epistemologia e ensino religioso: limites e...
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Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 107
Epistemologia e Ensino Religioso: limites e possibilidades
Carlos Odilon da Costa Clóvis Maciel Kruger 1
Resumo: Este artigo analisa e debate o dilema epistemológico decorrente da
inclusão da disciplina Ensino Religioso no currículo das escolas públicas de
Ensino Fundamental. Descreve as diversas constituições brasileiras e a relação
que foram estabelecendo com tal dilema. Reflete, posteriormente, alguns
pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre a disciplina Ensino
Religioso e temas correlatos e busca compreender se é possível afirmar que o
Ensino Religioso tem uma base epistemológica e sua razão de ser nas escolas.
Palavras-chave: Ensino Religioso; escola pública; epistemologia.
Introdução Refletir o Ensino Religioso a partir de uma perspectiva externa a uma fé religiosa
específica pode ser importante passo para uma melhor compreensão deste relevante aspecto
da vida das pessoas que é a questão relacionada ao conhecimento religioso. Conhecer sem
preconceitos diferentes perspectivas religiosas pode ser muito útil para que se tenha maior
tranquilidade ao assumir o seu próprio credo ou nenhum.
No caso especificamente brasileiro, a questão religiosa aflora em todos os lugares. De
acordo com o professor Costa (2002, p. 2),
no Brasil, se você olhar ao seu lado ao caminhar nas ruas de sua cidade, [verá] farmácias,
supermercados, hospitais, lojas, escolas com nomes de santos, santas e pessoas religiosas. Em
1 Mestre, pesquisador do grupo de pesquisa Educogitans, do mestrado em Educação da Universidade
Regional de Blumenau, Rua Antonio da Veiga, 140, CEP 89012-900. E-mail: [email protected]. Clóvis Maciel Kruger, especialista em Ciências da Religião pela Universidade Regional de Blumenau, Rua Antonio da Veiga 140, CEP 89012-900. E-mail: [email protected].
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repartições públicas é comum o uso de crucifixo na parede e até mesmo, em alguns ambientes
públicos, a Bíblia. Muitas cidades, vilas, rios, estados brasileiros recebem a influência de nomes
religiosos.
Mesmo as pessoas que não se preocupam muito com a prática religiosa acabam se
interessando, por exemplo, em casar e batizar na igreja. Deve-se lembrar também que as
rádios e televisões estão cheias de programas de natureza religiosa, ou, pelas ruas das
grandes cidades, são cada vez mais comuns figuras exóticas ligadas às novas religiões,
como os Hare Krishna. Mesmo quando achem sem sentido ou até relativamente hipócritas
as práticas religiosas dos pais e familiares, esbarram em questões relativas às origens e ao
destino das pessoas. E saem à procura de respostas para seus dilemas. Cedo ou tarde as
pessoas são despertadas pelos sentimentos do que a vida é mais do que nela se percebe.
Sentir e desejar a presença de um algo a mais é o Sagrado entre as pessoas.
No final da década de 1990, um debate sobre a forma e as leis do Ensino Nacional (Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN – n. 9.394/96) relançou uma antiga
discussão em torno da importância e do papel da manutenção do Ensino Religioso no
Ensino Básico. Argumentos bastante conhecidos vieram novamente à tona: o Ensino
Religioso nunca teria produzido resultados suficientes para fazê-lo figurar ao lado das
disciplinas “verdadeiramente” científicas. Em resposta, os cientistas da Religião (ver a esse
respeito o site <www.fonaper.com.br>) sublinharam os progressos relativos aos domínios
incriminados pelos críticos, evocando, notada e principalmente, o papel do Ensino
Religioso como elemento básico na formação cidadã do ser humano.
Nesse sentido uma das intenções da presente pesquisa é exatamente procurar levantar
alguns dos principais problemas relativos ao lugar do Ensino Religioso e do Sagrado (como
algo importante na vida das pessoas, que não pode faltar na vida das pessoas. Ver Fusinato;
Keim, 2004) na vida das pessoas. A partir desse levantamento, pretende-se direcionar o
foco da discussão e reflexão do presente trabalho para o campo da epistemologia.
Especificamente falando: busca-se descobrir a epistemologia ou não do Ensino Religioso.
Em outras palavras: enquanto problema da pesquisa, como se apresenta a base
epistemológica do Ensino Religioso? Como se constituíram ou não a gênese e o
desenvolvimento da epistemologia do Ensino Religioso? Ou seja: que é o Ensino Religioso,
qual o seu objetivo, seus métodos, como conceber um conhecimento religioso moderno?
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Isso significa, ainda, que a pesquisa pretende compreender o Ensino Religioso em
termos da dinâmica da sociedade e cultura e não em termos individuais. É importante
destacar que cada vez mais se torna necessária uma contribuição multidisciplinar para a
compreensão dos problemas humanos. Nesse sentido, análises situadas em outras
perspectivas não são apenas complementares, mas fundamentais para uma visão global do
assunto pesquisado. Em se tratando de um tema tão complexo, é sempre oportuno lembrar
que a análise que se pretende é apenas um recorte possível, há outros. O importante é deixar
claro o lugar de onde se fala e falar o mais precisamente possível.
Quanto à classificação da pesquisa, seguindo o padrão adotado pela pesquisadora
Weiduschat (2005, p. 121-124), ela pode ser de natureza básica, pois tem como propósito a
geração de novos conhecimentos para o avanço da ciência sem aplicação prática prevista.
Sua abordagem é qualitativa. Quanto a seu objetivo, ela é descritiva e explicativa. E nos
seus procedimentos técnicos ela é bibliográfica. É composta em sua parte teórica de uma
introdução, o primeiro tópico trata da questão epistemológica, o segundo descreve a relação
epistemologia e Ensino Religioso e por último vêm as considerações finais.
