especial refugiados sírios · 2016-01-20 · dos refugiados sírios. para que se tenha uma noção...
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Revista Ano 1 • Dez 2015 • n° 01
Tammam Azzam
Narrativas em movimento
Refugiados Sírios
Os refugiados, a crise e a retórica da crise
Entrevista com o artista plástico sírio refugiado em Dubai
Especial
O contexto do conflito na Síria
Por que nossa juventude está se juntando ao
Estado Islâmico? Jornalista avalia os caminhos e possíveis saídas para os países
da União Europeia
Como são as políticas do Brasil em relação à maior
onda migratória desde a 2° Guerra Mundial
Entre o apocalipse e a redenção
Celular, comida e busca por trabalhoRefugiados palestinos e sírios em uma ocupação de sem-teto no centro de São Paulo
Editorias | Página 02
levam, hoje, à dispersão da ideia nacional própria à modernidade. Entramos numa era de deslocamentos continentais mar-cada pelos novos movimentos migratóri-os, tal como pela criação de um novo traumatismo histórico, no assento da con-sciência e identidade dessas coletividades deslocadas. A revista quer responder à pregnância da visão internacional, que é também preocupação da UCAM nos seus diversos institutos, começando pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos, há mais de meio século. O propósito da Diáspora é, sobretudo, delinear a força emergen-te do Brasil nesses novos enlaces, inclu-sive com os Estados latino-americanos.. A perspectiva emergente desdobra-se so-bre os alinhamentos no Pacífico dessa mesma América Latina, mas, sobretudo, o que se busca é a contraposição a toda perda identitária que, na modernidade, ainda traduza o empenho do colonialis-mo e seus sucessivos avatares.
Prof. Candido Mendes – Reitor UCAMMembro do Conselho Editorial
da Revista Diáspora.
Nota da Universidade Candido Mendes
Narrativas em movimento
recado da Diáspora é incisivo. Trata-se de atentar às novas configurações internacionais que
Redação: Produtora Executiva • Liza Dumovich
Editora - Tradutora• Ana Maria Raietparvar
Editor Assistente - Jornalista• Alexandre Facciolla
Chefe de Reportagem - Jornalista• Leila Lak
Editor de Arte • Diego Torrão
Colaboradores:• Igor Paes Leme
• Fabrício Toledo de Souza• Monique Sochaczewski
• Pato Sarda
Conselho Editorial:• Candido Mendes
• Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto • Beatriz Bíssio
• Fernando Resende• Gisele Fonseca Chagas
• Plinio Zuni
O
Foto capa: Sergi Cabeza
Contexto | Página 05
protestos populares contra o regime de Bashar al-Assad para um conflito armado que provoca, há quatro anos, tamanha violência física e simbólica, é preciso primeiramente entender as especifici-dades históricas, políticas, sociais e econômicas que atravessaram a sociedade síria nas últimas décadas. Não se trata de propor uma cronologia de acontec-imentos e tampouco elaborar quadros explicativos sobre “quem é quem” no conflito, mas estar ciente que os atores sociais que o produzem no cotidiano têm suas próprias (e, portanto, divergentes) narrati-vas sobre a situação. Para entender os efeitos da guerra, é pre-ciso colocar em contexto os processos domésti-cos que a moveram e que continuam dando o tom das disputas entre os diferentes atores e seus alinhamentos no conflito. Se em setembro de 2015 a imagem do menino Aylan al-Kurdi, de 3 anos, morto em uma praia da Turquia conseguiu con-densar e traduzir o horror da guerra na Síria para o mundo, em abril de 2011, em Deraa, uma província ao sul do país, a prisão, tortura e morte de Hamzaal-Khatib, 13 anos, foi o epicentro das manifes-tações populares contra o status quo político.
Entre o apocalipsee a redenção Por Gisele Fonseca Chagas
O corpo mutilado de Hamza foi entregue à família pela polícia do regime de Bashar al-Assad e, em seguida, um vídeo feito por um membro da família mostrando o corpo desfigurado circulou rapidamente via internet, provocando uma onda de indignação em diferentes partes do território sírio. Um mês antes da morte de Hamza, protestos reivin-dicando “liberdade” e “justiça” já eram ecoados na mesma cidade, em resposta à prisão e tortura, pela polícia, de um grupo de adolescentes acusado de pichar o muro de uma escola com a frase “O povo quer a queda do regime”. A frase, compartilhada por manifestantes em ruas e praças de cidades e capitais do chamado mundo árabe, era slogan co-mum ao movimento de contestação política conhe-cido como “Primavera Árabe”.
Ilustração de menino refugiado: Reprodução/Twitter
Governo deposto Governo derrubado várias vezes Guerra civil Protestos e mudanças governamentais Grandes protestos Protestos menores Outros protestos e ação militante fora do mundo árabe
Índice “outro lado do mundo”. Esse movimento de tornar o exótico familiar revela que o outro pode estar mais próximo do que se acredita, tanto geograficamente - com os deslocamentos através de refúgio e dos movimentos migratórios, seja de bra-sileiros para o Oriente Médio, seja de médio-orientais para o Brasil - quanto culturalmente - com discursos e práticas com-partilhados nas artes, na cultura, política e religião. Um exemplo contundente dessas conexões é o número cada vez maior de conversões para o islã na América Latina.O objetivo da Revista DIASPORA é revelar os diversos pontos de conexão entre os mundos. Que o encurtamento de distân-cias proporcionado pela internet permita que se vá além dos nossos preconceitos e estereótipos. Que uma revista sobre o Oriente Médio e o Norte da África, em português, ajude na des-construção de visões homogêneas sobre um mundo imaginado e na construção de um novo imaginário, plural, diverso, cheio de complexidades e nuances. Que o Oriente Médio deixe de significar somente petróleo, guerras, terrorismo e opressões para significar desejos, potên-cias, individualidades e alegria. Que se entenda que são so-ciedades formadas por religiosos, seculares, progressistas, con-servadores, ateus, muçulmanos sunitas e xiitas, sufis, cristãos, judeus, bahá’is, budistas, yoguis, artistas plásticos, cantores de rock, rappers, engenheiros, taxistas, professores, escritores, leitores, hackers, físicos, pais, mães, avós, netos, filhos, colegas de escola, vizinhos (daqueles inclusive a quem se pede uma xícara de açúcar emprestada). Enfim, uma infinidade de possi-bilidades tão iguais às nossas e a quaisquer sociedades e, ao mesmo tempo, tão diferentes e diversas.Nessa primeira edição, resolvemos nos aprofundar no tema dos refugiados sírios. Para que se tenha uma noção maior do conflito, a edição inicia com um panorama do que acontece na região, as configurações do problema na Síria e seus des-dobramentos, como a grave crise dos refugiados e a formação de grupos de oposição, incluindo o Estado Islâmico(pág. tal). Somado a isso, apresenta algumas reflexões relativas a esse grupo e os efeitos dos seus ataques em toda a região e, in-clusive, na Europa. Posteriormente, através de entrevistas com artistas e da opinião de especialistas, buscamos dar uma visão plural da situação dos refugiados no mundo e mostrar, a partir de diferentes viéses, como esses indivíduos deslocados vivem, sobretudo, nos países vizinhos, como a Turquia, o Líbano e os Emirados Árabes.Trazemos também uma pequena amostra do cotidiano desses refugiados no Brasil e revelamos algumas das motivações que os guiaram a esse país. Assim, desejamos revelar uma realidade que nos é tão próxima e vislumbrar outras formas de agir diante dessa situação: com compreensão, empatia e apoio.
