estudos tobias parte 3
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TOBIAS BARRETO
ESTUDOS DE FILOSOFIA
2ª EDIÇÃO
Introdução de
Paulo Mercadante e Antonio Paim
PARTE III
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SUMÁRIO
PARTE III
Última fase (período do Recife): - ciclo da adesão
ao neokantismo
I. Dissertação de concurso
II. Notas a lápis sobre a evolução emocional e
mental do homem
III. Relatividade de todo conhecimento
IV. Glosas heterodoxas a um dos motes do dia,
ou variações anti-sociológicas
V. Recordação de Kant
VI. A irreligião do futuro
VII. Introdução ao estudo do direito
Notas dos organizadores da presente edição
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PARTE III
ÚLTIMA FASE (PERÍODO DO RECIFE):
CICLO DA ADESÃO AO NEOKANTISMO
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I
DISSERTAÇÃO DE CONCURSO
(1882) A
A concepção da sociologia, e especialmente a
concepção do direito, ainda hoje correntes entre nós, são
um pedaço de metafísica, um resto de mitologia.
Ainda hoje em nossas Faculdades jurísticas pro -
põem-se questões como esta:
“Conforma-se com os princípios da ciência social
a doutrina dos direitos naturais e originários do
homem?
Uma tese assim envolve uma questão preliminar,
que deve ser elucidada antes de qualquer solução
ulterior, e é a seguinte: a ciência social já tem prin-
cípios, já tem verdades assentadas, que determinem a
conformação ou não conformação dos direitos naturais e
originários do homem, com essas mesmas verdades e
princípios estabelecidos?
Dou-me pressa em respondê-la. A ciência social,
como conjunto de idéias adquiridas e sistematizadas
sobre os fenômenos sociais e suas leis, ainda se acha,
por assim dizer, em estado embrionário. Na classi-
ficação das ciências, ela ocupa o último lugar da série
ascendente; mas isto, bem ao invés do que pudera
parecer, indica justamente que essa ciência, até hoje
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pelo menos, não é mais do que um pium desiderium do
espírito científico.
Porquanto, se todas as ciências, antes de tudo,
devem ter um método, e este é o método de observação
e indução, é inegável que a sociologia não satisfaz ainda
a semelhante exigência, isto é, os seus fenômenos ainda
não se prestaram a uma observação regular, e muito
menos tem sido possível, do pouco que se há observado,
induzir leis e chegar ao conhecimento das causas reais,
que geral os fatos, cuja soma constitui a sociedade.
Verdade é que a sociedade, na qualidade de um
organismo de ordem superior, na qualidade, não de uma
antítese, mas de uma continuação da natureza, deve ter a
sua mecânica; mas essa mecânica, para dizer tudo em
uma só palavra, ainda não encontrou o seu Kepler.
É um fato que a sociedade se desenvolve; porém,
as leis desse desenvolvimento não estão descobertas, o
que importa dizer que a ciência social existe ainda
apenas como uma aspiração, e, em tais condições, não
tem, não pode ter princípios seus, princípios próprios,
com os quais possam conformar-se os direitos, quais-
quer direitos do homem.
Em outros termos, a sociologia não se acha no
caso de bitolar pelos seus dados, pelo enunciado dos
seus problemas, os conceitos de outra qualquer ciência.
Não se diga que a ciência social é um gênero, que
abrange em si diversas espécies, algumas das quais já
têm atingido um grau de desenvolvimento capaz de
conferir-lhes o poder de adaptar aos seus os velhos
conceitos científicos; e não se diga, porque o mesmo
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exemplo da economia política, que se co nsidera muito
adiantada, em vez de infirmar, antes confirma o meu
asserto.
Com todos os seus progressos, reais ou pre-
sumidos, a economia política ainda discute sobre as suas
idéias fundamentais.
As noções de valor, capital, trabalho mesmo, não
se acham definitivamente assentadas.
O grande fenômeno do movimento econômico, ou
do desenvolvimento da riqueza, não achou nem sequer
ainda uma fórmula, que o represente.
A ligeireza desse movimento, que ao contrário do
que se dá no mundo físico, onde a ligeireza é igual à
“força dividida pela massa”, é igual à “massa dividida
pela força”, constitui ainda uma questão ardente: esta
força, que serve de denominador da fração, é o capital
ou o trabalho?
É lis sub judice!...
Quando falo de ciência social, só tenho em vist a
uma tal, que se baseia nos dados comuns a todas as
ciências de observação.
Quanto, porém, a uma velha ciência da sociedade,
a esse pedaço, repito, de metafísica e mitologia, que não
pode hoje fazer as delícias de espíritos sérios, eu a
considero fora do círculo das minhas meditações.
O célebre David Hume disse uma vez: “Quando
entrardes em uma biblioteca e pegardes de qualquer
livro, perguntai primeiro: este livro trata de números?
Este livro trata de fatos observados, e de leis
induzidas?
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Se a isto vos responderem negativamente, então
queimai o livro, porque não pode conter senão rabulices
e sofisticarias”.
É o caso com a decrépita metafísica social.
Entretanto, e pondo termo à questão preliminar, o
que aí fica dito a respeito da sociologia embrionária, da
sociologia em via de formação, não envolve a idéia de
que a segunda parte da tese seja incompatível com a
primeira.
Pelo contrário.
Dados os princípios da ciência social, como ela
existe, como ela se acha, é conformável com esses
princípios a doutrina dos direitos naturais e originários
do homem?
Quando mesmo tais princípios não sejam mais do
que hipóteses, conforma-se com estas hipóteses a
referida doutrina?
Eis o ponto elucidável.
A teoria dos direitos naturais e originários
pertence a uma época já um pouco distante de nós.
A concepção de um direito superior e anterior à
sociedade, é uma extravagância da razão humana, que
não pode mais justificar-se.
O homem é um ser histórico, o que vale dizer,
que ele é um ser que se desenvolve.
A idéia de um direito natural e originário do
homem envolve a de um direito universal e permanente,
a de um direito, quero dizer, que não está sujeito a
relatividades, em no espaço, nem no tempo.
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Um direito universal é um direito que existe para
todos os povos; um direito permanente é um direito
imóvel, um direito que não se desenvolve; mas de
acordo com as noções correntes da própria sociologia,
que se forma, tudo está subordinado à lei do desen-
volvimento, da qual não escapa o direito mesmo.
É concludente, portanto, que a teoria dos direitos
naturais não se harmoniza com a ciência social.
“Um direito universal, diz R. von Jhering (Der
Zweck im Recht), um direito de todos os povos, está no
mesmo pé que uma receita universal, uma receita para
todos os doentes”.
A etnologia nos mostra que as diferenciações que
produzem as raças, trazem diferenças nos costumes, nas
leis, nas instituições dessas mesmas raças, e a história
confirma essa asserção.
A universalidade do direito é simplesmente uma
frase.
Mas objetar-se-me-á: - existem certos direitos,
que se têm feito valer em todos os tempos e em todos os
lugares, até onde pode chegar a observação direta e
indireta; não serão eles originários? Não são eles
naturais?
Não hesito, mesmo assim, em responder
negativamente.
A expressão direito natural valeu por muito
tempo, e ainda hoje vale como antitética da expressão
direito positivo. Admitir um direito natural é admitir
que a positividade não é o característico de todo o
direito.
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Mas eu penso com George Meyer (Das Studium
des oeffentlchen Rechts in Deutschland) que, se há uma
verdade, digna de ser geralmente aceita e reconhecida, é
a da positividade de todo e qualquer direito.
Desde que a idéia do direito entrou a idéia da
luta, desde que o direito nos aparece, não mais como um
presente de céu, porém, como um resultado de combate,
como uma conquista, caiu por terra a intuição de um
direito natural.
Bem como as artes, bem como as ciências, o
direito é um produto da cultura humana; fora desta, em
qualquer grau que ela seja, nenhum direito, nenhuma
disciplina das forças sociais.
Os chamados direitos naturais e originários, como
o direito à vida, à liberdade e poucos outros, nunca
existiram fora da sociedade; foi esta quem os instituiu e
consagrou.
Parece absurdo, eu sei, exprimir -me assim; mas
não é tal.
O direito que foi mui bem definido pelo ilustre R.
von Jhering como um complexo de condições exis -
tenciais da sociedade, asseguradas por um poder
público, o direito, repito, nasceu no dia em que nasceu a
mesma sociedade.
É uma velha ilusão esta que ainda leva muitos
espíritos a abandonarem os ensinos da experiência, os
testemunhos da história, e continuarem a sonhar com
direitos preexistentes aos primeiros ensaios de orga-
nização social.
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Uma das melhores provas de que a concepção de
um tal direito é simplesmente o resultado do espírito de
uma época, nós achamo-la na consideração seguinte: o
direito natural dos tempos modernos é inteiramente
diverso do jus naturale dos romanos; quem nos pode
garantir que para o futuro o conceito de um direito
natural não será tão diferente do hodierno, quanto este é
diverso do romano?
Falemos ainda mais franco: o direito natural
moderno com o seu apriorismo, com suas pretensões de
filho único da razão humana, é uma criação da Holanda
no século XVII.
Mas é digno de nota: o célebre Grotius, que abriu
caminho a esse preconceito científico, além de outros
escritos, consagrou também o seu Mare liberum à
exposição da nova idéia.
Entretanto, essa mesma obra, cheia de apelos à
razão, tem por subtítulo as seguintes palavras, que d ão a
medida do grande conceito: “Sive de jure, quod Batavis
competit ad indiana commercia...”
Bom direito natural!
Resumamos e concluamos.
Qualquer que seja o estado da ciência social, ou
os seus princípios sejam realmente tais, ou somente
pressupostos de uma ciência que se levanta, a verdade é
que a doutrina dos direitos naturais e originários não se
conforma com aqueles princípios.
E digo mais: a teoria de semelhantes direitos não
é somente inarmonizável com os referidos pressupostos,
mas até sucede que a sua permanência é um obstáculo
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ao desenvolvimento da sociologia. Platão disse: não há
ciência do que passa; a moderna teoria da evolução
inverteu a proposição e redargüiu ousada: só há ciência
do que passa, porque a história só se ocupa do que
passa, e todas as ciências caminham para tornar-se
preponderantemente históricas.
Não me é estranho que a tese acadêmica tem um
modo, já consagrado, de ser resolvida; porém, eu tenho
também de respeitar as minhas próprias convicções.
Não há direitos naturais e originários.
O que nós hoje chamamos direito é uma
transformação da força, que limitou-se, e continua a
limitar-se, no interesse da sociedade. A idéia de direitos
originários arrasta, como associado lógico, a de direitos
derivados. São categorias, que já não têm importância
científica.
Os direitos, como tais, quer como condições de
existência, quer como condições evolucionais da vida
social, são da mesma natureza, e são-no justamente,
porque saem da mesma fonte; esta fonte é a sociedade.
E seja-me permitido repet ir agora o que já tive
ocasião de exprimir de outra vez:
Em nome da religião, disse o sublime gnosta,
autor do quarto evangelho: no princípio era a palavra ( in
principio erat verbum); em nome da poesia, disse
Goethe: no princípio era o ato ( im Anfang war die That);
em nome das ciências naturais, disse Carus Sterne: No
princípio era o carbono ( im Anfang war der
Kohlenstoff); em nome da filosofia, em nome da
intuição monística do mundo, quero eu dizer: no
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princípio era a força, e a força estava junto ao homem, e
o homem era a força.
Desta força conservada e desenvolvida, é que
tudo tem-se produzido, inclusive o próprio direito, que
em última análise não é um produto natural, mas um
produto cultural, uma obra do homem mesmo.
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II
NOTAS A LÁPIS SOBRE A EVOLUÇÃO
EMOCIONAL E MENTAL DO HOMEM
(1884) B
Der monistische Gedanke ist allein im Stande, die ewige Gegensaetze, an welchen von jeher die besten Denker sich zerquaelt haben und die sie dann endfich als unloeslich aufgegeben haben, zum Ausgleich zu breingen. Der Kernupunkt dieses Gedankens liegt ebenfalls in der Warnung, Abstractionen nicht fuer Wesenheiten zu halten.(
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Atualmente a palavra evolução é uma espécie de
magia, com que se pretende dissipar todas as dúvidas e
quebrar a força de mais de um problema insolúvel.
Passando do vasto domínio da ciência, onde o
fato ou lei que ela significa, ainda é e será por muito
tempo objeto de sérios estudos, ao domínio, não menos
(*) Somente o pensamento monista tem a possibilidade de
promover um acordo entre as eternas abstrações, com as quais se
angustiaram, desde a antiguidade, os melhores pensadores, para
afinal abandoná-las como insolúveis. O ponto central desse
pensamento consiste na seguinte advertência: não se pode tomar, como essências, meras abstrações. (T. do E.).
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vasto, do diletantismo leviano e incompetente, a evolu-
ção tornou-se, na boca dos literomaníacos, alguma coisa
de semelhante ao que é a palavra liberdade na boca dos
demagogos, ou a palavra amor na boca das cortesãs, isto
é, um termo convencional, um artigo de moda, uma
frase de ocasião.
O resultado é que esse vocábulo tem sido
desviado do seu verdadeiro sentido. Os mistagogos e
gnostas modernos, que o consideram uma espécie de
Logos divino, que lhe tributam um como respeito
religioso, a ponto de escreverem-no com letra inicial
maiúscula, como se sói escrever o nome de Deus – esses
senhores têm assim contribuído para dar um caráter
cabalístico e incompreensível a uma coisa aliás de fácil
compreensão.
Entretanto, é certo que a evolução é a palavra que
move o mundo; e na frase de Rudolf Gottschall, a
palavra que move o mundo, não pode ser misteriosa.
Está passado o tempo dos oráculos.
Já é costume, geralmente aceito, prender a idéia
da evolução ao nome de Darwin. Evolucionismo e
darwinismo soam a muitos ouvidos, como perfeitos
sinônimos. Isto, porém, não é de todo razoável.
A teoria evolucionista surgiu bem antes do
darwinismo. Os dois conceitos precípuos, que entram na
idéia da evolução, os conceitos de transformação e
melhoramento, já eram bem comum de espíritos notá-
veis, anteriores ao grande naturalista inglês.
Se a justiça da história e da crítica científica se
regulasse pelo direito dos lapônios, segundo o qual o
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urno não pertence a quem o mata, mas a quem lhe
descobriu a pista, Darwin ficaria fora de questão na
contenda pela glória. Basta lembrar os nomes de
Geoffroy, Saint-Hileire, Lamarck, Goethe, e até Kant e
Herder, na opinião de Otto Liebmann, para saber, entre
quem então a disputa seria travada(1)
.
Mas o caso aqui é outro. Darwin não criou
decerto a teoria do evolucionismo, porém, concebeu um
novo modo de explicação, tanto mais aceitável, quanto
mais apoiado na riqueza dos fatos observados.
Foi o princípio da seleção natural, por sua vez
explicada pela grande lei da concorrência vital, ou da
chamada luta pela existência, esta bela frase, que
entretanto já tornou-se chapa, mas uma chapa de ouro,
onde se acha para sempre gravado o nome do célebre
autor da Origem das espécies.
Conquanto o darwinismo seja destarte uma nova
forma, a última forma do evolucionismo, todavia pode-
se ainda notar uma ligeira diferença entre ambos. Essa
diferença não se deixa melhor acentuar e aperceber do
que dizendo – que o darwinismo é mais científico, e o
evolucionismo mais filosófico. Bem entendido: sem dar
a esta distinção uma importância capital.
Quando pois afirmo que o evolucionismo é mais
velho que o darwinismo, só me refiro à teoria, à idéia
nele contida, não assim à palavra, que é relativamente
nova, no sentido da geral aplicação hodierna.
Na língua francesa, por exemplo, a primeira
aparição do termo évolutionniste, foi na Revue des deux
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mondes no 1º de janeiro de 1869, segundo sou in-
formado por Carl Sachs.
Não falo da introdução do neologismo na língua
alemã, porque esta pôde bem dispensá-lo; já tinha há
muito tempo o seu Entwicklung, que traduz per-
feitamente todos os fenômenos evolucionais ou
evolucionísticos, de que falam franceses e ingleses,
positivistas e spencerianos.
Importa sobretudo deixar de lado essa –
philosophy of epithets and phrases, como há pouco um
articulista da Edimburg Review qualificou, com toda a
justiça, a filosofia de Spencer. Importa acabar com esse
moderno alexandrinismo, que converte palavras em
outras tantas realidades.
Assim como os devotos de antigo estilo vêem em
todas as coisas, ainda as mais disparatadas, o dedo da
Providência, assim também os evolucionistas descobrem
em tudo o sinete da evolução, ainda que ela realmente
não exista.
Convém reduzir um pouco mais as despesas de
fraseologia. Evolução é desenvolvimento. Se este último
termo não está hoje muito em moda, por não ter o ar de
profundeza e sabedoria, que por si só co nfere aquela
outra expressão, de caráter místico e ocamente sonora, é
uma simples questão de galanteria do demimonde
literário.
Isto, porém, não quer dizer que eu condene de
todo o emprego da palavra. Costumo, e quase que devo
também usar dela, ainda que a meu modo, sobretudo no
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domínio científico, na aplicação das chamadas idéias
darwínicas.
Tenho medo das sentenças, que grandes natu-
ralistas têm lavrado contra a importuna legião dos
darwinistas amadores. Haeckel, por exemplo, já disse
terminantemente: “O que pensaríeis vós de um leigo,
que quisesse dar juízo sobre a teoria das células, ou
sobre a teoria dos vertebrados, sem jamais ter cultivado
a anatomia comparada?!... Pois é o que sucede todos os
dias a respeito da teoria biológica da descendência.
Decidem sobre ela leigos e semicultos, que nada sabem
de botânica, nem de zoologia, nem de anatomia
comparada, nem de histologia, nem de paleontologia,
nem de embriologia”...
E o que sabemos de tudo isto nós outros, homens
do direito, discípulos de Papiniano, leitores do Corpus
Juris e das Ordenações?
Parece-me que nada. Os meus receios não são
infundados.
Schleiden também escreveu o seguinte: “É uma
prova de repugnante grosseria de espírito querer ajuizar
de coisas, sobre que não se tem o mínimo conhecimento;
aconselho pois àqueles que pretendem porventura julgar
das doutrinas darwínicas, se dignem primeiramente de
estudar com toda profundeza (ganz gruendlich) as obras
de Darwin, se não querem correr o perigo de se
tornarem brilhantemente ridículos”.
O perigo é sério, e não se me levará a mal o
desejo de evitá-lo. Com este propósito, aceito do
darwinismo, como verdades relativamente incon-
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testáveis, a idéia da luta, o princípio da herança e da
adaptação, a seleção natural, e em suas mais altas
aplicações, a seleção artística. Tanto me basta.