A questão da epistemologia A palavra epistemologia vem do grego episteme, que quer dizer conhecimento ou
ciência. Nesse sentido, a epistemologia pode ser entendida como sendo a parte da filosofia
que estuda a questão do conhecimento, sua origem, estrutura , métodos e validade. Assim
concebida, a epistemologia remonta à Antiguidade grega. Os escritos de Platão sobre a
origem do conhecimento verdadeiro, ou os de Aristóteles, sobre as faculdades da alma
humana, poderiam, portanto, ser considerados como ensaios de epistemologia. De acordo
com esse entendimento, a epistemologia se confundiria com a gnosiologia ou teoria do
conhecimento, e trataria das interpretações mais significativas na história da filosofia sobre
a questão do conhecimento. Nomes como Tomás de Aquino, René Descartes, John Locke,
David Hume, Immanuel Kant, entre inúmeros outros, seriam referências fundamentais.
O principal problema da teoria do conhecimento é a oposição entre essência e aparência.
A tese clássica, geralmente associada a Platão, de que tudo que conhecemos de modo
imediato não passa de aparência. Para além do que percebemos acerca de um objeto,
qualquer que seja, há uma essência invisível na qual reside a verdade da coisa mesma.
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Como no conhecido mito da caverna, de Platão, somos prisioneiros, não vendo senão
sombras de uma realidade maior que quase sempre nos escapa. Mas, se nos esforçarmos
bastante, podemos vislumbrar a essência e alcançar um conhecimento verdadeiro do objeto.
Segundo o professor Vasconcelos (2009, p. 23-24), esse posicionamento epistemológico,
convencionalmente chamado de realismo ou dogmatismo , choca-se com outros tais, como
o ceticismo , o relativismo ou o perspectivismo . É nesse complexo campo de debates que
se forja a epistemologia. Existe, contudo, um outro uso do termo epistemologia, não
necessariamente oposto, mas que assume conotações um pouco diferenciadas. O termo é
familiar aos estudiosos das áreas da lógica, filosofia da linguagem e filosofia da ciência.
Isso porque a questão do conhecimento foi retomada na época contemporânea em termos
radicalmente diferentes daqueles em que havia sido concebida até então. Até meados do
século XIX, a lógica aristotélica reinava suprema, muito pouco tinha sido acrescentado ao
que Aristóteles havia escrito de forma sistemática no conjunto de obras intitulado Organon,
que constitui seu tratado mais completo sobre o assunto. Na virada do século XIX ao XX,
mas especialmente nas primeiras décadas do século XX, vários pensadores passaram a
desenvolver um estudo sobre a linguagem, enfatizando seu papel na produção do
significado. Merece ênfase a atuação de um grupo conhecido como Círculo de Viena, sob a
liderança de Moritz Schlick e Rudolf Carnap. O principal objetivo desses pensadores era
desenvolver uma linguagem desprovida de ambiguidades e que servisse de forma exemplar
ao conhecimento científico. Lentamente, foi-se desenvolvendo uma vertente diferenciada
na filosofia, de caráter essencialmente lógico e preocupada, sobretudo, com a relação entre
linguagem e pensamento científico. Essa vertente, popularmente conhecida como filosofia
analítica, ganhou amplo espaço acadêmico, tornando-se predominante nos países de língua
inglesa, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Quando usamos a palavra
epistemologia associando-a a essa corrente de pensamento, continuamos usando-a no
sentido de “teoria do conhecimento”, mas a ênfase recai sobre uma forma de conhecimento
em particular: a ciência. Nesse sentido, as questões epistemológicas fundamentais se
reduzem às seguintes: que é ciência? De que modo a ciência se diferencia das demais
formas de conhecimento? Quais os métodos e procedimentos que caracterizam uma
investigação científica? No caso específico do conhecimento histórico, que sentido da
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palavra epistemologia podemos aplicar? Trata-se de uma teoria do conhecimento em geral
ou de uma filosofia da ciência? São ambos.
Quando, na atualidade, é tratado da gênese, desenvolvimento, estruturação e articulação
da ciência, diz que se trata da epistemologia. Assim, a epistemologia, no seu sentido mais
geral, pode ser conceituada como discurso sobre a ciência. É preciso, contudo, fazer alguns
esclarecimentos preliminares. Primeiro, trata-se de um discurso sobre a ciência moderna,
isto é, sobre o saber sistemático e metódico que, a partir do século XVI, se desenvolve
autonomamente, desligado da filosofia, da teologia, da arte e da literatura. Segundo, a
epistemologia é um campo recente do conhecimento, é resultado do próprio processo de
desenvolvimento da ciência moderna, ou melhor, é consequência da quebra da unidade do
discurso sobre a ciência (muitas vozes apareceram no cenário mundial das pesquisas e não
se relacionavam, até mesmo conflitavam a respeito da utilidade, validade e veracidade da
ciência). Portanto, a epistemologia trata da ciência, a fim de estudar criticamente os seus
princípios, hipóteses e resultados, com vistas a estabelecer os fundamentos de uma ciência
específica ou, distintamente, a fim de saber como é possível o conhecimento científico.
Se considera que não existe uma definição definitiva de ciência, então se faz um
determinado tipo de epistemologia. Considera-se que a ciência tem uma unidade
intransponível, portanto pode ser pensada com critérios universais, então se faz outro tipo
de epistemologia. Nas palavras de Almeida (1997, p. 11-12), o primeiro tipo é aquele que
entende a ciência como processo de construção histórica, em que há um constante acordo
entre sujeito e objeto, relativo ao contexto histórico, a denominada epistemologia genética.
O outro campo do pensamento que entende a ciência de um ponto de vista estático ou
sincrônico, para a qual o acordo entre sujeito e objeto é feito desde a origem de forma
definitiva, não sendo aceita a perspectiva histórica ou temporal, é denominado
epistemologia não genética. Mesmo considerando essa ampla divisão da epistemologia em
genética e não genética, não se pode dizer que existem apenas duas epistemologias, pois há
subdivisões tanto nas epistemologias genéticas quanto nas não genéticas.
