estado e setor pÚblico nÃo estatal: perspectivas...
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ESTADO E SETOR PÚBLICO NÃO ESTATAL: PERSPECTIVAS PARA A
GESTÃO DE NOVAS POLÍTICAS SOCIAIS*
Elisabete Ferrarezi**
Introdução
Para além da polarização suscitada pelo debate sobre Estado e mercado, apresenta-se a
criação de novas formas de provisão e gestão de políticas sociais, diferente daquela
“socialização do consumo” de equipamentos coletivos que se baseou na intervenção
estatal durante as décadas de 70 e 80. Esse padrão de provisão de políticas públicas em
que o Estado desempenhava todas as funções, praticamente foi confundido com essa
modalidade historicamente constituída, sendo difícil imaginar, para muitos, outro tipo de
entrega de políticas que não aquela realizada diretamente pelo Estado.
O ambiente de complexidade do mundo globalizado e dos sistemas políticos e econômicos
que nele interagem fornece o panorama para a discussão dos desafios que teremos que
enfrentar no tocante à provisão e gestão das políticas sociais, dentre os quais se destaca,
particularmente, a necessidade de se promover o desenvolvimento social.
Discutiremos neste ensaio as possibilidades que se abrem para a gestão de políticas sociais
com a cooperação das organizações sociais públicas não estatais1. Essa questão é tratada
tendo em vista os novos papéis delineados para o Estado, em um contexto de grandes
transformações econômicas mundiais e face a necessidade de promover relações de
parceria com diversos atores e com as organizações públicas não estatais que vêm
assumido crescentemente a promoção de políticas sociais.
* Texto apresentado no II Congresso Interamericano del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración
Pública, Venezuela, 15-18 de outubro de 1997. **
Elisabete Ferrarezi é mestre em administração pública, pertence à carreira de especialistas em políticas públicas e
gestão governamental e é assessora do Conselho da Comunidade Solidária. 1 Entende-se por organizações sociais públicas não estatais aquelas entidades com fins públicos, constituídas
voluntariamente por grupos de cidadãos na sociedade civil, como pessoas de direitos privado e sem fins lucrativos,
autônomas em relação ao Estado e independentes de partidos políticos e de instituições de caráter corporativo.
2
1- Estado e Novos Atores no Espaço Público
Desde a década de 70 o capitalismo vem mudando sua forma de organização e seu padrão
de desenvolvimento. Do Estado-Nação, que assumia a regulação do mercado e da
produção, financiando o desenvolvimento econômico e as políticas sociais, ao atual
quadro de internacionalização econômica, observamos o progressivo enfraquecimento da
capacidade de regulação dos Estados nacionais sobre os diversos aspectos que dizem
respeito às relações com a sociedade e com o mercado.
A crise do Estado, aguçada pela crise econômica mundial, tornou transparente a crise
fiscal e abalou fortemente os conceitos de administração pública exigindo diversas
reestruturações, principalmente quanto ao gasto com pessoal e invocando a necessidade
do aumento de eficiência e eficácia governamental. As dimensões da crise passavam pelo
declínio do Keynesianismo, do Welfare State, da burocracia weberiana2 e pelas mudanças
introduzidas com a globalização financeira. Era preciso um Estado mais flexível capaz de
se adaptar às mudanças externas.
Em decorrência, surgem na Europa e EUA, na década de 80, as reformas administrativas
cujos temas eram: aumento da eficiência, corte nos gastos e atuação mais flexível do
aparato burocrático. Tenta-se introduzir a lógica da produtividade e os modelos gerenciais
do setor privado na administração pública.
Em uma primeira fase, foram introduzidas mudanças do ordenamento macroeconômico
que conduzissem a um quadro de ajuste e estabilidade, à redução do tamanho do Estado e
ao desmantelamento de instituições protecionistas. Já para a década de 90, o objeto das
mudanças passa pela consolidação das reformas, pelo restabelecimento da capacidade
regulatória do Estado em atividades que foram repassadas para a iniciativa privada, pela
2 A burocracia foi criada no Estado Liberal como uma resposta eficiente à burocracia patrimonialista, criando uma
série de controles que imprimissem o caráter público das ações do Estado. Mas, a burocracia, ao longo do século XX,
vai subvertendo as razões para as quais fora criada, formando uma categoria social específica que estabelece entre
seus membros certas relações que tendem a autonomizar-se face à sociedade como poder externo e acima da mesma e
muito pouco orientada à prestação de serviços públicos aos cidadãos.
3
melhoria da competitividade e por novas definições na oferta dos serviços sociais e de sua
qualidade.
As transformações recentes têm proporcionado forte impacto nas relações de força entre
“mercados” e Estados nacionais3. Os governos têm tido que proporcionar vantagens
comparativas a fim de atrair o capital para a sua região, o que exige muito mais do que
baixo custo de mão-de-obra e de matérias-primas. Tornou-se fundamental possuir capital
humano (educação, formação profissional, saúde), investimento em ciência e tecnologia,
estabilização econômica, reforma fiscal e previdenciária, etc.. A agenda é, portanto,
repleta de temas para as reformas do aparelho de Estado. Contudo, os desafios colocados
para a superação dos problemas sociais não apenas se circunscrevem a atuação do poder
estatal, uma vez que a diversidade do mundo contemporâneo coloca em cena novos atores
e novas exigências sociais que vão além das possibilidades de o Estado contemplar. Não é
por outro motivo que agências multilaterais, como o BID, tem orientado seus recursos
para projetos que contenham mecanismos de fortalecimento da participação comunitária e
para projetos cujas próprias organizações da sociedade civil atuam na provisão direta de
serviços sociais e no controle das ações públicas estatais.
O papel tradicional do Estado foi sendo suplantado pelas exigências das reformas da
década de 80 e pelas transformações impostas pela economia globalizada. Houve
inicialmente uma retração do Estado na provisão de políticas sociais e foi reforçada pela
mídia a imagem de sua ineficiência, associando os males da crise à própria existência do
Estado.
A forte conotação ideológica de que se revestiu o “princípio de mercado” (Santos, 1995:
251) - com a presença de pressupostos como autonomia, liberdade, iniciativa privada,
concorrência, competitividade, eficácia/eficiência, lucro - exerceu influência na tentativa
3 Uma das manifestações contraditórias do capitalismo mundial é que ao mesmo tempo em que há uma vigorosa
expansão dos mercados financeiros internacionais - chamando a atenção o volume de recursos movimentados - esse
mesmo processo ocasiona uma “destruição social”, onde se sobressai a reprodução da pobreza, o desemprego de
massas de caráter permanente, o agravamento da exclusão social, desesperança e violência (Therborn, 1995: p. 47).