Editorial | Página 02 e 03
Entrevista | Página 14
Entrevista | Página 11
Poítica | Página 07
Cotidiano | Página 18
Coluna | Página 16
Opinião | Página 22
Política | Página 05
Índice | Pagina 03
Conectar mundos, aproximar pessoas Porque as contradições internas do conflito sírio passam pelas fileiras de grupos fora do espectro ISIS versus forças pró-Bashar al-Assad
“A guerra em andamento não se dá apenas entre
EI e governo sírio. “
Os caminhos da Primavera
Em 2011, as primeiras cidades sírias a se levantarem em protestos contra o governo foram aquelas localizadas em áreas periféricas, povoadas sobretudo por operários e trabalhadores rurais que pediam por liberdade, mas também por justiça, pelo fim da corrupção e por melhores condições de vida, uma vez que foram os setores da população mais atingidos negativamente pelas medidas econômicas liberais adotadas pelo regime de Bashar al-Assad, no poder desde 2000. Foram fatores internos, então, que levaram ao conflito. Com o tempo, outras cidades tornaram-se palcos de protestos, até chegar aos grandes centros como Homs, Alepo e Damasco. No entanto, foram igual e brutalmente reprimidas pelas forças do re-gime. Naquele momento, as narrativas governis-tas descreviam os protestos como liderados por agentes terroristas externos que tinham como alvo desestabilizar o país, sobretudo a partir de estímu-los ao sectarismo.
Políltica | Página 24
Revista DIASPORA surgiu como uma necessidade. Em tempos de atentados, conflitos e guerras, é preciso ir além do senso comum e aproximar oA esemaranhar os vários fios que enredam
a atual guerra na Síria é uma tarefa com-plexa, pois para entender a guinada dosD
Conto | Página 27
Editorial da Revista Diáspora Por Ana Maria Raietparvar
Entre o apocalipse e a redenção Por Gisele Fonseca Chagas
Os refugiados, a crise e a retórica da crise.
Por Fabrício Toledo de Souza
Vidas Suspensas Por Leila Lak
Dando sentido a uma vida sem sentido
Por Leila Lak
“Hóspedes” sírios na TurquiaPor Monique Sochaczewski
Celular, comida e busca por tra-balho
Por Alexandre Facciolla
Muitas visões: Os Refugiados Sírios no Brasil
Por que nossa juventude está se juntando ao Estado Islâmico? Por Leila LAk
Chamada para a fugaPor Liza Dumovich
Editorial da Revista DIASPORA
Por Ana Maria
Contexto | Página 06 Capa | Página 07
crise dos refugiados já era a maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com 42,5 milhões de pessoas fugindo de suas casas e, em três anos, o número cresceu em 40%. Em 2014, uma média de 42,5 mil pessoas por dia se tornaram refugiadas, solicitantes de refúgio ou deslocadas internos – um cresci-mento quadruplicado em curto período. Neste ano, o número de pessoas obrigadas a fugir deve ultrapassar os 60 milhões. Dos solicitantes de refúgio, a maioria é consti-tuída por crianças. O conflito na Síria é sem dúvida o mais grave, com impacto em todas as par-tes do mundo. O país tem a maior popu-lação de deslocados internos (7,6 milhões) e também é a principal origem de refugiados (3,88 milhões, ao final de 2014). Os sírios se tornaram a maior população refugiada sob mandato do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e, desde 2011, tem sido o principal motivo do crescimento acelerado do número de des-locados.
O Afeganistão e a Somália vêm em seguida, sendo os países de origem de 2,59 milhões e 1,1 milhão de refugiados, respectivamente. O contingente de refugiados equiva-leria ao 24º país mais populoso do mundo, se estes fossem contabilizados como uma só população. Ainda segundo o Acnur, as pop-ulações refugiadas e de deslocados internos cresceram em todas as regiões do mundo, com destaque para 15 regiões atingidas por conflitos que se iniciaram ou se agravaram: Costa do Marfim, República Centro-Africana, Líbia, Mali, nordeste da Nigéria, Repúbli-ca Democrática do Congo, Sudão do Sul e Burundi, na África, Síria, Iraque e Iêmen, no Oriente Médio, Ucrânia, na Europa e Quir-guistão e em diferentes áreas de Mianmar e Paquistão, no continente Asiático. Na medida em que as rotas para a Europa tornam-se cada vez mais restritas e vigiadas, os países da América do Sul sur-gem como opção para os deslocados, incluindo os sírios, que já constituem a maior população de refugiados no Brasil. O aumento dos fluxos de deslocados é atribuí-do à postura constituem a maior população de refugiados no Brasil.
Nos últimos cinco anos, o número de pes-soas pedindo refúgio no Brasil aumentou vertiginosamente. Foram feitos 25.996 pedi
Os refugiados, a crise e a retórica da crise. Por Fabrício Toledo de Souza
É preciso destacar, contudo, que a guerra em andamento não se dá apenas entre Estado Islâmico e governo sírio – embora a mídia brasile-ira, em linhas gerais, tem como foco narrativo as ações do EI, dado o imenso fascínio e horror que o grupo provoca nos corações e mentes globais. Analistas internacionais reportam que os conflitos entre o EI e o governo sírio têm sido mínimos, com os dois lados tendo como alvo mais frequente os outros setores de oposição ao re-gime, estes formados por inúmeros grupos –
Pelo lado da oposição, as acusações eram de que o governo estava distribuindo desigualmente a violência, mobilizando a lingua-gem do sectarismo religioso como forma de promover tensões e cisões nas demonstrações dos sírios contrários a ele. Apesar de inúmeros manifes-tantes ecoarem a uma só voz o slogan “Uma, uma, uma, a Síria é uma”, em pouco tempo, a polarização sectária, que não foi o leimotiv dos protestos, ocu-pou os espaços seguindo a militarização do conflito pela conquista do poder. Em 2012, a guerra estava em aberto, ar-rastando, em linhas gerais e de forma não unânime, a maioria sunita para a oposição e as minorias (alauítas, xiítas, cristãs e outras) para a situação. No entanto, no próprio campo sunita sírio, encon-tram-se apoiadores do regime, incluindo autori-dades religiosas e setores da alta burguesia urba-na. O entendimento desses processos só é possível considerando as relações de tensão e acomodação entre o governo do Baath (partido nacionalista ára-be surgido no pós Segunda Guerra Mundial) e o es-tablishment religioso sírio sunita desde a década de 1970, mas sobretudo na Síria de Bashar al-Assad, conforme ressaltado pelo cientista político Thomas Pierret.
A retórica da crise de recursos não pode abafar as multidões que mostram, através de marchas de solidariedade, “o desejo por uma democracia universal e absoluta”.
O conflito na Síria é sem dúvi-da o mais grave, com impacto em todas as partes do mundo.
Foco errado no Estado Islâmico
tanto seculares, como o Exército da Síria Livre, quanto islamitas, como os que formam a Frente Islâmica. Todos esses grupos têm uma história e visões políticas próprias sobre suas ações. Se tomarmos as trajetórias individu-ais de alguns combatentes como ponto de análise, veremos que há casos de rompimen-tos com seus grupos de origem e sua inserção em outros, seja por conta de projetos políti-cos divergentes ou até mesmo pela neces-sidade de buscar uma melhor estratégia de sobrevivência, ainda que precária. Deserções e tentativas de deixar a Síria por parte desses militantes também são constantes. Assim, a própria dinâmica do con-flito, as interpretações que se têm sobre a experiência da violência e os diferentes e divergentes projetos políticos e visões de mundo que foram sendo forjados ao longo do tempo pelos combatentes, ou por quem está vivenciando cotidianamente o conflito, abrem caminhos para cisões e rupturas que levam até mesmo a mudanças de posição e de expectativas a respeito da realidade vivida e, sobretudo, de uma Síria do porvir. Como qualquer outro Estado-nação, a Síria é uma comunidade política que é diferentemente imaginada por seus cidadãos e que, em situações-limite como no caso da presente guerra civil, os posicionamentos e tensões que a violência generalizada impõem produzem diferentes visões do conflito, numa escala que pode ir do apocalipse à redenção, para ficarmos apenas com essas metáforas religiosas. Nesse caleidoscópio político movimentado pelo horror da guerra, também estão a nostalgia de um passado reimagina-do e a esperança de que a vida precisa con-tinuar.