A partir dos estudos epistemológicos, a ciência passou a ocupar o lugar que ela merece
e, assim, perdeu sua hegemonia de único saber válido, pode-se dizer que o seu valor de
verdade deixou de ser definitivo e dogmático e passou a ser aberto e provisório. Quando
determinados autores citam que a epistemologia nasce a partir da quebra da unidade do
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discurso sobre a ciência, estão dizendo que a ciência deixa de ser entendida no singular e
com letra maiúscula e passa a ser entendida na pluralidade dos discursos sobre as ciências,
com estatutos particulares, campos delimitados e, portanto, escrita com letra minúscula. De
acordo com Almeida (1997, p. 9-10), “a ciência não é uma essência metafísica imutável,
deduzida de princípios universais, mas é construção, saber processual”. Pode-se começar a
entender por que definir epistemologia não é tarefa fácil, exatamente porque se trata de
saberes sobre ciências, ou seja, também a epistemologia deve ser entendida enquanto
pluralidade, porque plurais são os discursos sobre as ciências. O que se pode tentar é uma
aproximação desses discursos e, a partir dessa aproximação, tentar conceituar
epistemologia com aquilo que é próximo das diferentes abordagens encontradas, ou seja,
encontrar nos diferentes discursos referentes à epistemologia o que é semelhante neles.
As palavras, início, articulação, desenvolvimento, estruturação da ciência, remetem à
reflexão que aborda a epistemologia. De acordo com Japiassu (1979, p. 24),
“etimologicamente falando, epistemologia é o discurso, logos, sobre a ciência, epistem”. No
sentido mais geral, pode ser conceituada como discurso sobre a ciência moderna e o saber
sistemático e metódico. Para o professor Gamboa (1987, p. 1), “o termo foi criado
recentemente e com definição já comprometida com o positivismo, na medida em que
conota a redução progressiva da Teoria do Conhecimento, com a Teoria do Conhecimento
Científico”. Pode-se confirmar a epistemologia, nos limites do discurso filosófico, fazendo
dela uma parte do discurso. Percebe-se que a ciência não é o saber, mas um tipo de saber.
Quando entendida, por exemplo, como filosofia da ciência, a epistemologia é uma teoria do
conhecimento que tenta responder à pergunta “como é possível a ciência?”. Ela é também
metafísica, porque se apoia em princípios atemporais para responder às perguntas
levantadas. Enquanto história da ciência, ela se pergunta pela finalidade e destino da
ciência. De outra forma, pode-se conceber a epistemologia como psicologia das ciências.
Esse campo possibilita o conhecimento das estruturas físicas do ser humano, que explica a
passagem do pensamento concreto para o abstrato. Outro campo pode se denominar
sociologia do conhecimento, onde a ciência é entendida a partir das construções sociais.
Difícil é traçar as fronteiras que separam a epistemologia das disciplinas vizinhas. Segundo
Blanche (1988, p. 17), “as fronteiras permanecerão móveis porque os problemas da
epistemologia abrangem muitas vezes domínios situados para além de suas fronteiras”. Em
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um sentido amplo pode-se considerar a epistemologia como o estudo reflexivo e metódico
do saber, de sua organização e funcionamento e de seus poderes, que seriam organizados,
de acordo com Japiassu (1979, p. 16-17), em três tipos para fim de estudo: 1)
Epistemologia geral, saber global; 2) Epistemologia particular, campo particular do saber;
3) Epistemologia específica, disciplina intelectualmente definida e constituída em uma
unidade do saber. A epistemologia específica será nosso próximo ponto de reflexão.
Epistemologia e Ensino Religioso A dinâmica do desenvolvimento do assunto em alguns momentos talvez se torne
complexa, porém não difícil, onde se ressalta que é importante aprender e compreender a
temática Ensino Religioso e epistemologia no seu intercurso variado com outros
componentes sociais através dos tempos históricos, ou seja, é necessário ter uma
abordagem histórica do tema para melhor compreensão do objeto estudado e de como ele se
apresenta no cenário nacional. De acordo com Andrade (2001), Edgar Morin diz que
precisamos estudar o objeto não somente como uma peça a mais em um grande
quebra-cabeça, mas vê-lo como um sistema ligado a muitos outros. Assim, neste momento
se destaca uma breve história do Ensino Religioso no país.
O Ensino Religioso está presente na educação brasileira desde o início da colonização
portuguesa. Tal Ensino Religioso que vigorou no Brasil desde os seus primórdios e no
Império era um Ensino com ênfase na doutrina da religião oficial, a católica romana.
No Brasil Colônia houve um acordo entre o rei de Portugal e o Sumo Pontífice a respeito
da formação do povo brasileiro. Tal acordo tinha como objetivo fomentar um catecismo
tradicional. No Império o Catolicismo passa a ser a religião oficial do Brasil, entretanto a
Igreja estaria nesse período submissa ao Estado, servindo de instrumento ideológico. Na
primeira Republica o Ensino Religioso perde espaço nas escolas e na sociedade de maneira
geral, passando a ser facultativo. Atualmente, o Brasil é um Estado laico, de escola pública
e gratuita.
Com a proclamação da República, em 1889, se estabelece a separação entre Igreja e
Estado, a liberdade de culto e o reconhecimento da diversidade religiosa. Contudo o Ensino
Religioso continuou sendo, na prática, o ensino da religião cristã. A Constituição de 1934
selou novamente a aproximação da Igreja Católica com o Estado brasileiro. O Brasil
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presenciava a ascensão de um Estado autoritário e de uma Igreja que finalmente recuperava
acesso ao poder após quarenta anos de uma República laica, com ares positivistas.