Isso torna o sistema de proteção existente incapaz de “compensar” as “novas perdas” imposta pela reconfiguração do
mundo da produção e do trabalho na era da globalização.
4
de legitimar a retirada do Estado da prestação de serviços, ocultando a atuação econômica
estatal em favor das empresas como incentivos fiscais, tributação regressiva, etc.
Contudo, é importante reconhecer que o princípio de mercado trouxe o apelo ao
“princípio de comunidade” e às idéias que carrega consigo: participação, solidariedade,
autonomia, etc. Se, de um lado, esse apelo contribuiria para obtenção de cumplicidade da
sociedade na legitimação da transferência dos serviços de provisão estatal para o setor
público não lucrativo, auxiliando a materialização da necessidade do Estado “mínimo”, de
outro lado, esse processo também pode ser entendido pela positividade que apresenta à
sociedade civil, reforçando e legitimando a participação dos novos atores na arena pública
não estatal, fortalecendo sua organização na resolução de problemas sociais.
É bom lembrar que as sociedades civis têm tido suas ações revitalizadas por inúmeras
iniciativas autônomas no mundo todo. No entanto, cabe distinguir as especificidades de
seu surgimento no cenário político. Enquanto em países desenvolvidos as organizações
autônomas da sociedade civil sem fins lucrativos respondem ao que se poderia chamar de
cultura cívica, em países com menor grau de desenvolvimento econômico e social, quer se
fazer passar a idéia de que seu surgimento e atuação constitui resposta à incapacidade de o
Estado atender as demandas sociais.
Nossa concepção é de que sua gênese4 repousa na pluralidade e diversidade de interesses
existentes nas sociedades contemporâneas, interesses esses, tanto maiores quanto mais
complexa, diferenciada e desenvolvida for a sociedade de consumo de massa. Assim, a
noção de Estado onipresente e onipotente, segmentando as relações sociais entre públicas
e privadas só encontra sentido em sociedades autoritárias. Portanto, independentemente
da eficiência e eficácia da ação estatal, o crescimento e proliferação das organizações da
4 A incipiente construção da esfera pública no Brasil pode ser observada através do crescimento das atividades do
setor não lucrativo, ONGs, fundações, filantropia empresarial, entidades assistenciais, etc. Em países desenvolvidos,
como os EUA, a filantropia faz parte da cultura cívica e tem ocupado espaço considerável nas ações do Terceiro
Setor. No Brasil, a ênfase das organizações sociais sem fins lucrativos se deu predominantemente em projetos de
construção e/ou fortalecimento da sociedade civil e em aspectos que envolveram a conquista de cidadania,
democratização, organização popular e a prestação de serviços públicos como educação e saúde. Mais recentemente
esse espectro de atuação foi ampliado, incluindo desde projetos inovadores para geração de renda e promoção do
desenvolvimento comunitário, até a defesa de direitos difusos.
5
sociedade civil é uma resposta às necessidades da “modernidade” e não somente ao
padrão de atuação do Estado.
Se pensarmos na dimensão dos problemas sociais brasileiros - desigualdade de renda,
pobreza, diversas formas de exclusão social, fome, analfabetismo e baixa qualificação
profissional, feminização da pobreza, crianças em situação de risco, habitação, etc. - nas
demandas crescentes e complexas (como o reconhecimento e defesa de direitos difusos,
ética na política, meio ambiente, etc.) e a heterogeneidade sócio-econômica-cultural e
regional, não é possível imaginar que a questão social será resolvida unicamente pela ação
do poder público estatal. Isso não somente pelos limites financeiros, organizacionais e
gerenciais do Estado mas, principalmente, pelo esgotamento de suas funções tradicionais
ligadas ao Estado de Bem-Estar Social, que nem ao menos se completou no país, e pelas
novas demandas referidas decorrentes da democratização da sociedade civil que ficou
mais complexa e dinâmica.
O surgimento dos novos movimentos sociais (feministas, ecológicos, pacifistas, etc.),
novas concepções de direitos humanos e idéias tais como o direito dos povos à
autodeterminação, a solidariedade social, a cidadania planetária e, ainda, o destaque dado
a temas como a reemergência, reestruturação ou reconstrução da sociedade civil,
reafirmação de valores como autogoverno, comunitarismo, organização autônoma dos
interesses e modos de vida, cooperativismo, participação, democratização, solidariedade,
confiança, redes - apontam para o alargamento da esfera pública não estatal por meio da
atuação de novos atores sociais (ver Fernandes, 1995; Leis, 1995; Silva, 1994; Putnam,
1995).
A revalorização dos ideais propiciados pelo princípio da comunidade é visto como uma
possibilidade de fundar novas energias emancipatórias por parte da sociedade, através da
produção de uma nova cultura política e uma nova qualidade de vida pessoal e coletiva.
Assim, abre-se um campo imenso para a participação de novos atores - já que a relação
dicotômica entre o Estado e o mercado é suavizada, prevalecendo mais a noção tripartite
6
Estado/mercado/sociedade civil. Essa noção assume maior importância no momento em
que o capitalismo mundial, ao mesmo tempo que transnacionaliza os problemas, localiza
nacionalmente as soluções, apontando para a realização de parcerias face o baixo impacto
que as ações isoladas tendem a produzir.
As organizações da sociedade civil sem fins lucrativos passam a ocupar o espaço público,
espaço esse que era antes considerado como esfera reservada ao Estado (confundindo
espaço público estatal com espaço público social) o qual não conseguiu efetivamente
garantir o interesse público, os direitos sociais e democratizar o acesso às políticas sociais.
A privatização do Estado é tema recorrente em nossa história e pode ser demonstrada
pelos privilégios de concessão de empréstimos sem correção monetária na época de
inflação, variadas isenções fiscais a setores privados, subsídios, políticas sociais cujo
acesso é privilégio da classe média que tem maior poder de vocalização de seus interesses,
e pelo patrimonialismo que ainda predomina em todas esferas de poder do Estado.
Embora ainda esteja em processo de constituição, o sentido da esfera pública parece
encontrar no Terceiro Setor5 um grande impulso. As organizações que o compõe têm
origem privada mas se definem pela sua finalidade que é orientada ao interesse público. A
literatura aponta como noção de Terceiro Setor a presença de entidades, associações,
atividades sem fins lucrativos, não governamentais, voluntárias, filantrópicas e altruístas
que respondem a necessidades coletivas.
