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    Escritos, costuras e preces

    | vol. 3 n. 2. Agosto/Dezembro de 2011 ISSN: 1984-6150 |

    Escritos, costuras e preces:histrias femininas e a construo de novas prticas

    na Amrica portuguesaSilvia Maria Amncio Rachi Vartuli

    Professora da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC-MG)Doutoranda em Histria da Educao na Faculdade de Educao (UFMG)

    [email protected]

    RESUMO: Este texto foi elaborado a partir da pesquisa de doutorado que vem sendo realizadana Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais. A investigao apresentcomo objeto de estudo a insero social feminina em Minas Gerais nos sculos XVIII e incio dXIX a partir do contato com os elementos da cultura escrita. Busca evidenciar como os grupos

    femininos, ao estabelecerem relaes com este conhecimento, construram estratgias denegociao com as instncias representativas de poder.

    PALAVRAS-CHAVE: Instruo feminina, Minas colonial, Educao.

    ABSTRACT: This text was developed from doctoral research, which is being held at the Facultyof Education, Federal University of Minas Gerais. The research appears as the object of study thsocial integration of woman in Minas Gerais in the eighteenth and early nineteenth centuriesfrom the contact with the elements of literacy. Seeks to show how womens groups to establishrelations with this knowledge, build trading strategies with the representative bodies of power.

    KEYWORDS: Female education, Colony, Education.

    Introduo: A historiografia e o papel das mulheres na sociedade

    Nas ltimas dcadas, na esteira do movimento de renovao historiogrfica no Brasil,muitos estudos iluminaram as trajetrias e aes realizadas pelas mulheres nos diferentesperodos da histria. Investigaes que buscaram preencher as lacunas sobre o feminino nosprocessos sociais, palavras que questionaram a historiografia tradicional ao mesmo tempo em qu

    verbalizaram as realizaes, resgataram os papis e desbravaram as trilhas por onde andaramindgenas, brancas, negras, mulatas de outrora. Historiografia que se tornou referncia sobre atemtica e que buscou dar voz a agentes fundamentais na formao da sociedade brasileira1. Aolongo da histria do Brasil, o lugar de sobrevivncia e vivncia feminina tem sido recuperado

    1 A esse respeito ver: ALGRANTI, Leila Mezan.Honradas e Devotas : mulheres da colnia. Condio feminina nosconventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: Jos Olympio/ Braslia, 1993; PRIORE,Mary Del. Ao sul do corpo: condio feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colnia. Rio de Janeiro: JosOlympio, 1993; PRIORE, Mary Del. Mulheres no Brasil Colonial.So Paulo: Editora Contexto, 2000; PRIORE, MaryDel.Histria das mulheres no Brasil. So Paulo: Contexto, 2000; FIGUEIREDO, Luciano.O avesso da memria . Cotidianoe trabalho da mulher em Minas Gerais no sculo XVIII. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1993.

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    Temporalidades Revista Discente UFMG

    vasta documentao de pesquisa histrica vem sendo utilizada nesta inteno: fontes eclesisticaprocessos criminais, inventrios e testamentos, jornais, correspondncias pessoais, obras decronistas e viajantes. Essa documentao tambm tem atendido s pesquisas em Histria da

    Educao. Nesse ltimo campo, por meio dos esforos investigativos mais recentes, as mulheresaram da invisibilidade e ocuparam os bancos das escolas imperiais e republicanasdesempenhado papis significativos como mestras, escritoras e intelectuais nesses perodos.

    Contudo, no que respeita s prticas educativas no perodo colonial, relacionadas aouniverso feminino, percebemos certo silncio historiogrfico interrompido por poucos trabalhosna rea2. Ainda preciso fazer florescer e dar a conhecer tais processos e seus sujeitos na Amricaportuguesa, recuperar as trajetrias e nomear os atores. So protagonistas de uma histria

    adormecida, pouco dita. Fazer emergir essas mulheres, seus saberes e suas aes, significa realizum exerccio investigativo aprofundado, no apenas descritivo, mas o mais exaustivo possvel nanlise das fontes, atentando-se para as especificidades dos contextos, minucioso e perspicaz emsua narrativa.

    Acreditamos ser necessrio investigar sobre as prticas educativas conectadas aouniverso feminino na Amrica portuguesa ao constatarmos mudanas nos padres decomportamento ao longo de todo o perodo colonial. No final do sculo XVIII, as prticas de

    sociabilidades femininas apresentaram indcios de transformaes, as quais se acentuaram tornaram-se ainda mais significativas aps a vinda da Famlia Real Portuguesa para o Brasil e1808. As mulheres passaram a frequentar outros espaos como teatros ou peras e a conversarpublicamente com os homens, pelo menos em alguns centros urbanos3. O cotidiano deixava aospoucos de ser to transitrio e instvel e comeava a dar sinais de novas formas de se viver. Spor um lado, a vida social acontecia com base nos padres europeus, por outro, revelavaespecificidades, elementos que constituam e sedimentavam razes das formas de se viver n

    Amrica portuguesa. Novas prticas eram delineadas as quais, certamente, demandaram outroconhecimentos e informaes. Podemos afirmar, porm, que apesar de novos saberes virem tona a partir das demandas da realidade, a educao institucional no se tratava, de forma gerade uma caracterstica dos grupos femininos. De acordo com a historiadora Leila Mezan Algranti

    2 Particularmente os estudos realizados no Grupo de Estudos e Pesquisas em Histria da Educao da Faculdade deEducao na Universidade Federal de Minas Gerais, sob a coordenao da professora Thais Nivia de Lima eFonseca.3 ALGRANTI, Leila Mezan. Famlias e vida domstica. In:Histria da Vida Privada no Brasil : cotidiano e vida privadana Amrica portuguesa. Souza, Laura de Mello (org). So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 117.

