esperança e objetividade_alves

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ESPERANÇA E OBJETIVIDADE: UMA CRIT ICA DA CItNCIA RUBEM A. ALVES Não será v erdade que tod a ciênc ia, no final, se reduz a um tipo de mitologia? (De uma carta de Fre ud a Einste in em 1932) . As ciências que se instauraram no mundo Ocidental têm tendido a classificar a religião como uma forma de f alsa cons- ciência e como uma fôrça conservadora. "A religião é a consciência-de-si e o como-sentir-se do homem que ou ainda não se encontrou ou que voltou a perder-se" (1) nos diz Marx. Ela é a flor com que o homem cobre a corrente que o aprisiona de forma que, não mais vendo a corrente, êle se imagina num jardim. E jardins não devem ser destrui dos. Jardins devem ser cultivados, preservados, defendidos. Em dec orrência disto, a religião te ria uma função permanentemente conservadora: os homens "devem reconhecer e aceitar como uma concessão aos céus o próprio fato de serem êles dominados, controos, possuídos". (2) Dentro de certos limites êste diagnóstico é correto. En- tretanto, creio que é necessario fazer a Marx uma reserva crítica mui to próxima daquel a que êle fez a Feuerbach. Não se pode falar de uma essência d o homem, em abstrato (3) De forma idênt ica, não se pode falar de uma essência da reli- gião, como se ela fôsse um fenômeno si mples, permanente- mente idêntico consigo mesmo, exercendo sempre as mesmas funções . (1) Man & Engels, On Religion (New York, Schocken Books, 1%4), p. 4 1 . (2) Ibid., pp. 45 (3) Ibid., pp. 4 1 -42 TRANS I FORM l AÇA0 1 79. 90

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  • ESPERANA E OBJETIVIDADE : UMA CRITICA DA CItNCIA

    RUB EM A. ALVES No ser verdade que toda cincia, no final, s e reduz a um tipo de mitologia ? ( D e uma carta d e Freud a Einstein em 1932) .

    As cincias que se instauraram no mundo Ocidental tm tendido a classificar a religio como uma forma de falsa conscincia e como uma fra conservadora. "A religio a conscincia-de-si e o como-sentir-se do homem que ou ainda no se encontrou ou que voltou a perder-se" ( 1 ) nos diz Marx. Ela a flor com que o homem cobre a corrente que o aprisiona de forma que, no mais vendo a corrente, le se imagina num jardim. E jardins no devem ser destruidos . Jardins devem ser cultivados, preservados, defendidos. Em decorrncia disto, a religio teria uma funo permanentemente conservadora: os homens "devem reconhecer e aceitar como uma concesso aos cus o prprio fato de serem les dominados, controlados, possudos". ( 2 )

    Dentro de certos limites ste diagnstico correto. Entretanto, creio que necessario fazer a Marx uma reserva crtica muito prxima daquela que le fez a Feuerbach. No se pode falar de uma essncia do homem, em abstrato ( 3 ) De forma idntica, no se pode falar de uma essncia da religio, como se ela fsse um fenmeno simples, permanentemente idntico consigo mesmo, exercendo sempre as mesmas funes .

    ( 1 ) Man & Engels, On Religion ( New York, Schocken Books, 1 %4 ) , p. 4 1 . (2) Ibid., p p . 44-45 ( 3 ) Ibid., pp. 4 1 -42

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    verdade que a religio frequentemente dominada pelos sacerdotes ( 4 ) . Mas necessrio ter em mente que os profetas que se levantam contra os sacerdotes - tambm falam em nome da religio. Seria possvel identificar sacerdotes e profetas? A sociedade nunca o fez. Por que? Por estupidez? No creio. Antes, por ter ela um agudo senso de discriminao entre amigos e inimigos. Os sacerdotes se movem pelos corredores e salas dos palcios. Os profetas so aprisionados em calabouos. O fenmeno religioso ambguo e ambivalente . A prpria religio reconhece ste fato .

