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Eixo: Educação e Movimentos sociais populares
ESCOLA NOVA CULTURA: A HISTÓRIA DE UM POEMA
PEDAGÓGICO BRASILEIRO
Regiani Zornetta (UNESP - Araraquara)1
Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo demonstrar o que foi e como se construiu a
experiência da Escola Nova Cultura, organização social criada na década de 1970, mais
precisamente em 1972, no Bairro do Belenzinho, Zona Leste de São Paulo, com o
intuito de promover a alfabetização de jovens e adultos, homens e mulheres que
compunham uma parte do operariado paulistano nos anos de 1970-1980. Tal
experiência pautava-se numa concepção pedagógica que buscava construir um espaço
educativo no qual os alunos pudessem aprender muito mais do que regras de
pensamento científico, um local onde, assim como as colônias educativas de
Makarenko, os indivíduos pudessem aprender a se auto-gestionarem e a retomar o
controle da produção do humano. O intuito era construir um trabalho educativo onde o
aluno fosse protagonista do processo não só do saber, mas também o fazer. Tal
movimento social caracterizou-se pela implementação de uma Escola regular cuja
proposta se baseava na construção de uma experiência pedagógica centrada na formação
política e cultural do numeroso operariado do bairro do Belém, onde se concentravam
inúmeras indústrias tradicionais da cidade. A Escola Nova Cultura nada mais era do que
uma escola mantida por educadores, estudantes universitários, com vínculos em
diversas organizações clandestinas da esquerda brasileira e que optaram por resistir à
ditadura militar pela difusão didático-cultural de valores que uma década e meia depois
se transformariam nos esteios da redemocratização do Brasil. Esta Escola organizadas
por militantes buscava desenvolver uma ação pedagógica alicerçada nas diretrizes
básicas de um projeto educativo e cultural no qual se objetivava construir uma nova
forma de organização da vida dos homens, centrado na busca da formação integral do
1 Regiani Zornetta, UNESP – campus Araraquara, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]
ser social. Tal projeto de organização possuía inegavelmente, profundos vínculos
ideológicos com a concepção marxiana de formação humana, mas encontrava ainda
orientação ideológica nas teorias de alguns marxistas fundamentais para a formação de
uma pedagogia emancipadora, a saber: Lev Semionovich Vigotsky e Anton
Semiónovitch Makarenko. Por meio de uma ampla pesquisa de campo, entrevistas e da
análise de materiais e documentos fornecidos por ex-alunos e ex-professores do projeto
Escola Nova Cultura, este projeto busca reconstruir, então, a história deste movimento
social.
Palavras-chave: Educação; Alfabetização de Jovens e Adultos; Movimento
Operário; Ditadura brasileira.
Introdução
A Escola Nova Cultura, criada na década de 1970, mais precisamente em 1972,
no Bairro do Belenzinho, Zona Leste de São Paulo, caracterizou-se por ser uma escola
cuja proposta se baseava na construção de uma experiência pedagógica centrada na
formação política e cultural do numeroso operariado do bairro do Belém, onde se
concentravam inúmeras indústrias tradicionais da cidade. A Nova Cultura nada mais
era do que uma escola mantida por educadores que optaram por resistir à ditadura
militar pela difusão didático-cultural de valores que uma década e meia depois vieram a
se transformar nos esteios da redemocratização do Brasil.
Esta Escola buscava desenvolver uma ação pedagógica alicerçada nas diretrizes
básicas de um projeto educativo e cultural no qual se objetivava construir uma nova
forma de organização da vida dos homens, centrado na ideia de formação integral do ser
social.
Tal projeto de organização possuía inegavelmente profundos vínculos
ideológicos com a concepção marxiana de formação humana, mas encontrava ainda
orientação ideológica nas teorias de alguns marxistas fundamentais para a formação de
uma pedagogia emancipadora, a saber: Lev Semionovich Vigotsky e Anton
Semiónovitch Makarenko.
O pedagogo russo Makarenko é talvez a expressão mais emblemática da
educação emancipadora. Homem dedicado à escola e à reflexão pedagógica
acompanhou política e teoricamente as reformas educacionais de Lênin após a
Revolução Russa e vivenciou também a primeira parte do desfecho da ditadura
comunista de Stalin.
Makarenko foi um pedagogo defensor da escola enquanto coletividade
educadora e compreendeu rigorosamente que o termo socialista era antônimo de
individualista. Portanto, para ele, coletividade era a antítese de individualidade. Seu
entusiasmo pelo coletivo o fez polemizar até mesmo com os teóricos do comunismo na
época da construção da República Socialista Soviética. Segundo Makarenko, a
formação de um novo tipo de homem — mesmo no momento da construção de uma
sociedade comunista, como na Rússia pós-revolucionária — só seria possível se fosse
levado em conta o entendimento dos indivíduos tais quais eles são. Para tanto, seria
necessário trabalhar a partir de homens concretos e não a partir de abstrações idealista.
Para Makarenko, os princípios de autoridade, disciplina e autogestão ocupavam
lugar central na prática e na teoria pedagógicas. Nas palavras do autor:
A ativação dos princípios sociais da coletividade escolar e a
combinação das medidas educacionais com o sistema de sanções
exigem o fortalecimento imprescindível do centro educacional na
escola. Somente o diretor pode ser esse centro, pois é o maior
responsável na instituição, dirigente nomeado pelo Estado. [...] Todos
os demais trabalhadores escolares devem atuar sob sua direção
imediata e cumprir suas indicações diretas. [...] O tratamento
individual da criança consiste precisamente em fazer dela um membro
fiel e digno da coletividade e um cidadão do Estado soviético em
consonância com suas peculiaridades pessoais. [...] Somente a criação
de uma coletividade escolar única pode despertar na consciência
infantil a poderosa força da opinião pública como fator educativo,
regulador e disciplinador. [...] A assembléia geral de todos os
educandos de uma instituição infantil é o órgão principal de
autogestão. (MAKARENKO, 1989: p. 182-4).
Textos como esses são inúmeros nos escritos pedagógicos de Makarenko que,
nos anos vinte, dirigia em Poltava, uma pequena cidade no interior da Rússia, uma
colônia de reeducação de pequenos infratores, a qual ele conseguiu transformar numa
pequena sociedade autogestada e que mais tarde ficara conhecida como Colônia Gorki.
Assim como Marx, Makarenko via o trabalho (entendido como atividade prática)
como o grande princípio educativo e, segundo ele, de todas as formas estava convencido
de que “[...] o trabalho que não tem como finalidade direta a produção de valores
materiais [para a coletividade] não é um elemento educacional positivo” (Idem: p. 167).
Neste sentido, podemos afirmar que termos como coletividade, trabalho produtivo,
disciplina, autoridade, antiespontaneísmo etc., pontuam todo o pensamento e a prática
pedagógica de Makarenko.