Nesse período a Igreja Católica se posicionou contrária aos defensores da Escola Nova.
Debates ásperos ocorreram e personalidades como Anísio Teixeira e Fernando Azevedo
foram taxados de comunistas e materialistas. A corrente católica venceu mais essa batalha,
fazendo prevalecer suas opiniões na legislação aprovada.
Apesar de a República brasileira ter em sua origem um fundamento secular, no decorrer
dos anos a ação realizada pela Igreja Católica se mostrou eficiente para que os desejos por
ela almejados fossem sendo concretizados, especialmente no que se refere ao Ensino
Religioso. Situação que nos sugere que a relação Igreja Católica-Estado tem sido marcada
pela percepção, por parte do clero, de uma "função histórica" especialmente reservada ao
Catolicismo.
Pode-se notar, então, que o Ensino Religioso no Brasil fez história por vários caminhos
diferenciados: o caminho da confessionalidade, o caminho da interconfessionalidade, o
caminho das religiões e o caminho da religiosidade.
Como se viu neste breve histórico da disciplina, o Ensino Religioso nem sempre foi de
fato Ensino Religioso, isto é, disciplina dedicada às culturas e às tradições religiosas, o que
havia em muitos momentos era de fato uma catequização. Alguns críticos afirmam que tal
prática catequética tinha como objetivo manipular a religiosidade e a mentalidade da
sociedade.
Para entender melhor a história, a concepção, a formação, a estrutura e a identidade da
disciplina Ensino Religioso, faz-se necessário um olhar histórico sobre o mesmo, no qual se
observa o Ensino Religioso em três momentos históricos distintos, entretanto sempre
guiado pela LDBEN.
No primeiro momento histórico houve o Ensino Religioso deliberado pela LDBEN n.
4.024/61, tendo como eixo articulador a dimensão religere (re-escolher – saber em si), ou
seja, havia uma perspectiva teológica e confessional sobre a disciplina de Ensino Religioso.
No segundo momento histórico houve o Ensino Religioso deliberado pela LDBEN n.
5.692/71, tendo como eixo articulador a dimensão religare (re-ligar – saber em relação), ou
seja, havia uma perspectiva antropológica e axiológica sobre a disciplina Ensino Religioso.
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No terceiro momento histórico há o Ensino Religioso deliberado pela presente LDBEN,
n. 9.394/96, tendo como eixo articulador a dimensão relegere (re-ler – saber de si), ou seja,
há uma perspectiva fenomenológica sobre a disciplina Ensino Religioso.
A partir do processo constituinte de 1988, o Ensino Religioso vai efetivando sua
construção como disciplina escolar, como componente curricular, a partir da escola e não
de uma ou mais religiões. Assim, a razão de ser do Ensino Religioso tem sua
fundamentação na própria função da escola: o conhecimento e o diálogo. A partir da atual
LDBEN, o Estado, a escola e a sociedade não podem mais considerar o Ensino Religioso
como uma simples formação religiosa ou axiológica, nem considerar o Ensino Religioso
como catequese ou uma ação pastoral, é necessário compreendê-la lá como componente
curricular cujo conteúdo seja o Fenômeno Religioso.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso (PCNERs) também são
tidos como um marco histórico tanto para o Ensino Religioso como para a educação
brasileira: pela primeira vez, pessoas de várias tradições religiosas, enquanto educadores,
conseguiram juntos encontrar o que há de comum numa proposta educacional que tem
como objeto o Transcendente.
O objetivo dos PCNERs é simples, porém muito desafiador: Proporcionar junto ao
educando o conhecimento dos elementos básicos que compõem o Fenômeno Religioso, as
culturas e as tradições religiosas a partir das experiências religiosas percebidas no contexto
sociocultural da sociedade. Há, atualmente, diversos modelos de Ensino Religioso.
O confessional é oferecido de acordo com a opção religiosa do aluno ou de seu
responsável e ministrado por professores preparados e credenciados pelas respectivas
entidades religiosas. O estado do Rio de Janeiro aprovou o Ensino Religioso confessional e
pluralista.
O interconfessional é resultante de um acordo entre as diversas entidades religiosas, que
se responsabilizarão pela elaboração dos respectivos programas. Desenvolvido, em geral,
por grupos de confissões cristãs, considera o que é comum às diferentes Igrejas ou
confissões.
O supraconfessional é ministrado nas escolas públicas, não admite qualquer tipo de
proselitismo religioso, preconceito ou manifestação em desacordo com o direito individual
dos alunos e de suas famílias de professar um credo religioso, ou mesmo o de não professar
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nenhum, devendo assegurar o respeito a Deus, à diversidade cultural e religiosa, e
fundamenta-se essencialmente em princípios de cidadania, ética, tolerância e em valores
humanos universais presentes em todas as culturas e tradições religiosas existentes.
A disciplina curricular é um modelo de Ensino Religioso pensado como área de
conhecimento, a partir da escola e não das crenças ou religiões, e tem como objeto de
estudo o Fenômeno Religioso. Independente do posicionamento ou opção religiosa, os
educandos são convidados a cultivar as disposições necessárias para a vivência coerente de
um projeto de vida profundamente humano e a pautar-se pelos princípios do respeito às
liberdades individuais; tolerância para com os que manifestam crenças diferentes e
convivência pacífica entre as diversas manifestações religiosas que compõem a pluralidade
étnica e cultural da nação brasileira.
Historicamente, todas as redes de ensino, sejam elas públicas, sejam privadas, têm
dificuldades em e conflitos para ministrar as aulas de Ensino Religioso por causa da
complexidade do conteúdo do mesmo e do pluralismo religioso. Dificuldades porque os
professores de Ensino Religioso insistem em catequizar e educar na fé seus alunos, fato que
é no mínimo questionável, haja vista a existência de várias denominações eclesiais entre os
alunos. Conflitos porque existem pais que não acreditam ou não admitem determinados
conceitos religiosos que são apresentados aos alunos como único dogma de fé. Qual a razão
e origem desse problema no âmbito dos professores? De certa forma, a formação dos
professores passa por um conjunto de ideias e práticas que é denominado currículo da
disciplina. Esse currículo é formado a partir das vertentes epistemológicas existentes.