Dir-se-á talvez que todo o darwinismo está
mesmo contido nessas quatro ou cinco idéias. Nenhuma
dúvida. Mas essas quatro ou cinco idéias abrem caminho
a longos desenvolvimentos, explanações e detalhes que
só os homens competentes podem fazer; e é este
justamente o domínio, onde não me julgo com o direito
de entrar.
À vista da imensa literatura darwinística, posta ao
alcance de qualquer leitor menos inculto, a quem é que
hoje não seria fácil ostentar muita ciência com a ciência
alheia? É verdade – e fui eu mesmo quem já disse – que
nós pensamos, falamos e escrevemos a crédito; mas
tudo tem seus limites, inclusive esta mesma espécie de
crédito intelectual.
“Quem tem observado, diz Émerson, o mundo dos
insetos, as moscas, os mosquitos, os inúmeros parasitas,
e até os jovens mamíferos, deve ter admirado o seu
extraordinário gosto de sugar, que forma a principal
ocupação de sua vida. Quando se entra em uma
biblioteca ou em um gabinete de leitura, vê-se a mesma
ocupação, exercida com o mesmo afinco...”
É exato; porém, há sempre a notar que uma coisa
é sugar a seiva alheia para alimentar-se, haurir alheias
idéias para instruir-se, e outra coisa querer fazer figura
com o dinheiro dos outros, respectivé, com o trabalho
dos Haeckel, dos Huxley, dos Fritz Müller, quando não
sucede receber-se de segunda e terceira mão, re-
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correndo-se a menores grandezas, como os Spencer, os
Le Bom, os Letourneau... et le reste. O parasitismo
literário também é uma causa e um sinal de doença.
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O processo da evolução emocional e mental do
homem é o mesmo processo da civilização, da cultura
humana em geral, encarada pelo seu lado íntimo.
O conhecimento desse processo é sobretudo um
conhecimento histórico.
A evolução emocional e mental constitui, pois,
uma das partes da história evolutiva dos seres orgânicos
e vivos. No domínio das ciências naturais toda a história
evolutiva, segundo Haeckel, divide-se em duas seções: a
ontogenia e a filogenia, conforme se trata do de-
senvolvimento do indivíduo, ou do desenvolv imento do
tronco genealógico.
Assim, a ciência das formas orgânicas ou
morfologia tem uma dupla face: como morfogenia,
ocupa-se do desenvolvimento formal dos indivíduos
orgânicos; como morfofilia, da história genealógica das
formas ou desenvolvimento paleontológico das espécies,
morficamente apreciadas.
Se bem compreendo Haeckel, dou a mim mesmo a
seguinte explicação: a morfogenia estuda, por exemplo,
no homem, como indivíduo, o desenvolvimento das
formas orgânicas, desde o mais ínfimo até o mais alto
estádio da vida embrional; a morfofilia estuda no ho-
mem, como espécie, o desenvolvimento dessas mesmas
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formas, desde aquela, sob a qual deveram manifestar -se
os primeiros esboços da humanidade, até as que hoje se
observam nos graus superiores da evolução morfo lógica,
onde a ciência já encontra na beleza plástica, por
exemplo, de um corpo de mulher, alguma coisa de
disteleológico, ou irregular, muito além do que é preciso
para o fim restrito da propagação da espécie.
Se estes dois ramos da morfologia no dizer do
grande professor de Jena, ainda não chegaram ao grau
de adiantamento, que é para desejar, muito menos
adiantados se acham os dois ramos correspondentes da
fisiogenia, segundo aquele mesmo duplo ponto de vista,
não quanto às formas, porém quanto às funções .
O segundo ramo sobretudo, a fisiofilia ou filo-
genia das atividades vitais, Haeckel considera como
ainda quase não cultivado, se bem que em alguns pontos
já tenha feito progressos notáveis. É o caso com a
filogenia da linguagem, como ela forma atualmente o
alvo principal da lingüística comparada.
Entro aqui em terreno sagrado, e como profano
que sou – para não ver-me obrigado a tirar os meus
sapatos e beijar o chão em que piso – recuo e passo por
fora.
A fisiologia não está na minha alçada. Entretanto
não posso vencer o desejo de fazer umas ligeiras
observações, que não demandam conhecimentos
profissionais.
Referindo-se à fisiofilia em geral, diz Haeckel:
“Que monstruosa extensão nos apresenta este domínio,
ainda tão pouco estudado, quando consideramos que
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qualquer atividade vital, qualquer função fisiológica nos
animais e nas plantas, bem como nos seres humanos,
tem a sua história própria, qualquer delas se há de-
senvolvido historicamente!
Que interessante objeto de indagação oferece, por
exemplo, a filogenia ou mais exatamente a fisiofilia dos
movimentos! Quão atraente e instrutivo se mostra este
problema, só dentro da série dos vertebrados, onde o
andar e porte reto do homem é remontável à locomoção
dos macacos arborícolas, e mais adiante a dos outros
mamíferos e quadrúpedes!
A locomoção destes é por sua vez herdada dos
anfíbios, que ora correm, ora nadam, e que saíram dos
dipneustas e peixes habitantes das águas. Nestes últimos
então o movimento de remo das barbatanas apresentar -
se-á como a forma primitiva, donde proveio a função
locomotriz do homem”.
Não sei se me engano, mas me parece que há
nestas palavras uma genial largueza de vistas, tanto
mais dignas de reflexão, quanto é certo que Haeckel
mesmo não as expõe como dados de uma ciência feita,
porém como plano de “disciplinas científicas do futuro”.
Deixando aos competentes a apreciação detalhada
do valor, que possam ter tais disciplinas, quero aqui
restringir-me a fazer sensível a importância de um
ponto. É o que diz respeito à fisiofilia dos movimentos,
não dentro da série dos vertebrados, mas limitada
unicamente ao desenvolvimento humano, e ainda assim,
no círculo da humanidade histórica.
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A questão é séria. Guilherme His, um dos
adversários de Haeckel, combatendo a lei da herança
progressiva, não hesitou em dizer: “há milênios que o
nosso porte e o nosso andar são os mesmos; desde
séculos, os nossos ascendentes falam sempre a mesma
linguagem, e escrevem a mesma escrita; entretanto
fomos nós obrigados, como são os nossos filhos, a
aprender, cada um por si, estas capacidades”.
Ainda mais: - “há milênios que certos povos
exercem a circuncisão, sem que a parte, sempre de novo
arrancada, tivesse desaparecido pela herança. Diante de
tais experiências não pode medrar a mão cheia de
anedotas, que se têm contado em favor da here-
ditariedade dos atributos individuais adquiridos”.
Para esta expectoração do oráculo, Haeckel
parece ter somente um sorriso de desdém, e limita -se,
em rápidas notas, a invocar os mestres de dança, os
historiadores, filólogos, lingüistas e calígrafos, que
todos dão testemunho contrário às pretensões de His(2)
.
Mas eu creio que ao teimoso antagonista do
professor de Jena poder-se-ia opor, logo no começo do
seu argumento, uma exceção peremptória. Com efeito
ele diz: - “há milênios que o nosso porte e o nosso andar
são os mesmos”... Porém isto será exato? A afirmativa é
difícil, depois de alguma reflexão. Se quer dizer
somente que há milhares de anos a posição e a marcha
do homem é com o corpo em forma vertical – nenhuma
dúvida, pois isso não importa mais do que repetir que há
séculos de séculos o homem é bípede.
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Mas a questão é outra; é saber se este mesmo
verticalismo, característico da humanidade e dos seus
mais próximos parentes, tem ou não passado por varia -
ções e melhoramentos, através dos tempos, melho-
ramentos e variações, que são outros tantos produtos de
herança e adaptação.
Segundo o belo hemistíquio virgiliano – et vera
incessu patuit dea – é de crer que os antigos julgavam
conhecer os deuses, ou pelo menos as deusas, pelo modo
de pisar. Este privilégio divino é hoje, porém, bem
comum da maior parte das mulheres de educação.
Atualmente se distingue, só pelo andar, o homem
das cidades do homem dos campos. A mulher rústica se
caracteriza sobretudo por um certo peso corpóreo; não
possui aquela rapidez de movimentos, que assinala a
moça de fino trato, desde os músculos que lhe des -
cerram os lábios, por ocasião do riso, até as contrações e
expansões ondulosas, que agitam-lhe o corpo, no vórtice
de uma valsa.
Ora, estas diferenças no modo de exercer a
motricidade, que correspondem a outras tantas no grau
de cultura, apreciada em sua totalidade atual, acentuam-
se mais claras, quando as consideramos em relação às
fases sucessivas do desenvolvimento humano.
É inadmissível que há três ou quatro mil anos, a
mulher, esposa ou filha, que brilhava no paço dos
faraós, ainda que fosse a bela salvadora e educadora de
Moisés, tivesse a mesma graça, a mesma consonância de
movimentos orgânicos das que refulgem nos salões
atuais.
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Um progresso, portanto; este progresso não podia
dar-se sem a lei da hereditariedade.
Ainda mais: se o fugitivo instante do abrir e
cerrar dos lábios pudesse ser apreendido e descrito com
exatidão, os poetas que nos houvessem deixado pinturas
da boca ridente das Frines e das Lais, ou das Clódias e
das Lídias, dar-nos-iam talvez o direito de falar hoje de
um sorrir antigo e de um moderno sorrir. A beleza,
como a bondade, é um produto histórico, um resultado
da civilização.
Esta ordem de considerações, em aparência
digressivas, tem uma vantagem: é prevenir o espírito do
leitor contra a facilidade, com que se mete mãos a
resolver certas questões, que agora é que começam a
sair do fundo das conjeturas fantásticas e hipóteses
imaginárias.
Diz Haeckel, como acabamos de ver, que a
fisiofilia ou genealogia das funções, é um ramo de
conhecimento, que mal principia a rebentar. Ora, não há
dúvida que o estudo da atividade emocional e mental do
homem faz parte dessa genealogia, pois que idéias e
sentimentos, em última análise, são funções; por
conseguinte esse estudo participa também do estado de
balbuciência, em que ainda se acha a mesma fisiofilia.
Ninguém há, portanto, a não ser algum enviado
do céu, que já possa fazer a história da emocionalidade
e mentalidade humana – pois toda evolução é histórica –
e isto com o mesmo grau de segurança, com que se
conta a gênese e o desenvolvimento de qualquer artefato
notável dos nossos dias.
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Mais que algumas observações e plausíveis
conjeturas, ainda não é permitido aventurar neste
terreno. A isso me limito.
III
Quando se trata de dar um sentido ao estudo da
evolução emocional e mental do homem, a primeira
dificuldade que surge, é a que resulta da pobreza de
materiais precisos para a construção do edifício
planejado, se não se quer levantar, como os poetas, um
palácio de sonhos e quimeras.
O desenvolvimento humano divide-se em dois
grandes períodos – o pré-histórico e o histórico. Se já
sap imensos os embaraços, com que se tem de lutar no
seguimento da marcha evolutiva das idéias e paixões
humanas, dentro das raias da história – o que não serão
eles além desses limites, onde... alguns crânios e
pedaços de crânios, um par de queixadas e alguns
fragmentos de ossos, como diz Schleiden, são tudo o
que existe para dar testemunho da organização dos
nossos primitivos avoengos?
O autor que acabo de citar, faz a seguinte
comparação, esclarecedora e instrutiva: “Na noite
tenebrosa do interior da montanha, trabalhavam
minadores em perfurar um lado do monte Cênis. Do lado
oposto outros se ocupavam em igual mister. Ambos
sabiam que um dia haviam de encontrar-se, porque o
engenheiro tinha determinado as duas direções.
26
26
De maneira análoga os naturalistas trabalham
através da noite de milênios transatos, divididos em dois
grupos, frente a frente um do outro. Eles sabem também
que um dia hão de encontrar-se, porque a ciência lhes
traçou a direção a seguir.
Ali, parte-se do ponto mais longínquo do passado,
da época dos primeiros seres vivos sobre a terra, e
acompanha-se o desenvolvimento contínuo até a origem
do homem. Aqui, porém, toma-se como ponto de partida
esse mesmo homem, tal qual ele se mostra atualmente, e
segue-se a sua história em sentido regressivo por meio
dos documentos, das tradições, dos monumentos que
resistiram à ação do tempo, enfim, por meio dos sinais
guardados nos últimos leitos da formação geológica.
Se afinal, e de que modo, estes dois grupos de
trabalhadores, no rompimento das espessas sombras do
passado, encontrar-se-ão um com outro, ainda não é
tempo de dizer”(3)
...
Ainda não é tempo de dizer – isto afirma um
prógono; e tanto basta para inutilizar a pretensão dos
epígonos, que já se julgam munidos de todos os dados
necessários para, de uma assentada, absorverem o
estudo do homem e das sociedades, desde as suas
origens mais longínquas até os nossos dias.
Neste número está, entre outros, o sociólogo
francês Gustave Le Bom, cuja obra L’homme et les
societés, semelhante a uma dessas mulheres, que apenas
interessam pelo diminutivo dos pés, visto que o resto é
vulgar, só tem de meritório a table des matières, que é
decerto prometedora e imponente, mas em vão,
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27
completamente em vão. O corpo do livro é quase nulo e
insignificante.
Nos meus anos de curso acadêmico ainda alcancei
a notícia de um fato, que diziam ter-se dado em uma
sabatina.
Certo estudante, respondendo à argüição de um
seu colega, não sei sobre que matéria, entendeu dever
apelar para a história, e disse convicto: - “não precisa ir
muito longe, basta o exemplo de Adão e Eva”; ao que o
lente acudiu: - “e poderia lembrar uma época mais
remota?”
O caso não deixou de produzir impressão cômica,
e foi então objeto de muitos comentários.
Entretanto os tempos mudaram-se, e quem quer
que hoje, lendo a obra de Le Bom, usasse daquela
expressão, não seria digno de riso, pois que o sábio
francês, para estudar o homem e a sociedade, para tratar
do direito, da religião, da moral e da indústria, começou
pelo protoplasma!...
Adão e Eva são de ontem. Os dois grupos de
trabalhadores, de que fala Schleiden, o sociólogo
reuniu-os todos em sua cabeça!
Não se oponha, à visa das minhas simpatias
haeckelianas, que também o autor da Natuerliche
Schoepfungsgeschichte começou de muito longe. Sem
dúvida; mas ele esbarrou no homem; ainda não transpôs
os limites da história natural, para fazer sociologia.
Se entre os alvos, para onde se dirige a
Entwicklungsgeschichte, ele assinala como disciplina do
futuro, uma ciência que ocupar-seá do desenvolvimento
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28
embrional dos troncos, famílias, comunas, Estados, e a
que dá o nome de cormogenia, não é de crer por isso
que já tenha essa ciência como assentada.
Quem proíbe ao moço de hoje, que ainda não tem
filhos, declarar que a sua primeira netinha chamar -se-á
Diotima ou Gnatênio, Terpsícore ou Melpômene? Pois o
caso é semelhante. Por ora, somente o nome.
Voltemos ao centro do assunto. A expressão –
evolução emocional, que é legítima spenceriana podia
ser muito bem, sem quebra de honra, substituída por
esta outra, nossa velha conhecida – desenvolvimento da
sensibilidade – assim como a sua companheira, a
evolução mental, nada também perderia, despido a roupa
de gala e tomando o trajo comum de... desenvolvimento
da inteligência.
Mas fiquem as novas frases, contanto que o seu ar
de novidade não se imponha aos espíritos irrefletidos
como uma conquista ou uma descoberta.
O estudo da emocionalidade e mentalidade do
homem tem duas faces: uma individual e outra es-
pecífica, ou para empregar ainda aqui as expressões de
Haecke, uma ontogenética e outra filogenética.
A evolução ontogenética de ambas ou de qualquer
das duas manifestações da vida, conquanto de muit a
importância no puro domínio da psicologia, como ela
deve ser estudada, e como parece que Condillac já tinha
um certo pressentimento no seu sistema de sensações
transformadas, todavia não é a que mais nos interessa
no domínio da história. Aqui o ponto cap ital da
indagação é a filogenia das emoções e das idéias.
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29
Há um problema muito maior e mais penoso, do
que é para o astrônomo catalogar estrelas na imensidade
do céu – é para o filósofo catalogar fenômenos, que
sucessivamente emergem do fundo da alma, através da
escuridão dos séculos.
A evolução emocional e mental da humanidade
forma uma imensa cadeia, cujo primeiro elo... quem
poderá definir? Conjeturá-lo apenas.
No princípio era o ovo de ouro, dizem as fontes
da sabedoria bramínica. Não há mister de remo ntar tão
alto. O evangelho da filogenia emocional e mental tem
um intróito menos poético e mais modesto.
No princípio... era a fome e o amor. Estes dois
aguilhões da ferocidade animal, que Schiller disse, bem
que com algum exagero, ainda hoje serem os únicos
sustentáculos do edifício do mundo, é de crer que
fossem realmente as forças originárias da cultura, de
toda cultura humana.
Nem se concebe que outras molas pudessem
mover o homem primit ivo, além desses dois ímpetos
psíquicos, redutíveis às duas capitais funções orgânicas
da nutrição e da propagação. Eles formam, por assim
dizer, as raízes da árvore genealógica da vida sensível e
intelectual.
Mas o que há de mais difícil neste assunto, não é
determinar o ponto de partida e o ponto de chegada, o
estado primitivo e o estado atual do desenvolvimento
das paixões e das idéias, das impressões e percepções do
homem. O problemático, o indecifrável talvez, consiste
em acompanhar com o pensamento a direção ascensional
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30
da monstruosa cadeia, cujos anéis se contam po r
milênios.
O problema se complica tanto mais, quanto é
certo que o estudo dessa evolução, em muitos casos, isto
é, em relação a muitas épocas, não seria um estudo de
psicologia, mas de psiquiatria histórica. Nele poderiam
encontrar-se, como diz Moritz Lazarus, o etnólogo, o
historiador e o alienista, com recíproca vantagem.
Ver-se-ia que não raras vezes o processo cultural
não tem sido mais do que um processo de
desalucinação, desde o primeiro esforço para vencer a
pantofobia infantil, que levava o homem a ver por toda
parte espíritos perniciosos, no fuzilar do raio, no silvo
do vento, no ruído das árvores e das águas, até o
trabalho atual de acabamento dos últimos fantasmas da
razão mal-educada.
Aprender é desiludir-se. O sistema de Copérnico
desiludiu o espírito humano de uma vã imagem dos
sentidos. Isto mesmo está de acordo com o fato e
significação da experiência.
Esta fonte de todo saber, a chamada mestra da
vida, é mais negativa do que positiva; ela consiste
menos em adquirir verdadeiras idéias novas, do que em
arredar velhas e falsas idéias. Não é em vão, mas antes
com muito senso, que o homem experimentado costuma
falar das suas desilusões.
Acresce ainda uma circunstância; e é que, não
obstante o longo decurso das idades, grande número de
sentimentos parecem ter ficado estacionários, e de um
modo mais anômalo do que se observa no domínio
31
31
intelectual, onde também o progresso tem sido parcial e
incompleto.