Os conflitos entre o EI e o gover-no sírio têm sido mínimos, com os dois lados tendo como alvo mais
frequente os outros setores de oposição ao regime, estes formados
por inúmeros grupos – tanto seculares quanto islamitas
Entender o posicionamento que as vertentes religiosas tomaram
em relação ao regime só é possível considerando as relações de tensão e acomodação entre o governo do Baath e a elite religiosa sunita des-
de a década de 1970.
de fato uma crise humanitária e inegavelmente a maior das últimas décadas. Há quatro anos atrás, aÉ
O impacto da crise no Brasil
Capa | Página 08
A crise dos refugiados é também uma crise da narrativa da própria crise: De que se trata afinal esta crise? Certamente, é uma crise para as pessoas obrigadas a deixar suas casas, suas famílias, seus víncu-los, seus trabalhos, seus afetos e seus fu-turos. Uma crise para aquelas pessoas que testemunharam a morte de seus familiares e amigos, que carregam cicatrizes e dores.
dos no ano passado, contra 1.165 em 2010 — um aumento de mais de dois mil porcen-to. É o maior numero de solicitações entre os países da América Latina. Ainda assim, o número oficial de pessoas reconhecidas refugiadas é bastante modesto: são 7.946 pessoas, de 81 diferentes nacionalidades. A maior parte dos refugiados é da Síria – com 2.077 pessoas reconhecidas refugiadas -- seguidos dos colombianos, angolanos e congoleses (da República Democrática do Congo). Em 2014, o Brasil teve também sua melhor taxa de validação, aprovando cerca de 88% dos pedidos de refúgio. Em 2010, a taxa foi de 38,4%. O aumento poderia ser explicado, em parte, pelo alto índice de deferimento dos pedidos feitos por sírios. Entretanto, mesmo excluindo os sírios, a taxa permanece alta: 75,2% para os pedidos feitos por Segundo declarações do repre-sentante do Comitê Nacional para os Refu-giados (CONARE), no final de 2014, cerca de 12 mil pedidos estavam aguardando julga-mento. Para dar conta dos pedidos em an-damento - e dos novos que devem chegar - o governo afirma que diversas mudanças estruturais serão feitas, desde contratação de pessoal, até reformulação da gestão dos processos e reavaliação do modelo decisórionacionais de outros países. Segundo declarações do representante do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), no final de 2014, cerca de 12 mil pedidos estavam aguardando julgamento. Para dar conta dos pedidos em andamento - e dos novos que devem chegar - o gover-no afirma que diversas mudanças estruturais serão feitas, desde contratação de pessoal, até reformulação da gestão dos processos e reavaliação do modelo decisório.
1° A criação e o aprimoramente de obstáculos nas fronteiras terrestres – como a criação de muros e fiscalização militar nas fron-teiras, como acontece atualmente na Hungria, Croácia e em outras partes da Europa – obrigaram os deslocados a buscar caminhos cada vez mais perigosos. Mais de 500 mil pessoas atravessaram o Mar Mediterrânio desde o início de 2015, em busca de proteção no continente europeu. Somente em setembro, foram mais de 160 mil pessoas, contra aproximadamente 34 mil no mesmo período do ano anterior. De acordo com dados oficiais do ACNUR, 2.980 pessoas morreram ou despareceram durante a travessia neste ano.
Capa | Página 09
Estados, pessoas e narrativas da crise
Os refugiados estão sendo vítimas de práticas estatais absolutamente terríveis, como contenção em campos (como guetos) com privação alimentar, falta de condições básicas de abrigo, saneamento e saúde, deportação e contenção, classificação, etc. A morte de uma mulher por congelamento, no campo de campo de Baalbek, no Líbano, que abriga refugiados sírios e sofre com um rigoroso inverno na região (de acordo com o jornal turco Anadolu, disponível em http://www.aa.com.tr/en/life/syrian-woman-freez-es-to-death-in-lebanon-refugee-camp/83864) é a outra imagem emblemática desta crise.
O número de sírios chegando ao Brasil tornou-se relevante sobretudo depois da aprovação da Resolução 17 pelo Conare eliminando exigências desnecessárias para emissão de visto para as pessoas afetadas pelo conflito. Segundo dados do Comitê e do Ministério das Relações Exteriores, cer-ca de 8 mil pessoas se beneficiaram deste visto especial. Em setembro de 2015, pou-cos dias depois da imagem do corpo do menino Aylan Kurdi ter circulado o mun-do, a resolução foi renovada por mais dois anos o que pode aumentar o número de sírios chegando ao País.
“Na medida em que as ro-tas para a Europa tornam-se cada vez mais restritas e vi-giadas, os países da América do Sul surgem como opção”
Ilustração mapa dos refugiados: fonte ACNUR.Foto: Sergi Cabeza.
Em 2014, o Brasil teve também sua melhor taxa de validação, apro-vando cerca de
88% dos pedidos de refúgio.
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Sujeitos em movimento
Se os refugiados — ou os migrantes e os sujeitos em fuga, de modo geral — fugiram em razão da ausência de democracia em seu país de origem, sua presença nos países de acolhida é um lembrete permanente da im-portância de democracia, inclusive no que diz respeito a quem merece cidadania e quem decide sobre a cidadania. A fuga, em si, não é apenas o fruto de um ato desesper-ado de vidas em risco. É também a irrupção de formas inteligentes de resistência contra a violência, a tirania, a opressão e à miséria. E quando as multidões de cidadãos se jun-taram aos refugiados — seja em redes de solidariedade, como acontece em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, seja em marcha dentro (e cada vez mais para den-tro) das grandes cidades, como acontece hoje na Europa — elas não apenas preten-dem mostrar sua piedade e misericórdia. As multidões em solidariedade e em marcha — nacionais enão-nacionais, refugiados e — estão demonstrando quenão-refugiados, migrantes e não-migrantes uma cidada-nia global é possível. Que há o desejo por uma democracia real e absoluta, feita des-de baixo. Nem “razão de Estado”, nem crise, nem piedade; mas cidadania universal, em excesso, para todos.
Foto estraida do video: Lebanon: Winter Snowstorm (http://youtu.be/chTrI36rWSE) - UNHCR
O webdocu-mentário “Life
on Hold”, revela histórias de re-fugiados e como eles encaram e fazem a própria reconstrução de
suas vidas.
A Revista DIASPORA entrevistou a diretora Reem Haddad.
Vidas SuspensasPor Leila Lak
Como filha de refugiados pal-estinos, Haddad decidiu no início de 2014 fazer um documentário focando nos mais de um milhão de refugiados vindos da Síria em direção ao Líbano. Nesse momento, eles não estavam fa-zendo a perigosa viagem em direção a países da União Europeia e não eram o foco dos noticiários internacionais. Haddad e sua co-produtora Dima Gharbawi Shaibani (ela própria de uma família de refu-giados iraquianos) decidiram que essas histórias seriam melhor contadas em um webdoc-umentário (webdoc), no qual o espectador pudesse escolher as histórias a que gostaria de assistir e interagir com elas. “Os números são difíceis de processar e você esquece que essa guerra tem como alvo pes-soas reais, com vidas inteiras e que tiveram que deixar tudo para trás e se mudar para uma vida incerta”, disse em entrevista à Revista DIÁSPORA. Segundo ela, o motivo do projeto foi “conhecer de verdade as pessoas por trás dos números”, afirma Reem.A peça foi produzida ao longo de um ano e meio, com um ano inteiro dedicado somente ao trabalho em campo. “Life on Hold” tem como foco a vida de dez pessoas de diferentes origens socioeconomicas e faixas etárias. A série busca evitar a política, realçando, em vez disso, histórias individuais as quais incluem crianças, uma empresária, um ex-médico e um renomado poeta beduíno.
