“essa terra é complicada!”: território e construção identitária entre os ... ·...

1
“Essa terra é complicada!”: território e construção identitária entre os Xukuru- Kariri de Taquarana AL Objeto e objetivos Metodologia O trabalho de campo foi realizado entre os meses de junho de 2014 e janeiro de 2015. A partir das técnicas de observação participante e entrevista, buscou-se mapear as redes de relações dos atores sociais, reconstruir suas trajetórias individuais e familiares bem como o histórico de estabelecimento no território atualmente reivindicado como terra indígena. Conclusões O processo de venda e troca de pequenas parcelas de terra provocou marcantes mudanças no território do grupo. De 128 ha ele passou a corresponder a somente 3. Para cessar o processo de redução do território, os indígenas, há cerca de 25 anos, realizaram uma redistribuição do mesmo entre as famílias extensas, repartindo-o em três fatias iguais que correspondem, cada, a uma das famílias, e que ainda reverberou em uma nova forma de disposição das residências dos indígenas pelo solo (ver abaixo os Croquis 1 e 2). Em 2011, a filha de um fazendeiro local, com quem há anos os indígenas mantêm uma relação conflituosa, moveu uma Ação de usucapião sobre o território dos Xukuru-Kariri de Taquarana AL. Em 2013, um Oficial de Justiça deslocou-se às casas dos indígenas para intimá-los a comparecer a audiência na qual se discutiria a mencionada Ação. Os atores sociais em questão interpretaram estes acontecimentos como uma clara tentativa por parte do fazendeiro e sua filha de usurpar seu território. Assim, solicitaram o apoio de seus parentes Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios AL, com quem sempre mantiveram vínculos, especialmente rituais. Este segundo grupo passou então a realizar oficinas de formação política juntos aos indígenas de Taquarana, a assessorá-los e apoiá-los no processo de reivindicação da terra. Com isso, ainda em 2014, os Xukuru-Kariri de Taquarana AL se deslocaram até a sede da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) em Alagoas onde reivindicaram o reconhecimento oficial e a demarcação de seu território como área indígena. No decorrer do processo reivindicatório, os indígenas mudaram o nome do território que ocupam que se chamava Fazenda Nóia passando a chamá-lo de Aldeia Mãe Jovina. Mãe Jovina, fundadora da família extensa, investida de poderes políticos e mágico-rituais, tornou-se a principal referência para o topônimo. Alban Bensá bem aponta que “as construções genealógicas e as referências articuladas à paisagem constituem duas formas complementares de fazer significar de dizer, de escrever a identidade” (1996, p. 4). Além disso, houve uma intensificação das práticas rituais e um estreitamento dos vínculos políticos e rituais entre os Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios e Taquarana, que passaram a realizar visitas reciprocas seja para fins rituais e/ou políticos. Conforme afirma Fredrik Barth (2000), as fronteiras étnicas resultam de processos políticos e identitários que ocorrem em específicas situações de interação. Para além da construção de sinais diacríticos “para fora”, observou-se entre os Xukuru-Kariri de Taquarana os efeitos, embora ainda de modo incipiente, do que João Pacheco de Oliveira (2004) chama de “processo de territorialização”, isto é, um processo de reorganização social e política de amplas proporções do próprio grupo. De grota, acidente geográfico que promove a invisibilidade dos sujeitos, as três famílias extensas têm galgado à condição de Aldeia Mãe Jovina, mediante um processo de reelaboração cultural, do seu passado e dos significados que atribuem ao território. Autor: Wemerson Ferreira da Silva Universidade Federal de Alagoas UFAL Orientação: Claudia Mura Referências Bibliográficas BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas . Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000c. BEALET , Marc. Religion et région mémoire: esquisse d’une territorialité par le biais de la geographie de la mémoire. Norois, Poiteirs, 44(174): 317-329, 1997. BENSA, Alban. La memoria de los lugares entre los Kanaks de Nueva Caledonia (“La Gran Tierra”). In: _____. Nueva Caledonia. Universidad de Ciencias y Artes del Estado de Chiapas (UNICACH), 1996. MURA, Fabio. À procura do “bom viver”: território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os Kaiowa. 