IV
Aí está precisamente o ponto questionável nas
condições atuais da ciência. Já não é o saber se tem
havido e como tem havido evolução emocional e mental.
Se tem havido, é uma questão ociosa: como tem havido,
é uma questão sem resposta. Porquanto não bastam para
resolvê-la, dizer que a sensibilidade e a inte ligência se
têm diferenciado, no correr dos tempos. Nem todo
progresso é uma diferenciação, nem toda dife renciação é
um progresso, já o disse Haeckel.
As sutilezas dialéticas, as distinções capciosas da
escolástica, eram outras tantas diferenciações do pen-
samento; e ninguém com seriedade julgá-las-á um sin-
toma de evolução progressiva.
Dando pois como irrecusável – e não pode deixar
de ser – que a vida mental e emocional dos povos
históricos tem tido uma marcha ascendente, limito -me à
indicação de certos fatos, que podem ilustrar a teoria,
para depois entrar na questão, única admissível no caso
de saber qual das suas formas de atividade vital revela
mais progresso, ou se uma só tem sido a medida do
desenvolvimento de ambas.
Na categoria da evolução emocional compreende-
se também, e não sei se principalmente, o que diz
respeito às sensações, aos fenômenos de sensibilidade
física, segundo a velha tecnologia da escola.
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E é digno de nota: um espírito pouco afeito ao
estudo não achará grande embaraço em compreender que
um sentimento – o amor da pátria, por exemplo – tenha
sido alterado pela ação do tempo; mas esse mesmo
espírito dificilmente compreenderá que uma sensação ou
gruo de sensações não haja mostrado sempre um caráter
idêntico em todas as épocas da história.
Entretanto é certo que a segunda asserção é tão
razoável como a primeira.
Sirvam de prova as sensações da vista.
“Dois terços dos raios enviados pelo sol, diz
Tyndall, não despertam em nossos olhos nenhuma
sensação visual. Os raios aí estão, mas falta o órgão
próprio para transformá-lo em luz”... Terá sido sempre
assim? Parece que não. Há três mil anos, nem esse
mesmo terço era percebido.
Lazarus Geiger, em sua História evolutiva da
língua e da razão humana, foi o primeiro a observar que
o progresso da humanidade tem tido lugar de um modo
quase paralelo à diferenciação das cores. Os gregos do
tempo de Homero não conheciam o azul. Até mesmo
Demócrito e os pitagoreus só sabiam de quatro cores:
branca, preta, vermelha e amarela.
A cor que hoje nos delicia na contemplação do
céu e do mar, a cor que hoje racionalmente associa-se à
idéia de ns belos olhos de moça loira, foi portanto uma
das últimas, senão a última, adicionada pela retina do
homem ao espectro solar.
Daí vem talvez que certas almas, que chamarei
modernas, poeticamente delicadas e delicadamente
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sensíveis, são justamente aquelas, que mais gostam do
azul.
Não dissimulo que, à primeira vista, a coisa é
difícil de admitir; porém, depois de alguma reflexão, a
dificuldade diminui e tende a desaparecer. As línguas
por si sós oferecem um meio de verificação.
O black alemão e o black inglês têm raiz comum
no sânscrito. O caeruleus latino, que passou a significar
azul, pois é neste sentido que os poetas falam de
cerúleas ondas e cerúleos céus, nada encerra em sua
origem, que dê idéia de cor. A raiz sânscrita quer dizer
cavus, cavado, côncavo.
A mesma ordem de considerações se pode fazer a
respeito dos sons. A evolução das sensações auditivas é
evidente. A história da música é em grande parte a
história dessa mesma evolução.
Desde a lira do grego Timóteo, que aliás foi um
revolucionário em aumentar-lhe o número das cordas, e
mereceu ser acusado por efeminar os ânimos com as
suas melodias; desde a lira do Timóteo até o piano de
Liszt, há um progresso estupendo, mas também, afinal,
o que há progredido – é somente o ouvido do homem.
É de crer que os antigos, usando de menor
número de notas, não iam, ainda assim, além do
diatonismo; o cromatismo lhes era desconhecido. A
verificação direta é impossível; mas podemos recorrer a
uma indireta.
Quando se presta séria atenção à estrutura
musical das canções populares, produtos de espíritos
inteiramente estranhos à cultura hodierna, observa-se
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34
que os componistas anônimos de tais canções fazem
toda a sua despesa com quatro ou cinco notas; as
subidas e descidas da voz são sempre diatônicas. Não há
razão de supor alguma coisa de semelhante na música da
antiguidade? Eu o creio.
Atualmente, o cromatismo já vai ficando um
pouco atrás do desenvolvimento acústico. O ouvido
bem-educado já leva mais adiante o fracionamento da
escala, concebendo e admitindo intervalos entre os
semitons.
A polifonia moderna não pode produzir em
ouvidos comuns senão simplesmente a impressão do
barulho; ao passo que órgãos melhor desenvolvidos
estão no caso de seguir e apreciar, no rebuliço de uma
grande orquestra, sem perder a impressão do conjunto, a
sonoridade isolada de três e mais instrumentos.
Esta marcha evolucional das sensações
auriculares, que se diferenciam pelo andar dos tempos,
parece também obedecer à influência das raças, nos
limites em que tal influência pode dar-se.
Uma jovem polaca, Dra. Susana Rubinstein, em
sua tese inaugural – Die sensoriellen und Sensitiven
sinne(*), faz a este respeito uma observação curiosa. Ela
diz que a diversidade da vida espiritual e psíquica da
cada povo repousa em grande parte sobre o predomínio
de regiões e grupos determinados de sensações.
Assim, a raça ariana e a raça semítica mantêm-se
entre si, como o olho e o ouvido. Dão disso testemunho
(*) O sentido sensorial e sensitivo. (T. do E.).
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35
o senso do plástico, predominante na primeira, e o
íntimo recolhimento da vida sentimental, que pre-
pondera na segunda. A aptitude especial dos judeus para
a música é ainda uma prova bem significativa.
E quem sabe, podia perguntar à minha bela
doutora – quem sabe, se a esta mesma preponderância
não se prende o fato da exaltação religiosa, do ardente
fideísmo judeu, em perfeita harmonia com o princípio
paulínico – fides ex auditu – (A fé vem do ouvido?) A
pergunta não seria sem propósito.
O tema é inesgotável, e não tenho a pretensão de
absorvê-lo. Pelo que toca às outras sensações, a
observação atenciosa chega aos mesmos resultados,
ainda que se note mais ou menos morosidade no
desenvolvimento deste ou daquele sentido.
Assim se estabelecem, de indivíduo a indivíduo,
diferenças de grau sensitivo, bem dignas de estudo.
Somente uma rápida indicação a respeito. Não há
quem não ouça falar e não fale, por sua vez, da
relatividade dos gostos. Nesta frase existe, a meu ver,
um largo assunto de indagação filosófica. Relatividade
de gostos quer dizer relatividade de sensações e
sentimentos; mas esta se reduz a uma relatividade do
tempo, que é a unidade de todas as antíteses da vida
sensível, é o único material do sentimento. Relatividade
de gostos significa, em última instância, diferença de
tempo, diferença de desenvolvimento emocional.
Eu gosto disto, ou daquilo, de que aliás tu não
gostas, são expressões que querem dizer: nós nos
achamos em períodos diversos da evolução sensível.
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A divergência de dois espíritos sobre a beleza de
um objeto quase sempre pode ser traduzida nas
seguintes proposições: eu ainda sinto, como sentiram os
nossos mais remotos antepassados, e tu já sentes, como
talvez hão de sentir os nossos mais longínquos pósteros.
A humanidade é como o céu, cujo espetáculo,
segundo a frase de A. von Humboldt – Ungleichzeitiges
darbietet – isto é, apresenta ao mesmo tempo diferentes
pontos do tempo.
Nós vemos o sol, como e onde porventura ele se
achava a 8 minutos; vemos a estrela alfa da lira, como e
onde ela esteve há 12 anos; as mais distantes nebulosas
mostram-se alguma coisa que existiu há 20 mil séculos.
Muito quadro interessante, que hoje contemplamos no
céu da noite, desapareceu talvez bem antes dos tempos
da primeira dinastia egípcia.
A humanidade culta, em qualquer instante de sua
atual existência, também apresenta esse – Ungleichzei-
tiges – se não em sua totalidade, pois é impossível
observá-la, ao menos nos diversos grupos, que a
compõem.
As diferentes fases do desenvolvimento da
espécie, desde a época paleolítica até o presente,
coexistem no fundo da vida emocional de qualquer
moderna sociedade.
Assim como ainda há indivíduos civilizados, que
pela sua organização podem oferecer assunto para uma
página de morfologia pré-histórica, assim também há
outros, no seio mesmo da maior cultura, que pelo lado
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íntimo, sobretudo pelo lado sensível, fornecem matéria à
psicologia das épocas de pedra.
Todo mundo sabe de cor a velha máxima: os
grandes homens são contemporâneos dos séculos fu -
turos, por seus pensamentos. Bem modernos glosar e
dizer que os pequenos homens são contemporâneos dos
séculos passados, por seus sentimentos.
Há ainda quem opine que a vida sentimental da
humanidade não tem sido progressiva. Conquanto,
porém, esta opinião possa mencionar em seu favor a
autoridade de um Buckle, todavia ela não merece que se
lhe reste atenção. Não conheço modo de ver que vá mais
de encontro aos fatos.
Indubitavelmente uma análise ligeira de certos
sentimentos e paixões leva a crer que não tem havido
progresso. Há mesmo algumas emoções, das quais não
só se pode dizer que o progresso é nulo, como até que o
regresso é bem sensível.
A emoção religiosa, a fé que fazia aos santos,
está nesse caso. O próprio patriotismo de hoje, medido
pela bitola histórica de gregos e romanos, é uma
degeneração.
Mas a questão me parece ser outra. O
enfraquecimento dessas paixões, que é para elas,
consideradas em si mesmas, um defeito, uma pobreza,
não será para a vida total uma vantagem, um passo de
avançada? Se nos dão é lícito afirmar, a simples dúvida
basta para obstar que se assente qualquer teoria em
contrário.
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38
Quanto à fixidade e permanência aparente de
certos sentimentos, a ilusão é mais fácil de dissipar. E
previno logo que se me acuse de contraditório, por haver
dito que há espíritos que pertencem, por seu modo de
sentir, a velhas e longínquas eras. Importa não confundir
o estado atual deste ou daquele indivíduo com o estado
da humanidade, contemplada em suas alturas.
Com efeito, qual é o sentimento, que na realidade
tenha permanecido completamente idêntico, indife-
renciado, inevolúvel? Nenhum. Quando mesmo fosse
exato, como muitos ainda crêem, que nos monumentos e
na literatura dos povos espelha-se toda a sua vida
psíquica, e pudéssemos aceitar, como outras tantas
pinturas d’après nature, o sem-número de quadros, mais
ou menos idealizados, de antigos tempos, ainda assim as
diferenças entre o outrora e o hoje seriam assaz
visíveis.
Os exemplos são numerosos, mas limito -me a um
só. Ainda é questão indecisa saber se os antigos,
principalmente os romanos, tiveram aquilo que hoje
chamamos o senso da natureza, o gosto e compreensão
das belezas naturais.
Sem aderir de todo à opinião negativa, re-
presentada por Schiller, entendo também que não é
aceitável a opinião oposta, na extensão que lhe dá, entre
outros, Alfredo Biese.
A alma da poesia antiga era o senso mítico, pelo
qual a natureza se povoara de seres imaginários; o que
repousa no pressuposto de que, sem esses seres, a
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39
natureza não tinha encantos, não podia, por si só, nutrir
e engrandecer o espírito poético.
Alguns versos de Lucrécio, Catulo e Virgílio,
provam tanto que a intuição dos últimos tempos da
república e princípio do império era naturalística, como
pode porventura um clássico dos nossos dias, que ainda
ache prazer em Júpiter e seu séquito, provar que a
intuição presente continua a ser mítica e politéica. A
soma disto é que o sentimento poético desenvolveu -se e
alterou-se.
Na gama das emoções, quero crer que o amor é a
nota mais agradável. Não terá ele também cedido à lei
do progresso? Sem dúvida alguma. O amor de outrora
não era o amor atual.
Nem isto está em contradição com idéias já por
mim enunciadas. Eu disse uma vez que há um amor
superior a todas as diferenciações de raças e costumes –
é o amor-morbus, o amor que invade o homem, sem
pedir licença, à maneira de cólera ou de febre, como
opinava Iwan Turguenieff.C
Mas esse amor, quando hoje aparece, por efeito
mesmo da sua raridade, já tem direito a ser classificado
entre os casos de atavismo.
Em geral ao amor hodierno falta o momento
trágico, produzido pelo conflito de uma paixão
indomável com a idéia da impossibilidade de qualquer
união sexual, ainda que esta se reduza ao mínimo de um
beijo. Com o nivelamento das classes sociais, realizado
ou mesmo só pretendido, a democracia matou a
primit iva poesia do amor.D
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40
V
A propósito da evolução emocional e mental,
importa ainda não esquecer que os dois desenvol-
vimentos não se dão separadamente.
Qualquer que seja o grau de inferioridade em que
o homem se ache na esfera evolutiva, ele não pode
emocionar-se, sem que esta emoção seja acompanhada,
consciente ou inconscientemente, de uma qualquer
atividade mental.A primeira forma do homem pré -
histórico, o homem da época de pedra talhada, já tinha
dado um primeiro passo na evolução intelectual, desde
que pôde imaginar um modo de aumentar a própria
força, armando-se de um instrumento, por ele mesmo
afeiçoado e acomodado às necessidades da vida.
Vai decerto uma imensa distância entre a mão que
talhava pedras, como armas, como utensílios, e a mão
que hoje cinzela o mármore, para fazer objetos de luxo –
mais do que isso, para fazer objetos de pura
contemplação estética.
Mas releva observar que qualquer escultor dos
nossos dias, ainda mesmo que ele traga o nome de
Canova, é um herdeiro do homem primitivo, desse
homem que já sabia dar à pedra, por assim dizer, uma
feição humana, adaptando-a de qualquer modo a lhe
prestar serviços na luta pela existência.
Aqui vejo que há um fundo de verdade histórica
nestas palavras, que uma vez escrevi: “antes que a arte
apareça sob a forma de um passatempo, de um brinco do
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espírito, ela deve aparecer sob a forma de uma atividade
prática, ela deve entrar na categoria do trabalho”.É
altamente provável que os Fídias e os Praxíteles, os
gênios da escultura em geral, que animam o mármore
com o gracioso espírito da beleza, são descendentes
diretos do selvagem das cavernas, que animava o sílex
com o grosseiro espírito da utilidade; até porque é de
supor que lá mesmo, na primeira fase do período pré-
histórico, a adaptação da pedra ao serviço humano não
foi obra de todos ao mesmo tempo, mas descoberta de
gênio.
Não suponhamos, portanto, que a evolução
emocional encerre alguma coisa de mais antigo, de mais
primit ivo, que a evolução mental. Esta não é uma fase
sucessiva daquela, mas apenas uma outra forma do
desenvolvimento humano.
O que há, porém de mais seriamente ques-
tionável, está em saber, ou procurar saber, qual das duas
evoluções tem sido mais rápida – o que quer dizer, qual
dos dois lados da psique humana: sensível e intelectual,
tem passado por mais transformações, ou se ambas se
acham no mesmo grau evolucional.
Que esta segunda questão só pode ser resolvida
de modo negativo, os fatos o atestam. O caráter da
evolução emocional em relação à mental é quase sempre
anacrônico, só raras vezes e excepcionalmente,
sincrônico.
As idéias de um indivíduo podem ter a última
feição, a frescura da atualidade, e todavia as suas
emoções quase sempre regularem-se pelo ritmo de uma
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42
época anterior. O coração é um relógio, que de ordinário
anda atrasado.
Todo mundo conhece, entre outros, o fato de
homens, que têm idéias assentadas sobre a não-exis-
tência de Deus, praticarem atos de veneração e respeito,
que revelam a crença em contrário.
A um tal fenômeno poder-se-ia chamar –
predomínio da filogênese sobre a ontogênese, na esfera
emocional, como também o ateísmo, a negação de Deus,
é uma espécie de reação da ontogênese sobre a
filogênese, na esfera intelectual.
É aqui ocasião de tornar mais claro o sentido das
palavras filogênese e ontogênese, dando a fórmula da
lei, que Haeckel diz ser a lei suprema da bio logia.
Ele mesmo enunciou-a em latim, nos seguintes
termos: ontogenesis est summarium phylogeneseos,
tanto integrius, quanto hereditae palingenesis conser-
vatur, tanto minus integrum, quanto adaptatione
cenogenesis introducitur.
Eis aqui: a ontogênese, isto é, o desenvolvimento
do indivíduo, é uma recapitulação da filogênese, quero
dizer, o desenvolvimento da série, geração, tronco,
povo, raça ou espécie, tanto mais completa, quanto pela
herança conserva-se a palingênese, isto é, o renas-
cimento, e tanto menos completa, quanto pela adaptação
se introduz a cenogênese, quero dizer, o desvio ou
falseamento da evolução.
Expliquemo-nos agora. Um homem herda de seus
pais uma crença feita sobre Deus e as coisas de além-
túmulo. Esta crença divide-se em duas partes: uma parte
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mental, que se compõe de juízos, raciocínios, afir -
mações ou negações categóricas, e outra emocional, que
se compõe de aspirações e estremecimentos, de dores e
prazeres, de esperanças do céu e terrores do inferno.
Sucede, porém, que esse homem, pelos estudos
que faz, pelos livros que lê, pelo ambiente social em que
se move, adquire uma intuição diversa da intuição
herdada, e chega a negar aquilo, que seus pais, que seus
avós afirmavam. Aí temos a ontogênese, reagindo contra
a filogênese.
Mas como, por outro lado, sentimentos novos não
se bebem nos livros, nem o meio é capaz de transformá-
los de repente, daí resulta uma certa desproporção entre
o mental e o emocional, ou o que chamei predomínio da
filogênese sobre a ontogênese, e o pensador libérrimo
não está livre de curvar o joelho, como qualquer dos
seus avoengos, aos idola tribus da simpleza popular.
Só isto é que bem explica a chocante anomalia,
pela qual materialistas convictos sentem um alafrio
horripilante, ao entrarem de noite numa casa escura e
solitária; e nós outros, que lemos Darwin, que nos
lisonjeamos de um pouco de cultura filosófica, não
estamos muito longe de espavorir -nos ainda por almas
do outro mundo e quejandas visões fantásticas.
É esta mesma falta de sincronismo ou homo-
cronismo dos dois desenvolvimentos, que pode dar a
razão de muito fenômeno esquisito, para o qual não se
acha melhor explicação, do que um apelo à hipocrisia, à
simulação e ao cálculo.