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    No sculo XVIII, a educao feminina estava longe de ser uma idia generalizada ouuma prtica corriqueira mesmo entre a elite da Colnia que lanava mo dosrecolhimentos para fins educativos. Nem totalmente conventos, nem escolas, asinstituies femininas de recluso situavam-se a meio caminho dos dois modelos deestabelecimento e serviam a vrios propsitos do que toca vida das mulheres.4

    Neste contexto, o trabalho manual, sempre recomendado s mulheres como parte daeducao voltada para a preparao para o casamento, ocupou lugar importante. Osconhecimentos relacionados aos cuidados com a sade, o conhecimento das receitas caseiras, doafazeres da cozinha, do preparo dos alimentos como a salga da carne e do peixe, a fiao doalgodo e sua tecelagem eram cotidianos, enfim, a chamada indstria caseira ocupava todos ohabitantes da casa.5

    Muito embora seja clara a existncia de um discurso educativo oficial que objetivava preparao da mulher para as funes de me e esposa, percebemos, por meio dos estudosrealizados e da anlise documental, que algumas mulheres exerceram atividades que em muitextrapolaram as diretrizes desses mesmos discursos. Ao travarem contato com a cultura escritaessas mulheres ampliaram seus crculos de convvio e atuao, como a presena decisiva nadministrao da indstria domstica, e redefiniram, assim, os caminhos da vida na Amricportuguesa e da prpria estrutura desta sociedade.

    Vivas, esposas, mes e administradoras: outros sujeitos e um novo desenho

    para a Amrica portuguesa

    Nos idos de 1784, Dona Tereza de Jesus, viva do Tenente Francisco de S Mouro,moradora da Freguesia do Ouro Preto de Vila Rica, solicitou Rainha a merc de lhe conceder tutela de seus filhos e administrao de seus bens e declarou que viveu com seu marido semprportas adentro unidos em boa sociedade, de acordo com os preceitos morais e ensinamentosreligiosos da poca:

    Diz Dona Tereza de Jesus, viuva que ficou do Tenente Jos Francisco de S Mouro,da Freguesia de Ouro Preto de Vila Rica, Minas Gerais, que achando-se em idade detrinta e cinco annos com capacidade suficiente para administrar as pessoas, e bens deseus filhos orphos que lhe ficaro do mesmo defunto seo marido, e conservando-seno estado de viva honesta deseja empregarse na administrao, porque concorre na

    4 ALGRANTI, Leila Mezan.Honradas e Devotas : mulheres da colnia. Condio feminina nos conventos erecolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: Jos Olympio/ Braslia, 1993, p. 260-261.5 ALGRANTI, Leila Mezan. Famlias e vida domstica. In: SOUZA, Laura de Mello (org).Histria da Vida Privada noBrasil : cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. Sobre o cotidiano ncolnia, as atividades exercidas no ambiente domstico, os costumes e modos de vida, a historiadora chama aateno para a importncia dos registros dos cronistas e viajantes como ricas fontes de pesquisa.

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    (sic) as qualidades necessrias, como mostra pelo instrumento dessa justificao queoferece resposta no mesmo instrumento do doutor curador.6

    O referido requerimento parte integrante do testamento de seu marido, onde se

    encontra tambm a declarao de uma testemunha afirmando que Dona Tereza de Jesus possuagrande capacidade de administrao, pois sempre fizera a escrita do casal.

    J Dona Quitria Maria de Barros casou-se com o portugus Jos Ribeiro de Carvalhona Vila de Sabar e, aps ficar viva, tornou-se tutora de seus filhos. poca do testamento dseu esposo, foram declarados seis filhos vivos frutos dessa unio. Dois meninos: Jos, ento com12 anos, Manoel com 2 anos; e quatro meninas: Anna com 8 anos; Mariana com 7 anos; Bernardde 5 anos e Joaquina de 3 anos. Seu marido, natural da Freguesia de Santo Adrio Arcebispado d

    Braga, j havia sido casado, possivelmente em Portugal. Alm do casal de filhos do primeircasamento Jos Ribeiro teve mais um filho, Antnio Ribeiro de Carvalho, com a parda AntoniRangel de Abreu. Antnio, que vivia com o pai, fora institudo seu herdeiro aos 26 anos de idadeEm seu testamento, Jos Ribeiro, que ocupava considervel posio social em Sabar, nomeosua esposa administradora dos bens e tutora dos filhos devido ao reconhecimento de sua grandecapacidade e inteireza7. Esposa zelosa, boa me, cumpridora de seus deveres, Dona Quitria,aps a morte de seu marido, cuidou de todas as demandas da casa e das responsabilidades quelhes foram atribudas. Pagou dvidas e servios, comprou livros e jias para as suas filhas, artigode vesturios para os filhos e contratou mestres particulares para os dois meninos. Preocupou-seem ensinar s filhas os bons costumes, alm da costura, da leitura e escrita, tudo com educao recato, e cuidado grande para no seu tempo dar a melhor arrumao de seus estados e com amorde me as sustentava, vestia e tratava nas suas enfermidades (...)8. Podemos supor, com exceode Bernarda que no aprendera a leitura e a escrita, que Dona Quitria ensinou suas filhas a ler a escrever no ambiente domstico, pois no constam recibos de pagamentos de aulas particularepara as meninas. Quanto aos meninos, Jos, que possivelmente j havia frequentado na infnci

    as aulas de primeiras letras, permaneceu durante sete anos nos estudos da gramtica latina edepois foi viver no Rio. Manoel aprendeu as primeiras letras em aulas particulares comopodemos verificar por meio da prestao de contas feita pela me.

