estado e classes dominantes no brasil: a mobilização ......1997:89). resguardadas suas...
TRANSCRIPT
Estado e classes dominantes no Brasil: a mobilização empresarial em torno da
internacionalização da Petrobras durante a ditadura (1964-1988)1
Julio Cesar Pereira de Carvalho2
Introdução
O tema que permeia a problemática deste trabalho concerne à atuação internacional
da Petrobras durante a ditadura empresarial-militar brasileira. A partir de uma perspectiva
ampliada do Estado, objetiva-se, sobretudo, averiguar a organização e atuação do
empresariado frente à delineação das políticas energéticas do país, com enfoque específico na
atuação das subsidiárias da Petrobras responsáveis por sua atuação além-fronteiras, quais
sejam, a Braspetro e a Interbrás.
Esta pesquisa está situada, portanto, na esfera de estudos sobre empresariado e
política no Brasil, mais especificamente no escopo historiográfico de matriz marxista-
gramsciana, que considera inerente e orgânica - tendo-se em consideração sua complexidade -
a relação entre Estado e classes sociais. Como se pode perceber a partir dos pressupostos de
Sonia Regina de Mendonça, por esse campo de pensamento o Estado é percebido:
...enquanto uma relação social, logo, fruto de conflitos entre sujeitos
coletivos, organizados a partir da Sociedade Civil e que, para
consolidarem sua própria hegemonia visam – e necessitam – no geral,
fazerem-se presentes junto à Sociedade Política ou Estado em seu
sentido estrito (MENDONÇA, 2007: 5).
A hipótese que conduz o estudo consiste na afirmativa de que a atuação da Petrobras
no exterior esteve atrelada aos ditames e interesses de parcelas da classe dominante atuantes
no Brasil durante o regime. Nesse sentido, como hipótese secundária, argui-se que esse
processo contribuiu para a ampliação econômica desses segmentos, provendo subsídios para a
intensificação de sua acumulação em um contexto de acirramento das desigualdades sociais e
perda de direitos políticos no país.
O trabalho a ser apresentado no XIX Encontro de História da Anpuh-Rio faz parte de
investigação inicial em andamento no doutorado em História. Assim, o texto elencará, na
1 Este projeto conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). 2 Mestre em Ciências Sociais (UFRRJ) e doutorando em História (UFF).
primeira parte, um breve balanço na bibliografia acerca da temática entre Estado e classes
dominantes na ditadura empresarial-militar brasileira. Em um segundo momento, será
efetuado uma breve apresentação sobre o processo de expansão vertical da Petrobras na
ditadura. Por fim, as considerações finais explanará a agenda prospectiva de tratamento
analítico e das fontes a ser trilhada na continuidade da pesquisa.
Ditadura e classes dominantes: breve balanço bibliográfico
No balanço historiográfico realizado por Pedro Campos acerca dos estudos sobre
empresariado e ditadura, o autor realça que, a princípio, esse objeto de análise não estava
centrado nos estudos da história, mas sim naqueles atinentes às ciências sociais (CAMPOS,
2018:341). É possível perceber, além disso, abordagens que tangenciem essa temática em
estudos efetuados por alguns economistas à época, embora tratem do empresariado de
maneira genérica, na tentativa de compreender, sobretudo, a conformação e impasses das
políticas econômicas do período autoritário.
Em relação aos estudos de viés econômico, uma das pesquisas centrais acerca das
políticas de desenvolvimento produtivo dos anos de 1970 é a tese de doutorado de Carlos
Lessa, de 1978, posteriormente publicada em livro em 1988 (LESSA, 1988). O estudo
averigua exaustivamente as diretivas centrais do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II
PND), sua implementação, a situação dos setores econômicos frente a tais critérios e as razões
de sua derrocada. Para o autor, ainda que o Plano obtivesse, em sua retórica, o intuito de
superar as consequências deletérias da crise do petróleo, sua execução, a princípio, buscou
demarcar uma estratégia para alçar a economia brasileira ao nível de potência, concentrando
esforços para aprimorar os setores industriais brasileiros (LESSA, 1988:91-93).
