espere pelo pôr do sol - visionvox · 2017-12-18 · de ver a vida. pois antes de tudo, sou uma...
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Espere pelo Pôr do Sol
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Para Henrique,
Que sempre me mostra como usar a imaginação,
E me encoraja com as idéias mais loucas...
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“Cada Pôr do Sol é o nascer de uma nova experiência.”
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Debbie Willians
Um viciado em morfina, música e literatura. Seria dessa
forma que eu o descreveria agora. Há quem diga que
tudo piorou no momento exato em que ele me viu
partir, mas eu o conheço bem demais para acreditar em
algo tão simplório. Não foi a morte que o transformou,
muito menos a vida. Foram apenas as consequências de
um destino maluco.
Não foi a doença que ele tentou negar
várias vezes, nem a espera da suposta cura que jamais
viria. Particularmente, eu acho que o que os médicos
diziam estar errado nele, era apenas parte de sua
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personalidade. Eu gostaria de estar presente quando
seus próprios pensamentos ficaram mais fortes do que
ele pôde controlar, e quem sabe ajudá-lo em seus dias
mais escuros.
Ele riria se me ouvisse nesse momento.
Riria, e mencionaria a expressão que um de seus autores
preferidos adorava repetir. “A noite escura”. Uma
risada irônica, muitas vezes forçada. Diria, pretendendo
mostrar indiferença, “Isso não é apenas uma parte da
minha personalidade, esse sou eu. Tem que aprender a
conviver com isso”. Ele mesmo ainda não tinha
aprendido.
Sua terrível mania de se vitimizar. Nós
dois sabíamos que ele já não era tão inocente assim, e
por mais que insistisse, tinha deixado de ser o garotinho
assustado que rezava pelo primeiro raio de sol.
Imagino com riqueza de detalhes o que
me descreveu numa noite qualquer, quando parecia
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estar entrando em pânico de novo. O quarto
parcialmente escuro, o menino que esperava sentado na
cama, agarrando o travesseiro. Ele fechava os olhos e
movia os lábios numa oração muda. O homem abriria a
porta, e ele veria a luz amarelada do corredor entrar no
quarto, suave e silenciosamente. Apertaria os olhos com
mais força, e faria uma prece aliviada quando a manhã
viesse pela sua janela. Haveria superado mais uma
noite, estaria superando mais um dia.
Martelava a idéia de que as horas não
passavam durante o dia. Superava mais uma manhã na
escola. Mais uma tarde. E então imaginava que as horas
passavam rápido demais, e ele haveria de voltar pra
casa de novo. Era noite outra vez.
Quando penso nisso, acho estranho que
ninguém tenha perguntado o que eu fiz para curá-lo.
Ainda bem, porque eu não gostaria de ter que
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responder Não fiz absolutamente nada. Gosto de imaginar
que foi o amor que o fez.
Da mesma forma que o amor constrói, ele
destrói. Posso estar enganada, mas acho que fomos
ingênuos demais simplificando tanto a vida. Ele
abandonou o sofrimento essencial para sua existência, e
eu minhas ideologias. Talvez tenha sido por isso que
tudo terminou assim. A vida não gosta de ser desafiada.
Provei ser verdade esse negócio de amor á primeira
vista. Reconheci nele a salvação da minha vida chata e
sem surpresas, no momento exato que nossos olhos se
encontraram pela primeira vez. Eu, de um lado de
jardim, segurando uma taça. Ele, sentado no banco de
madeira branca.
Respirei fundo antes de tomar a decisão de
me aproximar. Ele me ofereceu um sorriso quase
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psicótico, que estranhamente me encorajou a sentar do
seu lado.
—Por que está aqui, longe de todo mundo? —Perguntei.
Eu não disse meu nome, e ele tão pouco se
apresentou. Era como se fôssemos amigos há anos, a
conversa soaria natural para quem passasse e por acaso
nos ouvisse. Ninguém podia ver meu coração batendo
forte, numa expectativa que nem eu mesma entendia.
Ele parecia muito relaxado, não parava de olhar para
mim por nem um segundo.
—Não gosto de multidões.
Não havia multidão alguma.
Era a festa de casamento de uma ex
colega de faculdade. Havia anos que eu não a via, por
isso achei legal ter vindo á festa. Mas sempre odiei
gente rica e seus costumes. O lugar bonito e com tantos
tipos diferentes de comidas já começava a me entediar.
Tenho certeza de que ele sentia o mesmo.
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—Conhece Maggie? —Perguntei, em busca de um
assunto para começar.
Ele balançou a cabeça em negativa.
—Sou amigo de um amigo do noivo dela. Nem conheço
ninguém aqui.
—Então é por isso que se isolou.
—Pode me fazer companhia se quiser.
Eu dei risada.
—Vai ser uma honra.
—Então, menina bonita... —Ele tentou também. Vários
garçons passavam por nós. Como ele não aceitava nada
do que era oferecido, eu também nada peguei. Embora
estivesse louca para tomar um drinque. —O que você
faz?
—Tenho uma lojinha de flores aqui por perto. Estudava
Medicina, mas decidi parar.
—Trocou a Medicina pela natureza? Isso me parece
uma decisão sensata.
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—A mais sensata que já tive em toda minha vida. —
Acompanhei o seu novo sorriso. —Nunca acreditei na
Medicina.
—Deve-se acreditar na Medicina? Se eu tenho dor, tomo
um remédio. Não preciso acreditar em nada.
—Meu avô era médico; Meu pai e meus irmãos
também. Acharam que esse era o caminho para mim,
mas dessecar defuntos não era bem o que eu queria
para minha vida. E não posso imaginar que drogas
fabricadas por mãos humanas possam curar alguém.
Tanto aquilo que nos cura quanto aquilo que nos deixa
doentes vêm de dentro, nunca de fora.
—Desculpa, moça, mas tenho que discordar. Todos os
meus sentimentos, quero dizer todos mesmo, foram
causados por fatores externos. Já ouviu falar que o
inferno é os outros?
—Mas isso só se você se deixa levar. Gosto de pensar
que sou forte demais para deixar que os outros
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influenciem em minha personalidade, na minha forma
de ver a vida. Pois antes de tudo, sou uma sonhadora. E
o mundo dos sonhos é a minha primeira opção.
Ele já não me olhava daquele jeito. Agora
conversava comigo como uma pessoa que ele tinha
acabado de conhecer, mas percebia ter muitos assuntos
em comum. Não mais como uma mulher bonita, que ele
precisava conquistar. Os homens sempre acham que
precisam conquistar, mas acabam ficando na defensiva
quando a coisa começa a acontecer.
—Qual é o seu signo? —Eu perguntei.
—Capricórnio. E, sim, eu leio horóscopo.
—Não parece do tipo supersticioso.
—Não me conhece. Meus amigos dizem que sou crente
até demais. —Deu risada e tirou do bolso um chaveiro
com a forma de pé de coelho. —Isso prova alguma
coisa?
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—Sim, está provado. E me deixa muito contente.
Também carrego esse tipo de coisa na bolsa, e acendo
incensos em casa. Além de trazerem boas vibrações,
espalham um cheiro maravilhoso.
Estendeu a mão para mim.
—Jon Jordison.
Ele não era propriamente bonito. Pelo
menos não no nível da sociedade. Para mim, eu
conseguia ver sua alma através de seus olhos castanhos.
Quando sorria, seu dente tinha a pontinha quebrada,
um acidente de infância, quem sabe. Era o sorriso mais
lindo que eu já tinha visto na minha vida. Um sorriso de
criança maliciosa. Muitas vezes, ele realmente não
passava de uma criança maliciosa.
—Debbie Willians. É religioso, Jon?
—A religião divide as pessoas, uma vez que Deus as
aproxima. Religião é sinônimo de hierarquia, e não de
espiritualidade e paz.
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—Matou milhares na Idade Média. —Concordei. —E
ainda mata nos países do Oriente.
—Fora aqueles que morrem aos poucos, porque
acreditam tão piamente em suas crenças arcaicas, e
sofrem desperdiçando suas vidas, sem ao menos se dar
conta disso.
—Quantas mulheres foram queimadas vivas na
fogueira, julgadas por auto denominados servos de
Deus? —Suspirei. Era a primeira vez que eu conversava
esse tipo de coisa com alguém. A existência de um ser
superior, nossa existência, e até a queimada das bruxas
há mais de mil anos atrás. Que tipo de cara fala dessas
coisas em seu primeiro encontro? Talvez ele tentasse me
impressionar; Talvez estivesse sendo sincero, pois,
assim como eu, nunca tinha encontrado alguém para
conversar sobre a vida. —Minha família é católica.
Quando eu era pequena, ia á igreja e até sonhava em me
casar ali, vestida de branco, caminhando de encontro ao
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padre. Mas de repente, tudo isso me pareceu vago
demais.
—Mas ainda acredita em Deus?
—Não sei. Quem é Ele pra você?
—É alguém que está sempre olhando por mim,
principalmente quando eu me sinto sozinho.
Eu olhei ao redor, esquadrinhando os
rostos conhecidos. Todos riam, conversavam e bebiam.
Maggie estava casando. Tudo aquilo também me
pareceu vago e vazio naquele momento.
—Então, Jon, que acha da gente dar uma volta lá fora?
—Está entediada aqui?
—Não gosto desse comida estranha. Passei minha vida
inteira ouvindo que era isso o que comia as pessoas
importantes. Coisas estranhas com nomes franceses, ou
complicados. E que na verdade, não passa de lesma
comestível.
Ele riu e levantou. Eu o acompanhei.
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—Que tal um hambúrguer? —Perguntou. —Cheio de
condimentos e gordura. Com muito refrigerante, é
claro.
—Me parece irresistível.
Nossos encontros tornaram-se, inevitavelmente,
frequentes depois do nosso primeiro beijo, no banco de
trás do carro dele, antes mesmo que chegássemos á
lanchonete.
Ele aparecia em casa algumas vezes por
semana, de surpresa. De início, sempre me surpreendia
vestindo minha camisola, ou quando já tinha ido
dormir, e atendia á porta com aquela temível cara de
sono. Acabei ficando mais precavida, e sempre tinha á
mão uma roupa especial, e estava maquiada. Ele trazia
uma garrafa de vinho, ou um filme, sempre de terror.
Passava a noite comigo, na maioria das vezes, mas
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nunca mencionava o lugar onde ele morava, ou com
quem dividia sua vida.
Embora relutasse em admitir, eu sabia que
ele tinha uma esposa. As mulheres sempre sabem. A
prova irrefutável foi naquele dia, quando vi uma
entrevista sua na televisão. Usava uma aliança. Apenas
dessa vez eu mencionei a outra mulher de sua vida,
depois, nunca mais.
Paramos em frente á uma floricultura, eu
examinava as flores, muito bem cuidadas. Uma loja sem
dúvida muito maior e melhor do que a minha. Ele
odiava quando eu pedia que me acompanhasse para
fazer as compras, mas eu o fazia assim mesmo, pois
queria sua companhia.
—O que prefere? —Perguntei. —Rosas ou orquídeas?
Ele deu de ombros. Nada entendia de
flores, e não lhe fazia diferença uma rosa e uma
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orquídea. Recoloquei o buquê de rosas no vaso, junto ao
vaso de orquídeas.
—Você a ama? —Perguntei de repente.
Ele baixou a cabeça.
—Não sei. —Ele estava sendo sincero. Tenho certeza
disso. —Ás vezes, odeio ela sem motivo algum. Odeio
tanto que chega a me sufocar. Quando olho para ela,
penso no porquê de eu ainda estar ali. E não encontro
uma boa resposta.
—E em que momentos você a ama?
—Quando a observo dormir. Fico pensando no motivo
para tantas brigas, e desejo poder recomeçar e fazer
direito. Amanhece, nós discutimos por qualquer coisa
ridícula e eu dou o fora de casa porque não aguento sua
presença.
Eu tive vontade de chorar. Tive vontade
de estrangular ele ali, na calçada, em frente a todos. Não
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fiz nada disso. Disse a mim mesma para controlar-me, e
continuei a parecer relaxada.
—Ela sabe sobre mim?
—Acho que sim.
Ele recomeçou a andar, sem se preocupar se
eu iria querer entrar na loja e comprar alguma coisa.
Chegamos ao carro em silêncio. Ele colocou as sacolas
no banco de trás do automóvel, sem o cuidado que eu
teria com os vasos de imitação de cristal que eu
colocaria na minha sala de estar.
—Sinto muito. —Eu arrisquei, quando sentei no banco
do passageiro.
Jon assentiu lentamente e ligou o rádio.
Demorou um segundo para que recomeçasse a falar.
—Está com fome?
Eu nunca mais toquei no assunto,
odiando a mim mesma por ter perguntado coisas que
não me diziam a respeito. Ele não exigia nada de mim,
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eu nada exigia dele. Ás vezes me pegava pensando em
Jon e sua mulher, ocupando o lado da cama em que eu
deveria estar. Então, imaginava eu matando ela, lenta e
dolorosamente. Não gosto desses pensamentos, e
tratava de afastá-los do meu mundo. Mas não podia
deixar de rir de minha infantilidade.
Um dia ele vai ser meu, eu era obrigada a
repetir para mim mesma, para não enlouquecer a cada
vez que o via partir. Enquanto espero, vou viver
intensamente cada segundo, como se fosse o último.
Porque tudo era mágico quando eu estava
com ele. E o amanhã simplesmente não existia.
Passava minhas tardes cuidando da lojinha,
conversando com minhas amigas, e de vez em quando
brigando com meus pais pelo telefone. Nunca eram
brigas sérias, apenas o suficiente para que eles não me
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retornassem a ligação por uma semana, no máximo.
Algumas noites, eu saía para um bar, ou ia comer pizza
com velhas colegas em qualquer lugar, apenas para não
me sentir solitária quando ele estava viajando. Tenho a
impressão de que ele passou a metade da vida viajando,
sentindo falta de quem tinha deixado em casa, e
fazendo com que os outros sentissem sua falta. Mas ele
estava realizando seu sonho, aquilo pelo que batalhou a
vida toda, e eu o respeitava por isso; Respeitava e
admirava. Eu mesma nunca tive um sonho de verdade
para perseguir, e nunca conquistei nada além de
liberdade.
Ele entrou na lojinha. Meu coração deu um
salto ao vê-lo de surpresa, mas isso sempre acontecia.
Sorriu para mim enquanto eu terminava de atender
uma cliente, e colocou a mala em um canto perto do
sofá verde. Lá fora, a noite caía.
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—Veio direto do aeroporto? —Eu perguntei, antes de
beijá-lo. Não queria que percebesse o quanto eu tinha
sentido saudades, mas ás vezes era impossível de não
deixá-lo notar. E eu sentia que com ele também
acontecia o mesmo.
Jon sentou-se no sofá depois de um longo
momento, quando o libertei. Ele parecia cansado. Fui
até a cozinha pegar um copo de água.
—Aconteceu alguma coisa? —Pressenti.
—Não exatamente. Eu só queria... Só queria conversar
com você.
Eu assenti e comecei a fechar as portas da
loja.
—Não. —Ele quis me impedir. —Não precisa fazer isso
por minha causa. Vou ser rápido, prometo.
—Não há problema. Estava quase na hora de fechar,
mesmo.
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Puxei uma cadeira de madeira e sentei ao
seu lado.
—Acho que você vai pensar que eu sou um completo
idiota. —Começou.
—Você sabe que eu nunca pensaria isso.
—É que... Bom, antes de voltarmos para São Francisco,
fomos visitar um garotinho que estava no hospital. Nem
sei como foi que George o descobriu, mas nos disse que
estava doente e desenganado da vida. Tinha câncer,
imagina só. Uma criança de doze anos. —Eu ouvia com
atenção. Ele não olhava para mim enquanto falava, e eu
percebia que estava realmente perturbado.—Vai receber
alta essa semana, porque não há nada mais que se possa
fazer. Vai morrer em casa, junto com os pais e os
amigos. Eu não queria entrar no quarto. Sou um fraco,
não queria entrar. Mas George insistiu que era
importante que eu o fizesse. O nome dele é Justin. —Ele
parou por um momento. —A mãe dele nos contou que
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ele tem a coleção completa dos nossos álbuns, e vários
pôsteres espalhados nas paredes de seu quarto. Estava
ciente de tudo, mas se não fosse pela sua aparência
doentia, qualquer um diria que se tratava de um garoto
normal. Chorou quando nos viu, mas chorou de
emoção, pois o sonho dele estava sendo realizado. Ele
não mencionou sua doença uma única vez, e ficou rindo
com as piadas do Reg. A gente podia sentir o cheiro da
morte naquele quarto de hospital. Mas o menino sorria.
Eu pintava a cena em minha imaginação
como um quadro. Admito que fiquei um pouco
surpresa com a reação de Jon ante á situação de um
menino que não conhecia. Não é falta de sensibilidade
dizer isso, mas eu teria ficado impressionada na hora,
mas depois acabaria esquecendo. Ele viera direto do
aeroporto até minha casa só porquê a história ainda
engasgava em sua garganta.
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—Eu não fui capaz de dizer absolutamente nada em
toda visita. Só correspondi com um sorriso idiota
enquanto ele disse que eu era seu ídolo, e tal. Eu
invejava sua força. Olhava para mim mesmo, com
saúde, sem estar á beira da morte. E vivendo desse
jeito... Medo. Eu tenho medo o tempo todo, e nem sei do
quê. Mas, ele não. Seu único pesar era não ter ido a um
show que fizemos em sua cidade, pouco tempo depois
de ter descoberto sua doença. Saímos daquele quarto
arrasados. Nem conversamos durante o caminho de
volta. Até Reg ficou abalado.
Silêncio por alguns instantes. Achei que ele
fosse começar a chorar.
—Sinto muito, Jon. —Fiz.
—Isso me faz pensar em como essa vida é injusta.
Droga, era só uma criança!
—Mas sempre há uma esperança.
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Ele me olhou, condescente. Palavras
vazias. Não era o que ele precisava naquele momento.
—Por que me contou isso? —Eu quis saber.
—Achei que pudesse me explicar.
Não respondi, sem querer admitir que eu
não tinha essa resposta. Entendi que era daquele
silêncio que ele precisava.
—Preciso ir. —Ele levantou-se, alguns minutos depois.
Senti um aperto no coração. Achei que ele
fosse ficar comigo. Mas assenti e lhe desejei boa noite.
Eu me sinto egoísta pensando desse jeito, mas não
queria que nada ferisse o meu garoto. Aquela mulher
não saberia compreendê-lo enquanto ele sofria por
causa de um garoto que tinha acabado de conhecer. Eu
sim o entendia perfeitamente, seus medos sem sentido e
suas excentricidades. Sabia o quanto gostava de
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crianças, e queria ter um filho. Eu esperava que fosse eu
a conceder isso a ele.
Vi crianças pedirem autógrafos quando
passávamos na rua, e elas eram as únicas fãs que Jon
atendia de bom humor. Era fascinante. Tanto ele como o
amigo de banda tinham um ímã que atraía os jovens fãs.
Penso que é a pureza de seus coraçãozinhos que
consegue enxergar muito além do que somos capazes
de ver. Ouvi uma conversa de Reg e Jon um dia desses,
quando passeávamos em algum lugar.
—Acho que a maior parte de nosso público é composto
por crianças. —Reg brincou. —Será que entendem
nossas letras?
Jon riu.
—Espero que não.
Eu desenvolvi uma linda amizade com
Reg. O baixista da banda era um cara mente aberta, e
sempre conversava comigo quando eu precisava. Era o
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melhor amigo de Jon, por isso não posso imaginar que
não pudéssemos nos dar bem. Nossa perfeita sincronia
não falhava, ainda que dividíssemos tantas diferenças.
Estávamos na minha sala de estar, numa
noite de quarta feira. Jon tinha saído para comprar a
pipoca que acompanharia nosso filme de terror. Reg
dissera que estava triste por causa de uma briga com
sua mulher, e pediu companhia aquela noite. É claro
que eu teria preferido ficar somente com Jon, mas não
pude recusar.
—Mais um filme de terror... —Reg comentou,
estendendo as pernas sobre minha mesinha de centro.
—Jon precisa de um pouco mais de criatividade.
Coloquei o vídeo no aparelho, enquanto
esperávamos que Jon voltasse.
—Pode me responder uma coisa? —Reg indagou,
inclinando-se um pouco mais para a frente. —O que
você fez com Jon? Magia?
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Eu dei uma risada curta e sentei-me ao seu
lado.
—Por que essa pergunta louca?
—Não sei... Ele ficou tão... Normal depois que te
conheceu. Não bebe mais, nem toma calmantes. É
incrível.
—Eu o incentivei a isso. Ele não precisava realmente
daqueles comprimidos, e a bebida... Bom, sinto muito.
—Dei risada.
—Não, não há problema que você tenha tornado meu
amigo um completo careta. Ele me parece saudável
agora. Estava preocupando a todos nós com aquelas
crises de depressão.
Decidi que aquela era minha chance de
abordar o assunto.
—Morre aqui minha pergunta. —Comecei. —Mas acha
que tenho chances com ele? Quero dizer, chances de
verdade?
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Não precisei deixar claro. Ele baixou a
cabeça, e eu pude acompanhar enquanto ele elaborava
sua resposta.
—Ele está inseguro. Tem medo de deixar Renée.
Acha que vai acabar sozinho, ou você vai terminar
por deixá-lo. —Reg batia as pontas dos dedos no
braço do sofá.
—Entendo.
Ele percebeu que eu precisava saber
mais. Ponderou se deveria me falar o que tinha em
mente. Não é traição, tentei encorajá-lo, como se ele
pudesse ler meus pensamentos. Pode dizer, só vai
ajudar.
—Eles não estão bem. —Soltou. Vi certo
arrependimento.
Eu queria que ele continuasse. Tenho
uma certa impressão de que as pessoas podem ler
meus pensamentos quando quero que elas o façam.
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Também sou uma ótima ouvinte. Consigo
compreender expressões. Nem meu garoto, um auto
denominado perito na arte de mentir, não é capaz d
e fazê-lo sem que eu descubra. Já peguei algumas
de suas mentiras, porque ele sempre sorria sem jeito
depois de terminá-las. Não duravam nem um
segundo. Não aprovo essa atitude. Nunca dei a ele
um motivo para mentir.
—Não estão bem, mesmo. E já faz um tempo.
Sempre que os vejo juntos, é a mesma coisa. O
menor dos detalhes faz com que briguem. Sabe
aquele olhar cheio de ódio, obviamente não apenas
por causa de um objeto qualquer que sumiu dentro
de casa?
—Acha que é por minha causa?
Ele assentiu, dessa vez sem hesitar.
Talvez achasse que eu adoraria saber que era eu o
motivo de suas brigas. Não vou negar que havia
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uma parte suja dentro de mim que se alegrava. A
única coisa que eu quero é que meu garoto seja
feliz, eu repetia pra mim mesma.
—Em todos os sentidos. —Reg estava mais
confiante agora.—Ela sabe, de alguma forma. Jon
pensa em você sempre que olha para ela. Por isso,
sente tanto ódio. Penso qu é do tipo: Quem está ali,
dividindo o mesmo teto e uma aliança com ele é
Renée, e deveria ser você. Deve pensar isso o tempo
todo que está em casa. É o que eu acho, o que eu
vejo.
Tenho certeza de que meu garoto disse
isso pra ele, apenas pela forma de Reg enfatizar a
parte “É o que eu acho, o que eu vejo”. Não crie
esperanças, continuei advertindo a mim mesma. O
coração é enganoso demais, e depende muito dos
outros. Se ele se ligasse ao que Reg dizia agora,
acabaria por criar coisas que não existiam. Ou pelo
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menos ainda não. Espere um pouco da vida, mas tenha
paciência.
Não fui abençoada com essa virtude.
Não aguento esperar, e aquela espera em especial
me matava.
—Tenho dito para ele se resolver logo. Repito todos
os dias. — Reg deu uma risadinha, assumindo a
expressão brincalhona de quem está cansado. —Ele
não faz nada, pelo amor de Deus! Só reclama. O
tempo todo. Mas atitude que é bom, nada!
—Continue a encorajá-lo, Reg. —Eu deixei-me
dizer. —Diga pra ele o que você acha.
Ele assumiu um ar conspirador.
—Certo, Deb. Pode deixar. Vou tentar, mas não
prometo conseguir.
—Ele vai te ouvir.
—Eu não teria tanta certeza. —Ele riu.
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Ouvimos o barulho da porta. Jon
comentou alguma coisa sobre o preço da pipoca.
Reg olhou para ele quando respondeu para mim.
—Jon tem a cabeça dura como uma pedra.
Ele esperava eu terminar o jantar, com a cabeça apoiada
nas mãos e o cotovelo na mesa. Me observava distraído.
Desliguei o fogão, interrompendo a água que fervia
numa panela. Ele levantou os olhos para mim, surpreso.
—Vamos para o quarto. —Comecei a puxá-lo pela mão.
—Quero ler nosso futuro.
Abri a mesa montável, e puxei duas
cadeiras almofadadas.
—Está me deixando nervoso.
Espalhei as cartas pela mesa, e percebi
que tanto eu quanto ele prendíamos a respiração.
Aprendi com minha falecida avó a ler tarot. E recebi de
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herança aquela caixinha artesanal pintada á mão, que
continha as cartas mágicas. Tarde da noite, quando eu
ainda era uma adolescente cheia de planos e sonhos, em
sua casa da praia, ela me dizia que os espíritos sempre
ouviam e ajudavam aqueles que acreditavam.
Fiquei me perguntando o que Jon temia.
Que eu descobrisse alguma coisa? Ou, como eu, temia
que nosso futuro não estivesse traçado no mesmo
caminho?
Um enorme alívio tomou conta de mim.
—Veja, exatamente como eu imaginava. Vamos ficar
juntos até a velhice. Teremos dois filhos. Qual vai ser o
nome deles?
Ele ficou mais aliviado também.
—Você pode escolher.
—Pirata, para o menino. E Lua para a menina.
—Um pouco diferente, não é? —Ele riu. —Vai ser um
casal?
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—Sim. —Eu continuei a observar as cartas. —Vamos
nos casar em breve.
Vi a apreensão passar pelos olhos dele, e ir
embora rapidamente.
—Maravilhoso. —Ele disse, inclinando-se um pouco
sobre a mesa, como se pudesse ler também o que as
cartas diziam. —Tem mais alguma coisa aí?
Comecei a recolher o baralho. Estava
com medo de estragar mais alguma surpresa que a vida
nos reservava.
—Por enquanto é só, meu garoto. Já passa das sete, e eu
preciso terminar o jantar.
Dei um beijo rápido em seu rosto, e
desci até a cozinha. Ele voltou á posição inicial, me
observando novamente.
—Certo, Déb. Lua, eu até posso entender. —Ele riu. —
Mas Pirata?
—Não é bonito?
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—Acho que sim! Mas, tem uma explicação?
—Gosto de piratas. —Eu larguei a colher na pia. —
Ladrões do mar, sempre corajosos. Não são como os
outros bandidos, que só tem a temer á Polícia. Eles tem
a Natureza ao seu redor, mas enfrentam o mar
bravamente.
—Vou te considerar justificada. —Ele me deu uma
piscadinha.
—Isso é muito bom. Porque acabei de inventar.
Eu já tinha ouvido todas suas músicas, várias vezes. E
toda vez que escutava cada uma delas, tentava imaginar
de onde vinha tanta dor. Não conseguia encontrar, e
algumas vezes me senti tentada a acreditar que nada
daquilo era real, apenas parte da arte de sua vida.
Tentei pensar isso porque era mais fácil. Sempre é mais
fácil deixar de acreditar que a dor existe.
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Ele dizia que escrevia para abafar a dor,
tirá-la do coração e deixá-lo na folha de papel. Quando
cantava, pegava tudo de volta, e enterrava em algum
lugar sombrio e esquecido de seu coração.
Em minhas tardes vazias, eu pegava
alguns vídeos da Peas e colocava no meu aparelho de
vídeo, na esperança que pudesse abafar minha saudade
enquanto ele fazia turnês. Parecia que ele estava ali
comigo, embora o vidro frio da televisão nos separasse.
Eu vi ele chorar uma vez, quando cantava a respeito de
sua mãe. Era uma letra carregada de ódio, e eu me
sentia mal ouvindo esse tipo de coisa.
Quando a música terminou, Reg
abraçou ele, enquanto Jon voltava lentamente á
realidade. Ele riu, brincando que se sentia
envergonhado, como todas aquelas pessoas olhando
para ele. Eu sempre soube que ele precisava parar com
aquilo; Precisava parar de rir quando sua vontade era
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gritar. Mas ele era teimoso demais, e quem sabe tenha
sido esse a causa de todas as coisas que aconteceram
com ele.
Desliguei a TV. Eu sempre fui fraca, e por
mais que relutasse em admitir, nem eu fui capaz de
desvendar a confusão de sua mente, e ajudá-lo para que
não enlouquecesse. Encontrei um bilhete sem
destinatário no meio de suas coisas no dia em que ele se
mudou para minha casa. As palavras não faziam
sentido algum, e eu não tive coragem de perguntar a ele
o que significavam.
“Chama a polícia. Eu acho que tem alguém aqui.
Talvez eu tenha exagerado no Prozac, mas a
verdade é que essa dor não passa!
Ah, espera! Não é uma dor comum... Acho que
agora ele está dentro de mim. Deus! Será que um dia isso vai
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passar?Eu estou ficando com medo, começando a tremer de
novo.
É como se uma corrente elétrica passasse pelos
meus nervos e sacudisse meu corpo. Mas ele não é tudo que eu
tenho. Tem algo mais...
Droga, é ele mesmo!”
Coloquei o papel junto com suas coisas na
gaveta da cômoda que passaria a ocupar. Não sei se ele
soube que eu li, mas gostaria que ignorasse esse fato.
Não gosto da idéia de ser uma bisbilhoteira, uma
invasora de seu espaço.
Aconteceu naquele tarde maravilhosa. Ele
apareceu na porta de casa, com apenas uma mala, um
dia depois do Natal.
—Se incomoda? —Ele perguntou.
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Eu não sabia se a pergunta era “Se
incomoda se eu colocar a mala em cima do sofá”, ou
“Se incomoda se eu passar a morar com você?”
Optaria pela segunda opção. E estava
certa.
Sentou-se no sofá, com o braço apoiado
na mala. Eu sentei á sua frente, aguardando
explicações. Tentei parecer relaxada, mas não sei se
fui bem sucedida. Talvez ele nem prestasse atenção
á isso. Estava preocupado. Puxava o próprio cabelo
em seu tique nervoso. Não fazia isso suavemente,
mas dava longas e fortes puxadas. Tive medo de
que acabasse arrancando um tufo de mechas. Eu ia
brincar “Você vai acabar ficando careca se continuar
a fazer isso”, só para quebrar aquele clima ruim. Ele
finalmente resolveu falar.
—Não quero mais ficar naquela casa. Não quero, não
quero.
41
—Aconteceu alguma coisa?
Ele balançou a cabeça veemente. Vi
desespero em seus olhos, e meu coração deu um pulo
dentro de mim. O que teria acontecido de tão grave
para deixá-lo com tanto medo? De alguma forma, não
parecia meu Jon que estava ali á minha frente, parecia
estranho. Começava a me assustar.
—Se importa? —Ele repetiu, com urgência.
—Você sabe que eu sempre esperei que isso
acontecesse.
Por que eu iria querer saber mais? O
importante é que ele estava ali, e agora seria meu. Tanto
quanto uma pessoa pode pertencer á outra, e isso não
significa muito, realmente. Pensei em abraçá-lo e pedir
que olhasse para mim. Estava fitando o vazio, e daquela
vez, não tinha a menor idéia do que pensava.
Jon assentiu de repente, meio para si
mesmo, e começou a levar suas coisas para o quarto. Eu
42
disse que não se incomodasse, eu guardaria as coisas
para ele. Deixei que descansasse aquela tarde. Nunca
perguntei nada. E era como se a outra mulher nunca
tivesse existido.
O único problema do meu novo
hóspede era a falta de incensos. Gostava de acender
incensos perfumados em todos os cômodos, mas ele
reclamava que aquilo atingia profundamente seus
pulmões. Não sei se realmente tinha a ver com sua
asma, ou se apenas o incomodava, mas resolvi que
era melhor não arriscar.
Ele comentou comigo aquela noite,
quando nos preparávamos para dormir.
—Eu não vou me sentir daquele jeito, agora.
Encontrei a verdade, e tudo que eu precisava.
Voltei a pensar no bilhete. Fiquei
tentada a perguntar quem era ele Eu desconfiava de
ser o padrasto, mas pareceu-me algo espiritual. Será
43
que Jon via “coisas”? Até hoje acho que sim. Fora de
seus sonhos, e quem sabe essa fosse a loucura de
que todos falavam. Poderia ser verdade, por que
não? Ninguém sabe o que acontece do outro lado,
além da imaginação humana.
Eu segurei a sua mão por baixo das
cobertas. Ele correspondeu com firmeza, me fazendo
acreditar que nada poderia nos separar agora. Observei
enquanto dormia profundamente. Fiquei daquele jeito
por quase uma hora, e pela primeira vez, senti medo.
Ele disse que ficaria bem. Talvez tenha sido o peso da
responsabilidade que depositou em mim. Não vou
negar que me senti pressionada. Mas eu fechei os olhos
também, ao seu lado, e repeti mentalmente que aquele
era o começo do resto de nossas vidas, e todas as noites
eu poderia abraçá-lo daquele jeito. Não havia motivo
para ter medo, e eu consegui me convencer
absolutamente disso.
44
Ledo engano. Não sei se tinha sido uma
premonição, ou qualquer coisa assim. Eu deveria
saber que aquilo tudo era perfeito demais para ser
verdade. Mas eu calei meu coração. Não deixei que
ele me dissesse que aquela noite era o prelúdio, não
o começo. Simplesmente não ouvi. O que eu queria
que fosse minha realidade, transformei na verdade.
Desprezei todo o resto, e não importava mais que
eu estivesse vivendo um sonho. Não pude sustentar
minha quase mentira, de qualquer jeito.
Acordei muito depois do sol nascer. Ele
ainda dormia.
Tentei levá-lo ao cinema numa noite de verão.
Estreava um filme baseado na história de
um livro que ele tinha lido. Eu não gostava dessa
sua mania de basear algumas de suas idéias e
45
experiências nos romances, mas eu também gostei
da história que me contou quando terminou de ler.
Tratava-se de uma mulher e um manicômio,
quando todos achavam que ela era louca. Na
verdade, sua “loucura” era revelações divinas sobre
o Apocalipse. Ela morreu no hospital psiquiátrico,
quando este foi engolido pelo fogo, uma estrela que
caiu sobre a Terra.
Ele dirigia, e eu sabia que estava
apreensivo. Pouco antes de chegarmos ao cinema,
ele comentou.
—Não sei se vai dar certo. Talvez fosse melhor
esperarmos o filme sair nas locadoras.
—Pelo amor de Deus —Brinquei, abaixando o
volume do rádio. —Você ficou falando desse filme a
semana inteira!
Você está comigo.Eu queria ter dito. Vai
superar seus medos de infância, um por um.
46
Ele suspirou.
—O que eu não faço por você?
Compramos pipoca e entramos na sala
de projeção. Escolhemos assentos do fundo, para
qualquer tipo de emergência. Ainda passavam os
traillers que antecediam o filme, quando senti que
ele apertava minha mão, e começava a ficar gelado
de medo. Ele sussurrou para mim antes de levantar.
—Vou beber água.
Eu não queria estar errada. Precisava
ajudá-lo, e aquela era uma ótima maneira de
começar. Gostaria que ele voltasse, e aguentasse por
duas horas. Enfrente seu medo.
Saí da sala alguns minutos depois. Ele
esperava na frente do banheiro, parado sobre o
carpete vermelho, como se me esperasse. Sabia
quwe eu viria.
—Sinto muito.
47
Ele falou. Peguei sua mão enquanto
deixávamos o lugar.
—Eu falei que não ia dar certo. —Não havia
acusação em sua voz, apenas uma certa vergonha.
Senti-me culpada. Não deveria tê-lo forçado a isso.
Essas coisas não se resolvem desse jeito.
—Vamos para casa.
—A tela é maior do que eu imaginava. —
Comentou.
—Tudo é maior se visto de perto.
Tomamos o caminho de volta ao
estacionamento. Ele se viu na obrigação de me
explicar.
—O barulho estava muito alto.
—Eu não deveria tê-lo forçado.
—Pra falar a verdade, eu tive uma esperança de que
não fosse tão escuro.
48
Ele me abraçou e me presenteou com
aquele sorriso de criança.