Não se deve, entretanto, esquecer as circunstâncias históricas em que viveu,
pensou e trabalhou o pedagogo citado. Ao redor dele fervilhavam a guerra e a
revolução: vários mundos estavam em choque. As crianças e os menores que chegavam
à colônia de reeducação dirigida por ele traziam, na carne e no espírito, as marcas de
tantas contradições, carências e violências que apenas um trabalho educativo
emancipador poderia salvar a destruição iminente do humano.
Os princípios do trabalho educativo de Makarenko estavam, então, mais do que
presentes na concepção educacional da Escola Nova Cultura. A proposta da escola
estava baseada, sobretudo, na ideia de que um trabalho educativo, para ser eficaz, não
poderia ser exercido apenas com palavras; tal trabalho deveria ser desenvolvido através
formação de um novo coletivo e de uma nova forma de sociabilidade, que só seria
alcançada através da revolução socialista.
Em essência, a estratégia política adotada pelo grupo fundador da Escola Nova
Cultura, apoiava-se na convicção de que somente a ação possibilitava o conhecimento
das formas do mundo e, neste sentido, buscavam construir na escola um espaço de vida
através do movimento real dos trabalhadores. A ideia do grupo era despertar, através da
construção de um novo tipo de sociabilidade a consciência da opressão do capitalismo
que proporciona dias sem história, restando aos trabalhadores apenas mínimos sopros de
vida.
Mesmo que o alvo mais elevado fosse o controle do processo de trabalho
(objetivo daqueles que lutavam por uma revolução social como Marx e Makarenko) no
grupo que fundou a Escola Nova Cultura, fomentavam também, ideias de uma
revolução social através da transformação do pensamento do homem, seus saberes, suas
vontades, sua cultura.
Assim, é possível perceber que, dentre tantos pontos, a cultura – ou a formação
de uma nova cultura através do trabalho educativo – era apontada como central para um
projeto de mudança radical na sociedade. Entendia-se que seria por meio das práticas
alternativas que se construiria uma luta contra as instituições que se exerciam a
hegemonia. Vê-se então, que os educadores da Escola Nova Cultura tinham na prática
de sua militância a visão marxiana de que seria necessário romper com a ideia de
cultura como assunto de irrelevante importância, sendo expressão meramente
secundária da criatividade e das realizações humanas. Este grupo de educadores, assim
como Marx, tinha o interesse pela cultura como campo de luta social e revolucionária.
Para os educadores da Escola Nova Cultura, inicialmente, a escola deveria ser
um lugar muito bem definido para o trabalho educativo dos operários. A escola em
formação deveria se distinguir da instituição escolar, tal como se estruturava na
sociedade capitalista, e realizar uma atividade que tentasse despertar a consciência de
classe no proletariado. Apoiados nos escritos de Marx sobre educação burguesa, os
militantes da Escola viam na instituição escolar capitalista uma instituição burguesa, no
sentido de ser ela filha da sociedade do capital, na medida em que tomava parte na
dinâmica desta sociedade.
No entendimento desses professores, a instituição escolar fazia parte da
dinâmica da sociedade produtora de mercadorias, desse modo, tal como ocorre em todas
as microestruturas desta sociedade, a escola também era permeada por contradições
sem, contudo, negar a dinâmica da qual era parte integrante.
Com efeito, na visão dos fundadores desse projeto, a importância da educação
para a caminhada emancipatória do proletariado não estava anulada. Esta importância
residia justamente no fato de que, para Marx, a escola poderia se transformar num local
privilegiado onde as camadas sociais exploradas poderiam se apropriar de um
determinado tipo de saber acumulado historicamente. Para tanto, seria necessário
desenvolver-se um trabalho educativo que rompesse com as estruturas de ensino-
aprendizagem já consagradas.
Foi nesta direção que os fundadores da Escola Nova Cultura buscaram
desenvolver nos alunos não só o interesse pelo conhecimento do saber humano
acumulado, mas também, criar um trabalho educativo no sentido de estimular a
formação dos chamados conselhos de fábrica. O trabalho educativo da Escola Nova
Cultura não se restringia às paredes da “sala de aula”. Ele seguia a orientação do
pensamento marxiano e ia para o entorno da Escola, estendendo-se até a fábrica, ou
seja, reencontrava-se com o trabalho. Portanto, buscava-se desencadear um trabalho
pedagógico novo, no qual se criticava e se rompia com a forma escolar tradicional e
consagrada na sociedade burguesa. Um trabalho onde a própria estrutura educacional
brasileira que buscava formar mão-de-obra adequada as formas da nossa
industrialização era questionada.
Movimento de Educação de Base: o ponto de partida para um poema pedagógico
Como demonstrado, o trabalho educativo na Escola Nova Cultura teve início a
partir da união de alguns jovens que apontaram para a ausência de um programa político
da esquerda brasileira que unisse e direcionasse a ação revolucionária no sentido da
construção de um trabalho de educação de base que contribuísse para a formação
humana dos trabalhadores.
Segundo os idealizadores da Escola Nova Cultura seria necessário construir um
trabalho educativo que rompesse com as estruturas estabelecidas pela instituição escolar
burguesa, mas, além disso, seria fundamental reafirmar a necessidade da construção de
um levante operário e da constituição de um poder proletário, de forma a destruir a
opressão e a exploração da burguesia. Para tanto, fazia-se urgente a construção um novo
poder proletário, baseado na tomada revolucionária do poder e na construção de uma
sociedade socialista.
Faremos agora, uma breve discussão sobre o que significava o Poder Proletário
para estes idealizadores. Desta convicção de poder, embasavam-se os ideais do grupo
para a formação de uma nova educação de base e humana.
***
Para os idealizadores do projeto da Escola Nova Cultura o “Poder Proletário”
se constituía em uma organização política de Conselhos Proletários, sendo cada local de
trabalho (fábrica, fazenda etc) um centro organizado com um Conselho Regional. Para
substituir o poder burguês seria necessário, na visão dos militantes da Escola, a criação
de um conjunto de Conselhos Regionais responsáveis pela eleição e desenvolvimento de
um Conselho Nacional. Os elementos que fizessem parte destes Conselhos teriam o
mesmo salário que o operário, podendo ser removidos a qualquer momento, sendo
continuamente substituídos de modo que grande parte dos trabalhadores pudesse ocupar
diretamente um cargo no Poder Proletário.
Foi essa visão sobre a destruição do poder capitalista que fomentou nos jovens
militantes do centro acadêmico a ideia de que seria fundamental desencadear um
movimento de educação de base no qual se pudesse transmitir aos indivíduos a ideia de
que o principal objetivo da luta dos trabalhadores era destruir o Estado burguês e
construir o Poder Operário. A luta pela supressão da condição de exploração tinha que
ser entendida como sendo uma luta política e, para tanto, seria necessário incentivar a
criação dos chamados Comitês de Empresa (CE) no qual o operário construiria uma luta
dentro da fábrica contra o capital e suas instituições de poder. Na visão dos fundadores
da Escola, ao se criar os CEs, os operários-alunos estariam ao mesmo tempo
construindo o Poder Proletário e lutando politicamente.