    As histrias de Dona Tereza e de Dona Quitria so exemplos da existncia demulheres na Amrica portuguesa que estabeleceram contato com a cultura escrita e que podemo

    6 Arquivo Histrico Ultramarino (AHU). cx 122 doc 33. Testamento de Francisco de S Mouro. (Foi mantida aredao original dos documentos).7 Museu Ouro/ Casa Borba Gato (MO/CBG). CSO- I (31) 257, 1770. Inventrio de Jos Ribeiro de Carvalho.8 MO/CBG. CSO- I (31) 257, 1770. Inventrio de Jos Ribeiro de Carvalho.

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    caracterizar como possuidoras de certa instruo, fator que permitiu s mesmas o desempenhofunes importantes na sociedade. Questo candente, mas ainda pouco investigada na Histria dEducao, os saberes femininos no contexto colonial bem como as prticas da decorrentes

    podem elucidar aspectos fundamentais da configurao e dinmica daquela sociedade. Pensar aprticas educativas na colnia requer, entretanto, o alargamento da concepo do que seja ensinae aprender neste perodo. Obriga-nos a descortinar diferentes possibilidades de aprendizagemque se esboaram fora dos espaos institucionais de educao. Devemos, portanto, tentaridentificar os saberes que circulavam nos vrios espaos sociais, como eram apreendidos e buscevidenciar como sua assimilao proporcionou s mulheres a construo de estratgias e depossibilidades de negociaes no jogo social.

    Para a melhor compreenso sobre os conceitos de estratgias e de prticas educativas,assim como o desenvolvimento desses processos na Amrica portuguesa, seguimos asorientaes de Thais Nivia de Lima e Fonseca elaboradas a partir das elucidaes tericas dMichel de Certeau, Roger Chartier e Pierre Bourdieu. Segundo essa autora:

    Numa perspectiva ampliada a idia de prticas educativas aparece como tributria doconceito de prticas culturais, desenvolvido tanto por historiadores quanto porsocilogos. Respeitando as diferenas entre eles, considero adequadas aos meuspropsitos suas definies das prticas como maneiras de fazer cotidianas dos sujeitoshistricos relacionadas social e culturalmente na construo de seus espaos, suasposies e identidades. Analisadas como prticas culturais, as prticas educativastambm implicam o estabelecimento de estratgias.9

    Especificamente no que concerne ao desenvolvimento dessas estratgias pelos grupossociais, a autora acrescenta:

    O estudo assim fundamentado implica a anlise de estratgias e prticas educativas,processo que, realizados ao longo de tempos mais dilatados, fizeram parte daformao cultural brasileira. A investigao sobre educao no perodo colonial pode,assim, levar em conta a diversidade e as particularidades da sociedade brasileira deento, considerando suas especificidades regionais.10

    Como nos esclarece Fonseca, estudar as prticas educativas no mundo colonial leva-nosa considerar a constituio das relaes sociais, suas conexes com as dimenses polticas econmicas e a construo de uma cultura peculiar tanto no que tange ao Imprio Portugus,quanto no que respeita s diferentes regies da colnia.

    Discursos educativos, cultura escrita e papis sociais

    9 FONSECA, Thais Nivia de Lima e.Letras, ofcios e bons costumes.Civilidade, ordem e sociabilidades na Amricaportuguesa. Belo Horizonte: Autntica, 2009, p. 10.10 FONSECA, Thais Nivia de Lima e.Letras, ofcios e bons costumes . Civilidade, ordem e sociabilidades na Amricaportuguesa, p. 11-12.

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    A partir especialmente da segunda metade do sculo XX, muitas pesquisas sepropuseram a investigar as imbricaes e tenses culturais existentes no perodo colonialinclusive no que concerne ao universo feminino, tomando como diretrizes teorizaes

    desenvolvidas pela Histria Social entrecruzadas a conceitos trabalhados ou (re) elaborados pelHistria Cultural. No entanto, poucas delas apresentam como ponto central de anlise osprocessos educativos no referido contexto, ou seja, no abordam as prticas culturais ecomportamentos sociais como prticas conectadas a um dado discurso educativo oucontestadoras do mesmo. Ao enfocarem as tenses sociais nesse perodo buscam compreenderou ressaltar as aes governamentais, as relaes de poder entre Estado e Igreja, o papel dealguns agentes na configurao da economia, alm da rebeldia de alguns segmentos sociais com

    componente da dinmica colonial.Estudar a circulao, interpenetrao e utilizao de saberes no perodo colonial requer