—Você sabe que qualquer coisa vale a pena com
você.
Olhei para o estacionamento vazio, e
de repente tudo pareceu muito triste. Estava frio.
Talvez fosse por isso. Ele estaria saindo em turnê
em duas semanas. Estremeci e abracei ele com mais
força.
—Vou cozinhar algo bem especial. —Eu disse,
afastando tudo o que não fosse presente da minha
cabeça. Entramos de volta no carro. —Para obter o
seu perdão.
Peas - Mais um esconderijo
Durma em paz, sem medo
Está perdoado por todas as coisas que fez
Talvez dessa vez você consiga
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Parar de pensar, enfim compreender.
Ignore o que está acontecendo
É tudo o que não existe, ou pelo menos não deveria
existir
Deixe de acreditar, não permita que domine você
Você quer ser forte e pagar pra ver.
Agora se sente capaz de me deixar assumir o controle?
Consegue fechar os olhos?
Se sente melhor agora?
( Por que seu coração está apertado? Acha que vai
acontecer de novo? )
Fique quieto, e tente ouvir o que as palavras nunca
poderão dizer
O silêncio desse lugar é tudo o que você precisa
E aos poucos, vai parar de sentir
Devagar, você está cada vez mais calmo
50
Você pode sorrir de novo.”
Conheci Jack Hoppus no meu segundo ano de
Medicina. Ele tinha o cabelo loiro encaracolado, como se
fosse um anjo. Na verdade, atuou como um durante
aqueles anos em que eu me sentia terrivelmente sozinha
e triste. As coisas em casa não iam bem, eu vinha
reclamando do curso para meus pais.
Era meu pai quem mais se incomodava
com os comentários.
—Isso não é para mim. —Comentei, durante o
jantar. —Está ficando cada vez mais nojento, a cada
dia que passa. Não aguento mais ouvir falar de
sangue, tripas, víceras. Ver cadáveres, enfiar a mão
nas suas entranhas e...
—Pare, Deborah. —Minha mão interrompeu,
largando o garfo em cima do prato ainda cheio. —
51
Será que não podemos conversar sobre isso mais
tarde?
—Não há nada para conversar. —Meu pai disse,
irritado. —E se vai continuar fazendo esses
comentários grotescos, é melhor que se retire da
mesa.
Eu o encarei, demonstrando a raiva que
sentia. Sempre tão altivo, tão seguro de si. Achava
saber o que era melhor para si mesmo, e para os
outros.
—Retire-se. —Ele disse, como se pudesse ler meus
pensamentos.
—Por que acha que eu devo ser médica? —Disse,
em voz alta, largando o guardanapo em cima do
meu prato. —Para ser igual a você? Tratar pessoas
doentes por dinheiro? Para fazer como você,
despedir uma velha de oitenta anos de seu
maravilhoso consultório, porque ela não tinha
52
dinheiro para pagar a consulta? —Postei-me de pé.
Ele me observava, impassivo. Minha mãe pedia
para que eu me calasse, a voz baixa. —Você não dá
a mínima se ela vai morrer, ou se não vai. Não se
importa, porque não é problema seu. É assunto do
Governo, dos hospitais públicos. Enquanto isso,
você deita á noite no sua confortável cama, com os
bolsos cheios de dinheiro, e consegue dormir em
paz. E chama isso de felicidade. Mas eu nunca vou
ser como você!
Não esperei resposta, e ignorei a voz
da minha mãe que pedia que eu voltasse. Bati a
porta da frente e fui procurar Jack.
—Não consigo mais! —Eu chorei, enquanto ele me
abraçava, sentados na cama de seu quarto. —Não
vou aguentar aquela escola nem mais um dia!
—Eu entendo, Deb. Mas será que não consegue
suportar mais algum tempo? Pelo menos até que
53
convença seu pai de que isso não é o melhor para
você.
Eu sabia que Jack não entendia. Como
poderia, realmente? Vinha de uma família pobre, se
preparara durante anos para conseguir a sonhada
bolsa na universidade. Era seu sonho, e ele o seguia
com afinco. Mas eu deixei que me abraçasse. Deixei
que minhas lágrimas caíssem em seu ombro.
Ele levantou a minha cabeça para que
eu olhasse para ele. Então, disse a frase que deve ter
ensaiado durante semanas.
—Eu amo você.
Fiquei sem reação. Não esperava
absolutamente essas palavras, não naquela hora. Eu
vinha pensando a respeito há algum tempo, mas
ainda não era capaz de entender meus sentimentos.
Só tinha amado uma vez, quando ainda era uma
criança. Disse para o rapaz na quinta série que
54
íamos casar e ter filhos, mas nosso namoro
terminou quando ele encontrou outra garota para
namorar. Uma menina mais bonita, sem dúvida,
para minha absoluta inveja.
Ele me beijou, e naquele momento,
esqueci todo o resto. Entregamo-nos um ao outro
sem restrições, como se aquele beijo fosse tudo que
tivemos por toda vida. Ficamos em silêncio depois
que aquele momento mágico acabou.
—Por favor, Deb... —Ele tentou, falando baixo, e
hesitando em pegar minha mão. —Namora comigo?
Cometi um dos maiores erros da
minha vida. Confundi um amigo e um momento de
dor com um amante. Disse que sim, e prometemos
que seríamos felizes para o resto da vida.
Nosso namoro durou sete meses, que
pareceram sete anos. Deixei a escola nesse período,
55
fui morar na casa de uma colega por um tempo, até
que meu pai me aceitasse de volta.
Passei a sair mais com minhas amigas.
Encontrei novos garotos, os quais Jack apenas
desconfiara que existiam. Eu o evitava da melhor
forma possível, pois não queria magoá-lo. Ensaiei
várias vezes as palavras que colocariam fim em meu
falso romance. Usaria clichês, do tipo o problema não
é você, sou eu. É uma questão pessoal, tenho que resolver
uns assuntos antes de continuar com um compromisso
tão sério. Mas as coisas se complicam muito mais
quando se trata de um velho amigo, que conhece
você mais do que qualquer um, e desvenda suas
mentiras com um olhar. Ele tinha essa capacidade.
Eu continuei com nossa relação, ainda
que soubesse que estava magoando ele ainda mais
com essa atitude. Até que um dia ele veio até minha
casa, antes do horário combinado. Tinha os olhos
56
cheios de lágrimas, e disse as palavras que eu
queria ouvir, mas ainda não estava preparada para
isso.
Está tudo acabado.
Fui reencontrá-lo anos depois, naquela
festa de Samara, nossa amiga em comum. Jon estava
em turnê havia cinco meses, e eu cometi o segundo
maior erro da minha vida.
Aconteceu tudo tão rápido que eu mal pude
acompanhar. Pela primeira vez desde que o
conhecera, eu não pensava nele. Pela primeira vez,
eu me divertia sem ele.
Jack e eu rimos juntos. Fizemos piadas a
respeito das roupas e dos acompanhantes de nossos
inimigos em comum. Falamos sobre nossos antigos
amigos, nossas travessuras de quando éramos
57
crianças, de nossos pais, do quanto que era
diferente ser adulto, ter nossa liberdade, nossas
próprias responsabilidades. As taças de vinho e
champanhe passavam por nós, e eu nunca me senti
tão descontraída.
Então Jack me perguntou se eu
estava casada. Eu disse que não. Nem sequer
mencionei a existência de Jon. Não sei porquê fiz
isso, pensei não ter necessidade, mas já não tenho
tanta certeza se foram esses meus motivos reais.
Tínhamos bebido demais. Ele me levou para casa no
final da festa.
Ficamos um quarto de hora
sentados dentro do carro, ouvindo a chuva fina cair
no vidro fechado. Ele me contou como era sua nova
vida de jovem médico, eu lhe contei sem
entusiasmo como era minha vida de floriculturista.
58
Então ele me abraçou e disse que era
muito bom me rever. Sei que eu deveria ter recuado
naquela hora, antes que fosse tarde. Ele me beijou, e
eu correspondi, sem entender, mais uma vez, que
aquilo não era amor. Meu coração estava confuso,
porque Jack me lembrava minha adolescência, as
escapadas, os esconderijos, as festas, a alegria. Mas
ele se esqueceu de que tinha sido Jack que me fizera
descobrir que uma hora a paixão adolescente esfria,
e então nós temos que sair em busca do verdadeiro
amor. Eu tinha encontrado a minha outra parte, mas
meu coração insistia em ignorar sua existência
naqueles longos momentos.
Sua outra parte não está aqui. Meu coração
fazia questão em me fazer lembrar. Onde deve estar?
Em qualquer lugar entre a Ásia e a Europa.
Pedi para que Jack entrasse comigo.
59
Não abri os olhos quando acordei. Tive medo que
tivesse sido real. Minha cabeça doía antes mesmo
que eu enxergasse a luz. Meu coração estava
apertado, arrependido pelo que tinha feito.
Desculpe, Jack. Adorei sua companhia, mas preciso ir
para casa. Meu marido está viajando, e não tem hora para
ligar. Vai me ligar a qualquer hora.
Mas Jack estava ali, deitado em minha
cama. Senti sua mão encostar em mim. Levantei-me,
tão tonta que pensei que fosse despencar no chão.
Ele sentou-se, encostado na cabeceira da cama.
Sorriu. Ia me dizer alguma coisa, mas eu não
permiti.
—Por favor, Jack. Acho que é melhor você ir
embora.
—Não está se sentindo bem?
60
Balancei a cabeça em negativa. Ele
começou a se vestir e calçou os sapatos. Eu não saí
da minha posição inicial. Ainda não era capaz de
acreditar que tinha realmente acontecido. Como eu
poderia ser tão tola, tão maluca? Como eu me deixei
levar, como uma muda, uma mulher ser
escrúpulos? Eu sabia que nunca seria capaz de me
perdoar.
Fiquei muito tempo sentada na cama
depois que ele saiu, sem um número de telefone,
sem uma promessa de que voltaríamos a nos ver.
Forcei-me a levantar, arrumar a casa
e abrir a loja, fingir que aquele era um dia comum.
Respirava profundamente a cada minuto, e sentia
um arrepio quando me lembrava do que tinha
acontecido. Sorri para as pessoas na rua, mas meu
sorriso nunca tinha sido tão vazio assim.
Cumprimentei meus vizinhos, e atendi meus
61
clientes. Até conversei com alguns deles, sobre
qualquer assunto trivial do nosso dia a dia. No final
da tarde, eu me sentia exausta. Mas tinha
conseguido convencer a mim mesma que tinha sido
um erro, que eu nunca mais cometeria. Decidi
esquecer aquela noite, aquela manhã, aquele dia
confuso e vazio. Se eu simplesmente não me
lembrasse, aqueles fatos deixariam de existir.
Mais uma vez enganei a mim mesma ao
escapar para a terra dos sonhos, onde meus planos
dão certo, e minhas idéias são as leis. Eu sabia que
estava grávida antes mesmo de comprar o teste na
farmácia, e repeti-lo duas vezes.
A todo momento, eu sentia o gosto dos
lábios de Jack nos meus, e revia com clareza as
cenas. Jack conversava comigo, nós bebíamos, ele
me levava para o carro, e depois eu permitia que
entrasse na minha casa. Meu próprio santuário. O
62
lugar onde todos os meus sonhos se tornaram
realidade, o lugar onde eu tinha encontrado minha
felicidade.
Desperdicei tudo em uma noite.
Quando o santuário de um homem é
profanado, sua vida está acabada.
Ignorei a campainha do telefone. Tocou
a tarde inteira naquele domingo. Não levantei da
cama, me recusando abrir os olhos, e deparar de
novo com a realidade. Acho que tirei alguns
cochilos, porque as horas passaram rápido demais.
Já era manhã de segunda feira. Eu não queria fazer
o almoço, ou limpar a cozinha. Tudo o que eu
desejava era matar aquela coisa que crescia do meu
ventre. Não é uma criança, eu pensava. É um monstro
que veio para destruir a minha vida. Um ser estranho,
um filho do demônio. Que precisa ser morto.
63
Mal percebi que já era noite de novo.
Meu corpo implorava por comida, mas eu sabia que
se comesse, estaria alimentando aquele ser.
Havia alguém á porta. Eu não atendi.
Deixei todas as luzes da casa apagadas, para que
pensassem que eu havia saído. Devia ser uma das
vizinhas fofoqueiras, preocupadas com o fato de eu
não ter aberto a lojinha, nem dado às caras na rua.
Esperei paciente, sentada na cama. Eu já sabia o que
devia fazer.
O telefone tocou de novo. Eu tateei
pelas paredes até chegar á porta que me levaria ao
porão. Acendi a luz do pequeno corredor, pois não
havia janelas ali para que as pessoas da rua
pudessem ver. Hesitei com o ranger da porta que há
muitos anos não era aberta.
64
Não desci o primeiro degrau. Recuei
para atender ao telefone que tinha recomeçado a
tocar. Dessa vez eu sabia quem era.
—Debbie, onde é que você estava?
Engoli em seco, e senti as lágrimas
salgadas queimarem a pele do meu rosto.
—Eu te amo, Jon.
Repus o fone no gancho lentamente.
Ele ainda insistiu, mas dessa vez me apressei em
descer as escadas do porão frio.
A lâmpada que iluminava o lugar
era fraca. Mal permitia que eu enxergasse o outro
lado do aposento. Logo encontrei o que eu
procurava. Como que tivesse sido predestinado
para aquele momento, lá estava a grossa corda,
quase encostada na escada de mão. Usei a escada
para alcançar o teto.
65
Juro que até cheguei a ficar pendurada
pelo pescoço, mas meus pés encontraram o topo da
escada novamente, e eu pulei de volta para o chão,
arfante. Não, não poderia fracassar novamente.
Uma voz interna gritava. Dizia para
que eu parasse com aquilo, que para tudo havia um
jeito, e eu estava percorrendo um caminho sem
volta. O caminho pra o inferno.
Esquadrinhei o porão, da melhor
forma possível. Devia haver alguma coisa que me
matasse além da corda. Um rato passou por mim,
mas eu não me importei. Lembrava das histórias
que eu ouvia ainda garotinha, que envolviam o
inferno e os demônios. Mas naquela hora, eu não
temia. Estava disposta a pagar pelos meus erros.
Encontrei o que procurava, e quase
rastejei até a caixinha com as bolinhas brancas.
Engoli todos de uma vez, e me atirei no chão,
66
desejando que ele se abrisse e me tragasse naquela
hora.
Eu não faço idéia de quem foi que me encontrou
daquele jeito. Jon não estava no quarto quando abri
os olhos. Alguém deve ter mandado chamá-lo.
—Você acordou. —Ele disse, sentando ao meu lado,
e pegando minha mão.
Eu não podia acreditar que tinha
fracassado. Gostaria de chorar, mas sabia que ia
doer muito mais se eu o fizesse. Por que não me
deixaram morrer?
Ficamos de mãos dadas, exatamente
como fazíamos quando ele tinha medo. Daquela
vez, quem temia era eu.
—Você acordou. —Ele repetiu, vagamente.
67
Demorou muito até que eu
conseguisse juntar forças para falar. Então, entendi
que não havia fracassado; O idiota que tentara me
salvar só tinha adiado algumas horas a minha
morte.
—Você pode me perdoar?
Ele balançou a cabeça, indignado.
Desejava que ele já soubesse. Do contrário, eu
precisaria me confessar.
—Você não vai morrer. —Ele tentou.
—Eu não mereço que você fique aqui, nesse lugar
horrível. —Cada palavra demorava alguns
segundos para sair. —Você não merece ficar aqui.
—Pare! —Ele sussurrou.
—Apenas diga que me perdoa.
—Nós vamos casar. —Ele começou a chorar,
debilmente. Não sabia que não adiantava? Tudo
que tinha de fazer era dizer o que eu precisava
68
ouvir. Afinal, era para isso que eu havia recebido
uma segunda chance. —Vamos nos casar, e teremos
dois filhos. Um casal. Você não lembra?
—Você... Você sabe o que aconteceu?
Ele não respondeu e entendi que seu
silêncio era uma afirmativa. Ele sabia. De alguma
forma, sabia.
—Eu estava sozinha. —Eu tentei, embora soubesse
que o que devia fazer era me desculpar, não me
justificar. —Muito sozinha. Por favor, apenas diga
que me perdoa.
Eu conseguia ouvir meu coração.
Uma batida longa, muito lenta para a normalidade.
Ouvi de novo a voz dentro de mim. Você vai morrer.
Precisava de sua resposta para
poder descansar os olhos. Eles começavam a ficar
pesados demais, e fui tomada pela pressa.
—Por favor, apenas diga.
69
—Nós ainda vamos ser muito felizes juntos.
Minha vontade era sacudi-lo pelos
braços, e fazer com que entendesse minha
necessidade. Fiquei ouvindo ele chorar por longos
minutos. Estava com frio, e nunca me senti tão
cansada. Eu sabia que precisava lhe dizer alguma
coisa, mas não conseguia me lembrar o que era.
Terminei cedendo, e fechei os olhos.
Eu devo ter dito eu te amo mil vezes.
Gostaria de tê-lo feito mil e uma vezes.
Observei ele colocar minha mão sem vida sobre o
lençol branco, e apenas sair quando o médico pediu,
praticamente tendo que arrancá-lo para fora.
Fiquei com ele aquela noite. Do mesmo
jeito que ele tinha ficado comigo, ao meu lado na
cama. Não conseguia dormir, fitava o teto, sem mais
70
lágrimas. Tive que resistir á vontade de tocar-lhe o
rosto, e lhe prometer debilmente que tudo ficaria
bem. Tinha medo de que ele se assustasse ao sentir
o meu toque. Tive que partir em silêncio.
Era chegada a minha hora.
Caminhava em direção ao desconhecido, mas ainda
tinha esperança. Não sabemos o que há do outro
lado, e quem sabe eu pudesse continuar velando
por ele onde quer que eu estivesse. Até que
pudéssemos nos encontrar novamente.
Senti o toque frio no meu braço, me
avisando que eu precisava me apressar. De alguma
forma, aquela mão invisível me fazia sentir estranha
e acolhida. Aquele quarto nunca tinha me parecido
tão escuro e frio.
Ainda lhe dei uma última olhada.
Você não foi capaz de me perdoar.
71
Sarah Thompson Eu não morei com Jake por muito tempo. Na verdade,
tenho poucas lembranças do tempo que dividimos o
mesmo quarto. Ele saiu de casa antes que eu
completasse cinco anos.
Jon chorou naquele dia. Agora eu entendo
que se sentia abandonado. Na época, tudo o que eu
pensei foi “Que pena, as brincadeiras de Jake vão fazer
muita falta”.
Mamãe também chorou e pediu para que
ele ficasse. Apenas papai não disse nada. Papai sempre
ficava calado.
Na verdade, Jake não ia para tão longe,
não. Foi morar há algumas quadras lá de casa. Mas o
suficiente para que eu percebesse que Jon chorava
muito mais do que antes durante a noite.
72
—O papai te machuca? —Eu interrompi a brincadeira
com bolinhas de gude.
Costumávamos brincar no quintal, na
mesinha de madeira poída que o papai tinha construído
para mim.
Jon desistiu de lançar uma das bolinhas
no meio da jogada. Demorou um pouco para responder.
—Não.
—Eu achei que sim.
—Quem foi que te disse isso?
Ele mexia a bolinha de gude entre os
dedos. Eu estava quase arrependida de ter começado
aquele assunto, mas há algum tempo eu planejava
perguntar isso a ele. Pensei que talvez devesse ter ido
perguntar direto ao papai.
73
—Não sei. Eu só... Pensei nisso.
—Está sendo uma boba, Sarah. Sabe muito bem que seu
pai não poderia fazer mal para mim.
Assenti, embora não acreditasse. Sim, eu
perguntaria para o papai uma outra hora. Mas agora eu
só queria continuar o jogo. Esperei que continuasse a
brincar, mas ele permaneceu imóvel.
—Jon?
—O que é?
—Pode continuar jogando agora.
Ele fez que sim. Mas continuou
pensativo, olhando para as bolinhas verdes. Sacudi a
mão que apertava uma delas.
—É a sua vez!
—E se nós... Brincássemos de outra coisa? Cansei dessa
idiotice de ficar acertando bolinhas.
Ele espalhou as bolinhas sobre a mesa.
74
—E do que vamos brincar, então? —Eu o segui até os
degraus que nos levariam do quintal á rua. Sentei ao
seu lado. Havia acusação em minha pergunta. Estava
implícito “Se não as bolinhas de gude, o quê? Você não
pode brincar de basquete ou futebol, porque vai ter um
acesso de tosse”.
—Vamos jogar xadrez.
—Eu não sei jogar essa idiotice. —Cruzei os braços
sobre o peito.
—Está aprendendo.
—Não gosto de xadrez.
—Isso porque você é burra, e não sabe jogar.
Arranquei uma pedrinha do chão e lancei
longe.
—Eu não sou burra!
—É, sim. Você é muito burra.
—Eu sei jogar damas.
—E daí? Perde sempre.
75
—Isso é mentira!
—É mesmo? Quando foi a última vez que me venceu?
—Eu sempre deixo você ganhar!
Ele riu. Eu odiava quando ria ao me ver
nervosa. Levantei num salto, desafiadora.
—Vou buscar o tabuleiro. E te provar que posso vencer.
—Vai lá, magricela. Vamos ver do que é capaz.
—Magricelo é você!
Corri para o quarto, a procura do jogo.
Voltei e coloquei o tabuleiro no degrau,
como uma mesa improvisada. Estava decidida a provar
que era uma vencedora.
Ele ganhou aquela partida.
Eu fui conversar com papai quando me lembrei do
assunto, no final daquela tarde.
76
—Por que você não é pai do Jon?
Estávamos na oficina, ele tinha o capô de
um dos carros aberto, e observava atentamente o
conteúdo lá dentro. Suas mãos estavam pretas de graxa.
Sentei na caixa de ferramentas.
—O quê? —Ele perguntou, distraído.
—Quero saber como é que pode você ser meu pai, mas
não ser pai do Jon.
Ele amaldiçoou baixinho, concentrado
na peça do automóvel de seu cliente. Coçou a cabeça,
tornando o cabelo loiro parcialmente negro.
—Dá o fora, Sarah.
—É que eu quero saber!
—Estou ocupado. Vai perguntar para sua mãe.
—A mamãe na vai querer conversar agora. Está
preparando a janta. —Ele tirou uma peça do
carburador, e a examinou. —Você machuca ele?
77
—Ele quem? —Papai recolocou a peça no lugar,
irritado.
—Jon.
—Claro que não. Por que faria isso? —Tirou a atenção
da peça mecânica e olhou para mim. —Ele comentou
algo com você?
Dei de ombros.
—Ouço ele chorar á noite.
—Sarah, escute. Ele chora porque é um bobão, entende?
Nunca encostei um dedo nele, nem pretendo fazê-lo.
Certo?
Eu não estava satisfeita, mas concordei
com a cabeça.
—Entendeu mesmo, Sarah? —Ele quis confirmar. —
Vamos esquecer esse assunto.
—Tudo bem.
—Então vai brincar.
78
Dei um beijo nele e saí. Talvez Jon sentisse
falta do pai. Estava sempre falando a respeito. Meu pai,
quem sabe, poderia entrar no quarto é noite para
confortá-lo, dizer que estava tudo bem, como fazia
quando eu tinha um pesadelo.
Fiquei pensando no assunto o tempo
máximo com que uma criança
é capaz de se preocupar. Papai nem conversava com
Jon. Só se dirigia a ele se precisasse de alguma coisa, ou
na necessidade de repreendê -lo. E o que eram os
barulhos que eu ouvia á noite? Não, não poderiam ser
simplesmente um consolo.
Eram pancadas, tenho certeza. Por outro
lado, não conseguia imaginar papai batendo em
alguém. Pelo menos, não até aquele dia.
79
Eu adorava meu pai. Acho que é dessa forma que a
maioria dos filhos vêem seus pais, como super heróis,
que vão sempre estar perto quando elas precisarem, no
colo de quem podem dormir e sentir-se protegidas.
Aquele que ouve suas manhas e conhece suas manias, e
está quase sempre disposto a conceder privilégios. Pelo
menos quando somos crianças; até que entendemos que
eles também são seres humanos, e erram como nós.
Geralmente, ele deixa de ser aquele super herói, e passa
a representar mais um dos seres fragilizados que vemos
todos os dias, diante dessa vida enorme. Então,
passamos a amá-lo mais ainda, porque ele teve a
coragem de se fazer parecer um herói, e nos ter
protegido da vida real, a qual somos obrigadas a
enfrentar sozinhos, porque exigimos nossa liberdade,
muitas vezes ignorando seu amor e preocupação.
Ele me decepcionou naquele dia, e eu era
muito nova para assumir a realidade. Acho que entrei
80
um pouco no mundo de Jon, e pela primeira vez, quase
entendi porque ele tinha tanto medo da vida.
Jon e eu voltamos da escola, largamos
nossas mochilas no sofá. Comecei a ouvir a gritaria que
vinha do quarto. Era uma briga. Os gritos tinham a voz
do papai. Senti um aperto no coração. Era medo.
Comecei a subir as escadas em direção ao
som. Jon me deteve, segurando meu braço.
—Por que papai está brigando? —Eu sussurrei para ele.
—Não sei. Mas é melhor ficarmos aqui, quietinhos.
Ele me puxou para baixo, mas eu resisti.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Detestava chorar
na frente dele, pois sempre me chamava de chorona.
Mas não consegui me conter.
—Eu quero saber porquê papai está bravo!
Soltou meu braço, dando-se por
vencido.
—Então, vai.
81
Hesitei, mas recomecei a subir devagar.
Discernia as palavras do papai agora, e ele dizia muitos
palavrões. Jon permaneceu onde estava, e não parecia
mais assustado do que eu. Pedi com um gesto para que
me acompanhasse, mas ele fez que não.
Já tinha me aproximado da porta quando
ouvi a pancada. Houve um grito da mamãe. Papai
gritou mais ainda. Eu corri escada abaixo, tropecei no
último degrau.
—Ele bateu na mamãe! —Não consegui controlar minha
voz quando gritei para Jon. Ele me ignorou, e se sentou
no sofá. —Ele bateu na mamãe!
Demorou até que ele levantasse os olhos
para mim.
—E o que eu posso fazer?
Fiquei olhando para cima das escadas por
alguns instantes, mas sem escutar nada. Imóvel e aflita.
E de repente, tudo ficou calmo. O silêncio sempre é
82
perigoso. Papai desceu as escadas cambaleante, julguei
ter visto uma mancha de sangue na sua roupa. Ele não
olhou para mim. Bateu a porta da rua sem olhar para
trás. Deixou um rastro de cheiro de álcool.
Procurei apoio em Jon. Ele não se moveu.
“Devemos subir para ver o que aconteceu?”, quis
perguntar.
Eu subi, já que não houve resposta.
Entrei no quarto. Mamãe tinha um olho machucado, e
estava deitada na cama. Chorava. Eu quis falar, mas
minhas próprias lágrimas sufocaram minha garganta.
—Saia daqui! —Ela gritou quando me viu.
Não esperei segunda ordem. Corri para
meu quarto, fechei a porta. Se tivesse a chave, me
trancaria ali para sempre. Era a sensação de que tudo de
ruim ficava fora do quarto; ele tinha feito com mamãe? E
por quê? Parecia a mim que estava vivendo um
pesadelo, e desejei acordar logo.
83
Mamãe não fez o almoço, Jon desapareceu
durante toda a tarde. Papai só voltou á noite. Daquela
vez, não me consolou porque eu estava triste. Eu
também já não tinha certeza de gostaria e ser consolada
por ele.
Não houve qualquer sinal de que houvesse
mais alguém na casa, até que as luzes foram apagadas, e
todos os moradores da casa foram para a cama. Exceto
papai. Entrou em nosso quarto, sem fazer ruído com a
porta. Como sempre, ou não tive coragem de levantar a
cabeça das cobertas, e descobrir porque Jon chorava.
Não foi possível conciliar o sono, mesmo
depois que os barulhos cessaram, e Jon fez silêncio.
Ele bateu em minha mãe. E agora, ela tinha
um olho roxo agora. Não consegui encará -lo na manhã
seguinte.
Essa foi apenas a primeira vez.
84
Jake veio nos visitar. Perguntou do olho roxo da
mamãe.
—Estava meio sonâmbula, fui descer para beber água.
—Ela deu uma risadinha. —Dei com a cara na porta!
Era a desculpa mais velha que alguém de
olho roxo poderia dar, mas Jake não insistiu. Resolveu
abordar o assunto com Jon, enquanto o acompanhamos
até sua casa, como fazíamos todas as vezes que ele
vinha á nossa casa.
—Javier bateu nela?
Jon baixou a cabeça imediatamente. Uma
coisa que não tinha aprendido ainda era a mentir.
— Não sei.
—Eu sei que bateu.
—Então por que pergunta?
—Eu gostaria de poder ajudá-lo, Jon. Gostaria mesmo.
—Ele suspirou, chutou uma garrafa plástica
85
abandonada na calçada. —Mas mal estou conseguindo
me sustentar. E minha garota.
Jon aproveitou para mudar de assunto.
— Como vai a Courtney? Faz tempo que não a vejo.
—Vai bem, vai bem... Estamos bem. —Ele riu. Nós
sabíamos que poderíamos adjetivar a relação deles com
qualquer termo, menos “bem”. Nunca gostamos dela.
Era uma chata, e tenho a impressão de que não gostava
da gente.
— Bom saber. —Jon riu também.
—Acha que consegue superar mais um pouquinho?
Ele insistia em falar a respeito. Jon devia
estar tremendo por dentro. O medo era muito óbvio
quando alguém lhe falava do papai.
—Sim.
—Sinto muito, Jon. Gostaria mesmo de poder ajudar. —
Paramos na esquina da casa dele. Eu o puxei para baixo
para que pudesse dar-lhe meu beijo de despedida. —
86
Mas assim que eu ficar estável em meu emprego, vou
levá-lo comigo. Isso é uma promessa.
Jon assentiu e retomamos o caminho de
volta. Não sei se acreditou nas palavras de Jake. Mas o
dia prometido nunca chegou.
Meu dia preferido era o Haloween. Eu saía para pedir
doces com a fantasia que mamãe me ajudava a
improvisar.
Jon não ia comigo. Dizia que os meninos
da rua iriam tirar sarro dele. Eu perguntei o que fazia
com que pensasse isso, já que nunca tinha brincado com
os vizinhos. Ele não soube me responder, mas insistiu
em não ir.
87
—Problema seu. —Eu me irritei. —Está fazendo calor,
você vai perder uma noite divertida e não vai ganhar
doces.
—Não estou a fim, mesmo. —Ele deitou na cama, pegou
o controle remoto. —Vai passar um filme que eu não
quero perder.
Dei de ombros e saí. Me irritava essa sua
mania de se trancar em casa, enquanto todas as crianças
estavam lá fora. Até mesmo Heitor nos acompanhava.
Eu adorava Heitor. Minha mãe pedia para que tomasse
conta de mim, mas ele me dizia que eu era livre para
fazer o que bem me aprouvesse.
Ele tinha o cabelo preto enroladinho, e
olhos verdes que estavam sempre sorrindo. Era um
viciado em figurinhas, e usava um óculos grosso que eu
achava ridículo. Morava na mesma rua que eu, e tinha
se tornado o primeiro e único amigo de Jon.
88
Nós perseguíamos os doces, alucinados,
junto com uma turma enorme. A cada ano aparecia
duas ou três crianças novas, e alguém sempre acabava
caindo e se machucando em nossas corridas perigosas,
depois de praticar alguma travessura. Nunca foram
acidentes sérios, e a alegria do Haloween era muito
viva, ainda que nem soubéssemos seus verdadeiros
significados.
Naquele ano, eu trouxe balas e pirulitos
para ele, porque fiquei com pena por causa do seu braço
quebrado.
Ele contou á mamãe e ás crianças da
escola que tinha caído da escada, com o peso sobre o
braço direito. Acho que as pessoas acreditaram, mas eu
sabia o que tinha acontecido de verdade.
Já devia passar das três da madrugada.
Ouvi papai sussurrar para Jon, depois de uma enorme
89
pancada que derrubou o criado mudo que suportava o
abajur.
Começou com o grito abafado de Jon, e ele
começou a chorar antes mesmo que papai deixasse o
quarto.
Papai disse: “Droga! Tente mexer isso aí”.
Um segundo de silêncio. “Tente de novo”. “Droga!” Um
longo suspiro. Jon conteve o choro. “Aguente, garoto.
Pela manhã eu te levo no hospital. Vamos dizer que
você caiu da escada. Entendeu?”. Silêncio. “Entendeu?”.
“Ótimo. Tente dormir um pouco. Isso deve passar logo,
está bem? Pense em outras coisas, coisas boas, certo? E
vai parar de doer. Lembre-se: Você caiu da escada.”.
Afundei o rosto no travesseiro, na tentativa
de não ouvir mais nada. Papai sempre me dizia isso,
para pensar em coisas boas quando eu sentia alguma
dor e não conseguia dormir. Respirei fundo, e engoli
90
algumas lágrimas. Esperei um tempo depois que papai
saiu do quarto, para perguntar.
—Vocês está bem, Jon?
Ele reproduziu um som que significava
sim, mas sua voz estava cheia de dor.
Eu senti pena dele, e pela primeira vez,
ódio do papai. A única coisa que eu encontrei para
deixá-lo mais contente, foi dividir meus doces com ele
naquele final de Outubro.
Jake se trancou na cozinha com Jon. Eu sabia que eles
conversavam sobre o que tinha acontecido, e colei o
ouvido na porta para escutar melhor. Jake era esperto o
suficiente para entender que Jon tinha mentido sobre a
história da escada. De alguma forma, isso me fazia
sentir melhor porque eu não era a única a saber, e não
fazer nada.
91
—Por que acha que ele faz isso?
Era a voz de Jake. Escutei um líquido
derramar-se em um copo de vidro.
—Não sei. —Jon respondeu, em voz baixa.
—Nenhuma idéia?
—Acho que ele fica deprimido. —Foi a resposta de Jon.
Sem afetação. —Precisa descontar em alguém.
Jake ensaiou uma risada
—Entendo. Como uma terapia? —Ou o barulho de seu
punho cerrado contra a mesa. —Nunca gostei desse
imbecil. É ótimo não ter que morar aqui.
—Sim, é ótimo.
Eu esperaria ouvir alguma acusação na
voz de Jon, mas não houve nenhuma. Jake tentou:
—Já pensou em contar á mamãe?
—Ela sabe.
—Tem certeza?
—Sim.
92
—Você já falou com ela?
—Acha mesmo que ela seria tão cega assim?
Jake o considerou por um instante.
—Ela viu. —Jon completou. Novamente, o som do
líquido derramando no copo. —Um dia desses, estava
parada na porta. Viu que ele me batia. Eu ia chamá-la,
pedir que me ajudasse, mas... Não sei. Simplesmente
não sei. —Jon esperou que Jake dissesse algo. O irmão
permaneceu calado por vários segundos. —A verdade é
que ela sabia desde o começo.
“Então, por que ela nunca fez nada?”, devem
ter os dois perguntado-se mentalmente.
“Porque ela tinha medo”, foi a resposta que
achei, refletindo nisso, anos depois. “Tanto medo
quanto Jon”.
—E a Polícia? — Jake indagou vagamente.
—Sem chances! —Jon baixou o tom de voz ainda mais.
Eu mal conseguia discernir suas palavras. —Ele disse
93
que me mataria se eu dissesse alguma coisa. Nem
deveríamos estar tendo essa conversa. Prometa que não
vai dizer nada, por favor. Prometa!
Jake não respondeu imediatamente.
—Está bem, eu prometo.
Ouvi o barulho de cadeiras arrastadas.
Corri até o sofá, e apanhei o controle remoto, fingindo-
me interessada num programa de televisão qualquer.
Os dois passaram por mim, sem desconfiar de nada.
E se Jon tivesse reagido? Permitido que
Jake comunicasse as agressões á Polícia? Se tivesse
fugido de casa, saído mais cedo do seu inferno
particular? Até que ponto sua vida teria sido diferente?
Quando papai não estava, eu achava a casa muito
entediante. Ás vezes brincava com Jon no quintal, ou
nos sentávamos á mesa da cozinha para estudar.
94
Eu tentava aprender, Jon tentava me ensinar.
Batia o caderno fechado na minha cabeça, ou me
espetava com a ponta do lápis.
—Droga, Sarah! Será que eu vou ter que repetir vinte
vezes até você entender?
—Certo, Jon, desculpa. Eu estava prestando atenção. Só
me fale mais uma vez.