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Semelhantes motivos dão a razão de alguma
coisa, porém não dão razão de tudo.
Assim, no mundo político, não é raro ver liberais
e até republicanos, qualidades estas que significam um
estado mental determinado, praticarem ações dignas do
mais atrasado conservador e monarquista.
No mundo social, democratas de idéias firmes
não duvidam tomar de repente uma atitude respeitosa e
submissa em presença do aristocrata.
No mundo religioso, homens instruídos vão aos
templos, munidos de saltérios e livros de orações; o que
fez um daí Carl Vogt perguntar a si mesmo, para que
fim, diante de um tal espetáculo, gastava mais as suas
forças em escrever e pensar!...
Mas a razão é uma só: a diferença de tempo, a
falta de homocronismo entre as duas evoluções.
O que se observa nos indivíduos, dá-se também
nos povos, quer considerados em si mesmos, quer
comparados uns com outros.
Entre as nações cultas existe na hora presente
uma relação sincrônica, no domínio das idéias, não
assim porém no domínio dos sentimentos, onde cada
uma delas ocupa uma posição diferente.
Há quem conteste que nos povos, considerados
em si mesmos, nos diversos estádios de sua história, os
dois desenvolvimento deixem de ser homócronos.
Mas isto só pode sustentar-se ou por capricho, ou
por ignorância. Por capricho, se a tese, não obstante ser
errônea, todavia presta auxílio a qualquer s istema de
especulação sociológica. Por ignorância, se realmente
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crê-se afirmar uma verdade de fato, quando os fatos
estão a dar-lhe o mais solene desmentido.
Quem estuda, por exemplo, a história do século
XVI na Itália, vê justamente a maior desarmonia ent re o
sentir e o pensar.
Como diz Settembrini, os sacerdotes, os homens
de Estado, os escritores, poetas, artistas, enfim todos os
homens daquele tempo, não eram mais que inteligências,
sem paixões grandes, sem sentimento religioso e o que é
pior, sem moral; poristo viam, mas não sentiam os males
da pátria; viam mas não aborreciam a corrupção
religiosa, antes chamavam-na esplendideza: poristo
também fizeram na arte obras inimitáveis pelo engenho,
mas sem afeto.
E que homocronismo poder-se-ia realmente
conceber entre o fulgor intelectual da corte de um Leão
X, ou mesmo de um Luís XIV, e os baixos sentimentos,
que lhe ferviam no íntimo?
Se a respeito de todos os homens, sobre quem se
emprega a frase comum – belo talento, porém mau
caráter – nas raras ocasiões em que esta frase é ver-
dadeira, se pudesse fazer um estudo genético, profundo
e detalhado, ver-se-ia que tal desproporcionalidade é
redutível a uma desarmonia entre a herança e a
adaptação, isto é, a uma simples diferença cronológica.
Nesses casos o belo talento é sempre um parvenu
em relação ao mau caráter. Verdade, quanto aos in-
divíduos, que também pode ser aplicada às nações.
A nossa questão se reduz enfim a esta fórmula
geral: na ontogênese dos indivíduos e dos povos, qual
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das duas evoluções ressente-se mais da influência da
herança, qual das duas abre mais fácil caminho à
introdução da cenogênese?
Parece-me incontestável que a evolução emo -
cional é mais lenta, mais sujeita à conservação
palingenética. Daí, portanto, um primeiro corolário: as
atavizações são menos raras na ordem dos sentimentos
do que na das idéias.
É mais fácil um homem bruto do começo do
século passado contar hoje descendentes de gênio, do
que um ladrão da mesma época ter atualmente o seu
nome ligado a uma descendência honrada.
Costumamos chamar os mais velhos nossos
maiores; os que hão de vir depois de nós, serão os
nossos melhores. Isto pode ser afirmado em qualquer
momento da história. Porém esse melhoramento é
sempre mais largo, mais compreensivo pelo lado
intelectual.
Não se me objete com o que disse anteriormente a
respeito do amor. Ali travava-se de comparar um sen-
timento de hoje com o mesmo sentimento de outrora;
aqui, porém, a confrontação é entre fenômenos dife -
rentes. Se, entretanto, quisermos sujeitar o amor a igual
apreciação, teremos igual resultado.
Como em todos os tempos da cultura humana, o
amor em nossos dias também tem um ideal; mas
também, como em todos os tempos, está muito aquém
desse ideal, seja ele qual for, cavalheiresco ou român-
tico, filosófico ou naturalíst ico.
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A paixão é sempre diversa dos últimos moldes da
idéia.
É possível que um dia se acabe de todo com a
metafísica da cabeça; mas me parece que nunca poder -
se-á extinguir de todo a metafísica do coração... Sim!...
O coração também é um metafísico: Estremece por formas invisíveis, Anda a sonhar uns mundos encantados. E a querer umas coisas impossíveis.
Tudo isto conseqüência da maior lentidão do
desenvolvimento emocional. Por isto mesmo, e porque o
mecanismo social não repousa, como queria A. Comte,
sobre opiniões, mas sobre sentimentos, o progresso das
sociedades é igualmente lento; ele fica sempre atrás de
todos os programas e corpos de doutrina, que pretendem
reformá-las.E
NOTAS DO AUTOR
(1) Philosophische Monatshefte – IX Band. pág. 442.
(2) Quanto à circuncisão, Haeckel confessa que a influência da herança não se há sentir entre todos os povos, que a praticam, há milhares de anos. Porém aqui levanta-se uma objeção mais embaraçosa do que a proveniente da incorrigibilidade do prosaico tegumento; é a que provém da rebeldia da mais interessante das membranas. Com receio de ofender ouvidos castos, exprimo o meu pensamento na própria língua de Haeckel: Seit Jahrtausenden schmuecken sich die Maedchen mit derselben jungfraeulichen Blume, die
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der rohe Mann immer wieder entblaetert: und doch ist das Jungfern – Haeutchen im Lauf der Zeit nicht nur nicht verschwunden, sondern vielmehr, wie es scheint, je hoeher sich die Menschheit entwickett hat, desto mehr haertlich und widerstrebend geworden.(*) (*) Desde milhares de anos, as moças se adornam com as mesmas flores virginais que os homens grosseiros desfolham sempre de novo. E assim é a virgindade – membraninha que no correr do tempo nunca desaparece, porém, antes, quanto mais alto evolui a humanidade, mais dura e resistente se torna. (T. do E.). (3) Unsere Zeit. Neue Folge. Fuenfter Jahrgang. Erste Haelfte, pág. 615.
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III
RELATIVIDADE DE TODO CONHECIMENTO
(1885) F
A primeira proposição do programa pretende
estabelecer como verdade a relatividade dos conhe-
cimentos humanos.
Parece à primeira vista que nenhuma dúvida se
pode levantar sobre tal ponto. Desacreditada a
pretensiosa ontologia metafísica e quase reduzida a
proporções de velha mitologia, que tem perdido o seu
primit ivo encanto poético, é explicável que a idéia da
relatividade de todo o saber humano viesse substituir o
antigo prejuízo dos princípios absolutos e absolutas
verdades.
Mas é mister que nos entendamos e tratemos logo
de prevenir-nos contra um grande erro, que pode
resultar de uma má interpretação do programa.
Ele começa por dizer que os conhecimentos
humanos são relativos. Se com isto quis apenas signi-
ficar que os nossos conhecimentos estão da dependência
de certas condições, sem cujo preenchimento eles não
podem ser completos, e porque tais condições nunca
serão perfeitamente preenchidas, também eles nunca
estarão no caso de se chamarem perfeitos, se esta é a
idéia visada pelo programa, nenhuma contestação.
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Não é crível, porém, que a isto se quisesse
restringir a proposição mencionada.
A idéia da relatividade de todo o saber não é uma
idéia nova; pelo contrário é quase tão velha como a
filosofia. Entretanto, neste século, e mesmo em nossos
dias, ela parece ter tomado um caráter novo. Pelo menos
é certo que filósofos notáveis não se têm designado de
consumir, por amor dela, muito papel e muita tinta,
posto que nenhum proveito sensível nos tenha advindo
de semelhante gasto.
É na Inglaterra principalmente, que, nos últimos
tempos, a teoria da relatividade do saber tem sido
professada e discutida com particular predileção. Quem
primeiro ali apresentou-a com uma certa insistência
(refiro-me aos tempos atuais) foi Hamilton, que aliás
não teve coragem de sustentá-la em todas as suas
conseqüências.
Na obra de Stuart Mill sobre a filosofia de
Hamilton há dois capítulos (I e II) consagrados à
elucidação desta doutrina.
Sobretudo interessante é o capítulo II, porque
nele vêm expostas concisa e claramente todas as
diversas nuanças da teoria em questão.
Porém é de supor que este distinto pensador, a
despeito de sua grande sagacidade, deixou despercebido
um ponto essencial na afirmação da relatividade dos
nossos conhecimentos.
Mill opina que essa relatividade consiste no fato
de que nós só podemos conhecer as nossas próprias
afecções e nossos estados íntimos. Por isso, para ele, os
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extremos relativistas são aqueles que afirmam que nós
não só nada conhecemos além dos nossos próprios
estados, como também que nada mais temos, nada mais
há a conhecer.
Mas isto envolve um engano. Com a relatividade
do saber admite-se um elemento de inverdade, de
imperfeita validade objetiva.
Afirmar que os nossos conhecimentos são
relativos só tem sentido sob o pressuposto de que as
coisas em si não são tais, quais são para nós, e que só
podemo-las conhecer tais quais elas nos aparecem.
Negando-se desta distinção, todo o saber é
decerto relativo a nós, mas esta relatividade não implica
então nenhuma inverdade dos conhecimentos, nenhuma
limitação da sua validade.
O saber seria então absolutamente verdadeiro,
Mas quando se diz que os conhecimentos humanos são
relativos, o que se quer afirmar é justamente o contrário
daquilo, é que absolutamente verdadeiro não é o nosso
saber.
Esta teoria da relatividade formou-se em oposição
à consciência comum, e este ponto não deve ficar
esquecido.
O homem, que não reflete, crê: primeiro, que ele
conhece as coisas exatamente como elas são em si;
segundo, que estas coisas existem justamente como são
conhecidas, independentes do conhecimento; são objetos
em si, absolutos, sem relação a nós.
Foi a inconciliabilidade destas duas asserções que
provocou os primeiros escrúpulos cépticos.
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Já na Grécia, Protágoras dissera que o homem é a
medida de todas as coisas, das que são, como elas são,
das que não são, como elas não são; e por este modo
levou a doutrina da relatividade aos seus extremos
limites.
Porém é de notar que quando assim se leva tão
longe esta teoria, ela converte-se no seu contrário e dá
aos nossos conhecimentos uma validade e verdade
ilimitadas, que de todo se opõem aos fatos.
A tese de Protágoras implica necessariamente que
os objetos cognoscíveis não se distinguem do conhe-
cimento que temos deles, pois que a não ser assim, o
sujeito cognoscente não poderia ser medida de tudo, se o
conhecimento e seu objeto não são duas, mas uma só
coisa, então não se pode mais falar de relatividade. Uma
relação, se esta palavra tem um sentido, não é concebível
sem duas coisas, entre as quais a relação exista, e sem
relação, naturalmente, não é possível relatividade alguma.
Os relativistas modernos aproximam-se de
Protágoras. Porém nós acabamos de ver onde pára o
protagorismo.
A doutrina da relatividade só tem senso racional,
nas duas seguintes hipóteses: primeira, que os objetos
cognoscíveis são determinados pela própria natureza do
sujeito cognoscente; segunda, que eles, justamente por
causa desta sua relatividade, não representam a ver -
dadeira, absoluta essência da realidade.
Que se deve entender, quando se diz que os objetos
cognoscíveis são relativos a sujeito, estão em necessária
relação com ele? Somente isto: que na essência dos mês-
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mos objetos há alguma coisa que os prende ao sujeito,
uma originária adaptação daqueles às leis deste.
A relatividade do saber encerra dois momentos,
diz A. Spir: primeiramente, o conhecimento dos objetos,
dados como coisas externas no espaço, só é valioso com
relação ao ponto de vista da consciência comum, mas
objetivamente, ou em si, inexato, não verdadeiro. Con-
forme a expressão de Kant, as coisas têm no espaço só
uma realidade empírica, nenhuma realidade transcen-
dental. Em segundo lugar, os objetos empíricos são
simples fenômenos, não apresentam a realidade em sua
essência originária, absoluta, porém na forma estranha
da pluralidade da mudança e da antítese ou dualidade de
sujeito e objeto de conhecimento.
E eis aí o que se pode dizer em nome da filosofia
ainda que em ligeiros traços a respeito da afirmação que
os nossos conhecimentos são relativos.
Entretanto, dou-me pressa em confessar que a
questão da relatividade, assim concebida, e só assim é
que regularmente deve sê-lo, não tem muito cabimento
na ciência, de que nos ocupamos. Mal se descobre a
ligação que possa haver entre esta tese e as demais que
lhe sucedem no encadeamento lógico do sistema.
Para ter alguma razão-de-ser é mister considerá-
la no sentido de limitação. Todos os nossos conhe-
cimentos são limitados. E dois são estes limites, diz
Dubois Reymond: um consiste em que nós não podemos
saber o que é força e matéria; o outro em que não
podemos saber, como dos átomos e seu movimento pode
nascer uma sensação...
54
54
IV
GLOSAS HETERODOXAS A UM DOS MOTES DO
DIA, OU VARIAÇÕES ANTI-SOCIOLÓGICAS
(Concluído em 1887) G
Nur durch die innigste Wechselwirkung und gegenseitige Durchdringung von Philosophie und Empire entsteht das unerschuetterliche Gebaeude der Wahren, monistischen Wissenschaft.(
*)
E. HAECKEL
I
Eu não creio na existência de uma ciência social.
A despeito de todas as frases retóricas e protestos em
contrário, insisto na minha velha tese: a sociologia é
apenas o nome de uma aspiração tão elevada, quão
pouco realizável.
Além deste caráter de simples postulado do
coração, que vê ou quisera ver na sociedade humana um
(*) Somente através da mais íntima ação mútua e da recíproca
penetração entre a filosofia e a empiria surge o inabalá vel edifício da verdadeira ciência monista. (T. do E.).
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todo orgânico, subordinado, como os demais organis -
mos, a certas e determinadas leis, a palavra não tem
outro sentido, que mereça ser investigado.
Logo em princípio, salta aos olhos que o estudo
dos fenômenos sociais, considerados em sua totalidade e
reduzidos à unidade lógica de um sistema científico,
daria em resultado uma estupenda pantosofia, eviden-
temente incompatível com as forças do espírito humano.
Se nem mesmo como ciência descritiva, que aliás
envolve, na opinião de Haeckel, uma contradictio in
adjeto, a ciência social é construtível, pois que não
podem ser descritos, todos os fenômenos da sua alçada,
por que razão sê-lo-ia como ciência de princíp ios, como
ciência de leis, que têm de ser induzidas da observação
desses mesmos fatos?
Desconheço uma tal razão. Entretanto, não se
suponha que eu tenha jurado aos meus deuses fazer uma
guerra à sociologia. Não estou disposto a afrontar o
martírio na luta contra ela. Porém julgo ter o direito de
exigir dos seus sectários alguma coisa de mais sério do
que meia dúzia de estribilhos e convenções da escola.
Exijo pouco, mas esse pouco é tudo.
Enquanto pois, assim como a velha astrologia dos
Apolônios de Tiana, dos magos da Caldéia, passou a ser
astronomia dos Copérnicos, dos Galileus e dos Keplers,
a nova sociologia dos Spencers e outros sociólogos e
magos do Ocidente, não passar também a ser socionomia
de sábios, de estadistas e políticos, estou firme na minha
convicção: a sociologia é uma frase.
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E isto parece tanto mais admissível, quanto é
certo que, bem ponderado, nem sequer já nos achamos
no período propriamente sociológico, mas no período
sociolátrico. A religião da humanidade, o semideísmo
dos grandes homens, que é sem dúvida mais honroso,
porém não menos inexplicável que o semideísmo dos
Césares, pertencem a esta fase.
Entretanto a sociolatria, ainda mesmo que lhe
sirvam de objeto as mais altas manifestações da gran-
deza humana, é inconciliável com uma ciência social,
qualquer que seja o grau do seu desenvolvimento.
Desde que conhecemos, por exemplo, a natureza,
a órbita e a marcha dos cometas, não há mais lugar de
contemplá-los com admiração e terror. Assim também,
se é conhecida a lei da formação dos gênios, pois qe os
gênios são fenômenos sociais, como todos da mesma
ordem, segundo pretende a sociologia, redutíveis a leis,
para que engrandecê-los e deificá-los?
A contradição é palpável; e destarte a sociolatria,
que ainda reina nos próprios domínios da chamada
sociologia positiva, encarrega-se, por si só, de combatê-
la e aniquilá-la.
Não me é estranho que sociólogos mais coerentes
com os pressupostos apriorísticos da sua ciência, negam
o mérito e importância dos grandes personagens. Mas
também é certo que o que eles assim revelam de senso
lógico, não compensa-lhes a falta de senso histórico.
A pequenez das grandes, como a grandeza das
pequenas individualidades, é um paradoxo, apenas
tolerável na esfera religiosa, onde o valor das idéias não
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é determinado pela verdade delas, mas sobretudo pela
sua capacidade de iludir e consolar.
Debemur morti nos nostraque: é um bonito
princípio este, da igualdade perante a morte, porém
ainda mais estéril que o axioma democrático da
igualdade perante a lei, e como tal só tem um sentido –
no pórtico dos cemitérios. Fora daí, dentro das raias da
vida, no vasto laboratório das idéias e das ações, a dupla
categoria de grandes e pequenos homens é a expressão
de um fato, que nenhum sofisma poderá jamais destruir.
É incalculável o gasto que se tem feito de papel e
tinta em proclamar o alto valor da sociologia. Porém
mais incalculável me parece a falta de senso, com que,
ainda hoje, os sociólogos se julgam obrigados a de-
monstrar com argumentos de todo gênero a realidade
desse ramo de indagação e sistematização científica.
Como se isto não fosse bastante para provar
justamente o contrário. Uma ciência, que é realmente
tal, não tem necessidade de fazer de sua própria
existência a primeira questão, que lhe cumpre resolver.
Se ela de fato existe, os seus resultados incumbir -
se-ão de defendê-la. Insistir na demonstração de uma
ciência social, no sentido positivo da palavra, não é
mais, por conseguinte, do que um aprova indireta, ou
uma confissão inconsciente da sua inexistência.
II
Os sociólogos têm um certo número de teses
favoritas. Não é meu intuito referi-las todas aqui e batê-
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las uma por uma, até porque já me vai parecendo uma
inútil perda de tempo, semelhante à que se dá com a
refutação de qualquer tema teológico, refutar a
sociologia.