    a compreenso de que as prticas educativas so processos histricos dotados de particularidadee que extrapolaram os espaos responsveis pela educao institucional. Investigarespecificamente estas prticas relacionadas ao universo feminino permite uma ampliao acercdas informaes e interpretaes sobre um objeto ainda pouco explorado. Nosso interesse volta-se para as formas de instruo das mulheres na inteno de se descortinar no somente os

    caminhos ditados e definidos, mas o possvel acesso e relaes estabelecidas com os elementoque configuram a chamada cultura escrita e os desdobramentos dessas mesmas relaes nocenrio social. Para tanto, a compreenso dos papis desempenhados pelas mulheres, dos espaopor elas frequentados, de suas prticas cotidianas ou eventuais e das trocas culturais ocorridanesse contexto permite um melhor entendimento da realidade colonial. Realidade que abordadconsiderando-se a complexidade de sua dinmica social que comporta a idia de unidade efragmentao, dependncia e autonomia, explorao e integrao.11

    Segundo Fonseca:Como ento pensar essas questes em relao Histria da Educao? Em quemedida a flexibilizao do entendimento das relaes coloniais nos ajudaria adesenvolver pesquisas que faam avanar a compreenso acerca da educao no Brasilantes da sua constituio como Estado nacional?12

    11 FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Processos e prticas educativas no sculo XVIII: um estudo sobre fontes depesquisa. In: SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA, XXIII, 2005, Londrina.Histria, guerra e paz . v. 1, Londrina:Editorial Mdia, 2005, p. 7.12FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Processos e prticas educativas no sculo XVIII: um estudo sobre fontes depesquisa. In: SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA, XXIII, 2005, Londrina.Histria, guerra e paz , p. 7.

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    Neste sentido, ao abordarmos as questes relativas aos processos educativos no perodocolonial, torna-se fundamental esclarecer que as formas de leitura e escrita assumiram dimensediversificadas naquele contexto, sendo incisivamente marcadas pela prtica da oralidade. A

    relaes e mediaes ocorridas entre indivduos e grupos sociais e o mundo da cultura escrita smuito mais complexas, pois so esboadas em quadros diferenciados. Grupos inscritos emtradies marcadas pela oralidade desenvolvem, muitas vezes, tticas diferentes daquelautilizadas por grupos naturalmente vinculados ao mundo letrado.13

    A anlise dos testamentos que compem o acervo da Cmara Municipal de Sabar,presentes no Arquivo Pblico Mineiro, nos permite vislumbrar tal diferenciao. As relaeestabelecidas pelas mulheres com a cultura escrita abriram caminhos para sua efetiva participa

    em decises referentes aos rumos de suas prprias vidas, das vidas de seus filhos, parentesconhecidos e escravos. Isso porque deixam claro nos testamentos a ltima e derradeira vontade, deliberando sobre partilhas de bens, posses, e condio dos cativos. o que podemosconstatar no testamento de D. Anna Maria Barboza, feito aos 16 de setembro de 1820:

    Tendo assim ordenado o meu testamento quero e he de minha vontade que meutestamenteiro e herdeiro, nem seja obrigado a fazer inventrio, nem a dar contas emjuzo visto que as disposies que fiz lhe deixei em carta particular e apenas comjuramento que der no juzo da alternativa, se dar por cumprido tudo o que lheordenei, cuja a carta nomeada ser obrigado a apresentar em juzo(...). Desta formadou por perfeito o meu testamento que quero valha, e tenha o devido vigor, e porestar feito e escripturado segunda a minha vontade o asignei com o signal quecostumo fazer.14

    Ou ainda no testamento de Maria da Conceio Coutinha: declaro que a escrava LuziaCrioula que he muito idoza, e desejo lhe fazer algum beneficio, a deixo (sic) para sua liberdadpelo preo que lhe derem os avaliadores do concelho.15

    Durante a leitura de todos os testamentos constatamos certa autonomia feminina comrelao s aes e desejos e verificamos que as mulheres solicitavam que o testamento fosse lido

    somente depois desta leitura assinavam-no ou pediam que fosse assinado quando declaravam nosaber ler nem escrever. Neste ltimo caso, interessante perceber que mesmo no possuindo ashabilidades de leitura e escrita, elas ouviam, como de praxe, a leitura feita para confirmarem se

    13 GALVO, Ana Maria de Oliveira. Leituras de cordel em meados do sculo XX: oralidade, memria e a mediado outro. In: ABREU, Mrcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (org.).Cultura letrada no Brasil : objetos e prticas.Campinas: Mercado de Letras, 2005, p. 370.14 Arquivo Pblico Mineiro (APM). CMS, 209, f. 174. Cpia do testamento de D. Anna Maria Barboza. 16/10/182015 APM. CMS, 209, f. 50-50v. APM. Cpia do testamento de Maria da Conceio Coutinha.

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    contedo escrito correspondia ao que havia sido ditado, processo que conferia legitimidade aodocumento, alm de revelar a importncia da oralidade na Amrica portuguesa.