2006. 504 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro. OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? situação colonial, territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2ª ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. SILVA JUNIOR, Aldemir Barros da. Aldeando os sentidos: os Xucuru-Kariri e o serviço de proteção aos índios no agreste alagoano. Maceió: EDUFAL, 2013. WILK, Richard R. Households in process: agricultural change and domestic group transformation among the Kekchi Maya of Belize. In: NETTING, R. McC.; WILK, R. R.; ARNOULD, E. J. (Orgs.). Households: comparative and historical studies of the domestic group. Berkeley: University of California Press, 1984. Este trabalho é resultado de um projeto de pesquisa e extensão, solicitado por uma parcela de indígenas Xukuru-Kariri, realizado pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) entre os anos de 2014 e 2016. Enfoca-se o processo de construção de uma identidade étnica vivenciado atualmente por três famílias extensas e a tentativa de manter o território que ocupam há quase um século. As três famílias extensas conformam o que Richard Wilk (1984) denomina de loose household cluster”, isto é, um grupo doméstico com vínculos econômicos livres, pois as atividades econômicas que desenvolvem podem ser diversificadas (trabalhos coletivos na própria aldeia ou fora da mesma, como os serviços prestados para fazendeiros e usinas de cana-de-açúcar da região) e realizadas autonomamente por cada unidade habitacional. No entanto, em quaisquer dessas atividades, o objetivo é o beneficiamento do grupo doméstico como um todo e, sobretudo, da família extensa, que se configura como a unidade sociológica fundamental no que diz respeito à interação e ao estabelecimento de relações pelos sujeitos. Conforme os interlocutores, por volta de 1930, Mãe Jovina, a primeira índia Xukuru-Kariri a chegar ao território que atualmente reivindicam como área indígena, ali se estabeleceu. À época o território chamava-se Fazenda Nóia e compreendia 128 ha de terras, as quais foram doadas por um falecido fazendeiro local chamado Manoel Nóia. Mãe Jovina deslocou-se da atual área indígena Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios AL para Taquarana AL em busca de terra e trabalho, uma vez que com a extinção de todos os aldeamentos indígenas em Alagoas, em 1972, o Estado promoveu uma dispersão forçada dos grupos indígenas que neles viviam (SILVA JUNIOR, 2013). Pouco depois de chegar à Fazenda Nóia, Mãe Jovina casou-se com Antônio Camilo, um dos herdeiros das terras deixadas por Manoel Nóia. As três famílias extensas em foco descendem deste casal. Desde o casamento até o falecimento de Mãe Jovina, os Xukuru-Kariri de Taquarana AL habitaram a grota, espaço do território que consiste em um explícito acidente geográfico e configura-se para os indígenas como uma región mémoire(BEALET, 1997). O território em que as famílias extensas residem há quase um século foi submetido a um largo processo de venda e troca de pequenas parcelas pelos próprios indígenas que o levou, no fim do século XX, a consistir em apenas pouco mais de 3 ha, sendo este seu atual tamanho. Em razão do avanço do latifúndio sobre esses 3 ha de terra, o grupo reivindicou-se em dezembro de 2014 como portador de uma identidade étnica diferenciada e solicitou a intervenção do órgão indigenista (FUNAI) para a demarcação do território como terra indígena. O objetivo deste trabalho é o de compreender como processualmente e em função da ação de atores sociais diversos, o território dos Xukuru-Kariri de Taquarana AL, a reivindicação do mesmo como área indígena e o processo de construção de uma identidade étnica são configurados. Em se tratando de um estudo de “dinâmica territorial” (MURA, 2006, p. 103), buscar-se-á descrever e analisar a forma como o território dessas famílias extensas e a reivindicação do mesmo como terra indígena ocorrem não apenas tendo em vista as características morfológicas das mesmas, mas também em razão da atuação de outros atores e grupos sociais, como o Estado e fazendeiros, no decorrer de quase um século. Imagem 1 - Toré ao fim da Oficina de Formação Política (14/09/2014) Foto de: Wemerson Ferreira da Silva Croqui 1 Antiga (na grota) e atual disposições das casas Croqui 2 Divisão do território e roças existentes Elaboração dos autores.