Em geral os sociólogos pertencem à ordem dos
crentes; e crenças não se refutam.
Mas entre os pressupostos da pretendida ciência
há um, sobretudo, que ainda merece ser apreciado, não
tanto porque ele importa para a sociologia uma questão
de vida e morte, como porque é o ponto principal, se
não o único, no qual os sociólogos têm de seu lado a
opinião de filósofos mais sérios, de espíritos mais
elevados. Quero falar da questão do determinismo.
Já uma vez declarei, e não há muito tempo, que
ao estava longe de crer serem as leis da liberdade as
mesmas leis da natureza; e permaneço nesta opinião.
Mas importa não confundir coisas distintas. Dizer
que a liberdade tem leis, não é negá-la, e bem assim
afirmar que essas leis são as mesmas da natureza, não é
reduzir o processo da vida moral à pura mecânica dos
átomos, a ações e reações químicas.
Dado porém que assim fosse, e a idéia da
liberdade não se conciliasse com a idéia de lei, nada
seria mais simples do que confessar a inexatidão do meu
asserto, pois neste assunto, como em todos os mais, é o
caso de repetir com Moritz Carrière: graças a Deus, nós
podemos errar. A pretensão de infalibilidade é sempre
ridícula, quer emane de uma cadeira de papa, quer de
uma cadeira de mestre; ou venha de uma assembléia de
bispos, ou de uma escola de sábios.
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Mas me parece que não estou em erro. A
liberdade humana é um fato da ordem natural, que tem a
sua lei, porém não se deixa explicar mecanicamente.
Os filósofos costumam distinguir no conceito da
liberdade dois momentos diversos: o momento empírico
e o momento racional, ou, a liberdade de poder e a
liberdade de querer.
A liberdade empírica é um fato de consciência;
para reconhecê-lo não há mister de tomar o partido de
um espiritualismo fantástico e impossível. Que o homem
pode o que quer, é uma verdade experimental; e tanto
basta para traçar a linha de separação entre duas ordens
de fenômenos, que pertencem a um mesmo tronco, mas
não se reduzem a um só ramo.
Se, porém, o que ele quer, é sempre o resultado
necessário da sua organização, é um ponto este, que
sendo admitido, como aliás o admito, não traz todavia
luz alguma para a solução do problema; porquanto, nem
destrói o fato da liberdade empírica, objeto de obser -
vação imediata, nem deixa esclarecido que a depen-
dência, em que o homem se acha, da sua organização,
seja realmente de natureza mecânica.
Semelhante identificação do psíquico e do físico
é, quando muito, o que se questiona, o que se pretende
provar; e afirmá-la não basta para torná-la incontestável.
Entretanto em que consiste, o que quer o
determinismo? Negar a liberdade sob o pretexto de que
as ações humanas são todas motivadas. A lei da
motivação, diz ele, é uma das formas da lei geral da
causalidade. Os motivos são causas mecânicas, a que
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sucedem efeitos com a mesma necessidade, com que os
fenômenos se sucedem no mundo exterior.
E não é exato que a todo e qualquer esforço
consciente, a toda volição e ação, precedem certos
motivos? Ou há um esforço imotivado, puramente
espontâneo, que existe de si mesmo e por si mesmo?
Muitos defensores da liberdade ainda crêem que a
lei da motivação exclui o livre querer, isto é, que a
liberdade da vontade só é possível, quando esta não é
determinada por motivo algum.
Uma tal opinião só podia ser favorável à causa do
determinismo. Desde que se faz assim do acaso e do
capricho irracional a essência da liberdade, desde que o
verdadeiro ato livre se considera aquele que se pratica
sem motivo, sem razão alguma, não é muito que os
deterministas achem provas de sua teoria em todos os
círculos da atividade humana, onde se nota uma certa
ordem.
Uma vez associada à idéia de liberdade e de
confusão e desarmonia, é fácil demonstrar pela esta-
tística dos crimes, dos casamentos e outros fatos, onde
os números exercem uma função aproximadamente
igual, que a vontade não é livre.
Mas este modo de pensar, admitido por alguns
filósofos, é o mesmo velho ponto de vista dos espíritos
incultos, que ainda hoje, nas relações polít icas, não
cansam de falar de um partido da ordem e de um partido
da liberdade, como de duas antíteses dificilmente
conciliáveis, quando não afirmam que a verdadeira
liberdade está na ordem, para outros redargüirem que a
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verdadeira ordem está na liberdade. Em suma, como se
vê, uma série de tolices.
Destarte, obscurecida a idéia da coisa, fazendo-se
do caos e da desordem na vida individual e social o
característico da liberdade, os deterministas, por um
lado, descobrem fatalismo e necessidade, onde quer que
apareça um regular encadeamento dos atos humanos, e
os parvos, por outro lado, estão de acordo que a mais
alta expressão do liberalismo, é o domínio do cacete, do
barulho, do rebuliço eterno.
Assim, e de conformidade, por exemplo, com os
princípios da sociologia nacional brasileira, como ela é
cultivada por vadios e vagabundos, é um despotismo
clamoroso, quando a autoridade, invadindo a terra santa
da liberdade, quebra a viola do ocioso cantor popular e
põe um limite aos excessos da bebedeira.
Da mesma forma, os deterministas entendem que
o governo da natureza, em relação ao homem, é sempre
despótico, e que não há vontade livre, desde que os atos
só se realizam em virtude de motivos.
Singular doutrina esta, pela qual as manifestações
da liberdade entrariam de direito na categoria da
loucura!...
Com efeito, se o pressuposto da motivação exclui
o livre querer, é lógico admitir que se são possíveis atos
humanos imotivados, onde quer e como quer que eles se
executem, aí, pelo menos, aparece a liberdade.
Mas esses atos são justamente aqueles que os
psiquiatras designam como característicos de qualqu er
perturbação mental.
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Para Trousseau, por exemplo, quase sempre que
se dá um assassinato sem motivo, sem alvo de interesse,
sem premeditação, sem ponderação de tempo, lugar e
meios, trata-se do ato de um epiléptico.
Eis aí, pois, a falta de motivação entrando como
elemento na diagnose de um caso de insensatez. E se
aquele quase sempre, em vez de sempre, é para dar
conta das exceções, não vejo que os casos excetos
possam ser explicados, senão por uma reversão
atavística às épocas de pura ferocidade humana. Porém
entre um homem de hoje, que perde a razão, e um
homem de hoje, que de repente asselvaja-se e torna-se
fera – qual é a diferença?
Como quer que seja, o certo é que a livre vontade
não é incompatível com a existência de motivos; pelo
contrário, eles são indispensáveis ao exercício normal
da liberdade.
Estas últimas idéias, posto que em parte me sejam
próprias, contudo já não são inteiramente novas. Eugène
Véron, na sua Moral, publicação recente da Biblio-
théque des sciences contemporaines (1884), assenta a
sua teoria da liberdade sobre uma ordem de
considerações análogas.
Eis aqui como ele se exprime: “Quanto a nós
que... não vemos na frase – obedecer à razão – mais do
que uma metáfora nascida sem dúvida da crença imbecil
na realidade distinta dessa mesma razão, crença que por
felicidade tende a desaparecer; quanto a nós que
pensamos que isto significa obrar racionalmente e por
conseguinte obedecer a s mesmo, logo eu se está na
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plenitude da própria inteligência, depois de um estudo
atento e profundo dos motivos, que nos solicitam a agir,
declaramos que o fato de obedecer à razão é, a nossos
olhos, a prova mesma da superioridade intelectual do
homem, o sinal mais evidente do seu verdadeiro valor
moral, e que, se a liberdade existe em qualquer parte, no
domínio da atividade humana, é aí só que se pode
descobri-la”.
De perfeito acordo. A verdade não se externa
somente em alemão; ela fala e escreve também francês.
Os galômanos, como chamava Alfieri e todos os frené-
ticos entusiastas do francesismo, podem agora rir-se da
ingenuidade, com que me confesso adstrito a uma
autoridade filosófica francesa – eu que em tantos pontos
ainda não fiz nem faço segredo do meu Franzosen-
fressenthum!(*) A coisa é realmente merecedora de riso.
Mas... não me tomem ao sério!... Isto é gracejo. Véron
tem o ar de quem oferece uma novidade, que saiu há
pouco da béante fournaise do cérebro parisiense; e
todavia as suas idéias se me apresentam com o caráter
platônico de verdadeiras reminiscências, não de uma
vida anterior, porém esta mesma vida, onde já li coisa
igual.
E foi em alemão. Em um dos Philosophische
Monatshefte, de 1874 (dez anos antes), Henrique von
Struve, professor de filosofia em Varsóvia, disse
seguinte:
(*) Ao pé da letra “qualidade de devorador de franceses”, francofobia. (T. do E.).
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“Não posso representar-me nenhum esforço,
nenhuma ação racional, que não seja motivada pela
razão. Qualquer que seja o alvo do meu esforço, por
mais independente que ele seja, ele só será racional,
associando-se à consciência de que tenho bons motivos
para obrar assim... Por isso a motivação não só não
exclui a ação autônoma e livre, como até, pelo contrário,
é uma das condições dela... Porventura a nossa atividade
torna-se livre, pelo fato de associar-se ao despropósito,
a ausência completa de qualquer motivo razoável? Não,
decerto; ela entrega-se por esse modo ao curso natural
das coisas, demite-se do poder de determinar-se
racionalmente e subordina-se à ordem de fatos, que do
ponto de vista subjetivo designamos como acaso,
porém, que deve ser objetivamente compreendida como
pertencendo à mesma ordem da natureza. Ficamos, pois,
colocados na seguinte alternativa: ou obrar segundo a
razão, ou ceder passivamente à necessidade psíquica.
Salta aos olhos que a liberdade, se em geral ela existe,
só pode ser procurada no primeiro membro dessa
alternativa...”(1)
Não é o mesmo pensamento de Véron? A
identidade é manifesta. Nenhum demérito resulta daí
para o autor francês; nem foi este o alvo da citação. Mas
o ensejo era ótimo, para dar ainda uma prova de que a
minha germanomania não é de todo um fenômeno
psiquiátrico, pois que baseia-se em muito boas razões.
Eis uma delas: os pensadores alemães, em quase
todos os domínios da inteligência, andam dez anos, pelo
menos, adiante dos franceses.
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65
Não sei se deva excetuar o domínio político. A
política alemã não me é totalmente simpática. Olhada
por este lado, a minha cara Alemanha assemelha-se a
uma linda mulher, em quem aliás a enormidade das
mamas diminui a beleza das outras formas. Por isso
limito-me a contemplá-la só pelo rosto. Mas também a
république française não está no meu programa. Sou
pouco afeiçoado ao cancan, em qualquer de suas
manifestações. Isto destoa, bem sei, da intuição comum,
ainda que ela não seja das mais seguras. O
republicanismo brasileiro é um belo pedaço de literatura
francesa. Com razão dizia eu, há pouco, a um amigo
tedesco: - in Brasilien treibt man Republik, wie man die
Lektüre der Romance, Zola’s treibt: ohne Kritik oder
Ueberzeugung, nur aus bewusster oder unbewusster
Liebe zu Frankreich.(*) Porém não importa; é a verdade
tal qual sinto, e aproveito a ocasião para repeti-la.
III
É digno de nota: os modernos contraditores da
liberdade, os que pretendem mecanizá-la e destrui-la,
filiam-se em geral à escola de Hume. Ora, este filósofo,
como é sabido, contestava que a idéia de causa fosse
mais que um resultado do hábito de ver certos fatos
sempre juntos, pelo qual chegamos a crer na união
(*) No Brasil, procede-se com a República como se procede com
a leitura dos romances de Zola: sem crítica ou convicção, somente pelo consciente ou inconsciente amor à França. (T. do E.).
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necessária desses mesmos fatos: mas essa crença não
tem realidade objetiva!
Já se vê que, sendo assim, ao menos para os
deterministas sectários de Hume, a causalidade e a
liberdade duas grandes ilusões metafísicas, não há
justiça nem lógica em submeter a liberdade à causa-
lidade, em sacrificar uma ilusão a outra.
Sustentando deste modo a livre vontade, até onde,
e só até onde ela é, não um postulado da razão prática,
mas um simples fato de consciência, bem pode parecer
que eu me coloque em posição divergente da filosofia
monística, da qual me confesso decidido sectário. Mas é
somente aparência; no fundo não há contradição.
E não é difícil demonstrá-lo. Com efeito: a idéia
fundamental do monismo, diz Ludwig Noire, é que o
universo compõe-se de átomos inteiramente iguais, que
são dotados de duas propriedades, uma interna – o
sentimento, e outra externa – o movimento. Bem como
os átomos, o sentimento e o movimento, que lhes são
inerentes, são também originariamente iguais. Destas
duas propriedades originárias, inseparáveis, resulta o
desenvolvimento, ou, antes, o que se chama desen-
volvimento é a soma, ou o produto de ambas; de modo
que todo e qualquer desenvolvimento é redutível a uma
modificação do movimento, mas também, e ao mesmo
tempo, todo e qualquer desenvolvimento é redutível a
uma modificação do sentimento(2)
.
Schopenhauer diz: - tudo é vontade. O idealismo
e o materialismo dizem: - tudo é força; para aquele –
força e espírito; para este – força e matéria. O monismo
67
67
porém responde – tudo é ao mesmo tempo vontade e
força. como força aparece, como vontade, é; ou, para
falar a língua de Kant, como força é fenômeno, como
vontade, noumenon.
A filosofia tradicional afirmava que tudo provém
de causas. Schopenhauer distingue causas, atrações e
motivos. O monismo redargúi: - tudo é causa e motivo
ao mesmo tempo. Como causa, aparece; como motivo,
existe nos seres mesmos. Daqui resulta que não há em
parte alguma do universo puro mecanismo; qualquer
movimento é determinado simultaneamente por causa e
motivo.
Estas idéias, que muitos acharão de acre sabor
metafísico, isto é, um pouco acima da compreensão
humana, por estarem além dos limites da própria
compreensão, vão de encontro ao determinismo. A lei da
motivação não exclui a liberdade, pois que não é uma lei
de causalidade mecânica.
Mas importa observar – e este ponto merece
atenção – que o monismo filosófico de Noiré não é o
monismo naturalístico de Haeckel. O grande professor
de Jena, que é um dos mais ilustres próceres da ciência
moderna, parece-me deixar-se levar por um preconceito
do tempo, quando identifica a intuição mecânica e a
intuição monística do mundo. Uma coisa não é
exatamente a outra.
O monismo filosófico é conciliável com a
teleologia, não tem horror às causas finais, cujo
conceito não é sempre, como querem os materialistas
sistemáticos, um meio cômodo da razão preguiçosa, para
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furtar-se à pesquisa das causas eficientes, ao passo que
o monismo naturalístico só admite estas últimas, e crê
poder com elas fazer todas as despesas de explicação
científica.
Para o monismo filosófico, o movimento e o
sentimento sendo inseparáveis, dá-se entre eles somente
uma questão de grau: onde mais domina o movimento,
aparece então a causa efficiens; onde mais o sentimento,
prepondera também a causa finalis. O mundo não é só
uma cadeia de porquês, como pretende o materialismo
acanhado, mas ainda uma cadeia, uma série de para-
quês, de fins ou de alvos, que reciprocamente se apóiam,
se limitam, que saem uns dos outros. A intuição
mecânica, porém não quer saber do que vai além da
simples concatenação de causas e efeitos. O monismo
naturalístico, que representa a unidade de vistas
adquiridas no domínio das ciências naturais, está preso,
com elas, à exclusiva consideração da causalidade, que é
a lei capital da empiria, o princípio gerador de toda
experiência.
O Professor Haeckel, cedendo talvez àquela
predileção, de que falava Helmoltz no prólogo da sua
Optica – a predileção... zu unmittelbar mechanischen
Erklaerungen(*) – decidiu-se a apoiar com a força de
sua autoridade o monismo naturalístico, sem levar em
conta, nem sequer dignar-se de submeter a uma crítica
mais séria tudo o que, além desses limites, ainda parece
reclamar a nossa atenção.
(*) ... para explicações excessivamente mecânicas. (T. do E.).
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Assim, para ele, o venerando sábio, não só a
verdadeira intuição monística é a intuição mecânica,
mas também, quem quer que se coloque acima deste
ponto de vista – ciente ou inconscientemente – é vítima
de uma ilusão, a ilusão do dualismo. Nem mesmo Kant
pôde evitar semelhante escolho.
Esta condenação do grande filósofo (tanto
importa o juízo de Haeckel), relegado para o meio dos
dualistas e teólogos, em nome do monismo, quando o
monismo, pelo órgão de Noiré, se confessa ligado, por
mais de um laço, à filosofia de Kant, quando o
monismo, que não é um princípio constitutivo, mas um
princípio regulador, quase diria – um princípio arqui-
tetônico do pensamento filosófico moderno, assenta em
bases kantescas – esta condenação do grande filósofo,
repito, devia naturalmente provocar a impugnação.
E de fato, Ed. von Hartmann, na última parte do
seu notável opúsculo – Wahrheit und Irrthum im
Darwinismus, entendeu-se com Haeckel sobre o pre-
tenso dualismo de Kant. O resultado foi ficar
estabelecido que o naturalista fora injusto para com o
filósofo. Como se depreende de várias passagens da
Kritik der Urtheilskraft, melhor utilizadas por
Hartmann, muito ao invés de ser Kant um dualista,
firmou ele a doutrina de que a explicação mecânica e a
explicação teleológica dos fenômenos naturais repre-
sentam momentos diversos de uma unidade superior. Em
próprios termos: “O princípio, que torna possível a
conciliabilidade dos dois modos de julgar a natureza,
deve ser posto naquilo que repousa fora de ambos, mas
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entretanto encerra o fundamento deles, isto é, no
hipersensível, e qualquer das duas maneiras de expli-
cação deve sempre referir-se a esse princípio”.
Isto é claríssimo; porém não é tudo. Kant ainda
diz que não podemos saber a priori, quanto contribui o
mecanismo da natureza para a realização de qualquer
intuito final, que nela exista, nem até onde chega o
modo de explicação mecânica dos seus fenômenos, e
que por isso as ciências naturais têm o dever de levar o
mais longe possível esta mesma explicação. Mas
também logo assegura que o simples mecanismo não é
suficiente para dar a razão dos produtos orgânicos, isto
é, que em relação à forma dos organismos há sempre um
resto mecanicamente inexplicável.
Puro conceito monístico. A ele prende-se o
pensamento de Noire, quando afirma que em todo e
qualquer fenômeno, tanto o mais simples, como o mais
altamente complicado, há sempre um resto incalculável,
que representa a parte do sentimento no mesmo
fenômeno. Entre o resto, de que fala Kant, e este de que
fala Noire, não há diferença alguma. O mecanicamente
inexplicável da teoria kantesca quer dizer em linguagem
monística: a parte do sentimento que o movimento não
explica. Vê-se, pois, que Kant não foi, nem podia ser,
um dualista. As aparências enganam; e desse engano não
estão livres nem mesmo os gênios da estatura de
Haeckel.