    Ela se refere a deuses e demnios, f e idolatria - o que indica que ela se d conta das dinmicas contraditrias que se movem no seu prprio meio. verdade que a religio tem se prestado a uma funo sacralizadora do status quo, sendo assim a ideologia de uma ordem que se estabeleceu pelo poder. Mas verdade tambm que a religio, em nome dos ideais de justia, de fraternidade e amor, tem sido uma fonte de crticas profticas de ordens instauradas, seja de direita, seja de esquerda ( 5 ) . A "esperana do Reino de Deus" , qualquer que seja a forma que ela tenha assumido, tem sido sempre um horizonte de expectativa sob cuja luz as rotinas coercitivas do cotidiano que caracterizam todas as ordens sociais estabelecidas se revelam como um absurdo, um negativo a ser negado .

    As cincias em geral e as cincias do comportamento humano em particular, entretanto, no tm aplicado a si mesmas a mesma crtica que elas lanaram contra a religio. Os cientistas tendem a operar a partir da "pressuposio humana mas elitista de que os outros crem por causa de necessidades enquanto que les crem em decorrncia dos ditames da lgica e da razo ( 6 ) " . Uma vez aceita tal pressuposio,

    (4 ) No estou pensando no sacerdote como um clrigo. Tenho em mente a categoria sacerdote, tal como usada como Leszek Kolakawski. " Sacerdcio", diz le, "no simplesmente o culto do passado contemplado atravs de olhos contemporneos, mas a sobrevivncia do passado sob uma forma no t ransformada. f:le , assim, no apenas uma certa atitude inteJ.ectual para com o mundo, mas na verdade, uma forma da existncia do mundo, ou seja , a cont inuao de uma realidade que no mais existe" . "The Priest and The Jester" , em The Modern Polish Mind (ed. Maria Kuncewicz ) ( New York, Grosset & Dunlap, 1 963 ) , p. 326 .

    ( 5 ) Em outras palavras, creio que a religio t em, e m ocasies distintaos, tido funes ora ideolgicas ora utpicas , no sentido que K. Mannheim d a estes trmos. Ver K. Mannheim, Ideologia e Utopia ( Rio de Janeiro, Editora Globo, 1 954) , pp. 1 79 e 5S .

    (6) Alvin Gouldner, The Coming Crisis of Western Sociology (New York, Avon Books, 1 97 1 ) , p. 26 .

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    torna-se impossvel perceber que, num mundo que aparentemente se secularizou, a cincia passou a desempenhar, em grande medida, as funes dantes desempenhadas pela religio tradicional em decadncia. minha hiptese que a cincia se constitui, num mundo em que as religies tradicionais perderam a sua respeitabilidade, numa "alternativa funcional" ou num "equivalente funcional" da religio ( 7 ) Pesquisas realizadas indicam que uma porcentagem significativa de cientistas do comportamento consideraram, num perodo anterior de sua vida, tornarem-se clrigos de uma religio ou outra ( 8 ) . Por que abandonaram a religio e se "converteram" cincia? A resposta mais fcil seria que les romperam com a falsa conscincia, disseram adeus s suas iluses e ingressaram na instituio que detm o monoplio dos mtodos de se ver corretamente .

    Parece-me, entretanto, que tal explicao altamente ideolgica e . . . religiosa. Na verdade, um convertido religioso explica sempre nestes trmos a sua prpria experincia ! Temos de considerar uma outra hiptese : de que a substituio da religio pela cincia tenha sido algo semelhante troca de uma mgica fraca por uma mgica forte, de uma mgica destituida de status e progressivamente marginalizada, por uma mgica que d status e que ocupa o lugar central da sociedade.

    Uma das ironias da histria a alternncia das funes que certos tens culturais exercem. Como K. Mannhein observa, universos simblicos que num certo perodo histrico funcionaram de forma utpica passam a exercer, no perodo que se segue, uma funo conservadora ( 9 )

    Exploses carismticas se domesticam em rotinas buro-

    ( 7 ) Ver R. K. Merton, Oon Theoretical Sociology (New York, The Free Press, 1 967 ) , pp . 87-90 .