Upload: donga

Post on 21-Jan-2019

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

“Essa terra é complicada!”: território e construção identitária entre os Xukuru-

Kariri de Taquarana – AL

Objeto e objetivos

Metodologia

O trabalho de campo foi realizado entre os meses de junho de 2014 e janeiro de 2015. A partir das técnicas de observação participante e entrevista, buscou-se mapear as redes de relações

dos atores sociais, reconstruir suas trajetórias individuais e familiares bem como o histórico de estabelecimento no território atualmente reivindicado como terra indígena.

Conclusões

O processo de venda e troca de pequenas parcelas de terra provocou marcantes mudanças no território do grupo. De 128 ha ele passou a corresponder a somente 3. Para cessar o processo de

redução do território, os indígenas, há cerca de 25 anos, realizaram uma redistribuição do mesmo entre as famílias extensas, repartindo-o em três fatias iguais que correspondem, cada, a uma das

famílias, e que ainda reverberou em uma nova forma de disposição das residências dos indígenas pelo solo (ver abaixo os Croquis 1 e 2).

Em 2011, a filha de um fazendeiro local, com quem há anos os indígenas mantêm uma relação conflituosa, moveu uma Ação de usucapião sobre o território dos Xukuru-Kariri de Taquarana –

AL. Em 2013, um Oficial de Justiça deslocou-se às casas dos indígenas para intimá-los a comparecer a audiência na qual se discutiria a mencionada Ação. Os atores sociais em questão

interpretaram estes acontecimentos como uma clara tentativa por parte do fazendeiro e sua filha de usurpar seu território. Assim, solicitaram o apoio de seus parentes Xukuru-Kariri de Palmeira

dos Índios – AL, com quem sempre mantiveram vínculos, especialmente rituais. Este segundo grupo passou então a realizar oficinas de formação política juntos aos indígenas de Taquarana, a

assessorá-los e apoiá-los no processo de reivindicação da terra. Com isso, ainda em 2014, os Xukuru-Kariri de Taquarana – AL se deslocaram até a sede da FUNAI (Fundação Nacional do

Índio) em Alagoas onde reivindicaram o reconhecimento oficial e a demarcação de seu território como área indígena.

No decorrer do processo reivindicatório, os indígenas mudaram o nome do território que ocupam – que se chamava Fazenda Nóia – passando a chamá-lo de Aldeia Mãe Jovina. Mãe Jovina,

fundadora da família extensa, investida de poderes políticos e mágico-rituais, tornou-se a principal referência para o topônimo. Alban Bensá bem aponta que “as construções genealógicas e as

referências articuladas à paisagem constituem duas formas complementares de fazer significar – de dizer, de escrever – a identidade” (1996, p. 4). Além disso, houve uma intensificação das

práticas rituais e um estreitamento dos vínculos políticos e rituais entre os Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios e Taquarana, que passaram a realizar visitas reciprocas seja para fins rituais e/ou

políticos.

Conforme afirma Fredrik Barth (2000), as fronteiras étnicas resultam de processos políticos e identitários que ocorrem em específicas situações de interação. Para além da construção de sinais

diacríticos “para fora”, observou-se entre os Xukuru-Kariri de Taquarana os efeitos, embora ainda de modo incipiente, do que João Pacheco de Oliveira (2004) chama de “processo de

territorialização”, isto é, um processo de reorganização social e política de amplas proporções do próprio grupo. De grota, acidente geográfico que promove a invisibilidade dos sujeitos, as três

famílias extensas têm galgado à condição de Aldeia Mãe Jovina, mediante um processo de reelaboração cultural, do seu passado e dos significados que atribuem ao território.

Autor: Wemerson Ferreira da Silva

Universidade Federal de Alagoas – UFAL

Orientação: Claudia Mura

Referências Bibliográficas

BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000c.

BEALET, Marc. Religion et région mémoire: esquisse d’une territorialité par le biais de la geographie de la mémoire. Norois, Poiteirs, 44(174): 317-329, 1997.

BENSA, Alban. La memoria de los lugares entre los Kanaks de Nueva Caledonia (“La Gran Tierra”). In: _____. Nueva Caledonia. Universidad de Ciencias y Artes del Estado de

Chiapas (UNICACH), 1996.

MURA, Fabio. À procura do “bom viver”: território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os Kaiowa. 2006. 504 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu

Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? situação colonial, territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da volta:

etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2ª ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.