A principal razão que implicou no fracasso do Plano, para Lessa, consistiu na
incongruência entre sua estratégia e as articulações estruturais que a embasavam. Ou seja, o
regime supôs que a empresa estatal serviria como instrumento que erigiria a indústria de base
como setor proeminente, ignorando, ou não percebendo, que o plano, na verdade, era
subordinado e consentido pelo grande pacto estrutural que fundamentava as relações
econômicas no período (LESSA, 1988:115-116). Este pacto era composto, em linhas gerais,
por uma frente de interesses capitaneada pelos setores da engenharia e da indústria de
construção civil, concomitante aos investimentos de determinadas empresas estatais.
Desse modo, tais segmentos se articulavam com as diversas frações da indústria
fornecedora de materiais, por um lado, e, por outro, o considerável nível de empregabilidade
dos setores da construção contribuíam para aquecer a demanda por bens de consumo duráveis
(LESSA, 1988:138-148). Para Lessa, as contradições desse descolamento entre estratégia e
base estrutural implicaram na derrocada do II PND já em 1976, sendo o expoente desse
fenômeno as diversas declarações e contraposições dos empresários industriais em relação à
política econômica e ao regime então vigente (LESSA, 1988:115-125).
Na seara de estudos sobre política econômica dos anos de 1970, o cientista político
Sebastião Velasco e Cruz (1997) talvez tenha sido o único autor da época a despender
esforços para instituir uma categorização do Estado. Perspectiva particularmente cara ao
estudo aqui proposto, o autor considera fundamental a conformação e os atritos entre os
segmentos sociais e a reprodução destes no âmago das políticas estatais.
O II PND é percebido por Velasco e Cruz pela perspectiva de seu amparo
empresarial. Avalizando o entendimento de Lessa de que o fracasso do Plano se deu pelas
incongruências entre a estratégia e suas articulações estruturais, o autor chama atenção para as
fricções entre as agências do próprio Estado, sendo estas, por sua vez, concebidas como
resultantes de processos de choque e ajustes entre interesses societais heterogêneos (CRUZ,
1997:89). Resguardadas suas idiossincrasias, a perspectiva do autor, junto à de René Armand
Dreifuss (1981) e seus asseclas, é a que mais se aproxima dos pressupostos teóricos que
embasam este trabalho.
No tocante aos estudos que trataram a relação entre empresariado e ditadura de forma
mais específica, o trabalho de René Armand Dreifuss (1981) foi pioneiro no sentido de
caracterizar a ditadura não apenas como militar, mas também de conceder ao caráter civil do
regime papel indispensável. Nesse ponto, é pertinente destacar que tal formulação tecida pelo
autor não consiste em arguir que houve amplo apoio popular à ditadura, como tem sido
argumentado por um segmento histórico-revisionista acerca desse fenômeno3. De modo
contrário, a obra de Dreifuss delineia com precisão que o status civil que qualificou o golpe e
o regime tem um recorte evidente de classe, ou seja, está relacionado, sobretudo, à feição
empresarial ou tecno-empresarial que amparou ativamente aquele processo (DREIFUSS,
1981:417).
3 Para uma refutação e análise apurada acerca de tais perspectivas, ver: MELO, 2012.
Constituindo pesquisa seminal no campo de estudos sobre ditadura e classes
dominantes, a obra de René Dreifuss (1981) aborda a mobilização empresarial em torno do
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), atrelado ao Instituto de Ação Democrática
(IBAD). Composto por militares da Escola Superior de Guerra (ESG) e pelas frações do
empresariado vinculadas aos segmentos multinacional e associado, o IPES teve papel
fundamental na desestabilização do governo João Goulart e no estímulo à candidatura de
Castelo Branco, fazendo campanha através de filmes e propagandas por todo o país.