Entrevista | Página 11
Foto: Divulgação do webdoc “Life on Hold”
“O desafio da vidade fato aparece depois,
quando o refugiado chega a um novo país e tem que juntar os
pedaços para uma nova vida”.
Lá, suas vidas mudaram. Eles se deslocaram para assentamentos ilegais e, quando seu pai não conseguiu encontrar um trabalho que pagasse o suficiente para sustentar a familia, ele pôs Mohammed para trabalhar. Sua história é uma das muitas recontadas no webdocu-mentário ”Life on Hold”, da diretora Reem Haddad, publicado pela empresa internacional de comunicação Al Jazeera English. A história foi indicada, dentre outros prêmios, ao festi-val internacional de documentários de Amsterdam.
empre que alguém sai para brincar quando eu tenho que trabalhar, me dá von-tade de chorar,” diz Mohammed, um menino de 10 anos da cidade de Alepo, que fugiu com sua família da guerra na Síria buscando refúgiono Líbano. “S
É também uma crise para os que vivem hoje em precários campos de refugiados, abando-nados à própria sorte entre fronteiras vigia-das ou expostas aos naufrágios no Mar Med-iterrâneo. Os Estados têm construído uma nar-rativa de crise de recursos. Certamente, uma grave crise para os países que estão receben-do milhares e milhares de pessoas, todos os dias. Na dimensão que ganha hoje, a crise tem sido elaborada principalmente pelos países mais ricos, onde a chegada de refugia-dos, embora em número crescente, ainda é pequena em comparação com o que acon-tece nos países vizinhos aos conflitos — para ficar em apenas três exemplos, o relatório do Acnur mostra que a Turquia recebeu 1,9 mil-hão de sírios em quatro anos enquanto Líba-no e Jordânia receberam 1,1 milhão e 629,6 mil, respectivamente. A crise, portanto, é composta de mui-tas outras crises, paradoxos e nuances, in-clusive para o Brasil, que definitivamente passou a integrar o horizonte dos refugia-dos, migrantes e deslocados em geral. Se uma dimensão da crise é a emergência e o cresci mento dos fluxos, a outra é a im-posição de formas de contenção dos fluxos. E não apenas através de barreiras e obstácu-los materiais, como as cercas, os muros ou militarização ostensiva das fronteiras, mas também por meio da criação da imagem do que é um refugiado e sua distinção em relação aos migrantes. Na disputa de narrativas, os classificados como migrantes (ainda que sejam refugia-dos e ainda que esta distinção seja repleta de muitas nuances) são hoje tratados como mais uma das ameaças à segurança, à cultura e à identidadenacional. Dentro desta lógica, a questão dos migrantes é sempre tratada pela narrativa de invasão ou dentro de um en-quadramento do traficante de pessoas. For-mas de escamotear o problema e fragmentar a realidade.
“O objetivo do projeto é ver além dos rótulos,” diz Haddad. “Parte da narrativa do refugia-do é a perda e, embora isso seja importante, tentamos não focar nessa narrativa, mas sim o futuro dessas pessoas”, detalha a diretora. A jornada para um abrigo é, de acordo com Hadd-ad, apenas o começo da vida de um refugiado. O desafio de fato aparece depois, quando chega a um novo país e tem que juntar os pedaços para uma nova vida.
Os refugiados não registrados vivem no Líbano em diversas locações, como fábricas e hos-pitais abandonados em Sabra e Shatila, o famoso campo de refugiados que abrigava pales-tinos e que, durante a Guerra Civil Libanesa em 1982, foi cenário de um famoso massacre. Nos campos informais, os refugiados têm acesso a alguma ajuda da ONU, mas os fatores externos não os favorecem. Estão expostos a um calor extremo no verão e a um frio extremo no inverno. “A experiência de ir aos campos informais abriu meus olhos,” diz Haddad. “No fim do dia, nós voltamos ao hotel, mas eles ficam lá e é preocupante quando você volta fresco, de ban-ho tomado e eles não podem fazer isso”, acrescenta. “Life on Hold” mostra um panorama de vidas variadas. Haifa, uma empresária de sucesso com boa condição financeira, era proprietária de um hotel na Síria, mas tinha pouco tempo para sua família. Com o conflito, seu hotel teve que ser fechado. Com o stress e a perda do trabalho de uma vida toda, seu marido morreu. Ela então foi para o Líbano com seus filhos, tendo dinheiro para alugar um bom apartamento. Haifa, como muitos outros sírios com mais dinheiro, pôde passar um tempo nos bairros nobres de Beirute frequentando
cafés e restaurantes, sem con-seguir, no entanto, lidar com sua perda. Para ela foi impos-sível se adaptar ao novo cenário ou se integrar. Haifa diz que não se vê como refugiada. Ela anseia por sua terra natal, mas através da perda de sua vida anterior ela afirma ter redesc-oberto o amor por seus pais e sua família, pois, ao se refugi-arem, passaram mais tempo juntos - diferente da época em Damasco, quando levavam uma vida muito ocupada. Foi a “primeira vez que eles se envolveram uns com os outros”, diz Haddad. A diretora disse ter sido inspirada pela história de Haifa, que falava e descre-via Damasco “com tanto amor, que ela cria uma linda imagem na sua mente”, acredita.
Oficialmente, há hoje pouco mais de um milhão de refugiados sírios registrados no Líbano, mas muitos permanecem não registrados. Estimativas apontam que, em 2014, o número de refugiados chegou a aproximadamente dois milhões, com um quarto da população em território libanês. Um Estado pequeno e frágil como o Líbano está encontrando dificuldades para lidar com esses números. Durante as filmagens, a maior parte dos refugiados sírios encontrava abrigo nesse país, mas desde maio de 2015 o governo libanês deixou de aceitar novos refugiados. Os refugiados sírios estão espalhados por todo o Líbano. O país não ratificou a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, portanto o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) organizou campos improvisados sem tendas apropriadas, uma vez que não estão autorizados a montar campos de refugiados oficiais. Dessa forma, não existem lá escolas ou outras instituições, como há em campos em países como a Jordânia ou Turquia.
Conforme o conflito na Síria cria mais e mais refugiados, e estes se espalham pelo mundo, “Life on Hold” dá ao espectador uma visão sobre as pessoas por trás das manchetes de jornais e busca criar empatia por quem se encontra nessa situação. Como o renomado poeta beduíno Furati, que senta em um campo e vê seus filhos viverem sem ir para a escola. Para um intelectual, essa é um sofrimento indescritível. Mohammed, o menino de 10 anos que viu seu melhor amigo morrer ao pegar uma bomba achan-do que era uma bola de gude, sente saudades não apenas de seus amigos e de sua família na Síria, mas também de sua infância. “Há tanta perda,” diz Haddad e, citando um de seus entrevistados, diz: “As pessoas sonham com um futuro. Nós apenas sonhamos em voltar.”
Entrevista | Página 12 Entrevista | Página 13
Fotos: Divulgação do webdoc “Life on Hold”
Campos informais
Entrevista | Pagina 13
Dando sentido a uma vida sem sentido
Entrevista | Página 14 Entrevista | Página 15
Por Leila Lak
Com 30 anos, o artista sírio foi obriga-do a fugir de sua terra natal e começar uma nova vida no exílio em Dubai. Azzam foi lançado à fama internacional quando seu trabalho intitulado “Freedom Graffi-ti” (foto ao lado) se tornou viral nas redes sociais. Ele sobrepôs a tela “O Beijo”, de Klimt, em uma fotografia de um prédio sírio destruído. “Eu estava trabalhando em uma série em Damasco antes de sair, que se chamava ‘Série da Lavanderia’. Implicava em pegar roupas das ruas de Damasco e fazer co-lagens. Mas tudo isso acabou quando eu me mudei para Dubai”, relembra Azzam em entrevista por Skype à revista Diáspo-ra. “Eu não me preocupo com as pessoas aqui em Dubai como me preocupo com meu próprio povo.”“O Beijo”, uma pintura de dois amantes entregues em um beijo cercados por en-tornos dourados bizantinos, é uma im-agem que evoca amor, desejo e prazer - algo muito distante dos prédios destruí-dos na Síria. Essa obra foi a última de uma série de fotografias que ele criou utilizan-do pinturas famosas. Azzam afirma ter se inspirado na declaração do artista espanhol Francisco de Goya sobre sua pintura “Três de Maio de 1808 em Madri”, na qual ele diz que 80 pessoas foram mortas só naquele dia nas ruas da Espanha. “No nosso país, te-mos o Três de Maio todos os dias. Isso me fez pensar em como fazer uma declaração artística com sensibilidade sobre o que to-dos vêem todos os dias”, explica o artista.