Porém, se o CE apenas buscasse levar os trabalhadores para lutas por aumento
salariais, por melhores condições de trabalho, ele não representaria um órgão do poder
operário – estaria lutando economicamente. A luta econômica era entendida por eles
como aquela em que os operários não lutavam contra a dominação política, e sim para
melhorarem suas condições de vida. Continuariam sendo explorados e dominados, mas
a ilusão de uma melhoria salarial faria com que esquecessem que os patrões, depois de
um aumento, teriam uma série de meios para piorar a vida dos trabalhadores. Na visão
dos fundadores da Escola, a luta econômica não destruía as causas do sofrimento
proletário – apenas a diminuía momentaneamente. No entanto, se bem conduzida pela
vanguarda operária, abriria caminho para a luta armada.
Em contrapartida, a luta política visava destruir o Estado burguês, destruir as
causas da exploração para, uma vez livre da dominação burguesa, o proletariado
pudesse construir uma sociedade sem classe. Na visão dos militantes da Escola, a luta
política seria possível quando os operários se mobilizassem contra todas as formas de
opressão burguesa. Seria através destas lutas que os operários se educariam
politicamente, compreenderiam quem eram seus “amigos” e seus “inimigos”, como se
daria a luta de classes e quais eram as classes em luta. Desta forma, na visão do grupo, o
CE só se transformaria em Poder Operário, quando se movimentasse na luta política,
pois enquanto estivesse na luta econômica seria sempre dominado pela burguesia.
Portanto, a luta política era a principal via para a libertação proletária.
Mas, esta luta deveria se vincular a uma boa formação teórica dada através de
uma educação política. Foi na busca pela construção dessa educação que a comissão
organizadora da Escola Nova Cultura propôs a formulação de uma política relativa ao
trabalho de educação de base.
Por Educação de base e trabalho de cultura popular entendia-se a implantação e
dinamização de um conjunto de núcleos educacionais e culturais nas regiões operárias.
Foi este entendimento que levou a própria criação da Escola Nova Cultura que era
vista como um local onde se pudesse disseminar um conjunto de atividades educativas
revolucionárias, na linha sugerida por Makarenko. Este conjunto de atividades culturais
(e educacionais) foi denominado como Movimento de Educação de Base. Este
movimento se caracterizou como uma das principais formas de trabalho político
operário em geral e como principal instrumento no trabalho de propaganda e de
formação de quadros proletários.
Este trabalho de Educação de Base ia de encontro com aquilo que o grupo
considerava uma atuação populista junto ao movimento operário. Eles criticavam os
demais partidos de esquerda, em especial o PCB, afirmando que a marca do reformismo
e da colaboração de classes esteve presente desde o início do movimento de educação
de base, no período pré-64. Segundo os militantes da Escola, a criação do Centro
Popular de Cultura da UNE (CPC-UNE) fixou esta origem. O CPC-UNE corporificou a
síntese dos quatro elementos que caracterizaram o movimento de educação de base nos
anos de 1960. Os militantes da escola criticavam:
1) A política da aliança de classes proposta pelo PCB: a estratégia da revolução
por etapas que decretou o caráter da revolução brasileira era democrático-nacional, ou
seja, burguesa. Estabeleceu uma política de aliança do proletariado com os setores
burgueses e pequenos burgueses. Esta política foi o alimento teórico para a ação prática
daqueles que conduziram o trabalho de educação de base, ao mesmo tempo, este
trabalho passou a ser um instrumento para a realização da “União do Povo”, nome que
foi dado à aliança com setores burgueses e pequenos burgueses. Desta forma o
movimento de educação de base perdeu o seu caráter propagandístico proletário e se
transformou numa ponte de ligação onde grupos pseudos-revolucionários lançavam-se
para se alinharem com a Igreja, (enquanto instituição burguesa) e outras representações
burguesas e pequeno-burguesas.
2) A utilização de aparelho da Igreja nos bairros: sempre que a política aliancista
se lançava ao trabalho de base, o fez através do aparelho da Igreja. Foi por isso que o
terreno do movimento de educação de base foi a paróquia da periferia; sua realização
era mais voltada para a construção da aliança com os setores progressistas da Igreja, do
que para a elaboração de uma organização e de uma militância operária. Na periferia, a
mobilização era voltada para o “povo”, amálgama classista de subempregados,
desempregados, lumpens, pequenos proprietários e, ocasionalmente, operários. Assim, o
movimento de educação de base se organizou para a aliança, ou seja, para a dinâmica
burguesa e se desorganizou para o movimento operário. O santo remédio da Santa Igreja
se transformou, no campo santo (cemitério) da organização operária.
3) A atuação da “intelectualidade pequeno-burguesa” e estudantil junto ao
“povo”: o principal suporte para a dinamização do trabalho de educação de base era a
camada intelectual e estudantil, recrutada no meio universitário e pequeno burguês.
Eram companheiros que se não fossem militantes diretos se transformavam em massa
de manobra da política populista. Suas atividades imediatas de aula ou de trabalho
cultural eram controladas e limitadas diretamente pela Igreja ou pela vigilância
onipresente dos populistas e sua iniciativa era reduzida ao campo agitativo/informativo,
sendo que o trabalho orgânico direto era terminantemente proibido.
4) A realização de uma educação política burguesa: o movimento de educação
de base foi se constituindo num instrumento de educação política burguesa junto ao
movimento operário. A sua principal conseqüência era a preparação de uma área de
manobra dentro das camadas popular e principalmente proletária para a efetivação de
uma política burguesa para o movimento de massas. Buscando a aliança com setores
burgueses e pequeno-burgueses, as organizações populistas pseudo-revolucionárias,
transformavam a Educação de Base num movimento de cima para baixo. A organização
operária que poderia ser engendrada por uma política revolucionaria para este trabalho
de Educação de Base, era negada e substituída por organizações atreladas a Igreja e de
cúpula. O que era importante e exclusivo era a organização que corporificasse e
consolidasse a aliança com a burguesia. A organização que vinha da base operária era
esmagada pelas organizações que vinham de cima, pela dinâmica burguesa de
organização.
Por muitas vezes foi colocado que o populismo era a negação da organização,
porém, na visão dos militantes da Escola, o problema ia mais além. O populismo era a
forma de organização burguesa para o movimento operário.
Por isso, seria necessário, segundo os militantes da Escola, desencadear-se uma
luta revolucionária que resgatasse o trabalho de educação de base das determinações do
movimento reformista proposto pela esquerda populista. Seria importante criar um
movimento que atuasse contra um setor fundamental da dominação ideológica e política
burguesa sobre o movimento operário: a dominação burguesa ao nível da educação
científica e cultural.