Isso significa que a tensão entre o interesse privado e o interesse público está propiciando
uma discussão sobre quem possui capacidade de representar interesses coletivos, questão
essa que contribui para o fortalecimento da ampliação da arena pública, uma vez que a
atuação das entidades do Terceiro Setor tem demonstrado que o Estado não possui o
monopólio de defesa do interesse público.
5 Embora o termo Terceiro Setor ainda não esteja suficientemente claro conceitualmente, às vezes confundindo mais
do que explicando as diferenças do setor, o utilizaremos nesse texto com o recorte que inclui apenas aquelas
organizações orientadas para fins públicos sem fins lucrativos, excluindo, portanto, aquelas entidades que
proporcionam benefícios a um número restrito de pessoas (como cooperativas, clubes, fundos de pensão, etc.).
7
1.1. O Desenvolvimento Social
Tema recorrente na política brasileira, o desenvolvimento social tem sido condicionado ao
sucesso da política de estabilização do governo. A política econômica recente tem como
fundamento o fato de que a estabilidade monetária, somada ao processo de abertura
comercial e à integração mundial da economia, levará ao crescimento real das rendas
assalariadas e à atração dos investimentos externos necessários à retomada do
crescimento, o que trará, como conseqüência a ampliação da oferta de empregos,
distribuição de renda, etc.
Passaremos ao largo desse tema que foge ao escopo desse ensaio. Entretanto, gostaríamos
de ressaltar dois aspectos. Em primeiro lugar, não existe relação causal entre crescimento
econômico e desenvolvimento social; em segundo lugar, nos atuais marcos propugnados
pelo modelo de crescimento e tendo em vista a experiência dos países que conseguiram
promover seu desenvolvimento nas últimas décadas, é fundamental o investimento em
capital humano, o que o Estado não pode exclusivamente garantir.
O modelo econômico do “derrame” adotado pelo Brasil em passado recente - cuja máxima
foi “deixar o bolo crescer para depois repartir” - propugnava que o crescimento
econômico acelerado resolveria os problemas da pobreza. Isso levou a uma concepção
assistencialista do Estado no campo social, produzindo políticas sociais compensatórias
até que o modelo cumprisse com a função de estender o desenvolvimento a todos. Mas a
realidade demostrou que isso não se dava de modo automático, uma vez que, naquele
período, a economia alcançou elevadas taxas de crescimento, conjugada com uma das
piores distribuição de renda do mundo.
Assim, poderíamos afirmar que o crescimento econômico é condição necessária mas não
suficiente para reduzir a pobreza e a desigualdade social, sendo fundamental a qualidade e
estrutura do crescimento pelos impactos que provoca sobre o emprego, meio ambiente, a
qualidade de vida, distribuição de renda (Kliksberg, 1997).
8
No Brasil, são muitas as dificuldades para superação da pobreza, envolvendo aspectos tais
como: ausência de mobilidade social por meio do mercado de trabalho, reprodução da
pobreza através da transmissão intergeracional, falta de acesso aos serviços sociais básicos
e incapacidade redistributiva do Estado.
A feminização da pobreza6, por exemplo, alimenta o círculo vicioso da pobreza, fazendo
com que crianças em situação de risco dificilmente consigam romper sozinhas com todo
tipo de discriminação a que estão sujeitas (acesso à escola, aos serviços, trabalho, etc.).
O sistema de proteção social brasileiro7 foi incapaz de promover a compensação dos
custos do crescimento econômico e de proteger os segmentos excluídos do consumo de
bens privados. A natureza concentradora de riqueza do modelo econômico fez com que,
durante muito tempo, as políticas sociais compensatórias perpetuassem a situação de
pobreza e exclusão. O Estado passou a atuar de modo paternalista e tutelar, distribuindo
favores e não reconhecendo os direitos dos cidadãos. As políticas compensatórias
assistencialistas, tornaram-se instrumentos onerosos de dependência permanente da
população para com o Estado e ineficaz para os objetivos que deveriam cumprir.
As desigualdades também têm várias faces e contradições, como por exemplo: a
desigualdade educacional, com destaque para seu descompasso com o avanço tecnológico,
qualidade do ensino, o analfabetismo, a baixa qualificação profissional e falta de equidade
na distribuição de recursos para o ensino básico e universitário; a desigualdade de renda
conhecida como uma das piores do mundo; a discriminação no mercado de trabalho por
questões raciais, etárias e de gênero; crianças trabalhadoras e jovens sem emprego.
Atualmente, a globalização acrescenta outros desafios para o sistema de proteção social
impondo novas „perdas” para os sujeitos sociais que devem, de alguma forma, ser
6 A feminização da pobreza é uma tendência atestada por pesquisas que indicam a existência de maior proporção de
mulheres entre os pobres. A título de exemplo: do total de 34 881 250 chefes de domicílio no Brasil, 33,5% dos
chefes de domicílio homens recebem até um salário mínimo, enquanto que 53,6% do total das chefes de domicílio
mulheres recebem até um salário mínimo (dados relativos a 1991) (IBGE/IPEA, 1995). 7 Desde 1986, o Brasil vem aumentado o gasto em serviços sociais com melhorias relativas em seus principais
indicadores. Mas, persistem os problemas relacionados à equidade: 13% do gasto público social é apropriado por 2%
mais pobres, enquanto que 25% do gasto social é apropriado pelos 20% mais ricos (Banco Mundial, 1995).
9
compensadas, como aquelas produzidas pela reconfiguração do mundo da produção e do
trabalho e aquelas geradas pela exigência do aumento da produtividade com impactos
negativos sobre o crescimento do emprego.
Por esses motivos, não é possível pensar em crescimento econômico dissociado da
integração entre políticas sociais e políticas econômicas. As políticas sociais devem ser
integradas às políticas econômicas, não apenas de modo complementar, mas assumindo o
caráter emancipatório da população atendida. Em país com tão forte iniquidade e
desigualdade social é impossível esperar que a reforma do aparelho de Estado se conclua
para, somente então, implementar ações destinadas a equacionar esses problemas. A
gravidade dos problemas sociais brasileiros exige mobilização de recursos potencialmente
existentes na sociedade tornando imprescindível contar com a participação de outros
atores, quer sejam sociais, políticos ou empresariais, em ações integradas e inovadoras
capazes de promover o desenvolvimento social, tornando possível multiplicar seus efeitos
e a probabilidade de sucesso. Desconhecer a crescente importância da atuação das
organizações sociais não estatais nas políticas sociais, é reproduzir a lógica ineficaz e
irracional de fragmentação, descoordenação, superposição e isolamento das ações das
políticas sociais.