    No que diz respeito oralidade e sua relao com a escrita como forma de compreensoe insero no mundo social, alguns estudos tm nos ajudado a compreender como se processou acirculao de saberes por meio da oralidade e os papis ativos que os sujeitos assumiram nestprocesso. De acordo com Luiz Carlos Villalta:

    Os progressos da privatizao no eliminaram nem a oralidade nem a publicidade narelao estabelecida com os livros. A leitura oral, pblica e privada era corrente emPortugal no Setecentos. Em Lisboa, d. Joo V, quando doente, e seu sucessor, d. JosI, adotavam o sistema de ouvir ler; lavadeiras, carregadores, moleques de ruajuntavam-se para ouvir as histrias contadas por cegos e adquirir folhetos de cordel.Em Coimbra, os estudante, vrios deles brasileiros, em suas casas e tambm pelasruas, liam oralmente os livros, emprestavam-nos, expunham e discutiam seuscontedos (...). Em Ouro Preto nos idos de 1722, vrias pessoas reuniam-se comDiogo Henrique para ouvir-ler o livro Eva e Ave e falar sobre a vida dos santos.16

    Segundo o autor, a despeito das diferenas entre a metrpole e a colnia e do olhar vigilante da Coroa com relao aos hbitos e prticas de seus sditos, alguns costumes foramtrazidos, adaptados e vivenciados na Amrica portuguesa, sendo a oralidade um deles. corretoafirmar, portanto, que o hbito de leitura em voz alta alm de criar uma sociabilidade que giravem torno da diverso e informaes decorrentes destas leituras, tambm fazia parte do cotidiano

    em suas questes mais prticas. Em todos os testamentos lidos at o momento, apesar donmero considervel de mulheres que declararam no saber ler nem escrever, todas solicitaram leitura dos testamentos para somente depois o assinarem ou pedirem que assinassem por elascomo ilustram os trechos transcritos abaixo:

    (...) roguei ao capito Joaquim Ferreira da Rocha (sic), que este me escrevesse, e porachar estas conforme ao que eu lhe ditei o asignei.17 (...) Pedi a Joz Manuel da Silva que este por mim escrevesse dictandoo (sic), que porficar conforme a minha vontade o asignei com minha firma.18 (...) Nesta forma, hey por concludo este meu testamento, e se para sua validade faltar

    aga clauzula, ou clauzulas, aqui as hey por expressar, e declaradas e por ser estaminha ultima vontade pedi a Joze da Rocha Lima, que por mim assignasse, e eu meassignei com o meu signal costumado nesta Villa de Sabar aos seis de julho de 1789= Anna Joaquina da Silva (...)19

    Sabemos que este processo era usual e contribua para transformar o testamentoem documento legtimo. Porm, fundamental frisar novamente a importncia e o significado d

    16 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se l: lngua, instruo e leitura. In: NOVAIS, Fernando A.SOUZA, Laura de Mello e.Histria da Vida Privada no Brasil:cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa. v. 1.So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 378-379.17 APM. CMS, 209, f.168-169. Testamento de Anna Maria do Carmo. 24/05/1815.18 APM. CMS, 209, f. 172-172v. Testamento de Apolonaria de Santa Anna. 07/04/1820.19 APM. CMS, 209, f. 52, 53, 53v. Testamento de Anna Joaquina da Silva. 03/09/1806.

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    leitura para a gerncia da vida pessoal. A leitura em voz alta perpassou a vida familiar e a vidpblica, levando concretizao dos anseios, organizao do cotidiano, ao lazer e aoquestionamento dos valores estabelecidos. Na colnia , liam-se e debatiam-se obras que

    contestavam os dogmas do catolicismo e as normas eclesisticas (...)20. Ainda de acordo com Villalta:

    A oralidade e a publicidade da leitura, embora comum entre os letrados, representava,sobretudo, uma alternativa para os analfabetos ou para os que entendiam apenas oportugus (...) A oralidade ressoava nos templos religiosos, nos colgios jesuticos enas aulas rgias (...) Na passagem do sculo XVIII para o XIX, a leitura e os livrosforam cada vez mais se agasalhando no espao domstico.21

    Villalta chama nossa ateno, ainda, para a importncia de se compreender a educaocolonial a partir de certas perspectivas como a luta pela subsistncia e os diferentes significadoque a preservao da sobrevivncia e a educao tanto no espao escolar quanto fora dele possuam para sujeitos que ocupavam lugares sociais diferenciados. Com esta inteno, o autoafirma:

    As perspectivas educacionais foram limitadas pela precariedade da existncia damaioria dos indivduos: a luta para subsistir, reduzindo-se quase literalmente aosobreviver, impedia-os de alimentar maiores expectativas em relao escola, que jlhes era inacessvel pelos mltiplos obstculos colocados pelo Estado. Os limites desua experincia no mundo, suas diminutas possibilidades de agir e apreender arealidade confinavam-nos no desinteresse pelo saber.22

    Sem dvida a luta para subsistir foi constante no universo colonial assim como aprecariedade da existncia dos indivduos, como muitos estudos j demonstraram. No entantoacreditamos que as limitaes impostas pelas circunstncias no devam ser tomadas como fatoredeterminantes e exclusivos no que tange capacidade dos indivduos em apreender a realidade ointeressar-se por alguma forma de instruo. Alguns indcios presentes na documentaopesquisada revelam-nos no apenas a capacidade de apreenso da realidade por parte de algumamulheres, como a possibilidade de estabelecer relaes de interesse com o saber e com a

    educao, configurando-se essa, muitas vezes, em um valor. No testamento do Alferes Lourenode Oliveira, identificamos indcios acerca da capacidade de sua esposa em apreender a realidadeadministrar a prpria vida e as vidas de seus filhos. Segundo afirma o prprio Alferes:

    20 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se l: lngua, instruo e leitura. In: NOVAIS, Fernando A.SOUZA, Laura de Mello e.Histria da Vida Privada no Brasil : cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa, p. 380.[Grifo nosso].21 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se l: lngua, instruo e leitura. In: NOVAIS, Fernando A.SOUZA, Laura de Mello e.Histria da Vida Privada no Brasil : cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa, p. 374-375.22 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se l: lngua, instruo e leitura. In: NOVAIS, Fernando A.SOUZA, Laura de Mello e.Histria da Vida Privada no Brasil:cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa, p. 352.