Ed. von Hartmann, como já disse, utilizou-se de
passagem da Crítica do Juízo, para demonstrar o não-
dualismo do arquifilósofo alemão. Entretanto, as fontes
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de uma tal demonstração não se limitam aos pedaços pro
ele citados. Na Crítica da Razão Prática encontra-se
uma passagem, onde Kant fala de um automaton
materiale e de um automaton spirituale, não como duas
coisas distintas, mas somente como dois pontos de vista
de uma mesma coisa, dois modos de observar e julgar a
natureza. (Kritik der p. Vernunft – edição “Kehrbch”,
pág. 117.)
O pendor materialístico do tempo, a que
corresponde o gosto pelas explicações mecânicas, tem
levado muitos espíritos ao extremo das afirmações e
negações categóricas, porém sem base nos fatos.
Felizmente já há mais de um exemplo de sobriedade
científica por parte de naturalistas, outrora inebriados de
seu próprio vinho, mas hoje convencidos de que a
ciência tem limites, além dos quais ainda existe alguma
coisa que ela não pode sujeitar aos seus processos de
observação e esclarecimento. O primeiro, o mais valioso
sinal desta mudança, foi dado por Du Bois Raymond.
Este sábio fora ao princípio um materialista, que
estava de acordo com a opinião lacunosa e parcial de
Moleschott: - der Gedanke ist eine Bewegung des
Stoffes.(*) Em suas Untersuchungen weber thierische
Elektricitaet, do ano de 1848, ainda ele comungava a
idéia de que... wenn nur unsere Methoden ausreichten,
eine analytische Mechanick sa emmtlicher
(*) - o pensamento é um movimento da matéria. (T. do E.).
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Lebensvorgaenge moeglich waere.(**
) É esta a mesma
idéia, que vinte e quatro anos depois o grande Strauss
repetiu, dizendo: - “De dia em dia aumenta a
possibilidade de mostrar as condições, sob as quais a
vida se desenvolveu do que não tem vida, a consciência
do inconsciente”.
Mas releva ponderar que a esse tempo já Du Bois
Raymond tinha reconhecido a inanidade dos seus
esforços. Na célebre conferência Ueber die Grenzen des
Naturerkennens(***
) ele afirma terminantemente: “Com
mecânica, não saímos de mecânica; não podemos
compreender, como nasce a consciência, como nasce o
sentimento”. Uma sentença de morte contra o
materialismo míope dos Moleschotts e dos Buechners,
ao qual Strauss se aliara; sentença que o fez então
humildemente dizer: “Se esta palavra do mestre é a
última na questão, só o tempo afinal poderá dec idir”.
Já é uma grande concessão esperar que o tempo
decida a questão capital do materialismo. Esperemos
portanto.
O Ignorabimus de Du Bois Raymond e o
Audeamus de Haeckel não são tão inconciliáveis, como
se supõe. Eu os concilio a meu modo.
Rejeitando a primeira fórmula, se ela pretende ir
além de um simples conselho de temperança espe-
culativa, e aceitando a segunda, só até onde envolve um
(**) ...somente quando dispomos de um método eficiente, é
possível uma mecânica analítica do conjunto dos acontecimentos
vitais. (T. do E.). (***) Os limites do conhecimento da vida. (T. do E.).
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grito de animação, sem propósito assentado de romper
todas as barreiras e entrar no conhecimento natural de
Tudo – entendo que elas se completam, se harmonizam,
se corrigem uma a outra.
Mas o nobre professor de Jena seria talvez o
primeiro a recusar esta conciliação. Para ele tudo é
suscetível de explicação mecânica – fora daí, não há
mais que o velho domínio dos dualist as e teleólogos.
É com pesar que deixo de subscrever, neste
ponto, a opinião do mestre. O dualismo é realmente uma
ilusão; mas também o mecanismo não está no caso de
satisfazer todas as exigências e interpelações da razão.
A verdade ainda permanece do lado de Kant: o resto de
problemas, que a mecânica não resolve, continua a ser o
mesmo.H
E não somente quanto à forma dos organismos,
mas ainda e sobretudo quanto às suas funções, cres-
cendo assim a inexplicabilidade mecânica, à proporção
que os organismos são mais desenvolvidos, e as funções
mais complicadas. O mecanismo ainda não é suficiente
para dar conta, entre outros, por exemplo, do fenômeno
da beleza. Quem foi que já traçou a fórmula, segundo a
qual executa-se o movimento de uns bonitos olhos
femininos?
A beleza que, no dizer de Hartmann, divide-se em
fisiológica e morfológica, eu me permito aumentar de
uma seção superior: a beleza psicológica, sem aliás
pressupor um sujeito novo para este novo atributo, e
dentro dos limites da intuição monística. É a parte
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devida àquele resto, mecanicamente inexplicável, de
que já nos temos ocupado.
Ora, pois – nem a beleza arquitetônica de uns
quadris de Vênus, que não é debalde que assemelham-se
ao arqueamento de ebúrnea lira, como lembrança ou
indício de que este será sempre o alaúde dos poetas,
nem a beleza ornamental de uns bastos e longos
cabelos, despoticamente sacudidos por mulher moça e
formosa, poderão jamais ser reduzidas a puros
fenômenos mecânicos.
Os movimentos, que formam a arte da dança,
ninguém dirá que deixem de ser redutíveis a número e
medida, isto é, a fórmulas de mecânica; mas entre duas
pessoas, principalmente mulheres, que com a mesma
regularidade executam esses movimentos, não se nota
muitas vezes uma enorme diferença? É que a beleza
fisiológica dos requebros e ademanes graciosos não se
explica, não se resolve pelas leis do mecanismo.
Ainda mais decisivo: todos nós falamos e
ouvimos falar de uma expressão na música; na execução
artística de qualquer peça musical, distinguimos as duas
categorias da quantidade e da qualidade, a técnica e a
estética, tão bem caracterizadas, que não nos passa
desapercebida a mais ligeira preponderância de uma
sobre a outra, e só das justas proporções entre ambas é
que resulta a perfeição do artista. Ora, a técnica de um
virtuose, ainda que seja a mais bem acabada possível,
reduz-se, em última análise, a uma questão de mecânica,
a uma questão de movimento. Mas – costumamos dizer
– que nos importam todos os prodígios técnicos deste ou
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daquele instrumentista, deste ou daquele cantor, se ele
não tem estética, se não nos toca, não nos fala na alma?
E isto se traduz monisticamente do seguinte modo: que
nos importam todas essas maravilhas de movimento, se
não existe sentimento em grau correspondente? Eis aí,
pois, ainda uma prova da insuficiência do mecanismo.
Não conheço ramo algum de atividade e
indagação humana, onde a filosofia monística possa
encontrar maior riqueza de argumentos em seu favor, do
que no domínio da música; porquanto em nenhum outro
se manifestam com tanta viveza as duas propriedades
originárias, de que fala Noiré. A combinação de sons,
que objetiva e mecanicamente apreciada é uma
combinação de movimentos, tem o poder de evocar o
que existe de mais puro e elevado, como também de
mais misterioso, no mundo psíquico, a emoção, o
sentimento do belo musical.
O assunto presta-se a muito estudo, mas não é
aqui a ocasião de empreendê-lo. Com os exemplos
indicados, quis somente ilustrar a minha tese da não -
identidade entre o monismo filosófico e o monismo
naturalístico; donde é fácil de compreender que não
aceito em certos pontos, ainda que poucos, a doutrina de
Haeckel, doutrina que não se mostra, no que diz respeito
à liberdade, em perfeita harmonia consigo mesma.
IV
O sábio professor e pensador intrépido, em mais
de uma passagem dos seus escritos, diz afoutamente que
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a vontade humana nunca é livre – niemals frei. Mas
também em muitos outros lugares afirma que a vontade
é um princípio seletor. Estas duas asserções, me parece,
não são feitas para se unirem; elas produzem a
impressão do antinômico e inarmonizável.
Com efeito, se a liberdade é alguma coisa, ela
consiste na capacidade, que tem o homem, de realizar
um plano por ele mesmo traçado, de atingir um alvo,
que ele mesmo se propõe. Eu não sei, nem cabe aqui
indagar, se o conceito da finalidade deve ou não ser
inscrito na tábua das categorias, segundo a doutrina de
Kant; mas esse conceito, que nada significa no mundo
físico, tem toda significação no mundo psicológico. A
causalidade da natureza e a causalidade da vontade não
tem o mesmo caráter.
Assim, ao passo que as causas naturais se
traduzem num porquê, a causa voluntária se exprime
num para-quê. A idéia deste fim aparece como motivo, e
os motivos, já nós vimos, não excluem a liberdade.
É bem sabido o papel que representa no
darwinismo a seleção artificial, ou antes – artística.
Prefiro o segundo epíteto, que corresponde melhor aos
resultados por ela obtidos. Na idéia de artifício não
entra racionalmente a idéia da vida; e a seleção é
sobretudo um processo vital, pois que ela tem por alvo
modificar funções e qualidades dos seres orgânicos,
quer no domínio da zoologia, quer no da botânica. Ora,
o jardineiro que se propõe produzir uma nova forma de
flor ou planta, o criador de pássaros, que se incumbe da
produção de uma plumagem nova, são dotados da
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77
faculdade de atingir um fim, por eles preconcebido. Eis
o que é todo inegável. Mas esta faculdade é a liberdade
mesma, tal qual se faz precisa para opor ao deter -
minismo um obstáculo invencível.
Falando da seleção artística, aplicada à espécie
humana, Haeckel menciona três formas: a espartana,
que se praticava na Lacedemônia com as crianças
doentes, fracas, ou aleijadas, as quais eram votadas à
morte; a militar, que produz efeito contrário, escolhendo
e destinado a constituir exércitos permanentes e a
perecer nas batalhas o que há de mais robusto no seio
das nações; e, finalmente, a seleção medical, que muitas
vezes prolonga a vida de organismos imperfeitos, con-
correndo assim para que saia deles, uma descendência
enfezada e originariamente mórbida.
Estas três categorias não abrangem a totalidade
dos expedientes artísticos, seletores do gênero humano.
Com a mais importante forma de eliminação consciente
das anomalias da vida social, que é a verdadeira vida do
homem, podemos ainda falar, e eu já tenho pro vezes
falado, de uma seleção jurídica, a que se pode adicionar
a seleção religiosa, moral, intelectual e estética, todas
as quais constituem um processo geral de depuramento,
o grande processo da cultura humana. E destarte, a
sociedade que é o domínio de tais seleções, pode bem
ser definida: um sistema de forças que lutam contra a
própria luta pela vida(3)
.
Semelhante definição, que tenho como verda-
deira, não está todavia de acordo com a doutrina de
certos pensadores – Gustave Le Bom, por exemplo.
78
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Realmente, eu digo que o característico da sociedade e
lutar contra a luta natural pela existência, tratando
sobretudo de corrigir seus maus efeitos; Le Bom, porém,
opina que é um mal subtrair os membros da comunhão
aos resultados dessa luta. Em apoio da sua opinião ele
cita Darwin, o qual na verdade acha em algumas
instituições sociais, como asilos para mentecaptos e
doentes, leis de socorro aos indigentes, etc... um motivo
de degenerescência da mesma sociedade.
Mas não aceito esta teoria, que considero
estranha e errônea. Com efeito, se é um mal interromper
a marcha da eliminação natural dos fracos diante dos
fortes, dos enfermos diante dos sadios, não vejo razão
plausível, por que se deva punir o homem robusto e
vigoroso que, em luta com o raquítico e inválido, chega
a matá-lo. Isto também é eliminar... Mas ninguém, por
certo, admitirá uma tal conseqüência, que escandaliza
pelo absurdo.
Não é menos inadmissível a proposição
darwínica. Entregar os míseros à sua própria miséria,
deixar que morram de fome os que não podem
conquistar pelo trabalho os meios de subsistência, e
deste modo concorrer para o depuramento da sociedade,
se isto é seleção, seria mil vezes mais bárbara do que a
velha seleção espartana; e como precisa de um nome
que a caracterize – pois que Esparta já não existe – bem
pudera qualificar-se de seleção inglesa.
O conceito da sociedade, assim representada
como um sistema de forças combatentes contra o pró -
prio combate pela vida, me parece dar a chave para a
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79
solução de muito problema velho, que continua a fazer
ao mesmo tempo o tormento e as delícias de mais de um
espírito sério. Na verdade, ainda hoje há quem apele
para a natureza como uma autoridade suprema. O
argumento da naturalidade de uma coisa, ou de um fato,
tem honras de irrefutável.
Nada, porém, mais desponderado. Ser natural não
livra de ser ilógico, falso e inconveniente. As coisas que
são naturalmente regulares, isto é, que estão de acordo
com as leis da natureza, tornam-se pela mor parte outras
tantas irregularidades sociais; e como o processo geral
da cultura, inclusive o processo do direito, consiste na
eliminação destas últimas, daí o antagonismo entre a
seleção artística da sociedade e as leis da seleção
natural.
Assim, por exemplo, se alguém hoje ainda ousa
repetir com Aristóteles que há homens nascidos para
escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim, é natural
a existência da escravidão; há até espécies de formigas,
como a polyerga rubescens, que são escravocratas;
porém é cultural que a escravidão não exista.
Maudsley disse uma vez que o ladrão é como o
poeta: nasce, não se faz. Subscrevo esta opinião, mas
pondo-a em harmonia com a minha doutrina. Sim,
senhor, a existência de ladrões é um produto da
natureza; que eles, porém, não existam, é um esforço,
um produto da cultura social, sob a forma ética e
jurídica.
Do mesmo modo, é um resultado natural da luta
pela vida que haja grandes e pequenos, fortes e fracos,
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80
ricos e pobres, em atitude hostil uns aos outros; o
trabalho cultural consiste, porém, na harmonização
dessas divergências, medindo a todos por uma só bitola.
Um naturalista alemão, democrata e radical, já
usou das seguintes palavras, segundo refere Treitschke,
a quem elas foram dirigidas: “O nosso darwinismo, bem
refletido e logicamente ponderado, é pouco favorável às
idéias da pura democracia”. Sem dúvida alguma, se a
seleção artística não existisse para corrigir os efeitos
naturais da concorrência vital.
Outrossim: é natural que a mulher, por sua
fraqueza, seja sempre uma escrava do homem; mas é
cultural que ela mantenha-se em pé de igualdade,
quando não lhe seja até superior. A ginecocracia, que os
poetas não estão longe de admitir, exprimiria uma das
mais altas vitórias ganhas pela cultura sobre a natureza.
E aqui importa assinalar um fato importante. A
sociedade, que é, como já disse, o domínio de todas
estas seleções artísticas, de todos estes processos
culturais, compõe-se de grandes e pequenos círculos;
quanto maiores, tanto mais independentes da seleção
natural e vice-versa. Por isso é que ainda vemos no
pequeno círculo da família, que é mais produto da
natureza do que da cultura, a mulher representar um
papel subordinado e bem diverso do que ela representa
nos grandes círculos da vida.
A falta de compreensão desta luta pela existência
social contra a mesma luta pela existência naturall
torna explicáveis um sem-número de despropósitos, que
é comum cometer-se. Assim, ainda hoje, há quem faça
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do naturam sequi de antigos filósofos a base da moral.
Porém isto não passa de uma velha consagração do erro.
A moral, como o direito, é um sistema de regras.
Toda regra é uma limitação; o que fica fora, ou sai
desses limites, é o irregular, o imoral por conseguinte.
Mas os limites da moral ou sejam traçados pelo
indivíduo mesmo, ou pela sociedade a que ele pertence,
são sempre posteriores a um estado de ilimitação e
irregularidade, que no todo, ou em parte, é o primitivo
estado natural. Logo, o seguir a natureza, em vez de ser
o fundamento da moral, pelo contrário, é a fonte última
de toda imoralidade.
Eis o que diz a lógica. Vejamos, porém, se os
fatos dão-lhe apoio. Para isso bastam as seguintes
perguntas: - Quem ensinou ao homem que as mais vivas
provocações da beleza feminina devem contudo ceder ao
respeito da pudicícia? Seria a natureza? Não, decerto. -
Quem disse a Fedra que o seu amor a Hipólito é
criminoso, e quem disse a Mirra que ainda mais
criminosa é a paixão que ela nutre por seu pai? Seria a
natureza? Não; foi a cultura. Religiosa ou oral jurídica
ou política, pouco importa; é sempre alguma coisa, que
corrige, que resiste aos ímpetos naturais.
A natureza não é a santa que se supõe; pelo
contrário, ela come, bebe e peca. Imaginai um salão
aristocrático, cheio de todos os encantos a fulgores, que
produz a civilização. Dentre as mulheres, que perfumam
o ambiente, escolhei a mais formosa, aproximai-vos dela
e conversai... Aposto que podeis levar bem longe a
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82
vossa conversação, sem que a mais ligeira idéia de gozo
sensual venha perturbar a serenidade do vosso espírito.
Mas agora imaginai também que vos achais frente
a frente dessa mesma beleza, à margem de sonoro e
cristalino regato, onde se miram palmas e folhagens;
aqui e ali moutas sombrias, em cuja copa escondem-se
ninhos de aves, e embaixo parece que mão oculta
preparou leitos de amantes – sereis capaz de não ter um
pensamento mau? É dubitável. Se entretanto a esta
sugestão do amor, que surge de todos os lados em sua
forma primit iva, em sua primitiva nudez, sem regras,
nem convenções, impetuoso, estúpido e voraz, levanta-
se uma idéia, que opõe barreira invencível, donde
nasceu essa idéia?
Só e só do seio da cultura. Ela é tão pouco uma
filha da natureza, quão pouco pode esta produzir o vosso
frack, todo o vosso trajo, e até a luva que porventura
aperta a mãozinha da deusa da vossa hipótese.
A sociedade, que é o grande aparato da cultura
humana, deixa-se afigurar sob a imagem de uma teia
imensa de relações sinérgicas e antagônicas; é um sis -
tema de regras, é uma rede de normas, que não se
limitam ao mundo da ação, chegam até os domínios do
pensamento. Moral, direito, gramática, lógica, civili-
dade, polidez, etiqueta, etc., etc., são outros tantos
corpos de doutrina, que têm de comum entre si caráter
normativo.
Não basta obrar ou proceder corretamente, é
preciso sentir corretamente, e, ainda mais, pensar
corretamente, falar corretamente, escrever correta-
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83
mente... Como se vê, um vasto sistema de correções – o
que vale dizer – um vasto sistema de seleções. Corrigir
é selecionar.
E tudo isto obra da cultura em luta com a
natureza. Adolfo Schmidt nos fala de um tear da
civilização, em que a humanidade trabalha desde a sua
origem(4)
. Pura verdade. Todos nós vivemos a tecer
sempre de novo os laços que nos prendem.