Ele fazia questão que eu notasse sua
impaciência, mas repetia todas as vezes que eu
precisava. Não que eu gostasse de estudar com ele, mas
foi graças á essas sessões de tortura que eu passei nos
exames de Matemática.
Se ele resolvia passar a tarde sozinho no
quarto, me expulsava de lá. Eu ficava na sala de estar,
brincando de boneca ou ajudando mamãe com o serviço
de costura.
Eu não sabia costurar, mas ela pedia que
eu contasse os enfeites de cortina ou as roupinhas de
95
bebê já produzidas, para depois colocá-las numa caixa
de papelão. No fim da tarde, antes do papai voltar da
oficina em nossa garagem, a dona da loja vinha pegar as
encomendas. “Conte de novo, Sarah”, mamãe insistia.
“Eu preciso entregar exatamente setecentos desses aí”.
Jon ficava assistindo televisão. Eu ainda
batia á porta do quarto, e implorava para ficar com ele,
pelo menos um pouquinho.
—Não. Quero ter a liberdade de assistir o programa que
eu quiser, e você vai ficar me importunando com seus
desenhinhos de bebê. —Ele gritava lá de dentro.
Como se houvessem muitas opções. Ele
assistia aos programas da tarde, esses projetados quase
que exclusivamente para donas de casa. Não prestava
realmente atenção ás receitas caseiras e dicas de
limpeza, e, ás vezes, acabava pegando no sono.
Tudo mudava quando papai voltava pra
casa. Eu ficava contente com sua presença, e corria pro
96
seu colo assim que ele cruzava a porta. Para Jon, o medo
substituía o ar dentro de casa, e era o sinal de que outra
noite iria começar.
Foi numa dessas tardes que ele descobriu
sua vocação, por acaso. Era uma quarta feira, e mamãe
saiu para fazer a manicure de uma vizinha. Pediu a Jon
para tomar conta de mim.
—Se precisar de alguma coisa, vai me chamar na casa
da Mary, ou ligue pro seu irmão. Deve estar em casa, é
um vagabundo e não faz nada o dia inteiro.
Jon comentou que achava a casa bem
mais sossegada sem os gritos histéricos da mamãe. Faça
isso, faça aquilo. Venha até aqui, saiam já daí. Eu concordei,
e nós dois rimos.
Ficamos na sala de estar, e ele até brincou
um pouquinho com minha nova casa de bonecas.
97
Uma barata saiu de dentro da caixa de
papelão onde eu guardava os brinquedos. Pulei em
cima do sofá, e comecei a gritar, histérica.
—Mata, Jon! Mata logo esse bicho, ou eu vou me mudar
daqui.
Ele reclamou. Não tinha simpatia
alguma por insetos, e sei que sua vontade era subir no
sofá junto comigo. Mas a sociedade exige que sejam os
homens a matar as baratas para as mulheres, então ele
obedeceu. Lançou-se á caçada.
Foi parar no quarto da mamãe, com meu
chinelo na mão. Eu o segui, com os pés no chão gelado.
—Você é tão devagar! —Parei á porta do quarto, ainda
histérica. Não sossegaria enquanto ele não encontrasse o
animal. —A barata até etrou dentro do armário! Meu
deus, ela está dentro do armário.
98
—Não está. —Ele disse, dando a volta no enorme
guarda roupas de madeira escura. —Veio parar aqui
atrás.
Ele verificava o espaço entre o armário e a
parede. Ali encontrou o violão, todo empoeirado. Ele
tirou o instrumento com reverência.
—Olha só isso!
Passou os dedos pelas cordas, fazendo um
barulho que estava muito longe de ser música. Espirrou
com o pó.
—Como pode ficar assim, esquecido?
Revirei os olhos.
—Vai matar a barata!
Foi para o banheiro com o violão, e
começou a limpá-lo com um paninho molhado. Ainda
insisti para que ele matasse a barata, mas ele me
ignorou deliberadamente.
99
Sentou-se na tampa fechada no vaso, e
começou a tocar. Até tinha pose de violonista, mas não
acho que tenha saído alguma nota certa. Dei risada.
—Você é péssimo.
—Espera só até eu pegar o jeito, sua magricela.
Duas vezes por semana, mamãe ia fazer a manicure da
tal vizinha. Jon aproveitava esses dias para praticar com
o violão roubado. Começou a usar também as manhãs
de domingo, quando todos estavam dormindo. De vez
em quando, permitia que eu escutasse. Achei que ele
realmente estava pegando o jeito, e sabia cantar. Até
que foi descoberto pela mamãe.
Ele dedilhava “Get a Grip”. Fico
orgulhosa de pensar que fui sua primeira grande fã, na
longa jornada que ele teria pela frente, fazendo o que
mais amava. Papai estava na oficina, mamãe deveria
100
estar dormindo. Era uma manhãe de sábado, estava
fugindo um pouco de sua rotina. Ela foi atraída pelo
som. Abriu a porta da frente, e nos pegou sentados no
quintal.
A música parou imediatamente. Mamãe
voltou-se diretamente para Jon.
—O que está fazendo?
Ele engoliu em seco, e apertou o braço do
violão com mais força.
—Eu... Eu não... Desculpe.
Ficamos observando enquanto ela
pensava por um instante. Ainda usava o roupão, e
protegia os olhos da luz do sol.
—Onde aprendeu a tocar?
—Eu... Não sei.
—Não sabe?
—Sozinho.
—Mentira.
101
—Eu ouço... Acho que... Rádio.
—O quê?
—Ouvindo música. No rádio. Eu acho.
—Esse violão era do meu pai.
Ele se levantou e estendeu o instrumento
para ela.
—Des... Desculpa.
—Ele tentou me ensinar uma vez, mas... —Sorriu. Não
pegou o violão da mão dele. —Não consegui aprender.
Ele ficaria feliz se te visse tocar.
Jon mordia o lábio inferior, e ainda
mantinha o braço estendido para ela.
—Se prometer tomar conta dele —Ela empurrou de
volta. —Pode ficar com você.
Ele hesitou.
—Eu prometo.
102
—Certo, mas vê se consegue encontrar uma musiquinha
melhor, da próxima vez. E tente ser mais afinado com a
voz.
Só depois que ela já tinha se retirado ele
respondeu.
—Tudo bem, mãe. Obrigado.
Eu sorri para ele, entendendo sua sorte.
—Agora você pode tocar a qualquer hora!
—Vai brincar, Sarah. Eu tenho muito o que fazer.
Antes que eu pudesse retrucar, ele virou
as costas. Fechou-se no quarto. Ficou tocando sozinho
durante horas a fio.
Tive medo do papai, quando retornou
para casa, á noite. Mas ele pareceu nem ouvir a música.
Apenas quando o relógio mostrou onze horas da noite,
ele interrompeu.
—Pára com essa droga, eu quero dormir.
103
Claro que Jon parou no mesmo instante. E
dali para frente, só tocaria quando papai não estivesse
em casa.
Ele me contou que estava montando uma banda. Ele e
Heitor. “Uma dupla”, eu pensei. Perguntei qual nome
teriam, e ele respondeu que não haviam escolhido
ainda. Penso que foi graças á essa banda inexistente que
Jon perdeu seu medo de sair na rua, pois passou a
frequentar a casa de Heitor.
Quando ele completou catorze anos, a banda
finalmente tornou-se uma banda, e a fobia social de Jon
melhorou consideravelmente. O grupo foi batizado com
o nome de Loveartist.
Nunca vi a banda completa, tocando na
garagem que os pais de Heitor permitiram que
transformassem em estúdio. Os outros integrantes
104
ficavam por conta da minha imaginação. De vez em
quando ouvia Heitor e Jon tocar em nosso quarto, e
achava o nome da banda um pouco romântico demais
para o som que eles tocavam. Para mim, na verdade, era
só barulho. Mas quando mencionei minha opinião, ele
mandou que eu me calasse, pois nada entendia a
respeito de música, muito menos de arte.
Mamãe não gostava dos pôsteres e revistas
que Jon guardava na gaveta, nem dos discos que passou
a comprar com sua mesada. Ela dizia que aqueles
músicos tinham pacto com o demônio. As músicas que
cantavam era pura invocação e culto ao demo.
Ele nada respondia á ela, mas continuava
a ouvir as músicas escondido. Eu perguntei se mamãe
tinha razão.
—É apenas uma forma direta de se expressar. —Ele
respondeu, com surpreendente paciência. —Um jeito
105
direto, sem eufemismos. É a maneira de ser você
mesmo, sem se preocupar com a sociedade.
Jon dizia que a música libertava sua
alma. Eu acho que o deixava ainda mais deprimido.
Não demorou muito até que Heitor e ele
passassem a se vestir igualzinho o cara do pôster.
Compraram até um estojo de maquiagem. Mamãe
gritava quando via ele sair de casa daquele jeito, para ir
á escola. Ele se afastava o mais depressa possível, e
íamos encontrar Heitor na esquina.
Eu percebia os olhares quando
passávamos pelo corredor, antes de entrar na sala de
aula. Alguns riam deliberadamente, outros mais
disfarçados. Eu tinha vergonha de estar com eles,
gostaria que mamãe deixasse eu ir á escola sozinha.
—Veja só. —Gritava alguém. —Já chegaram as
bichinhas de maquiagem!
106
Jon não os encarava, como fazia Heitor, em
sua expressão de desafio.
—Não se pode ser diferente. —Jon reclamava, fazendo o
possível para ignorar os outros. —As pessoas têm que
ser todas iguais, umas ás outras, para que sejam aceitas.
—Respira fundo, Jon. Que se danem os olhares. —
Heitor dizia. —Pense no Pistols. O que você acha que
esse pessoal diria se Sid Vicious estudasse aqui?
—Eles ririam. —Jon considerou. —Eu tenho vontade de
gritar e se eu fosse um anarquista? O que pensariam essas
pessoas normais e mecânicas?
Heitor deu uma risadinha. Paramos em
frente aos armários.
—Não seja tão pretensioso, Jon. Nós somos apenas uma
banda de garagem. Isso não que dizer que vamos
mudar o mundo.
—Se eu fosse Sid Vicious ou Steven Tyler? Eu seria mais rico
do que todos vocês juntos. Não seríamos?
107
—Acha mesmo que continuariam nos enchendo o saco?
Ele riu.
—Não mesmo! Bando de superficiais...
Eu olhei ao redor, ansiosa para pegar
minhas coisas e seguir para minha sala. Não conseguia
encontrar meu livro de Inglês. Então por que você não diz
isso ás pessoas que vêm zombar de você? Optei por ficar
calada.
Sam estava acenou para nós. Estava vindo
em nossa direção, quando grupo de garotas a fez parar
para conversar. Eram as famosas e medíocres líderes de
torcida do colégio.
—Faz um tempinho que não vejo a pequena Sammy. —
Heitor comentou, observando a menina conversar
animadamente.
—Está trabalhando muito ultimamente.
108
—Oh céus. —Ele zombou, enquanto Sam lançava um
sorriso na direção de Jon. —Está se sentindo
abandonado?
—Imbecil.
Sam nunca tinha entrado em casa. Jon e ela ficavam no
portão, conversando, ou saíam para tomar sorvete.
Toda vez que ela via o papai, lhe lançava um olhar
mortífero.
Sempre foi muito legal comigo, e de vez
em quando me ajudava a convencer Jon a me levar pra
passear com eles. Ela era a completa antítese de suas
amigas. Fazia parte do clube de dança e das animadoras
de torcida da escola, mas não por status, simplesmente
porque gostava. Ela nunca teve esse negócio de fazer as
coisas pelos outros, pensando no que iriam achar. Isso
109
era o que mais me fascinava nela. E também o seu
cabelo. Decidi que seria igual á ela quando crescesse.
Jake dizia que ela estava apaixonada por
Jon. Eu achava que não, não seria possível. Sam era
linda demais. Tinha olhos verdes, e usava as melhores
roupas da escola. Havia vários dos jogadores de futebol
que queriam namorar com ela.
Que Jon estava apaixonado por ela, eu não
tinha dúvidas.
Quando Jon me contou que estavam
namorando, eu fui obrigada a acreditar em Jake.
Sam salvou a vida de Jon.
Sam e a música.
110
Samantha Paige
Não nos demos conta de quando nossa amizade de
criança passou a ser amor de adolescente. O fato era que
tanto eu quanto ele estávamos perdidos, e nos
encontrávamos um no outro.
Conheci Jon na quinta série. Ele sempre foi
tímido, mas eu consegui fazer com que ele falasse
comigo. Eu era a única pessoa com quem ele conversava
em nossa classe.
Eu não acho que ele era tão diferente e
estranho, apesar do visual que adquiriu mais tarde. A
verdade é que se tratava de um egocêntrico. Sempre
preocupado com que os outros iam pensar, sempre se
sentindo perseguido pelas outras crianças. Sim, eles
111
zombavam de Jon. Mas só o faziam porque ele deixava-
se ofender.
—Ignore esses otários. Simplesmente ignore. —Eu tentei
dizer várias vezes.
—E você acha que eu me importo? —Ele tentava
parecer displicente.
Sei que chorava quando chegava em casa.
Era aula de História. Eu estava compenetrada na lição
atrasada, quando aconteceu. Jennifer lançou uma
bolinha molhada de saliva em Jon, através da carcaça do
que um dia tinha sido uma caneta.
Ela fazia parte da “turma do fundo”, e eu
sempre a odiei particularmente. Usava roupas e atitude
de meninos, e cuspia chiclete mascado no chão. Os
outros meninos riram.
112
Eu tentei me controlar, respirei fundo
três vezes. Mas aí ela gritou, motivada pela risada dos
outros garotos.
—Sua bichinha!
Jon viu quando eu cerrei os punhos e
levantei.
—Não, Sammy. Por favor, você disse para eu ignorá-los.
Não ouvi o que ele dizia, enquanto
avançava para o fundo da sala.
—Espero que não esteja falando de Jon.
Não esperei resposta. Acertei ela na
orelha, enquanto ele tentava puxar meu cabelo. O
professor correu para acionar a diretoria, e todos os
alunos já tinham formado uma roda em volta de nós.
Dei meu último soco, fazendo o seu nariz sangrar, antes
que os inspetores nos afastasse, e arrastasse as duas
para a diretoria.
113
Jon estava assustado em um canto da
sala, e eu acenei para ele, vitoriosa, enquanto me
afastava.
Esperei quase uma hora no banco da
Diretoria. Não faço idéia de onde Jennifer esperou. Foi
bom que estivesse bem longe de mim, pois minha
vontade de arrebentar-lhe os dentes ainda não tinha
passado. Meu pai finalmente apareceu, com aquela
expressão carrancuda de sempre. Um pouco mais
acentuada dessa vez. Não tinha sido boa a conversa
com a diretora.
—Vai me pagar por isso. —Ele disse, enquanto me
puxava de volta para o carro.
—O que foi que ela disse? —Perguntei, como se fosse
necessário. Acomodei-me no banco do carro.
—Está suspensa por três dias. Isso porque queria te
expulsar, Sam.
Suspirei, aliviada.
114
—E quanto ao grupo de dança?
—Ainda está nele, Sam.
Eu sabia que minha mãe ficaria louca se
soubesse que eu tinha sido expulsa do grupo, porque
bati numa garota no meio da sala de aula.
“Quando eu era jovem”, ela diria, como
sempre. “Fazia parte das líderes de torcida da minha
escola. Eu era a mais bonita de todas. Você é igualzinha
a mim, Sam. Não sabe o quanto me orgulho”.
—Não quero mais você metida em confusões. —Meu
pai continuou. Eu começava a ficar levemente
entediada. E imaginava o que faria com meus dias livres
da escola. —Da próxima vez, não vou perdoar. Está
entendido?
Eu assenti antes de saltar do carro. Minha
mãe perguntou o que tinha acontecido, meu pai
explicou tudo com riqueza de detalhes. Eu revirei os
olhos e tentei sair da conversa.
115
—Ela merece um castigo, Morty! —Minha mãe pediu.
—Dessa vez, vou perdoar. —Ele respondeu, dando uma
olhadinha para mim. —Mas da próxima... Bom, já
estamos conversados.
Esperei a permissão para ir para o meu
quarto. Entendi que tinha escapado por pouco dessa.
Mas não pude deixar de rir, lembrando de como deve
ter parecido a cena aos olhos dos outros.
No dia seguinte, encontrei com Jon em nosso
esconderijo. Costumávamos ficar em um beco em nosso
bairro, conversando sobre tudo e sobre nada. Ríamos á
toa, e mesmo que fizesse frio, ficávamos lá, muitas
vezes encolhidos sob um toldo velho para não
tomarmos chuva.
Naquela tarde fazia sol.
116
—Onde foi que você aprendeu a lutar assim? —Jon riu,
quando nos encontramos na mesma tarde.
Tirei uma lata de refrigerante vazia do
caminho, e encostei na parede. Dei um sorriso,
orgulhosa.
—Essas coisas não se aprendem. Nem se ensinam.
—Foi incrível!
—Acha mesmo, Jonny? Pois bem. É que não vai ser
você a perder o exame de Geografia amanhã, não é?
—Vamos, assuma. Está adorando a idéia de uns
feriados, não é?
Dei risada.
—E aquela vadia teve o que mereceu. Você viu a cara
dela quando eu parti pra cima?
—Você deveria ter visto a sua cara! Achei que fosse
matá-la.
—Não tanto. Só queria lhe quebrar alguns dentes.
117
Ficamos rindo por alguns instantes. É
incrível como uma risada pode durar entre dois velhos
amigos, que se entendem tão bem. Muitas vezes,
começávamos a rir de qualquer coisa boba, e no final, já
nem sabíamos do que estávamos rindo. O que,
obviamente, era motivo para mais uma risada. Ele
levantou-se.
—Que tal um refrigerante? —Ele perguntou,
começando a contar as moedas que tinha tirado do
bolso.
Eu levantei atrás dele, e arranquei as
moedas de sua mão. Dei risada.
—São minhas!
Comecei a correr, ele me perseguiu. Quase
fomos atropelados no caminho. Ele parou de correr em
algum ponto, e eu já tinha perdido ele de vista. Esperei
na porta da mercearia até que ele finalmente surgisse,
caminhando arfante. Eu também estava cansada.
118
—Isso aqui não vai dar pra nada. —Eu dei risada,
devolvendo as moedas para ele.
—Quanto é que tem aí?
—Oitenta centavos.
—E quanto custa o refrigerante?
Eu dei de ombros. O dono da mercearia
já começava a olhar torto. Resolvemos entrar e
perguntar.
—Um dólar. —Ele respondeu, mal humorado.
—Acho que nós vamos levar balas de caramelo. —Jon
pediu, sem deixar de dar uma risadinha pra mim.
É certo que eu já havia visto os machucados, mas ele
nunca queria falar a respeito. Da primeira vez, ele disse
que se tratava de um acidente qualquer. Mas eu sabia
que acidentes não aconteciam com tanta frequência.
119
—Ou você é muito azarado. —Eu sugeri, enquanto
andávamos pelas ruas conhecidas do nosso bairro. —
Ou está mentindo para mim.
—Você sabe que eu não mentiria para você.
Eu fiz ele parar.
—Jura?
—Juro.
Olhei para ele por um longo momento. Ele
não desviou os olhos dos meus. Por um momento,
quase acreditei. Não fosse pelo olhar cheio de medo
quando Javier estava perto, e a forma que gaguejava
quando ele se dirigia a Jon.
—Chega de perguntas. —Ele abriu um sorriso, que não
deixariam dúvidas quanto á legitimidade de suas
afirmações, se eu não o conhecesse tão bem. Pegou
minha mão, e lá estávamos de novo, caminhando sem
rumo, conversando bobeiras.
120
Eu sabia que era Javier. Não importava o
quanto seu rosto demonstrasse inocência, e aqueles seus
cumprimentos polidos estavam longe de ser sinceros.
Parecia tão mentiroso quanto Jon. Estive planejando
secretamente uma forma de puni-lo, de fazê-lo ver que
estava pecando. E eu ainda não imaginava a que
consequências estava levando a saúde de Jon. Eu
mesma só fui saber muito mais tarde, pela Internet.
Passei a ignorar os acenos simpáticos de
Javier, quando ele passava por mim acidentalmente.
Julguei que já tinha esgotado minha cota de falsa
simpatia para aquele velho bêbado.
Várias vezes me peguei chorando
pensando nisso. A pior sensação do mundo é a
impotência.
121
Devo admitir que quase me apaixonei por Nathan. Em
alguma época da minha vida, eu estive próxima de fazê-
lo.
Ele era um dos jogadores de futebol do time
da escola. O melhor dos goleiros que a Ethan Martin já
tinha visto. E era louco por mim. Teríamos tornado real
mais um clichê adolescente perfeito, o jogador de elite e
a animadora de torcida loira.
Ao contrário da maioria dos meninos que eu
conhecia, ele era doce e sensível. Sempre me trazia
presentes e elogios. Certa vez, me pediu em namoro.
Passei a noite em claro remoendo o assunto. Quase me
decidi a aceitar, mas embora eu ainda não soubesse,
estava apaixonada por outra pessoa.
Minhas colegas de dança, obviamente,
achavam que Nathan era o cara ideal para mim. Tive
minha primeira discussão séria com minhas melhores
amigas por causa disso, naquela tarde de sábado.
122
A noite do baile de formatura da oitava
série aconteceria em algumas horas. Como qualquer
adolescente, queríamos estar lindas e perfeitas.
Alice enrolava meu cabelo com bobies. Kate
pintava as unhas dos pés, sentada na cama de Alice. Ela
usava um dos esmaltes cor lilás da amiga, que deveria
combinar com o vestido e as sandálias que tinha
comprado no dia anterior.
—Nathan ia te convidar para o baile. —Alice comentou.
—Mas ficou sabendo que você já tinha acompanhante.
Coitado, deve ter ficado desapontado.
—Que pena. —Murmurei, tentando não entrar em
detalhes. Observava meu reflexo no espelho da
penteadeira marfim, imaginando em que tipo de
maquiagem eu deveria apostar naquela noite. Mais
escura, mais discreta? Eu escolheria um vestido branco
e a maquiagem leve. Não queria chamar a atenção
naquele dia.
123
—Por que não aceita o convite de Nathan?
—Porque ele não me convidou.
Senti a voz de Alice se alterar.
—Se você não tivesse espalhado pra escola inteira que
iria ao baile com aquele nerd maluco, ele teria ido falar
com você.
Levantei da cadeira em um pulo,
derrubando o estojo de bijuterias que estava no meu
colo. As jóias falsas se espalharam pelo chão, diante do
olhar perplexo de Alice.
—Se quer ser minha amiga, vai ter que me respeitar. —
Eu não me importava que a mãe de Alice estava no
andar de baixo da casa, e poderia me escutar.—E nunca
mais quero ouvir você mencionar meu melhor amigo,
nem fazer cara de nojo quando me vê com ele. Ou vou
ter que te dar uma surra, exatamente como fiz com
Jennifer.
124
Kate, sentada na cama, interrompeu o ato de
pintar as unhas, e tinha a expressão perplexa. Acho que
mais por eu ter enfatizado as palavras melhor amigo do
que pelo fato de estar gritando.
—Sam... —Alice disse, em voz baixa, como que
tentando me apaziguar. —Sinto muito se te ofendi, mas
é que Nathan está realmente apaixonado por você. E ele
é tão bonito e inteligente! Como sua amiga, não gostaria
que desperdiçasse sua vida dessa maneira. Não é
verdade, Kate?
Kate baixou a cabeça e voltou sua atenção ás
unhas coloridas, murmurando qualquer coisa
ininteligível. Eu suspirei, um pouco mais sob controle, e
me sentei de novo. Alice retomou o seu trabalho.
—Eu gosto dele, e vocês não podem mudar isso. —Fiz.
— Nunca.
Alice hesitou.
—Está apaixonada por ele?
125
—Não. —Eu disse sem pensar. —Mas se estivesse, isso
não seria da conta de vocês.
Ela assentiu longamente, enquanto eu a
observava pelo espelho. Demorou um minuto inteiro
até que voltasse a falar.
—Só espero que um dia você perceba o que está
fazendo consigo mesma.
O assunto nunca mais foi mencionado.
Jon me esperava na esquina de casa. Estava distraído
com o nó da gravata. Nunca tinha usado uma antes, e
sua mãe tinha comprado essa especialmente para o
baile. Ele achava complicado demais, e antes mesmo
que eu me aproximasse, percebi que começava a se
enfezar.
Tampei os olhos dele, de forma que ele não
podia saber quem o segurava por trás.
126
—Minha princesa Sammy. —Ele adivinhou, afastando
minhas mãos e voltando-se para mim com um sorriso.
—Você está lindo. —Eu disse, tomando espaço para
ajeitar sua gravata.
—Esses sapatos estão me matando.
—Não seja manhoso.
—Olha só para você. —Ele brincou, pegando minha
mão quando começamos a andar. —Linda e confortável,
ainda que esteja com esses saltos enormes.
—Percebeu que estou quase do seu tamanho?
—Não seja boba. Você ainda tem que crescer muito.
O clima passou de descontraído para
pesado quando nos aproximamos do salão. A música
estava alta, a conversa animada e a risada jovem
inundavam o lugar. Eu sabia que ele estava com medo,
e só tinha vindo por minha causa.
—Droga de sapato. —Ele tentou, ciente de que eu sabia
que não era esse o motivo de seu descontentamento.
127
Abrimos caminho entre a multidão. Fui
obrigada a parar diversas vezes para conversar com
conhecidos. Eu sentia a impaciência de Jon ao meu lado.
Procuramos um lugar afastado, e encontramos algumas
cadeiras encostadas na parede. Estávamos longe das
caixas de som, portanto a música chegava baixinha aos
nossos ouvidos.
—Seus amigos agem como se eu não existisse.
—Sinto muito. —Eu disse, na falta de palavras. Ele
estava certo, e eu não tinha como retrucar.
—Deixa pra lá. A noite é sua.
—Nossa. —Ele sorriu, com condescêcia.
—O que quer fazer?
—Vai dançar comigo? —Perguntei, de brincadeira. Nem
sei se ele sabia dançar, mas obviamente nunca aceitaria
fazê-lo na frente de tanta gente.
Ele riu, em vez de responder.
—Eu também só quero ficar aqui. —Eu declarei.
128
Porque estar com ele era tudo o que eu
precisava.
Alice olhou em nossa direção algumas
vezes, e quando nossos olhos se encontraram, ela sorriu
e acenou. Estava linda naquele vestido, acompanhada
de Billy, um garoto baixinho com cara de enfezado.
Alice podia ter muitas qualidades, mas a escolha de
parceiros para o baile não era o seu forte. Ainda que,
apesar de feio, e sabe-se lá por qual motivo, Billy fazia
parte da turma dos garotos mais populares da escola.
—Heitor vai vir? —Perguntei.
—Não. —Ele riu. —Não encontrou alguém que quisesse
acompanhá-lo.
—Coitado.
Eu percebia, e sei que ele também, que
algumas pessoas olhavam para nós, com curiosidade,
com empatia. Sei que não conseguiam enxergar o que
eu via nele, mas isso porque eram criaturas superficiais,
129
cegas de espírito. Jon notou que eu encarava com ódio
um dos transeuntes que tinha passado por nós, um
garoto bem mais velho, com cabelo comprido e
calçando um sapato barulhento.
—Isso é ridículo. —Esbravejei. —Eles estão sempre
apoiados em estereótipos. Não sou como essas meninas.
Nunca vou ser.
Jon sorriu para mim.
—Eu sei que não. Você é a minha Sammy.
Estava certo. Para sempre eu seria sua
Sammy.
Á certa hora, levantei para ir ao banheiro.
Já fora das vistas de Jon, Nathan me alcançou no
caminho. Me pegou de surpresa, puxando meu braço
com delicadeza.
—Boa noite, Sam.
—Olá. —Eu queria dar o fora, odiaria que Jon nos visse
conversando.
130
—Faz tempo que não nos falamos. O que tem feito
ultimamente?
—Nada de interessante. —Me afastei alguns
centímetros, pronta para sair.
—Ainda tirando fotos para as revistas?
—Sim.
—Não vi mais nenhuma.
—Que pena.
Ele arqueou uma sombracelha.
—Algum problema?
—Só estou com um pouco de pressa.
—Ah desculpe. —Exibiu um sorriso amarelo. Senti sua
raiva disfarçada. —Está com seu namorado, não é?
—Sim.
—Bom, foi um prazer revê-la. —Me deu um beijo no
rosto.
Escapei para o banheiro rapidamente, e
procurei por ele quando saí de lá. Não o encontrei. Á
131
essa altura, meu humor para festa já havia terminado, e
eu só desejava dar o fora.
Voltei para nosso lugarzinho. Joguei as
palavras seguintes.
—Vamos lá para fora.
Eu estava com vontade de chorar; Por
que a humanidade tem que ser tão supérflua? E
confesso que fiquei chateada com Jon, mesmo que não
admitisse. Por que ele tinha que ser tão diferente, tão
anti social? Por que tinha que usar maquiagem, e não se
vestia como os meninos de sua idade?
Ele não perguntou o que tinha acontecido.
Ao invés disso, me abraçou, enquanto eu enterrava o
rosto nas mãos e chorava. Encostamos em um carro,
num ponto um pouco distante do baile. Ainda éramos
capazes de ouvir a música do DJ.
Pensei em deixar o grupo de dança da
escola. Pensei até em mudar de escola. Senti vontade de
132
abandonar tudo o que conquistei. Até mesmo minha
pequena carreira de modelo. Tudo que eu tinha, tudo
que eu era, apenas me afastava de Jon.
Ficamos naquela posição por vinte
minutos.
—Quer entrar? —Ele perguntou, quando eu me acalmei
e o silêncio reinou entre nós. —Não está com frio?
Eu assenti e limpei o rosto, sabendo que
os outros perceberiam que eu tinha chorado, e haveria
rumores. Pela primeira vez, não me importei com isso.
Voltamos ao salão.
Não estava mais divertido, e eu nem sentia
vontade de dançar. Perdi a noção de quantas taças de
ponche eu tomei, mesmo sabendo que algum idiota
sempre batizava as bebidas em festas escolares.
Comecei a ficar mais alegre, e de repente não me
importava aquela mágoa da sociedade. Descontraía, eu
testei a paciência de Jon.
133
—Vamos dançar, por favor! —Eu repetia sem parar,
puxando o artigo “o” da palavra por favor com capricho.
Ele fazia que não, e pedia para que eu parasse de fazer
escândalo.
Já não sabia onde tinha parado meus
sapatos quando Jon disse que tínhamos que ir para casa.
—Procure para mim, meu príncipe encantado, sim?
Quando ele finalmente os encontrou, de
baixo de uma mesa, passava da meia noite. Ele
praticamente me carregou até minha casa.
—O que acha que seu pai fazer se vir você desse jeito?
Ele perguntou. Estávamos na frente de
casa, eu apoiei uma mão na grade, e outra em seu
ombro. Um degrau acima dele, eu ficava mais alta. Dei
uma risada extravagante.
—Vai me matar, é claro! Mas não importa, você é muito
cavalheiro. Sabia disso? Muito cavalheiro!
—Ah é?
134
—Sim, sim, sim.
Achei que fosse tropeçar, mas tinha sido
apenas um reflexo falso. Ele me segurou pela cintura, de
impulso, e ficamos cara a cara, muito próximos. Dei um
largo sorriso.
—Você é tão lindo, Jon.
—Você está querendo me agradar.
—Não estou. Você é maravilhoso, em todos os sentidos.
E muito mais.
Eu poderia ter voltado á minha antiga
posição, mas continuamos daquele jeito. Eu literalmente
pendurada nele, meus pés quase pendendo dos
degrauzinhos que levavam á minha varanda.
—E o que mais? —Ele provocou, com um ligeiro sorriso
cheio de malícia.
—Bom... —Achei incrível o sabor das palavras quando
se puxavam as vogais. Dei risada. —Você é inteligente e
legal. E sexy.
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Ele riu. Soltei outra gargalhada.
—E agora fica todo sorridente!
—Então me diga, Sammy. Já se apaixonou por alguém?
—Hum hum. —Eu fiz, observando-o por um instante.
—Estou apaixonada.
—Será que eu posso saber por quem?
—Não vou contar!
—Só me dá uma pista. —Ele olhou ao redor. Não havia
ninguém na rua. —Eu conheço?
—Sim, muito bem.
Ele fez um ar pensativo. Dei risada.
—Muito bem, mesmo!
—Está na nossa classe?
—Você está chegando perto.
—Com que letra começa o nome dele?
Não resisti e soltei uma gargalhada.
—A maioria das pessoas o conhece como Jon.
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—Que coincidência! Estou apaixonado por uma garota
que todos conhecem por Sam. —Eu sorri e esperei que
ele continuasse. —Eu conheço ela por Sammy.
Juro que não ia fazer nada, Mas antes que
eu pudesse me controlar, o puxei e beijei. Não sei
quanto tempo durou meu beijo desajeitado de bêbada,
mas meu pai surgiu na porta justamente quando
finalmente o soltei.
—Entre. —Ele disse, obviamente nervoso. —Agora.
Jon tirou a mão de mim, e foi sorte eu estar
dividindo meu peso com a grade da varanda também.
Murmurou um adeus rápido e se afastou
imediatamente.
Meu pai me impeliu até o quarto. Minha
mãe ficou parada ao seu lado, encolhendo-se sob o
roupão. Deitei na cama, imaginando que aquele tinha
sido o primeiro beijo de Jon. Sorri, e eles nem sequer
perguntaram do que eu sorria.
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—O que aquele garoto estava fazendo com você? —Meu
pai perguntou.
Dei uma longa risada.
—A pergunta é o que eu estava fazendo com ele.
—E qual foi a sua sentença? —Jon perguntou, depois
que eu contei de minha pequena discussão com meu pai
na noite anterior.
Estávamos sentados em nosso esconderijo,
e dessa vez fazia frio. Muito frio. Era inverno na
Califórnia. Mascávamos chicletes ruidosamente.
—Mesada cortada. —Declarei, dando de ombros. O
cheiro de pão quente que saía da cozinha da padaria
despertava minha fome. A padaria do sr. Georges dava
as costas para o beco. —E estou proibida de sair de casa.
—É impressão minha ou você está aqui?
138
—Estou. —Dei risada. —Meu pai está trabalhando, e
minha mãe nem vai notar minha falta. Eles estão
ocupados demais para me educar.
Ele ficou em silêncio por um instante.
Mesmo os melhores amigos ficam sem palavras de
consolo de vez em quando.
Eu resolvi arriscar as palavras que ensaiei
durante a manhã inteira.
—Posso te fazer uma pergunta?
—Sempre pode dizer o que quiser. —Ele brincou,
mexendo no meu cabelo.
—Já esteve apaixonado?
Ele mudou de posição levemente. Era
exatamente a reação que eu esperava.
—Por que a pergunta? —Deu uma leva estremecida, e
me abraçou. —Nossa, que frio!
—Estou curiosa. —Dei de ombros.
—Acho que já estive, sim.
139
—Ah... —Fiz uma pausa.
Tinha começado a ventar. Fiquei com medo
de que ele pegasse um resfriado. Ele começou a falar,
tão direto que me deixou sem resposta por um segundo.
—Você se lembra do que aconteceu ontem?
—Sim. —Respondi, timidamente.
—Eu sinto muito. —Ele passou a fitar os próprios
sapatos.
—Sente? —Aventurei.
Deu uma risada nervosa.
—Não tanto assim...
—Que bom. Por que eu não sinto muito.
—É... Nem eu.
Tirei uma pedrinha do chão e comecei a
brincar com ela. Eu também não tinha coragem de olhar
para ele.
—Na verdade, eu adorei. —Ele alegou.
Silêncio.
140
—E seu pai?—Ele tentou, retomando o tom
descontraído. —Ficou bravo?
—Já tenho quase dezesseis anos. Não tenho mais idade
para ficar levando bronca de papai.
—Sim, sim. Dezesseis. É praticamente adulta.
—Bobo.
Ele riu.
Como odiei aquele silêncio!
—Era verdade? —Arrisquei.
—O quê?
—Quando disse que gostava de uma menina ...? —Ele
nada disse, tentando parecer confuso.
—Sammy? Sim, eu conheço uma certa Sammy.
—E está apaixonado por ela?
—Não tenho certeza, mas acho que ela me disse que
estava apaixonada por um certo Jonathan.
—Jon. —Eu fui sincera. —Sim, ela está.
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Rimos simultaneamente, por muito tempo.
Depois o silêncio prevaleceu sobre nós. Não há nada há
dizer quando não sabemos exatamente o que sentimos.