Com essa ideia, ele começou a escolher pinturas icônicas relacionadas ao mesmo tema. “Mona Lisa”, “O Grito” e então “O Beijo”. Azzam já era um artista consagrado em seu país. No começo trabalhava com pintura a óleo e mudou lentamente para design gráfico, para gerar alguma renda, diz ele. Ele afirma que após o começo das revol-tas no Mundo Árabe se tornou uma pessoa diferente. “Você vê coisas que nunca imag-inou ver. Como, por exemplo, a morte estar perto todos os dias e isso se tornar normal”,
Como artista de grafite, Azzam se diz lim-itado em suas opções de técnicas, já que o grafite é estritamente proibido em Dubai. Em vez disso, Tamman faz stêncils [forma de grafite de aplicação rápida, com uma tela] em seu estúdio e manda para fora do país, onde seu trabalho é exibido em prédios em diferentes cidades, mais recentemente na ci-dade de Saraievo. “Meu sonho é ver meu trabalho de verdade em meu próprio país,” acrescentou. Tamman Azzam diz ter certeza de que não poderá voltar ao seu país por pelo menos
Exportando stêncils
dez anos. Ele teme que a situação esteja se deteriorando e que as potências internacio-nais usem a Síria para seus próprios objeti-vos. Nesse meio tempo, ele mantém vivo o son-ho de seu país nas histórias que conta para sua filha de oito anos. Ele e sua esposa pas-sam parte do tempo tentando explicar a situação para ela, além de explicar como, ainda que esteja perto, Dubai parece ser um mundo distante. A dificuldade aumenta, diz ele, quando não há nada de ruim acontecen-do em Dubai.
o dia 5 de setembro de 2011, a vida de Tammam Azzam mudou para sempre. N
Artista plástico sírio refugiado em Dubai explica as mudanças em sua forma de criar e em como não consegue deixar de produzir para “fazer uma declaração
artística com sensibilidade”.
Foto divulgação: Tammam Azzam Fotos divulgação: Tammam Azzam
sobre os ataques de 13 de novembro em Paris. Nesta fase ainda de conjec-turas, muito se fala do passaporte de um refugiado sírio encontrado junto aos restos mortais de um dos terror-istas que se explodiu do lado de fora do Stade de France (estádio multi-uso construído na França para a Copa do Mundo de 1998). Ahmad Almoham-mad comprovadamente passou pela Grécia e pela Sérvia. Resta saber se de fato o morto era o refugiado sírio, mas pairam poucas dúvidas que o verdadeiro Ahmad teria passado pela Turquia para chegar à Grécia. Essa vem sendo a rota da grande maio-ria dos refugiados sírios que fogem desesperadamente do conflito incia-do em 2011. Desde o início do conflito na Síria até agora, cerca de 2 milhões e 200 mil sírios entraram em território turco. Aqueles com mais recursos se esta-beleceram em cidades mais afina
O drama sírio é tambémuma tragédia turca
Por Monique Sochaczewski
Kurdi, vítima de um acidente com um barco e cujo corpo foi achado numa praia do badalado balneário de Bod-rum, acabou se tornando um símbolo desses refugiados desesperados, além de uma espécie de apelo que fez com que a opinião pública internacional fi-nalmente se desse conta de um drama que os turcos – assim como libaneses e jordanianos – já testemunhavam há anos. O que faz com que não quei-ram mais ficar na Turquia e se arrisquem em barcos precários e em longas mar-cha para chegar à Europa? Por que não pegam afinal os voos baratos de em-presas de baixo orçamento para capitais europeias? De que fogem com tamanho desespero? Está cada vez fica mais difícil achar moradia e trabalho no país, frente à quase saturação de refugiados (há ain-da cerca de 300 mil iraquianos no país). Fica cada vez mais claro também que não haverá uma Síria para onde voltar e então ficar próximo ao país natal, na esperança de que ele se acalme, deixa de fazer sentido. Vale lembrar ainda que o inverno se aproxima.
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das culturalmente, como Mardin, no sudeste turco. Outros se assentaram em cidades relativamente próximas à fronteira, como Gaziantep, inflaciona-ndo os preços de imóveis na região. Com o tempo, começaram a chegar aqueles com menos recursos e se espalharam por todo o país, chegan-do mesmo em Istambul, onde não é raro ver refugiados vendendo miu-dezas, se exibindo como dançarinos ou músicos em troca de moedas em locais turísticos da cidade como Sul-tanahmet e Istiklal Caddesi, ou mes-mo pedindo esmolas. Milhares vivem ainda nos mais de vinte campos de refugiados. Dois terços desta popu-lação é de mulheres e crianças. Nos últimos meses, porém, muitos refu-giados já não buscavam mais se as-sentar na Turquia, mas passaram cada vez mais a usá-la como passagem para chegar à Europa. Ultrapassaram a pé as fronteiras com a Grécia e a Bulgária, ou buscavam desesperada-mente chegar às ilhas gregas em em-barcações precárias. O menino Aylan
território turco não é exatamente nova. Há um longo passado otoma-no de acolhimento de refugiados: judeus expulsos da Península Ibérica no final do século XV, em fuga dos pogroms russos no final do XIX e também do nazismo; circassianos sobreviventes de massacres no Cáucaso; nacionalistas poloneses e húngaros no século XIX; russos
Os refugiados, porém, vão a pé ou de barco para a Europa por causa da legislação que combate a imigração ilegal. Com base nela, as empresas aéreas que transpor-tarem imigrantes sem documen-tação adequada devem pagar todo o custo de levá-los de volta ao país de origem. Os refugia-dos, portanto, não passariam dos check ins nos aeroportos. Fogem com tanto desespero, so-bretudo, dos ataques de bombas de barril perpetrados pelo gover-no de Bashar al-Assad e aliados. Fogem também do grupo armado Estado Islâmico que, ao contrário do que este anuncia, não demon-stra com seu pretenso califado ser uma alternativa de interesse da população síria.
Os que ficam na Turquia encaram diversas dificuldades, desde a lida do governo em relação a estes até atritos cres-centes com turcos. Trata-se de uma crise multinível. Se por um lado o governo turco vem arcando com a quase totalidade dos custos da absorção dos refugiados (a ajuda internacional, sobretudo europeia, tem começado a chegar mais am-plamente nos últimos meses, por conta da crise no último verão de lá), por outro os faz vivenciar uma espécie de limbo jurídico. Os sírios em território turco, apesar de claramente serem refugiados são chamados de “hóspedes”. A Turquia assinou a Convenção dos Refugiados de 1951 com limitação geográfica, só aceitando como refugiados os que vinham da Eu-ropa. Se os sírios forem reconhe-cidos como refugiados o Estado teria que arcar mais amplamente com sua absorção e afins. Re-cebem proteção temporária, mas não têm garantidos residência legal e permanente, e melhores perspectivas de emprego. Vale ressaltar que apesar de dramática, a questão atual dos refugiados em
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brancos quando da Revolução de 1917, entre outros tantos. A Repúbli-ca da Turquia também foi fundada com refugiados turcos étnicos ou muçulmanos oriundos de Salônica, da Bulgária, de terras russas e com o fim da Guerra Fria acolheu búlgaros e bósnios. É importante reconhecer o importante papel que o Império Otomano no passado e a Turquia no presente representaram no acol-himento a refugiados que fugiam e fogem desesperadamente de ex-pulsão, perseguição, massacres e guerras. Neste exato momento o país vive uma fase de grande tensão
em relação aos curdos e os te-mores de que a tênue democra-cia perca mais forças ainda. Não há, porém, como não reconhecer o importante papel do país – do governo e da sociedade civil - em relação aos refugiados. Embora não se possa também esquecer o quanto o fato de ter permitido a porosidade em sua fronteira tenha acabado por ajudar o Esta-do Islâmico a receber recrutas, eq-uipamentos e armamentos, bem como escoar petróleo. O drama sírio é também enormemente um drama turco.
companhamos ainda as in-vestigações que trarão res-postas mais confiáveisA
Por conta de uma convenção assinada em 1951, a Turquia mantém os refugiados num limbo jurídico e os trata oficialmente por “hóspedes”.