Com a conflagração do golpe, muitos de seus membros ocuparam cargos-chave no
governo. Podem-se destacar os ministros da Fazenda e da Indústria e Comércio, Octávio de
Gouveia Bulhões e Paulo Egydio Martins, respectivamente. Roberto Campos, alocado na
pasta do Planejamento, e que era figura central na Companhia Sul-Americana de
Administração e Estudos Técnicos (CONSULTEC), entidade responsável pela elaboração do
Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG). Ou, ainda, a criação do Conselho Consultivo
de Planejamento (CONSPLAN), em 1965, importante ambiente de estabelecimento de
diretrizes políticas, sendo grande parte de seus membros oriundos do IPES (DREFUSS, 1981:
419-455).
A partir dos anos 2000, a temática sobre empresariado e ditadura foi abordada com
maior intensidade nos estudos do campo da história, sendo muitas de suas produções
amparadas, direta ou indiretamente, no arcabouço teórico de Antonio Gramsci e na obra de
René Dreifuss. Podem-se destacar as pesquisas de Pedro Henrique Pedreira Campos (2014;
2018), que abordam as múltiplas relações e fortalecimento das empreiteiras com o regime. O
trabalho mais recente de Ary Minella (2018), que realça a participação dos banqueiros, dando
enfoque à concentração/centralização do setor, seu suporte à tortura, bem como a dinâmica de
suas entidades de representação de classe. O artigo de Rafael Moraes (2016), acerca da
importância da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) no delineamento e
sustentação das políticas econômicas de Castelo Branco. A pesquisa de Ana Carolina
Reginatto, que trata da atuação dos grandes grupos de mineração no período. A tese de
doutorado de Álvaro Bianchi (2004), que enfoca a atuação da FIESP e do CIESP no contexto
de crise da ditadura e participação dessas entidades na conformação do projeto neoliberal
brasileiro. Bem como a pesquisa de Sonia Regina de Mendonça (2006) sobre a mobilização
da Sociedade Nacional da Agricultura (SNA) e da Sociedade Rural Brasileira (SRB) na
conflagração do golpe de 1964 e na retirada do conteúdo reformista do Estatuto da Terra nos
anos iniciais da ditadura.
Embora os estudos sobre empresariado e Estado no período autoritário tenham se
expandido a partir do século XXI, nota-se certa escassez de pesquisas que tratem de maneira
mais detalhada a atuação da classe dominante em torno da configuração da Petrobrás à época
e, mais especificamente, em sua atuação no exterior. Esse déficit está longe de ser
responsabilidade dos autores então mencionados, mas sim da complexidade e amplitude do
tema.
Em relação aos estudos concernentes à atuação externa da Petrobrás, pode-se
mencionar a pesquisa de Armando Dalla Costa e Huascár Pesalli (2009), de cunho mais
descritivo. O estudo de João Viégas (2009), que analisa o vínculo entre a empreiteira Mendes
Jr. e a Braspetro, mas marginaliza a dinâmica interna das políticas estatais que estiveram
embrenhadas aos interesses da indústria de construção pesada. Flávia Silva (2014) já efetua
um enfoque bastante pertinente ao analisar a internacionalização da estatal nos anos de 1970,
realçando o caráter subordinado em que o Brasil adentrou na esfera internacional de produção
e exploração de petróleo. Na recente dissertação de mestrado desta autora, ela aprofunda essa
análise e evidencia o acirramento da dependência externa brasileira a partir dos contratos de
risco instituídos entre a Petrobras e empresas multinacionais durante a ditadura (SILVA,
2018).
No intuito de suprir tal lacuna, o objetivo principal do projeto desta pesquisa é
perscrutar a interação entre frações do empresariado e o processo de internacionalização da
Petrobrás durante a ditadura empresarial-militar brasileira. Focando, com mais afinco, nas
diretrizes e atuação da Braspetro e Interbrás, o estudo busca conceder aportes a fim de
corroborar a hipótese de que a atuação da estatal no exterior esteve atrelada aos ditames e
interesses de parcelas da classe dominante atuantes no Brasil durante o regime, o que
contribuiu para a ampliação econômica desses segmentos.