Afirmavam que todas as dificuldades materiais que impediam o acesso do
proletário à cultura e ao conhecimento científico não eram ocasionais, elas faziam parte
da política e da ideologia burguesa que visava entorpecer e destruir a formação da
consciência de classe revolucionária. O conhecimento científico e histórico, bem como
a cultura produzida pela humanidade ao longo de sua história, eram apropriados pela
burguesia que os tornavam inacessíveis ao proletariado e o rompimento desta
dominação, na visão dos militantes, só seria possível pela pressão do movimento
operário. Porém ao mesmo tempo, o crescimento do movimento dependia do grau de
consciência e de educação política da classe operária e este, por sua vez, estava ligado a
capacidade do movimento em romper esta dominação burguesa no sentido da aquisição
de elementos de ciências e de cultura que serviriam de fundamentos para o
conhecimento político consciente e revolucionário.
Estabelecia-se então, um círculo vicioso, no qual o crescimento do movimento
condicionava-se ao rompimento da dominação burguesa e esta só seria rompida se o
movimento crescesse. Este círculo seria desfeito quando os operários tivessem acesso à
cultura e à ciência, já que a recusa da burguesia em fornecer conhecimento à classe
operária não significava o embrutecimento do seu espírito que em suas manifestações
espontâneas e culturais teciam a sua cultura e aprendizagem dos rudimentos do
conhecimento. Por isso, era importante criar uma escola operária, na qual fosse possível
superar as formas de estranhamento não só da consciência dos operários, mas, também,
da sua ação.
Na ação de educação e de cultura da esquerda brasileira (considerada populista)
demonstrou-se uma incapacidade de levar adiante o processo de educação de base da
classe, pois sua pedagogia era baseada no falso humanismo que se mantinha ao nível da
cultura e da ideologia produzida pelo proletariado dominado e foi em nome de um
pseudo-respeito à cultura popular que os movimentos vinculados à esquerda tradicional
recusaram os elementos novos que pudessem romper a dominação estabelecida. Na
visão dos militantes da Escola, a ação educadora da esquerda tradicional se dirigia na
abstração e na formalização dos conceitos fugindo do mundo concreto da vida operária
e acompanhava a política oca das lutas pelos direitos humanos; em nome do respeito ao
ser social negava-se a organizar os trabalhadores e combatia quem os organizassem.
Segundo os militantes, esta inconsequência da esquerda brasileira no trabalho de
educação de base explicava sua sobrevivência legal e ampla, mesmo nos períodos mais
negros de repressão ao movimento operário. Sua ação incorporou a dominação burguesa
de forma ativa, desempenhando um papel importante na política burguesa de contenção
do movimento operário brasileiro nos anos 70/80.
Para esses militantes, o impulso que partia da própria base operária na busca
pela cultura, permitiria a construção da luta revolucionária e do movimento de educação
de base. A ação revolucionária de propaganda, organização e mobilização se
constituiriam num processo único e permanente substituindo o conceito da revolução
por etapas apregoado pela esquerda tradicional. A ação orgânica da educação de base
era necessária, na visão dos militantes, para a construção de um Poder Operário no qual
os trabalhadores ficariam encarregados de organizar os meios de produção e eliminar
todas as classes sociais, no sentido de liquidação da propriedade privada e todas as
formas de exploração do trabalho humano, destruir a dominação política burguesa e
exterminar as diferenças de classes, ou melhor, as próprias classes. Para eles, a
concepção da revolução permanente ligava diretamente suas ações práticas imediatas
com a luta pela construção do Poder Operário.
Para os militantes, a educação de base era um trabalho de formação que deveria
ter como objetivo permanente à tomada da produção, tanto ao nível orgânico quanto ao
nível reivindicatório. Ao nível reivindicatório, deveria propiciar condições para
discussões constantes dos operários sobre seus problemas dentro da fábrica e, ao mesmo
tempo, deveria permitir uma constante avaliação da atuação dos companheiros na
produção, descobrindo os delatores, que fora da fábrica se disfarçavam de
revolucionários. Esta avaliação constante cujo centro era a prática na produção,
permitiria a orientação sistemática do trabalho no sentido de concentrar os esforços nos
mais destacados companheiros e também, ao mesmo tempo, deveria unir-se através de
todos os possíveis fios com a produção, desde o nível mais simples como a organização
de atividades pedagógicas, esportivas e culturais, até o nível mais profundo e vinculado
ao objetivo do movimento – os Comitês de Empresas.
Diante das condições de lutas e fraquezas do movimento operário, o trabalho
regional se colocava como a primeira generalização dos combates operários e o ponto
de partida para estas generalizações seria o trabalho específico nas fábricas, pois na
medida em que a propaganda aparecia como a principal forma de luta, a escola que seria
criada pelos militantes poderia se transformar no principal instrumento de realização
deste trabalho específico nas fábricas. Mas o movimento não deveria ficar restrito à
fábrica e nem tão pouco à escola; ele deveria se expandir para aquilo que os militantes
consideravam como o entorno do local onde os explorados pelo capital estivessem. Ele
deveria ir para os bairros, mais além dos muros da fábrica e da escola e procurar
construir, através da atividade de propaganda, aquilo que Antonio Gramsci chamava de
um novo bloco histórico para lutar contra a hegemonia do capital2.
Para tanto, seria necessário construir uma atividade pedagógica muito mais
ampla do que aquela realizada pela esquerda tradicional; seria necessário construir um
trabalho pedagógico buscando a construção de um novo tipo de saber humano, ou
2 Para melhor detalhamento sobre os conceitos de bloco histórico e hegemonia desenvolvidos por Gramsci ver: GLUCKSMANN, Christianne Buci. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2ª ed. 1990.
melhor, seria necessário desenvolver um trabalho educativo visando construir o
humano.
Passemos, então a tratar daquilo que os militantes da Escola consideravam um
trabalho educativo capaz de construir este humano.
A construção de uma proposta pedagógica nova: o poema e suas formas
Tendo como objetivo a busca pela transformação da realidade, os idealizadores
da Escola Nova Cultura iniciaram seu trabalho junto à classe operária do Bairro do
Belém, a partir de uma proposta de ação que envolvia não só ações política efetivas,
como demonstramos acima, mas também, uma prática pedagógica nova entendida como
vital para a formação de uma consciência mais ampla.
Essa proposta não surgiu num “passe de mágica”, ao contrário, ela se
desenvolveu através do entendimento político daqueles que fizeram parte deste
movimento que a transformação social só poderia se dar por meio de uma nova forma
de ação que superasse os equívocos de atuação da esquerda partidária da época e
buscasse construir um novo sujeito histórico capaz de retomar o controle do seu
trabalho. A ideia era construir um trabalho educativo que rompesse com a separação
entre o saber e o fazer existente no processo de ensino oficial e ajudasse na elaboração
de uma nova prática social na qual os indivíduos assumissem o controle do metabolismo
social até então submetido à lógica do capital.