O debate atual sobre desenvolvimento trouxe à cena a necessidade de investimento em
capital humano e social. Entende-se por capital humano, a qualidade dos recursos
humanos (incluindo educação, saúde e nutrição) e por capital social, os valores sociais
compartilhados, a capacidade para atuar sinergicamente e de gerar redes e sistemas de
colaboração no interior da sociedade8.
A relação entre o círculo vicioso da pobreza e os baixos investimentos em capital humano
indica que para reverter esse círculo perverso há que se mobilizar a sociedade para um
esforço conjunto, cujas ações somente terão resultados nas próximas gerações. Como
ressalta Londoño (1996: 37):
8 Em estudo do Banco Mundial sobre as causas do crescimento econômico em 192 países, afirma-se que cerca de
64% do crescimento pode ser atribuído ao capital humano e ao capital social (apud Kliksberg, 1997: 129).
10
“La brecha de la educación en América Latina es extremamente
grave en la actualidad. El trabajador medio tiene dos años menos
de educación de lo que cabría esperar de acuerdo con el desarrollo
de la región, y esta brecha no ha disminuido durante las últimas
décadas. De hecho, la varianza de la educación de la población
que trabaja es ahora la más alta del mundo. Esta situación,
combinada con las bajas expectativas de crecimento económico a
mediano plazo, parece destinada a producir un número creciente de
pobres en los próximos 20 años, manteniendo el círculo vicioso que
se advierte em el desarrollo social de América Latina”.
O Estado deve atuar predominantemente em problemas estratégicos - garantindo a
equidade na aplicação de recursos, articulando o econômico e o social, definindo
prioridades sociais e diretrizes gerais de uma política de desenvolvimento, garantindo o
financiamento das políticas sociais, sinalizando a direção dos investimentos, somando
esforços, promovendo sinergias, assumindo a concertação de atores e de alianças
estratégicas para a superação dos problemas sociais. Mobilizar a sociedade para esse
esforço conjunto de superação do círculo vicioso da pobreza é tarefa específica, mas não
exclusiva, da esfera estatal. Mas, somente o Estado dispõe dos mecanismos mais
fortemente estruturados para formular e coordenar ações capazes de catalisar atores em
torno de propostas abrangentes que não percam de vista a universalização das políticas
combinada com a garantia da equidade.
Em síntese, o Estado deve lançar as bases estratégicas do desenvolvimento social que
permitam estabelecer o diálogo permanente com a esfera privada e pública não estatal na
busca da construção de uma sociedade menos desigual e mais próspera.
1.2. Gestão de Políticas Sociais: os limites da ação estatal
Até recentemente, o Estado planejava integralmente o desenvolvimento em todos seus
aspectos e implementava as decisões de forma centralizada. Essa postura marginalizou,
durante muito tempo, a sociedade civil em suas múltiplas expressões e possibilidades de
atuação.
11
O papel tradicional do Estado nas políticas sociais caracterizou-se por financiar, formular,
implementar e supervisionar (com muito pouca avaliação). Ou seja, todas essas funções
aglutinadas em um só ator. Somente mais recentemente, tem assumido as formas de
“parcerias” e terceirização de serviços com outros atores. Dentre os novos modelos
propostos, aquele intitulado “paradigma emergente”9 considera o Estado como um, dentre
vários atores, que aportam recursos e implementam políticas sociais (Franco, 1996: 12).
Observa-se, além da preconização de novos papéis ao Estado, a experiência vivida por
governos federais e locais que têm promovido a substituição paulatina do monopólio
estatal na provisão de políticas sociais para a pluralidade de sujeitos e atores sociais,
ganhando força a cooperação com funções compartilhadas ou o repasse de serviços para
organizações da sociedade civil 10
.
O modelo burocrático da administração pública se mostra incompatível com as atuais
exigências da gestão social. As condições sob as quais se desenvolvem as políticas e os
programas sociais são alteradas permanentemente em função das variáveis políticas e
financeiras, caracterizando a fluidez e imprevisibilidade da gestão dos programas sociais.
O atual contexto de alta complexidade e turbulência, requer da administração pública
flexibilidade capaz de readaptar, constantemente, o planejamento e a gestão às condições
existentes, sem perder, contudo, a qualidade, a eficácia e eficiência de suas ações. A
dificuldade de promover tal transformação constitui grande desafio da administração
pública face a notória rigidez burocrática da qual se reveste.
9 Nesse caso, o Estado seria responsável parcialmente pelo financiamento, dando ênfase à população de mais baixa
renda e utilizando o co-finaciamento como uma alternativa de recursos; em vez de subsídio à oferta propõe-se a
competição entre instituições por meio do subsídio à demanda; exerceria maior influência em atividades de promoção
(em vez de somente proteção); assumiria funções de execução mas de maneira subsidiária com a participação de
outros atores cumprindo essas tarefas - organizações do Terceiro Setor, comunidade local, setor privado (Franco,
1996). 10
No Brasil, são vários os Ministérios e instituições públicas que realizam convênios e parcerias com organizações
do Terceiro Setor; a título de exemplo: Conselho da Comunidade Solidária (programa de alfabetização e
universidade solidária), Ministério da Justiça (programas ligados à garantia de direitos das crianças e dos
adolescentes), Ibama (programas ligados ao meio ambiente), Ministério da Previdência e Assistência Social
(programas de assistência social), etc. Governos latino-americanos também têm realizado experiências bastante
arrojadas de provisão de políticas por associações da comunidade local como é o caso do Programa Educo em El
Salvador.
12
O arranjo institucional sobre o qual se constituíram as políticas sociais brasileiras
determinou, em grande medida, o baixo desempenho de seus programas, comprometidos
por problemas de gestão, desenho e ausência de avaliação dos resultados. Por isso, a
implementação das políticas deve, necessariamente, dar-se em novas bases que
pressupõem, a descentralização política, administrativa e financeira, possuir maior
consistência em seus objetivos, complementariedade em suas ações, articulação com a
política econômica, fortalecimento da capacidade institucional, participação, controle
social e avaliação.