    (8) A. Gouldner, op . cit., p . 24 . Referindo-se aos fnndadores da sociologia le afirma : "Who and what is the sociologist ? In the end, ali of them made it clcar that they were oent on establshing a new religion, a relgion of hwnanity, and that they beli eved i ts pri esthood would be sociologists. In short, the sociologist was first conceived as a kind of pr iest" . Temos de nos perguntar se o aplo do marxismo se deve, em ultima anl ise, combinao de rigor de anlise com paixo religiosa. Creio que temos de considera'r a observao d e Camus de qUe "Marx foi o nico a entender que uma religio que no abraa a transcendncia deveria ser chamada propiamente de polt ica". ( The Rebel) ( New York, Vintage Books, 1 956) , p . 1 96 .

    (9) K . Mannheim, op. cit.! p . 230 e ss .

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    crticas, profetas se metamorfoseiam em sacerdotes, revolucionrios, uma vez que no poder, se tornam conservadores . A cincia, sem dvida alguma, exerceu, uma funo altamente crtica e revolucionria quando do seu surgimento. Sua metafsica, seus mtodos e suas alianas sociais colidiam frontalmente com aqueles da ordem hierrquica, religiosa e esttica dominante. Entretanto, uma vez demolido ste mundo, a cincia perdeu, progressivamente, o seu gume crtico. O seu poder manipulado r cresceu na razo inversa do seu poder questionador. Com o advento da civilizao utilitria e pragmtica, a cincia, como especialista na manipulao de coisas e pessoas, tornou-se numa pea indispensvel deste todo. A nossa sociedade no se tornou mais cientfica por ter mais cientistas, observa Paul Goodmann. O contrrio a verdade. Temos mais cientistas hoje que durante todo o resto da histria porque os intersses econmicos conseguiram colocar a cincia a seu servio. A sociedade no se tornou mais cientfica. A cincia se transformou numa funo explorvel ( 10 ) .

    Estou sugerindo, segundo linhas j indicadas por Freud, que perfeitamente possvel inverter os "papis" que religio e cincia tm representado no "script" histrico-social criado pela cincia : a cincia pode muito bem ser vista como um fator funcional e legitimador das ordens instauradas, e a religio pode ser exatamente um fator disfuncional e portanto, ainda que num nvel simblico, crtico da realidade.

    Segundo Freud, a religio nasce fundamentalmente de uma recusa, por parte da conscincia, em aceitar a "realidade" . ela um ato de rebelio pelo qual o princpio do prazer nega realidade instaurada o status de realidade, substituindo-a por um mundo imaginrio que realmente represente os impulsos erticos reprimidos pela civilizao, mundo ste que passa a funcionar, para a conscincia, como realidade ( 1 1 ) Ora, tal atitude da conscincia - a que Freud denominou neurose - e as construes que dela emergem, so segundo o pai da psicanlise, fundamentalmente disfuncionais frente sociedade. Por isto, elas devem ser reprimidas ou pela fra ou voluntariamente . "Na obra da civilizao", le nos diz,

    ( 1 0)

    ( 1 1 )

    Paul Goodmann , "La Moralidade de la' Tecnoloo-ia C ient i fica" em Testimonium, X I I ( Montevideo, Uruguay) .

    " ,

    Ver S. Freud. "Animais, Magic and the ommipotence of Thought" , em Totem and Taboo, ( New York, Vintage Books, 1 946) , pp. 98- 1 29 e The Fufure of an Illusion ( Garden City, NY, Doubleday & Co., 1 %4) .