É importante reconhecer o papel que o Império Otomano, no passado, e no presente a Turquia, representaram no acolhimento a refugiados fugidos de perseguições, massacres e guerras.
Há passagens de empresas como a Pegasus por cerca de 50 euros, para as princi pais cidades europeias, muito mais baratas do que os cerca de 2.500 euros que pagam a atravessadores.
“As empresas aéreas que transpor-tarem imigrantes sem documentação ade-quada devem pagar
todo o custo de levá-los de volta”
Fonte imagens: UNHCR
o elevador constantemente quebrado da ocupação Leila Khaled, , organizada pelo mov-imento Terra Livre juntamente com o Mopat (Movimento Pal-estina para Todos), no bairro da Liberdade (SP), a impressão que se tem é de tranquilidade. Ao contrário dos dias da sem-ana (quando os habitantes são constantemente procurados por jornalistas atrás de opin-iões sobre os acontecimentos na guerra civil síria), os domin-gos têm sido o único momento de descanso para os cerca de cem refugiados – quase todos palestinos que moravam ou nasceram nos campos de refu-giados. Há mais de três meses sem assistência direta do Esta-do, compartilham apartamen-tos, sonhos de emprego e ex-periências de choque cultural causadas por uma adaptação às pressas nos valores brasile-iros. Entre novas e antigas angústias que carregam consigo, a bus-ca por trabalho é a que mais preocupa os novos habitantes da capital paulista. Os espaços de 50 metros quadrados dos quartos - a maioria sem di-visórias - são divididos por pes
A trajetória de fuga dos con-flitos de Othman teve início quase que ao mesmo tempo que a guerra, em 2011. Por um ano e meio ele se refugiou no Líbano, pois a maior parte do campo de refugiados Yarmouk, no qual morava, fora destruí-do. Exatos quatro anos após o início da guerra civil, em 20 de março de 2015, ele chegava em São Paulo em busca de opor-tunidades e a pedido do irmão.
Hoje ele trabalha como cabe-leireiro durante a semana em uma barbearia no bairro do Sa-comã. A irmã e a mãe ainda es-tão na Síria. Enquanto ajuda o irmão (chefe de cozinha) a ser-vir petiscos árabes como faláfel e homus em um bar (foto ao lado) com música ao vivo no bairro do bexiga, ele conta que “os brasileiros foram muito re-ceptivos, tanto pessoalmente quanto com meu trabalho”.
soas com os mais varia-dos passados, opiniões e formações, desde aque-les sem nenhuma for-mação superior, como bar-beiros e cozinheiros, até um ex-gerente de hotel de luxo em Abu Dhabi (Dubai) e um designer de interiores e pro-fessor de escultura. Sejam especializados ou não, as oportunidades que lhes apa-recem quase que invariavel-mente estão
Celular, comida, e busca por trabalho
Sem uma política institucional adequada, refugiados sírios e palestinos dividem ocupação sem teto em São Paulo.
relaciona das com o setor de bares e restaurantes de comida árabe, um nicho encontrado e desenvolvido por imigrantes sírio-libane-ses que estão na cidade há duas ou três gerações. É o caso do sírio-palestino Rami Othman, de 30 anos, por exemplo. Cabeleireiro com mais de cinco anos de experiência, ele vive há oito meses na ocupação.
Celular na mãoEm um smartphone bastante usado, Rami mostra à report-agem fotos enviadas por seus amigos que ainda vivem sua ci-dade natal. Yarmouk já teve 200 mil habitantes. Hoje, com 10% da população, apenas prédios destruídos e escrombos tomam conta da pequena tela. Para a maioria dos estrangeiros na ocupação, os aparelhos móveis são itens indispensáveis para
Ao subir pelas escadas do prédio de dez andares com A
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Por Alexandre Facciolla
obter informações. Todos eles utilizam a ferramenta para conversar e ter notícias de amigos e parentes que ficaram no território defla-grado. O artista plástico e músico Abed Alsalm_Alsyyed, de 53 anos, recebeu DIASPO-RA em um dia de semana, quando ele começara a tra-balhar como designer de interiores há nos quartos).
exatos dois dias em um es-critório na zona oeste da capital paulista. Antes, ele assava doces em um for-no potente instalado no ambiente aberto do aparta-mento (apenas alguns apar-tamentos com crianças têm tapumes nos quartos).De cabelos encaracolados e aparentando cansaço do dia de trabalho, Abed tira o paletó enquanto mostra
Foto Diego Torrão Foto: Diego Torrão
alguns de seus trabalhos e fuma cigarros paraguaios um atrás do outro. Ele re-sponde com toda a paciên-cia às perguntas digitadas e traduzidas por um serviço de internet de seu celular. É com ele que Abed conversa com a filha, que também é artista plástica na Síria. Se-gundo ele, “essa guerra suja e a imigração forçada têm o consentimento do presiden-te”.Partindo de uma análise pró regime, o refugiado sírio e único não palestino do pré-dio, Jad AbDulhamid, de 40 anos, é um personagem à parte. Mesmo expulso por conta da guerra, ele é talvez o único morador do prédio que não só defende o re-gime de Bashar Al Assad, como afirma que “amo meu presidente”. Segundo ele, que mora no Brasil há cinco meses – dos quais três na ocupação – a principal hipó-tese para a continuidade da guerra é que “Israel quer que a Síria seja enfraquecida”.
*Assad, em árabe, é leão. Hafez al-Assad, pai de Bashar al-Assad adotou esse nome durante os anos 50 e fazia parte do Ba´th (partido hegemôni-co).
da dificuldade de comuni-cação e da situação instável dos refugiados para con-tratá-los por salários muito baixos. Ele, que afirma ter sido gerente de hotel em Dubai por 8 anos, chegou a trabalhar 11 horas por dia, sem descanso, por R$ 1 mil. Agora, ele acredita que está melhor, trabalhando como gerente em um restaurante árabe na avenida Paulista, centro da capital.
O jovem Mohand (foto ao lado, no centro), de 22 anos, passou por uma situação bem parecida. Após a morte do pai, taxista que foi atingi-do por uma bomba, ele re-solveu partir sem conhecer nada ou ninguém no Brasil. Segundo Mohand, apesar do medo de ficar muito tem-po sem trabalho, ele diz não querer trabalhar em nenhum lugar árabe. Isso porque tra-balhou alguns meses para empresários libaneses que simplesmente não pagavam a mão de obra. Hoje, vive com sua mãe, irmã pequena e o irmão na pequena comu-nidade palestino-sírio que tenta se reerguer.
Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, or-ganizações religiosas como Mesquitas e Igrejas Cristãs ligadas à comunidade árabe organizam o acolhimento e doações para os recém-che-gados refugiados sírios.