Tudo o que sabíamos era que os dois sentiam o mesmo.
Ele me puxou para mais perto, e dessa vez foi sua a
iniciativa de me beijar. Notei que ele era bem talentoso
para um iniciante.
Por um momento, meu mundo girou duas
vezes mais rápido, e as estrelas brilharam no meu céu
há muito tempo sem vida.
Encontrei Jake na rua por acaso. Ambos estávamos
indo á padaria. Ele estava acompanhado de Sarah.
—Soube que está namorando. —Ele disse, enquanto
ajustávamos nossos passos, e começávamos a caminhar
juntos.
142
—Jon contou?
—Sim. Sortudo ele, não?
Sarah sorriu para mim, com ar de
cumplicidade.
—Eu diria que a sorte é minha.
—Claro que diria. —Ele riu. —E o que acham seus pais?
—Meu pai ficou nervoso, mas eu nem ligo. E minha
mãe se importa menos ainda.
Entramos na padaria. Ele fez seu pedido no
balcão.
—Eu sempre soube. —Ele suspirou, brincalhão.
—Soube, é?
—Sim, que vocês se amavam.
—Como poderia saber? Nem eu mesma sabia!
—Crianças... —Ele pegou os pães da mão da atendente,
agradeceu. —Até mais, cunhada.
Fiquei imaginando até que ponto Jake teria
razão. Caminhei a passos curtos de volta pra casa,
143
balançando o pacote da padaria. Decidi que ele estava
certo. Sempre tinha amado Jon.
Naquele ano, minha carreira deu uma guinada. Pela
primeira vez, acreditei que as chances de realizar meu
sonho eram reais.
Eu tirei minha primeira foto para a
publicidade de uma empresa de brinquedos quando
tinha sete anos, e desde então, entendi que aquele era
meu destino. A imagem da modelo famosa, dando
autógrafos e sendo reconhecida por adultos e crianças
na rua passou a povoar os meus sonhos, e para mim, eu
já era uma modelo.
Meus pais sempre me encorajaram a esse
respeito, embora eu tenha sido apenas a esse respeito em
tudo o que fiz e quis fazer. Até hoje eles são assim.
Mesmo quando tive meu primeiro filho, eles não
144
pareceram se importar. Aliás, só vieram visitá-lo em
Chicago quando ele estava próximo de completar dois
anos de idade.
Apesar disso, sei que não teria sido possível
sem a ajuda e apoio deles. Eu chegava da escola, e ia
direto para uma sessão de fotos, e muitas vezes, nem
tinha tempo para almoçar. O que, diga-se de passagem,
já tinha deixado de significar um problema, eu tentava
comer o menos possível para manter a forma. Era
bobagem, agora reconheço, pois eu não tinha tendências
a engordar, tinha sido magra durante toda minha vida,
e a família de meus pais não possuíam essas tendências
também. Mas tudo estava dando tão certo, que fiquei
com medo de estragar.
Eu chegava tarde, á noite, muitas vezes. De
vez em quando conseguia fazer um trabalho escolar, ou
a lição de casa, mas outras vezes o cansaço era maior, e
145
eu ia direto para a cama. Foi um esforço enorme ser
aprovada naquele ano.
Jon reclamava que eu não tinha tempo para
ele. E não havia justificativa, porque era verdade. Por
mais que eu me esforçasse, era verdade.
Mas ele também andava muito ocupado com
sua banda, que agora estava completa e não mais fazia
covers. O Loveartist tinha agora suas próprias
composições, o que me deixava orgulhosa. De alguma
forma, eu sabia. Tinha certeza de que, como eu, ele
também conseguiria.
Nosso relacionamento ia bem. O mais
engraçado é que quando começamos a namorar, não
mudou muitas coisas entre nós. Aliás, olhando agora,
nada mudou. Continuamos a ser aquelas crianças
apaixonadas, mas agora declarávamos isso a nós
mesmos, e um ao outro. E tínhamos o hábito de nos
beijar.
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Em 1997, Jon já tinha perdido cinquenta por cento de
sua fobia social, e tinha mais alguns amigos. Seus
parceiros de banda, Max e Gerald, além de Heitor, é
claro. Max era o mais engraçado da banda, estava
sempre de bom humor; Gerald, eu acho, era um cérebro
incrível escondido atrás de óculos de arames grossos. E
estava apaixonado por mim.
Eu sempre soube, pelos seus olhares e pela
forma cheia de timidez que se dirigia a mim. Não sei se
Jon sabia, ou se descobriu mais tarde, mas não me
importava mais. Tudo o que sei é que certo dia, ele não
chegou mais perto de mim. Na minha opinião, ficou
com medo de que Jon descobrisse.
Fui a um show do Loveartist, em um bar em
que a banda tinha sido aceita todas as sextas-feiras. Era
um lugar amplo, cheio de jovens vestidos de preto, e de
atitude displicente e indomável um pouco forçada. Era
uma barulheira, mas o que eu não teria feito por Jon?
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Eu tinha acabado de voltar de uma pequena
viagem à Nova York, e estava bem cansada da longa
viagem do dia anterior. Minha cabeça doía, mas dei o
meu melhor para ficar ali até de madrugada. Sentei
sozinha em uma mesa perto do palco, e fiquei
observando Jon cantar. Já tinha visto ele nos ensaios,
mas em cima do palco ele se superava.
Jon não tinha pretensão de lugares maiores
ou turnês mundiais. Estar ali era tudo que importava
para ele, o palco e as pessoas eram apenas uma
consequência. Ele cantava para ele mesmo, então não
fazia diferença se as pessoas escutavam ou não.
Ele desceu do palco e sentou-se ao meu
lado. Já passava das duas da madrugada, e outra banda
assumiu o palco. Eu não entendia muito desse tipo de
música, mas sabia que a Loveartist era a melhor.
—Está se divertindo? —Ele perguntou.
—Vocês são muito melhores.
148
—Com certeza. Dez vezes mais.
Gerald sentou-se com a gente. Em nada
parecia com um “astro do Rock”, a não ser que estivesse
em cima de um palco, atrás de uma bateria. Foi meu
primeiro pensamento quando vi ele pela primeira vez, e
depois em um ensaio.
Ele pediu uma quantidade absurda de
cerveja, e ficou me observando sobre a borda do copo.
Fiz o possível para ignorá-lo, rezando para que Jon não
percebesse.
—Preciso te contar uma coisa. —Jon disse, erguendo a
voz para ser ouvido através da música alta. —Aquele
seu amigo, Nathan, veio falar comigo hoje.
—Nathan não é meu amigo. —Achei necessário dizer.
Senti que minhas mãos começavam a ficar suadas.
—Ele disse para eu me afastar de você.
Tomei um gole de cerveja. Ele fez o mesmo.
—Não dê bola para Nathan. É um idiota.
149
—Eu disse pra ele se ligar, ele não tem a menor chance
com você. E se alguém tem o direito de pedir para se
afastar, sou eu. Falei de forma bem clara: Se afaste da
Sam.
—Está brincando. —Custei a acreditar. E até hoje, não
sei se acredito. Era uma situação quase inimaginável.
—Não estou.
—Você não disse isso.
—Disse.
—Meu Deus!
—Eu acho que ele não gostou muito. Mas não disse
nada, não. Só concordou e saiu.
Lembrei que Nathan tinha me cumprimentado
de um jeito estranho na saída da escola essa manhã.
Eu me inclinei sobre a mesa e dei um beijo
nele.
—Você é o meu herói.
Ele deu risada.
150
—Faço o possível.
Gerald observava.
—Sabe, Jon... —Comecei, imensamente desconfortável.
—O que acha de irmos lá para fora um pouco?
—O quê? —Max surgiu, de repente, completamente
embriagado. Não pude deixar de rir de sua repentina e
absurda intromissão. —Vão nos deixar?
—Vamos, bêbados malucos. —Jon riu também, pegando
na minha mão para sair.
—E nem vai tomar cerveja, Jon?
—Já tomei.
—Fracote. Só aguenta uma lata.
—Um copo, imbecil. —Jon brincou, empurrando-o e
abrindo passagem. —Está vendo alguma lata na mesa?
—Está vendo alguma lata na mesa?—Max remedou, com
uma voz engraçada e ridícula, enquanto nos
afastávamos. —“Vamos lá, Jonny.Vamos dar uns beijinhos
lá fora”. “Claro, minha Sammy. Você é tão linda!”
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Vi Heitor, do outro lado do bar, conversando
com uma menina de cabelo tingido, metade de roxo,
metade verde limão. Ele acenou para nós, e deu uma
piscadela para Jon. Ganhei essa. Era o que ele queria
dizer. Perguntei-me se Jon não queria ser como ele,
solteiro. Poderia ficar com muitas daquelas garotas, e
sei que elas dariam bola para ele. Percebia a forma que
olhavam para ele no palco. Aquele era o seu mundo, o
lugar onde ele era aceito. Ali, ele conseguia ser
simplesmente Jon.Fui invadida por um sentimento de
tristeza repentino. Éramos tão diferentes!
Quando deixamos o salão, eu repensei.
Éramos diferentes em quase tudo, mas nossas
diferenças se encaixavam tão bem que eu sabia que
nosso amor seria para sempre. Pelo menos enquanto
durasse.
Caminhamos de volta para casa, e devo
dizer que era um longo caminho a pé. De qualquer
152
forma, era bem mais seguro do que voltar com Max e o
carro de seu pai, pelo menos naquela noite. Andávamos
a passos curtos, olhando para estrelas. Naquele dia
fizemos promessas. Dissemos um para o outro que
estaríamos ali, juntos, sempre e sempre. Rimos quando
nos imaginamos velhinhos, mas ainda discutindo sobre
quem era o melhor jogador de pôquer dos becos de
Bakersfield.
Tudo terminou no final de maio daquele
ano.
Era tarde de quinta feira quando meu pai me levou á
sala de Mathew, aquele que seria meu novo empresário.
Sentamos em seu escritório grande, e por mais que eu
tentasse, não conseguia prestar atenção ao que ele dizia,
depois de pronunciadas as palavras contrato, Chicago,
153
mês que vem, e o nome de uma empresa de cosméticos
muito famosa na época.
Confesso que não sabia quais eram as minhas
emoções naquela hora. Nunca estive tão confusa. Eu
pensava em Jon, e na distância de Chicago até a
Califórnia.
Um mês.
Talvez tenha sido até bom, mas eu não tive
escolha. Não tive, porque meu pai não me perguntou se
eu queria ir. Fiquei muda durante todo o trajeto até
nossa casa, enquanto ele tagarelava sobre o orgulho que
ele sentia por mim. Depois minha mãe, que me abraçou
e até chorou de emoção.
Fui falar com Jon ainda naquela noite. Foi
ele que atendeu a campainha.
Desabei em seus braços, e comecei a
chorar. Ele me arrastou para a calçada, e sentamos ao
meio fio.
154
—O que aconteceu? —Perguntou.
Respirei fundo várias vezes, antes de me
sentir capaz de responder.
—Estou indo para Chicago o mês que vem.
Ele ficou imóvel por um instante,
absorvendo a notícia, esperou que eu parasse de chorar.
—Não tem outro jeito? —Ele indagou.
—Não.
Passou-me pela cabeça pedir-lhe em
casamento naquele momento. Abracei ele, e chorei mais
um pouco.
—Eu já devia estar preparada. Eu sabia que isso poderia
acontecer. —Apertei ele com mais força. —Sinto muito,
Jon.
Ele assentiu.
—É que a gente nunca espera por essas coisas. —
Tentou, com ar de quem sabe das coisas.
—Não sei se vou suportar!
155
Ele esperou mais um pouco antes de fazer a
pergunta a seguir.
—E o que vai acontecer?
“Com nós dois?”. Tinha sido isso que ele
quis dizer?
Eu não sabia.
Ele me abraçou com tanta força que quase
machucou.
—Por que você tem que ir? —Senti que ele ia começar a
chorar.
Tentei explicar da melhor forma
possível, e não deixei de enfatizar que meu pai tinha
tomado a decisão por mim, embora eu não tenha tanta
certeza do que teria escolhido se tivesse a chance. Mas
tudo o que eu sabia era que nunca mais queria que ele
me soltasse do abraço.
156
—Vamos aproveitar nossos últimos dias. —Ele se
restabeleceu, mais rápido do que eu. — E rezar para que
você volte logo.
Tentamos fingir que não era o final.
Passamos as férias sentados em nosso esconderijo,
relembrando fatos antigos com nostalgia, e nos
lamentando de que estivesse terminando, embora não
verbalizássemos tudo o que pensávamos. Não tinha
importância se eu voltaria a Bakersfield ou não. Tudo o
que víamos á nossa frente era a partida.
Não houve muitas palavras em nossa despedida. Era
manhã de domingo, ele ainda vestia o pijama e estava
descabelado quando me atendeu á porta. Eu sabia que
ele tinha chorado e não dormido, porque seus olhos
estavam tão inchados quantos os meus. Ele me abraçou,
e sussurrou no meu ouvido que não me deixaria partir.
157
Não nos importava mais que meus pais esperavam no
carro para me levar ao aeroporto. E aquele abraço
pareceu durar horas.
—Eu vou voltar. —Eu falei, sabendo que mentia.
—Se não voltar. —Ele tentou. —Vou ter que ir buscá-la.
Eu sorri tristemente, e desejei que o tempo
parasse naquele momento. Ele passava a mão no meu
cabelo, quando eu voltei a abraçá-lo. A buzina do carro
do meu pai nos trouxe de volta ao presente, e só
naquele instante eu entendi que era real. Sim, aquele era
nosso último momento.
Acenei adeus enquanto o carro se afastava,
deixando para trás um garoto parado á porta, que
chorava, longe da minha presença.
Eu vou voltar. Prometi a mim mesma. Vou
voltar porque não posso ver minha vida sem Jon.
Não podia, mas foi assim que teve que ser.
158
Heitor Lee
Os problemas de Jon formaram os ingredientes
principais para que o Loveartist conseguisse seu lugar
ao sol. Ele começou a escrever nossas letras assim que
Max entrou na banda. Dizia que não existe artista sem
confusões emocionais, e não existe arte sem dor. Eu
diria que era apenas uma de suas maluquices, mas
quando conseguimos vaga toda sexta feira em uma casa
de shows importante, tive que concordar.
Estudamos juntos na quarta série, eu era quase
seu vizinho. Era a única criança com quem ele
conversava. Acho que deveria ter procurado um bom
médico, a sério, ainda nessa época, mas quem sabe as
coisas não melhorassem? Claro que não comentei a
159
respeito, pois eu nem sabia o que fazia um psiquiatra
até então. O fato é que ele mal saía de casa, e quando o
fazia era só para ir á mercearia. Dizia que as pessoas lá
fora observavam.
Afora isso, acho que Jon era um garoto
bem normal. Mamãe dizia que ele era estranho, e que eu
deveria ter cuidado quando brincava com ele. Retruquei
que Jon nada tinha de diferente. O único problema era
que não gostava de brincar na rua, afinal, não podia
jogar futebol. Hoje, penso que ele usava sua asma como
uma boa desculpa para não sair de casa.
Melhorou bastante quando conheceu
Sam, a loira bonita. Diziam que o pai dela era dono de
uma multinacional, mas desconfio de que ele fosse
apenas o domo da fábrica de látex que ficava perto da
escola. Crianças gostam de inventar boatos. As crianças
de Ethan Martin mais ainda.
160
Sam ia conosco á escola quase todos os
dias, e não se importava de ser vista com os plebeus,
justamente quando tinha tudo o que queria.
Ás vezes penso em Sam, e tento
desvendar o mistério.Talvez estivesse cansada de ter
tudo que a vida e as possibilidades lhe ofereciam. E
precisasse de menos.
As aulas de Educação Física eram
também grande problema para Jon. Os garotos diziam
que ele era magricelo. Ele chorava. Os meninos riam
ainda mais. Eu acho que ele fazia muito caso disso, e ele
nem era tão magro assim. Os mesmos garotos também
caçoavam de mim, me chamavam de gorducho, e olhos
de fundo de garrafa. Eu ria com eles, devolvendo um
comentário maldoso. Jon levava tudo muito a sério. Fico
feliz que tenha mudado nessa parte ao longo do tempo.
Mas reconheço que daquela vez os alunos
pegaram pesado. Viram uma marca roxa no seu braço e
161
começaram a fazer piada. Estávamos no vestiário,
aquele lugar depois da Educação Física, tão temido
pelos pré adolescentes, especialmente os mais tímidos.
—O que é isso, cara? —Um deles perguntou. Tinha uma
toalha enrolada na cintura. —Foi mordido por alguma
espécie de vampiro gay, como voce?
Era a piada mais inteligente que um
garoto de onze anos pode fazer, e a risada foi geral. Jon
correu, e se trancou em um dos banheiros.A algazarra
no vestiário da escola foi tanta, que chegou aos ouvidos
da professora mais distraída que tínhamos.
—Saia já daí. —Ela deu um toque na porta, com
rispidez.
De início, Jon não respondeu. Como ela
insistiu, ele finalmente gritou, com a voz embragada.
—Não quero sair; Nunca mais.
Eu sei que Jon falava sério. Os alunos
esperavam do lado de fora, e alguns se atreviam a
162
observar o que acontecia, com a cabeça inclinada no
batente da porta aberta. Procurei pelo agressor, mas ele
já tinha escapulido. Só quando a diretora apareceu, Jon
foi convencido a sair, e apenas sob a ameaça de
convocação dos pais.
Não sei exatamente o que aconteceu depois
da visita á sala de diretora. Thomas desapareceu por
três dias, e houve rumores de que tinha sido suspenso.
Jon também não deu as caras por duas semanas, e eu
suspeitei que algo grave tivesse acontecido. Tentei
visitá-lo em casa, mas sua mãe dizia que estava doente e
não podia sair para brincar.
Ele reapareceu com um braço quebrado.
Comecei a ouvir falar que Jon se machucava sozinho.
Sinto um ódio corrosivo toda vez que penso nisso.
Poderiam os adultos da época serem tão cegos? Claro, a
viúva Sophia e o mecânico que adotara a família
Jordison não seria capaz de machucar uma criança.
163
Principalmente quando tinha aquela fala mansa, e
comparecia á missa todos os domingos.
Tudo o que eu sabia na época era o que ouvia
falar, e como as crianças inventam muito, não posso
afirmar que era verdade. Mas ouvi dizer que Jon foi
encaminhado a um psicólogo, conveniado da escola. Se
realmente foi, não adiantou absolutamente nada.
Sam não ficava conosco todos os dias. Ás vezes ela
faltava na escola porque tinha uma sessão de fotos ou
qualquer coisa do tipo. Não me admira que ela tenha
conseguido o que conseguiu. Além de linda e talentosa,
ela sempre foi muito esforçada, ficava até de
madrugada colocando as lições atrasadas em dia.
Nós voltávamos sozinhos da escola
naquela tarde. O dia seguinte era exame de História, e
vínhamos discutindo o que teríamos que estudar.
164
—Eu não sei a quem tento enganar. —Jon disse,
diminuindo os passos. —Eu sei que vou acabar não
estudando, e mais uma vez, fazendo a prova na raça. —
Suspirou tristemente, como se não soubesse que ia
passar no teste. Estereótipos geralmente estão certos.
Jon sempre ia bem nas provas. —Não ande tão rápido,
Heitor. Vamos acabar chegando em casa logo.
—Estou com fome. —Justifiquei.
—Você tem a vida inteira para comer.
Passamos por uma igreja. Ele se deteve,
especulando o que havia lá dentro. Fui obrigado a parar
também.
—O que é?
—É tão bonito.
—E daí? É chato, também. Terminei o catecismo ano
passado, e, acredite, não é a coisa mais divertida para se
fazer nas manhãs de sábado.
—Vamos entrar.
165
Ele avançou a passos largos pelos degraus
da pequena igreja, antes que eu pudesse detê-lo. Lá
dentro estava escuro, o cheiro de velas acesas era forte.
Jon estava fascinado, pareceu a mim que nunca tinha
visto uma igreja antes.
—Qual é, Jon? Não tem nada de mais.
Avançamos pela nave vazia. Ele parou em
frente á estátua de Jesus. Era a imagem do Senhor em
tamanho real, deitado em um caixão. Os olhos fechados,
mas não me parecia realmente morto. Dava a impressão
que estava sonhando. Jon passou a mão na imagem. Há
alguns metros, uma senhora estava ajoelhada ante a
imagem de Nossa Senhora, e movia os lábios sem parar.
Jon fechou os olhos. Ficou parado desse jeito por alguns
segundos. Depois, recomeçou a andar.
—Imagina só. —Ele disse, baixinho. —Todas essas
pessoas, mortas.
—O quê?
166
—Essas pessoas. Morreram. Todas elas.
Eu olhei ao redor, tentando ver o que ele
estava enxergando.
—Esses que escutam nossas orações. —Ele explicou,
percebendo minha confusão. —Quase posso sentir o
espírito delas nesse lugar. Dizendo que não, não podem
nos ajudar. Eram mortais, como nós. “O destino está em
suas mãos. Ninguém pode fazer nada por você”. É o
que dizem.
Balancei a cabeça em concordância.
Queria ir embora. Meu estômago começava a roncar.
—Está vendo aquela velha? —Ele apontou a mulher
ajoelhada. Agora ela lutava com um palito de fósforo, a
vela branca á sua frente esperando para ser acesa. —Um
espírito do lado dela está dizendo para que ela fique em
paz. Porque ele está em paz. Como uma mãe pode ficar
bem com um filho morto? —Indagou, mais para si
167
mesmo, ou alguém invisível, do que para mim. —
Como?
“Bom saber que agora você é vidente”,
pensei, mas continuei calado.
—Nossa... —Ele sentou-se no último banco. Eu o
acompanhei, mas não sentei. Voltou os olhos para o
altar. —A morte tem tanta vida aqui!
Deixei ele com o olhar pensativo por
alguns instantes. Depois arrisquei, de voz baixa, com
medo de romper o silêncio sagrado. Confesso que Jon
começava a me assustar.
—Podemos ir embora?
Inicialmente, achei que não tivesse
ouvido. Ia insistir, mas ele levantou-se e tomou a
direção da rua. A luz do sol pareceu clara demais para
meus olhos recém adaptados pro escuro. Nossos passos
continuaram lentos.
168
—É claro que era só especulação. —Ele me acalmou,
tentando diminuir ainda mais o ritmo. Não permiti que
fizesse isso, começando a me revoltar. Meus passos
mais rápidos venceram. —Não posso saber se era o filho
da velha que tinha morrido.
Eu olhei para o céu. Devia ser quase três
horas de tarde.
—Sério, Jon. Nunca estive com tanta fome.
A partir desse dia, eu sabia onde procurá-lo quando
desaparecia. Sam e eu o encontramos em outra tarde,
sentado no mesmo banco da primeira vez, olhando para
a frente, do mesmo jeito vago e sonhador.
Entramos daquela forma hesitante com que
entram os não tão cristãos assim.
169
—O que está fazendo aqui? —Sam perguntou, perplexa.
Já tinha feito a primeira comunhão também, e
concordava que crianças não vão para a igreja por
vontade própria.
—Estava rezando.
—Por que veio sozinho?
—Eu queria ter uma conversa a sós com Deus.
Dei uma olhada para a estátua de Jesus pela
qual Jon tinha ficado apaixonado. Continuava ali,
intacta, sem nenhuma diferença. Há quantos anos
estaria ela naquela mesma posição, daquele mesmo
jeito? Seria sacrilégio trocá-la de lugar?
—Por que não foi rezar ali?
Apontei para a estátua. Ele deu um leve
sorriso, um pouco triste. Apontou para cima, indicando
o céu.
—Prefiro conversar com o de verdade.
170
Uma jovem passou pela porta; Olhou para
nós, eu acenei polidamente. É estranho como nos
sentimos próximos das pessoas que não conhecemos se
estamos dentro de uma igreja. Acho que é porque
descobrimos que temos a mesma crença, e, sim, aquilo
nos torna irmãos. A menina sorriu timidamente e
sentou-se num dos bancos mais á frente, abaixando-se
para rezar também.
Sam se sentou ao lado de Jon.
—O que estava pedindo a Deus?
Ele deu de ombros.
—O de sempre.
Fiquei me perguntando o que seria o de
sempre. Aquilo que todos pedimos, sem realmente
prestar atenção no que falamos? “Abençoe minha
família, nos dê saúde e prosperidade”. Ou o que ele
pedia? A respeito de Javier, provavelmente.
171
Ficamos parados ali por algum tempo. Ele
pegou na mão de Sam e levantou.
Eu tinha para Jon um bom motivo para rezar.
Na minha opinião de mero espectador,
eram óbvios demais os olhares de Gerald para Sam. Eu
já não tinha dúvidas a respeito, mas o baterista veio até
a minha casa num fim de semana. Chorava tanto que
pensei que alguém de sua família tivesse morrido.
—Estou apaixonado por Sam.
Sua notícia velha quase me decepcionou.
—Não me diga.
Gerald balançou a cabeça, em efusiva
afirmativa.
—Tenho certeza de que estou.
—E percebeu isso de repente, é?
—Não. Mas fui obrigado a admitir a mim mesmo uma
hora atrás.
172
—Certo. Isso não é nada estranho.
—O que eu faço, Heitor?
Puxei ele pelo braço, o impelindo a sair da
minha casa. Fomos parar no meio da rua; ele com os
olhos marejados, esperando que eu tivesse a chave de
seu enigma. Eu batia os dedos nervosamente na perna,
com a mão enfiada no bolso. Homens não devem brigar
por mulheres. Gostaria de saber até onde isso afetava o
Loveartist.
—O que eu posso fazer? —Imitei sua pergunta. Parecia
que estávamos fazendo uma encenação.
—Você sabe que ela gosta do Jon.
—Gosta?
—Não finja surpresa, é claro que gosta!
Dei um tapa no braço dele.
—Deixe de ser imbecil, Gerald. Escute bem, você tem
que esquecer essa garota!
—Não posso. Se eu mandasse no meu coração, já teria...
173
Interrompi sua frase com um novo golpe.
Uma tentativa de trazê-lo de volta á realidade.
—Não me importa, você tem que esquecê-la, porque vai
ser melhor para todos nós, seu dramático.
—Acho que você não pode me ajudar. —Ele virou as
costas, obviamente cheio de rancor.
—Não, não posso. —Gritei, enquanto ele se afastava. —
Eu não sou nenhuma droga de conselheiro amoroso.
Passei pela porta estreita da garagem no momento exato
que o corpo de Gerald atingiu o chão. Tapava a boca
com a mão, e seus olhos estavam cheios de lágrimas.
—Santo Deus! —Exclamei, antes de correr ao seu
socorro.
Jon esfregava os dedos da mão. Tinha sido
um soco só. O suficiente para derrubar o magricelo
Gerald de uma vez. Ajudei-o a sentar-se no banquinho
174
que servia como assento para ele quando tocava bateria.
Ele começou a chorar, antes de se virar para Jon.
—Isso não era necessário. —Ele disse, a voz
entrecortada.
Percebi um sorriso. Tenho certeza que vi Jon
sorrir de leve.
—Você é um idiota. —Falou, ligando o microfone como
se fôssemos começar a ensaiar. —Eu só queria que
entendesse isso.
Estendi um lenço de papel para que Gerald
limpasse o sangue que ainda escorria pelo seu queixo.
Suas mãos tremiam.
—O que foi que você fez? —Perguntei baixinho para
Jon, como se Gerald, ao meu lado, não pudesse me
escutar.
Ele balançou a cabeça, indignado.
—Só falei a verdade.
—Menino burro!
175
—Sabe qual é a verdade? —Jon interferiu, apoiando-se
no pedestal vazio. —Nosso amigo está apaixonado por
Sammy.
Dei um tapa em Gerald.
—Você disse isso para ele?
—Queria me desculpar! —Suas forças para chorar
estavam renovadas.
—Por quê? Você não fez nada de errado!
Senti que Jon me lançou um olhar.
—Não é minha culpa. —Se justificou novamente.
Eu o sacudi pelos braços.
—Se não é sua culpa, cale a boca e pare de se desculpar!
Você não tinha que falar nada!
—Me solte, está me machucando!
—Que menino idiota...
—Você sabe —Jon retomou a provável discussão que
acontecera antes do soco atingir a cara de Gerald. —Que
176
Sammy não gosta de você, e jamais te daria uma chance.
Sabe porquê? Olha só pra você. É um fracassado.
—Deixa disso, Jon. —Eu me intrometi. —Está ficando
ridículo.
—Ah, você acha, traidor? —Ele começava a alterar o
tom de voz. —Você sabia de tudo, não é?
Levantei do sofá para encará-lo melhor.
—Eu sabia do quê? Não há nada para saber.
Ele deu um passo em minha direção. Nunca
tinha visto ele nervoso, realmente. É verdade que ele
estava sempre revoltado, mas nunca tão nervoso. De
qualquer maneira, se ele quisesse me bater, eu estaria
pronto para recebê-lo.
—Você nem namora Sammy! —Esbravejei. —Namora?
Não houve resposta. Ele olhou ao redor
como se procurasse alguma coisa. Eu insisti.
—Namora Sammy, Jon? Está nervoso desse jeito, como
se a possuísse. Como sabe que ela não poderia se
177
apaixonar por Gerald, mas por você? Diga-me onde
você é melhor do que ele. Vamos, me diga!
Talvez eu tenha falado demais. Talvez eu
devesse ter deixado quieto, não comprado uma briga
que não era minha. Se eu aparecesse com um olho roxo
em casa, meus pais fariam perguntas. Esperava que eles
não ouvissem a discussão que acontecia lá em baixo.
Parei para tentar ouvir algum ruído que viesse da porta.
—Dane-se você, Heitor. —Ele quase gritou, cerrando os
punhos numa tentativa de autocontrole. —Isso nada
tem a ver com você.
—Você o chamou de fracassado. —Olhei para Gerald,
acompanhando a discussão com os olhos ansiosos.
Ainda tremia. Por que é que ele tinha que ter
conversado com Jon? O que diabos se passara pela
cabeça dele? —O que é você então? Dê uma olhada na
sua vida, Jon. Onde foi que obteve sucesso até hoje? —Á
essa altura eu já tinha me arrependido, mas era tarde
178
para parar. Gostaria que Gerald se levantasse, e dissesse
alguma coisa. “Qualquer coisa”, implorei mentalmente.
“Desvie a atenção do Jon de mim”. Por um motivo que
eu desconhecia, era impossível parar por ali. —Acho
que deveria olhar para você antes de encher o Gerald de
porrada.
Ele avançou tão rapidamente que meu
primeiro impulso foi o de defesa. Mas ele não vinha em
minha direção. Deu mais um soco em Gerald, dessa vez
o acertou na orelha. Eu pulei em cima, mas não a tempo
de impedi-lo.
—Vou te matar! —Gritou. —Vou te matar enquanto
você estiver dormindo!
Gerald levantou, derrubando o banquinho
almofadado no chão. Correu escadas acima, com os
braços se agitando. Achei que Jon fosse segui-lo, mas ele
ficou imóvel, fitando o chão.
179
—Contente? —Indaguei, deixando-me cair sentado do
outro lado da garagem, arfando de cansaço.
Ele balançou a cabeça repetidas vezes.
—Droga, droga, droga! Como foi me deixar fazer isso?
Perguntei-me se ele estava realmente
falando comigo.
—Qual é, Jon? Está ficando maluco?
—Maluco, eu? —Ele finalmente olhou para mim, e achei
que ele fosse chorar. —Você não deveria ter deixado eu
bater nele!
Suspirei alto. Que se danasse Jon e sua
loucura. Aquilo estava ficando estranho demais para
mim.
—Pega as suas coisas, e vai embora. Acho que não vai
dar para ensaiar hoje. —Ele parecia confuso. Ironizei: —
Que acha?
—Não. —Ele respondeu, com simplicidade.
180
Balancei a cabeça em desaprovação. Resolvi
não perder meu tempo com ele.
—Amanhã nos vemos na escola. —Ele disse, antes de
começar a sair. Fiquei com medo que fosse procurar
Gerald. Considerei se devia impedi-lo. Mas nada fiz.
Gerald que se danasse. Pelo menos tinha
aprendido uma lição. Não se pode ser sincero o tempo
todo, ou você pode acabar perdendo um dente.
Max chegou meia hora depois de Jon ter
saído. Contei para ele o acontecido.
Ele deu risada enquanto afinava a guitarra
vermelha que tinha ganhado do pai como presente de
aniversário. Nada tinha a ver com a guitarra de Jimmy
Hendrix, mas serviu para fazer sua felicidade completa
nos anos que estavam por vir.
—O que acha? —Eu sentei no chão, mais uma vez me
perguntando como faria par comprar cadeiras para pôr
na garagem.
181
—Jon deve estar usando drogas.
Sammy mudou-se para Chicago uma semana depois do
acontecido. Acho que nunca ficou sabendo sobre
Gerald. A idéia inicial do meu estúpido amigo de se
declarar desapareceu no momento que viu que sua boca
estava inchada, e sua orelha doía.
No dia seguinte á briga, fomos ensaiar na
minha garagem. Parecia que nada tinha acontecido na
tarde anterior. Exceto pelos olhares vacilantes de Gerald
na direção de Jon. Isso me deu medo, fiquei aguardando
uma explosão que não aconteceu.
182
A justiça foi rápida a favor de Gerald, dias depois de
Sam ter partido.
Estávamos no corredor da escola, antes do
início da aula de Matemática. Discutíamos um novo
projeto de música, uma letra que ainda precisava de
arranjos. Nossa maior dúvida era qual a parte que nos
serviria de refrão.
—Bom dia, Alice Cooper.
Dois garotos estavam com Nathan.
Acho que Jon se perguntou se Nathan se
dirigia realmente a ele. Deve ter entendido subitamente
o que aconteceria dali para a frente. Tentou se esquivar,
mas um dos garotos o segurou.
—Aonde vai, amigo?
—O que tem aí? —Nathan tirou o papel da mão de Jon.
—Devolve. —Jon pediu, hesitante.
O outro garoto ainda tinha a mão pesando
em seu ombro.
183
—Escuta só isso, Jeff. —Nathan pigarreou. Estendeu a
folha á sua frente. —“Minha vida foi só uma série de
situações, tudo que eu pude suportar, todos os muros.
Eles caíram em cima de mim. Fiz o que tinha que fazer.
Por favor, deixa, não me deixa morrer”. —Deu uma
risadinha. —O que diabos é isso?
—Por favor, me devolve. —Jon murmurou, debilmente.
—Viu, só, Martin? —Ele se dirigiu ao menino que
apertava o braço de Jon, esboçando um sorriso. —O
garoto é um poeta!
Eles riram. Eu permaneci calado, desejando
que Nathan devolvesse a letra de música.
—Diga-me uma coisa, Jordison... Ouvi dizer que você é
sadomasoquista. É verdade?
Jon tentou recuar, mas já estava contra a
parede. Eu consegui escapar do semi círculo que os
garotos tinham formado.
—Pode... Pode me devolver o papel... Por favor?
184
—Diga, seu imbecil! —Ele empurrou Jon pelo ombro,
quase derrubando ele no chão.
—Não sei... Eu...
—Tudo bem, cada um se diverte do seu jeito. Não é?
Como Jon não respondeu, Nathan deu um
tapa no braço dele.
—Acho que sim.
Ele limpou a mão que tinha tocado em Jon
com uma repugnância forçada.
—Talvez seja uma prática religiosa. —Tentou Jeff. —Ele
deve fazer parte de uma seita, quem sabe. Como é que
chamam aquilo? Autoflagelação.
Todos riram. Recuei um passo. Decidi
que se tocassem em Jon novamente, ia tentar comunicar
alguém da Direção.
—Está certo. —Nathan concluiu, finalmente. —Vamos
nos ver na hora do almoço.
185
Eles se afastaram. Eu me reaproximei,
hesitante.
—Está bem?
Jon assentiu, sem tirar os olhos de Nathan,
que se afastava, bem á frente no corredor cheio de
alunos.
—Palhaço...
—Sinto muito, Jon. Muito mesmo.
Ambos sabíamos que aquele era só o
começo.
Apesar do que ele que ele enfrentava na escola, a
Loveartist ia incrivelmente bem, além das nossas
espectativas.
Era mais uma noite de domingo. Não
tínhamos subido no palco ainda quando a vi entrar no
bar. Procurei Jon com os olhos. Ele estava no outro
186
canto do salão, conversando com Max. Quis gritar para
que ele largasse a garrafa de vinho, mas já era tarde
demais. Sua mãe já tinha visto. Cheguei nele primeiro
do que ela.
—Sua mãe está aqui.