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    " tanto impossvel operar sem o controle das massas por uma minoria, quanto dispensar a coero" . Os arranjos da civilizao esto em direta oposio s exigncias do amor. As massas, "preguiosas e destitui das de inteligncia" , no se apercebem disto . Por isto "no sero convencidas por meio de argumentos acrca da inevitabilidade da represso dos instintos" ( 1 2 )

    Em outras palavras : elas no se ajustaro, no se tornaro funcionais, voluntariamente. ste resultado se conseguir pela mediao de uma liderana esclarecida. Existe um grupo que j abandonou a religio e o comportamento disfuncional que ela implica e se ajustou adequadamente s regras da civilizao : os cientistas . "A civilizao tem muito pouco a temer das pessoas educadas e dos que trabalham com os crebros . Nelas os motivos religiosos so substitudos, sem problemas, pelo comportamento civilizado i . e . , o comportamento segundo as regras do princpio da realidade e pelos motivos seculares. Alm disto estas pessoas so, elas mesmas, veculos da civilizao ( 1 3 ) "

    O que Freud nos diz extremamente interessante porque le inverte o que frequentemente afirmado. Diz-se que a religio, por ser uma construo da imaginao e uma fuga da realidade, essencialmente alienante e produz um comportamento funcional e conservador.

    A cincia, ao contrrio, por se dedicar anlise objetiva do real, o pressuposto para o pensamento e o comportamento crticos. Segundo o pai da psicanlise, a verdade exatamente o oposto . Somente o pensamento no objetivo, isto , que se recusa a manter-se dentro dos limites do dado e toma a imaginao como o seu horizonte de referncia, pode ser disfuncional. Somente o neurtioo tem coragem para agir em oposio s regras estabelecidas. Concluiramos que uma transformao qualitativa da realidade (em oposio sua mera expanso quantitativa) exigiria que o pensamento desiderativo, no objetivo, estabelecesse os pontos de referncia imaginrios para a ao. O pensamento objetivo, ao contrrio, por se manter dentro dos limites do dado, no tem, enquanto tal, condies para se referir a um possvel que seja descontnuo em relao ao atual. A cincia, assim, no se tornou conservadora e funcional por acidente. o prprio esprito da cincia,

    ( 1 2 ) Ibid., p. 5-6 . ( 1 3 ) Ibid., p. 63-64 .

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    tal como foi definido na civilizao Ocidental, que faz com que ela seja necessriamente funcional .

    Esta ltima afirmao necessita ser elucidada . Comecemos destacando trs das facetas mais importantes, a nosso ver, do esprito da cincia. So elas : ( 1 ) o dogma da objetividade, (2 ) o dogma da estrutura matemtica do objeto e (3 ) o dogma da verificabilidade.

    ( 1 ) o dogma da objetividade afirma que o conhecimento um ato pelo qual a conscincia reflete ou reduplica o objeto que dado exteriormente e independente dela. Duas pressuposies de natureza metafsica aqui se escondem. A primeira refere-se natureza da realidade : ela dada, independe da conscincia, e autnoma, isto , contm em si a lei do seu prprio ser .

    Parece-me que tais pressupostos so adequados para qualificar o universo fsico. Estrelas, eclipses, pedras, vulces -estas so realidades que existem quer queiramos ou no. O ato de tomar delas conscincia em nada altera a sua presena no universo. Muito antes que o homem tivesse surgido e muito depois de haver le desaparecido, a sua presena esteve e estar a, indiferente e no alterada pelo nosso olhar .

    A segunda pressuposio tem a ver com o conhecimento. O que conhecer? Se a realidade dada, independe da conscincia e autnoma, conhecer nada mais que um ato de voluntria submisso da conscincia ao objeto. O objeto ativo. A conscincia passiva. O dado impe-se. A conscincia ajusta-se.

    Exige-se, portanto, que a conscincia que observa coloque a si mesma entre parntesis; que a lgica que lhe imanente -a lgica do princpio do prazer e das emoes - seja reduzida ao silncio . E isto porque a lgica da imaginao, como Sartre muito bem observa (14 ) , a lgica da magia : ela pressupe que a realidade poderia ser qualitativamente diferente do que ela . A esperana de que a realidade possa ser qualitativamente diferente do que , assim, nenhum fundamento real possui. A realidade fria e determinista, indiferente s aspiraes da vontade. Se encontramos tal esperana na conscincia, portanto, isto s se pode dever a uma pertubao no

    ( 1 4 ) Jean-Paul Sartre, The Psychology of Imagination ( New York, W

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    ato cognitivo. O ideal da consclencia cientfica, assim, a conscincia totalmente receptiva, passiva, que s registra e trabalha o objeto e as suas determinaes .