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    (...) porque sempre achei na dita minha mulher toda a capacidade preciza para educaros nossos filhos, e zelar os bens que lhe pertencerem por isso he de minha vontadeinstituir, nomear e declarar como instituo, nomeyo, e declaro a dita minha mulher por Tutora, testamenteira dos ditos meus filhos... Declaro que em puder da minhatestamenteira h de ficar hum livro por mim rubricado com declarao das folhasassim com hu carta fixada para pelo dito livro, e carta ella se reger, e de tudo quantoem hum, e outra se achar escripto por mim ou (sic) da minha ordem com a minharubrica ter o inteiro rigor, e quero se cumpra.23

    A passagem acima, apesar de fazer parte de certo modelo discursivo prprio aostestamentos, demonstra indcios no apenas da capacidade de interpretao e apreenso darealidade, mas de uma efetiva interveno no cotidiano da sociedade. O interesse feminino emgerir os bens, cuidar e educar os filhos era constante. Somada anlise dos testamentos, a leiturdos requerimentos feitos por mulheres vivas solicitando provises para administrar bens e

    pessoas possibilita-nos fazer tal afirmativa. At o momento foram analisados cerca de 30requerimentos que compem o acervo do Arquivo Histrico Ultramarino. Neles tomamosconhecimento do nmero significativo de mulheres que demonstravam interesse em gerir osnegcios, cuidar dos filhos e educ-los. Apesar de no podermos afirmar que essas mulheressabiam ler e escrever possvel questionar: seriam elas completamente alheias a todas as formde instruo, particularmente quelas relacionadas cultura escrita? Como j afirmamos, norequerimentos analisados as mulheres demonstram interesse em administrar os bens e educar os

    filhos, como no caso de Dona Genoveva Maria:Diz Genoveva Maria de Jezus, viva de Joze Ferreira Lopez, e assistente na Freguesiade So Miguel, Termo da Cidade de Marianna, Capitania das Minas Geraes, que porfallecimento do dicto seu marido lhe ficaro seis filhos, trez varoens, e trez gmeas,todos menores de vinte e sinco annos.E porque na suplicante concorrem as

    precizas qualidades para os educar, e administrar todos os seus bens, e legitimasque lhes (sic), e houverem de pertencer como consta da justificao junta, pertendeque Vossa Magestade lhe mande passar provizo para effeito de ser a suplicante tutorae curadora dos bens dos dictos seus filhos... Justifica que (sic) de provizo do fallecimento de seu marido Jos Ferreira Lopes, setem conferido no Estado de viva com todo o recato, honra e virtude sem que seja a

    mais (sic) procedimento...(sic) Justifica que lhe ficaro por morte se seu marido trezfilhos varoens, trez filhas gemeas, todos menores de vinte e sinco annos, os quaistodos conserva em sua companhia,educando-os, e ensinando-os , como fazem asmulheres honradas de sua qualidade. Justifica que a suplicantetem (sic) juzo eentendimento para bem reger e administrar as legitimas que pertencero aosorphos seus filhos (...).24

    Verificamos, com base nos requerimentos analisados at o momento, que as mulherestraaram estratgias para serem tutoras de seus filhos assim como administradora de seus bens

    23 APM. CMS, 209, f 50-51-51v. Testamento do Alferes Loureno de Oliveira. 12/08/1806.24 AHU Cons. Ultra Brasil/ MG Cx:111, Doc:14. APM. Requerimento de Genoveva Maria de Jesus, viva de Jos Ferreira Lopes (1777).

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    Na maioria dos requerimentos menciona-se a inteno de cuidar e educar os filhos, fato querevela a posse ou a valorizao de certa instruo, mesmo que esta no se refira diretamente aletramento ou exclusivamente educao institucionalizada. o que podemos constatar no

    trecho:

    Diz Dona Maria do Nascimento viva que ficou do Alferes Dionizio da Fonseca daCampanha do Rio Verde comarqua do Rio das Mortes, que do dito seu marido lheficaro seis filhos rfos menores dos quais a suplicante quer ser tutora, para o quetem os requizitos necessrios, e os quer alimentar, educar, e mandar enssinar a suacusta, do que no chegarem as legitimas, para cuja tutela, e administrao necessita deprovizo de Vossa Magestade.25

    Observamos, desta forma, que na Amrica portuguesa era frequente a preocupao dasfamlias com a educao de seus filhos, mesmo que essa acontecesse no espao domstico

    Fonseca afirma ao analisar as formas de instruo e educao na capitania de Minas Gerais que:(...) Refiro-me particularmente s aes das associaes religiosas leigas e s iniciativadas prprias famlias que, quando podiam, buscavam por seus prprios meios ofereceralgum tipos de educao aos seus filhos. Por isso, na Capitania de Minas Gerais, foirelevante a atuao de professores particulares, principalmente de primeiras letras mesmo depois da instituio de aulas rgias bem como dos mestres de ofciosmecnicos.26