O direito é o fio vermelho, e a moral o fio de
ouro, que atravessa todo o tecido das relações sociais.
Um direito natural tem tanto senso, como uma moral
natural, uma gramática natural, uma ortografia natural,
uma civilidade natural, pois que todas estas normas são
efeitos, são inventos culturais(5)
.
Rousseau deixou escrito que em assunto de
educação – tout consiste à ne pas gâter l’homme de la
nature en l’appropriant à la société . Neste princípio,
que se lê na quinta carta do 4º livro da Nouvelle
Héloïse, culmina-se o edifício de suas idéias re-
formadoras. Entretanto a verdade está do lado contrário.
O processo da cultura geral deve consistir precisamente
em gastar, em desbastar, por assim dizer, o homem da
natureza, adaptando-o à sociedade.
O que importa sobretudo é conhecer bem o valor
e extensão deste último conceito. A sociedade, que
como gênero não tem organização, existe organizada em
espécies e subespécies, que se arrogam, cada uma em
seu tempo e a seu modo, o direito de representar e
subordinar a mesma sociedade ou o grupo social de que
fazem parte.
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84
Isto explica a impossibilidade, que tem havido até
hoje, de uma cultura propriamente humana; porquanto
dentro da humanidade, diferenciam-se as raças, dentro
da mesma raça... os povos, dentro do mesmo povo... as
classes, terminando sempre a luta, que acompanha estas
diferenciações, pelo predomínio de um dos contendores,
que encarrega-se do trabalho cultural e imprime-lhe o
seu caráter.
Daí o podermos falar de uma cultura militar, de
uma cultura religiosa ou sacerdotal, de uma industrial,
de uma outra intelectual, literária, artística, mas não
ainda de uma cultura moral, que seria então sinônima de
cultura humanitária.
Já se vê que, quando se gasta o homem da
natureza, não é para apropriá-lo à sociedade, mas
somente a uma classe dela. Tem sido sempre assim, e
esta é a fonte do mal.
A cepa rija da organização física e psíquica
humana tem sido e continua a ser desbastada, para dela
se fazerem, ou soldados, ou devotos, ou simples
trabalhadores, ou mesmo sábios, literatos, poetas,
artistas... porém nunca e nunca para se formar o homem,
o homem social, no mais amplo e compreensivo sentido
da palavra, mais ou menos adequado àquele ideal, que
Napoleão tinha em mente, quando disse de Goethe: voilà
um homme.
Estou bem longe de negar a qualquer desses
modos de cultura parcial o seu lado vantajoso. Entendo
mesmo que dá-se às vezes entre eles uma tal relação de
simpatia, que um serve de preparativo ao outro. Assim,
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85
o povo romano, e este fato é bem significativo, o povo
romano, que dominara o mundo pela cultura militar,
passou depois a dominá-lo pela cultura jurídica. A
educação dos campos de batalha preparou o espírito
nacional para os combates do forum.
Tanto é certo, que a luta faz parte essencial do
direito”... Mas isto não infirma a verdade das
proposições anteriores.
V
Quer o homem seja, conforme a velha definição,
um animal racional, um animal que pensa, quer se
chame um animal que faz trocas, ou um animal que
reza, ou, como o definia o fisiologista Graves, um
animal que cozinha – de modo que, segundo este sábio,
a idéia de fogo, de vasos e utensílios culinários, entra na
compreensão da idéia geral de homem – seja como for, o
certo é que cada uma dessas definições indica alguma
coisa de contrário e superior à pura animalidade,
marcando assim um momento da evolução cultural do
mesmo homem.
Mas nenhuma delas envolve o verdadeiro carac-
terístico do ente humano, que todas aliás pressupõem,
com exceção talvez da primeira, por isso mesmo a
menos aceitável, isto é, nenhuma delas envolve a
capacidade de conceber um fim e dirigir para ele as
próprias ações, sujeitando-as destarte a uma norma de
proceder.
86
86
Nem pensar, nem trocar, nem rezar, nem
cozinhar – nada disto exclui, por si só, a ferocidade
original. Quem, pois, definisse o homem – um animal,
que prende-se, que doma-se a si mesmo – daria por certo
a melhor definição.
Todos os deveres éticos e jurídicos, todas as
regras da vida considerada em sua totalidade, acomo-
dam-se a esta medida, que é a única exata para conferir
ao homem o seu legítimo valor.
O indivíduo prendendo-se a si mesmo – é o puro
domínio da moral. Mas o homem não é só indivíduo – é
ainda e principalmente – sociedade. Revela, portanto,
que também todos se prendam vis-à-vis de todos, cada
um a cada um, e este é então o domínio do direito. Daí
nasce a diferença entre essas duas órbitas da vontade
humana.
A moral, como o direito, tem três momentos: a
regra, a luta e a paz. Porém ao passo que, na moral, a
regra é a do próprio indivíduo (autonomia), a luta é a
que ele trava consigo mesmo (automaquia), e a paz é a
paz íntima, a paz da consciência – no direito a regra não
é individualmente própria, vem de fora (heteronomia), a
luta é travada com os outros (heteromaquia), e a paz é a
paz externa, a paz social, a harmonia da vida comum.
Falei da moral e do direito, como os mais
importantes processos de seleção artística, em opo sição
à chamada marcha natural das coisas, sem que aliás, no
que diz respeito aos outros processos, o homem deixe de
ser sempre o animal que doma-se a si mesmo. Em todos
eles aparece, pois, como essencial o momento da luta.
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87
As palavras – lide, contenda, demanda, pleito,
discussão, controvérsia, polêmica... todas encerram a
idéia de um encontro de forças, que se dão combate nas
diversas esferas da atividade humana.
Mas há isto de notável – só na esfera da moral é
que se trava realmente conflito psicológico, só nela a
consciência é campo de batalha.
Estas idéias não deixam de ter um certo ar de
novidade. Rudolf von Jhering, que introduziu na ciência
jurídica um dos conceitos capitais do darwinismo,
fazendo a crítica da escola histórica, estranha-lhe
sobretudo o ter afirmado que a formação do direito dá-
se lentamente, sem trabalho, sem dor, sem combate, tal
como a formação da língua. Deste modo qualquer
princípio do velho direito romano ter-se-ia originado
com a mesma placidez com que estabeleceu-se, por
exemplo, a regra pela qual a preposição cum rege o
ablativo; e é isto que von Jhering não admite.
Acho, porém, que o erro da escola histórica não
está em inserir o desenvolvimento do direito na mesma
categoria do desenvolvimento da língua, mas em
desconhecer o que é comum a ambos, isto é, a parte da
luta. A regra de gum reger o ablativo e todas as outras
de igual gênero custaram tanto esforço, como, exempli
gratia, o princípio jurídico de que o senhor da coisa
pode reivindicá-la do poder de qualquer.
A esfera da gramática é tão tumultuosa como a do
direito. Se a história não nos instrui bastante sobre o
seus primitivos combates, também não lança muita luz
sobre as contendas jurídicas dos primeiros tempos.
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Entretanto há épocas e espíritos gramaticalmente
conformados, em que as questões pelo mais correto
modo de dizer tomam a frente de tudo, e os contendores
não recuam diante das maiores imoralidades, na defesa
de uma regrinha, de uma qualquer futilidade idiomática.
Os séculos XVI e XVII, os tempos da bela mania
helenizante e latinizante, oferecem bons exemplos.
Assim, entre outros, é para ver ainda hoje o espetáculo
de um Agostinho Satúrnio, descompondo a Prisciano, e
um Sanches por sua vez injuriando a Satúrnio, no intuito
de assentarem, como se fosse uma verdade salvadora do
gênero humano, a personalidade, ou a impersonalidade
das expressões verbais – curritur, vivitur – todos eles
com o mesmo fogo, e quiçá com o mesmo talento, com
que um atual abolicionsita prega e defende a libertação
dos escravos. Por conseguinte, aí, como em geral,
sempre o combate, sempre o choque de forças
antagônicas.
Também o direito não aparece em todos os
momentos da sua evolução com o mesmo caráter
primit ivo de titânico escalador do Céu e domador de
monstros. Conforme as influências das épocas e a
energia dos espíritos, as suas pelejas são mais ou menos
serias, mais ou menos grandiosas.
Homero e Leopardi escreveram a batracomioma-
quia, isto é, a luta das rãs com os ratos. Esta palavra me
serve. Quer povos, quer indivíduos, mostram-se às vezes
adequados a um semelhante conceito.
A prova, podemos tirá-la de nós mesmos, quero
dizer, de nós brasileiros. Todos os nossos combates
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quotidianos – jurídicos, políticos, religiosos, literários,
científicos – são outras tantas batracomiomaquias so-
ciais. Nem mais nem menos do que roer de ratos e
coaxar de rãs.
Mas este fato, que aliás é comum a certas épocas
e a certos povos, não altera o caráter selecional e
artístico do direito.
É verdade – e aqui retomo o pensamento de
Rousseau – é verdade que os diversos processos de
seleção social estão sujeitos à degenerescência, não só
por desleixo, mas também por excesso de rigor nas suas
aplicações. É o caso, quando a religião degenera em
puritanismo, a gramática em purismo, o direito em
fornalismo, o próprio amor em galanteio, a ciência em
pedanteria... Então importa apelar para a natureza,
como meio de reação e salvação única possível.
Foi assim que originou-se a teoria de um direito
natural, em oposição ao estéril empirismo dominante, e
o conceito mesmo de um estado de natureza não surgiu,
senão como reativo contra um péssimo estado social.
Porém ainda aí vai uma prova das relações antitéticas,
em que se acham quase sempre os dois sistemas de
forças, a natureza e a sociedade – de modo que muitas
vezes um tem necessidade de ser corrigido pelo outro.
Se, pois, o aparato social da cultura não é mais do
que um imenso arsenal de armas diversas para vencer e
subjugar a natureza, não é menos certo que esta sabe
também, por sua vez, reagir indômita e fazer valer a sua
onipotência. Grande número de fatos da vida humana
podem explicar-se por meio dessa reação.
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90
Não poucas regras de etiqueta e até de mo-
ralidade, que entretanto são perfeitas violações da
natural coexistência e sucessão dos fenômenos, têm
dado lugar a uma desafronta da Physis contra os
caprichos da Psyché(6)
.
Não obstante, a sociedade continua a multiplicar
os seus liames e a criar óbices ao império fatal das leis
naturais. É certo que nem todas as regras, que ela
impõe, merecem respeito; muitas são como cordas de
filisteus, prendendo a Sansão; um espírito superior as
arrebenta sem grande esforço.
Mas o princípio permanece firme – a sociedade é
uma série de combates contra o geral combate pela
existência, é um conjunto de seleções artísticas, que
melhoram, modificam, alteram a grande lei da seleção
natural.
Agora, porém, é tempo de perguntar: tudo isto
não deixa bem patente que a vontade humana, sendo o
princípio seletor, a causa de todos esses melhoramentos,
modificações e alterações da vida social, revela por isso
mesmo um caráter antinômico das necessidades e fata-
lidades da natureza, e que é justamente esse caráter que
nós entendemos, que devemos entender por liberdade?
Sem dúvida alguma.
Quando, pois, Ernesto Haeckel nos diz que o
querer humano aperfeiçoado é uma... auslesende,
zuchtende Kraft(*), desde que não explica-nos, como
esta força, que de propósito opõe obstáculos a forças e
(*) ... força selecionadora e disciplinadora. (T. do E.).
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tendências naturais, está sujeita às leis comuns, às leis
mecânicas da mesma natureza, nos dá o direito de supor
que aí vai de sua parte – bom-grado ou mau-grado seu –
uma enorme concessão ao princípio da liberdade(7)
.
VI
Ainda uma vez convém repetir, para que fique
bem assentado: eu só me ocupo da liberdade empírica,
de que dá testemunho a consciência. Se por detrás da
vontade, que se sente livre, esconde-se força estranha,
que a impele, sem ela saber, para este ou para aquele
lado, é questão que entrego de todo à meditação dos
teólogos.
A liberdade, de que falo, não é a deusa que
aparece em sonho aos metafisicos de antigo estilo , não é
uma graça, nem um dom do céu, mas simplesmente uma
conquista, um hábito ou um jeito, que o homem adquire,
de dirigir seus atos para um alvo real ou ideal, por ele
prefigurado, e quase sempre em oposição ao pendor da
natureza, da mesma forma que se pode adquirir o hábito
de nadar contra as correntes.
Assim compreendida, a liberdade tem graus de
aperfeiçoamento, que correspondem a outros tantos
graus de desenvolvimento, no duplo sentido da onto-
genesis e da phylogenesis, segundo a própria doutrina de
Haeckel.
Destarte me parece tão explicável que um des-
cendente de heróis não ache dificuldade em encaminhar
seus atos, isto é, uma ordem de sentimentos e movi-
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92
mentos, na direção seguida por seus avós, quanto é
explicável que o oriundo, por exemplo, de uma família
de pianistas facilmente acomode uma outra ordem de
movimento e sentimentos às duras exigências ddo
teclado.
A liberdade, que é costume definir como uma
faculdade, melhor definir-se-ia como uma facilidade,
disciplinar e artisticamente adquirida.
Em face destas idéias, ainda achar inconcebível
que o homem seja livre, é o mesmo que não com-
preender como pode um maquinismo, um artefato
qualquer, levar vantagem a outro no arranjo e harmonia
de suas partes, trabalhar e funcionar melhor do que
outro. Ser livre, pois, é um produto da arte, tanto mais
perfeito, quanto mais elevado é o escopo da atividade
humana, e em tais condições o homem vem a ser o
artista de si mesmo.
Ainda limitado por este modo o conceito da
liberdade, reduzida ela a este minimum de realidade
positiva – e é o que basta – o problema sociológico
torna-se impossível.
No empenho de demonstrar a validade da
sociologia, Gustave Le Bom apresenta quatro hipóteses,
únicas possíveis, de explicação dos fenômenos sociais, e
excluindo as três primeiras, que julga inaceitáveis, só
deixa de pé a última, que é justamente a sua tese.
Ei-las aqui: primeira, um poder superior,
chamado Deus ou Providência, dirige a seu bel-prazer as
ações dos homens; segunda, os acontecimentos são o
resultado do acaso; terceira, os acontecimentos são a
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93
conseqüência das vontades humanas; quarta, os acon-
tecimentos representam uma cadeia de necessidades
estreitamente ligadas, e trazem em si mesmos as causas
de sua evolução fatal.
Dividida assim a questão em quatro pontos de
vista, aparentemente inconciliáveis, nada mais fácil do
que escolher um deles e tirar então, por meio da lógica,
as conseqüências desse pressuposto. Foi o que fez Le
Bom.
Mas o erro é evidente. A separação exclusiva dos
membros da divisão não tem assento nos fatos; é puro
trabalho especulativo, um resultado de análise, que
procede por abstração.
Concedendo-se mesmo ao espírito científico, ao
chamado espírito do tempo, que Deus seja banido da
história, que seja um ingrediente inútil na mecânica
social, nem por isso os outros três fatores deixam de
poder coexistir. A quem disser, pois, que a sociedade se
dirige pela combinação de uma tripla ordem de fe -
nômenos – como dirige pela combinação de uma tripla
ordem de fenômenos – como provar o contrário?
E enquanto se não provar que o acaso é de todo
palavra sem sentido, e que as vontades humanas são
forças naturais, são simples forças motrizes, como o
calor ou a eletricidade, o que vale a sociologia? Nada.
Quanto ao acaso, a questão é mais série do que se
supõe. Pensadores de primeira grandeza ainda meditam
sobre este conceito, que aliás pequeninos espíritos
consideram sem realidade.
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Carlos Ernesto Baer define o acaso: um acon-
tecimento, que coincide com outro, sem achar-se preso a
ele por nenhum nexo causal.
Lazarus Geiger, que consagra a este assunto
algumas linhas bem interessantes, e as primeiras, ao
certo, que foram por mão de mestre escritas a tal
respeito, não hesita em dizer: “Não podemos pôr de lado
a questão do acaso, pois ele se acha entretecido e
indissoluvelmente ligado com tudo que se desenvolve...
Em geral costuma-se negar o acaso, ou afirmar que nada
sucede casualmente. Este erro se origina de uma falsa
apreciação do conteúdo real inerente a qualquer
conceito”.
E depois de mostrar com exemplos que não é
exata a opinião os que descobrem nessa idéia uma
negação de relações causais, proveniente da ignorância
das causas, ele acrescenta: “A intuição do acaso
pressupõe a da causalidade – ainda mais, só a convicção
da verdadeira causa de um fato é que pode decidir sobre
sua real causalidade(8)
.
Para Geiger existem, pois, fenômenos – como ele
mesmo se exprime, ursachlos (sem causa) – fenômenos,
que se dá um verdadeiro e absoluto acaso.
Bem ponderado, é difícil não seguir a opinião de
Geiger. O mundo e a natureza apresentam quotidianas
coincidências, cuja explicação não pode ser dada por
nexos causais. Como, porém, o espírito humano sente a
necessidade de ligar a todo fenômeno uma causa, ele
transporta muitas vezes esta lei do pensamento a
domínios, onde ela não vigora; e daí resulta uma porção
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de contra-sensos, que ainda hoje perturbam a marcha
regular da indagação científica.
A superstição e a crença no milagre descendem,
em grande parte, dessa conversão arbitrária do casual
em causal.
Porque um eclipse do sol ou da lua sucede ao
mesmo tempo, em que se dá na terra um fato horrível –
o massacre de uma família, ou o martírio de um justo –
o homem observando esta coexistência de fenômenos,
que aliás pertencem a duas séries independentes de
causas, confere-lhe também o caráter de efeito, que deve
então ser produzido por um poder superior; e daí a velha
idéia dos sinais celestes, das ameaças divinas, que põem
em agitação o mórbido espírito dos crentes.
O paralogismo conhecido sob a fórmula – post
hoc, ergo propter hoc – não consiste, em última análise,
senão justamente nessa transformação do casual em
causal.
É bem sabido como a lógica do povo continua a
amarrar à cauda dos cometas a peste, a guerra, e em
geral todas as calamidades, que porventura depois deles
apareçam na terra. Quanto, porém, são infundadas estas
e outras semelhantes crenças, basta a seguinte
consideração para mostrá-lo.
Suponhamos que uma estrela – e a hipótese não é
gratuita – que a estrela Alcione, por exemplo, de repente
desaparecesse do céu, mas também suponhamos que
esse fato viesse imediatamente depois, um ou dois dias
depois de um grande acontecimento humano – a des-
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truição de um vasto império, a queda do papado, ou
outro qualquer sucesso notável.
Proclamada a morte da estrela pela extinção da
sua luz, qual seria o crente, que não visse no desa-
parecimento do astro um indício da cólera divina,
motivada ou causada pelo fato dado no mundo?