Nota-se, ainda, que o Ensino Religioso, na prática, não está constituído enquanto disciplina.
Nesta confusão epistemológica podemos citar o caso do objeto de estudo do Ensino
Religioso, que é apresentado enquanto Fenômeno Religioso, para os Parâmetros e Cadernos
Temáticos do Ensino Religioso, construídos a partir de debates em nível nacional feitos por
professores de Ensino Religioso. Contrário a essa proposta, o estado de Santa Catarina, em
sua proposta curricular, adotou o Transcendente enquanto objeto de estudo da disciplina.
Tais contradições serão analisadas mais adiante.
Para a Constituição Federal de 1988, religião é direito individual (art. 5o, VI) e
educação, direito social (art. 6o). O art. 210, § 1o, situa o Ensino Religioso no espaço, ao
mesmo tempo, público (escola) e privado (liberdade de consciência). Essa localização
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ambígua implica dilema epistemológico. A LDBEN tenta superá-lo pela: a) proibição do
proselitismo; b) frequência optativa; c) não integralização da carga horária da disciplina nas
800 horas; e d) concessão do direito à audição pelo sistema de ensino de entidade civil
representativa das Igrejas. Tais medidas não resolvem o dilema, porque o sistema de ensino
republicano pressupõe separação entre Igreja e Estado (Constituição Federal, art. 19).
Educação é direito universal (de cada pessoa!) e dever do poder público, conforme o
consenso pactuado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco): “O direito a educação é, portanto, o direito que tem o indivíduo de se
desenvolver normalmente em função das possibilidades de que dispõe, e a obrigação, para a
sociedade, de transformar essas potencialidades em realizações efetivas e úteis” (Piaget,
1978, p. 35).
O Ensino Religioso é área do conhecimento, mas não é parte da base comum nacional. O
Ministério da Educação e do Desporto (MEC) não estabeleceu parâmetros curriculares
nacionais para o Ensino Religioso. O Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso
(Fonaper), que reúne educadores – leigos e clérigos – sem representação oficial das
direções eclesiásticas, resolveu elaborar sua proposta de parâmetros curriculares, tentando
influir na prática docente. Um avanço importante em relação aos programas das “aulas de
religião”, quase sempre definidos por bispos ou pastores. Persiste, no entanto, o dilema
epistemológico de qual objeto pesquisar.
A justificativa de que o Ensino Religioso é um componente curricular porque integra a
formação para a cidadania é falsa. A suposição de que uma pessoa religiosa seja melhor,
igual ou pior cidadã em razão de sua crença caracteriza clara discriminação. Na opinião do
ex-pastor-presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e da Federação
Luterana Mundial Gottfried Brakemeier,
não há nenhuma necessidade de a sociedade ser “cristã” para ser justa. O princípio a valer para
o acordo político e a nortear a causa pública é o razoável, o apropriado, o proveitoso, cujo
conhecimento de modo algum representa privilégio cristão. Excluem-se, assim, todas as formas
de “teocracia” ou de “Cristandade”, e juntamente com elas a tentação de a Igreja impor à
sociedade secular seu regime e seus valores (2002, p. 122-123).
Justificar o Ensino Religioso pela necessidade de propiciar formação moral aos
educandos também é falso. Nesse caso, ele seria uma “religião civil”, segundo a qual “os
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princípios transcendentes teriam a função precípua de consolidar a solidariedade social”
(Azevedo, 1998, p. 72). O antropólogo Azevedo aplica o conceito “religião civil” na crítica
da disciplina Educação Moral e Cívica, criada pelo Ato Institucional n. 12, “destinada a
promover a solidariedade social” e o “preparo do cidadão”. A Junta Militar e a tecnocracia
educacional consideravam que “a moral vincula-se a princípios permanentes, originários de
Deus” (id., p. 130-132). Para moralizar a vida social, não temos apenas de proporcionar na
escola os elementos necessários para a análise da vida moral, temos de lutar também para
conseguir moralizar a sociedade. Não podemos pedir à escola mais do que ela pode
proporcionar (Delval, 1998, p. 22).
As comunidades humanas vivem experiências que atribuem à Transcendência. Há
necessidade de distinguir entre fé e religião, ou seja, a crença na divindade não implica
conhecimento sobre ela. As Igrejas se articularam para alterar a redação do art. 33 da
LDBEN, mas não o fizeram pela regulamentação do direito à liberdade de culto. Essa
desregulamentação impede que o sistema federal de ensino defina o processo de formação
docente para o Ensino Religioso. O Conselho Nacional de Educação (CNE) repassou tal
atribuição aos Conselhos estaduais e municipais. Pela mesma razão o MEC não formulou
parâmetros curriculares para o Ensino Religioso. O ex-ministro da Educação Paulo Renato
de Souza defendeu a alteração do art. 33 porque a proibição do financiamento público
provocaria, segundo ele, “restrição para a atuação das diferentes denominações religiosas”
(apud Caron, 1998, p. 59). Segundo o Parecer n. 04/98 da Câmara de Educação Básica
(CEB), de 29 de janeiro de 1998,
a Educação Fundamental [...] é indispensável para a nação. E o é de tal maneira que o direito a
ela, do qual todos são titulares (direito subjetivo), é um dever, um dever de Estado (direito
público). Daí porque o Poder Público é investido de autoridade para impô-la como obrigatória a
todos e a cada um.