O trabalho que os fundadores da Escola Nova Cultura tentavam desenvolver
partia do pressuposto de que as instituições formais de educação certamente atuavam
como parte importante do sistema de internalização dos valores típicos da sociedade
capitalista e, quer os indivíduos participassem dela ou não – por mais ou menos tempo,
mas sempre em um número de anos bastante limitado –, eles deveriam ser induzidos a
uma aceitação dos princípios reprodutivos desta sociedade.
Tendo em mente a necessária construção deste projeto coletivo, os fundadores
da Escola romperam com o conceito de formação de base proposto pela esquerda do
período e buscaram sistematizar um plano de trabalho que guiasse a ação dos militantes
e contribuísse para a formação de uma ação coletiva.
Estava fundada, assim, a Escola Nova Cultura, e a mesma tinha, para todos os
efeitos, uma metodologia que seguia o currículo oficial obedecendo ao MEC3. Seriam
ministradas cinco matérias básicas: História, Matemática, Ciências, Língua Portuguesa
e Geografia. No entanto, na prática, as normas oficiais não eram consideradas e a Escola
iniciava os cursos de ginásio com as cinco matérias dispostas de forma diferenciada
desenvolvendo uma prática dinâmica que visava construir conteúdos integrais para se
alcançar uma nova prática pedagógica.
A elaboração do plano de trabalho foi feita levando-se em conta formas novas de
formação onde o aluno construiria o conhecimento (conceito), a consciência crítica do
mundo e as formas da coletividade. Essa “construção” não era entendida como algo
individual e espontâneo, contrariando as teorias construtivistas contemporâneas, mas era
pensada a partir do pressuposto de que o conhecimento humano é algo processual e
histórico devendo ser sempre entendido como síntese de situações e necessidades
concretas que se alteram ao longo do tempo. Deste modo, o conhecimento do mundo
através da criação de conceitos poderia ser feito por qualquer indivíduo, desde que esse
“fazer” estivesse submetido a uma discussão coletiva e a uma prática social.
Esse foi o princípio que norteou todo o trabalho do grupo, incluindo a prática
pedagógica em sala de aula e a organização do trabalho em termos gerais.
Visando atingir os objetivos acima indicados, uma estrutura educacional
diferenciada foi criada. Nessa nova estrutura os professores se organizavam em vários
níveis autodenominados turnos, séries, áreas, comissões e acompanhamentos. Para o
melhor funcionamento da proposta de trabalho e visando-se a elaboração do
planejamento anual eram realizados vários debates nas reuniões de níveis (séries) e de
áreas (disciplinas). A coordenação formada por professores estava à frente de todas as
tarefas da Coletividade Escolar, mas havia uma política de incentivo a participação de
todos na divisão de trabalhos, principalmente no que se referia à parte de infraestrutura.
3 MEC - Criado em 1930, no governo Getúlio Vargas, por meio do Decreto nº 19.402, de 14 de novembro. Órgão federal responsável pela política nacional de Educação Infantil; Fundamental, Média e Profissional; Superior; de Jovens e Adultos; Especial; e a Distância. O MEC tem nove secretarias: Executiva; de Assuntos Administrativos, de Planejamento e Orçamento; de Controle Interno; de Educação Fundamental; de Educação Média e Tecnológica; de Educação Superior; de Educação Especial; de Educação a Distância; e de Projetos Educacionais Especiais.
Respeitando-se a ideia de que o conhecimento só pode ser adquirido através de
um processo, o planejamento da Escola determinava que as classes fossem montadas
com separação dos alunos de acordo com os níveis de aprendizagem. O aluno era
avaliado no ato da matrícula, através de testes simples de Português e Matemática, além
da entrevista. Assim, as classes eram montadas, considerando-se os resultados destas
avaliações.
O trabalho em sala de aula era feito partindo dos elementos mais concretos
possíveis e que possuíssem maior identificação com o dia-a-dia do trabalhador. Desta
forma, seguindo as concepções marxianas de educação, partia-se do ensino de Língua
Portuguesa e Matemática, profundamente identificados com as necessidades rotineiras
do operário (fazer contas e problemas, ler e escrever, se exprimir com facilidade), tendo
como primeiro objetivo preparar uma base de trabalho para a inserção das outras
matérias. Eram três aulas de Língua Portuguesa e duas de Matemática trabalhadas
semanalmente, totalizando 15 aulas de Português e 10 de Matemática por mês nas quais
se perseguiam os seguintes objetivos:
Caracterização das dificuldades fundamentais dos alunos ligadas à leitura e à
escrita, além do trabalho com as operações fundamentais;
Desenvolvimento da interpretação de textos ligados à vida dos trabalhadores
através de crônicas, poemas, peças de teatro e canções no sentido do aluno
identificar a situação geral da classe explorada e oprimida;
Desenvolvimento das categorias gramaticais que mais auxiliavam na leitura
(construção de frases);
Desenvolvimento da capacidade de expressão escrita do aluno no sentido dele
manifestar livremente suas preocupações, anseios e ilusões através de redações;
Desenvolvimento do conceito de número natural e das operações fundamentais e
suas propriedades caracterizando sua operacionalidade, suas origens históricas, e
suas relações sociais, enfatizando igualmente o seu caráter experimental.
Este último trabalho preparava o aluno para o curso de Ciências que era
desenvolvido no 2º mês do curso. Exatamente por estar muito vinculado com a prática e
por ter como característica a formação do conhecimento a partir da experiência e das
relações sociais, este trabalho com o conteúdo de Matemática permitia retirar o caráter
abstrato da aprendizagem deste saber e também preparava o raciocínio experimental das
Ciências.
Os trabalhos com os textos de Língua Portuguesa iam para além da simples
interpretação gramatical e domínio correto da norma culta. Tinham por objetivo
fornecer os meios corretos de expressão e possibilitar aos alunos a exposição de suas
idéias de forma adequada. Os textos utilizados tinham o objetivo explorar sempre o
aspecto político visando discutir as relações entre as classes no Brasil em suas
manifestações mais concretas possíveis, ao nível cultural, artístico, regional, econômico
e político. Desta forma, o aluno teria sua sensibilidade desenvolvida cultural e
artisticamente e seria possível, ainda, o desenvolvimento da capacidade de identificação
e caracterização das manifestações e relações entre as classes sociais.
Também era objetivo do grupo de professores, tornar visível ao aluno as relações
entre cultura, relações econômicas e as relações políticas, identificando como as
relações de exploração e de dominação determinavam a produção cultural das classes.
Buscava-se despertar no aluno a capacidade de identificação das próprias relações de
exploração e de dominação num quadro de luta de classes.