Petrobras na ditadura
Com o advento da ditadura, o governo Castelo Branco, baseado no decreto-lei nº 200
de 1967, visou instituir uma descentralização administrativa das estatais. A partir disso, foi
firmado um regime jurídico próprio às empresas públicas, na tentativa de conferir um suposto
contorno de tecnicidade ao seu funcionamento. Essa medida se deu, fundamentalmente, em
resposta à conformação política e social do governo João Goulart, na qual os trabalhadores
das estatais, em especial a Petrobras, tinham considerável ascendência nas decisões da
empresa através dos dirigentes da mesma (CONTRERAS, 1994:92-97; CARVALHO, 1977:
127-156).
O referido decreto-lei de 1967 implicou na liberalização de um número crescente de
divisas para investimento em equipamentos pela Petrobras, o que beneficiou as atividades de
maior lucratividade no momento, a saber, refino e petroquímica. Nesse sentido, a estatal
encetou um processo de centralização econômica, de modo a concentrar sua atuação no ramo
petroquímico, em 1967, a partir da criação da Petrobras Química SA (Petroquisa), sua
primeira subsidiária. Em seguida, em 1971, foi constituída a BR distribuidora. Essa
reorientação nas diretrizes da estatal, concomitante à ascensão de Ernesto Geisel à presidência
da empresa em 1969, implicou na retirada das atividades de exploração/produção interna do
patamar de prioridade da Petrobras. Essa mudança de ênfase estabeleceu uma diminuição
média em torno de 50% dos investimentos totais da Petrobras nesse ramo entre 1965 e 1969,
para uma média de 32% durante a gestão Geisel (1974-1979) (CONTRERAS, 1994:95).
Se em âmbito doméstico houve incremento nos segmentos de refino, transporte e
distribuição, as instabilidades nos preços internacionais do petróleo no início dos anos de
1970, conjugadas à dependência de importação do insumo cru, resgatou a importância dos
investimentos estatais em exploração, algo que foi estabelecido na seara internacional. Em
1972, então, a Petrobras criou sua terceira subsidiária, a Braspetro, instituída a fim de explorar
e produzir petróleo no exterior (DIAS; QUAGLINO:173-190).
É pertinente destacar a criação da Interbrás nesse contexto, trading company
concebida em 1976, atrelada à Braspetro, instituída a fim de fomentar as exportações de
produtos fabricados no Brasil nos acordos de compra e venda de petróleo com outros países.
Em um cenário de escassez de divisas, tal entidade teve papel fundamental, tanto no que tange
ao suprimento energético brasileiro - visto que parte do preço das importações de petróleo era
saneada com produtos brasileiros -, quanto para a alavancagem de certas parcelas
empresariais, que foram contempladas a partir dessas transações.
Entre 1964 e 1985, a Petrobras atuou em países como Madagascar, Colômbia, Egito,
Irã, Angola, dentre outros. Um dos casos mais emblemáticos que realçam o nexo entre a
estatal, empresários e a política externa brasileira foi sua atuação no Iraque, a partir de
meados dos anos de 1970. Após os primeiros anos da política externa da ditadura, assinalada
pelo apoio incondicional4 aos Estados Unidos, a orientação diplomática de Ernesto Geisel5
intensificou o caráter da “Diplomacia do Interesse Nacional” do governo Médici de travar
acordos bilaterais. Estes, por sua vez, foram marcadamente direcionados de modo a
aprofundar relações com países do terceiro mundo, sobretudo os do Oriente Médio.
A necessidade petrolífera do Brasil, junto ao intento de Saddam Hussein de
modernizar seu país, implicou na inserção da Mendes Jr. e das empresas do ramo
automobilístico no país. Em 1978, por intermédio da Interbrás, de ministros e agentes da
diplomacia brasileira, a construtora se classificou para construir a ferrovia que liga Bagdá à
cidade de Akashat, contrato que lhe rendeu US$ 1,2 bilhão (ATTUCH, 2003:31-34). A
Volkswagen, por sua vez, travou o maior contrato internacional do ramo automotivo até então,
vendendo 170 mil Passats para o país entre 1983 e 1988, negócio que lhe rendeu US$ 1,7
bilhão (ATTUCH, 2003:71-81).
