores foram alemes (com Ranke,sendo o pai da histria moderna), bem como historiadores metdicos franceses (Langlois eSeignobos). E pode-se perceber esse movimento como vrios crculos concntricos queemanam das manifestaes iniciais. Mas preciso observar que, ao contrrio, a histria notem sido escrita apenas por historiadores patenteados! Lembrem-se que Walter Scott foiconsiderado nos anos 1820-1830 como o modelo de escrita histrica! A histria acadmicateve que lutar para se impor. Diante de si, ela tinha todos aqueles que, desde ento, foramchamados de "historiadores amadores". Mas ela nunca os reduziu ao silncio, longe disso, ea histria acadmica foi lida durante um longo perodo por um pblico muito limitado.Este fato conferiu histria acadmica o status e uma alta ideia de sua misso, que a sualigao intrnseca com a construo das naes e sua funo educadora (ensinar a Nao).Hoje a situao diferente: a histria nacional est sempre (talvez demasiado) presente,mas a histria acadmica no pode mais reivindicar o monoplio. Muitos outros vetores eprodutores existem e esto em cena. Ou seja, eles tm acesso s mdias e, portanto, podemdivulgar os livros ou filmes que escreveram ou dirigiram. um mundo ao qual, de modo

    1 No foi possvel manter o jogo de palavras e a aliterao presentes no original em francs: Ces trois tours (pastournants).

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    geral, os historiadores profissionais no tm acesso, mesmo que alguns se arrisquem. Asituao est mudando muito rapidamente diante dos nossos olhos, com odesenvolvimento dos jogos na internet e dos videogames. Todo mundo poder ou atmesmo j pode produzir a sua prpria histria: o que acontece nestas condies comnoes como "conscincia histrica" ou "memria coletiva"?

    Temporalidades : A tradio francesa de historiografia contribuiu fortemente sobre omodo de se fazer histria no Brasil. Podemos dizer que a maior influncia tenha sido ahistria social dos Annales, a histria cultural e mesmo, a sua obraRegimes de Historicidade . Atualmente, vemos no Brasil uma tendncia crescente dos estudos ligados histria dalinguagem de tradio anglo-saxnica e histria dos conceitos, de origem alem emconcorrncia dessa tradio historiogrfica francesa. Como o senhor avalia essas novasaproximaes e como v o futuro da relao entre a historiografia francesa e ahistoriografia brasileira?

    Professor Franois Hartog : No cabe a mim definir as relaes entre a historiografiafrancesa e a historiografia brasileira. Nem no mbito da Frana, e nem, certamente, no do

    Brasil! Eu penso que entre as abordagens, digamos, da escola de Cambridge sob a ticade Skinner a da histria conceitual - oBegriffgeschichte sob a tica de Koselleck - e de certahistria intelectual francesa, existem abordagens e questionamentos que se sobrepem. Sefalarmos de meu livroRgimes dhistoricit(Regimes de historicidade), cuja traduo foipublicada h pouco no Brasil, me parece que ele tem inspirado certo nmero de trabalhosque colocaram no centro de seu questionamento as modalidades de nossas experincias dotempo. apenas uma abordagem, ela no responde a todas as perguntas e tampouco

    pretende a isso, mas oferece trilhas comparativas para interrogar as sociedades ontem ehoje, na Europa ou em outros lugares. Eu noto que o prprio ttulo da revista de vocsmarca sua particular ateno para as Temporalidades. O que eu pude perceber, por

    ocasio de encontros de historiadores brasileiros em So Paulo, o nmero departicipantes, a forte presena de doutorandos, o nmero impressionante de publicaeslanados por vrias editoras, mas eu seria incapaz de avaliar as tendncias.

    Temporalidades : Para finalizar, o senhor poderia fazer algumas consideraes sobre opresentismo: seria possvel escrever uma histria do ponto de vista de um presente

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    onipresente e autorreferente? A partir da concepo de que hoje as sociedades ocidentais viveriam uma nova experincia do tempo, presentista e estruturalmente diferente daquelamoderna, o senhor pensa ser possvel sustentar a afirmao de que atualmente haveria, defato, uma condio ps -moderna? Em Regimes de historicidade: presentismo e experincia dotempo, o senhor declarou que uma das caractersticas mais marcantes do presentismo olharo futuro, mas a partir de um presente contnuo, sem soluo de continuidade nemrevoluo. A histria j nos deu vrios exemplos de como a poltica foi feita tendo como

    referencial, por um lado, o passado e a tradio e, por outro, o futuro e a utopia. O que osenhor diria sobre as possveis implicaes do regime de historicidade presentista na aopoltica?