Assim, “o indivíduo não pode renunciar a este serviço e o poder público que o ignore
será responsabilizado”. “As diferentes escolas sociológicas partem do suposto comum de
que a religião, diferentemente da fé, pode ser objeto de pesquisa empírica, pois, por ser
fruto de criação coletiva, está sujeita às mesmas regras lógicas que organizam qualquer
fenômeno humano” (Montero, 2003, p. 38). O Parecer n. 04/98 da CEB reconhece que
“currículos e seus conteúdos mínimos (art. 210 da Constituição Federal de 1988), propostos
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pelo MEC (art. 9o da LDB), terão seu norte estabelecido através de diretrizes”, o Ensino
Religioso é a única exceção A Lei n. 9.475, proibindo o proselitismo, tenta resolver o
dilema epistemológico do Ensino Religioso pelo comportamentalismo, como se os
educandos fossem incapazes de resistir ao esforço proselitista das Igrejas.
Voltando à questão epistemológica em sua forma específica, hoje podemos nos servir do
termo saber para designar uma série de disciplinas intelectuais mais ou menos
estabelecidas, mas que não podem ser consideradas como ciências, no sentido do termo,
saber racional, constituído pela filosofia, ou saber místico. Entretanto, entre as ciências e os
saberes especulativos intercalam-se várias disciplinas cujo estatuto ainda permanece
incerto: disciplinas de erudição, história, jurídicas etc. Não seria o caso do Ensino
Religioso? Para responder a essa pergunta, valemo-nos de Japiassu (1979, p. 16-17), que
nomeia três tipos de epistemologia:
1. Epistemologia global ou geral: quando se trata do saber globalmente
considerado com a virtualidade e os problemas do conjunto de sua organização,
quer sejam especulativos, quer científicos. Parece que não seria o caso do
Ensino Religioso, pois o conhecimento religioso não é ampla ou globalmente
aceito enquanto ciência ou disciplina. Na maioria das academias do mundo todo
o Ensino Religioso não passa de um discurso, muitas vezes pautado pelo
fanatismo religioso ou ligado à teologia.
2. Epistemologia particular: quando se trata de levar em consideração um campo
particular do saber, quer seja especulativo, quer científico. O problema maior
no Ensino Religioso encontra-se justamente na falta original do objeto de
estudo do mesmo. Vejamos: se o objeto é o Fenômeno Religioso, ele se
apropriou de um objeto já existente em outras ciências ou saber especulativo. O
Fenômeno Religioso, antes de a disciplina Ensino Religioso se constituir em
nosso país como tal, já era estudado na sociologia, na filosofia, na antropologia,
na psicologia, na história, na geografia, na teologia. Se usarmos o objeto da
proposta curricular de Santa Catarina, ou seja, o Transcendente, teremos outro
problema: a teologia e a filosofia também já estudavam esse objeto antes do
Ensino Religioso. Sem contar que existem grupos de estudos que não aceitam
essas duas propostas. Por exemplo: o grupo de estudo Educogitans, do mestrado
em Educação da Universidade Regional de Blumenau (FURB), defende o
objeto de estudo do Ensino Religioso, o Sagrado, enquanto algo importante que
não pode faltar na vida das pessoas. Esse algo seria um olhar construído dentro
Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VI, n. 27 120
de uma abordagem sociológica, ou seja, construído na história humana em suas
relações com os outros.
3. Epistemologia específica: quando se trata de levar em conta uma disciplina
intelectualmente constituída em unidade bem definida do saber e de estudá-la
de modo próximo, detalhado e técnico, mostrando sua organização, seu
funcionamento e as possíveis relações que ela mantém com as demais
disciplinas. O EnsinoReligioso é uma disciplina intelectualmente constituída?
Tentaremos responder por partes à pergunta feita na última forma de epistemologia.
Conforme o Referencial Curricular para a Proposta Pedagógica da Escola (Fonaper, 2000,
p. 16), o Ensino Religioso deve ser centrado na antropologia religiosa.
Epistemologicamente, a disciplina Ensino Religioso, da área do conhecimento humano de
educação religiosa, enquadra-se no padrão comum a todas as outras áreas do conhecimento,
ou seja, ela tem: objeto de estudo: Fenômeno Religioso; conteúdo próprio: conhecimento
religioso; tratamento didático: tratamento didático do Fenômeno Religioso, entre outros
itens. Que área é essa? Foi criada recentemente? Quem são os pesquisadores desta área? A
esse respeito a resposta já foi dada anteriormente. Confuso é o objeto de estudo, ou seja, a
qual disciplina ele pertence? O conhecimento religioso é somente do Ensino Religioso? São
perguntas que nos orientam a pensar que ainda precisamos percorrer um longo caminho
para que o Ensino Religioso tenha status de disciplina.
De acordo com os PCNERs (1997), entende-se por Fenômeno Religioso o processo de
busca que o ser humano realiza na procura da Transcendência e que se estrutura na
bipolarização cultura e tradição religiosa, bem como naquilo que é Sagrado para as pessoas.
O Fenômeno Religioso é entendido a partir do conhecimento produzido pelo Ensino
Religioso, que é o conhecimento religioso, conhecimento que gera o saber de si. O espaço
onde se situa o conhecimento religioso é a própria pessoa, por isso que ele é uma
construção humana. Quando os PCNERs respondem que o Fenômeno Religioso é
construído a partir do conhecimento religioso e concluem que o conhecimento religioso é
produzido pelo Ensino Religioso, incorrem em um grave erro de interpretação, pois o
conhecimento religioso não é somente produzido pelo Ensino Religioso.