Dificuldades com a velha comunidade
Sempre sorridente e com um desenho de leão* acima de sua cama (“sou do signo de leão”), Jad apontou uma reclamação: há um certo preconceito por parte dos árabes já estabelecidos na cidade, pois se aproveitam
Fotos: Alexandre Facciolla.
oportunidades eram muito limitadas. Se tivéssem nomes que remetessem a árabes, raramente encontravam trabalho. Até mesmo a aparência árabe trazia problemas. Uma piada popular mesmo entre jovens fran-ceses bem educados dizia que os únicos árabes bons eram aqueles afogando no Sena. Como muitos do centro de Paris, nunca tive motivos para me aventurar em Banlieus - subúrbio da cidade onde os conjuntos habitacionais do governo protegiam o centro dos pobres vin-dos do gueto, em sua maioria de origem ar-gelina.
Por que nossa juventude está sejuntando ao Estado Islâmico?
Jornalista avalia os caminhos e possíveis saídas para os países da União Europeia e a incógnita das causas que faz o jovem de ascendência árabe com plena cidadania
aderir ao discurso do Estado Islâmico.
inclui a França, fazem desde agosto de 2014. Pouco foi conquistado com isso, e, aparente-mente, o Daesh usou esses ataques como pro-paganda para atrair mais e mais seguidores, muitos da UniãoEuopeia. A França teve problemas em integrar sua população muçulmana por décadas. Após a Revolução Iraniana de 1979, minha família foi forçada a deixar o Irã, e eu cresci em Londres. Mas, durante a década de 1980, eu visitava minha avó francesa em seu apartamento, per-to da Torre Eiffel. Na casa dela, estava bastan-te protegida da realidade que as minorias en-frentavam no país. Eu invejava meus amigos iranianos (os quais os franceses se referem como “persas”) que cresciam na França, em oposição à Inglaterra. Nós éramos muito integrados à cul-tura ocidental, por termos nascido em família ocidentalizadas, mas meus pares/conterrâ-neos? Esses podiam se definir como franceses sem serem questionados por isso. Eu fui morar na Inglaterra com 5 anos de idade, e tinha poucas memórias do Irã, mas não podia me denominar inglesa sem que me perguntassem “sim, mas originalmente você vêm de onde?”á adolescente, sempre pensava que preferia ter crescido na França. Em meados da década de 1990, me mudei para lá e fiquei chocada em como eram as relações raciais. Percebi que minha visão sobre a França sempre havia sido muito otimista. Minha geração de 20 e poucos anos de ascendência árabe reclamava que as
entre países. A maioria dos muçulmanos do mundo formam sua cultura não apenas pelo Islã, mas numa confluência do país, religião e influências da mídia internacional. Alguns deles atraídos pelo Daesh se radicalizaram em prisões, outros pela internet, onde se enfureceram com as invasões ocidentais em lugares percebidos como “terras islâmicas” e são, na sua maioria, marginalizados em suas próprias sociedades. A essa combinação de fatores, somava-se a retórica em torno de cada ataque terrorista carregado em nome do Islã. Com um dis-curso subsequente de que toda a população muçulmana deveria pedir desculpas pelos atos de poucos extremistas radicais, jun-tado aos bombardeio a lugares no mundo islâmico, levara esses jovens diretamente àqueles que buscavam polarizar o mundo, mergulhando no mundo Islâmico e na luta contra o que crêem ser os “infiéis que quer-em destruí-lo”. A política externa europeia agravou a del-icada situação da juventude marginaliza-da. Esta política inclui desde ataques com drones ao Paquistão e ao Iêmen, passa pelo apoio constante à Arábia Saudita (ignoran-do o apoio contínuo deste país a grupos islâmicos radicais), até o armamento na Síria de grupos de oposição desconhecidos, cuja maioria são grupos radicais sunitas. Toda essa conjuntura, unindo-se com a invasão do Iraque, deu a esta juventude o que acreditavam ser um propósito de vida. E uma oportunidade de lutar contra o que consideram ser o “mal”. Trabalhar em torno de uma paz viável na Síria poderia ajudar, mas talvez seja preciso que a Europa comece em casa a buscar uma maneira de assegurar ao menos à nova ger-ação de imigrantes pobres a sentir que eles têm uma participação em nossa sociedade, para que eles não queiram nos destruir.
As centrais de inteligência acreditam que mais de quatro
mil jovens deixaram a Europa pela Sìria para jun-
tar-se ao Daesh.temor, mas como a muitos, também de um terrível sentimento de inevitabilidade. Conforme as redes sociais e os noticiários tra-ziam informações sobre as vítimas do ataque de Paris, era assustador ver os rostos jovens que apareciam nas notícias. Como jornalista e diretora de documentário britânica de origem francesa e iraniana, cobri notícias no Oriente Médio por mais de 15 anos, desde os ataques de 11 de Setembro (2001), quando pareceu que naquele dia o mundo mudaria para sem-pre. Hoje, olhando para trás, vejo que sem dúvida mudou. Enquanto a França sepulta seus 129 mortos, o mundo luta para entender porque esse terrível evento aconteceu e o que pode ser feito sobre a ameaça que o Daesh*, o auto-denominado Estado Islâmico (EI), representa, não só para o Ocidente, mas para o mundo inteiro. Na Europa também lutamos para entend-er por que nossa juventude se sente atraída em juntar-se a uma organização que muitos de nós vemos como uma monstruosidade, e ainda voltam para atacar seus próprios países, nossos países. As centrais de inteligência acreditam que mais de quatro mil jovens deixaram a Europa pela Sìria para juntar-se ao Daesh. O presidente francês, François Hollande, rap-idamente declarou estas práticas como “atos de guerra”, e, dentro de 48 horas, enviou aviões para atacar a fortaleza do Daesh em Raqqa (cidade do centro-norte da Síria). Mas essa estratégia apenas repete o que os alia-dos, liderados pelos Estados Unidos e que
uando surgiram as notícias do dia 13 de novembro sobre os ataques em Paris, meu coração se encheu deQ
Brutalidade policial
A brutalidade policial, como demonstrada no filme divisor de águas “O Ódio”, ajudou a segregar a juventude. Mais recentemente, a proibição da Burca foi vista como um ataque direto à cultura desses jovens. O crescimento da Frente Nacional, partido de extrema direita francês sob a direção de Marie Le Pen (foto) segregou não só os muçulmanos, mas muitas minorías étnicas. Isso não é, de forma alguma, uma justificativa para o massacre ocorrido em Paris. A França se orgulha por ser um Estado laico e deve ser parabenizada por isso. As es-colas públicas não permitem nenhum aparato religioso, e mesmo tribunais religiosos não são permitidos. Infelizmente, para muitos jovens muçulmanos desfavorecidos, a interpretação estrita do secularismo se contrapõe com a base do Islã, uma religião a qual requer a seus seguidores vivam sob seus preceitos acima de outras instituições estatais. Esse não é, no entanto, o “choque de civilizações” previsto por Samuel Hunting-ton, (influente cientista político). O autor preconiza que as próximas guerras em um mundo pós-queda do muro de Berlim se daria entre culturas, em especial o conflito entre o Islã e países ocidentais, e não mais
* Daesh: Daesh é a expressão literal não traduzida do auto-denominado Estado Islâmico ou ISIS, a sigla de Is-lamic State of Iraq and Syria. Passou a ser utilizada por alguns Estados europeus e EUA como forma de repúdio simbólico, por não reconhecer o grupo como um Estado e nem como porta-voz do Islã.
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Por Leila Lak
Muitas visões: Os Refugiados Sírios no Brasil
O número de refugiados sírios no mundo figura em torno de 4 milhões de pessoas.No Brasil, o número oficial é de 2100 pessoas.
Por Igor Paes Leme Lellis do Lago
atores sociais e as mais diversas variáveis de sentido para o conflito, o que implicaría na incerteza em relação a sua duração e aos seus desdobramentos. Sob violência cada vez mais intensa, criou-se um quadro de in-segurança crescente para milhares de pes-soas que se viram imersas em um conflito ar-mado de grandes proporções. Nesse conflito que completará cinco anos, a Síria se tornou cenário de uma grave crise humanitária com fortes implicações regionais.