    (2 ) Percebeu-se desde o incio, entretanto, que tal critrio insuficiente. A conscincia apreende, como pertencendo ao objeto, uma srie de informaes que embora paream provir dle, na realidade no se referem s suas determies. Ao olhar para uma flor ela me parece colorida, tem um perfume, contm um nctar adocicado, e quando o vento passa por ela ouo um leve ruido. A cincia se apressou a indicar que tais qualidades no pertencem realmente ao objeto. No so qualidades da coisa. So antes interpretaes psicolgicas, tradues mentais de outras qualidades mais fundamentais. Gosto, cheiro, som, cor, no existem no objeto mas na mente. Estas so "qualidades secundrias" , que devem ser desprezadas . Variam de pessoa para pessoa. No so abertas verificao intersubjetiva. O que importa so as qualidades primrias - que constituem o substrato mesmo do objeto - e o que as caracteriza o fato de serem passveis de ser representadas matematicamente. "O livro da filosofia", observava Galileo, " o livro da natureza, livro que aparece aberto constantemente diante dos nossos olhos, mas que poucos sabem decifrar e ler, porque est escrito com sinais que diferem daqueles do nosso alfabeto, em tringulos e quadrados, --em crculos e esferas, em cones e pirmides" ( 1 5 ) . ' O objeto de que fala a cincia moderna no , portanto, a cpia colorida que os sentidos no do, mas antes uma construo matemtica. no campo das relaes matemticas que, segundo o esprito da cincia, encontramos a essncia do objeto, da qual as qualidades secundrias no so bem expresses e nem revelaes, pois no h meios de se induzir, a partir destas ltimas, a estrutura matemtica do objeto. Para todos os efeitos prticos e metafsicos, as qualidades secundrias podem e devem ser colocadas entre parntesis, como no pertencendo ao objeto .

    No se trata simplesmente de medir a natureza. A medida, em si, no explica. Explicar descrever as relaes funcionais que permanecem constantes entre as diversas variveis que interferem num fenmeno .

    Que que isto significa para a metafsica da cincia? Se a estrutura da realidade matemtica, a realidade um

    ( 1 5 ) Galileo Galilei, carta de j aneiro de 1 64 1 .

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    sistema fechado, auto-explicativo e totalmente determinado. No h lugar para o imprevisvel, para o no esperado, para o novo. Nas palavras de Laplace, uma inteligncia que conhecesse num momento dado do tempo "todas as fras por meio das quais a natureza animada e as posies respectivas das entidades que a compe, abarcaria numa mesma frmula os movimentos dos corpos maiores do universo e aqueles do mais leve tomo : nada seria incerto para ela, e o futuro, como o passado, estaria presente diante dos seus olhos" . As incgnitas da equao s so incgnitas para o sujeito que ainda no a resolveu, porque dentro da lgica da equao as incgnitas esto rigorosamente determinadas .

    Se assim , estamos diante de um universo em que o futuro s pode conter uma nova configurao de uma identidade estrutural imutvel .

    Compreende-se, assim, a afirmao de Thomas S . Kuhn de que a "cincia normal no tem por objeto descobrir novidades de teoria e de fato e, quando bem sucedida, no as encontra" ( 16 )

    ( 3 ) Sobre estes dois pressupostos constri-se o critrio de verificao . Uma hiptese verificada se e somente se ela nos permite prever o comportamento da coisa no futuro. O critrio da verificao assenta-se sbre o pressuposto da continuidade e da uniformidade do real : a forma e os limites do experimentado, no presente, determinam a forma e os limites do experimentvel, do possvel em resumo, do futuro . Isto exige que a cincia seja radicalmente futurolgica e radicalmente anti-autpica.