A pesquisa jornalística de Leonardo Attuch (2003) é bastante representativa no sentido
de elencar a parceria entre o Brasil e o Iraque durante a ditadura, evidenciando os negócios
bilionários em torno da cooperação energética, processo que envolveu empresas brasileiras
públicas e privadas. Seu trabalho foi amparado, principalmente, por entrevistas com atores-
chave que atuaram no processo, como o ex-ministro Delfim Netto, o empresário Murillo
Mendes da empreiteira Mendes Jr., o presidente da Volkswagen nas décadas de 1970 e 1980
Wolfgang Sauer, dentre outros. Entretanto, devido a proposta e diversidade de enfoques no
tocante a relação bilateral, o autor não estabeleceu uma sistematização documental que
evidencia os detalhes das negociações e interações entre empresários e agentes do Estado.
Esta pesquisa, ainda em estágio incipiente, buscará estabelecer estes esforços, não apenas no
que concerne à parceria entre Brasil e Iraque, mas em relação aos demais países que
receberam a atuação da Petrobras durante o período ditatorial.
A investigação da atuação externa da Petrobras e dos interesses privados que
circundaram esse processo, no entanto, não prescinde da análise da dinâmica interna das
4 Sobre o apoio dos Estados Unidos ao golpe de 1964, as relações orgânicas entre agentes do executivo norte-
americano e o governo Castelo Branco, bem como as feições subservientes da política externa brasileira aos
interesses estadunidenses, ver: FICO, 2008:127-183. 5 Em linhas gerais, a diplomacia do “Pragmatismo Ecumênico e Responsável” de Geisel, buscou firmar relações
a fim de suprir a deficiência material brasileira. A política externa desse período foi demarcada por uma maior
aproximação brasileira com os países árabes - lastreadas principalmente pelos acordos energéticos -, pela
reaproximação do país com os países socialistas em termos de incremento comercial e consequente afastamento
em relação aos Estados Unidos. Sobre essa temática, ver: VIZZENTINI, 2003:39-61.
frações empresariais que compassaram sua dinâmica de acumulação aos negócios da estatal.
Em consonância com a abordagem de Rodrigo Passos (2017), a perspectiva aqui adotada
sobre as relações internacionais não estabelece uma relação estanque entre a seara mundial e
doméstica. De forma distinta, as relações internas entre as classes sociais, que entravam suas
lutas de forma a transpassar a ossatura material do Estado6, é um fator elementar para
compreender a performance dos atores atuantes para além das fronteiras nacionais. A última
parte deste trabalho irá delinear algumas diretrizes que podem compor a agenda que dará
continuidade à pesquisa aqui apresentada, elencando alguns traços que podem ser percrutados
em relação à interface entre Petrobras e classes dominantes na ditadura.
Considerações finais: breves notas sobre a agenda de pesquisa entre Petrobras e classes
dominantes
O texto apresentado neste Encontro da Anpuh-RJ buscou apresentar, de forma
sucinta, pesquisa de doutorado ainda incipiente acerca da relação entre classes dominantes e a
Petrobras na ditadura, com enfoque em sua internacionalização. Como ainda não foi possível
se debruçar de forma mais detida na análise das fontes primárias, optei por compartilhar,
nestas considerações finais, algumas notas e impressões acerca da agenda a ser perscrutada
nas próximas etapas do estudo.
Dada a ampla dimensão e escopo de atuação da Petrobras, suas atividades
movimentam de forma elementar uma miríade de setores econômicos e, por sua vez, uma
gama expressiva de interesses de distintas frações do empresariado. Tendo em vista o
entendimento de Estado ampliado, de Antonio Gramsci (2000), pode-se pressupor que esses
diversos segmentos entram em fricção com outras frações de classe, se mobilizam e se
articulam para universalizar seus valores na sociedade, assim como para obter seus intentos
materiais particulares assegurados pelas políticas do Estado. Portanto, a reprodutibilidade dos
capitais não se ampara em critérios estritamente econômicos, uma vez que a política é um
locus elementar para o seu desenvolvimento.