—Quem? —Ele olhou ao redor, como se não acreditasse.
Soltou um palavrão quando a viu aproximar-se. Largou
a garrafa de vinho no chão, quase a espatifando.
—O que diabos está fazendo nessa droga? —Ela gritou
sobre a música alta, esforçando-se para ser ouvida da
forma exata que pretendia. Irritadíssima.
Como sempre fazia, Jon se pôs a gaguejar
palavras que não respondiam absolutamente nada.
—É só um show. — Eu entrevi, meio débil. Torci para
que ela soubesse do Loveartist.
Ela não prestou atenção em mim. Lançou
mais um olhar ao redor, para o bar. Devia estar
pensando no futuro que teria seu filho em um lugar
187
daqueles. Meu Deus, ele tinha começado com um inofensivo
violão.
—Vamos pra casa. —Ela pegou o braço de Jon e
começou a puxá-lo em direção da porta.
Vi quando Jon lançou um olhar cheio de
ódio para Gerald. Desconfiei, mas duvidei de que Jon
estivesse certo. Gerald era idiota demais para pensar
nisso. E poderia colocar em risco a nossa banda, o que
exatamente aconteceu.
—Ele não pode sair agora. —Max interveio, confiante.
Sem dúvida, sua coragem de encarar a sra. Thompson
era três vezes maior do que a minha.
Mas ela o ignorou também. Max os seguiu
até a rua. Talvez para sentir que eu estava fazendo algo
de útil, fui atrás também. Paramos na calçada. Ela ainda
apertava o braço de Jon.
—Não quero meu filho metido com vocês, entendeu
bem?
188
—Nós temos um show para fazer. —Max puxou o outro
braço de Jon, enquanto eu soltava uma expressão de
espanto. —E vamos fazê-lo.
—Quanta audácia!
—Você é louca, sabia? Completamente louca.
Jon estava em estado de choque. Não fez
nenhum esforço para libertar qualquer um dos braços.
Max estava realmente nervoso. A essa altura eu já sabia
que ele não se referia ao show que corríamos o risco de
perder. A raiva em sua voz era tanta que só podia ser de
motivo maior. Todos sabíamos de Javier. Max
continuou, cuspindo as palavras.
—Nunca deu a mínima pro Jon, não devia se incomodar
em bancar a boa mãe na frente de todo mundo.
Jon soltou finalmente o braço que Max
puxava. Acho que rezava para que o amigo parasse de
falar.
189
—Aliás, devia olhar para você mesma, e repensar
alguns conceitos.
Pensei em dizer para que Max parasse, mas
não ousei interferir. Ele estava fazendo o que eu deveria
ter feito há muito tempo. O dono do bar se postou atrás
de nós, carrancudo. Se havia algo que detestava, eram
brigas em seu estabelecimento. Tinha sido claro quanto
a isso no primeiro show que o Loveartist fizera naquela
casa. Max não se importou com sua presença.
—Uma mulher que apanha do marido todas as noites
não deve ter o menor amor por si própria. E permitir
que batam em seu filho então, nem se fala.
Sra. Thomsom levantou a mão como se
fosse lhe dar um tapa. Não o fez. Cerrou o punho,
deixou o braço despencar junto ao corpo.
Eu estava apreensivo pela presença de
Arvizu atrás de mim. A música lá dentro tinha parado.
Era nossa vez.
190
Ela girou nos calcanhares e andou
depressa, puxando Jon consigo. Olhei desolado para
Max em busca de uma resposta.
—Mulherzinha medíocre. —Ele disse, antes de tentar
passar pela porta do bar.
Arvizu, com sua barriga grande e seus
furiosos olhos redondos o deteve.
—Peguem suas coisas e dêem o fora.
Max assentiu lentamente, depois de
raciocinar por um segundo. Obedeceu, e começamos a
guardar os equipamentos em silêncio. As pessoas nos
olhavam com curiosidade e até um pouco de raiva.
Onde está a música?
Algum cliente do bar parou Max, no
caminho da porta, para perguntar o que tinha
acontecido. Eu fiz minha melhor cara de piedade para
Arvizu.
191
—Será que não pode nos perdoar, só dessa vez?
Prometo que nunca mais vai acontecer.
—Desapareça. —Ele deu as costas, me deixando sem
direito de defesa. Quanto exagero! A briga nem tinha
sido tão feia assim.
Lembrei de Gerald e fui procurá-lo. Estava
escondido no banheiro. Obviamente tinha chorado.
—O que foi que aconteceu? —Perguntou.
—Fomos despedidos. —Tentei não soar acusador.
—Não acredito!
—Pois é, a mais pura verdade. E vai saber para onde
aquela velha levou Jon. Só espero que não afogue ele se
passarem perto do rio.
Suspirei enquanto observava sua
expressão de dor. Disse que era melhor irmos mesmo,
antes que Arvizu se invocasse ainda mais.
—Será que não poderemos voltar nunca mais? —Ele
perguntou enquanto abríamos caminho pela multidão.
192
Balancei a cabeça em negativa.
—Nem como clientes.
Não sei o que aconteceu com Jon naquela noite. Não sei
se a doida de sua mãe bateu nele, ou se contou o
acontecido a Javier. Tudo que Jon comentou no dia
seguinte foi que precisaria ser mais cuidadoso da
próxima vez. E estava chateado com nosso desemprego
repentino.
Modéstia á parte, nós éramos talentosos, e
não ficamos muito tempo parados. Tocávamos bem,
compúnhamos nossas próprias músicas, e teríamos
dado certo se Jon não tivesse colocado tudo a perder,
poucos anos depois. Conseguimos shows ás sextas e
sábados num bar bem maior do que o primeiro. Seu
ápice ali era aos domingos, mas outra banda,
193
provavelmente melhor do que a nossa, assumia o palco.
Claro que ficamos contentes com o que tínhamos. O
proprietário descendente de asiático, com piercings em
toda parte do corpo, nos pagava um bom cachê por
noite, e permitia que comêssemos de graça durante
nosso expediente.
Chegamos a procurar duas gravadoras. As
duas ficaram de retornar uma ligação. Nunca
retornaram. Infelizmente, no meio musical é preciso ter
mais do que talento. É necessário aparência e sorte. No
nosso caso, a beleza é quase indiferente, o que nos trazia
uma grande vantagem, porque não era o que nos
sobejava exatamente. Era sorte o que nos faltava.
No auge dos nossos quinze anos, o que
tínhamos eram sonhos promissores, e isso constituía
tudo o que precisávamos por enquanto.
O Anjos Estáticos virou nossa segunda casa,
e Robin um irmão mais velho para nós. Lá nós nos
194
divertíamos e alimentávamos nossas esperanças. Nunca
houve nada melhor do que a atenção e o carinho da
platéia do Anjos Estáticos.
Á parte de tudo que ia bem para a
Loveartist, Jon estava sempre assombrado pelos seus
problemas pessoais. Ainda sentia falta de Sam. Mas
acho que Javier já tinha deixado de atormentá-lo
diariamente, e isso significava um progresso
significativo. Ele parecia mais saudável, brincava mais,
permitia-se sair com a gente de vez em quando fora de
nossos horários de trabalho. Quase todos os finais de
semana ficávamos até tarde no Anjos Estáticos, depois
do expediente. Max e eu bebíamos bastante, e
geralmente o trabalho de nos carregar até nossas casas
ficava por conta dele e de Gerald.
Jon ficou bêbado apenas uma vez naquela
época. Foi adquirir esse vício depois de adulto, que eu
também passei a conhecer tão bem. Mas ele ainda não
195
estava acostumado, e acredito que não tenha sido uma
boa experiência para ele. Paramos em um beco escuro,
depois que perdemos o resto do grupo de vista, e
ficamos agarrados ás nossas garrafas vazias. Ele chorou
tanto que achei que ia desintegrar. Ficou falando de
Sam. Durante horas. Voltamos para casa pela manhã;
Ele apanhou da mãe. Eu também teria apanhado se a
minha mãe não estivesse acostumada com minhas
bebedeiras.
Havia também os garotos da escola.
Nathan aparecia quase todos os dias, nos corredores ou
na hora do almoço. Classicamente, como nos dramas
americanos adolescentes, eles derrubavam livros e
cadernos, e observavam enquanto recolhíamos do chão,
humildes e calados.
—Vi uma coisa no jornal e lembrei de você.
Jon baixou a cabeça, obrigado a esperar
que ele continuasse. Nathan tirou do bolso o recorte e
196
mostrou para os outros meninos. Eles riram juntos. Ele
entregou para Jon. De onde eu estava não consegui ler
direito. “... se interna em clínica psiquiatra”, era a parte do
título da reportagem que consegui perceber.
—Bichinha louca.
Jeff e Martin riram novamente. Vi quando
Jon respirou fundo, tomando coragem apenas para
permanecer de pé.
Os garotos já estavam saindo, quando ele
disse, baixinho:
—Tudo isso é por causa de Sam?
Nathan voltou-se para ele, entre indignado
e irônico. Sorriu, e se aproximou novamente.
Eu senti que minhas pernas cediam ao peso
do corpo, e tive certeza de que matariam Jon.
—O que disse?
—Você tem raiva porque a Sam não gosta de você.
—Acha mesmo, frutinha?
197
Jon tentou escapar. Nathan o agarrou pela
gola da camiseta. Deu-lhe um soco no pescoço, e no
impulso fez com que ele caísse. As pessoas já
começavam a se aproximar, curiosas. Nathan recuou,
com um sorriso.
—Aprenda a conversar como gente.
Jeff deu um derradeiro chute antes de
partir com seu mestre.
—Está bem? —Eu fiz a pergunta inútil. Ajudei ele a se
erguer.
Ele assentiu, respirando forte.
—Deixa estar. Ele ainda vai ter o que merece. —
Amassou o recorte de jornal e o largou no chão.
Abrimos caminho. As pessoas observavam,
dessa vez Jon tinha razão. Abaixamos a cabeça
enquanto seguíamos para a sala de aula. Foi um longo
dia na escola.
198
Nathan fez quase exatamente igual no dia
seguinte. Tentamos entrar na aula de Biologia o mais
rápido possível, mas foi inútil. Ele conseguiu nos
alcançar.
—Olá, Alice. —Ele riu. —Como acha que devemos
começar o dia?
Estava acompanhado de uma garota ruiva,
tão alta quanto ele. Ela sorria. Talvez ele quisesse provar
alguma coisa para ela.
—Me deixa em paz. —Continuamos a andar. Ele nos
deteve, quase sufocando Jon ao puxá-lo pelo colarinho.
Nova multidão já começava a se juntar para
ver. Nathan não soltou o pescoço de Jon até que ele
ficasse quase completamente sem ar. Quando o fez,
continuou segurando ele pelo braço. Olhou ao redor
para os idiotas de seus amigos que riam. Virou-se para a
ruiva.
199
—Será que se importaria de me emprestar um grampo
de cabelo, querida?
Ela desmanchou o penteado, deixando que
o cabelo caísse sobre os ombros. Estendeu o objeto
dourado para ele.
—Ela nunca gostou de você. —Disse.—Olhe pra você. O
que ela tinha era pena.
Enfiou o grampo de cabelo em seu ouvido.
Houve alguns gritos dos espectadores.
Aproximei-me dele quando Nathan o
abandonou. Tive medo que tivesse perfurado seu
tímpano. Acho que as palavras dele afetaram muito
mais do que a dor.
Sei que Jon ficou pensando nisso por muito
tempo, embora parecesse óbvio demais para mim que
Nathan sentia inveja. Ninguém é tão bom assim, a
ponto de se comportar como Sam fazia por pena.
200
Estamos no mundo real, Jon. Mais uma vez tive vontade
de dizer.
Não participamos da formatura no colegial. Decidimos
comemorar só nós, e a banda. Max levou alguns de seus
amigos estranhos, todos fumadores de maconha —e eu
já tinha ouvido falar que eles saqueavam casas durante
a noite. Fomos ao Anjos Estáticos no domingo á noite,
só por diversão, planejando ficar até de madrugada,
lembrando-nos de que não iríamos acordar cedo no dia
seguinte. A banda em cima do palco era formada por
homens adultos, obviamente profissionais. Tocavam um
metal melódico irrepreensível, uma seleção de músicas
ótima. Mas não deixava de ser mais uma banda cover.
—Não quero que se preocupe. —Jon começou de
repente, tomando um gole da Vodka, que naquele dia
201
estava custando a nós. —Com certeza eu vou voltar em
oito meses.
Não participamos da formatura no colegial.
Decidimos comemorar só nós, e a banda. Max levou
alguns de seus amigos estranhos, todos fumadores de
maconha —e eu já tinha ouvido falar que eles
saqueavam casas durante a noite. Fomos ao Anjos
Estáticos no domingo á noite, só por diversão,
planejando ficar até de madrugada, lembrando-nos de
que não iríamos acordar cedo no dia seguinte. A banda
em cima do palco era formada por homens adultos,
obviamente profissionais. Tocavam um metal melódico
irrepreensível, uma seleção de músicas ótima. Mas não
deixava de ser mais uma banda cover.
—Não quero que se preocupe. —Jon começou, de
repente, tomando um gole da Vodka, que naquele dia
estava custando a nós. —Com certeza eu vou voltar em
oito meses.
202
—Do que diabos está falando? —Tentei compreender,
enxergando através da nuvem de álcool que embaçava
minha visão.
Eram duas da madrugada. A pior hora para
se dar notícias ruins dentro de um bar.
—Consegui um curso em São Francisco. Acha que vocês
conseguem levar a Loveartist sem mim durante oito
meses?
Eu encarei ele por alguns instantes, e não
tinha certeza se falava sério.
—Claro que não! —Dei risada.
—Podemos achar alguém para me substituir por um
tempo. Temos até fevereiro para isso.
—E onde é que encontraremos um bom vocalista, que
aprende rápido e que seja bonito como você? —Caí na
gargalhada novamente.
Era a primeira vez que Jon falava a
respeito. Eu achava que a banda era nosso futuro, e
203
estranhei imensamente o fato dele estar procurando por
outra coisa que não fosse a música.
—Talvez Robin conheça alguém. —Sugeriu.
—Não podemos, Jon. Você sabe disso. —Tentei parecer
sério. — Seria suicídio para a Loveartist.
—É só por um tempo, eu juro.
Roubei uma batatinha de sua porção.
—Por que não deixa esse curso idiota para mais tarde?
—Mais tarde, quando? Preciso trabalhar.
Eu trabalhava desde meus treze anos de
idade, e não entendia esse sua necessidade repentina de
ter que estudar. Ele não poderia trabalhar em um
restaurante, uma loja, qualquer lugar em que não seja
necessário um diploma, até que a Loveartist conseguisse
seu lugar fora dos palcos do Anjos Estáticos?
Como se lesse meus pensamentos, ele
disse:
204
—Não posso basear meu futuro numa coisa tão incerta
como nossa banda. —Fez silêncio por um segundo,
planejando as palavras a seguir. —Nós sabemos que
não vai dar em nada. —Ele me observou. Eu enchia de
catchup uma batatinha frita que não tinha intenção de
comer. —Não sabemos?
—Eu ainda apostava na Loveartist. —Sorri, tristemente.
—Apostaria essa batata que daria certo.
—Vai chegar uma hora que vocês também vão precisar
dar o fora. Não vamos poder sobreviver com quarenta e
cinco dólares por noite.
Ele me olhava com expectativa, esperava
uma resposta. Desviei os olhos para Gerald, na parte
extrema do salão. Conversava animado com uma
garota.
—Veja só. —Comentei. —Acho que Gerald encontrou a
groupie da noite.
205
Max tentou convencer Jon a adiar o curso,
mas nossos argumentos eram muito fracos. O pior de
tudo era que Jon tinha razão, e nós devíamos na
verdade fazer o mesmo que ele.
Aqueles oito meses demoraram a passar. Já no
segundo mês, perdemos a esperança da Loveartist ficar
ativa de novo. Embora não declarássemos abertamente,
mas a banda tinha morrido. Ainda me lembro como
senti falta dos palcos. Era como se tivessem levado uma
parte de mim para muito longe.
Não encontramos um vocalista, nem sequer
procuramos. Foi decidido que esperaríamos, torcendo
para que Robin nos aceitasse de volta mais tarde,
embora tenha ficado razoavelmente irritado com nossa
demissão com menos de um mês de antecedência.
206
Jon me ligou uma semana depois que começou
o curso. Estava empolgado, instalado numa pensão
velha, e, segundo ele, cheia de goteiras, mesmo que não
chovesse.
—Você não acreditaria. —Ele disse. —Esse curso é o
máximo, exatamente como vemos nos filmes.
—Você faz alguma coisa?
—Por enquanto, não fiz nada. Só teoria mesmo. Estão
ensinando pra que serve cada um dos instrumentos.
—Já viu algum cadáver de verdade?
—Já, e eles são bem mais assustadores de perto. Juro
que tive a impressão de ver uma mão se mover.
—Isso acontece por causa de espasmos. Ou pelo menos
é o que ouço dizer.
—Como estão as coisas aí?
—Na mesma, visitamos o Anjos Estáticos só a passeio.
Não sei se ele estava chateado com a falta da
banda, mas sei que ele pretendia voltar. Fiquei abalado
207
naquela noite. Minha esperança era de que ele não
gostasse do curso, desistisse e voltasse a Bakersfield.
Sete meses mais tarde ele ligou novamente.
Sua voz estava completamente diferente desde a
primeira ligação. Não parecia mais empolgado. Pelo
contrário, soou realmente deprimido.
—Não sei se vou aguentar.
—Por quê? —Ele me pegou de surpresa.
—É terrível, as pessoas morrem! Não só os velhos e
doentes, Heitor. As pessoas morrem!
—Você precisa aguentar, seu maluco. Chegou até aqui,
não pode voltar agora. Só falta um mês. E você sabia
exatamente onde estava se metendo.
—Não morrem só por morrer, são assassinadas!
Crianças! Têm crianças que vêm parar nessas mesas
frias, quando deveriam estar na escola, estudando, ou
brincando na rua, fazendo planos para o futuro. Não é
justo.
208
—Eu sabia que você não ia conseguir. Por que não
escolheu outra coisa? Tantos cursos para escolher, meu
Deus!
—Eu achei que seria divertido. —Pensei que ele fosse
chorar, e fiquei contente por não tê-lo feito.
—Então volte para casa. —Cedi.
Ele não respondeu dessa vez. Disse que
pensaria no assunto, e mas tentaria sobreviver nos
próximos meses. Ambos sabíamos o que aconteceria se
ele voltasse sem seu diploma. Javier não haveria de
gostar de ver seu enteado fracassar. Jon permaneceu até
os final do curso.
Notei muitas diferenças em Jon quando ele voltou de
São Francisco. Não só na aparência —Ele estava muito
mais magro e abatido, como se não dormisse há noites.
209
Parecia ainda mais perturbado, e até mesmo assustado.
Tinha pesadelos. Dizia que vinha á mente imagens de
seu passado, que ele não conseguia afastar, e sentia que
era como se estivesse sonhando acordado, quando
estava dormindo. Vai entender as coisas que Jon
falava... Olhava por sobre os ombros com frequência.
Notei seu olhar perdido diversas vezes, e estava sempre
distraído. Eu gostaria de ter percebido isso naquela
época, reconhecer os sintomas da doença que acabaria
por matá-lo. Mas, pensando bem, o que eu poderia ter
feito, se soubesse? Acho que ninguém sabe exatamente
como salvar uma vida.
Eu tinha vivido esses oito meses no escuro,
tateando em busca de algo que pudesse tapar o buraco
que a falta da música fazia. Eu nunca tinha percebido o
quanto amava minha música, até perdê-la. Acho que
nunca pensei nisso antes, porque era algo natural, que
sempre estivera dentro de mim.
210
O único apoio que encontrei me levaria
para um abismo no futuro. Acabei cedendo ás drogas,
deixei a maconha para a cocaína. Era minha preferida
na época, me ajudava a permanecer ligado nas noites de
fim de semana, e eu conseguia curtir um pouco. Minha
namorada me largou quando descobriu que eu tinha me
tornado um viciado.
A gente nunca sabe o que o destino nos
reserva, e isso pode ser excitante ou assustador. Na
época, não me importava. Eu queria me divertir, sair, ir
a bares e colecionar namoradas. Por isso, não me
importei muito quando Stephanie me deixou.
Mas, como eu disse, o destino é misterioso.
Algum tempo mais tarde, Stephanie voltaria e salvaria
minha vida. Isso só aconteceria algum tempo depois de
Jon viajar definitivamente para Los Angeles, onde
viveria o resto de sua vida.
211
Stephanie me tirou das drogas, me
obrigando a ficar internado numa clínica de
recuperação. Não vou dizer que foi fácil, mas eu sei que
só teria conseguido com a ajuda dela. Passei anos
lutando contra o desejo, passando em frente aos bares e
pensando “Apenas um golinho de cerveja”, ou “apenas
uma tragadinha”. São as vozes interiores que devemos
ignorar, ou vamos voltar para o abismo. Posso
assegurar que venci a tentação, e consegui levar a vida
que há muitos anos atrás eu teria achado muito sem
graça.
No final de 1999, Jon e Max falaram com
Robin assim que Jon retornou de São Francisco.
Negociaram a volta da Loveartist, que foi aceita com o
cachê reduzido pela metade. Robin alegou ter perdido
clientes por causa do nosso sumiço no bar. Poderia ser
mentira, mas aquilo nos encheu de orgulho.
212
Eu estava trabalhando como Office boy na
época. Trabalhava para uma imobiliária, e acho que era
o melhor emprego do mundo. Passava o dia inteiro na
rua, almoçava na hora que bem me aprouvesse e
voltava pra casa antes que a noite caísse. Jon realmente
conseguiu um emprego como assistente de um médico
legista, e garanto que passou no Instituto Médico Legal
não foram os melhores anos de sua vida, ainda que não
cortasse as entranhas dos cadáveres como desejava
inicialmente.
Juntamos nossas economias e alugamos um
apartamento, onde nos veríamos livres de nossas
respectivas famílias, e a liberdade seria nosso maior
merecimento. Não era, de fato, uma mansão. Estávamos
sempre com a impressão de que o teto ia cair nas nossas
cabeças. Sempre vazava água de algum lugar, os
corredores estavam sempre úmidos —Por qualquer
substância que não sabíamos identificar. Ali era onde
213
ficavam os garotos do nosso prédio/pensão, carregando
bebidas e cigarros estranhos. Mesmo assim, o aluguel
estava caro para o nosso bolso, e diversas vezes Jon teve
que implorar para que a sra. Ferguson não nos
despejasse. Chegamos a ficar sem eletricidade por três
meses, quando tivemos que escolher entre pagar a sra.
Ferguson ou a companhia de energia.
Aquele noite, Jon chegou depois das dez
horas. Estava tão pálido que eu tive certeza de que ia
desmaiar. Afastei as roupas sujas que cobriam a minha
cama e fiz com que ele sentasse. Trouxe um copo de
água.
—Tinha alguém... Me seguindo. —Explicou.
Fui até a janela e observei. A rua estava
cheia de jovens rindo e falando alto, como sempre. Uma
parte da veneziana quebrou na minha mão.
—Seguiram você até aqui?
214
Ele assentiu, forçando mais um gole de água.
Percebi que uma atadura cobria seu punho esquerdo.
—Machucaram você?
—Não.
—Deu pra ver quem era?
—Só as sombras. —Ele respirava com dificuldade.
—Sombras?
Fez que sim. Tirei o copo ainda cheio da
mão dele, achando que fosse despencar no chão. Pela
primeira vez, me perguntei por que alguém haveria de
querer segui-lo. Que eu soubesse, não tinha inimigos, e
éramos pobres demais para pensar em assalto ou
sequestro.
—O que aconteceu aí? —Apontei o machucado.
—Não foi nada.
Ele levantou de repente, para olhar pela
janela também. Estava agitado, como eu nunca tinha
visto antes.
215
—O que aconteceu, Jon? Precisa me dizer!
Começou a chorar, completamente fora de
controle. Tentei o copo de água novamente, mas ele
ignorou. Deixou-se cair sentado, ali mesmo, frente á
janela, encostado na parede. Sentei ao seu lado.
—Foi Javier? —Indaguei.
Há muito que não víamos o homem, mas
nada é impossível. E me parecia a única alternativa. Ele
fez que não.
A imagem de Nathan na escola, há mais
de um ano atrás, me veio á cabeça. Nem perguntei, era
inviável. Eu não sabia ao menos se o garoto ainda
estava vivo.
Puxei a mão dele á força. A faixa branca
mal colocada sobre o pulso estava manchada de sangue.
—Alguém te cortou? —Senti-me desesperar.
—Não, não foi ninguém. —Ele quase gritou. —Eu não
sei o que aconteceu. —Ele olhou para mim, e percebi
216
que precisava de ajuda. Estava com aquela expressão de
desespero, exatamente como acordava dos pesadelos. —
Por favor, não pense que sou maluco!
—Não vou pensar. Me diga!
Tentei demonstrar confiança, mas já achava
que ele estava ficando louco. Ele disse o que eu já
esperava ouvir.
—Fui eu.
Assenti lentamente, esperando que se
acalmasse. Deixei que chorasse mais um pouco, mas
acabou por alterar-se ainda mais em alguns segundos
de silêncio.
—Não pense que eu tentei me matar, porque não foi
isso. Não foi! É que alguém... Eu estava
descontaminando uma... Sozinho. Sozinho, Heitor! —Eu
gostaria que ele falasse mais devagar. Emendava uma
palavra na outra, em meio aos soluços descontrolados, e
eu mal conseguia compreendê-lo. —Ninguém poderia
217
ter falado comigo, porque não tinha ninguém ali. Mas
eu ouvi. Era uma voz estranha, me dizia para
experimentar como se sentiam os... Quando o médico...
Os cortava com... Eu cortei, mas não foi a veia, viu? Era
só pra saber como era o corte de navalha. Mas eu não...
Não quis... Não era pra ter me machucado.
—Tudo bem, Jon. Acalme-se, certo? Precisamos refazer
esse curativo, em primeiro lugar. Depois pensamos
nisso.
Levei ele quase carregado até o banheiro
minúsculo. Senti que minhas mãos começavam a
tremer. Eu nunca gostei de ver sangue, e não tinha idéia
de como lidar com aquela situação inédita para mim.
Tirei a atadura dele, e fiz com que ele
colocasse o braço embaixo da torneira. O mais estranho
é que ele não parecia sentir dor.
218
—É assim que você quer ser médico? —Brinquei, na
tentativa boba de descontraí-lo. —Você nem sabe fazer
um curativo simples!
—Não tive tempo. O dr. Perry chegou bem na hora. —
Agora ele respirava com mais leveza. Finalmente tinha
parado de chorar.
—Ele viu? —Eu me alarmei.
—Não tudo. Só viu que eu tinha me machucado.
—E o que disse a ele?
—A verdade.
—Você disse que a voz... O que foi que disse?
Ele recomeçou a chorar. Amaldiçoei
mentalmente a mim mesmo. Não deveria ter
perguntado isso naquela hora.
—Eu só disse que tinha... Que tinha... Me machucado
sem querer.
Peguei a bombinha de ar e dei para ele,
uma prevenção básica e meio estúpida. Vasculhei por
219
alguma coisa que servisse de curativo, mas tudo que
encontrei foi uma camisa velha para servir de
esparadrapo.
Fui dormir naquela noite com certo receio. E
se alguém realmente estivesse a persegui-lo? Nunca se
sabe.
Ele não dormiu aquela noite.
Alguns dias depois, encontrei Max na rua
por acaso, depois do meu expediente na imobiliária.
Contei a ele que estava horrorizado com o que tinha
acontecido enquanto seguíamos de volta para nosso
bairro, vizinho ao meu local de trabalho.
—E quem é que estava seguindo ele?
—Não faço idéia, já não sei se havia alguém de verdade.
Ele pensou por um instante.
—Vamos convencê-lo a sair daquele hospital.
—E como é que vou bancar o aluguel sozinho?
—Jon vai acabar ficando doente.
220
—Meu Deus... —Eu gostaria de saber o que fazer.
—Pense, Heitor. Não deve ser fácil. Você vê uma pessoa
em um dia. Ela te cumprimenta, ou te vende alguma
coisa em um mercado. Reclama do tempo ou das
notícias. No dia seguinte, aparece na cama de metal do
seu legista. Aguardando a necropsia.
—Eu sabia desde o começo que isso não era para o Jon.
—Deixa comigo, eu vou resolver.
Confiei em Max. Meu maior motivo para
isso era minha falta de alternativas. Jon estava tendo
pesadelos todas as noites. Dificilmente eu ia dormir
depois dele, ou acordava enquanto ele estivesse
dormindo.
Max apareceu com a solução no dia
seguinte. Foi até nossa casa, dizendo que tinha um
emprego para Jon em um bar.
—Não é o salário que você ganha. Na verdade, é um
terço dele.
221
Jon riu.
—Então você quer que eu largue meu emprego, aquele
pelo qual estudei oito meses, para servir bebidas e
ganhar três vezes menos?
Max olhou para mim, em busca de apoio.
—Vai ser melhor, Jon.—Eu disse. —Você não percebe
que esse seu serviço não está te fazendo bem?
—Deixe disso. Agradeço sua ajuda, Max. Mas realmente
não estou interessado.
Em março de 2001, Jon conheceu Francie. Era amiga de
uma ex namorada minha. Nunca tinha conversado
realmente com ela. Não que nossos destinos não se
cruzassem, mas sempre nos odiamos mutuamente. Se
tratava de uma arrogante. Não era rica, mas agia como
se fosse. Se me via na rua, não me cumprimentava. Eu
222
não fazia a menor questão que ela o fizesse. Jon teve o
infortúnio de se apaixonar por ela.
Aconteceu numa festa de minha ex
namorada. Devo ressaltar que Cody estava explêndida
naquela noite. Quase reatamos nosso falecido
relacionamento.
Jon me acompanhou á festa porque não
queria ficar sozinho em casa, e tão pouco tinha lugar
para ir. Afastei-me dele assim que entramos na casa de
Cody, embora ele implorasse para não deixá-lo sozinho
no meio de gente que não conhecia.
—Vê se consegue ser menos gay. —Respondi, antes de
dar o fora.
Foi então que Francie salvou Jon e o levou
para a garagem, onde passaram um bom tempo. Eles
começaram a namorar em algumas semanas, e quando
ela passou a frequentar nossa casa, ele ficou ainda mais
exigente com a limpeza doméstica.
223
Detesto essa garota absolutamente,
portanto sou suspeito a falar. O fato era que Francie
dominava Jon completamente, como fazia com todo
resto em sua vidinha medíocre como babá dos filhos
dos ricos. Dificilmente eu permanecia em casa quando
ela vinha visitá-lo.
Max apostava que iam se casar. E devo dizer
que meu alívio foi enorme quando eles terminaram,
quase três anos depois.
Foi então que Francie salvou Jon e o levou
para a garagem, onde passaram um bom tempo. Eles
começaram a namorar em algumas semanas, e quando
ela passou a frequentar nossa casa, ele ficou ainda mais
exigente com a limpeza doméstica.
Detesto essa garota absolutamente,
portanto sou suspeito a falar. O fato era que Francie
224
dominava Jon completamente, como fazia com todo
resto em sua vidinha medíocre como babá dos filhos
dos ricos. Dificilmente eu permanecia em casa quando
ela vinha visitá-lo.
Max apostava que iam se casar. E devo
dizer que meu alívio foi enorme quando eles
terminaram, quase três anos depois.
Francie foi ver a banda algumas vezes, e
ocupava a mesinha perto do palco onde Sam costumava
ficar. Na aparência, ela era muito parecida com Sam.
Mas não gostava do nosso som, e não fazia qualquer
esforço para fingir que estava se divertindo. Por causa
dela, devo admitir que Jon começava a ficar chato. Dava
o fora assim que o show terminava, porque ela queria
voltar para casa, ou porque ele tinha que encontra-la na
casa dela.Víamos Jon olhar para o relógio com ar
apreensivo, e correr sem nos ajudar a arrumar os
equipamentos, ao encontro dela, de rabinho abanando.
225
Era patético, e juro que tentei abrir os seus olhos, mas
Jon podia ser muito teimoso. Talvez ele não visse as
coisas do jeito que eu via. Foi nessa época que ele
começou a beber.
Eram quase de horas da noite quando cheguei em casa.
Lembro-me bem de ter abusado das drogas naquele dia,
e minha cabeça já não se encontrava muito boa. Estava
acontecendo com frequencia e eu não tinha mais noção
de quando parar. Parecia que minha mente pedia cada
vez mais, embora eu sentisse que meu corpo estava
desfalecendo. Tinha sido um dia difícil. Andava
procurando emprego, perdi minha vaga de Office boy na
imobiliária porque tinha chegado muitas vezes
atrasado, e não conseguia mais realizar meu serviço
corretamente.
226
Eu ia passar direto por Jon, deitado na cama,
com os olhos presos no teto. Tinha aquele olhar distante
de novo.
—Heitor! —Ele chamou, como se eu tivesse muito
longe, sem descravar os olhos do teto.
—O que é? —Perguntei, mal humorado.
—Tenho um problema.
—Ah, é? Por que não vai resolvê-lo com um copo de
vinho?
—Porque não tenho dinheiro para isso. Fui demitido.
Não pude deixar de rir com ironia. Era tudo
o que precisávamos, mais um desempregado na casa. A
sra. Furguson não ia gostar de saber disso.
—Por quê?
Pelo que Jon contava, o dr. Perry tinha ele
em grande estima, tinha lhe dado um aumento de
salário, e até o incentivava a fazer Medicina. Achei
muito estranha a repentina mudança. Reforcei minha
227
pergunta, com impaciência. Joguei-me na cadeira, em
desespero. Estava vendo o mundo ruir, e percebi que
logo estaríamos morando na rua. Como eu desejei ter
mais um cigarro naquele momento! Mas nem para isso
eu tinha dinheiro.
—Como é que conseguiu ser demitido, seu
inconsequente? —Esbravejei.
Ele não se moveu, nem retrucou. Eu estava
com vontade de quebrar alguma coisa, sabia que
precisava extravasar aquela raiva, que não provinha
apenas da notícia. Era algo superior, uma coisa com a
qual eu tive que sobreviver até Stephanie salvar minha
vida.
Bati a porta atrás de mim quando sai de casa.
Eu não tinha certeza para onde estava indo, mas sabia
que tinha que chegar logo. Caminhei a noite toda, e
apenas de manhã consegui raciocinar um pouco melhor.
228
—O que foi que aconteceu? —Perguntei, como se não
tivéssemos interrompido a conversa da noite anterior.
Jon ainda estava no mesmo lugar. E não me
respondeu. Não sei se não me ouviu, ou ficou com
raiva. Mas ele tinha aquele ar perdido de novo.
Pensei a respeito do que tinha levado Jon a
demissão do hospital, ainda que as causas não fossem
meu maior problema na época; O que mais me
perturbavam eram as consequencias. Despejei um
pouco de água no pó de café que ainda sobrava. Teria o
dr. Perry descoberto que Jon estava ficando doente? Era
possível, ainda que sua doença tenha demorado algum
tempo para avançar de grau.
Os dias avançaram, e a falta de dinheiro também. Jon
teve que usar todo seu charme para convencer a sra.
229
Ferguson a ter um pouco mais de paciência, até que
arrumássemos um emprego.
Max apareceu com parte da solução, quando
anunciou que ainda tinha aquela proposta de emprego
para Jon. Era um bar, mas Jon não pareceu se importar
realmente. Na verdade, eu acho que ele gostou muito
mais de trabalhar com os bêbados do que com os
mortos.
A proprietária era uma velha gorducha, com
o cabelo preto tingido. O bar era realmente um boteco.
Não havia música nem comida. A venda era
basicamente álcool. Não sei onde é que Max conhecia
pessoas tão diversificadas como a sra. Holmes. Ela dizia
ter trinta e cinco anos, mas não aparentava menos de
cinquenta. Faltavam-lhe muitos dentes, e estava o
tempo todo falando. Mas o peso que lhe sobrava fazia
justiça ao carinho que Jon passou a sentir por ela.
Acabou até por convencer-se de que o bar fazia-lhe
230
melhor no que seu outro emprego. Ele dizia que os
melhores amigos que ele fez em toda sua vida foram os
clientes, pois eram as pessoas mais sinceras desse
mundo. Ele conhecia a história de todos os bêbados do
bar, e entendia o motivo de cada um para cair na sarjeta
quando o bar fechava. Contava sua história para eles, e
muitas vezes se perdia nas mentiras que contava. Para
cada um, era uma história diferente, e ele admitia que
ficava difícil memorizar todas.