O professor Benicá (1998) escreve que podemos identificar três enfoques
epistemológicos do conhecimento religioso. O primeiro seria o objeto de estudo sociológico
que produz conhecimento religioso: são as instituições e organizações religiosas. Como o
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objeto de investigação é externo à consciência do investigador, é enfocado como objeto
social e histórico, campo extremamente rico e significativo em termos culturais. O segundo
é o enfoque antropológico e tem como objeto de estudo a relação do ser humano com o
desconhecido. O ser humano se manifesta como um ser em busca da Transcendência. Nessa
perspectiva produz objetivos para gerar utopias que garantam o sentido de sua vida e
liberdade é uma condição para essa busca. O terceiro e último enfoque é o teológico, que
implica a adesão do fiel ao seu revelador, que pode ser observado sob diferentes prismas. A
observação pode recair sobre o revelador em questão. Pode-se fazer um estudo sobre os
textos e narrativas sagrados. Por último, envolve-se a dimensão da experiência religiosa.
Benicá continua sua análise dizendo que a epistemologia em questão precisa recorrer a uma
metodologia de investigação religiosa. Nesse sentido, o Fenômeno Religioso, objeto da
disciplina de Ensino Religioso, é universal e indestrutível porque radicado no ser humano.
O conhecimento desse Fenômeno é produto da investigação humana e enquanto tal revela
toda a sua fragilidade, própria da contingência da humanidade. Pode-se dizer que o autor
propõe que a raiz do Fenômeno Religioso está na dialética liberdade-necessidade de
segurança. Aqui também nada se acrescentou para o entendimento maior da razão de ser do
Ensino Religioso. Pode-se questionar: existe razão, então, para se ter uma outra disciplina
que tenha o objeto de estudo centrado no Fenômeno Religioso? Não seriam suficientes as
contribuições da sociologia? Da filosofia?, Da antropologia? Da teologia? Da história? Da
geografia? Entre outras? Ao que parece, este, por enquanto, é o fim da linha no processo de
investigação de validade do Ensino Religioso na procura de sua base epistemológica.
Uma solução pode estar na interação dialógica sobre “valores”, “noções” e “conceitos
essenciais” do componente curricular Ensino Religioso. Nesse diálogo cognoscente, Igrejas
e religiões podem participar como entidades da comunidade escolar. Os valores éticos que
fundamentam a formação para a cidadania estão definidos na Constituição Federal:
soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da
livre-iniciativa, e pluralismo político (Constituição Federal, art. 1o). Esses valores
determinam os conteúdos mínimos de todas as áreas do conhecimento, inclusive do Ensino
Religioso. Sobre esses valores o Ensino Fundamental obrigatório estrutura seu projeto
político-pedagógico de “formação básica do cidadão” (LDBEN, art. 32). É ilusão religiosa
e ingenuidade ética imaginar que tais valores sejam determinados pela fé religiosa. O
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Estado republicano define valores universais relativos à vida pública fundamentando-os na
soberania popular – o poder popular –, sobre a qual se funda a Nação. A submissão à
soberania popular é exigência legal a todos imposta pelo Estado Democrático de Direito. A
crença na soberania divina é privativa da liberdade de consciência. A crença racional na
soberania popular funda a afirmação pedagógica de que cada indivíduo é – por definição –
sujeito capaz de aprender a ser um cidadão melhor do que já é! O direito à cidadania é
reconhecido no ato do registro civil, independente da vontade do “registrando”. Esse rito
público justifica os projetos político-pedagógicos que visam “o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
(LDBEN, art. 2). A antiga redação do art. 33 da LDBEN era consistente: ofertava Ensino
Religioso confessional ou interconfessional com conteúdos, custos, formação e habilitação
docente sob responsabilidade de uma Igreja ou de um conjunto de Igrejas, mas mantido e
regido pelo Estado e ministrado por seus funcionários.
A proposta de parâmetros curriculares do Fórum Nacional Permanente do Ensino
Religioso aceita tacitamente o dogma religioso do inatismo, segundo o qual a
Transcendência seria uma “capacidade inerente ao ser”, que “na raiz de toda criação
cultural está a Transcendência” (Figueiredo, 2001, p. 19-20). Não se resolve o dilema
epistemológico pela naturalização da cultura ou pelo reencantamento do mundo. O Parecer
n. 05/97 do CNE percebe o dilema epistemológico do Ensino Religioso a partir da prática
escolar. O “professor desta matéria” deveria trabalhá-la na perspectiva da “história da
religião, antropologia cultural, ética religiosa” – fazendo-o, portanto, como qualquer outro
docente, mas “nunca seria representante oficial de uma das religiões existentes no país”. A
LDBEN, tanto na versão original do art. 33 quanto na atual redação, prevê Ensino
Religioso, ou seja, ensino de religião. O Fonaper não enfrenta essa polêmica porque propõe
um Ensino Religioso concebido como “uma disciplina centrada na antropologia religiosa”
(2001, p. 11). Existe tal antropologia? A teologia e as ciências das religião acadêmicas
sustentam concepções antropológicas divergentes (Rahner, 1969; Thielicke, 1985;
Brakemeier, 2002). Uma antropologia religiosa não é razoável. Com base em Morin (2000),
poder-se-ia discutir se existe natureza humana, pois a humanidade está, “a um só tempo,
dentro e fora da natureza [...] Nosso pensamento, nossa consciência, que nos fazem
conhecer o mundo físico, dele nos distanciam ainda mais” (p. 38). A separação entre
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natureza e humanidade torna procedente a pergunta filosófica formulada por Romano
(1992):
Pergunto aos defensores do Ensino Religioso: eles acham que os currículos obedecerão à linha
do Vaticano? Ou sua marca será a dos teólogos e bispos que apoiam Pinochet? [...] Quem
garante os conteúdos “antropológicos” [...] hoje impostos? Como instituição, a Igreja retoma o
conservadorismo. (p. 273).