Para trabalhar os conceitos de cultura e cultura regional eram utilizadas as
próprias experiências dos alunos, em sua maioria migrantes de outras regiões e/ou
cidades brasileiras, desenvolvendo, desta forma, a sua participação na elaboração e
desenvolvimento dos conteúdos.
Ao longo do trabalho, os professores verificavam as maiores dificuldades dos
alunos e de acordo com o apurado estes remanejavam os mesmos (desde que houvesse
concordância) ou iniciava-se um programa de recuperação paralela e básica, com
monitoria e orientação em aulas extras, com objetivo de evitar o aumento da distância
entre os alunos com um maior grau de dificuldade e o conjunto da classe.
Como dissemos anteriormente havia um trabalho relativo à capacidade de
expressão que buscava sistematicamente ensinar o aluno a escrever o que pensava. Era
estimulada a expressão em todas as suas formas, sem rigor formal na correção, de
maneira que o aluno pudesse se colocar e a partir daí, receber orientação para a
formulação de suas ideias. Incentivava-se não só o hábito da leitura nos alunos-
operários, criando-se na Escola uma biblioteca coletiva, mas também, o exercício da
escrita onde os mesmos poderiam expressar suas angústias, alegrias e expectativas. A
ideia era levar os alunos a escreverem poemas, composições musicais etc, onde estes
retratassem as suas condições e de sua classe.
Em relação ao curso de Ciências, este era basicamente experimental e
apresentava-se nos três ramos (Química, Física e Biologia) da forma mais concreta
possível buscando levar o aluno a entender o desenvolvimento dos conceitos químico-
físico através da processualidade histórica.
No 3º mês era introduzido o curso de Geografia Humana que dava ênfase às
regiões continentais e buscava determinar as relações políticas e econômicas destas
regiões. Em seguida, eram introduzidas as disciplinas de Geografia Geral e História.
No que diz respeito às reuniões pedagógicas, os professores as programavam de
acordo com os níveis e áreas, em horários comuns aos elementos constitutivos,
respeitando-se às três horas semanais estabelecidas para o grupo todo. As reuniões eram
desenvolvidas com o intuito de reforçar o trabalho de sala de aula.
O temário de discussões era dividido em unidades. Cada uma das unidades
constava de uma primeira parte de pesquisa de subsídios onde todos os professores
podiam elaborar ou indicar textos para o grupo ler a partir do tema correspondente. A
coordenação encaminhava estes subsídios para os grupos e os mesmos ficavam
encarregados de trabalharem nos temas. A segunda parte da unidade constituía-se de
discussões acerca do tema e a terceira parte era a elaboração de conclusões sobre o que
havia sido lido e discutido. Estas conclusões eram reunidas pela coordenação e passava
a constar no programa da Escola Operária. Os possíveis pontos de divergência eram
lançados novamente para discussão nos grupos, buscando-se uma posição da maioria. A
forma final era rediscutida nos grupos e, finalmente, concluía-se o programa.
A duração da discussão de uma dada unidade dependeria, portanto, da sua
complexidade e do ritmo com que o grupo dos professores concluíam o seu trabalho. O
trabalho da coordenação era avaliar e fornecer os subsídios, as conclusões dos grupos e
a conclusão final. O planejamento para o trabalho dos professores era realizado
permanentemente em função da dinâmica das discussões coletivas e das produções
teóricas conseguidas no decorrer do ano.
Como o objetivo geral do trabalho era despertar criticamente a consciência dos
alunos e construir uma nova forma do ser, todas as disciplinas estavam pautadas por
essa orientação maior e procuravam estruturar suas discussões levando em conta esse
trabalho coletivo. Deste modo, a elaboração do currículo e a divisão das disciplinas nos
bimestres envolviam uma dinâmica pensada com base na ideia da formação ampla do
homem e por isso, tratava-se de um projeto pedagógico que visava atingir uma forma
diferenciada de formação humana.
Deste modo, a proposta geral de emancipação e formação humana guiava os
conteúdos bimestrais que eram definidos previamente. Esta proposta geral envolvia,
além do conteúdo disciplinar básico, inúmeras outras atividades, trabalhos de formação
e complementação teórica, sempre visando formar o aluno na perspectiva da
emancipação humana. Os objetivos gerais eram selecionados e desenvolvidos de forma
a propiciar na Escola e nas salas de aula a construção e aprimoramento da coletividade
geral. Estes objetivos norteavam o trabalho nas classes. Cada área devia encaminhar à
“coordenação pedagógica” sugestões de debates e aprofundamentos de temas
pedagógicos e políticos vinculados à rotina da sala-de-aula, por exemplo, classificação e
perfil dos alunos, propostas de monitorias, propostas de acompanhamentos e indicações
para estudos e/ou comissões, relacionamentos de sala-de-aula, relacionamentos para e
durante os trabalhos e atividades de gestão, entre outros.
Inicialmente o trabalho de sala priorizava romper com a “alienação” encontrada,
pois os professores registravam ser intensa a anulação da personalidade individual dos
alunos. Era nítida a visão mística que os mesmos possuíam em relação à educação;
havia uma valorização do ensino quantitativo e rápido e a expectativa dos alunos
ingressantes não fugia ao ideal de ascensão e inserção social por meio do diploma
existente na sociedade capitalista como um todo. Era trabalhada também, a questão da
auto-estima dos alunos, principalmente no que dizia respeito à forma de tratamento
mútuo, pois muitos alunos traziam internalizados sentimentos depreciativos.
Brincadeiras que ridicularizavam os outros eram comuns. Era hábito se depreciarem, já
que estavam acostumados ao tratamento desumano dos patrões. Inconscientemente
tornavam-se instrumentos da opressão classista humilhando e utilizando apelidos que
ofendiam os outros pelo preconceito quanto à raça e cor, regionalismo, hierarquia no
trabalho etc.
Assim como o que havia acontecido com Makarenko em sua experiência nas
colônias educativas na Rússia, os professores se deparavam com homens reais, com
alunos que sofriam os efeitos da desumanização e fragmentação típicas da sociedade
capitalista e da “má-escola”; da escola que não possibilitava o desenvolvimento do
raciocínio lógico, que não permitia uma interpretação dialética do mundo. Desta forma,
no início das aulas, fazia-se necessário adotar uma linha de trabalho clara para que o
professor pudesse expor ao aluno “desconfiado” ou “competitivo” o método de trabalho
da Escola. O professor deveria ser capaz de trabalhar com aulas expositivas de forma a
não “chocar” os alunos acostumados ao ensino tradicional; tomava-se muito cuidado
quanto ao relacionamento professor-aluno e procurava-se sempre identificar o perfil da
classe de forma a adequar o método de trabalho utilizado.