6 O termo é de Nicos Poulantzas (1980), que confere centralidade ao caráter relacional do Estado, o concedendo
como uma condensação produzida formalmente a partir do equilíbrio de forças na disputa política (p. 47-48). A
ossatura material seria, em linhas gerais, as instituições formais do Estado.
Seria tarefa hercúlea especificar os diversos ramos da economia que engendraram
sua acumulação, de forma direta ou indireta, junto às atividades da Petrobras na ditadura.
Ainda mais árdua se torna a tarefa quando temos em vista a mobilização e organização
política dos diferentes segmentos empresariais durante o regime, com o adendo igualmente
importante da vinculação entre diversos nichos produtivos instaurados pelas políticas do
Estado.
Apenas para elencar alguns desses setores, podemos destacar todo o complexo
petroquímico, que foi alavancado pela Petrobras, sobretudo após a criação da Petroquisa em
dezembro de 1967 (POÇAS, 2013). Carmen Alveal (1994:97-105) ressalta de forma bastante
oportuna casos em que a estatal salvou empresas privadas desse ramo e, inclusive, passou a
ser acionista de um número expressivo delas, cotas estas que seriam privatizadas na década de
1990.
Outro setor privado que, historicamente, se beneficia dos negócios da Petrobras é a
indústria de bens de capitais. Já nos seus primeiros anos, na década de 1950, a estatal foi
proibida de atuar nesse setor, tendo, inclusive, patrocinado, em 1955, a criação da Associação
Brasileira para o Desenvolvimento das Indústrias de Base (ABDIB). Em toda ampliação
horizontal ou vertical da Petrobras na ditadura as empresas de máquinas e equipamentos
locais se beneficiava, sobretudo após a implementação de políticas mais direcionadas ao
conteúdo local.
Podemos elencar diversos outros segmentos, como a indústria da construção pesada e
o setor automobilística, que, como posto anteriormente, estiveram atrelados à
internacionalização da estatal; todo o complexo sucroalcooleiro, cujo Proálcool, criado em
1975 por forte influência do capital monopolista da família Ometto (MOREIRA, 2013: 35-
86), movimentou a capacidade ociosa do segmento e também incrementou o setor
automotivo; as petrolíferas dos países centrais, que foram beneficiadas, dentre outras medidas,
com a internalização dos contratos de risco na prospecção de petróleo efetuada no governo
Geisel (SILVA, 2018); dentre outros.
A persecução da abordagem exposta na parte final da seção anterior, que recusa o
apartamento estanque entre as relações sociais em nível doméstico e aquelas atinentes à seara
internacional, ao mesmo tempo em que incrementa a análise, complexifica sua elaboração.
Esse ponto consiste em um primeiro desafio metodológico mais geral.
O segundo deles está relacionado ao conceito de Estado ampliado como ferramental
metodológico. Por se tratar de uma entidade do Estado restrito, a busca e o tratamento das
fontes da pesquisa tendem a implicar na inversão da lógica do método proposto por Sonia
Regina de Mendonça (2014). Ou seja, ao invés de conferir precedência analítica aos
Aparelhos Privados de Hegemonia (APH’s) para, posteriormente, analisar o recorte de classe
de determinado conjunto de políticas, a abordagem se inclina a inverter o caminho
metodológico a ser percorrido. Desse modo, pelo menos em um primeiro momento, a
pesquisa enveredará por duas frentes.
Tendo essas duas prerrogativas em mente, é pertinente relembrar que tanto as escala
nacional e internacional, quanto a sociedade política e a sociedade civil são embrenhadas de
forma orgânica, complexa e contraditória, sendo sua separação efetuada apenas em termos
metódicos.