    As cincias do comportamento se construiram a partir da inveja dos filsofos sociais frente aos cientistas da natureza.

    No sentido de construir uma cincia que se aproximasse em exatido das cincias da natureza, tomaram emprestados os seus mtodos e, consciente ou inconscientemente, os seus pressupostos metafsicos acrca da natureza do real . Nas palavras de Albert Camus, "mtodos implicam metafsica ; inconscientemente les revelam concluses que frequentemente afirmam no conhecer ainda" ( 1 7 ) . Assim, "na medida

    ( 1 6) Thornas S. Kuhn" The Structure 01 Scient ific Revolutions ( Chicago, The University of Chicago Press, 1 966) , p. 52 .

    { 1 7 ) Albert Camus, The Myth 01 Sisyphus, op . cit o p . 9 .

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    em que as cincias sociais tomaram como seus modelos as cincias fsicas elas contm a pressuposio (domain assuption) de que pessoas so coisas" ( 1 8 ) . A natureza da explicao do comportamento das pessoas identifica-se com a natureza da explicao do comportamento das coisas. Toma-se por assentado que, como na natureza, a "coisa" humana um continuo uniforme, fechado e auto-explicativo, que se move em consequncia de uma lgica imanente na qual no h lugar para interrupes e saltos, de sorte que o futuro o resultado do "desenvolvimento" do passado e do presente .

    O ttulo do ltimo livro de B. F. Skinner muito sugestivo : Beyond Freedom and Dignity ( 1 9 ) (traduo para o portugus, O mito da Liberdade) . Deixando de lado o desenvolvimento do argumento de Skinner (no posso discutir os seus pressupostos dentro dos limites deste trabalho) , parece-me que o seu ttulo se prestaria bem como moto da cincia que se institucionalizou no Ocidente. A pressuposio de que o objeto se move por meio do uma lgica inconsciente, seja no nvel natural, seja no nvel humano conduz, inevitavelmente - me parece - a uma destruio da vontade como fator criador. Na melhor das hipteses, quando a vontade parece assumir uma eficcia histrica, porque ela coincide ou expressa os elementos realmente motores da realidade - que no so, de forma alguma, les mesmos, de natureza volicional, mas antes estrutural e inconsciente ( 20 ) . Chegamos, assim, concluso de que ao critrio epistemolgico de objetividade corresponde, inevitavelmente o critrio psicolgico de ajustamento. Em outras palavras : a objetividade, longe de ser uma atitude neutra, ao postular a autonomia do real face aos valores, exige uma submisso da conscincia aos fatos e sua lgica imanente, elevando-os, desta forma, condio de

    ( 1 8) A. Gouldner, op. cit . , p. 50 . ( 1 9) B. F. Skinncr, Beyond Freedo11l and Dignity ( N ew York, Al fred Knof,

    1 97 1 ) . (20) Quando a Cincia colocou entre parntesis o elemento vontade e inteno,

    ela no fez uso apenas de um arti f c io metodolgico. ste ato de se colocar entre parntesis assenta-se sbre a convico de que, em ltima instncia, a vontade no faz diferena. Importam as grandes estruturas, que se movem pela fora de um

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    valores. A cincia tenderia, assim, ainda que conscientemente o negue, a uma sacralizao da realidade. No mais faz uso de um transcendente como o seu "God - term" ( 2 1 ) , e se encontra prisioneira de um "God-term" imanente. Ainda que no o deseje, funciona como religio. Parafraseando aquilo que Camus disse de Marx, sinto-me tentado a dizer que, destrudos os deuses transcendentes, a religio se transformou em cincia. "Na vida intelectual das sociedades" , observa Leszek Kolakowski, "a maquin ria das velhas crenas se enferruja, novos mitos vm a existir, criados em massa a partir do progresso tcnico e das realizaes cientficas" ( 2 2 )