Eu, no entanto, convencia meus “colegas”
a me fazerem fiado suas mercadorias. Eu podia passar
sem comida, mas não podia ficar sem elas.
Mas ainda íamos ao Anjos Estáticos todas
as sextas, e a nossa música ainda nos mantinha vivos.
Foi estranho como as coisas aconteceram naquela noite
em especial. Era como se tudo cooperasse para que o
231
show não acontecesse. Max se atrasou. Francie fez cena
para deixar Jon sair.
—Você prometeu que ia comigo! —Ela alterava a voz,
no corredor de tijolos, frente ao nosso prédio/pensão.
Pela primeira vez, Jon retrucou com ela.
—Eu não disse que ia. Você sabe que estou sempre
ocupado de sexta feira.
—E eu devo ir sozinha?
Eu saí do apartamento, deparando com eles.
Tranquei a porta atrás de mim.
—Onde ela quer te levar? —Eu me intrometi.
—Á uma festa. —Ele respondeu, mal humorado. —Eu
não disse que ia, droga! —Ele repetiu.
Achei que Francie fosse ter um colapso.
Não teve. Deu as costas e saiu pisando duro, com os
saltos fazendo um barulho chato, e um eco enorme no
corredor vazio.
—Menina idiota. —Eu comentei.
232
Seguimos em silêncio todo o trajeto. Ele estava
nervoso. Admira-me que tenha resistido á Francie, pela
Loveartist.
Apesar dos contratempos, o show correu
bem. Uma garota ficou trocando olhares com Jon o
tempo todo, e assim que descemos do palco, ele foi
conversar com ela.
Fiquei com Stephanie em um canto, mais
uma vez tentando convencê-la de que pararia com as
drogas.
Foi só depois de um bom tempo que eu notei
a presença de dois estranhos, em uma mesa afastada. Eu
sabia que o gordo careca se tratava de um empresário,
porque é o tipo de profissão que está estampada na
cara. O outro que o acompanhava, usava dreads
compridos, e tinha jeito de especulador. Procuravam
alguma coisa, e torci para que tivessem gostado da
Loveartist.
233
Minha expectativas falharam. Vi quando eles
se aproximaram de Jon, trocaram algumas palavras com
ele, e deixaram um cartão.
Eu imaginei o que estava acontecendo, mas
achei melhor acreditar que não. Perguntei a ele quem
eram aqueles caras no dia seguinte, quando a bebedeira
já havia passado, e tudo que restava era a ressaca.
—Ninguém importante. —Ele respondeu, dando de
ombros. —Gostariam de conversar comigo, mas eu nem
vou. Deve ser mais uma dessas coisas com as quais você
se empolga, mas acaba não dando em nada. Não quero
esperar muitas coisas, e me decepcionar depois.
Claro que ele estava mentindo. Demorou
duas semanas para falar comigo, no Anjos Estáticos,
igualzinho tinha feito da primeira vez, quando me
contou que ia fazer o curso em São Francisco. Uma
paródia, uma ironia do destino. Até hoje me pergunto
se a Loveartist poderia ter tido uma chance.
234
—Assinei um contrato com uma banda. Uma banda
iniciante também; A diferença é que eles têm uma
gravadora e um contrato de verdade.
Balancei a cabeça em negativa.
—Você não fez isso.
—Sinto muito, é que eu...
Ele não terminou a frase, porque não tinha o
que dizer. Demorei alguns segundos até digerir
completamente a informação. Depois, fiquei de pé na
cadeira, e levantei meu copo de uísque em um drinque.
—Ei pessoal! —Nem todas as pessoas olharam, mas eu
continuei, como se tivesse toda a atenção do bar voltada
para mim. —Vamos fazer um brinde em louvor ao Jon e
ao seu novo futuro. Um futuro que não inclui seus
amigos, ou a banda que ele dizia amar. —Gerald e Max
olharam para mim, confusos. Ainda não tinha recebido
a notícia. —Um brinde —Dei uma risada. —A Jon
Jordison, meu melhor amigo.
235
Jon deixou o estabelecimento, vi quando
Max e Gerald o seguiram.
A conversa que tivemos no quarto desarrumado me fez
lembrar aquilo que tínhamos conversado há quatro
anos atrás. Mas dessa vez, ele não prometia voltar oito
meses depois. E soava tão definitivo quanto possível.
—A gente nunca sabe o que vai acontecer. —Ele
justificou. —Pode dar certo, mas pode dar terrivelmente
errado.
—Então você vem com o rabinho entre as pernas,
querendo voltar. —Deixei transparecer minha irritação,
ainda que parecesse relaxado, esticado no sofá e
comendo salgadinhos. Eu via um sonho, construído
desde criança, desabar. —As coisas não podem ser
sempre do jeito que você quer.
236
—Eu achei que você fosse entender.
—Não consigo.
—Mas é meu melhor amigo. Pelo menos tente!
—Deixa disso, Jon. Você está sendo hipócrita. Não está
dando a mínima realmente, pensando nos milhões que
vai ganhar como rockstar. Não pense que é simples
assim. Só porque eles têm um empresário.
—E um contrato.
—Grande coisa!
—Nunca conseguimos um contrato. E o mais próximo
que chegamos de ter um empresário era o maluco do
Robin.
—Você está absolutamente certo. Simplesmente
abandone seus amigos, aqueles que sempre te apoiaram
por causa de dinheiro.
—Não se trata de dinheiro.
—Dinheiro e fama. Eu canto porque gosto, porque a música
me entende. Não me venha com esse papo. Poderia
237
acreditar nisso se não abandonasse sua música para fazer
a vontade dos outros. Ou pensa que vai ter a liberdade
que tinha na Loveartist quando entrar na sua nova
bandinha? Vai ser uma marionete nas mãos desses
caras.—Forcei uma risada. —Você é sensível demais
para a Cidade dos anjos. Não vai sobreviver um dia
nesse mundo.
—Max aceitou numa boa. Ele entendeu que meu futuro
não pode depender da Loveartist, ou vou envelhecer e
morrer nessa favela com você.
—O que acha que Francie vai fazer? Viajar com você?
Esperar que você volte?
—Não tenho a menor intenção de voltar. Foi esse lugar
que acabou comigo. E o que Francie e eu decidimos já
deixou de ser da sua conta.
Dei de ombros, voltando-me para o
programa de televisão que eu já nem conseguia prestar
atenção.
238
Ele aguardou uma próxima reação. Não me
movi.
—Tudo bem, então. —Tirou um cheque da carteira.
Apoiou-se na cabeceira de sua cama para assinar. —
Minha parte do aluguel.
—Não preciso disso. —Irritei-me, a quantia pagava o
aluguel inteiro e ainda sobrava um pouco. —Não quero
a droga da sua caridade.
—Dane-se. —Ele rasgou o cheque no meio. Deixou que
os pedaços caíssem no chão.
Eu ouvi Peas mais tarde, e achei o som
bem diferente da nossa banda. Não vou dizer que era
ruim. Mas senti que faltava alguma coisa. Um pouco de
sentimento, talvez. Acho que é isso o que a fama faz.
Loveartist, Espere pelo por do sol
239
Um lugar escondido
Voltando para onde comecei, todas as coisas que eu sei
Nada muito complexo
Não muito profundo, nada romântico
Apenas a superfície vazia que restou
Dentro da min da mente estou preso de novo
Dominado, não há como escapar
Nem sempre você sente
Eu escondo isso e finjo que ninguém vê!
Irreal, é sempre igual
Minha mente declara a morte da minha realidade
Até o limite da minha sanidade
Mas aí tudo isso vai passar,
E você vai achar que eu sou normal!
240
Patty Holmes Jon tinha vinte anos quando começou a trabalhar para
mim. Eu sempre soube que aquela espelunca não era
seu lugar, embora ele insistisse que gostava de seu
serviço. Soube que tinha trabalhado um tempo
cuidando dos mortos, e que aquilo só serviu para deixá-
lo mais deprimido.
Foi Max quem me apresentou a ele.
Conheço Max desde que usava fraudas, e corria pela
rua brincando de Homem Aranha. Jon tocava na mesma
banda que ele. Compartilhavam o mesmo sonho de ser
artista. Fico feliz que Jon tenha conseguido.
Eu vi um vídeo dele na televisão um dia
desses. Minha filha estava comigo na sala. Eu disse que
era aquele o garoto de quem eu já tanto falava, mesmo
depois de tantos anos, me sentindo tão orgulhosa, como
se fosse sua própria mãe. Liguei para Max, e ele falou
241
que já conhecia a banda. Comentei do quanto ele tinha
crescido. Depois desse dia, nunca mais. Não sei se
casou, se teve filhos, ou qual é o seu paradeiro até hoje.
Demorou algum tempo até que ele se
sentisse á vontade para conversar comigo. De início ele
era muito tímido, conversava pouco. Em seus últimos
meses no bar, ficávamos até tarde conversando, depois
do expediente.
Ele contava pra mim sobre sua namorada.
—Ela faz com que eu me sinta contra a parede o tempo
todo. —Explicou, enquanto tomava a dose diária de
Vodca. Ele do lado de dentro do balcão, eu sentada
numa cadeira do outro lado. Metade das luzes estavam
apagadas.—Entende? Estou sempre impelido a fazer a
sua vontade.
—Meu marido era assim. —Fiz o sinal da cruz. — Que
Deus o tenha! —Sorri, olhando para ele. Era um menino
lindo. Eu gostaria de ter tido mais tempo com ele. —O
242
almoço saía ao meio dia. —Continuei a história, virando
meu copo também. —Uma vez, atrasei dez minutos. Ele
fez minhas malas e disse para eu ir embora. Ah, Cristo!
Não se deve falar mal dor mortos. Mas ele foi a maior
praga da minha vida. Afaste-se dessa menina enquanto
há tempo.
—Ela me levou numa festa ontem. Eu disse que não
queria ir, estava cansado. Olha só pra mim. Estou
morrendo de gripe! —Ele cruzou os braços sobre o
balcão e apoiou a cabeça como se estivesse dormindo.
—E como eu sou um idiota completo, eu fui! Aquelas
meninas cheias de olhares superiores. “Francie, como
pode estar com esse cara?”, eu posso ler seus pensamentos.
Suspirei, em concordância. Já tinha visto a
menina algumas vezes,e não tive boa impressão dela.
Ela ficava na porta do bar, esperando que ele saísse,
numa estranha pose de supervisora. Eu sabia que não
era a pessoa certa para Jon.
243
—Eu fazia tudo que meu marido queria, e vejo minha
filha indo para o mesmo caminho. —Contei. Foi incrível
a forma de como nos tornamos próximos em apenas um
ano. Chegou uma época que sabíamos tudo a respeito
um do outro.—Veja só, o cara não faz nada o dia inteiro.
Ela sustenta a casa, passa e cozinha, e ainda tem que
cuidar do bebê. E sabe o que ele faz? Para não dizer que
não ajuda, ele levanta os pés para Mary varrer embaixo
do sofá.
Ele riu, lembrando-se do episódio que
lhe contei. Eu jogando um balde de água gelada pela
janela, acertando bem a cabeça do meu genro.
—Vamos combinar para matá-lo. —Brincou.
—Certo. E depois matamos sua Francie.
—...Imaginar que isso é uma danceteria. —Jon falava
com o Fantasma, um dos meus clientes diários, cara tão
244
pálido que dava a impressão que ia desaparecer. Entrei
no bar, carregando algumas sacolas. —Ali estão as luzes
coloridas. —Ele explicava, apontando para o teto. —
Elas piscam tanto que te deixam tonto. —Indicou o
cliente que dormia em uma das mesas, a cabeça
abaixada apoiada nos braços. —Peixinho Dourado é
uma das garotas bonitas. E a sra. Holmes é a garota que
você quer conquistar.
Fantasma assentiu. Coloquei as sacolas em
cima do balcão, e ia passar para o lado de dentro
quando ele me impediu.Pegou minha mão. Deu um
beijo nela.
—Com licença, mo...Moça. —Tentou, a voz embargada
pela bebida. —Pode me con... Conceder essa dança?
Sorri para Jon.
—Claro, senhor. —Respondi, e ele me conduziu há dois
passos, imaginando que me me levava para o meio do
salão da discoteca.
245
Começamos a dançar no ritmo da música
imaginária. Jon ria atrás do balcão. Parou para atender
um cliente que acabara de chegar, mas Fantasma e eu
não paramos a dança. É incrível como somos capazes de
nos divertir em circunstâncias como essas —A dona de
uma espelunca, clientes embriagados que nem sempre
pagam o que devem, cada vez mais em decadência.
Acho que fazemos isso para não enlouquecer. Depois
que serviu a bebida do Tenente, Jon voltou á sua
posição de DJ.
—Agora, uma música menos dançante. Sintam essa
baladinha.
Dançamos colados, o hálito cheio de álcool
dele batia em meu rosto, sem piedade. Ele pisou nos
meus pés tantas vezes que fui incapaz de contar.
Quando cansamos, eu fui para o lado de dentro do
balcão. Esbocei um sorriso amarelo de brincadeira.
246
—Parece que se divertiu bastante, não é? —Perguntei
para Jon.
Fantasma tirou um chapéu imaginário em
reverência a mim.
—Até mais, bela dama.
—Diga cherry. —Jon provocou.
—Cherry.
Ele foi sentar-se á uma das mesas, com
uma garrafa de vinho aberta á sua frente. .
Peguei os pratos sujos e comecei a lavá-
los. A pia de barro estava manchada de gordura, porém
bem mais limpa do que antes de Jon começar a
trabalhar comigo.
—Como está Francie? —Perguntei.
—Na mesma. —Deu de ombros. —Pode deixar isso aí,
eu vou lavar.
247
—Você devia conhecer minha filha. —Larguei o copo
ainda ensaboado na pia. —Quem sabe dariam um belo
casal.
—Quem sabe?
—A quem eu tento enganar? —Bati no balcão, nervosa
de brincadeira. —Eu é que queria casar com você.
—Ninguém sabe o que o futuro nos reserva. E você é
muito mais bonita do que Francie.
Pintado, o bêbado cheio de sardas, sentou-se
frente ao balcão e fez o seu pedido.
—Está melhor, Jon? —Ele disse.
Jon pensou por um instante antes de
responder. Suspirou.
—Cada dia, uma nova luta.
—Está melhor do quê, Jon? —Intervi, com um sorriso.
Ele permaneceu sério.
—Daquele meu probleminha de dupla personalidade.
Dei uma longa risada.
248
—Dupla personalidade?
—Sim, você não sabia? —Ele indagou, com surpresa.
—Não!
—Pois é. —Dramatizou. —Céus, como isso é difícil.
Olhei para Pintado. Ele realmente engolia a
história absurda.
—Jon sofre de uma grave e rara doença. —Ele explicou,
com ar sério. —Jon sabe que Jack existe, mas Jack nega a
existência de Jon.
—O maior problema —Jon completou, para mim. —São
os relacionamentos amorosos. Jack tem uma namorada,
e eu tenho outra.
—Nossa, isso deve ser dificílimo pra você, não é? —Fiz.
—Você nem imagina o quanto.
Eu ri.
—Você vai para o inferno. —Passei para o outro lado do
balcão. —Preciso dar uma saída. Cuide desse
manicômio pra mim, certo.
249
Ele me deu um sorriso.
—Será o maior prazer.
Fiquei muito feliz por ele quando me contou que estava
indo para Los Angeles, e tinha acabado de assinar um
contrato com a tal banda. Eu teria direito de ficar
chateada, pois me avisou em cima da hora, e eu não
tinha alguém para colocar em seu lugar imediatamente.
Mas não fiquei. Acho que teria sido impossível ficar
brava com Jon. Eu entendi que ele havia achado o que
tinha procurado a vida inteira. Eu sabia que daria certo.
Ele trabalhou apenas meio período
naquela terça feira, e veio despedir-se de mim e dos
clientes na quarta feira, o dia de sua viagem.
Ficamos algum tempo conversando no
bar, como fazíamos sempre, antes dele partir.
250
Jon trabalhou apenas metade do período naquela quarta
feira. Disse que estava indo para Los Angeles naquela
tarde. Claro que fiquei chateada com sua partida, mas
entendi que tinha encontrado o que estivera
procurando.
—Por que é tão difícil fazer as pessoas entenderem? —
Perguntou para mim, enquanto enchia o copo de uma
cliente já embriagada. —Heitor não entendeu. Francie
menos ainda.
—Já falou com Francie?
—Levei ela para almoçar ontem . Pela primeira vez, em
um restaurante decente, esses cheios de talheres
diferentes, e taças legais. —Deu seu habitual sorriso de
criança. —Eu não sabia nem o que pedir quando li o
menu. Graças a Deus ela sabia!
—Ela não reclamou, pela primeira vez na vida?
—Achou estranho. Mas imagino que tenha gostado.
Pelo menos até a chegada da sobremesa, que foi quando
251
eu contei onde tinha arrumado o dinheiro para pagar a
conta do restaurante.
—Ela deve ter pensado que você considerava a idéia de
fugir depois de comer. —Dei risada.
—Não seria má idéia. A lasanha deles é ótima.
—Comida italiana?
—Muito chique. Você precisava ver. Vou te levar um
dia desses.
—Promete?
—Com certeza.
Seu olhar ficou perdido por um instante.
Pensava em Francie. Eu sabia que ela não o apoiaria, se
nem o próprio Heitor tinha feito isso. O que me
preocupava era imaginar se Jon deixaria passar essa
oportunidade por causa dela.
—O engraçado, —Ele continuou, sentando-se em á das
mesas. Eu o acompanhei. — É que Francie não queria
que eu fosse naquele show. Não sei porque, mas é como
252
se pressentisse algo. Queria ficar comigo aquela noite.
Insistiu tanto... Imagina só, eu disse não! Justamente
naquela noite.
—Existem coisas que foram feitas para acontecer.
Ele concordou entusiasticamente.
—Eu estava nervoso, tínhamos chegado atrasados,
quase não nos apresentamos. Parecia que tudo
cooperava para que não desse certo. Mas os caras
estavam lá, a procura de um vocalista maluco.
A partir desse momento, minhas dúvidas
se dissiparam. Tudo iria sair bem, muito bem. Porque
não tinha outro jeito. Porque eu estava vendo ele feliz, e
isso pareceu a coisa mais importante do mundo naquela
hora.
—Francie disse que vou me arrepender. —A antiga
insegurança voltou a assombrar-lhe. —Disse que essas
coisas nunca saem do jeito que esperamos.
253
—Essa menina não sabe de nada. —Abanei a mão num
gesto de quem não deve se importar. —O que vale é o
que sente seu coração.
—Eu nunca confiei no meu coração, é a última coisa em
que devo confiar, acredite. Melhor, na minha mente,
porque meu coração não passa de mais um músculo
controlado pelo cérebro. —Suspirou. —Não, meus
sentimentos não são confiáveis.
O Poodle entrou no bar. O homem baixinho e
atarracado tinha esse apelido por causa de seus tufos de
emaranhados cabelos brancos. Jon ia levantar-se para
servi-lo, mas eu o impedi. Fiz o serviço e voltei á mesa.
Agora ele tinha a expressão triste.
—O que foi?
—Só estou pensando... Ei, você precisava ver. Teria sido
cômico se não fosse trágico. Ela ficou nervosa quando
disse que estava saindo de Bakersfield. Gritou no meio
do restaurante, perdeu toda sua classe. —Deu uma
254
risada. —O pessoal ficou olhando. Nada mal para uma
estréia em um lugar chique, não é?
—O que ela disse?
—Blá blá blá, “Pode ir se quiser”. O que frequentemente
quer dizer: se sair daqui, vou te matar. Então ela disse
que ia pra casa caminhando, estava cansada de andar
comigo de ônibus. Problema dela, entende? Acho que
cansei.
—Acho isso maravilhoso, Jon. Mas não entendo... Esses
caras te viram cantando uma vez, e, pumba! Você é o
vocalista oficial deles?
Ele apoiou o rosto na mão, o cotovelo na
mesa.
—Não te contei essa parte? São completos idiotas.
Ligaram depois que eu voltei do bar que Max me levou,
naquela comemoração, e disseram para eu ir até a casa
de um deles. A casa era grande, tinha até um jardim.
Acho que era dos pais do baixista. Sabe o que me
255
falaram? —Balancei a cabeça em negativa. —Pediram
que eu cantasse. Imagina só, cantar para eles me
avaliarem! Fiquei nervoso, muito nervoso. Estava
prestes a sair de lá, dizer para que se ferrassem, todos
eles. E eu tinha comemorado antes de assinar o contrato
que deveria mudar minha vida!—Deu uma rápida
olhada pro relógio de pulso. —O gordinho dono da casa
disse que aquilo tudo era ridículo e desnecessário. ”Isso
aqui não é um concurso de canto”. Bom, acabei assinando o
maldito contrato sem cantar coisa nenhuma. Fui
obrigado a comer um negócio que o tal do Reg chamou
de camembert empanado. E até que não estava tão
ruim... —Ele levantou e pegou a mala. —Eu perguntei
por que ele me defendeu, sendo que nem tinha ido ao
Anjos Estáticos, não sabia se eu era bom de verdade.
“Procuramos muitos e não achamos ninguém. Eu cansei.”
Quase que explodo de ódio, claro. Preciso ir, sra.
Holmes.
256
—Será que até agora vai me chamar de senhora, pelo
amor de Deus?
—Patty.
—Vou sentir sua falta. —Eu abracei ele.
Sem pensar, beijei sua boca. Ele resistiu
de início. Sei que não queria, mas não pude evitar. Sabia
que era minha última chance.
Marinheiro e Poodle levantaram e
aplaudiram. Soltaram vivas e assobios. Agora sim meu
bar parecia um hospício.
—Isso aí, Jon! —Fantasma gritou, quando eu liberei ele
do abraço. —Se deu bem!
Jon riu, meio em choque. Deu um
abraço nos clientes.
—Até mais, rezem por mim.
—Sempre, amigo! —Poodle piscou.
—Boa sorte. —Eu falei.
—Obrigado. Vou precisar.
257
Foi muito triste vê-lo saindo. Passei a rezar
por ele todas as noites.
258
Reg Levesque
Tornamo-nos melhores amigos quase imediatamente.
Ele ficou nervoso quando duvidaram do seu talento,
mas vi na sua cara que se tratava da pessoa que
procurávamos. Ele hesitou antes de assinar o contrato,
mas eu sabia que o faria. Tinha vindo até minha casa
para isso.
Ele mal conversava com os garotos da
banda. Viajamos em uma quarta feira de natal, quando
já planejávamos a gravação de um álbum que ainda
nem existia, e pedimos para que ele escrevesse as letras.
Nenhum de nós sabíamos escrever uma boa letra de
metal, essa é a verdade que tivemos que admitir.
Tentamos depois que nosso outro vocalista
oficial desertou, sob a alegação de que tinha encontrado
uma banda melhor. Não saiu absolutamente nada em
nossas escritas, por mais que parecesse fácil. Tudo que
259
consegui foram algumas palavras divertidas, que
falavam sobre álcool, mulheres e carros.
—Não é isso. —Paul objetou, quando leu a primeira
estrofe da minha obra. —Nós temos que falar sobre ódio
e dor. Isso não tem nada a ver, seu imbecil.
Eu xinguei de volta, embora concordasse.
Escrevi alguma coisa, mas se o sentimento não é real,
nem adianta continuar. Jon acabou por pegar algumas
das letras de sua ex banda, por falta de tempo para
escrever. Sei que não faria nada se o obrigássemos a
fazer. Jon era o tipo de pessoa que não gosta de
obedecer. De forma que eu nem mencionei mais o
assunto de material inédito, deixei por conta dele.
Estávamos no aeroporto, prestes a
começar o primeiro mês do resto de nossas vidas.
George passou por nós.
—Vamos, meninas. O avião já está saindo.
260
Caminhamos a passos largos pelo corredor
cheio de pessoas de várias nacionalidades. Eu dizia a
mim mesmo que era assim que deveria ser, precisava
me acostumar. Pessoas diferentes, lugares diferentes.
Minha vida nunca tinha sido tão excitante. Não seria
esforço algum viver daquele jeito para o resto da vida.
—Por que eles são assim comigo? —Jon indagou,
referindo-se aos outros caras da banda.
Não era momento para esse tipo de
conversa, mas cedi.
—Vão melhorar. —Assegurei, virando meu copo de
café num gole só.
—Não, não vão.
—Como pode saber? —Perguntei.— Conheço esses
caras bem melhor do que você. Só que acham você é um
idiota arrogante.
Percorremos o resto do trajeto em silêncio.
Vi tanta gente diferente... Meu sonho estava se
261
realizando. Íamos mesmo gravar um CD, tínhamos
mesmo uma gravadora, e até patrocinadores.
—Nervoso? —Perguntei, quando tomamos nossos
assentos dentro do avião.
—Um pouco.
—Nunca estive tão animado em toda minha vida.
Recebemos a ordem de apertar os cintos de
segurança.
—Dá pra acreditar que estamos aqui?
—Não, nunca. —Ele respondeu, um pouco vagamente.
Não sei se prestava atenção em mim.
—As únicas pessoas que acreditavam eram minhas
irmãs.
A contagem regressiva começou. Percebi
que Jon respirava fundo várias vezes.
—Já viajou de avião antes?
—Não.
—Sente-se bem?
262
Ele assentiu sem convicção. Já começávamos
a decolar.
—É muito seguro. —Garanti. —Não há tantos riscos
assim, Jon. Se precisar vomitar, use aquele saquinho
plástico ali, certo? É normal sentir-se enjoado na
primeira vez.
—É que fica meio difícil de respirar.
—Não tem nada a ver. Tem ar de sobra aqui dentro. É
só da sua cabeça. Espere até que o avião se estabilize.
Vai parecer que estamos em casa.
—Acho que sou meio claustrofóbico, não sei. —Ele
agitou-se, puxando o cinto de segurança para a frente,
como se tentasse libertar-se dele, mas sem abri-lo. —
Acha que podemos voltar?
—Trauma de infância? —Tentei distraí-lo.
—Fiquei algumas horas presos em uma biblioteca
escura.
263
Permanecemos em silêncio. Torci para que
ele ficasse bem. Precisava ficar. Lembrei-me mais uma
vez que aquele era o começo de nossas vidas. Não havia
tempo para claustrofobia.
Tudo que ouvíamos era o chiado baixo do
avião contra o vento. A tontura inicial já havia passado.
Eu me sentia realmente bem.
Disse alguma coisa para Paul, sentado do
outro lado de nossos assentos. Fiz uma brincadeira
qualquer sobre ele estar pálido de medo.
Jon estava em silêncio, olhando pela
janelinha.
—Sente-se bem? —Indaguei de novo.
—Acho que não tenho outra escolha.
Nossas viagens de avião não tiveram
mudanças com o decorrer do tempo. Jon nunca perdeu
seu medo infantil de voar, e sua mania de insistir na tal
da claustrofobia. Mas sempre foi muito corajoso, pois
264
nossas viagens de avião se tornaram cada vez mais
frequentes desde a primeira vez.
Os hotéis em Los Angeles com certeza são os melhores
do mundo. Até mesmo em comparação com aqueles
onde eu passava as férias escolares com minha família.
Viajávamos para a Europa, uma vez fomos até a
América do Sul. Saíamos o tempo todo, quando meu pai
não estava trabalhando. Os passeios de família não
falhavam nunca, jantares, festas ou eventos. E tudo o
que eu queria era ficar em casa, para jogar futebol com
meus amigos na rua.
Nosso progresso com a Peas foi grande e
rápido. Em menos de um mês, entregamos um álbum
pronto para a gravadora, e começamos nossa primeira
turnê em alguns estados nacionais.
265
Tínhamos uma Kombi que nos servia para as
longas estradas entre um lugar e outro. Ela balançava
muito, e por mais de uma vez, fomos obrigados a descer
para empurrá-la, até que voltasse a funcionar. Nosso
motorista nos abandonou na primeira semana de
viajem, e George assumiu o volante, dividindo a função
de empresário e motorista, até darmos sorte de
conseguir alguém muito corajosos para enfrentar as
longas estradas com nosso decadente carro.
Quando começamos a ter o privilégio de nos
hospedar dignamente, levávamos dentro da mala
sabonetinhos e mini garrafas, ou o que mais
pudéssemos roubar dos hotéis. Jon achava o máximo
aqueles refrigeradores pequenos, porque eram iguais os
que via nos filmes de Hollywood. Eu morria de rir, e
diziam que eles eram pobres e deslumbrados, e nada
poderia mudar isso.
266
A essa altura, a banda estava em perfeita
união. Jon finalmente conseguiu convencer os rapazes,
sem usar nenhuma palavra, que era um de nós. O
engraçado é que aos poucos ele tomou a liderança da
banda, sorrateiramente, e acho que nem ele percebeu
isso. Simplesmente nasceu para isso. Para ser líder de
uma banda internacionalmente famosa.
Quando conseguimos um trailler de
verdade, queimamos nossa antiga Kombi em praça
pública. Foi um dos melhores dias de nossa vida.
Levamos uma multa por isso, mas não importava.
Estávamos livres daquela ridícula lata velha.
A nossa primeira turnê internacional foi excitante,
apesar de exaustiva e ansiosa. De início, estávamos com
medo do público lá fora. Nossas expectativas foram
superadas. Não importava que aquelas pessoas não
267
falavam nosso inglês. Conversávamos em nossa própria
linguagem: A música. E essa língua eles entendiam
muito bem. Em nosso primeiro show dessa turnê, o
público foi extremamente caloroso, como se conseguisse
ver o quanto estávamos nervosos, e foram bondosos
conosco.
Fomos jantar juntos no salão do hotel.
—Nunca mais ouviu falar de sua ex namorada? —Ryan
perguntou a Jon.
Nós sabíamos de Francie por causa das letras
que ele tinha escrito para ela. Na verdade, forma apenas
duas músicas com linguagem direta, e algumas outras
que apenas dava a entender, e misturava outros
assuntos, de forma confusa, como sempre tem que ser.
Ele dizia que escrever libertava sua alma.
268
—Graças a Deus, não. —Ele respondeu, sem soar
convincente.
—A fila anda, não é? —Nosso baterista Joey riu.
—E como anda!
Eu não tinha certeza se Jon não gostava mais
dela de verdade. Mas esse é um assunto que homens
não conversam, por isso eu não poderia ter certeza. Mas
sei que o ódio sempre está ligado ao amor, e da forma
cheia de raiva que ele falava a respeito, despertava
minhas suspeitas.
Jon não nos acompanhou em uma viagem extra oficial a
Bakersfield. Ele não tinha nada mais a ver com a cidade
que fazia com que tivesse pesadelos.
269
Devo dizer que foi estranho entrar em casa,
carregado de lembrancinhas adquiridas em outros
países. Minha mãe estava tão contente por mim quanto
nunca imaginei que estaria. Sonhava para mim uma
faculdade, que eu me tornasse advogado ou qualquer
outra coisa cheia de burocracia. Meu pai comentou que
viu um pôster da minha banda em alguma loja, e mal
acreditava que era mesmo minha foto ali na parede.
—Esse aí é meu filho. —Ele comentou com o
comerciante, uma cena que eu não consigo imaginar.
Era raro os integrantes da Peas serem
reconhecidos na rua, mas acontecia. Em sua maioria de
fãs, eram jovens vestido de preto, lotados de piercings e
tatuagens, com aquela atitude forçada de quem odeia
tudo e todos. Tal como víamos em nossos shows. Esses
adolescentes malucos eram nosso maior orgulho. Com
maior prazer, eu lhes dava um autógrafo ou dizia olá.
270
Dificilmente Jon parava para cumprimentá-
los. Odiava a idéia de ser reconhecido, talvez porque
ficasse sem jeito, ou fosse mesmo um idiota arrogante. A
não ser que fossem as crianças. Para elas, ele dava
autógrafos de bom grado, mesmo quando não estava de
bom humor. Sorria e conversava com elas.
Eu também sempre as adorei, embora elas
não pudessem ir aos shows. Eram nossas fãs mais
sinceras.
Eu tive Charlie, meu primeiro filho na
época que Jon conheceu Renée. Ela era filha de um
produtor francês que nos auxiliou na gravação de um
vídeo.
Tinha que ser loira; Até onde sei, Jon só
namorou loiras. Talvez fosse um fascínio, ou uma
tradição. Bom, Renée pintou o cabelo de preto alguns
meses depois de conhecê-lo, mas nem por isso o
casamento deixou de acontecer. Foi uma festa á fantasia,
271
em um buffet com poucos convidados. Ela se vestiu de
fada, uma fada um pouco acima do peso, e ele do herói
Zorro, para fazer jus áquele bigodinho horrível que
usava.
Eu gostava particularmente da nova esposa
de Jon. Não era como Paula, minha esposa na época.
Renée nos acompanhava quando íamos beber cerveja e
whisky nos bares de Los Angeles.
Peas, Para achar a frase perfeita
Somos muitos
Estamos sozinhos
Esse mundo enorme – Tão fundo, tão cheio
Cheio de corações...
272
Corações diferentes que não sentem o mesmo
Eu não sou igual
O que é minha existência?
Outro número, outro rosto
Poder para os poderosos, esperança para os esperançosos
Não é fácil, não é divertido
As emoções mais profundas que já encontrei
São aquelas que ninguém aceita existir
Aquelas que todos disfarçam
O ódio e a dor...
A dor que rasga meu coração!
A dor que eu aceito sentir!
Ódio, aquele que encontrei
Dor...
Me faz sentir! Me permite respirar!
O que impulsiona todos a fazer as coisas
Mas ninguém vê
Está dentro do coração de cada um
A emoção mais sincera
273
Pura e sincera
Do que essa vida e esse mundo são feitos
Talvez tenha sido exatamente ali que as coisas
começaram a ficar erradas.
Tínhamos voltado de uma turnê
mundial, referente ao segundo álbum da Peas. Dessa
vez, passaríamos bastante tempo em casa. Umas férias
merecidas depois de tento tempo fora.
Acho que ficar muito tempo em casa
acabou por entedia-lo, ou qualquer coisa assim. A
verdade era que tudo cooperava para o mal de Jon. A
começar pela casa que ele tinha arrumado. Uma mansão
velha e mal cuidada, a três horas da minha casa. Os
portões de ferro enferrujado, as tábuas de madeira que
serviam como piso rangiam durante a noite, tudo era
antiquado e estranho. Jon insistia que parecia com uma
274
mansão de filmes de terror, e estava fascinado com sua
nova casa. Estava instalado no meio do nada, com sua
esposa, longe da cidade. Nem mesmo o sinal de telefone
ou da televisão funcionava direito.
—Realmente —Brinquei.—Parece um filme de terror. E
sabe o que vai acontecer? Vai começar a ver espíritos.
Ou vai enlouquecer e matar sua mulher.
Ás vezes, eu tinha a impressão de que Jon
vivia em um filme de terror particular. Tinha ataques de
pânico, achava que estava sendo perseguido. Suspeitei
que ele estivesse doente desde o começo. Pensei na
síndrome do pânico, ou na depressão, maus que
parecem muito comuns hoje em dia.
Renée me ligou, um tanto desesperada, e
pediu para que eu fosse ver Jon em sua casa.
Entrei no quarto. Renée estava lá, e
também Tammy, a filha de seu primeiro casamento. De
início, achei que Jon estivesse doente. Estava deitado na
275
cama, completamente imóvel. Puxei uma cadeira para
sentar ao seu lado.
—O que foi?
Ele não respondeu. Virou o rosto para o outro
lado do travesseiro. Olhei para Renée. Ela apoiava os
braços na janela aberta, e observava o lado de fora,
como se pretendesse ficar de fora da cena que acontecia
lá dentro.
Tammy foi quem me deu a resposta.
—Mamãe disse que tio Jonathan está triste.
—Sabe o que foi que aconteceu?
Tammy deu de ombros.
—Pensei que eu tivesse feito alguma coisa para magoá-
lo, mas ele disse que não.
Renée interferiu.
—Está aí há horas. Recusa-se a falar com qualquer um.
Por isso pedi para que você viesse. Será que pelo amor
de Deus pode fazer alguma coisa?
276
Notei que ela falava rispidamente. Talvez
tivessem brigado. Tentei de novo.
—Jon? Por favor, Jon, fala comigo.
Demorou bons minutos de insistência
para que ele levantasse os olhos para mim.
—Pode me dizer, se sente mal?
Ele assentiu e sentou-se na cama. Fiquei
feliz com o progresso. Pegou um livro no criado mudo.
—Vai começar a ler, e vai me ignorar? —Perguntei.
Exatamente. Renée saiu do quarto. Eu a
segui, e também Tammy. Pequei a menina no colo.