A crença de que a “recusa à Transcendência é trágica para o ser humano, pois o torna
resignado em sua mediocridade” (Fonaper, 2001, p. 19), é preconceituosa e
antidemocrática. É irracional afirmar que os crentes sejam mais ou menos resignados e
medíocres que os descrentes. A hermenêutica do Fonaper interpreta a revelação como
mística porque seria uma verdade vinculada ao “mistério” (id., p. 39), ao “sentido da vida
além da morte” (p. 6). Se o Ensino Religioso é uma disciplina necessária à formação da
cidadania, por óbvio vincula-se ao cotidiano, ao aquém da morte. Parece, portanto,
desnecessário que uma disciplina escolar desenvolva uma “linguagem mítico-simbólica”
capaz de fazer a “passagem do psicossocial” para a “metafísica/Transcendente” (p. 39).
Nenhuma linguagem resolve a tensão entre fé e razão. Se a fé crê em verdades perenes, a razão
não as admite, porque [...] o envelhecimento das teorias científicas é sem dúvida incrível. As
teorias se desatualizam e ainda assim a ciência. É que a verdade científica não está na certeza
teórica. Uma teoria é científica não porque ela é certa, mas, ao contrário, porque ela aceita ser
refutada, seja por razões lógicas, seja por razões experimentais ou de observações. Isto é, uma
teoria científica não é o substituto, num mundo laico, da verdade teológica e religiosa. É o
contrário! (Morin; Le Moigne, 2000, p. 39).
Restam muitas perguntas ainda. E o direito daqueles que não querem ter uma religião,
ou estudar as abordagens de cunho religioso nas escolas? Ou é possível propor uma nova
semântica para o que vem acontecendo e sendo praticado em algumas cidades e estados no
que é na atualidade chamado de Ensino Religioso? É possível pensar o Ensino Religioso
como área de conhecimento humano, a partir da escola e não das crenças religiosas, tendo
como objeto de estudo o Fenômeno Religioso? Em relação a essa pergunta, por causa da
própria carga de disputas pesadas entre Estado e Igreja, bem como das iniciativas
equivocadas de governos estaduais, como a do Rio de Janeiro. Mesmo que existam práticas
que procuram mostrar que o objeto a ser pesquisado e estudado não é a fé, a conhecida área
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denominada ciências da religião, que pretende ser um marco teórico, epistemológico e
metodológico respeitável para a compreensão do Fenômeno Religioso.
Considerações finais Assim como “a fragmentação das ciências biológicas anula a noção de vida, a
fragmentação das ciências humanas anula a noção de homem” (Morin, 2000, p. 41), a
fragmentação das teologias anula a noção de Transcendência. A fragmentação das ciências,
no entanto, não anula as próprias pessoas e a vida em si mesma. A vida e a pessoa são
parâmetros da ciência, porque não são redutíveis a conceitos científicos! Este é o contexto
acadêmico em que se reflete sobre uma ética democrática capaz de superar o dilema
epistemológico do Ensino Religioso. Com base na vida humana socialmente determinada e
nas pessoas concretas, parece plausível estabelecer parâmetros curriculares mínimos e o
respectivo processo de formação do docente de ensino.
No que se refere à formação moral do ser humano, a razão polêmica que alicerça o
pluralismo bate-se igualmente contra a preservação de valores e crenças tidos por eternos e
contra a legitimação acrítica de qualquer ponto de vista ou sistema normativo. Sua ação
torna-se, então, eminentemente educativa, por se pautar na escolha – e não na aceitação
irrefletida – de um “certo” ou de um “justo” entre muitos possíveis. (Oliveira, 1996, p.
234).
Ao que parece, a busca da fundamentação epistemológica do Ensino Religioso ao
mesmo tempo é uma busca por uma sistema científico que defina os princípios
epistemológicos e metodológicos da investigação acerca das religiões enquanto produto
cultural. Nesse caso, fazer ciência com um objeto de estudo tão delicado é colocar uma
distinção evidente em uma metodologia lógica e científica de uma expressão de fé
teológica. Por outro lado, é possível abrir-se às experiências vivenciais de diálogo
inter-religioso, experiências que tragam a curiosidade para o plano das vivências
pedagógicas nas escolas, tentando escapar da lógica implacável dos estereótipos e das
discriminações, enfim, pode haver um espaço para a troca de diálogo e convivência onde se
trate o tema religião e se o entenda como um fenômeno humano. O problema é se o foco
não cairá na questão dos temas transversais.
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Apesar da crítica aqui apresentada, a Lei n. 9.475 acabou com a possibilidade de as
Igrejas e religiões controlarem o Ensino Religioso na escola pública. Por essa lei, pela
segunda vez na história republicana brasileira, elas perderam o controle sobre currículo,
formação e seleção do corpo docente de Ensino Religioso. A partir de agora, as Igrejas que
quiserem influir no Ensino Religioso podem fazê-lo como entidades da sociedade civil
inseridas na comunidade escolar, e pela conquista do apoio de docentes e discentes desse
Ensino. A resolução do dilema epistemológico da disciplina se fará pela capacidade de
mobilização autônoma das comunidades escolar e acadêmica capaz de justificar uma ética
republicana e de fundamentar uma epistemologia científica para o Ensino Religioso.
Por último, outro problema se apresenta. Em tempos de reconstrução de currículos e da
busca de aproximações de ciências e disciplinas para romper com a lógica fragmentária,
herdadas de uma educação essencialmente mecânica e cartesiana, o debate para o
reconhecimento de mais uma disciplina não estaria na contramão da história, ou seja, uma
disciplina a mais para fragmentar a realidade do conhecimento estudado e construído, já
fragmentado em várias disciplinas? A conclusão a que se chega é que o objeto de estudo da
disciplina Ensino Religioso não está visível ainda e nesse sentido não é possível afirmar
que o Ensino Religioso possa ser considerado uma disciplina escolar. Mas o desafio está
lançado e, longe de se trazer uma definição, espera-se que a partir deste trabalho novas
pesquisas surjam e o Ensino Religioso possa, quem sabe, encontrar razão de ser nas
escolas.
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