Embora se utilizassem livros didáticos, os professores desenvolviam
coletivamente apostilas especialmente para as turmas da Escola, além de outros
materiais preparados constantemente. O acompanhamento dos alunos pelos professores
era feito sistematicamente; o assunto de cada aula era exposto inicialmente com
abordagens gerais e no final era feito o fechamento conclusivo. O trabalho era
desenvolvido de forma gradual, trabalhando-se primeiramente com duplas e
posteriormente passando aos grupos.
No 2º Bimestre, o aprofundamento do trabalho de sala de aula exigia mais do
aluno através de exercícios complementares e solicitação maior de empenho fora das
aulas, com pesquisas, entrevistas, apreciação de determinados programas culturais no
rádio, tv, cinema etc.
Assim como o trabalho interno deveria respeitar os ritmos de aprendizagem dos
alunos, a organização dos horários das turmas e das aulas acompanhava os diversos
turnos das fábricas. O trabalho educativo na Escola Nova Cultura era realizado
levando-se em conta à necessidade de oferecer opções de horários compatíveis aos
trabalhadores para que os mesmos pudessem freqüentar a Escola. Assim, os alunos
participavam em diferentes turnos de aulas e os professores sempre promoviam o
entrosamento dos grupos através de seminários de interesses comuns, visitas aos
museus, planetário, zoológico, feiras folclóricas além de atividades de lazer, como
jogos, passeios, festas, gincanas e almoços.
Além disso, as atividades propostas eram elaboradas para valorizar as
contribuições dos alunos antigos que possuíam maior capacidade de socialização entre
os grupos de alunos em geral e eram realizadas sob orientação da coordenação dos
professores. Desenvolvia-se, também, uma atividade para identificação dos alunos com
maior abertura para os objetivos políticos.
Seguindo a proposta pedagógica de Marx e Makarenko, no 3º Bimestre a ênfase
dos professores era para que a Escola fosse vista como um novo local de sociabilidade e
os alunos identificassem a mesma como uma coletividade nova. Neste momento,
trabalhava-se a noção de coletividade paralelamente ao aprimoramento do trabalho em
sala de aula. Os professores também analisavam o estágio de desenvolvimento da
consciência de classe dos alunos e a partir daí esses alunos se envolviam num trabalho
mais profundamente político.
O principal fundamento do 3º Bimestre era, então, um aprofundamento do
trabalho de “conscientização” dos alunos mais engajados. Nesta fase, tinham início os
acompanhamentos mais diretos, os convites com mais afinco para a participação em
maior número de atividades extra-classe, de lazer e cultura ou, ainda, da participação
destes alunos nas semanas culturais, semana da mulher, na semana do nordeste e,
sobretudo, na luta sindical e nos CEs. Como explicitamos anteriormente, o trabalho
desenvolvido na Escola não tinha como objetivo apenas aprimorar os conhecimentos
científicos dos alunos, mas também, desencadear uma ação educativa que pudesse
funcionar como motor da luta de classes. Seria exatamente essa ação educativa que
possibilitaria a formação integral do homem na visão de Marx, Makarenko e Vigotsky.
No 4º Bimestre, com os alunos já organizados em coletividade, o trabalho
continuava de forma a aprofundar o relacionamento dentro de sala de aula, bem como o
comprometimento dos alunos diante da nova conscientização. Durante este período
concluíam-se todos os temas estudados e, paralelamente ao conteúdo apreendido,
desenvolvia-se uma nova postura crítica por parte dos alunos. Era avaliado o processo
de conhecimento dos mesmos e aprofundava-se o sentido de “Nova Escola - Nova
Cultura”, onde o aluno transformava-se no agente e não no objeto do processo de
construção de sua vida.
Neste sentido, o aluno se transformava em parte integrante e construtora da
coletividade escolar. Estes atuavam tendo condições de reconhecer e legitimar os níveis
de organização e desenvolvimento da Escola. Mesmo aqueles que não tinham interesse
em participar diretamente podiam fazê-lo escolhendo seus representantes. Assim como
na Colônia Gorki de Makarenko, os alunos transformavam-se em produtores da vida.
No encerramento do ano letivo, para saldar o espírito de coletividade criado, os
professores e alunos da Escola Nova Cultura realizavam uma festa de final de ano,
coordenada pelos professores, mas organizada pelos alunos em comissões, com caráter
de comemoração vitoriosa pelo ano findado. Ao contrário do que ocorre na instituição
escolar oficial, os idealizadores da Escola Nova Cultura analisavam constantemente a
metodologia e a aplicabilidade efetiva da proposta para o ano letivo. A discussão sobre
a sala de aula organizada era o primeiro ponto discutido ressaltando-se sempre, como
acreditava Vigotsky, a importância do professor como elemento fundamental para o
desenvolvimento do processo de aprendizagem. Nesta direção, haviam normas
estabelecidas pela coordenação, dentre as quais podemos destacar a ideia de que:
O professor deveria ser paciente e detalhista em suas explicações;
O professor não deveria ser arbitrário, mas também não deveria deixar a classe
livre para ações quaisquer;
O professor deveria estar atento durante todo o tempo;
O material para a aula deveria ser sempre preparado com antecedência e de
forma adequada ao grupo; este material deveria ser de interesse da classe;
Em sala, o professor deveria ser o coordenador do trabalho, acompanhando e
intervindo quando necessário;
O trabalho em grupo deveria ser utilizado sempre que possível, dada a eficiência
na organização da sala, auxilio de participação e cooperação entre os alunos, que
deveriam estar nivelados em grupos com grau similar de dificuldade;
O grupo deveria sempre trabalhar de forma coletiva, sendo o professor o
mediador quando necessário;
O professor deveria integrar-se às atividades dos alunos, de forma a participar
também das atividades culturais e recreativos, inclusive nos jogos de cartas e
coletivos, como vôlei, futebol, etc.
Aos professores, além da atividade didático-pedagógica, cabia a tarefa de
observar as manifestações de caráter psicológico, diante da diversidade dos alunos.
Durante o trabalho educativo em sala, os professores deveriam colocar em prática, como
frisamos anteriormente, uma ação para construir uma nova forma de consciência e um
novo tipo de coletividade entre os alunos.
Seguindo os caminhos trilhados por Makarenko, os professores-militantes da
Escola Nova Cultura acreditavam que seria de fundamental importância tomar
posições diferenciadas perante os alunos em sua convivência. Na sala de aula, os
professores deveriam assumir uma postura única, atendendo a todos igualmente, com
exceção feita a possíveis momentos de crise. Já fora da sala de aula, deveriam procurar
aprofundar relacionamento com aqueles que apresentassem maior grau de entendimento
das questões políticas. Esse contato mais profundo poderia ser obtido por meio do
trabalho paralelo das comissões, atividades culturais, grupos de estudo, jogos, etc.