    A partir do que nos aponta a autora, correto pensar que os aprendizados relativos sprimeiras letras, aos ofcios manuais e mecnicos e gerncia de bens e administrao da vid

    social podem ser compreendidos como processos educativos relevantes na dinmica social. verdade que, em se tratando do aprendizado das primeiras letras, a autora se refere ao universomasculino, uma vez que s mulheres eram designadas as funes necessrias para seu bomdesempenho como me e esposa. Contudo, as mulheres travaram contato tambm com osconhecimentos direcionados aos homens, seja por meio da oralidade, pela convivncia familiaou pela participao em diferentes espaos sociais. Sendo assim, se partirmos do pressuposto dque o saber letrado na Amrica portuguesa - apesar de oficialmente ser adquirido pelos homens

    no era algo estanque no tempo e espao, mas circulava e era apreendido pelas mulheres,poderemos vislumbrar a atuao feminina para alm do discurso religioso e moral que a essegrupo era destinado. Nesta perspectiva, percebemos a realizao de diferentes tarefas pelasmulheres como se alfabetizadas fossem, pois declaravam ser capazes no apenas de cuidareducar e ensinar os filhos, mas reger e administrar bens e legtimas. Mesmo quando os homen

    25 AHU Cons. Ultra Brasil/ MG Cx: 92, Doc: 49. APM. Requerimento de Maria do Nascimento, viva deDionsio da Fonseca (1768).26 FONSECA, Thais Nivia de Lima e.Letras, ofcios e bons costumes.Civilidade, ordem e sociabilidade na Amricaportuguesa , p. 111.

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    assumiram papis de mediadores da relao entre as mulheres e a cultura escrita, essas foramcapazes de interpretar, demandar e definir aspectos importantes da vida social.

    Justino Pereira de Magalhes, ao analisar o caso portugus, no decurso do AntigoRegime, afirma:

    (...) H grupos socioprofissionais que exercem funes como se de alfabetizados setratasse: o caso de certo tipo de criados e negociantes, cujas proximidade enecessidade de comunicar-se sob lgicas de quantificao, e de, no quotidianoacompanharem com letrados, os aproxima das lgicas da cultura escrita, afectando asua maneira de pensar e agir. Tambm, num contexto de pragmatismocomunicacional, necessrio questionar o para qu da utilizao da linguagem oral emuito excepcionalmente da linguagem escrita (...) que relao entre oral e escrito?Estas diferentes prticas de comunicao constituem, no plano histrico, umcontinuum de comunicabilidade, desde algum que se limita a receber uma mensagem e confirma

    a sua presena, chancelando com uma marca grfica (sigla), ou solicitando algum quepor ele chancele (a rogo) (...).27 Nesta perspectiva, as formas estabelecidas de contato com o escrito devem ser

    consideradas em todas as suas dimenses, detalhes, e contradies. A despeito de ser a sociedadcolonial marcada e legitimada pela cultura escrita e o aprendizado das primeiras letras apresentase, por vezes, como caminho para a insero social, correto inferir que mesmo as pessoas quno dominavam a escrita dela fizeram uso e atuaram na sociedade. Interpretavam leituras etomavam decises a partir dessa interpretao, legitimavam documentos marcando-os com seu

    sinal costumaz, alm de testemunharem diferentes processos, dentre outras prticas.

    Isso posto, buscamos aprofundar nossa compreenso acerca de alguns fenmenoscomo os de letramento ou literacia, de alfabetizado e analfabeto. Para Justino Pereira deMagalhes imprescindvel que pensemos em nveis diferenciados de alfabetizao, sendo que

    a alfabetizao enquanto fenmeno cultural, integra-se numa problemtica global queenvolve trs noes bsicas: representao, prtica e apropriao (...) que no contextoda cultura escrita, a noo de representao implica uma aproximao evoluo doscdigos lingsticos, uma aproximao trajectria histrica da converso a escrito,

    atravs de registros minemnicos, sentenciais e outros de grande parte dos sistemas depensamento (...) A prtica no seu sentido mais amplo, fora o investigador a umaarticulao crtica e avaliativa entre as dimenses projectuais e sua efetivao, tomandoem ateno quer a relao entre os contextos e as manifestaes comportamentais eexpectativas de grupos social e culturalmente diferenciados, quer a trajectriahistrica de gestao de necessidades e de valorao das prticas litercitas. Por fim hque se considerar a noo de apropriao o tempo dos sujeitos que traduzcapacitao e cujo conhecimento envolve uma articulao diferenciao entreliteracia, enquanto aproximao e insero mais ou menos consciente na dinmicahistrica da cultura escrita e alfabetizao como processo de ensino aprendizagem,

    27 MAGALHES, Justino Pereira de. Alquimias da escrita:alfabetizao, histria desenvolvimento no mundoocidental do Antigo Regime. So Paulo: Editora da Universidade So Francisco, 2001, p. 13-14. (O portugus dPortugal, utilizado na redao desta referncia bibliogrfica, foi mantido nas citaes).