    Poderamos concordar com Philip Rieff? Penso que sim. "A cincia tem os seus prprios mistrios e entusiasmos ; ligada por um cordo umbelical tecnologia, a cincia s se move ao sabor do poder na sociedade. Pelo menos os clrigos tm uma tradio de hostilidade ao estado que est por detrs deles. De suas consolaes transcendentais o sentimento religioso tem pelo menos a possibilidade de criticar a ordem social, enquanto que as energias cientficas, por meio de uma fcil transformao da objetividade que necessria cincia em

    p retao de que o movimento social necessariamente subordinado a leis fsicas invariveis, ao l:nvs de ser governado por uma espcie de von tade". Augusto Comte, Cours de Philosophie Positive, 4.a edio, vol. IV ( Paris , 1 877, p. 267 ) . "A primeira regra e a mais fundamental : Considere os fatos sociais como co isas". Emile Durkheim, The Rules of Sociological Method ( New York, The Free Pr-ess, 1 964 ) , p . 1 4 . "No importa o que ste proletrio diretamente imagina, e nem mesmo o proletariado inteiro. O que importa o qUe e o que se ver obrigado hi storicamente a fazer por esta real idade" . Marx, (A Sagrada Famlia ) . "Uma outra razo pela qua-l esta hiptese foi a primeira a fazer possivel uma sociologia 'c ient fica' foi que a reduo das relaes sociais a relaes de produo . . . o fereceu uma f irme base para a concepo de que o desenvolvimento das formaes sociais um processo de histria natural (m/ nfase ) "Lenin, What the 'Friends of th e People' Are" , Selected Works (New York, International Publ ishers, 1 943, voI . XI, p. 42 1 ) . " A small part of the universe i s enclosed within a human skin . It would be foolish to deny the existence of that private world , but it is also fool ish to assert that hecause of its privacy i t i s o f a d i f ferent nature from the world outside. The d i f ference is not in the stuff of which the private world is composed. but in its aoccessibi l i ty" . " A scienti fc analysi s o f behaviour d isposesses autonomous man and turns the control 'he has bepn said to exert over to the environment" . B. F. Skinner, Beyond Preedom and D ignity ( New York, Knopf, 1 97 1 ) , pp. 1 9 1 , 205 .

    ( 2 1 ) Citado por Phil ip Rieff : refere-se a um conceito ltimo, uma Primeira causa, a um tempo fundamental experincia e inacessvel ela .

    (22 ) L. Kolawski, op. cit., p . 325 .

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    'neutralidade-face-a-valores' ou 'independencia-de-valores' so facilmente recrutadas para servir aos propsitos da sociedade, quaisquer que sejam les" ( 23 ) . Invertem-se as posies . A cincia tem negado sistematicamente s representaes religiosas status de conhecimento do real. E o faz de forma coerente com suas pressuposies acerca do que conhecer. As vrias 'ciencias' da religio, que so elas se no, em ltima anlise, esforo para desvendar o significado real da religio, significado ste que se encontra em estruturas psquicas, sociais, econmicas, etc . , elas mesmas ocultas conscincia religiosa?

    A religio considerada "a priori" , como pressuposto de investigao, como uma linguagem que ignora sbre que ela fala. Ora, a cincia exige que a linguagem, como expresso de conhecimento, se "ajuste" realidade experimentada, isto , que a cada sinal corresponda algo, no campo dos fenmenos . Nas representaes religiosas nada disto encontramos. Os smbolos religiosos no so reduplicaes de fatos mas antes construes da imaginao. E a imaginao uma negao do objeto imediatamente dado, em nome das emoes e da vontade. No podemos entretanto nos deter no que foi dito. Como sugeriu S . Kierkegaard, a significao tem a ver com o como que acompanha silencioso o falar ( 2 4 ) . necessrio perguntar, como sugeriu Wittgenstein, acrca dos "acrdos silenciosos" ( 2 6 ) que se encontram por detrs da linguagem . Sugerimos que na cincia, o acrdo implica numa sacralizao do dado. Desejo sugerir que a linguagem religiosa, ao contrrio, contm sempre um protesto contra a sacralizao do dado, uma recusa em aceitar como realidade a ordem instaurada a, como "coisa" acessvel observao. E que, portanto, ela sempre uma crtica de uma ordem destituida de significao, e um perguntar sbre uma outra ordem, no dada e no extravel da experincia imediata. A religio uma expresso de esperana. Nas palavras de Ernst Bloch, "onde est a esperana, a est a religio ( 2 6 ) . Mas a esperana em nada se assemelha s projees futurolgicas, peculiares cincia, que se assentam sbre o pressuposto metafsico da