SILVA JUNIOR, Aldemir Barros da. Aldeando os sentidos: os Xucuru-Kariri e o serviço de proteção aos índios no agreste alagoano. Maceió: EDUFAL, 2013.

WILK, Richard R. Households in process: agricultural change and domestic group transformation among the Kekchi Maya of Belize. In: NETTING, R. McC.; WILK, R. R.; ARNOULD,

E. J. (Orgs.). Households: comparative and historical studies of the domestic group. Berkeley: University of California Press, 1984.

Este trabalho é resultado de um projeto de pesquisa e extensão, solicitado por uma parcela de indígenas Xukuru-Kariri, realizado pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

entre os anos de 2014 e 2016. Enfoca-se o processo de construção de uma identidade étnica vivenciado atualmente por três famílias extensas e a tentativa de manter o território que

ocupam há quase um século.

As três famílias extensas conformam o que Richard Wilk (1984) denomina de “loose household cluster”, isto é, um grupo doméstico com vínculos econômicos livres, pois as

atividades econômicas que desenvolvem podem ser diversificadas (trabalhos coletivos na própria aldeia ou fora da mesma, como os serviços prestados para fazendeiros e usinas de

cana-de-açúcar da região) e realizadas autonomamente por cada unidade habitacional. No entanto, em quaisquer dessas atividades, o objetivo é o beneficiamento do grupo

doméstico como um todo e, sobretudo, da família extensa, que se configura como a unidade sociológica fundamental no que diz respeito à interação e ao estabelecimento de relações

pelos sujeitos.

Conforme os interlocutores, por volta de 1930, Mãe Jovina, a primeira índia Xukuru-Kariri a chegar ao território que atualmente reivindicam como área indígena, ali se estabeleceu.

À época o território chamava-se Fazenda Nóia e compreendia 128 ha de terras, as quais foram doadas por um falecido fazendeiro local chamado Manoel Nóia. Mãe Jovina

deslocou-se da atual área indígena Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios – AL para Taquarana – AL em busca de terra e trabalho, uma vez que com a extinção de todos os

aldeamentos indígenas em Alagoas, em 1972, o Estado promoveu uma dispersão forçada dos grupos indígenas que neles viviam (SILVA JUNIOR, 2013).

Pouco depois de chegar à Fazenda Nóia, Mãe Jovina casou-se com Antônio Camilo, um dos herdeiros das terras deixadas por Manoel Nóia. As três famílias extensas em foco

descendem deste casal. Desde o casamento até o falecimento de Mãe Jovina, os Xukuru-Kariri de Taquarana – AL habitaram a grota, espaço do território que consiste em um

explícito acidente geográfico e configura-se para os indígenas como uma “región mémoire” (BEALET, 1997).

O território em que as famílias extensas residem há quase um século foi submetido a um largo processo de venda e troca de pequenas parcelas pelos próprios indígenas que o levou,

no fim do século XX, a consistir em apenas pouco mais de 3 ha, sendo este seu atual tamanho. Em razão do avanço do latifúndio sobre esses 3 ha de terra, o grupo reivindicou-se em

dezembro de 2014 como portador de uma identidade étnica diferenciada e solicitou a intervenção do órgão indigenista (FUNAI) para a demarcação do território como terra indígena.

O objetivo deste trabalho é o de compreender como processualmente e em função da ação de atores sociais diversos, o território dos Xukuru-Kariri de Taquarana – AL, a

reivindicação do mesmo como área indígena e o processo de construção de uma identidade étnica são configurados. Em se tratando de um estudo de “dinâmica territorial” (MURA,

2006, p. 103), buscar-se-á descrever e analisar a forma como o território dessas famílias extensas e a reivindicação do mesmo como terra indígena ocorrem não apenas tendo em

vista as características morfológicas das mesmas, mas também em razão da atuação de outros atores e grupos sociais, como o Estado e fazendeiros, no decorrer de quase um século.

Imagem 1 - Toré ao fim da Oficina de Formação Política (14/09/2014)

Foto de: Wemerson Ferreira da Silva

Croqui 1 – Antiga (na grota) e atual

disposições das casas

Croqui 2 – Divisão do território e roças

existentes

Elaboração dos autores.