Além desses aspectos, é preciso que o serviço público torne-se permeável à convivência
com outros atores sociais que assumem, crescentemente, papel de formulador,
implementador e, em alguns casos, até financiador das políticas. Isso significa que o
“núcleo estratégico” do Estado deve preparar-se para mudar suas funções, fortalecendo a
capacidade estatal de elaborar e avaliar políticas com maior grau de integração entre seus
diversos aspectos (políticos, sociais, econômicos) possibilitando maior sustentabilidade
aos projetos.
Além disso, o Estado deve estabelecer relações de parceria, em novo marco regulatório11
,
com as organizações do Terceiro Setor que sejam adequadas às suas especificidades. Para
tanto, a administração pública tem que desenvolver habilidades específicas tais como a
articulação e negociação entre agentes públicos e outros atores (na elaboração e gestão);
implementação de gerência inter-institucional e inter-organizacional com destaque para a
formação de redes12
.
11
O Conselho da Comunidade Solidária está promovendo uma discussão sobre a redefinição do “Marco Legal” do
Terceiro Setor, em sua Sexta Rodada de Interlocução Política. Esse processo, que conta com a participação de
diversos atores sociais e governamentais, visa construir progressivamente consensos sobre temas centrais de uma
agenda social para o país. Algumas das idéias expostas nesse ensaio são fruto da participação da autora em tal
processo, razão pela qual agradeço a equipe que está organizando a Interlocução, pelo estímulo intelectual e os
debates. No entanto, a responsabilidade pelas idéias aqui expostas é exclusivamente da autora. 12
Ver a esse respeito Kliksberg (1994) e Mandell (1994).
13
2 - Estado, Setor Público Não Estatal e Novas Relações para a Gestão
de Políticas
Uma das condições para promover o desenvolvimento social é a descentralização das
políticas sociais. É no “local” que se encontram os elementos ao desenho de políticas
adequadas. Ademais, é no território local que se pode dar o efetivo controle social e onde
se verifica a coordenação e coalizão de forças políticas interessadas no desenvolvimento
social. A governança urbana significa a capacidade do governo local de articular atores e
forças sociais com vistas ao desenvolvimento de formas de parceria público-privado
(Harvey, 1989). É importante, também, ter em vista que o território local passou a ser
produto e elemento ativo nas decisões de localização do capital, o que requer maior
articulação/cooperação entre a administração pública, os interesses privados e sociais.
O Estado tem papel fundamental na definição das estratégias de combate à pobreza e
políticas como as de crescimento sustentável, criação de empregos e equilíbrio fiscal
devem ser combinadas com políticas sociais específicas que abram oportunidades aos
setores pobres se integrarem ao desenvolvimento. Essa orientação para o desenvolvimento
precisa incluir, necessariamente, a prioridade no investimento em capital humano e social,
além de apoio a formas produtivas de pequena escala e atividades que possibilitem aos
setores pobres terem informações e qualificação para a realização de projetos de
desenvolvimento.
A implantação de tais políticas se daria de forma descentralizada coerente com a novas
relações para as políticas sociais. Há uma inadequação do modelo de gestão centralizado
(setorializado, com programas padronizados, com ênfase em procedimentos burocráticos)
ao modelo de descentralização que prioriza a colaboração dos entes governamentais e
entre os setores privado e público, com maiores chances de haver participação social,
inovação e maior adequação às realidades locais. A esse respeito, alguns aspectos devem
ser levados em consideração. Programas cujas atividades sejam descentralizadas implicam
fortalecimento da função de coordenação dos governos. O pacto federativo no Brasil
14
ainda está para resolver a definição dos papéis a serem desempenhados. Ao nível estadual
e federal devem corresponder as tarefas de coordenação, formulação, avaliação, definição
de critérios e normas, capacitação e distribuição equânime de recursos. A par da
complexidade da federação brasileira - exemplificada pelos seus mais de cinco mil
municípios, caracterizados pela diferenciação quanto a capacidade administrativa e
financeira - o governo central permaneceria com a função de orientar recursos e fornecer
diretrizes para o desenvolvimento apontando as prioridades sociais estratégicas (Draibe,
1996).
Diante da heterogeneidade das capacidades locais de implementação de políticas e dos
conhecidos problemas da administração pública, não se pode renunciar a associação com
redes não governamentais na estratégia de promoção de desenvolvimento e no combate à
pobreza, fortalecendo a capacidade de coordenação do setor público dos diferentes grupos
de interesses e de agente catalisador das mudanças na sociedade.
2.1. Capital social, Participação e Cooperação
Em seu estudo sobre como as novas instituições se desenvolvem e se adaptam ao meio
social nas regiões da Itália, Putnam (1996) verificou que a comunidade cívica é mais
determinante para a eficácia das ações do governo do que o desenvolvimento econômico.
Os resultados de sua pesquisa ressaltam o papel desempenhado pela comunidade cívica,
entendida como cidadãos atuantes, imbuídos de espírito público, prestativos, respeitosos e
confiantes uns nos outros, mesmo quando divergem em relação a assuntos importantes. A
atuação da comunidade cívica trouxe à tona a importância da confiança para o
estabelecimento de relações sociais com vistas a realização de projetos coletivos. As
regras de confiança permitiriam a comunidade cívica superar, com maior facilidade, o que
os economistas denominam de “oportunismo”, em que os interesses comuns não
prevalecem porque o indivíduo, por desconfiança, prefere agir isoladamente e não
coletivamente.
15
As formas de associação civil contribuem para a eficácia e estabilidade dos governos
democráticos face as externalidades positivas produzidas sobre o indivíduo e sobre a
sociedade. Nelas, é possível aos indivíduos aprenderem hábitos de cooperação,
solidariedade, espírito público e construírem consciência política, confiança social,
participação política.
Para Putnam, uma característica essencial do capital social é o fato de ele constituir-se em
bem público. Por ser atributo da estrutura social em que se insere o indivíduo, o capital
social não é propriedade particular de quem dele se beneficia. Assim, como todo bem
público, costuma ser insuficientemente valorizado. Quanto mais elevado o nível de
confiança numa comunidade, maior a probabilidade de ocorrer cooperação, o que
realimenta a própria confiança. Os recursos do capital social crescem cumulativamente
com seu uso ou se esgotam se não forem utilizados13
. O autor conclui que a progressiva
acumulação de capital social é uma das principais responsáveis pelos círculos virtuosos do
desenvolvimento da Itália cívica. Estão aí as pistas para entender porque assistimos ao
crescimento de organizações sociais e da participação de pessoas que se organizam para a
solução de problemas comuns, cujos resultados não são apropriados privadamente.