—Não sei por quanto tempo vou suportar isso. —Renée
disse, enchendo um copo de vinho.
—Tem acontecido com frequência?
—Ele deita naquela cama e não quer falar com ninguém.
Ontem tentei conversar com ele. Começou a gritar que
eu não sabia de nada, era uma idiota, burra, que nunca
277
conseguiria compreendê-lo. Fico me perguntando o que
foi que fiz de errado.
Nosso guitarrista veio vê-lo no dia
seguinte. Jon continuava exatamente do mesmo jeito. Só
sentava na cama para ler, se recusando a falar com
qualquer pessoa. Eu sabia que começava a agir como
louco.
—Não está comendo? —Paul indagou.
Renée fez que não.
—Nem dormindo. —Completei.
—Jon? —Ele chamou, sabendo que seria inútil. —É uma
crise de depressão. Só um pouco mais acentuada do que
das outras vezes. —Paul tentou explicar para Renée,
com ar entendido. —A culpa não é sua, pode ficar
sossegada. Ele tem estado assim com a gente também.
—De novo para mim. — Lembra que ele chorou na
França só por que gostaria que Renée estivesse com ele
para ver a Torre Eiffel?
278
—Sim. —Concordei, recordando-me. —E não pense que
foram só umas lágrimas derramadas. Chorou de
soluçar, mesmo. Achei que ia derreter.
—Ele precisa de um médico. —Paul sugeriu, como se
nós não soubéssemos disso.
Jon olhou para nós. Finalmente interagiu,
gritando alguma coisa, de repente. Lançou o livro no
chão, fazendo um barulho oco.
—Por que ficam me ignorando? Odeio quando agem
como se eu não estivesse aqui. Odeio, odeio, odeio!
—Tudo bem, Jon. —Fiz, com voz calma, como se
estivesse falando com uma criança contrariada. —Será
que quer conversar agora?
—Não!
—Então por que diabos está reclamando? —Me
irritei.— Não quer falar com a gente.
Percebi que ia chorar.
—Não me sinto bem.
279
Paul sentou-se ao seu lado. Ele tinha sido
lutador no passado, e ainda conservava músculos que
poderiam assustar qualquer um. Com certeza era nossa
mina de ouro, nos casos de confusões em boates.
—Só queremos te ajudar. —Tentou. — Vamos procurar
um médico. Ele vai te prescrever algumas pílulas, e
você vai ficar bom.
—Não quero ficar bom. Isso só vai prolongar minha
vida.
—Pretende ficar nessa cama até morrer?
Ele assentiu. Parecia mesmo uma criança.
Paul levantou-se, como se desistisse.
—Se trouxermos um médico aqui. —Arrisquei. —Você
ouviria ele?
—Ele quem?
—O médico.
Jon esboçou um sorriso.
—Claro, o médico.
280
—Ouviria?
—Depende.
—Do quê?
—Do que ele vai dizer. Se me chamar de louco, não.
Estou cansado. Acho que tem alguém na porta.
—Não tem. —Foi Renée quem respondeu.
—Talvez seja o médico. Mande ele embora. Cadê meu
livro? —Sua voz se alterou novamente. — Por que
pegaram meu livro? Droga, eu quero meu livro!
—Se quiser seu livrinho —Paul falou. —Vai ter que
levantar para pegá-lo.
—Não posso. Minhas pernas não funcionam mais.
—Está mentindo.
—Sim, estou. —Sorriu. —Olá, Tammy.
A menina abriu um sorriso e pulou na cama
com ele.
—Acha que preciso de um médico, Tammy?
—Mamãe acha que sim.
281
—Pois não preciso. Repita comigo: O tio Jon não precisa
de um médico.
—O tio Jon não precisa de um médico.
—Muito bem, boa garota. —Jon falou, ainda
conservando um sorriso. —Ele só está um pouco
cansado.
Olhei para Paul e depois para Renée. Pensei
que ele só estivesse querendo chamar a atenção. Não era
possível que estivesse enlouquecendo. Era como se isso
não pudesse acontecer na vida real.
—É você quem sabe. —Fiz, caminhando para a porta. —
Se quiser nossa ajuda, sabe que pode contar com a
gente. Vamos, Paul.
Antes de sairmos, ele disse:
—Danem-se. Não quero a droga da ajuda de ninguém.
282
Jon desapareceu durante uma semana depois disso, e
justamente quando íamos acionar a Polícia, ele retornou
á sua casa, na maior inocência possível. Alegou não se
lembrar de nada. Disse que acordou em um quarto de
hotel, imaginando estar ainda em turnê com a banda.
Voltou mais magro e abatido, e só Deus sabia por onde
tinha estado. Não acredito que não se lembrasse
realmente. Deve ter sentido vergonha, e achou a
mentira a saída mais fácil.
Para espantar seus demônios, ele voltou a
beber. Eu via ele cair em um abismo, e me sentia
impotente. Eu nada podia fazer para salvá-lo.
Ele dizia não acreditar que havia algo de
errado acontecendo com ele. Alegava estar apenas
passando por uma fase difícil. Para mim e as pessoas
que o rodeavam, era mais fácil acreditar que Jon estava
certo, aquilo tudo ia passar. Ele recusava-se veemente a
283
ver um médico. E por mais que tentássemos nos
enganar, sabíamos que havia uma tragédia eminente.
Mas essa tal tragédia foi adiada no dia em
que ele conheceu Debbie.
Meu casamento já não ia bem, e eu só o mantive por
mais tempo por causa de Charlie. O mesmo estava
acontecendo com Jon e Renée. Frequentemente, ele
aparecia na minha casa, ou na casa de Paul para pedir
um abrigo durante a noite. De vez em quando ele
chorava, ou simplesmente decidia que se separaria dela.
Não sei exatamente o que o impedia de fazê-lo, se era o
medo de ficar sozinho, ou Tammy.
Eu o aconselhava a deixá-la, ainda mais
agora que tinha Debbie. Era uma perda de tempo, tendo
284
em vista que seu casamento não estava dando certo,
mesmo.
—Ela está brava porque não cumprimentei as amigas
dela. —Ele disse, colocando a mala improvisada em
cima da cama do meu quarto de hóspedes.
—O quê?
—Isso mesmo, meu amigo. Não parece loucura?
—Acho que sim. —Arrisquei, sabendo como melhor
amigo que Jon não era tão inocente quanto achava que
parecia. Renée não ficaria brava á toa.
—Minha casa estava cheia, aquelas vadias imprestáveis.
Não gosto delas. Não disse nada quando passei pala
sala de estar. Deveria ter dito?
—E por isso Renée ficou nervosa?
—Por isso, e porque eu disse que ela é uma vadia sem
vergonha, que fica desperdiçando tempo com suas
semelhantes, e depois só sabe me criticar.
Dei uma risada rápida.
285
—Só por isso?
—Sim. —Ele sorriu em sua auto ironia.—Estou cansado
disso, Reg. Você não imagina como.
—Claro que eu imagino. —Baixei a voz. Paula dormia
no quarto ao lado, e logo eu teria que estar ao seu lado.
—Não acha que também não estou louco para dar o
fora?
—Então por que não caímos fora simplesmente? —Ele
indagou, deitando na cama. Cruzou os braços sob a
cabeça. —Parece que sempre ficamos quando devemos
ir embora.
—Eu penso todas a s manhãs. Hoje é o dia, hoje eu vou
embora. Pensei isso essa manhã. E veja, aqui estou eu.
—Não posso entender. Nós nos amávamos tanto... Era
tudo tão perfeito. E, pouco a pouco, nosso amor foi se
transformando em ódio.
—É uma pena. Renée é legal. —Pensei por um minuto
na outra loira na vida de Jon. A garota de cabelo
286
encaracolado, e com um sorriso de anjo. — Se bem que
entre ela e Debbie, acho que eu escolheria Debbie.
—Porque ela é mais bonita?
—Também por isso.
—Já tentamos conversar, sabe? Esse negócio chato de
sentar e expor nossos sentimentos. Cara, piorou tudo.
Eu assumi coisas que não deveria ter assumido.
—Isso nunca dá certo. Por isso que eu e Paula nunca
tentamos. Acho que devemos simplesmente aceitar que
vamos passar o resto de nossas vidas desse jeito.
Condenados até envelhecer. E aí quem sabe as coisas
não começam a funcionar?
Ele assentiu e tirou um comprimido da
carteira. Engoliu-o a seco. Balancei a cabeça em
desaprovação.
—Você não deveria se auto medicar desse jeito. Sabe o
quanto isso é perigoso.
—Por quê? Tem dado certo até agora.
287
—E ainda mais esses aí, com a tarja preta. São os mais
fortes.
—São os que viciam. Deixe disso, Reg. Eles ajudam a
controlar minha loucura. —Enfiou-se em baixo do
cobertor, e fez um sinal para que eu deixasse o quarto.
—E me fazem dormir, também.
—O problema é seu. —Dei de ombros. —Mas fique
sabendo que não vou visitá-lo no hospital todos os dias,
quando ficar internado e inválido por causa dessas
coisas. —Abri a porta para sair. —E não vou te levar
chocolate também.
—Aí você pegou pesado! —Ele gritou, depois que saí.
Era inverno em Nova York.
Reclamávamos o tempo todo, apesar de
estarmos em lugares mais frios do que aquilo, estar em
288
nosso país nos instigava a vontade de estar de volta á
Califórnia.
Estávamos com Mike, um amigo que
morava por lá, o qual conhecemos durante uma
gravação qualquer. Ele não era do nosso meio, era um
hip hopper famoso por conquistar as mulheres. Levou-
nos á uma casa noturna. Jon achava barulhenta demais,
a música repetitiva demais, o lugar escuro demais, mas
o que não faria quando dizíamos que tinha a chance de
conhecer novas garotas?
Aproximei-me de uma das mesas do canto,
um pouco mais afastada que as demais.
—Oito. —Eu fiz o sinal com os dedos. Era mentira, tinha
conseguido beijar metade desse número de garotas.
—Sei. —Jon riu.
—Você, garanhão? Quantas?
—Não quero falar de números.
—Vamos!
289
—Três.
—Fracote.
—Se liga só. —Mike interrompeu, de repente. Segurava
um copo de conhaque que parecia pender de seus
dedos. Chamou a atenção para uma ruiva muito alta
que dançava sozinha no meio do salão. —Ela não dá
mole para ninguém. Foi a única que me deu um fora em
toda minha vida.
Jon e eu trocamos olhares incrédulos. A
única, claro.
—Aposto que eu consigo. —Falei, de alguma forma,
convencido.
—Duvido. —Jon fez.
—Ah, é? E o que faria no meu lugar, bonitão?
Ele deu de ombros, desinteressado.
—Está apostado. —Mike interrompeu. —Se um de
vocês conseguir pelo menos uma dança, eu perco. Se
não, a vitória é minha, porque eu estava certo.
290
—E o perdedor —Jon deu uma de suas idéias
terrivelmente infantis. —Tem que correr pela Time
Square gritando “Eu sou o cara”. Sem roupas, é claro.
Mike riu.
—Que comédia! Não quero realmente ver Reg com essa
barriga de fora, mas está valendo. Boa sorte pra vocês.
Eu já venci essa.
Eu tentei primeiro. Vi que Jon e Mike
assistiam á cena de longe, e estavam rindo. Pedi só por
uma dança. Ela simplesmente me ignorou. Insisti. Ela
olhou para mim com ar superior, e continuou dançando
sozinha. Implorei, ela me afastou com um gesto.
Arrisquei começar a dançar com ela. Deu as costas, e foi
para outro lugar.
Voltei derrotado. Jon certificou-se de que
a ruiva não nos tinha visto juntos. Ele estava confiante.
Eu não confiava muito nele. Mas minhas próximas
291
horas dependiam dele. Comecei a torcer
fervorosamente.
Ele falou com ela. Como se conversasse com
uma amiga. Não estava tentando nada. A ruiva
continuava a ignorá-lo, quando parou de repente de
dançar. Agora olhava para ele com atenção.
—Não acredito. —Murmurei.
Ela olhou na nossa direção. Baixamos a
cabeça insistivamente. Jon falou mais alguma coisa. Ela
o empurrou, e saiu.
—Eu não vou á Time Square. —Ele disse, assim que
retornou.
—O que diabos você disse á ela? —Repreendi, enquanto
Mike nos arrastava para fora do clube. —Falou da
aposta? —Ele não respondeu. —Cara, você é bem
melhor quando mente!
Entramos no carro do Mike, incertos de
nossos destinos.
292
—Vamos a outro lugar. —Pedi. —Por favor, um pouco
de misericórdia. A Time Square, não!
—Certo. —Mike concordou, relutante. Parou ao meio
fio de uma rua não tão vazia. —Vão dar a volta no
quarteirão. Encontrem-me aqui de novo.
—Deus do céu! —Fiz. —No quarteirão?
—Devem ficar agradecidos. Era para estarmos na Time
Square.
Jon murmurou um palavrão, e começou
a tirar a roupa. Ele arriscou:
—Mike... De cueca? Por favor!
—Está bem, está bem. —Concordou.
—Está frio.
—Sem mais! —Esbravejou, saindo do carro. Forçou-nos
a sair.
Terminei de me despir na calçada mesmo.
Algumas pessoas observavam, atônitas.
—Comecem a correr! —Mike riu.
293
Comecei, tentando ignorar os olhares.
—Eu sou o cara! —Gritei.
Jon tentava esconder o rosto. Rezávamos
para que não houvesse algum paparazzi que pudesse nos
reconhecer por ali.
—Meu Deus... —Ele murmurou.
—Vamos lá, Jon! Diga... Eu sou o cara! —Eu me animei,
inexplicavelmente. É uma estranha sensação de
liberdade.
—Eu sou o cara. —Disse baixinho. Na certa, as pessoas
julgavam que estávamos bêbados ou éramos loucos.
Não que não tivéssemos bebido um pouquinho.
—É isso aí! Eu sou o cara!
Ele começou a gritar também.
—Eu sou o cara!
Já estávamos quase completando a volta
quando ouvimos a sirene da Polícia.
294
—Essa não... —Eu pensei em voltar por onde viemos.
Seria inútil. Estacamos no meio do caminho.
Tivemos que entrar na viatura. O calor
inicial tinha passado, e agora eu tremia de frio.
—Será que vamos ser presos? —Jon perguntou,
segurando uma risada.
—Provavelmente.
O policial mal humorado nos mandou
calar a boca. O resto do trajeto foi feito em silêncio,
risadas contidas. Na delegacia, graças a Deus, nos
deram toalhas, e nos fizeram esperar por mais de três
horas. Jon reclamou que era claustrofóbico, mas
ninguém parou para ouvir. Algumas pessoas ainda
olhavam com curiosidades. Eu já não estava de bom
humor, e sustentei seus olhares com desaprovação.
—Eles deveriam nos agradecer. —Eu falei, em voz alta.
—Fizemos um favor á sociedade nova iorquina,
295
mostrando a eles nossos impecáveis físicos
californianos.
Jon não riu. Eu sabia que começava a sufocar
de verdade, e torci para que Mike viesse logo ao nosso
auxílio. Um policial apareceu nos dizendo que a fiança
tinha sido paga. Entramos no carro de Mike, dessa vez
vestidos com as roupas que ele trouxera.
—Vocês vão me reembolsar. —Ele disse, assumindo o
volante. —Não têm idéia de como foi engraçado.
Nojento, mas engraçado.
—Ah, você acha? —Fiz. —Quase tivemos uma
hipotermia.
Paula convidou alguns amigos a seus familiares para a
ceia de Natal. Eu sempre preferi as festas lá de casa, em
meus tempos de solteiro, apesar de sempre exigirem os
bons modos que eu não tinha. Minha mãe nunca deixou
296
de fazer festa no Natal, e geralmente toda nossa família
comparecia. Cerca de trinta pessoas em nossa ceia. Eu
ficava no jardim com meus primos. Eles sonhavam em
ser médicos e advogados. Eu dizia que queria ser hip
hopper.
Agora, já não fazia sentido para eu receber
pessoas em casa. É uma festa onde se celebra a união, e
isso era algo que estava longe de ser a realidade da
minha vida e de Paula como casal.
Foi com grande alegria que abri a porta para
Jon um pouco antes da meia noite. Quem sabe uma
companhia me salvasse daquela monotonia anual? Ele
estava ofegante.
—O que diabos aconteceu?
—Tenho uma... —Ele tomou fôlego. —Uma boa história
pra contar.
Vasculhei a rua vazia com os olhos.
297
—Veio andando? —Ele assentiu e deu risada. —Quer
entrar?
Deu uma espiadinha lá dentro. Fez que não.
Fechei a porta atrás de mim, carregando Charlie no
colo.
—Você não vai acreditar no que acaba de acontecer!
Sentou-se no meio fio, me instigando a
fazer o mesmo. Tomou mais um pouco de fôlego e
começou a me contar a história que haveria de mudar
sua vida para sempre.
—Eu estava na casa do pai da Renée, certo? —Assenti.
—Estava chato, muito chato.
—Nem me diga! —Pensei na festa lá dentro, e como eu
desejei que o relógio marcasse logo a meia noite para
começar a beber.
—Tinha uma prima dela, uma garota, jovem mesmo.
Ela sentou do meu lado no sofá e me mostrou uma
pasta cheia de fotos. Ela disse que era fã da Peas, mas ali
298
só tinha fotos minhas. —Tornou a rir. —Imagina isso?
Fotos minhas! Devia ter, sei lá, uns dezoito anos.
—Não, você não...?
—Sim. Quer dizer, mais ou menos. Ela disse para eu ir
beber com ela lá fora, na varanda. Sabe como são as
coisas? Eu não pensava em mais nada quando ela me
beijou.
—Mentira!
—Quem é que se lembraria que a porta que dividia a
cozinha e a varanda era de vidro? Ninguém. Muito
menos eu. Era uma menina bonita, Reg.
—Certo. E quem foi que viu? Renée?
—Pior. O pai dela. Começou a gritar para que eu
largasse sua sobrinha. Eu larguei, e quando percebi que
o velho vinha para cima, pulei o portãozinho, e disparei
em correr pra rua. Nem me lembrava mais que tinha
asma. Nessas horas, até nosso pulmão ajuda.
299
Eu desatei a rir, imaginando a cena. Jon
correndo de um velho, depois de ter traído sua mulher
com uma garota de dezoito anos.
—Por que correu de um velho capenga, Jon? Estava
com medo?
—Não sei, foi impulso.
—E correu até aqui?
—Corri até a avenida principal. Depois ele não
aguentou mais. Deus, estou cansado. —Suspirou. Eu
sentia que ele estava contente pelo acontecido. Eu
entendia. Se ele não conseguira se libertar por ele
mesmo, o destino o ajudou. —Acho que vou sentir falta
de Tammy.
—E onde está o seu carro?
—Santo Deus! —Levantou, num pulo. —Meu carro!
Deixei Charlie com Paula e seguimos até a
casa dos pais de Renée. Os fogos nos avisaram que já
tinha dado meia noite.
300
Quando parei meu carro a uma certa
distância da casa dos pais de Renée, o velho tinha
terminado de destruir o último vidro do Peugeot com
um pedaço de pau.
—Não saia do carro. —Alertei, antes que Jon abrisse a
porta e descesse.
—Velho maluco! —Ele gritou. —O que foi que você fez?
O homem largou a arma no chão, e eu
respirei aliviado. Saí do carro e me aproximei do carro
destruído.
—Espere, Jordison. —Ele disse, arfante. Com certeza
tinha descontado toda sua raiva, e devia sentir-se mais
aliviado agora. —Vou trazer as chaves para você.
Cheguei á conclusão de que Jon tivera
razão em fugir. O velho era forte e esperto. Jogou as
chaves no meio da rua, e foi para dentro de casa.
—Veja só isso. —Jon disse. Ajoelhou-se frente ao pneu
furado. Passou a mão na lataria. Até a pintura estava
301
lascada em várias partes.—Eu ainda nem tinha
terminado de pagar...
Tive que arrastá-lo dali quando começou a
chorar.
Jon passou a morar com Debbie, mas não creio que
tenha contado toda a verdade á ela. Foi nessa época que
parou de tomar os calmantes. Eu aconselhei ele a não
fazer isso de uma vez, porque uma vez que tinha
começado, seria difícil de seu organismo acostumar-se
sem.
—Debbie acha que é o melhor para mim. —Ele se
irritou. —E por acaso você é médico para entender
dessas coisas?
Não sei o que foi que Debbie fez, mas o
fato é que realmente o curou. Pelo menos por um
302
tempo, ele me pareceu feliz de verdade. Acho que ele
estava feliz de verdade durante aqueles meses.
Suas habituais crises de depressão se
retiraram de sua vida, e ele não mais se jogava nas
camas de hotel e nos sofás dos estúdios, recusando-se a
fazer qualquer outra coisa. Mas, seu destino não era
esse, por isso o pior aconteceu. Ele perdeu Debbie, de
uma forma horrível, e bruscamente. Aquela felicidade
que só tinha servido para mascarar sua dor desapareceu
por completo naquela tarde, quando estávamos para
fazer um show no Japão.
Tínhamos acabado de descer do táxi para
entrar no aeroporto, quando ele recebeu a ligação dos
pais de Debbie no celular. Eles disseram que ela estava
seriamente doente, e hospitalizada. Ele estacou no meio
do caminho, e quase deixou o telefone cair.
—O que foi? —Paul perguntou.
303
—Não é verdade. —Ele murmurou, simplesmente, sem
explicar absolutamente nada.
Ele entrou no aeroporto, e sentou-se em um
banco, afundando o rosto nas mãos. Jon nem sabia o
que tinha acontecido, mas recusou-se veemente a se
mover, como se aquilo pudesse mudar o seu destino.
Dizem que o primeiro sintoma da perda é a negação.
Tivemos os shows restantes adiados, e ele voltou
catatônico para os Estados Unidos. Ficou com Debbie
nos seus últimos segundos, e deve ter visto seu último
suspiro. Ele não quis comparecer no velório. Trancou-se
no quarto e não permitiu que ninguém entrasse ali
durante quatro dias.
Confesso que fomos fracos, todos nós. Paul
dizia para arrombarmos a porta, chamar um médico ou
a Polícia. Mas ninguém fez nada. As pessoas têm medo
de perturbar o silêncio da dor. Aguardamos com
paciência até que Jon resolvesse que estava preparado
304
para enfrentar a vida. Ele se recuperou, e me ligou,
pedindo que o encontrasse numa lanchonete que
costumávamos frequentar.
Á essa época, eu já tinha me divorciado de
Paula, o que me fez sentir livre. Ser solteiro, para mim,
era a melhor coisa do mundo. Voltava da minha visita
semanal a Charlie. Jon parecia incrivelmente saudável.
—Aconteceu tudo tão rápido... —Ele disse. Tomou um
gole de café. —Não ficamos juntos nem um ano, mas
parece que a conheço minha vida inteira. Parece que foi
ontem que eu me mudei para sua casa, e pedi que
tirasse os incensos do quarto. Sabe, é nessa hora que a
gente sabe que está vivo. Precisamos da morte para
entender que temos vida. —Sorriu tristemente. —Veja
só, estou vivo.
—Pensei que tivesse parado com o café.
Ele deu de ombros. Ficou parado por
alguns instantes, fitando o movimento da lanchonete.
305
Ele tinha razão, as coisas acontecem rápido demais.
Debbie era uma boa garota, é muito triste que tenha
terminado desse jeito. Bem que ela poderia ter se
perdoado, e continuado com sua jovem vida.
—Aconteceu uma coisa estranha. —Ela baixou o tom de
voz, e se inclinou sobre a mesa. —Mas precisa me
prometer que não vai contar a ninguém.
—Sabe que sempre pode confiar em mim.
—Era o terceiro dia que eu estava naquele quarto
escuro, completamente incapaz de levantar da cama.
Era como se mãos estivessem me impelindo a continuar
deitado, entende? Mãos humanas, mas muito fortes. Por
diversas vezes, quase me mataram sufocado. Mas eu
resisti. —Ele esboçou um sorriso, e eu vi que ele já
estava começando uma crise maníaca. Essas crises
sempre se denunciavam com um sorriso. —Eu resisti
porque sou forte. Muito forte. Mais forte do que eles. —
Eu quis perguntar quem são eles, mas achei mais sensato
306
permanecer apenas ouvindo. —Então, o relógio passou
de cinco e trinta e cinco da manhã para cinco e trinta e
seis. Eu fechei os olhos, mas não dormi. Debbie me disse
para ficar em paz, porque ela estaria comigo todos os
dias da minha vida. Isso te soa amedrontador, não é? —
Ele tinha começado a falar daquela forma que me
assustava. Sem interrupções, de uma forma psicótica.
Estava impaciente, ora batia os dedos na mesa, ora
brincava com algum dos objetos. —Pois não. Isso é bom,
Reg. Muito bom. Quer dizer que ela não me abandonou,
simplesmente. Você acha que ela me deixaria assim, tão
bruscamente? Acha? Não deveria achar. Ela está aqui,
nesse exato momento. Eu sei porque posso sentir.
—Talvez tenha sido um sonho.
Ele bateu a mão na mesa com força. Tinha
ficado nervoso com minha observação.
—Não foi.
—Tudo bem , não foi.
307
O movimento com os dedos tinha ficado
rítmico, e ele pareceu se confortar somente com aquele
barulho.
—O que acha? Pensa que sou louco?
—Claro que não. Só acho que precisa descansar um
pouco.
—Não posso dormir.
—Por quê?
—Não posso. Esqueça, certo? Vamos sair daqui.
Ele ia levantou-se num pulo, e já estava
deixando a lanchonete. Gritei para ele:
—Seria legal pagar a conta, não acha?
Tanto eu como Paul pedíamos para que ele viesse
passar um tempo em nossas casas, mas ele recusou-se,
dizendo que estava bem. Parecia realmente saudável,
um pouco animado demais, e não disse mais nada a
308
respeito de nossa conversa na lanchonete. Julguei que
tivesse dito coisas sem sentido porque estava em maus
momentos, e cada um reage de forma diferente em
relação á coisas ruins.
Resolvi guardar para mim mesmo o
incidente, pois as coisas haviam melhorado. Ele não
mais falava de Debbie, e eu julguei que tivesse se
conformado. Saímos em uma turnê nacional, e tudo
correu tão perfeitamente que deixou Paul inseguro.
—Ele não deve estar bem. —Comentou comigo e com
Ryan. —Acho que tem uma bomba se formando dentro
dele, e vai explodir a qualquer momento.
Na época, eu não sabia se Paul estava
certo, mas a verdade era que Jon parecia bem, e eu não
queria me preocupar. Estava sempre querendo nos
acompanhar s boates durante as turnês, algo novo para
ele, que sempre tinha odiado lugares lotados e
barulhentos. Se nós não saíamos com ele, ia sozinho, e
309
desaparecia até a hora da partida, quando íamos para o
próximo país. Perdemos muitos vôos por causa de seus
atrasos, mas parecia a nós que lhe era impossível
permanecer nos quartos de hotel, ou parado por muito
tempo. Estava em constante agitação, falava e bebia
muito. Por muitas vezes, notei que não tinha noção
nenhuma de tempo. Fiquei com medo do que
aconteceria quando ele voltasse á realidade que ele
parecia ter abdicado. Muitas vezes não parecia o Jon
que eu conhecia, de uma forma que não sei explicar.
Mas a realidade ia voltar, uma hora ou outra, quando
acabasse aquele seu estado de agitação. E acabaria com
Jon.
Eu não sabia ainda que se tratava de seu
transtorno. Algum tempo mais tarde, os policiais
encontrariam uma carta remetida á Debbie, em meio ás
suas coisas. Acho que aquilo explicou alguma coisa.
310
Obviamente, a carta nunca foi entregue. A data
constava depois da morte dela.
“Já faz tempo. Devo ter perdido a prática. Já se
passaram muitos anos desde a última vez quer fiz isso, um
quarto escuro, me sentindo sozinho e mal compreendido, com
esse mesmo vazio no coração. Não sinto nada, só esse vazio...
E um pouco de medo. Medo inexplicável, sem sentido.
Antes de descobrir a música, era isso o que eu fazia.
Sentava e escrevia. Deixava sair tudo o que me incomodava
por dentro. No final, o que restava era o vazio. Porém, um
vazio cheio de paz, e eu conseguia chorar —Tem horas que
não me sinto capaz de chorar. Isso acontecia só depois que ele
saía do quarto, e eu ficava sozinho de novo, sem mais motivos
para rezar.
Mas, afinal, com quem estou falando? Tudo
aconteceu rápido demais.O que quer de mim? Ainda não
consigo entender. E não vai ser um pedaço de papel que vai
311
me ajudar, não é?Por que não me dá outra chance? Fui
sempre tão egoísta... E você nunca reclamou disso. Eu
mereceria outra chance?
Se eu preciso de alguém? Se eu queria que
alguém estivesse aqui, comigo, agora? Eu queria que você
estivesse aqui, e me ajudasse a dormir. Não esses
comprimidos, eu queria você! Será que alguém além de você já
me amou de verdade? Eu fui capaz de amar pra valer.
Acontece que eles dizem me amar e sofrer junto comigo, mas
cadê todo mundo agora? Onde estavam eles nos dias mais
loucos da minha vida. Talvez seja simplesmente isso. Sou
louco, e está tudo na minha cabeça.
Eles sorriram para mim, gritaram meu nome.
Sento minhas forças se renovarem naquele momento. Vou me
lembrar para sempre. Como um momento qusae mágico,
irreal. De fato, fui aclamado pela primeira vez na vida, por
pessoas que não conheço, mas me amam de verdade.
312
Não quero culpar ninguém dessa vez. Acho que
estou mesmo ficando louco. Você me diz que não. Eu não
aguento mais.
VAI LOGO! ACABE COM ISSO!
Quer me matar aos poucos? ASSIM FICA MAIS
DIVERTIDO? Por favor, se apresse, ficar falando e me
confortando não é nada prático, Deb.Você sabe que eu quero
dar o fora, mas não encontro as forças. Estou vivendo nessa
montanha russa de emoções, e eu nunca sei se tem mais
alguma coisa terrível para acontecer.
Estou confuso, nem sei mais o que pensar. No
que se resume minha vida, afinal? Em menos de um ano! Eu
vivi menos de um ano! Ás vezes, eu desejo nunca ter te
conhecido, então eu não saberia o que é felicidade. A gente não
perde o que não possui, certo?
Não quero mais tentar. Tentar viver, tentar
morrer. Dessa vez eu me rendo.
Sabe como me sinto agora? Ainda mais vazio, e um
pouco mais em paz.”
313
Achamos que a carta foi escrita em Brixton,
depois de um show onde Jon foi aclamado pela platéia,
depois que os fãs ficaram sabendo de sua doença. É
muito incoerente, e completamente confuso. Me mostra
como devia estar sua mente enquanto escrevia, e isso
me causa arrepios.
Foi no último dia de viagem, depois de um exaustivo
show, que Jon conheceu Julia. A banda do irmão dela
estava em turnê conosco, conhecíamos ele há algum
tempo, era um grande amigo da Peas. Julia veio vê-lo
aquela noite, e nos bastidores encontrou-se com Jon.
Como ela também morava em Los Angeles,
prometeram-se encontrar mais vezes.
314
Não preciso dizer que ela era loira, mas
acho que era jovem demais para Jon. Tinha vinte e um
anos, e eu sabia que não estava preparada para um
relacionamento sério. Estava apenas deslembrada com
seu ídolo, e isso era perigoso.
Mas com o passar do tempo, pude
perceber que ela gostava dele de verdade, e até
concordou em viver com ele na mansão mal
assombrada.
Ela engravidou dois meses depois de
terem se casado informalmente. Eu ia visitá-los de vez
em quando, e levava Charlie comigo. Meu filho ficava
fascinado com o bebê.
Mas eu via que as coisas começaram a
esfriar entre Jon e Julia, logo depois do nascimento da
criança. Era como se a história de Renée se repetisse
bem diante dos meus olhos, e fiquei com pena que
estivesse terminando mais uma vez.
315
Jon me ligou ás quatro e meia da madrugada.
—O que é? —Perguntei, sonolento.
—Tem alguém aqui em casa. —Ele sussurrava ao
telefone.
Não entendi o que ele falou, e pedi que
repetisse.
—Tem alguém aqui em casa!
—Onde está Julia? —Sentei na cama, fazendo o possível
para afastar a névoa de sono da minha cabeça. Tinha
bebido demais na noite anterior, e ainda me lembrava
da garota ruiva que eu tinha beijado na balada. Não
fazia mais de duas horas que eu tinha vindo para a
cama.
—Julia? —Ele perguntou, como se estivesse ouvindo
esse nome pela primeira vez. —Não está em casa.
—O que é que está acontecendo, Jon?
316
—Eu disse para ela que não é mulher de verdade, pois
nem sabe cuidar direito do bebê. Tony estava chorando,
e ela, ouvindo música alta no fone, nem ouviu.
Começamos a gritar um como outro, e ela decidiu ir
dormir na casa da avó.
—E quem é quem está aí?
—Não sei, mas ouvi meu nome. Estava me chamando.
Deve estar lá embaixo, escondido. Estou com medo,
Reg.
—Já ligou para a Polícia?
—Polícia? Claro quer não. O que eles poderiam fazer?
Não se trata de pessoas normais, entende? Escuta só, eu
estava no estúdio, e coloquei café para esquentar na
garrafa térmica.
—Jon... —Tentei interrompê-lo inutilmente.
O estúdio da Peas ficava em um dos
cômodos da sua casa, e ele gostava de ficar lá mesmo
que não estivéssemos ensaiando ou produzindo. Não
317
era de se admirar que alguém como Jon ficasse
assustado em um lugar daqueles, até eu me sentia
estranho quando entrava na sua casa. Mas ele parecia
insistir em sua tragédia, como se precisasse dela, ou
gostasse disso. É uma das coisas que jamais consegui
compreender.
—Julia me chamou lá do quarto, eu queria esquentar o
café, mas ela encheu tanto o saco, e a garrafa estava
demorando tanto, que eu desisti, interrompi o
funcionamento, e desliguei a garrafa. Ouviu bem?
Desliguei a garrafa. Aí eu e a Julia discutimos, porque ela
estava ouvindo música, e o bebê estava...
—Jon! Você já disse isso. Quem é que está na sua casa?
—...Resolvi voltar para o estúdio, e a garrafa estava
ligada. E esquentando o café! Reg, não estou louco,
tenho certeza que desliguei. Mas ela estava lá,
funcionando perfeitamente. Alguém ligou ela depois de
mim!
318
—Espíritos não tomam café, Jon. E veja pelo lado bom,
seu café estava quente. Gostaria de voltar a dormir
agora.
—Eu saí de lá correndo, e ouvi barulho do corredor.
Em um dos quartos, como se alguma coisa tivesse caído,
ou sido arremessada na porta. Foi um barulho enorme!
E agora tem alguém me chamando. Estou com medo.
Você não pode me ajudar?
—Você deve estar sonhando, Jon. O que quer que eu
faça por você?
—Não sei.
—Onde você está?
—No quarto.
Ele começou a chorar. O telefone foi cortado
por um momento, e percebi que o sinal estava
fraquejando. Fiquei com medo. Jon estava realmente
perturbado. Se estava começando a ter alucinações, era
melhor eu me preocupar.
319
—Tomou alguma droga? —Perguntei, torcendo para
que ele dissesse que sim. Jon não costumava usar
drogas, e eu sabia que era uma pergunta boba.
Sua resposta foi cortada por uma falha do
sinal. Ele se desesperou.
—Não desligue, não desligue, Reg! Por favor, não me
deixa.
—Calma, estou aqui. Olha, Jon, vai demorar até eu
chegar aí. Então é melhor que você tome um calmante.
Tem tomado os calmantes?
—Não! —Ele gritou. —Não sou um maldito louco! Não
preciso dessa drogas de remédios. Você mesmo me
dizia isso, seu falso mentiroso!
Entendi que era melhor eu tomar uma
atitude. Tentei acalmá-lo pelo telefone sem fio enquanto
me vestia.
—Está tudo bem, Jon. Estou indo aí. Apenas mantenha a
calma, tranque a porta do quarto, e não saia daí por
320
nada. —Meu maior medo era perder o contato com ele
até que eu chegasse. Era óbvio que Jon era capaz de
cometer uma besteira.—Escute, vou te ligar do celular,
assim eu posso falar com você enquanto estou
dirigindo. Atenda assim que eu ligar, certo? Entendeu
bem?Vou desligar agora.