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    com vista a uma prtica e uma participao com propriedade nas decises individuaise grupais, mediante uso integrado das prticas da leitura e da escrita.28

    Tais orientaes metodolgicas auxiliam-nos a perceber de maneira mais atenta e

    detalhada as diferentes formas de relao com a instruo e com a cultura escrita como caminhopara a interpretao e o posicionamento diante da realidade social. As mulheres ao estabeleceremo contato com a leitura e a escrita eram capazes de interpretar a realidade e atuar sobre ela, muitembora esta atuao ocorresse, em certas situaes, mediadas pela figura masculina. O estudo daformas de atuao das mulheres na Amrica portuguesa - a partir das relaes estabelecidas como universo escrito e com as instncias representativas de poder que, na maioria das vezesencontravam-se personificadas na figura masculina insere-se no quadro de renovaohistoriogrfica, pois se afasta de perspectivas analticas tradicionalmente sexistas que costumasubestimar ou superestimar os papis femininos. Igualmente diferencia-se de estudos tradicionaque criam categorias estanques e dicotmicas com relao ao processo de apreenso da culturescrita, tais como leitores e no leitores, alfabetizados e analfabetos.

    Devemos, neste ponto, considerar que as teorizaes desenvolvidas pela Histria Socialauxiliam-nos a compreender a trama social como cenrio de conflitos, contradies, confrontos ede elaborao de estratgias. As mulheres ao tecerem suas relaes e agirem no cotidianoassumiram o lugar de sujeitos formuladores da vida social. Eram portadoras de identidadessingularidades e subjetividades. Sujeitos atuantes que imprimiram modificaes no mundo dtrabalho, da poltica, da afetividade.

    Com esse objetivo, seguimos as orientaes da Histria Social, em especial ascontribuies da historiografia inglesa no que respeita superao das vises limitadoras compartimentadas da realidade, destacando-se o papel atuante dos agentes histricos. Da mesmmaneira, os estudos desenvolvidos no interior da Histria Cultural indicam caminhos para quepossamos compreender as representaes e as prticas engendradas por diferentes sujeitos, numdado momento histrico, como fatores configuradores do porvir social. Pretendemos, portanto, valorizar a dimenso poltica de acordo com uma tica que busca compreender as relaes entros homens como uma construo que se edifica e se desenrola pautada nas experincias dossujeitos. Ou seja, identificamos e ressaltamos a capacidade de homens e mulheres refazeremcotidianamente seus caminhos, atuaes e as percepes que possuem sobre o real. Tal

    28 MAGALHES, Justino Pereira de. Alquimias da escrita:alfabetizao, histria desenvolvimento no mundoocidental do Antigo Regime. So Paulo: Editora da Universidade So Francisco, 2001, p. 13-14.

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    abordagem possibilita a extrapolao do campo institucional para outras dimenses e espaos dexerccio de mltiplos poderes.

    Dentro deste quadro terico, a investigao das vidas das mulheres que estabeleceramcontato com a cultura escrita inspira-se no princpio de que os casos mais raros no podem serencarados como algo fora da histria. Aquilo que no pode explicar o contexto por no constituiuma regularidade. Pelo contrrio, as excees podem nos servir como exerccio de reduo daescala de anlise. Esta opo metodolgica revela o detalhe de maneira mais ntida e com corestraados mais bem definidos, movimento que facilita e permite uma melhor compreenso dotodo. Ao voltarmos nosso foco de anlise para as mulheres consideradas excees, nodiminumos ou limitamos nossa capacidade investigativa, mas aprofundamos nosso olhar,

    perseguimos as trajetrias de suas vidas, trabalhamos com os indcios documentais de maneir verticalizada e alteramos, assim, o contedo do que observvel e observado. Recuperamos que parecia sem importncia, desbotado ou frgil na imensido da estrutura de todo um sistemaprocedimento metodolgico que se inscreve no campo das orientaes advindas da abordagemmicro-histrica. Se, como supomos, o contato com elementos da cultura escrita possibilitou ainsero de certas mulheres na sociedade colonial, os indcios presentes nas fontes documentaimesmo que raros no so menos importantes para a explicao do funcionamento social e do

    papel dos diferentes saberes neste contexto. Uma leitura atenta de um nmero relativamentepequeno de textos respeitantes a uma crena determinada pode dar mais fruto do que umamontoado de documentao repetitiva.29

    Coerentes a essa lgica investigativa tomamos as vidas individuais e singulares de cadsujeito como processos por apresentarem marcas de uma dada estrutura e constiturem-se comoconfiguradoras de um sistema, partes integrantes do mesmo, proporcionando uma novacompreenso da realidade social. A despeito de no ser a educao letrada uma regra para o

    grupos femininos na Amrica portuguesa, inegvel que as mulheres fizeram uso desseconhecimento. Mesmo quando mediadas pela figura masculina, transcenderam os limites a elatraados pela moral e pela religio. Atuaram como administradoras de bens e pessoas comomostram os documentos consultados, extrapolaram o espao da casa e deixaram transparecer ointeresse pela instruo alm de demonstrarem perceb-la, muitas vezes, como um valor. Aorastrearmos os caminhos trilhados por essas mulheres na Amrica portuguesa, buscamos nomeaos atores, evidenciar suas prticas e redes de sociabilidades. A anlise assim detalhada nos perm

    29 GINZBURG, Carlo. A micro-histria e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 214.

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    um olhar mais estreito capaz de desvendar um novo desenho social traado pelos gruposfemininos em seus afazeres cotidianos.

    Recebido: 08/08/2011 Aprovado: 10/11/2011