A democracia associativa traz uma nova noção de sociedade civil com o desenvolvimento
de atividades por grupos autônomos empreendedores, que não levam demandas ao Estado
e que realizam serviços e políticas com ou sem recursos públicos, com novas formas de
organização e participação social.
O envolvimento dos cidadãos exige, de certa forma, um aprendizado que valorize a coisa
pública, o bem estar coletivo. Isso significa que devem ser criadas formas de indução e
mecanismos que favoreçam a formação de redes que possibilitem o desenvolvimento
comunitário, gerando o círculo virtuoso do processo. O Estado pode ter papel ativo nesse
processo, como tem demonstrado quando da obrigatoriedade da formação de Conselhos
13
Um bom exemplo de mobilização de recursos sociais foi a realização da Campanha contra a Fome e a Miséria, pela
Vida. Quando Betinho deu início à campanha, ninguém esperava o grau de adesão e envolvimento das pessoas, de
vários setores sociais e idades, as quais passaram a constituir, em todo o Brasil, Comitês autônomos para a
16
de Saúde e da Criança e do Adolescente, como contrapartida para o repasse de recursos e
ao propor parcerias e convênios com organizações sociais, como o programa do
Ministério da Educação que estimula a criação de associações de pais para gerenciar
recursos das escolas públicas e com a realização de orçamentos participativos nos
municípios.
O estímulo à participação social e a promoção da organização comunitária é essencial ao
desenvolvimento social. Contudo, é preciso desmitificar a participação em seus sentidos
extremos: não é, por si só, a solução dos problemas sociais, mas pode ser vista como um
meio para isso e, também, como um fim em si mesma porque agrega valores éticos à
democracia e constrói laços comunitários de solidariedade.
2.2. Parcerias
Como vimos, a interação entre programas para superação da pobreza e promoção do
desenvolvimento possibilita impactos mais efetivos na população. É fundamental a
articulação e coordenação de atores e de interesses que garantam a implementação de
políticas. Para isso, é possível o próprio poder público incentivar ou mesmo influenciar a
realização de parcerias.
Para alguns autores, a transferência dos serviços para o Terceiro Setor ou para o setor
privado poderia fazer com que o governo aumentasse a efetividade, eficiência e
responsabilidade na forma como os serviços são oferecidos (Osborne e Gaebler, 1995).
Mas não há relação direta entre repasse de serviços e maior eficiência; isso precisa ser
construído, haja vista as precárias condições em termos gerenciais da maioria das
organizações sociais sem fins lucrativos e as formas que atualmente regem, legal e
administrativamente, as relações entre a administração pública e o Terceiro Setor, as quais
impõem limites ao seu desempenho.
arrecadação, distribuição de alimentos e outras iniciativas como a realização do “sopão”, parcerias com restaurantes,
etc.
17
O avanço de formas cooperativas de implementar políticas com organizações da sociedade
civil esbarra nessa contradição: elas são mais flexíveis do ponto de vista administrativo
mas, ao realizarem convênios com o Estado, ficam sujeitas às mesmas regras do setor
público, inviabilizando, por exemplo, a aplicação de recursos onde se faz necessário. É
preciso flexibilizar essas relações, impedindo a transposição da rigidez da administração
pública para o Terceiro Setor, sem o que dificilmente haverá possibilidade de aumentar a
efetividade e eficiência das ações. Nesse sentido, é preciso atualizar a legislação brasileira
que ainda desconhece a existência legal do Terceiro Setor. Suas relações com o Estado,
ora são pautadas pela lógica do setor estatal, ora pela lógica do setor privado. As
especificidades da esfera pública não estatal não encontram amparo no arcabouço
jurídico hoje existente.
Embora prevaleçam os argumentos de que as entidades do Terceiro Setor são mais
eficientes e eficazes, eles não suficientes para orientar decisões dos administradores
governamentais quanto a escolha das organizações para a realização de projetos com
recursos públicos. A seleção de entidades do Terceiro Setor para realizar Convênios com
o Estado é feita em bases discricionárias que acabam favorecendo práticas clientelísticas e
fisiológicas14
. As organizações consideradas aptas a participar de Convênios são aquelas
que conseguem transpor as barreiras burocráticas sucessivas com exigências de
documentos e registros concedidos pelo Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS
(o registro de entidade de assistência social é requisito para o acesso a subvenções e
convênios e pré-requesito para obtenção do Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos)
e pelo Ministério da Justiça (Título de Utilidade Pública).
Há controvérsias quanto à adequação do instrumento Convênio às organizações sociais
públicas não estatais. São apontados problemas como a dificuldade de se obter Registro de
14
Embora grande parte dos Convênios seja celebrada sem que se explicitem os critérios de qualificação e
competição, temos algumas exceções como o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS
(DST/AIDS - Ministério Saúde e Secretaria de Assistência Social). Ele realiza concorrência para elaboração de
propostas no âmbito de cada projeto, distribuindo edital de seleção em que constam critérios de avaliação. Já países
como o Chile e EUA definiram mecanismos competitivos para a seleção de entidades do Terceiro Setor como a
licitação e concurso público em que projetos são submetidos a avaliações técnicas e selecionadas de acordo com sua
qualidade e pertinência (Oliveira, 1997).
18
entidade de assistência social, rigidez do plano de aplicação de recursos, exigência de
conta bancária vinculada para cada Convênio, ausência de critérios claros de seleção dos
projetos. Por outro lado, há quem avalie ser esse instrumento jurídico adequado já que é
celebrado com o objetivo de atender a interesse comum (público) e não para atender
interesses das partes conveniadas.
Para alguns deveria ser utilizado o Contrato em que as partes revelam interesses próprios
circunstancialmente coincidentes ou complementares, cujas especificações são
estabelecidas pelo contratante, permitindo flexibilidade em termos gerenciais. As críticas
em relação ao Contrato apontam que a competição15
entre o setor privado e organizações
públicas não estatais geraria uma concorrência “desleal” em relação aos benefícios fiscais
que são portadoras, tratando desiguais de forma idêntica; e a própria competição entre as
organizações não estatais também poderia gerar assimetrias com possibilidade de as
pequenas não conseguirem participar do processo.
Essas organizações competem por recursos públicos entre si e entre os programas estatais.