A constante sensação de insegurança resul-tou no deslocamento de populações, tanto no interior da própria Síria como para fora do país. De acordo com dados da ONU e do Observatório de Direitos Humanos da Síria (agência de comunicações específica sobre o tema e gerida por um homem sírio baseado na Inglaterra há 15 anos), estima-se que
esde 2011 a Síria presencia uma guerra civil em larga escala, en-volvendo um grande número deD
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Ao chegarem no Brasil, os desterrados insta-lam-se principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro. Aqui, reconfiguram suas vidas e produzem diferentes tipos de memória so-bre a Síria, se posicionando de acordo com as múltiplas interpretações sobre a guerra que devasta seu país de origem.
Adel Bakkour, jovem refugiado de 22 anos, estuda química na Universidade Federal do Rio de Janeiro(UF-RJ), conversou com a Re-vista Diáspora portando orgulhoso em seu pescoço um pingente com os contornos do território sírio sob o pano de fundo da ban-deira oficial síria.
Bakkour afirma que chegou ao Brasil acom-panhado de seu irmão e por intermédio da irmã que já vivia no Brasil. Adel possui uma interpretação peculiar sobre a guerra: sen-do ateu e tendo participado das primeiras manifestações contra o regime de Bashar al Assad, Adel vê a origem do conflito em uma questão sócio-política.
Ele avalia que as partes mais marginalizadas da população vão às ruas contra o regime sob o olhar cético dos mais abastados. En-tretanto, Bakkour entende que a religião se apropria deste momento, reconfigurando e dando novos sentidos para o conflito. Se-gundo ele, a política deve se “utilizar da re-ligião para atingir seu ponto”.
Já em São Paulo, homens e mulheres recém-chegados da Síria são acolhidos prin-cipalmente por instituições religiosas muçul-manas e cristãs. A Oásis Solidário, organi-zação não-governamental (ONG) originada na Mesquita do Pari, tem sua sede no tradi-cional bairro comercial do Brás em
entre 250 mil a 330 mil pessoas tenham morrido nos últimos cinco anos.
Com uma população total estimada em 22 milhões de habitantes antes da guerra, o país tem hoje, segundo a ONU, cerca de 7,6 milhões de deslocados internos e 3,9 milhões de refugiados no exterior.
Muitos sírios obtêm asilo em campos de refugiados situados principalmente em países vizinhos como Turquia, Líbano e Jordânia. Uma grande percentagem tam-bém reside no Iraque e no Egito, enquanto outros tentam chegar ao continente euro-peu, EUA, Canadá e países da América Lati-na, como o Brasil.
São Paulo e Rio de Janeiro: principais destinos
Muitos dos refugiados escolhem vir para cá por conta da facilidade de entrada no país, bem como à abertura do governo brasileiro em aprovar a solicitação de asilo a sírios. O país é signatário dos principais tratados in-ternacionais de direitos humanos e possui uma lei de refúgio (nº 9.474/97) que con-templa as principais resoluções regionais e internacionais sobre o tema e, com a in-tensificação do conflito no Oriente Médio, aprova todos os pedidos de refugiadoss sírios para o país.
De acordo com os dados da Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), o número de refugia dos sírios no mundo figura em torno de 4 milhões de pessoas. No Brasil, é de cerca de 2100 pessoas.
Apesar da facilidade de entrada no País, os sírios sofrem com a falta de um amparo organi-zado por parte do governo brasileiro, o que deixa
estas pessoas à própria sorte...
...ou deixados aos cuidados de instituições de cunho re-ligioso médio-oriental, como
igrejas ortodoxas e mesquitas - e da Igreja Católica, no caso da instituto Cáritas de São Paulo
e Rio de Janeiro.
rentável chamado “comida árabe”.
Apesar da facilidade de entrada no País, os sírios sofrem com a falta de um amparo or-ganizado por parte do governo brasileiro, o que deixa estas pessoas à própria sorte ou deixados aos cuidados de instituições de cunho religioso médio-oriental, como igrejas ortodoxas e mesquitas - e da Igreja Católica, no caso da instituto Cáritas de São Paulo e Rio de Janeiro.
Este contexto produz, inclusive, o desejo de muitos em tentar sair do Brasil para chegar à Europa ou, até mesmo, retornar a Síria. O ato de buscar lembranças que produ-zam um novo sentido para suas vidas no Brasil revela a esperança de construir no-vas etapas para suas trajetórias longe da violência da guerra e de sonhar com uma Síria livre.
São Paulo, local onde se manifestam a het-erogeneidade e a profusão de línguas dos seus muitos imigrantes, desde bolivianos e coreanos até sírios, palestinos e libaneses.
Apoio material e imaterial da cultura
Além de tentar auxiliar os refugiados das mais variadas formas – como a distribuição de doações e encaminhamento dos recém chegados para o primeiro emprego, o Oá-sis promove confraternizações que visam estabelecer vínculos entre os muitos re-fugiados sírios da cidade e áreas vizinhas. Estas reuniões promovem momentos para se lembrar da Síria, nas quais os refugiados buscam lembranças com intuito de recriar sentidos para suas trajetórias no Brasil. As sim, aquilo de antes era uma simples tarefa culinária em seu país de origem se transfor ma, no Brasil, em algo extremamente
Chamada para a fuga Por Liza Dumovich
Um breve recuo e me salvo, mas até quando não sei. Es-barro no corpo imóvel e caio na cama novamente. A ab-lução! Eu me levanto, entre-tanto, a chamada que ouço não é para a oração do fajr: pedem sangue pelo alto-fa-lante, alguém fora atingido e precisa de doadores. Mais uma vez não posso ir. O sol começa a dar à luz o dia, mas ainda não consi-go ver o minarete. Penso no cheiro da poeira dom-inante, na aspereza seca do dia, enjoo. As janelas ficariam melhor fechadas. Preciso fazer ablução. Corpo mole, cambaleio. Ainda tem tempo, me sirvo de mais al-guns segundos. Vou me levantar, mas a luz já é demasiada e uma nova contração das pupilas me impede de qualquer coisa. Permaneço deitada ao lado do corpo, o imóvel. Já não me lembro de quanto tempo ele está ali. Não lembro que dia é hoje. Houve estrondos, mas ultimamente é quase tudo o que se ouve. Torno a buscar a janela, o minarete ausente. Quero falar, mas o som sai seco, é a poeira, é o Côtes de l’Oronte 2006.
É 2013, abril, talvez 25.
sueco. Ignoro de onde é. Vem da Áustria e fala inglês, mas não importa. As tatua-gens, um relevo negro na pele alva, os dedos da mão esquerda tocam o chão. Parece que ele vai ficar.“Allahu akbar, Allahu akbar”. Preciso fazer ablução. Nova-mente meus olhos buscam a janela, ainda a ausência. Não, não pode ser – que dia é hoje? O vento espalha ainda mais o jornal que meu braço não alcança. Côtes de l’Oronte 2006.Os pés tocam o chão e me percorre um arrepio. Do par-apeito, não há minarete al-gum, me debruço e vou cair.
Conto | Página 27
Ilustação contra capa: Soli e Lune - Piero Fornasetti
primeiras horas me desperta a seu lado. Pouco me lembro da noite que ainda não ter-minara – páginas soltas do jornal dormido pelo chão, o chá frio em cima da mesa e a metade cheia da última garrafa de Côtes de l’Oronte 2006. Aqui dentro, o abajur é fraco; do lado de fora, a es-curidão. Procuro o minarete, mas vejo o vazio de Alepo. Por um momento, duvido de onde estou.Ele dorme como morto, pe-sado e espaçoso. O nome é italiano, mas parece um
“A llahu akbar, Allahu akbar”. A chamada para a oração das
Contexto | Página 26