—Não! —Ele me interrompeu. —Estão batendo na porta
do meu quarto. —Começou a gritar, em pânico. Eu me
desesperei também. Calcei os sapatos em tempo
recorde, mas estava com medo de desligar meu telefone
resisdencial.
—Atenda quando eu desligar.
—Não! Pelo amor de Deus, eles vão me matar. Vai me
matar!
Desliguei o telefone, largando-o no chão.
Peguei o celular, enquanto tropeçava na escada antes de
sair.
321
Eu não consegui completar a
chamada. O sinal estava caindo.
Pensei em ligar para a Polícia, mas
aquilo poderia ter de grande repercussão, e acabaria por
chegar aos ouvidos da mídia.
Cheguei na mansão tão rápido que
mal pude acreditar. Algo me dizia que era tarde demais,
e hesitei antes de pular o muro. Cruzei a enorme
garagem, forcei a porta da frente, mas descobri que
estava aberta.
Subi as escadas, e estaquei quando vi
a porta do quarto escancarada.
—Jon? —Chamei.
Silêncio. Todas as luzes estavam
acesas como de costume, mas não havia o menor indício
de vida ali.
Hesitei antes de entrar no quarto.
Chamai mais uma vez.
322
Vasculhei todo o aposento, depois o resto
da casa. Nenhum sinal de Jon. O fim estava começando.
Apareci na casa de Paul. Já tinha amanhecido, e ele
também estava de ressaca.
—Jon desapareceu. —Eu disse, simplesmente.
—Como assim?
Imitei um mágico quando faz algo
desaparecer.
—Já falei com George, ele está tentando entrar em
contato pelo celular, mas acho que Jon deixou em casa.
—Expliquei o telefonema de madrugada, e consegui
deixá-lo tão preocupado quanto eu.
—E Julia? Já sabe o que aconteceu?
—George ficou de entrar em contato com ela.
—E o que vocês estão achando?
323
—Não sei.
—Sequestro? —Arriscou, incrédulo.
—Não consigo imaginar. Tenho medo de que possa ter
tido um surto. Pode estar em qualquer lugar desse
mundo.
—Não seria melhor chamar a Polícia? —Ele tentou.
Eu assenti, sabendo que não faríamos isso.
Comecei a caminhar em direção da porta.
—Se eu tiver mais novidades, te ligo.
Duas horas depois Julia apareceu na porta. Estava
assustada. Pedi que sentasse, e lhe dei um copo de água.
—Tem idéia para onde ele pode ter ido?
Ela sabia tanto quanto eu. George já não
sabia onde procurar. Não sabíamos o que fazer.
Julia esperou no meu apartamento pelo
resto do dia, sem que obtivéssemos novidades. Eu
324
começava a me desesperar. Ela passou a noite com o
bebê no meu quarto de hóspedes.
Você não tem idéia de onde está entrando. Eu
pensei. Pensei que seria melhor ela se afastar enquanto
havia tempo.
Passamos duas semanas sem novidades. A campainha
tocou ás onze da manhã, me despertando. Achei que
fosse George ou Paul, e tive medo das novidades.
Deparei com Jon na porta.
—Bom dia. —Ele disse, simplesmente. —Te acordei?
—Pelo amor de Deus! Onde é que você estava?
—Andando por aí.
Obriguei ele a entrar e sentar no sofá. Estava
completamente despenteado, e a barba deixada por
fazer fazia com que se coçasse o tempo todo.
325
—Estávamos preocupados!
Ele recostou-se no sofá.
—Por quê?
—Como tem coragem de me perguntar por que, seu
imbecil?
—Fala sério. Que tempestade em um copo de água. Eu
estava meio deprimido, e saí para andar.
—Acha mesmo? Um exagero de nossa parte? Não é o
que Julia pensa.
—Contou á ela?
—Você acha que ela não teria percebido?
—Sério? —Ele parecia genuinamente surpreso.
—Quanto tempo acha que ficou fora, Jon?
—Não conseguia dormir, e fui andar.
—Por uma semana?
—Foi apenas uma noite!
—Dê uma olhada no calendário. Completou quase uma
semana.
326
Ele teve que conferir para acreditar em mim.
—Eu... Sinto muito. —Ele disse.
—Você precisa ver um médico, Jon. Tem algo de muito
errado com você.
Ele assentiu
—Ligue para Julia, e diga que está tudo bem. Não quero
voltar para casa agora.
Acordei com os gritos dele. O rosto molhado e as mão
trêmulas me fizeram entender porquê ele tinha tanto
medo de dormir.
—Tranque a porta! —Ele saltou da cama e bateu a porta
do quarto. Voltou ao seu lugar rapidamente. —A casa
está trancada? —Ele me sacudiu pelos braços. —Tudo
fechado?
—Sim, Jon. —Tive que responder depressa. —Ms não
há perigo algum. Era só um pesadelo.
327
Ele balançou a cabeça várias vezes em
negativa. Encolheu-se no canto da cama e tapou os
ouvidos com a s mãos. Seu corpo tremia por baixo das
cobertas.
—A porta está trancada? —Indagou, como se fosse a
primeira vez.
Eu assenti, torcendo para que aquela noite
passasse logo.
—Estou com medo. —Ele começou a chorar,
compulsivo.
Aproximei-me, hesitante. Ele teve um
sobressalto quando eu o abracei, mas não se moveu.
Continuou chorando. E pela primeira vez em muitos
anos, eu chorei também.
Ele olhou para mim, afastando-se do
abraço. Parou de tremer, e seus olhos tinham perdido
aquele brilho de insanidade por um momento.
328
—O que está acontecendo comigo? —Ele sussurrou,
antes de fechar os olhos.
Paul o levou ao psiquiatra alguns dias depois. Jon já tina
voltado para casa, mas eu alertei Julia para entrar em
contato comigo se houvesse problemas. Estava
preocupado com ela. Não sei se não havia riscos para
ela ou para Tony.
Liguei para Paul em busca das
informações do médico. O que ele me disse não me
deixou nem um pouco contente.
—O dr. Perry deu um primeiro diagnóstico, mas ainda
não é um diagnóstico definitivo. Ele acha que Jon sofre
do Transtorno Esquizoafetivo.
329
—E que droga é essa? —Perguntei, custando a acreditar.
Era um nome estranho, não me soava bem, e eu estava
cansado demais para aceitar aquilo.
—É uma doença, Reg. Quase uma mistura do Distúrbio
Bipolar, e a famosa Esquizofrenia. O dr. Perry explicou
que não é um transtorno reconhecido por todos os
psiquiatras, mas acontece, e ninguém tem certeza do
que chamar. Uma coisa ou outra, entende?
—E o que é que temos que fazer? Tem cura?
Ele demorou para responder.
—Como a maioria das doenças mentais, não existe cura.
Mas existe tratamento. Ele receitou antipsicóiticos. Não
sei se vai dar certo. Estou realmente assuntado. Sabia eu
Jon estava doente, mas não pensei que fosse tão sério
assim. Não achei que estivesse patologicamente louco.
—Quer dizer que vai ser assim pro resto da vida? Não
posso acreditar. Como é que ele está?
330
—Está tentando parecer conformado, mas temo que
essa novidade acabe com ele.
Fui visitá-lo na tarde seguinte.
—Ele me deu pílulas para dormir. —Explicou, sentando
no sofá e estendendo os pés em cima da mesinha de
centro da sala. —E mais uns doze tipos de comprimidos
que ele chamou carinhosamente de anti psicóticos.
—E você vai tomar, não é?
Ele deu de ombros, e pegou uma lata de
refrigerante.
—Está me deixando tonto. Meu braços estão
adormecidos, minha mente parece estar há quilômetros
de distância. Mas acho que só devo estar sentindo a
falta da psicose.
Peas, Final Perfeito
331
Isso é dor, e você não pode me curar
Se fosse só um sintoma, eu poderia pensar de novo
É o problema, fiquei sozinho de novo
Encontrei minha solução
Se fosse para morrer agora, eu fecharia os olhos
Eu sei que não vai doer
Percebo que era tudo que eu procurava
O fim da vida que estava me matando
Meu coração começa a bater devagar
Minha mente sedada não percebe
Os remédios fizeram o efeito esperado durante alguns
meses. Isso nos deu grandes esperanças, e até
começamos a gravar nosso novo álbum.
Estávamos com problemas com nossa
gravadora na época. Acho que isso é comum em nosso
meio, e não era a primeira vez que acontecia. O
problema era que as idéias não batiam. Eles queriam
332
dinheiro, nós queríamos fazer música. Jon ficou
nervoso, quase matou um cara lá de dentro, de tanto
socá-lo, fora do controle. Nosso empresário entrou na
briga, e acabou apanhando também. No final, acabamos
perdendo, e as coisas continuaram a ser do jeito que a
gravadora queria. Como sempre acontece. A lei de
Darwin, Jon disse.
Ele não era capaz de lidar com as coisas que
aconteciam rápido demais, ou com muitas novidades. E
Ryan deixou a banda naquela mesma ocasião, devido á
sua nova religião. Tentamos convencê-lo de que uma
coisa nada tinha a ver com a outra, mas não adiantou.
Acho que o baque de perder Ryan como amigo foi
muito pior para nós do que perdê-lo como guitarrista
base. O Peas logo se reergueu, mas nunca nos
recuperamos de sua suposta traição. Digo suposta
333
porque pessoas abandonadas tendem a sentir-se traída,
mesmo que não seja verdade. A pressão da gravadora
também aumentou naquele ano, e as mudanças no
próprio som da banda acabaram por ser inevitáveis.
—Metal industrial. —Jon adjetivou, na sala de George. O
empresário nos explicava as novas exigências impostas.
—É isso o que querem da gente.
Conseguimos driblar algumas de suas
vontades, mas se queríamos continuar em cima dos
palcos e fazer o que amávamos, tínhamos que aceitar.
—Vamos subir lá —Disse Paul, antes de um show em
Acapulco. —Olhar para aqueles rostos inocentes e tocar.
Simplesmente tocar!
Não havia outro meio de sobrevivência.
Tivemos três turnês em uma ano, as brigas
de Jon com Julia aumentaram. Eu assistia a história de
Renée se repetir. Dessa vez, eu o aconselhei a ir embora
334
de casa, mas ele descordou. Eu sabia, ele também. Não
havia Debbie agora.
Parece que a vida precisa nos colocar contra a
parede, para que possamos olhar pra cima. Foi então
que eu entrei em uma igreja pela primeira vez, e tive
meu encontro espiritual. Minha vida mudou
completamente. Ainda tinha problemas, mas minha
capacidade de enfrentá-los aumentou de forma
considerável. Mesmo o problema de Jon parecia ter
menor gravidade.
Mas isso não me impediu de cometer a
maldade de ligar para Ryan e dizer: Viu? Eu também
encontrei meu caminho, mas não tive que deixar meus amigos
e minha banda por isso.
Jon estava traumatizado com a história de
Ryan, e tinha medo de que eu largasse a Peas. Me
provocava o tempo todo, muitas vezes de forma
335
agressiva e hostil. eu tentava ignorá-lo ao máximo, e até
arrisquei convidá-lo a ir na igreja comigo.
Exatamente como eu previa, ele riu e
ironizou.
—Não, irmão. Muito obrigado.
Ele desapareceu mais uma vez em meados de
dezembro. Dessa vez, não hesitamos antes de acionar a
Polícia. Como uma repetição da primeira cena, Julia
apareceu em casa, chorando. Sentou-se no sofá.
—Sinto muito, Reg. Mas não sei quanto tempo vou
aguentar.
—Tenha paciência, nós vamos encontrá-lo.
—Não é só isso. —Eu pude sentia a raiva em sua voz, e
depois em seus olhos, quando ela levantou o rosto para
mim. —Não é só essa maldita doença! Há dias não
336
conseguimos ter um diálogo sem que comecemos uma
discussão. E são por coisas tão bobas... Como um molho
de chaves deixado em lugar errado, ou o café que
acabou.
—Você precisa ter um pouco de paciência com ele.
—Ele não quer tomar os remédios. Finge que toma, mas
encontrei um comprimido enterrado em um vaso de
plantas. E agora, ele some de repente!
Eu ia dizer que a culpa não era dele, que era
preciso cuidar dele. Mas a verdade era que eu também
estava cansado. Por diversas vezes imaginei se não seria
melhor se tudo terminasse.
George me ligou e avisou que tinham achado Jon em
um hospital em nosso bairro.
—Ele caiu de cima de um muro. —O médico explicou.
337
—Que droga de muro? O que quer dizer com isso? —
George indagou.
—Seu amigo sofre problemas com drogas?
—Não.
Eu julguei que era melhor dizer a verdade, não
havia mesmo como evitar as consequências.
—Ele tem um problema mental. Transtorno
Esquizoafetivo. Se quiser, posso chamar o médico dele
aqui.
—Já temos um psiquiatra cuidando do caso.
—E Jon está machucado? —George quis saber.
—Arranhões superficiais. E quebrou a perna.
—Só isso?
—Bom, e onde é que ele achou um muro para
despencar? —Indaguei, como se aquela história maluca
não fizesse sentido. Eu já estava cansando dos sumiços
de Jon. Aliás, tudo a respeito começava a me cansar.
338
—Seu amigo estava correndo da polícia. Não sei o que
ele pensou que fosse, mas em seu desespero tentou
invadir uma casa. Eu diria que teve sorte de cair antes
que alcançasse o topo, porque a casa era protegida por
arames farpados.
—E ele está bem? —Perguntei, sempre com medo da
resposta.
—Temo que não, sr. Levesque. Sugiro que procurem
uma clínica psiquiátrica.
Entrei em contato com o psiquiatra que
acompanhava Jon desde a primeira vez. O dr. Perry
pediu que ele fosse transferido imediatamente para sua
clínica particular. Tive medo de que demorassem
demais para transferi-lo, e esse foi meu primeiro
conflito com o dr. Perry. Eu preferia que Jon ficasse em
um hospital convencional, embora soubesse que
internar-lo em uma clínica psiquiátrica era a melhor
339
alternativa naquela situação. A palavra hospício me veio
á mente, e causou-me arrepios.
Quando percebeu que George e eu
estávamos hesitantes quanto á nova decisão, o dr. Perry
veio até o hospital onde estávamos.
—Eles querem matá-lo aqui. —O dr. Perry quase
sussurrou para mim. —Vai deixar que o matem?
—Por que diz isso?
—Posso levá-lo, ou vai deixar que injetem uma porção
de calmantes? Seu amigo está sofrendo uma crise de
asma, desesperado porque não consegue entender o que
está acontecendo. Pelo pouco que pude entender, acha
que se trata de uma conspiração espiritual, e talvez
esteja em uma realidade paralela, onde querem matá-lo.
Não, Jon não estava pensando isso. Não o
meu amigo normal, que não possuía uma imaginação
tão absurda.
340
—E vão matá-lo mesmo, porque Jonathan precisa de
gente especializada. —Continuou.
Engoli em seco e assenti, tomando a decisão.
Logo, estávamos seguindo para o tal hospital do dr.
Perry.
Não parecia um hospício, pelo menos não
na sala de espera. George pegou uma revista, e a
folheava sem ver nada realmente. Achávamos
realmente que aquele era ao fim. E agora eu orava para
que não fosse, para que eu tivesse uma chance de me
redimir dos pensamento errados.
Uma enfermeira veio em minha direção e
pediu que eu a acompanhasse. Fiz sinal para que
George nos acompanhasse. Ela nos guiou até a sala
onde o dr. Perry colocava luvas brancas, e preparava
uma injeção.
—Ele precisa voltar. —Disse para mim. —Você permite
que eu o traga de volta?
341
Eu não soube o que responder. George
também permaneceu calado.
—Preciso de uma autorização.
Ainda assim não respondi. Fiquei
lembrando das histórias de Jon a respeito de um
aparelho de choque que o personagem de algum livro
tinha sido submetido, depois de uma crise
esquizofrênica. Não, não permitiria que fizessem isso
com Jon. Eu ia negar, dizer para que parassem com
aqueles atos desumanos, mas o dr. Perry pediu para que
os enfermeiros me tirassem da sala. Eu tinha demorado
demais, e Jon precisava de uma resposta rápida. Sua
vida dependia de minha decisão, e eu não era capaz de
escolher.
—Isso é proibido por lei. —Tentei, embora soubesse que
o dr. Perry estava mais a fim de salvar Jon do que eu.
342
—Se não quer dizer agora, vou ter que responder por
você. Não me importa se você quiser me processar mais
tarde.
Esperei por algumas horas que pareceram
dias. Aquela sala de espera estava me matando. Não
conseguia parar de pensar no pior, imaginar que Jon já
devia estar morto por aquelas horas. Eu sei que George
pensava o mesmo, mas não estava disposto a se deixar
desesperar. Finalmente, o médico apareceu.
—Você pode visitá-lo de manhã, está bem? Pode ficar
despreocupado, Jon está bem e vai se recuperar logo.
Entre em contato comigo sempre que achar necessário.
Voltei na manhã seguinte, mas não sem antes
pensar mil vezes. Estava com medo do que ia ver, nunca
tinha passado por nada parecido em toda minha vida. É
incrível como a doença mental ainda é um tabu, até
mesmo para mim. Pedi para que Paul me
acompanhasse.
343
Na verdade, eu esperava ir visitar Jon em um
quarto, mas fomos encaminhados para uma sala de
visitas. Jon estava esperando por nós. Era como a sala
de uma casa qualquer. Havia televisão e livros. Sentei
em uma poltrona, na outra extremidade da sala.
—Onde está Tony? —Ele perguntou, obviamente
decepcionado.
—Julia não pôde vir. —Paul falou.
Jon levantou-se e foi saindo da sala. Paul
conseguiu puxá-lo pelo braço.
—Queremos conversar.
—Não tenho nada a dizer.
—Eu sei que deve estar nos culpando, mas não fomos
nós que decidimos colocá-lo aqui.
—Não estou perguntando nada. Só achei que fossem
meus amigos.
—Por favor, Jon... —Interferi, mas não tive palavras
para continuar.
344
—Quando é que vão me tirar daqui?
—Quando o médico disser que já está bom. —Foi Paul
que respondeu.
—Ele não vai dizer isso nunca. É conveniente que
permaneçamos loucos. Sabe como é, essa coisa toda que
vemos na televisão.
—O dr. Perry é confiável. —Eu disse. Não tinha certeza,
mas precisava dizer alguma coisa.
—Sim, plenamente confiável. Sabe o que aconteceu
ontem, Reg? Me deu alguns choques na cabeça. Não que
eu esteja reclamando, porque nada como um bom
choque nas idéias pra gente ver tudo com mais clareza.
Não respondemos. Já tinha começado
com as ironias, e isso nunca foi bom sinal.
—Vamos fazer de tudo para tirá-lo daqui o mais rápido
possível. —George garantiu. Eu assenti, efusivo.
—Certo. —Ele puxou a maçaneta da porta. —Então eu
estarei esperando lá dentro, perto da ala dos
345
esquizofrênicos. Quem sabe eu também não encontre
um amigo invisível por lá? Aí eu prometo que não darei
mais trabalho para vocês.
Julia me ligou e pediu que eu fosse até sua casa.
Quando cheguei lá, estava arrumando suas malas. Tony
dormia no berço, e com um aperto no coração me
lembrei de meu pequeno Charlie. Tony estava assim
destinado: Mais um filho de pais separados.
—Você está de cabaça quente agora. —Eu tentei.
Ela balançou a cabeça em negativa, e começou
a chorar. Eu gostaria de ter as palavras certas que a
fariam ficar.
—Não consigo mais. Preciso me salvar, e tirar meu filho
disso. Não quero que ele veja as coisas que está vendo.
346
—Se está pensando realmente em Pirata, considere que
a melhor alternativa não é um lar despedaçado.
—Jon nunca está em casa, mesmo. E sei que ele tem
outras. —Eu arrisquei minha melhor expressão de
surpresa. —quando vai á essas festas com vocês... Por
favor, não pense que sou cega.
—Ele está doente, Julia. Por favor, repense.
—Não, Reg! Não consigo mais ouvir isso, não consigo.
—Colocou a última peça de roupa dentro da mala. Não
tenho certeza, mas acho que aquela mala era de Jon. —
Eu espero que você me entenda, porque sei que ele é
cabeça dura demais para entender.
—Não vai ao menos dizer adeus?
—Não é necessário. Creio que ele vai querer visitar o
Pirata. Diga que sempre pode fazer isso. Estarei na casa
da minha avó, pelo menos por um tempo.
Entregou a chave de casa na minha mão, e
saiu.
347
Por mais que tentássemos negar, Jon já não era capaz de
cuidar de si mesmo e de seus próprios assuntos.
Esquecia os horários, se perdia nas datas. Quando
estava em casa, trocava a noite pelo dia. Não se
alimentava direito, e só dormia porque os remédios
eram mais fortes do que sua vontade de permanecer
acordado. Tentamos dever tudo isso á sua perna
quebrada, e que ele ainda se recuperava de sua estadia
no hospital psiquiátrico.
Ele dizia que os remédios contra dor
receitados pelo seu médico eram fracos demais, e
acabou encontrando o seu ideal por conta própria, o que
finalmente aplacava as dores de seu osso que se
calcificava, e as supostas dores de cabeça que o
tornavam irritadiço. Eu dizia para que parasse com
aquilo, o remédio era forte demais, e acabaria por viciá-
348
lo. Eu estava certo com minha predição, e obviamente,
ele não me deu ouvidos.
Jon não pareceu se importar quando
anunciei que Julia tinha partido.
—Eu já sabia. —Não sei se dizia a verdade, mas nunca
mais tocamos no assunto.
Paul e eu nos revezávamos para não deixá-
lo sozinho, tanto em casa como durante as turnês. Não
era grande sacrifício de nossa parte. Minha únicas
companhias em casa eram meus cachorros, e meus
únicos compromissos fora da Peas eram com a igreja.
Paul era um fanfarrão, e nunca se importou com nada,
além de festas e curtição. Acho que nunca pensou em
casar.
Aquele ano, em um todo, correu muito
bem. Jon não teve poucas crises, e observávamos
quando ele tomava remédio.
349
—Odeio isso. —Esbravejava toda vez que avisávamos
que era hora do remédio. —Eu não sou uma maldita
criança.
—Então não tinha esquecido?
—Claro que não! Programei meu celular, ele vai me
avisar todos os horário, ouviu bem?
O único horário que ele não perdia, eram os
da visita a Tony. Julia permitia que Jon passeasse com
ele, eu assegurei á ela que não tinha problemas, Jon me
parecia completamente sob controle.
Estávamos no estúdio naquela tarde. Os
caras saíram para almoçar, Jon e eu ficamos esperando a
pizza ali mesmo. Eu fumava um cigarro, sentado no
sofá.
—Odeio esse sentimento de gratidão. —Jon disse, de
repente. Enchia um copinho plástico de café. —É a pior
coisa que um ser humano pode sentir.
—Do que está falando?
350
—De vocês. Dessa droga toda. Não são mais meus
amigos, são minhas babás, meus enfermeiros. E o que
ganham em troca? Porcaria nenhuma. Ou melhor,
minha maldita gratidão.
Respirei fundo.
—Estou fazendo o que posso.
—Eu sei, e esse é o problema. Por que são tão egoístas?
Por que não me deixam morrer logo?
Sentou-se pesadamente na poltrona que
combinava com o sofá. Eu dizia a mim mesmo para
manter a calma. São apenas palavras vazias de um cara
cansado de depender dos outros. Eu entendia isso, mas
nada impedia que minha raiva subisse á garganta.
—Essa piedade —Ele continuou. —O jeito que todo
mundo me olha. Coitadinho dele, não é? Está doente. Eu
não sou nenhuma droga de retardado, entendeu? Quero
que parem de agir como se eu fosse.
351
—Como pode saber se a gratidão é um mau sentimento
se nunca sentiu? Não acho que você seja capaz.
—Eu nunca pedi ajuda. Por que deveria me sentir
grato? Não quero que me ajudem, entendeu? Só isso!
Não pode ser tão difícil de entender.
—Acontece que consideramos você. Nos preocupamos.
—Então, parem com isso. Não estou fazendo mal pra
ninguém além de mim mesmo. Essa maldita perna dói
em mim, não em vocês.
Levantei do sofá na vontade de espancá-lo.
Ao invés disso, joguei as palavras das quais eu me
arrependeria pro resto da vida.
—Se quer tanto morrer, por que não se mata logo?
Deixei o estúdio antes que ele pudesse
responder.
352
A turnê do nosso último álbum, The Damage Done, teve
início logo depois da retirada do gesso da perna de Jon.
Por ordens do dr. Perry, não fazíamos mais longas
viagens, sempre voltávamos para casa e deixávamos
que Jon descansasse por um tempo.
Conseguimos conhecer alguns pontos turísticos
da América do sul, e Jon se divertiu um pouco, mesmo
com seus horários restritos. Parecia a mim que já estava
se acostumando com a nova rotina. A vida de rock star
teve que ser deixada para trás.
Ele teve duas crises antes que voltássemos para casa em
julho de 2007. Eu diria que foram dois surtos literários,
como só Jon era capaz de ter.
Paul me contou que ele surgiu durante a
madrugada no seu quarto, chorando e gritando que
353
alguém estava perseguindo ele, e tentava matá-lo. Eu o
encontrei encolhido junto á parede. Pedi explicações.
—Ele quer me matar!
—Quem?
—O assassino.
—Não me diga.
—Ele me seguiu durante todo o trajeto até aqui. Eu
tinha ido no... No... Correu atrás de mim pela escada.
De início, eu achei que era só impressão minha, mas o
cara não parava de observar. Ele e vestia um sobretudo
preto, e botas de couro.
—Nesse calor, Jon?
—Isso. Ele correu atrás de mim... Pela escada.
—Por que haveria de persegui-lo?
Paul revirou os olhos deitou-se na cama.
Esforcei-me para continuar paciente. Jon baixou o tom
de voz para um sussurro.
354
—Ele vai arrancar meu coração. Vai arrancar meu
coração e colocá-lo... Colocar numa caixinha. —Seus
olhos molhados agora brilhavam, quase de excitação.
Quando você abrir a porta amanhã, vai encontrá-lo ali,
ensangüentado numa caixinha de papelão. Exatamente
como no livro.
Ouvi alguma exclamação de Paul. Passei as
horas seguintes explicando que ele estava seguro ali, e
implorando para que tomasse a pílula. Quando ele
finalmente concordou e dormiu, fomos pegar o tal livro
no quarto dele. Era um romance policial, e tratava da
história de uma jovem detetive, que perseguia e era
perseguida por um assassino em série. A cena a qual ele
se referia acontecia mesmo em um hotel, e a
protagonista recebia na porta de seu quarto uma
caixinha contendo o coração de um de seus colegas de
trabalho. Nós desaparecemos com o livro, como se
aquela atitude resolvesse nossos problemas.
355
—Onde foi que deixei a droga do livro? —Ele
perguntou a si mesmo, enquanto preparava as coisas
para seguir para o próximo país.
O segundo surto aconteceu na Bolívia, uma
semana depois. Ele ligou para um amigo nosso em Los
Angeles, que imediatamente me ligou de volta,
preocupado.
—Reg, Jon ligou aqui agora há pouco. —Fred contava.
—E eu acho que é melhor ir atrás dele.
—Ah Deus meu! E o que é que ele disse pra você?
—Disse que você quer roubar as pedras mágicas dele.
Não pude conter o riso.
— Que droga...?
—Não sei. Alguma coisa sobre umas pedras que são
capazes de saber do futuro. Jon disse o nome, mas agora
não me recordo.
—Cara, temos duas horas antes que comecemos o show.
356
—Então é melhor se apressar. E tome cuidado com o
que vai dizer. Afinal, é de você que ele desconfia.
Levando em consideração essa advertência
de Fred, pedi para que Paul e George fossem em busca
dele. Foi sorte nossa que o tenham achado no jardim do
hotel. Fico imaginando o que teria acontecido se ele
tivesse se perdido em um país desconhecido, cheio de
imaginações absurdas e idéias mirabolantes. O que faria
eu com pedras que liam o futuro? Não me
interessavam. Prefiro surpresas. Mesmo porque eu sabia
que acabaria por me assustar com o que o destino me
reservava.
Enquanto aguardava o retorno de Paul e
George, segui para o quarto de Jon. A porta tinha sido
deixada aberta. Revirei a mala de Jon e encontrei dois
livros. Um deles tinha um marcador de páginas.
Comecei a folheá-lo. Não era um livro grosso, as letras
eram grandes, o tipo de história fácil. Eu não sou muito
357
fã de leitura, mas um livro assim eu até me atreveria a
ler. Era um autor brasileiro, um dos grandes ídolos de
Jon.
Não demorou até que eu encontrasse a página
que procurava. Um dos trechos que falavam sobre as
pedras mágicas. Um sábio rei entregava para um
humilde pastor duas pedras: Urim e Tumim. Elas eram
a única forma de adivinhação permitida por Deus nos
tempos de Moisés, e a busca da Terra Prometida. A
pedra de cor preta significava “sim”, e a de cor branca
significava “não”. Fiquei curioso para saber o que o
jovem pastor desejava adivinhar em seu futuro, mas
fechei o livro quando meu aparelho celular tocou. Era
George, anunciando que tinha encontrado Jon. Pensei
em dar sumiço nesse livro também, mas me dei conta de
que não adiantaria. Recoloquei o livro dentro da mala.
358
Jon tinha os olhos vazios enquanto fitava o
chão do quarto de Paul. George colocou nosso novo
desafio:
—Temos um show para fazer, e já estamos atrasados.
Arriscaremos, ou não?
Olhei para Jon. Não deveríamos. Não
mesmo. Mas cancelar mais um show seria um prejuízo
grande demais. Pagaríamos uma multa enorme, e ainda
corríamos o risco de sermos processados.
—Temos fãs que nos esperam. —Respondi.
George assentiu. Conseguimos levar Jon
meio catatônico até o carro, e depois até os camarins.
Seu olhar perdido ás vezes se tornava assustado, mas
logo voltava á impassividade. Subimos no palco, com o
coração aos pulos. Não vai dar certo.É melhor desistir
enquanto ainda há tempo.
O milagre da música. O incrível milagre
da música. Ele se empolgou no palco, muito mais do
359
que normalmente faria. O show correu quase natural, e
acho que passamos perto de enganar a multidão de
jovens, convencendo-os de que não havia nada de
errado. Jon esquecia as letras, e improvisava qualquer
coisa absurda. A platéia não pareceu se importar.
Imaginei que parte dela não entendia o que dizia, e a
outra parte simplesmente levou tudo numa boa.
Há certa altura, Jon trocou a letra inteira de
uma música, substituindo-a pela história da Cinderela e
o seu sapatinho de cristal. Estava provocando riso na
platéia, e nos deixando em pânico em cima do palco.
Estávamos na penúltima música quando
ele disse, interrompendo o som na metade, nos
obrigando a parar de tocar.
—Eu não quero mais fazer isso. Estou cansado e vou
para casa.
360
Largou o microfone no chão e saiu. Paul usou
o seu próprio microfone de vocal de apoio e se
desculpou com a platéia.
—Até mais, pessoal. Vocês foram incríveis.
Voltamos para casa no dia seguinte. Aquele
tinha sido o último show da Peas.
Eu tenho minha própria teoria. Sim, eu sei que foi
encontrada uma suposta carta de suicídio em seu
quarto, mas estou disposto a acreditar que foi um
acidente, uma distração de Jon. Eu expus minha opinião
aos médicos, e eles disseram que não era impossível que
se tratasse de um acidente. Mas os legistas afirmavam
sua teoria com tanto afinco, que foi essa a notícia que
saiu na Internet no começo de 2008.
Jon estava com vinte e oito anos. Não havia
nada de errado com ele naquele noite. Pelo contrário,
361
ele parecia bem. Assistimos um filme de comédia em
minha casa. Jon odiava comédias românticas, mas nos
divertimos com comentários estúpidos á parte, mal
consegui prestar atenção ao filme. Ele foi para o quarto
de hóspedes que sempre ocupava quando dormia em
casa, e eu nem desconfiei que algo estivesse para
acontecer. Na manhã seguinte, encontrei seu corpo sem
vida.
Foi um dos policiais que identificou a
possível carta de despedida, entre os outros inúmeros
papéis de desabafo.
“Eu tenho muito pra sentir, mas pouco para dizer.Embora eu
reconheça que devo me desculpar por tudo o que causei,não
consigo encontrar as palavras certas. Acho que ainda não foi
inventada a definição exata da palavras “loucura” e “dor”.
O máximo que posso dizer é que tenho tentado
da melhor forma possível, para abandonar a dor e suportar
362
sozinho, e mesmo mergulhando no fundo onde cheguei, não
encontrei as linhas que dividem. Pensar “vai ser melhor
amanhã” já não está funcionando, e aí eu vou chegando ao
meu limite. E qual é o meu limite?
Uma coisa que eu posso dizer é que, fora as
noites passadas em claro, agarrando um travesseiro no canto
da cama, esperando que a porta do quarto se abrisse, nunca
me senti sozinho. Vocês nunca deixaram que isso acontecesse.
Apesar de minha certeza de que ninguém além dela foi capaz
de me entender. Vocês me deram forças para continuar.
Agora já não parece tão estranho. Meu coração
está batendo forte, mas não é tão assustador assim. Acho que
hoje consigo ver tudo com mais clareza. Qualquer coisa que
deixem minhas mãos livres. Então me julgue agora. Eu tinha
medo de admitir, mas agora... Agora sim. Acho que não venci
essa corrida. Ou venci? Afinal, cheguei até aqui. Tem mais
alguma coisa para acontecer?
Eu quero silêncio. Deixar o ódio e a dor, só o que
vai restar é o vazio. Não permite que eu sinta absolutamente
363
nada. Ele está mais calmo agora. Batendo devagar. Estou
esperando. Cada vez mais devagar... Sem outro amanhecer.
Um vislumbre do meu lar seguro.
Eu sinto muito, muito mesmo.
De braços abertos, estou chorando.
De braços abertos, eu vejo o fim.
De braços abertos, estou esperando.
Luz das estrelas do céu, guiem meu coração, e me diga porquê!”
Eu identifiquei alguns trechos das músicas
que ele costumava ouvir quando estava triste. Sei que
parece mesmo que ele escrevia enquanto esperava os
calmantes fazerem efeito. Mas os peritos diziam que a
carta poderia ter sido escrita muitas horas atrás, quem
sabe até há alguns dias. Sinceramente, acho que era
apenas mais um de seus papéis, embora pareça o
derradeiro pedido de socorro e a despedida.
364
Eu observo que a carta não tem destinatário,
nem assinatura. E não era a primeira vez que Jon
escrevia sobre suicídio. Como prova disso, existem
músicas da Peas. Consigo imaginá-lo sozinho no quarto,
depois que eu fui dormir. Ele não conseguia conciliar o
sono, a dor de cabeça devia estar piorando devido a
isso. Uma dose de codeína. Mais uma dose reforçada de
Valium. E ele conseguiu acidentalmente o que sempre
quis.
Pensei em me mudar para Bakersfield,
enquanto via cada um de meus amigos seguirem o seu
rumo. Apenas George e eu permanecemos em Los
Angeles. Por causa de Charlie, e também porque me
sentia na obrigação de visitar Tony como Jon fazia.
Os primeiros dias foram os mais difíceis,
como sempre acontece. Mas aos poucos, consegui me
convencer de que tinha sido a única saída para Jon.
365
Passei horas relembrando o dia em que ele
concordou milagrosamente em ir á igreja comigo,
poucos meses antes de sua morte. Eu vi ele orar com
tanta fé que chegou até a me invejar. Dessa forma,
cheguei á conclusão de que ele estava espiritualmente
em paz, e preparado para sua morte.
Existem coisas em que precisamos
desesperadamente acreditar.
Peas, Para achar a frase perfeita
Eu estou aprendendo a lidar com a dor
Vai ficando mais fácil a cada vez
Vai te dando mais vontade a cada vez
Vai te levando mais pra perto a cada vez
Odiar tinha sido divertido
Até certo ponto, tem sido divertido
Vai queimando, possuindo, controlando
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Não há nada que se possa fazer
De uma forma nada física
Por dentro da minha cabeça, fora de controle
( Estou fora de controle )
Não tente me alcançar agora
Não queira me vencer agora
O que ainda te parece fácil
Não me toque
Já não é tão frágil
Não me importa, não me importa
Tudo faz sentido agora
Se minha loucura faz sentido pra mim,
Deixou de ser loucura pra mim!
O que eu vejo, o que eu sinto
Me dê uma luz, ainda acredito
Não me entende porque é mais fácil não entender...
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Agradecimento pela imagem:
Henrique Teles
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