Como a atual Lei de Licitações e Contratos (8666/93), que rege as relações do Estado com
o setor privado, e a forma de celebração de Convênios não são considerados instrumentos
totalmente adequados às especificidades das entidades sem fins lucrativos, é preciso criar
uma nova forma legal que regulamente esse tipo de parceria. Esse novo instrumento deve
estabelecer critérios de avaliação para seleção e pode abraçar elementos ou princípios
considerados apropriados a esfera pública, tanto do instrumento Convênio, quanto do
Contrato. Um modelo mais adequado para realização de parcerias por meio de licitação
específica, concurso público ou outra forma que se crie, irá impulsionar, por sua vez, o
aprimoramento da capacidade de gestão e maior profissionalização dos quadros das
entidades.
15
A Lei 8666/93 estabeleceu dispensa de licitação na contratação de entidades de pesquisa, ensino ou
desenvolvimento institucional ou de instituição social do preso e também na contratação de associações que tratam
pessoas portadoras de deficiência física (artigo 24, incisos XIII e XX). Mas há variadas interpretações do texto da
Lei: alguns entendem que não se aplica a instituições que não sejam públicas e outros a aplicam para organizações
públicas não estatais. De qualquer modo, a dispensa de Licitação deve ser vista com cautela porque possibilita o
tráfico de influência.
19
A promoção de parcerias esbarra em outra dificuldade ligada às excessivas exigências
burocráticas no acesso a determinados incentivos. O Título de Utilidade Pública Federal,
Estadual e Municipal e o Certificado de Fins Filantrópicos dão acesso a dedução de
doações de pessoas jurídicas no Imposto de Renda, a isenção de contribuição patronal à
seguridade social e a possibilidade de estabelecer Convênios com órgãos estatais. Porém,
a maioria das entidades do Terceiro Setor não consegue transpor as exigências
cumulativas e vinculadas de registros e títulos, em várias instâncias governamentais, para
ter acesso aos benefícios existentes.
Por outro lado, a discricionariedade da concessão desses títulos (a lei outorga ao
Presidente da República o reconhecimento de Utilidade Pública e no caso do Registro de
entidade de assistência social, o problema é a falta de critérios para definir o que é uma
entidade desse tipo) e o acesso limitado da maioria das entidades aos benefícios
conferidos por esses títulos, trazem a questão sobre a pertinência desses instrumentos,
sendo necessário rever toda essa forma de regulação tornando os critérios de elegibilidade
para isenções e realização de parcerias mais claros e simplificados.
Nesse sentido, as responsabilidades das organizações do Terceiro Setor para com a
sociedade e para com o Estado e deste para com a sociedade e Terceiro Setor, devem ser
claramente definidas, sendo urgente reformular a legislação que regula o setor, criando
mecanismos de prestação de contas, transparência no uso de recursos públicos e de
responsabilização civil de seus dirigentes a fim de prevenir abusos e fraudes, procedendo,
também, a uma revisão nos critérios que delimitam o acesso aos fundos públicos e
incentivos fiscais.
Embora as organizações do Terceiro Setor venham assumindo a responsabilidade de
promover políticas sociais de forma autônoma, mobilizando doadores privados para
financiar suas atividades, ressalta-se que o Estado16
não pode se furtar de alocar recursos
16
A comparação de dados sobre a receita do Terceiro Setor colhidos no Japão, Hungria, Itália, EUA, Reino Unido,
França e Alemanha, revela que a principal fonte de receita em todos os países, com exceção da França e Alemanha, é
a venda de serviços e produtos com a média de 47%. Em seguida, vem a transferência de recursos pelo Estado com
20
para a realização de projetos por essas entidades. O Estado possuiu condições mais
adequadas para alocar recursos de forma racional e equânime uma vez que detém
informações sobre o conjunto da sociedade que permitem, em princípio, compensar as
desigualdades regionais de renda e riqueza, apontando as prioridades e evitando que
estados e municípios, que possuam menor capacidade fiscal, menor crescimento
econômico e menores investimentos privados no social, sejam prejudicados.
O mecanismo tradicional de incentivo às doações é a dedução da base tributável do
Imposto de Renda. A instabilidade das normas que regulam os incentivos fiscais para
pessoas jurídicas e a restrição imposta às deduções de doações de pessoas físicas (que não
têm nenhuma forma de abatimento), constituem obstáculos à construção de uma cultura de
filantropia privada no Brasil.
Ao Estado compete estimular o financiamento das entidades do Terceiro Setor, criando
mecanismos mais eficazes de distribuição e controle dos recursos públicos alocados. Os
atuais estímulos podem ser feitos por meio de renúncia fiscal ou transferências de
recursos. Sob esse aspecto, a situação brasileira precisa se avaliada tendo em vista o
descompasso existente entre a estrutura de incentivos para o setor privado (por exemplo as
isenções e imunidades para setores automobilístico e de informática, empresas que não
pagam Imposto de Renda, etc.) e os estímulos para o Terceiro Setor. Além disso, a
imunidade tributária concedida a instituições privadas de educação e saúde, que se auto-
intitulam sem fins lucrativos mas que são, na realidade, pautadas pela busca do lucro,
também merece uma avaliação rigorosa à luz da justiça social.
É necessário aperfeiçoar os atuais mecanismos de incentivos às doações privadas com
formas mais eficientes de dedução e de fiscalização. Também caberia às próprias
entidades do Terceiro Setor a criação de mecanismos de regulação, como as auditorias
privadas, e outras formas de sinalização que dessem visibilidade pública do uso de
recursos públicos e de sua atuação, capazes de conferir maior legitimidade ao Setor.
média de 43%, sendo que no caso da Alemanha representa 68% e na França 59%. Apenas 10% cabe à filantropia
privada (Salamon apud Oliveira, 1996)
22
3- Considerações Finais: alguns temas para a agenda
Parcerias
A indefinição quanto a um estatuto próprio para as organizações não estatais sem fins
lucrativos e a inexistência de um marco que abarque, legal e administrativamente, sua
pluralidade e complexidade, trazem uma série de problemas para realização de parcerias e
convênios com o poder público estatal. O Estado, ora as trata como entidades da esfera
privada, sujeitando-as às regras que regem a competição entre organizações de fins
lucrativos, ora as confunde com a própria esfera pública estatal e as condiciona a obedecer
as mesmas regras que a administração pública, retirando-lhes aspectos valiosos que
potencializam suas ações, como a flexibilidade para movimentação de contas.