A primeira das frentes consiste em encetar a avaliação da atuação das empresas aqui
já identificadas e que estiveram embrenhadas na saga internacional da Petrobras já nos anos
de 1970. O episódio da parceria entre Brasil e Iraque nesta década, por exemplo, pôs em cena
empresas muito bem consolidadas no país naquele momento, como a empreiteira Mendes Jr. e
aquelas atuantes no setor automobilístico, com destaque para a Volkswagen. Desse modo, a
documentação sobre a Braspetro do Serviço Nacional de Informação, presente no SIAN do
Arquivo Nacional, parece ser um bom passo inicial para analisar de forma mais detalhada a
articulação dessas frações de caso frente à Petrobras.
A segunda frente consiste nos interesses norte-americanos no setor petrolífero
brasileiro. A muito bem qualificada dissertação de mestrado de Flávia Silva (2008), por
exemplo, realça de forma detalhada uma fase importante para o desenvolvimento petrolífero
brasileiro, qual seja, a prospecção de petróleo em alto-mar (offshore). A autora percebeu que
as primeiras experiências desse tipo ocorrida de forma mais bem sistematizada no Brasil se
deu via contratos de risco. A partir dessa forma contratual, implementada a partir do governo
de Ernesto Geisel, foi estabelecida, de forma deliberada, a atração dos grandes capitais
estrangeiros nessa empreitada, o que realçou o caráter subserviente do Brasil na área de
exploração, ainda que as atividades estrangeiras não tenham vingado. A autora corroborou
suas hipóteses utilizando, dentre outros documento, alguns dos próprios contratos de risco
estabelecidos vis Lei de Acesso à Informação. Uma diretriz que parece oportuna perseguir
para averiguar tanto a perspectiva dos EUA frente aos contratos de risco, quanto em relação a
outras temáticas energéticas brasileiras, parece ser os documentos da embaixada
estadunidense sobre o período disponibilizado pela Wikileaks.
A Embaixada norte-americana criou uma etiqueta para identificar os telegramas
atrelados ao Ministro de Minas e Energia do governo Geisel, Shigeaki Ueki7. São 52
telegramas, sendo que parte expressiva deles versa sobre questões atinentes ao setor
petrolífero e, principalmente, à energia nuclear brasileira. A Interbrás e a Braspetro também
contam com etiquetas na embaixada, com relatórios que versam, dentre outras coisas, sobre a
atuação da subsidiária no Oriente Médio, como aquele que relata a missão econômica
iraquiana ao Brasil que se encontrou com representantes da Braspetro8.
Desse modo, pretende-se traçar os primeiros passos, em termos de análise
documental, do estudo sobre a relação da teia de interesses em torno da internacionalização da
Petrobras. Visa-se conferir aportes para aferir a hipótese de que esse processo foi ditado e
favoreceu, em grande medida, segmentos da classe dominante atuante no Brasil à época,
contribuindo para a concentração desses capitais específicos em um contexto de acirramento
das desigualdades sociais e perda de direitos políticos no país.
Referências Bibliográficas
ATTUCH, Leonardo. Saddam, Amigo do Brasil: a história secreta da conexão Bagdá. Rio de
Janeiro: Qualitymark, 2003.
BIANCHI, Álvaro. O Ministério dos Industriais: A Federação das Indústrias do Estado de
São Paulo na crise das décadas de 1980 e 1990. Tese de doutorado em Ciências Sociais.
Campinas: Unicamp, 2004.
BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. ABDIB e a política industrial do governo Geisel (1974-
1979). Texto de discussão apresentado ao Polis. Niterói: UFF, 2007.
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. "Empresariado e ditadura no Brasil: o estado atual da
questão e o caso dos empreiteiros de obras públicas". In: Revista Transversos, nº 12, p. 335-
358, 2018.
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas Catedrais: As empreiteiras brasileiras e a
ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: Eduff, 2014.
7 Disponível em: encurtador.com.br/blBM6. 8 Disponível em: encurtador.com.br/chwz6.
CARVALHO, Getúlio. Petrobrás: do monopólio aos contratos de risco. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1977.
CASTRO, Antônio Barros de; SOUZA, Francisco Eduardo Pires de. A Economia Brasileira
em Marcha Forçada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
COHN, Gabriel. Petróleo e nacionalismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.