Os grupos de estudos eram de fundamental importância para o aprofundamento
do trabalho político caracterizado anteriormente. Para os militantes da Escola, o
verdadeiro estudo devia ser mais científico e completo; os alunos mais politizados
deveriam desenvolver um estudo sistematizado sobre as teorias revolucionária e,
particularmente, sobre o marxismo e o leninismo. Neste sentido, o enfoque do trabalho
educativo estava na formação marxista dos alunos.
Para auxiliar neste trabalho de formação política, além do trabalho pedagógico já
citado neste estudo, a Escola desenvolvia as seguintes disciplinas (ou áreas) “extra-
curriculares”, que funcionavam como grupos para aprofundamentos de certos estudos:
Comunicação e Expressão – disciplina que trabalhava a questão da escrita
independente de artigos, crônicas, contos etc, possibilitando aos alunos a
capacidade de expressão escrita;
História II – disciplina que complementava o estudo da História geral e do Brasil
utilizando-se os princípios do marxismo necessários para o aprofundamento da
análise e conhecimento da realidade;
Filosofia e Materialismo – disciplina que trabalhava a metafísica e o estudo das
leis da dialética e da formação da ideologia e pensamentos marxistas;
Atualidades e Conjuntura – disciplina que abordava as principais relações
sociais do capitalismo e do socialismo trabalhando as tendências da luta
proletária do momento de cada país da América Latina, do Bloco Socialista etc;
Economia Política – disciplina que estudava as leis regentes do capitalismo, as
crises cíclicas e estruturais do sistema e seus mecanismos.
Nestas atividades “extra-curriculares”, ou de grupos de estudos, os professores
ficavam atentos às classes, de forma que o nível de participação de alunos novos fosse
“controlado”. Isto era necessário em virtude do período ditatorial, de intensa repressão,
como já abordamos no primeiro capítulo deste trabalho. Neste sentido, seria prudente
que os militantes da Escola Nova Cultura estivessem atentos, identificando possíveis
agentes do regime militar que buscavam infiltrar-se em todos os locais. A tensão e o
medo faziam parte do cotidiano escolar.
Para a realização destas aulas “extra-curriculares” seria necessário que os
professores de Português, Geografia e História fizessem um trabalho paralelo no mesmo
horário e na mesma sala, para os alunos não envolvidos. Durante as aulas de Economia
Política e Materialismo, os alunos não envolvidos eram atendidos em outras salas por
outros professores e recebiam destes, explicações convincentes para a separação das
classes.
Desta forma, era possível perceber dentro da Escola vários níveis de ações
coletivas, desde as mais simples, até as mais complexas e orgânicas. A esses vários
níveis de engajamento dava-se o nome de intercoletividade.
O trabalho para integrar as intercoletividades era intenso. Algumas das ações
possíveis nessa direção eram os trabalhos na área recreativa como os esportivos, as
festas e danças nos quais coletividades diferentes entravam em interação. Os resultados
eram quase sempre positivos. O aspecto orgânico e sistemático da ação das
coletividades mais atuantes sobre as menos engajadas permitia a estas últimas a
visualização de uma referência mais estruturada. Com isto, os mais atuantes sentiam-se
mais fortificados e estimulados.
As coletividades tinham a estrutura orgânica formada por 06 (seis) elementos:
1. A participação de massa: em suas atividades, que por sua própria realização
atraíam as massas que dela participavam, inicialmente sem compromisso
definido;
2. As comissões de atividade: isto é, o primeiro nível de compromisso que o
indivíduo estabelecia com a coletividade, qual fosse o da construção e
planejamento da atividade específica – comissão recreativa, comissão de música,
comissão de teatro etc;
3. Comissões de base: eram os núcleos de aprofundamento onde os elementos
oriundos do trabalho de coletividade tomavam o primeiro contato com o
programa político e passavam a compreender a coletividade como órgão do
poder operário;
4. Acompanhamentos políticos: resultado do processo de seleção dos
companheiros mais destacados cujo desenvolvimento se dava no ritmo mais
intenso que os outros e que, por isto, eram organizados num estudo mais
profundo do programa. Os acompanhamentos se davam primeiro para as
chamadas Frentes e depois para as Frações;
5. As Frentes: organização da militância ao nível do COL4, cuja participação se
dava a partir de dois critérios fundamentais – compreensão do programa COL e
da sua centralização e participação ativa na construção da coletividade;
6. As Frações: organização da militância da coletividade ao nível revolucionário,
cuja participação se dava em cima dos seis critérios de militância definidos
anteriormente: disponibilidade, disciplina, aplicação da linha política,
criatividade, combatividade e confiança. As Frações podiam ser divididas em
dois tipos: aquelas formadas no próprio trabalho de coletividade e aquelas
formadas a partir de outra coletividade. Existia apenas uma Fração formada pela
própria coletividade.
4 Em linhas gerais, esta era a sigla definida para o programa revolucionário de luta pelo socialismo, criado pelos idealizadores da Escola Nova Cultura. C.O.L - “União Operária para um futuro melhor” C: Coletividade; O: Operária; L: Libertação.
Quanto as diferentes atividades, os elementos das coletividades eram divididos
em trabalho esportivo, trabalho educacional, trabalho de imprensa (mural, jornal, áudio-
visual), trabalho musical (cultural instrumental), trabalho de teatro (cultural lírico) e
trabalho literário (biblioteca, elaboração de contos, poesias e histórias, etc.). As tarefas
de cada atividade, bem como o planejamento concreto de cada período, a distribuição de
tarefas e responsabilidades, o detalhamento de cada período e a definição do modo
como se dariam estes encontros, ficavam sob a responsabilidade de um coordenador de
atividade. Posto isto, podemos afirmar que enquanto existiu, a Escola Nova Cultura
sempre buscou construir uma coletividade auto-gestionada. A auto-gestão era uma
forma de direção no qual todos os membros participavam ativamente executando
tarefas, planejando e decidindo coletivamente o que fazer. Era a união entre o trabalho
manual e intelectual, a execução e a elaboração. Neste sentido, seguindo os princípios
marxianos, os idealizadores da Escola afirmavam que determinadas condições seriam
fundamentais para que a autogestão pudesse ser desenvolvida: a construção da
propriedade coletiva (não era possível existir donos e empregados), a socialização do
conhecimento (não era possível uns controlarem as informações e outros não terem
acesso a ela), a busca de relações igualitárias (não era possível uns se considerarem
melhores ou superiores aos demais), o espírito participativo (não era possível se não
houvesse o interesse e motivação para atitudes coletivas) e a democracia socialista (não
era possível se uns mandavam e outros obedeciam). A construção de uma nova
sociedade, de um novo homem, de um novo tipo de conhecimento foram os pilares da
Escola Nova Cultura. Se estes eram os fins da proposta pedagógica da escola, os meios
para alcançá-los foram além da simples alfabetização, como expulsemos neste trabalho.
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