    Professor Franois Hartog : O que havia de moderno na histria "moderna", aquela doconceito moderno de histria, que ela esclarecia o passado a partir do futuro edesenvolvia uma srie de conceitos temporalizados, que foram operadores potentes, taiscomo o de civilizao, o de revoluo ou o de modernizao. Por outro lado, a histria"antiga", pelo menos aquela que tratava do que eu chamo de antigo regime de historicidade,esclarecia o presente pelo passado.

    Ao longo dos ltimos trinta ou quarenta anos, a mudana mais notvel foi essedistanciamento do futuro (especialmente na Europa). Falou-se sobre crise do futuro, de seuencerramento, enquanto, simultaneamente, o presente tendia a ocupar todo o espao. Estatransformao de nossa relao com o tempo passou a desenhar uma nova configurao,que eu propus nomear como presentismo. Como se o presente, esse presente docapitalismo financeiro, da revoluo da informao, da globalizao, mas tambm da criseatual (desde 2008) absorvesse em si as categorias (que acabaram por se tornar mais oumenos obsoletas) de passado e futuro. Como se o seu prprio horizonte se transformasse,sofresse uma mutao para um presente perptuo. Com ele, algumas palavras de ordemforam elevadas ao primeiro plano de nossos espaos pblicos, e, junto com elas, certasprticas que se traduzem por polticas, tais como: memria, patrimnio, comemorao,reparao, reconciliao etc. A esto algumas das maneiras de buscar o passado nopresente, favorecendo uma relao imediata, usando de empatia e identificao. Basta visitar os memoriais e museus de histria, inaugurados em grande nmero no mundo todonos ltimos anos, para ficar convencido disso. Na linguagem comum, a palavra "memria"

    tende a se tornar o termo mais abrangente, mais evidente, em vez de histria. O presente

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    Entrevista com o Professor Doutor Franois Hartog(EHESS)

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    presentista cercado por uma srie de noes ou conceitosdestemporalizados 2 tais como"modernidade", "ps-moderno", mas tambm "globalizao", sendo ainda necessrioacrescentar, no mnimo, o conceito "identidade", o mais utilizado e mobilizado.

    Esses deslocamentos, essa variao, assinalam um fenmeno duradouro outransitrio? No se sabe. E inclusive ns estamos apenas agora comeando a compreendersuas dimenses. Na verdade, estamos comeando a trilhar um caminho: o conceitomoderno de histria (futurocentrado3 ) tem perdido eficcia para dar sentido a um mundoque, ou inteiramente absorvido no nico presente cabvel, ou ainda, cada vez maisclaramente, no est sabendo como regular suas relaes com um futuro percebido nomodo de ameaa e catstrofe que se apresenta. Um futuro, no mais indefinidamente

    aberto, mas um futuro cada vez mais restrito, se no fechado, devido, em particular, irreversibilidade gerada por muitos de nossos atos. Forjada na Europa, ligada suaexpanso e dominao, esta Histria moderna (a um passo de se tornar antiga) tambm foi,sob vrias formas e atravs de mltiplas interaes, regente do mundo, oscilando entresentido,non-sens e cincia da Histria. Ns no acreditamos mais neste conceito, ou pelomenos, no verdadeiramente, mas continuamos a us-lo; ele est a, ainda familiar e umpouco em desuso, tornou-se incerto, mas continua disponvel, pelo menos at que outro venha assumir o seu lugar. Ou, mais provavelmente, esperando at que um novo conceito venha a se acrescentar aos precedentes. As polticas no hesitam em mobiliz-lo, nemtampouco as mdias, a literatura o interroga com frequncia e os historiadores, nuncadeixando de utiliz-lo, ainda acreditam em seus poderes cognitivos. Eles ainda acreditamque a histria est para ser feita, e eles a esto fazendo, mesmo que no se pronunciemmuito sobre o fato de decidir quem fez e quem faz essa histria, ou melhor, essas histrias.So justamente essas as questes que abordei em meu ltimo livro intituladoCroire enlhistoire (Crer na histria).

    2 Do original dtemporaliss 3 Do original futurocentr