Esse é um tema para a agenda política: reconhecer a existência não homogênea e uniforme
das entidades sem fins lucrativos, distinta do setor privado e do setor público estatal. Há
também que se debater o que se entende por sem fins lucrativos e por “interesse público”
e proceder a uma revisão dos mecanismos para a realização de parceria que facilitem as
relações entre Estado e Terceiro Setor: a) gerar novos critérios para ter acesso aos
benefícios; b) elaborar um novo instrumento administrativo de parceria; b) criar uma
estrutura de incentivos fiscais capaz de fomentar a filantropia privada ou outro sistema de
financiamento público c) reconhecer e diferenciar as organizações com fins públicos
daquelas com finalidades privadas.
As interrogações sobre a identificação das organizações sociais com fins públicos e como
podemos defini-las sem perder a pluralidade e especificidade que as caracterizam têm
repercussões nas relações de parceria que desenvolvem com o Estado e no
reconhecimento público de sua atuação. As dúvidas que persistem em relação ao número
exato das entidades que compõem o Terceiro Setor e de seu campo de atuação, e em
23
relação ao volume de isenções fiscais, também precisam ser equacionadas para se ter um
quadro realista que oriente as mudanças propostas.
24
Papel do Estado na Relação com o Setor Público Não Estatal
Embora exista um campo significativo de atuação social para o setor privado não
lucrativo, o Estado continua sendo imprescindível para garantir critérios de equidade e
justiça social. Ainda é o Estado que dispõe dos mecanismos mais fortemente estruturados
para formular e coordenar ações capazes de catalisar atores em torno de propostas
abrangentes que não percam de vista a universalização das políticas combinada com a
garantia da equidade.
Nossa proposta é que o Estado atue, predominantemente, de forma estratégica, orientando
o desenvolvimento por meio da definição de diretrizes gerais da política e prioridades
sociais. Passaria, desse modo, a concentrar-se na resolução de problemas estratégicos,
garantindo a equidade na aplicação de recursos, articulando as políticas econômicas e
sociais, garantindo o financiamento das políticas sociais, somando esforços, assumindo a
concertação de atores e a realização de alianças para a superação dos problemas sociais.
Mobilizar a sociedade para esse esforço conjunto de superação do círculo vicioso da
pobreza é tarefa específica, mas não exclusiva, da esfera estatal. Os desafios para
dinamizar o desenvolvimento social torna toda ação pública social imprescindível e vital
para estabelecer relações de cooperação e apresentar possibilidades concretas para que as
pessoas possam superar o círculo vicioso da pobreza.
É certo que para esse novo patamar de relação entre o poder estatal e as organizações do
Terceiro Setor, são exigidas outras habilidades políticas e gerenciais por parte do Estado
como: a) capacidade de formular políticas focalizando recursos e garantindo equidade; b)
capacidade de monitoramento e avaliação das políticas; c) capacidade de articular e
coordenar redes, interesses, atores e programas no âmbito da esfera pública (estatal e não
estatal); d) simplificar procedimentos burocráticos e redefinir a legislação que dificulta a
gestão e implementação das políticas pelas organizações da sociedade civil sem fins
lucrativos; e) produzir e dar acesso a informações úteis e indicadores sociais; f) gerar
25
confiança com estabilidade de regras administrativas e normas legais; g) criar um sistema
de financiamento para os projetos do Terceiro Setor pautado por critérios públicos.
Alguns atores governamentais argumentam que a competição pelos recursos escassos
entre as organizações do Terceiro Setor e instituições públicas constitui um problema. Se
a compreensão predominante é a de que esse setor tem importante papel a cumprir, já que
o Estado não consegue e não pode atuar com igual grau de eficácia das organizações
públicas sociais, já que essas possuem alta capilaridade e proximidade com as
necessidades e valores da comunidade e são mais sujeitas ao controle social, então elas
não estariam competindo com o setor estatal. Ao contrário, elas estariam atuando,
justamente, na extensão do espaço público social por meio da defesa de interesses
coletivos.
As propostas de reforma do papel do Estado, principalmente aquelas que dizem respeito à
relação com entidades do Terceiro Setor, a sua participação e ampliação das atividades na
esfera pública não estatal e à destinação de recursos públicos, encontram forte resistência
em estratos burocráticos, que temem a perda de espaços de poder, do controle
corporativo, político e de recursos, por estarem presos a uma concepção anacrônica de
poder estatal que não condiz com o novo sentido da esfera pública. Há também o
descrédito em relação a outras formas de participação, atribuindo pouca importância, por
exemplo, aos mecanismos existentes de participação nos Conselhos das políticas sociais.
Isso está ligado a crença de que a sociedade não é suficientemente organizada e “madura”
para participar e exercer controle, comumente identificando a participação da sociedade
civil como oposição ao governo. A resistência de estratos burocráticos deve ser
considerada em um processo de mudança institucional, sob o risco de fracassarem as
tentativas de implementação de novos padrões de atuação no campo social.
26
Participação
Reafirmamos o entendimento de que a participação social fortalece a capacidade das
pessoas se envolverem com e se responsabilizarem pelo desenvolvimento social,
resolvendo problemas comuns. Igualmente, possibilita a supervisão de forma mais
contínua dos resultados dos serviços, adaptando-os às suas necessidades e valores,
podendo assegurar a continuidade dos programas por ocasião das mudanças de
administração.
Estabelecer e consolidar uma nova cultura e novos canais de mediação entre o Estado e a
sociedade, entre o público e o privado, entre o público estatal e o público social, requer,
sobretudo, o desenvolvimento de uma nova tecnologia gerencial, canais institucionais para
interlocução e de novas alternativas que dinamizem o potencial de recursos existentes na
sociedade capazes de fortalecer relações sociais de confiança, ações empreendedoras e
formas de cooperação criativas.
O desenvolvimento social é vital para que haja crescimento econômico, sendo os
investimentos em capital social e humano necessários para lhe dar sustentação, a longo
prazo. Nesse sentido, entendemos como decisiva a interação entre os diversos atores que
atuam no espaço público para que se alcance resultados potencialmente mais elevados e
complementares na busca do desenvolvimento sócio-econômico sustentável.
Por fim, ainda são muitas as questões aqui tratadas que merecem ser aprofundadas. De
qualquer modo, a experiência da promoção de ações sociais pelas organizações públicas
não estatais e o debate que ora se trava sobre os temas analisados, trazem perspectivas de
mudanças nas relações entre o Estado e Terceiro Setor para realização de parcerias mais
eficazes na implementação de políticas sociais, sinalizando uma reação contra o desânimo
e a passividade que impedem a busca de soluções criativas para o combate à pobreza.
27
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