    (23 ) Phi lip RieH, Freud : The Mind of the Moralist ( Garden City, Ny, Doubleday, 1 96 J ) , p. 327 .

    (24) Soren Kierkegaard, Concluding Unscientific Post-scrip t ( Princeton, Princepton University Press, 1 968) , p . 1 8 1

    (25) Ludwig Wittgenstein, Trac tatus Logico-Philosophicus ( So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1 961 ) , p . 70, 4 . 002 .

    (26) Ver Ernst Bloch, Mcm on His Own ( New York, Harper & Row, 1 97 1 ) .

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    uniformidade e continuidade do real, e da sua resistncia criatividade e liberdade - que a linguagem religiosa preservou sob a forma mtica da crena no milagre . Como Feuerbach observou, a crena no milagre a crena no poder da imaginao ( 2 7 ) , ou seja, a esperana da emergncia do inesperado e do novo, a confiana no poder da vontade - no apenas como epifenmeno de infraestrutura determinstica -uma aspirao pela utopia que, segundo Mannheim, se transforma em comportamento crtico e transformador.

    No posso apresentar tais reflexes sob a forma de concluses. Na verdade elas no o so. So antes a forma como certas "suspeitas" esto tomando corpo em minha mente . Incapazes de ignorar as funes latentes da cincia e a sua evidente contradio com as intenes conscientemente confessadas pelos cientistas, stes tm tendido a resolver o problema transferindo a responsabilidade para a poltica . "Ns, cientistas, produzimos conhecimento puro, neutro . O seu uso algo que foge nossa responsabilidade e funo" . Sugiro que no bem assim. A cincia se tornou conservadora e comprometida com as tendncias mais desumanas de nossa civilizao no em decorrncia de acidentes histricos, mas em decorrncia da prpria metafsica da cincia .

    necessrio entender o que a cincia diz, no seu silncio, ao falar sbre a religio. Pois ste silncio revela o esprito daquela que fala. E necessrio entender os "acrdos silenciosos" que se escondem e se revelam na linguagem religiosa, quando ela fala sbre "coisas" que no podemos entender . Talvez, para surpresa nossa, perceberemos que o "pio" se revela como viso proftica reprimida, pronta a explodir ( 2 8 ) E, talvez, que a fria e objetiva linguagem da cincia, to ciosa do seu status, se revele como a linguagem de uma nova classe sacerdotal, to bem descrita nas palavras de Max Weber :

    "Especialistas sem esprito, sensualistas sem corao .

    Esta unidade imagina haver atingido um nvel de civilizao nunca dantes alcanado" ( 29 )

    (27) Ludwig Feuerbach, The Esse/l ce of Ch1"istianity (New York, Harper & Row, 1 957) , p . 1 30 .

    (28) K . Mannheim , op. dt. p . 22 1 : " Mesmo quando interiorizada, a experincia exttica const itu i um perigo para' a ordem vigente, pois est sempre na iminncia de se expressar exteriormente , e s a disciplina e a represso constantes transforma-na. em qu ietismo" .

    (29) Max Weber, The Protestant E thic and the Spirit of Capitalism ( New York, Charles Scribner's Sons, 1 958) , p . 1 82 .

    THAN S / FORM / A O 1 79-90