CONTRERAS, Eldemira Del Carmen Alveal. Os desbravadores: A Petrobras e a construção
do Brasil industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará: ANPOCS, 1994.
COSTA, Armando Dalla; PESALLI, Huáscar Fialho. A trajetória internacional da Petrobras
na indústria de petróleo e derivados. In: Revista História Econômica & História de Empresas,
Vol. XII. Curitiba: 2009.
CRUZ, Sebastião C. Velasco e. Estado e Planejamento no Brasil: 1974/1976. In: CRUZ,
Sebastião C. Velasco e. O presente como história: economia e política no Brasil pós-64.
Campinas: Unicamp, 1997.
DIAS, José Luciano de Mattos; QUAGLINO, Maria Ana. A questão do petróleo no Brasil:
uma história da Petrobras. Rio de Janeiro: CPDOC: PETROBRAS, 1993.
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de
Classe. Petrópolis: Vozes, 1981.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a
Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LESSA, Carlos. A estratégia de desenvolvimento: sonho e fracasso. Brasília: FUNCEP, 1988.
MELO, Demian. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo
político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Revista Espaço Plural, ano
XIII, n. 27, p. 39-53, 2º semestre 2012.
MENDONÇA, Sonia Regina de. A Classe Dominante Agrária – natureza e comportamento
(1964-1990). São Paulo: Expressão Popular, 2006.
MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e políticas públicas: considerações político-
conceituais. Revista Outros Tempos, Vol. 1, p. 1-12, 2007.
MENDONÇA, Sonia Regina de. O Estado ampliado como ferramenta metodológica. Marx e
Marxismo, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, jan-jul. 2014.
MINELLA, Ary Cesar. Bancos e banqueiros durante os 'anos de chumbo'. In: BRANDÃO,
Rafael Vaz da Motta; CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; MARTINS, Monica de Souza
Nunes (org.). Política Econômica nos Anos de Chumbo. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
MOREIRA, Lourenço L. S. M. A corporação Cosan e a conquista de um território em torno
de sua usina de etanol em Jataí, Goiás (2007-2012). Dissertação de mestrado em Geografia.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2013
PASSOS, Rodrigo Duarte Fernandes dos. Gramsci e as Relações Internacionais na prisão da
Ciência Política. In: VII Seminário Internacional - Teoria Política do Socialismo - Revolução
Russa: 100 anos que abalaram o mundo 'A Transição como Atualidade Histórica'. Marília:
Unesp, p. 1-10, 2017.
POÇAS, Bernardo Galheiro. 1964-1979: a luta pela hegemonia na petroquímica
brasileira.Dissertação de mestrado em História. Niterói: UFF, 2013.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1980.
REGINATTO, Ana Carolina. A Ditadura Empresarial-militar e as Mineradoras: as relações
entre os grandes grupos econômicos da mineração e o regime ditatorial brasileiro (1964-
1988). Tese de doutorado em História. Rio de Janeiro: UFRJ, 2019.
SILVA, Flávia. "Breves notas sobre o processo de internacionalização da Petrobrás (1971-
1979)". In: Anais do Congresso da ABPHE. Niterói: UFF, 2014.
SILVA, Flávia. Capital Internacional e a Petrobrás na ditadura brasileira: um estudo a partir
dos ‘contratos de risco’ (1964-1985). Dissertação de mestrado em Desenvolvimento
Econômico. Campinas: Unicamp, 2018.
VIÉGAS, João R. R. A internacionalização privada na onda estatizante: as relações público-
privadas na internacionalização das empresas brasileiras entre 1974 e 1979. Dissertação de
mestrado em História. Rio de Janeiro: UERJ, 2009.
VIZZENTINI, Paulo F. Relações internacionais do Brasil: de Vargas a Lula. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2003.
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. A Formação dos Estados no Oriente Médio. Oriente Médio
e Afeganistão. Um século de conflitos. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002.
VOIGT, Márcio Roberto. O impacto dos choques petrolíferos na diplomacia brasileira
(1969-1985). Tese de doutorado em Ciência Política. Porto Alegre: UFRGS, 2010.