Entretanto é certo que, se isto porventura acon-
tecesse no correr do ano vigente, a estrela em questão
nada tinha que ver com os negócios, que figurei, pela
simples razão de já haver morrido há séculos.
O último alento vital, exalado por ela, teria sido
em 1314, pois que a sua luz gasta não menos de 573
anos para chegar até nós. Não haveria portanto nenhuma
relação de causalidade; e a aparente sucessão imediata
dos dois fenômenos seria um mero acaso.
Como é fácil de compreender, o acaso figura
legitimamente na ordem das idéias, que têm um
conteúdo positivo.
Ludwig Noire, que adota a doutrina de Geiger,
escreveu por sua vez o seguinte: “A razão pode somente
sondar o geral das coisas; o particular se subtrai ao
cálculo. Quando mesmo o nosso conhecimento se
alargasse o mais possível; quanto mesmo toda a matéria,
todos os movimentos do nosso sistema solar fossem
conhecidos, e a menos pequenineza, como a maior
grandeza, pudesse ser prevista com exatidão astro -
nômica – seria por isso todo o acaso transformado em
necessidade? Não, decerto. Restariam sempre sem
solução científica estas questões: por que razão a terra e
os demais planetas, por que razão o sol, se acham
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97
exatamente agora no grau de desenvolvimento, em que
vemo-los, e por que exatamente nesta parte do espaço, e
não antes em uma outra?...”(9)
Como se vê, o acaso está escondido por detrás de
tais perguntas.
Ora, de acordo com a intuição monística, a
preponderância do movimento ou do sentimento deter-
mina também o predomínio da causa efficiens ou da
causa finalis. Se, pois, no império das causas eficientes,
há fenômenos ursachlos (sem causa), que são os que
têm caráter casual – no domínio da s causas finais, há
fenômenos swecklos (sem alvo, sem fim, sem plano),
que trazem também o caráter de casualidade.
Deste modo o acaso não pode ser banido, nem da
esfera da natureza, onde imperam as causas mecânicas,
nem da esfera social, onde a finalidade tem o seu
predomínio.
As quatro hipóteses de Le Bon me parecem
quatro pés, indispensáveis todos à marcha da sociedade.
Se dentre eles algum se mostra manco e pesado, é a tal
cadeia de necessidade, pois até hoje, no que toca a vida
social, não tem passado de um conceito a priori, donde
a dialética pode tirar bonitas conseqüências teóricas,
mas a prática nada tem haurido de útil e aproveitável.
Estabelecendo esse número determinado de pres-
supostos – nem mais nem menos – o sociólogo francês
cedeu talvez a uma velha mania, que nos leva a
representar certas coisas misteriosas sob a imagem
simétrica do quadrado.
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98
Assim, quatro eram os rios que banhavam o
Éden, como quatro eram as faces da visão de Ezequiel,
que depois serviram de símbolo dos quatro evangelistas,
e ainda quatro as bestas, que Daniel sonhou, prefi-
gurando quatro impérios.
Também quatro foram as hipóteses, que apare-
ceram ao espírito de Le Bon como únicas concebíveis
para explicar a ordem social. Não dir-se-ia uma espécie
de quadrupedismo da razão profética, do qual também
às vezes se ressente a razão socióloga, que é uma digna
irmã da razão teóloga? Pergunto apenas.
Deus mesmo, o obscuro e incognoscível Deus!...
Com o devido respeito: eu o ponho fora do templo da
ciência, ainda que o admita como objeto de poesia e de
amor no templo da religião. Dá-se com Deus, na esfera
científica, pouco mais ou menos, o que se dá, na esfera
política e social, com os poderosos da terra: assim como
estes fazem pender para o seu lado a balança da ju stiça,
ele faz a lógica ser indiferente ao sacrifício da verdade.
Desde que Deus é hóspede da ciência, como pode ela
dizer coisa que o ofenda, ou tomar atitude contrária ao
Senhor dos exércitos? Sobre isto nenhuma dúvida.
Mas também, por outro lado, será certo que ele
não deve ser levado em conta alguma pelos arquitetos
do edifício sociológico? A parte que cabe a Deus no
mecanismo da sociedade, é tão nula, como a que lhe
cabe no mecanismo da natureza? Excluído Deus como
poder, como força criadora dos fenômenos naturais, é
fácil também excluí-lo como poder, como força
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99
motivadora de fenômenos sociais? Estas questões me
parecem de algum valor.
Não é decerto em nome de Deus, que os planetas
giram em torno do sol, e as falenas em torno da luz, que
vai queimá-las; não é decerto em nome de Deus que o
mar se quebra na praia, ou os rios caem dos montes, ou
a chuva estraga as searas, ou a peste mata os rebanhos.
Mas é incontestável que o homem, em nome de Deus,
fazendo muita coisa má, também faz muita coisa boa.
Não é preciso ser devoto para afirmá-lo; a sinceridade
científica obriga a reconhecê-lo.
Se, pois, Deus pode ser banido do universo
inteiro, como força real, mediata ou imediatamente
eficaz, não pode sê-lo da sociedade como força ideal,
que, sob a forma psicológica do motivo, concorre para
um sem-número de ações elevadas, como também para
um sem-número de ações indignas, mas é sempre força,
aliás não suscetível de explicação mecânica, e como tal
destinada a perturbar os cálculos de qualquer ciência,
que pretenda reduzir os movimentos da dinâmica social
à exatidão das fórmulas da dinâmica celeste.
E aqui importa observar que não estou longe de
subscrever a terrível opinião de F. von Hellwald
(Culturgeschichte): “Um dos problemas da ciência, diz
ele, consiste em destruir todos os ideais, provar a sua
inanidade, o seu nada, e mostrar enfim que a fé em
Deus e a religião não passam de um engodo; que
moralidade, amor, liberdade e direitos do homem, não
são mais do que mentiras”.
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Mas é bom que nos entendamos. Há verdadeiros,
como há falsos ideais, e só estes últimos é que podem, é
que devem ser destruídos. Todo ideal – eu creio –
envolve uma ilusão, mas nem toda ilusão envolve uma
mentira.
Nada de mais ilusório, por exemplo, do que a
eterna felicidade, que se prometem dois corações
amantes; entretanto nada de mais verdadeiro do que o
amor, que lhes arranca lágrimas, ainda que lágrimas
risonhas – dakrya gelasasa, como diria Homero – o
amor insubordinado, sempre menino e ignorante, que
não sabe lógica nem retórica, que não o bedece à lei
alguma, porque ele mesmo julga-se uma lei.
Que a humanidade se iluda, acreditando na
realidade dos seus sonhos, ou, como disse Feuerbach,
convertendo os seus desejos em outros tantos deuses –
pensamento este, que já tinha germinado no espírito de
Virgílio (Eneida – IX, 184), quando fez Niso perguntar
a Euríalo... an sua cuique deus fit dira cupido?... que a
humanidade se iluda por sua própria conta – é seu
destino, e ela cumpri-lo-á. Que ninguém, porém,
pretenda mais iludi-la, nem impor-lhe cadeias, que ela
mesma não se impõe – este, sim, é um dos grandes, um
dos maiores problemas, que à ciência incumbe resolver.
Quero crer que Deus, para o comum dos homens,
não passa de uma palavra. Mas a palavra também é uma
força, que não só na história das religiões, porém ainda
em todos os distritos da história humana em geral,
continua a representar um importante papel.
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Esta palavra, pois, que não perdeu nem sei se
perderá jamais de todo a sua velha magia, ainda quando
seja reduzida a um simples conceito gramatical, ao
conceito mesmo de um nome, que só tem vocativo, de
uma interjeição, de um grito da alma, constitui, por si
só, para a sociologia, um embaraço invencível(10)
.
VII
Se para justificar o nome de ciência, atribuído a
esta ou àquela espécie de conhecimentos, bastasse
alegar que desde antigos, antiquíssimos tempos,
filósofos e pensadores de primeira grandeza tentaram
dar a esses conhecimentos um caráter científico,
procurando organizá-los e reduzi-los a sistema, a
sociologia ou a ciência da sociedade seria ao certo uma
das mais autorizadas.
Porquanto, com a primeira reflexão que o homem
fez sobre a origem das coisas, surgiu também a primeira
reflexão que ele fez sobre a ordem das coisas. É o
começo de toda a filosofia.
Diz bem Eduardo Lasker: “uma genética e uma
ética são as formas primitivas do saber humano”. A
mesma necessidade que levou o homem a indagar as
causas geradoras do universo, o impeliu também para a
pesquisa de regras ou de princípios diretores da vida
social.
Pode-se mesmo afirmar que a ética precedeu a
genética, no sentido de que, bem antes que os espíritos
reduzissem à forma científica os seus conhecimentos
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sobre a natureza, já havia uns vislumbres de ciência
prática. A época dos Anaxágoras e dos Demócritos veio
depois da dos Cleóbulos e dos Tales. A sabedoria
gnômica dos sete sábios antecedeu às especulações das
escolas gregas. As sentenças ou máximas, que se lhes
atribui, são induções baseadas na observação dos fatos e
relações sociais.
Assim, quando Pítaco dizia: pondera bem o
tempo; ou Cleóbulo aconselhava: moderação em tudo;
ou Periandro de Corinto: refletir, antes de obrar; eram
os primeiros lineamentos de uma ciência futura, que,
sob o nome de política, ou de sociologia, ou sob outro
qualquer título, havia ainda de pretender entr ar no
conhecimento das leis que regem a sociedade humana, e
assim contribuir para a sua melhor direção(11)
.
Entretanto a cultura helênica prosseguiu na sua
marcha. Com a revolução operada por Sócrates, a
ciência da natureza ou a física isolou-se da ciência do
homem ou filosofia propriamente dita, que passou a ser
metafísica. A esta incorporou-se a ciência de Deus, bem
como a da sociedade.
Todos os grandes sistemas filosóficos fizeram
sempre a sua parte da sociologia. Platão e Aristóteles
foram também sociólogos. Mas o que há enfim de
realmente assentado, depois de tantos séculos de
observação e de estudo, no que toca a uma verdadeira
ciência social? – Coisa nenhuma.
Os sociólogos modernos não desconhecem esta
verdade; porém buscam enfraquecê-la pela consideração
da impropriedade do método, até hoje aplicado à socio -
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logia, que eles julgam dever sujeitar-se aos mesmos
processos lógicos das ciências naturais, para tornar -se
então efetivamente capaz de resolver o seu problema.
Não deixam de ter razão os que assim acusam as
velhas tentativas sociológicas de vaguidão especulativa
e inanidade metafísica; mas nem por isso é menos
censurável a ilusão em que laboram, quando pensam
remediar o antigo mal com a simples mudança de
método.
A questão principal não é de método, mas de
objeto. A sociologia não tem um, que possa ser
regularmente observado. Se ela pretende alguma coisa
séria, é sem dúvida abranger no seu círculo de obser -
vação a totalidade dos fenômenos sociais e descobrir as
respectivas leis.
É pelo menos o que diz Lilienfeld, um sociólogo
alemão: “Estado, igreja, ciência, arte, vida comunal,
direito, força, liberdade social, não são especulações,
porém realidades, como a forma e o movimento dos
corpos. A sociologia não pode negar, nem deixar desa-
percebidas essas realidades; ela deve procurar inquiri-
las e explicá-las”(12)
.
Mas isto será possível? Não nos paguemos de
palavras vãs. O positivismo, que criou a bárbara
expressão de sociologia, aliás bem adaptada à esdrúxula
idéia da coisa, nos fala de uma estática e uma dinâmica
social, aquela compreendendo as leis da existência, e
esta as leis do desenvolvimento da sociedade; porém a
pergunta surge espontânea: que sociedade? A humana,
por certo.
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Mas a rase – sociedade humana – ou não passa
mesmo de uma frase, ou é simplesmente a soma dos mil
e quatrocentos milhões de terrícolas. Como tal, entre-
tanto, no sentido jurídico, moral, religioso, político e até
econômico e comercial, não tem valor nenhum.
Se, porém, o objeto da ciência não é a sociedade
em geral, mas esta ou aquela geográfica e
historicamente determinada, não diminuem por isso as
dificuldades de observação, e acresce que teríamos
tantas sociologias, quantos são os grupos sociais, que
mostram um caráter distinto e um desenvolvimento mais
ou menos homogêneo – ou sejam raças, ou povos, ou
Estados, províncias, municípios, etc. – o que aliás não
merece uma refutação.
Não a merece decerto. Os próprios sociólogos
estão de acordo em que a humanidade não apresenta a
mesma feição nos diversos pontos da terra, isto é, não
tem obedecido por toda parte, com igual sucesso, à lei
do desenvolvimento.
Povos, até ainda existem, que nem sequer já
passaram pela primeira forma da evolução humana, que
é puramente mecânica, e consiste na simples mudança
de lugar – a evolução geográfica, a emigração. E pelo
que toca à evolução morfológica, fisiológica e psico-
lógica, ou melhoramento de formas, de funções orgâ-
nicas e atividades espirituais, a diversidade é também
ainda tão pronunciada, que mal se compreende a reunião
de coisas tão heterogêneas sob um só conceito, sob a
idéia geral de gênero humano.
105
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Este fato, que é incontestável, é que tem mesmo
determinado alguns prógonos e epígonos da sociologia a
dividir e classificar os povos do globo em diferentes
grupos, correspondentes às diversas fases da ascensão
evolucional da espécie inteira. Assim, Littré dividiu-os
em sete classes, começando, de cima para baixo, pelas
nações cultas da Europa e da América, e terminando
pelos selvagens da Nova-Holanda. Gustave Le Bon,
porém, fez uma divisão de quatro membros, princi-
piando, de baixo para cima, pelos homens da idade de
pedra talhada, e acabando pelos povos civilizados(13)
.
Como se vê, o célebre discípulo de Comte
encarou a espécie humana em seu estado atual, ao passo
que o outro sociólogo observou-a em sua marcha
histórica, no imenso decorrer dos tempos. Littré fez uma
classificação estatística; Le Bon, porém, procurou fazer
uma classificação filogenética(14)
. Mas ambas têm o
mérito comum de tornarem ainda mais patente a
impossibilidade da sociologia.
Com efeito, se é inconcebível uma ciência capaz
de abranger em seu vasto círculo, a totalidade dos
fenômenos de uma societas gegneris humani, que nunca
existiu, que não existe, que é uma concepção meramente
subjetiva, um sonho de ambição política, ou de êxtase
religioso – não o é menos uma porção de ciências
particulares, esgalhos de um mesmo tronco, que se
incumbissem de estudar separadamente os diversos
pontos de partida e pontos de parada do desen-
volvimento humano.
106
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Como sujeitar a leis sociológicas a vida dos
selvagens da Nova Holanda – e ainda menos admissível
– a dos homens da idade de pedra talhada?... A coisa é
realmente digna de riso.
Mas é possível que me redarguiam: a sociologia
só se ocupa, só quer se ocupar da humanidade
considerada em suas alturas, como ela se manifesta
entre as nações cultas. Mesmo assim, porém, o problema
continuaria insolúvel.
A sociologia, que deste modo não seria mais do
que uma irmã bastarda das velhas histórias da
civilização e filosofias da história, nada teria a
apresentar de próprio e novo: poderia até, nas fecundas
sínteses de um Guizot, ou nos prodigiosos fragmentos
de um Herder, ir beber muita idéia que a esclarecesse e
chegasse a convencê-la da sua impertinência.
Deixemo-nos de cerimônias, e digamos toda a
verdade. Em geral os sociólogos não são homens com
quem se possa falar sério; são espíritos incompletos ou
doentes. Não é em vão que esta nova raça de
filosofastros tem tido maior incremento nos países
atrasados, como Brasil, Portugal e outros, diminuindo o
seu número na razão inversa da cultura dos povos entre
os quais eles aparecem.
Sim – digamos toda a verdade. Augusto Comte
foi sem dúvida um grande homem, mas fez à filosofia
um grande mal. A história não oferece exemplo de
sistema algum, que tanto abrisse caminho ao diletan-
tismo filosófico, como a chamada escola positiva.
107
107
Nem há asserto mais inexato do que o de Littré,
quando diz que... “a filosofia positiva é severa e árdua;
que ela sujeita os seus discípulos à rude lei de
aprender...”. A experiência mostra o contrário. Entre
nós, pelo menos, com a sua pretendida lei dos três
estados e com a sua sociologia, o positivismo dispensa
quaisquer outros estudos.
A expressão: eu sou positivista – não quer so-
mente significar uma nobre qualidade, ou um título
honorífico; é muitas vezes também uma razão decisiva,
um argumento peremptório. Os discípulos e subdiscí-
pulos da célebre seita pertencem pela mor parte à ordem
dos malucóides (mattoidi), de que fala Lombroso.
Augusto Comte era um espírito grave; mas nem
por isso deixa de afigurar-se-me às vezes como uma
espécie de Fallstaff da filosofia, que poderia também
dizer de si mesmo: I am not only witty in myself, but the
cause, that wit is in other men. (Tradução livre: “eu não
sou somente um homem alienado, mas também a causa
de que outros percam a cabeça...”).
Bem pode parecer que, assim me exprimindo, eu
obedeça à minha velha predileção pela Alemanha e a um
tal ou qual desagrado que em geral me causam os
produtos do espírito francês. Completo engano.
É certo que não faço segredo do meu
germanismo. Na questão suscitada por Lord Dunsany –
se gaulês ou teutônico – não duvidaria tomar, em todo
caso, o partido do nobre inglês e pronunciar -me pela
preferência do segundo.
108
108
Mas isto não me veda reconhecer que a Alemanha
também pagou a sua quota de papel e tinta à mania da
época. Os seus positivista, que aliás contam-se nos
dedos, não me são menos antipáticos do que os
franceses, posto que sinta-me obrigado a confessar-lhes
um pouco de gratidão, por haverem eles indiretamente,
com a maior robustez dos seus argumentos e a maior
profundeza das suas indagações, melhor assentado a
insustentabilidade do positivismo e sobretudo a inani-
dade da sociologia.
Não é uma afirmação gratuita; vou dar a prova.
Em um artigo dos “Anais prussianos”, intitulado –
Positivistische Regungen in Deutschland – diz Hugo
Sommer: “Por muito tempo o positivismo celebrou
somente em França e Inglaterra os seus principais
triunfos, ao passo que a Alemanha se mantinha para com
ele em posição um pouco desdenhosa. Entretanto
ultimamente o professor de filosofia Ernesto Laas, em
Estrasburgo, fez a séria tentativa de introduzi-lo também
entre nós; razão pela qual, à vista da profunda
influência, com que semelhante doutrina ameaça o nosso
pensar e o nosso sentir, não será destituído de um certo
interesse geral sujeitar essa tentativa a uma análise
crítica”(15)
.
Esta crítica foi realmente exercida, e de um modo
magistral. Os pontos fracos do positivismo, ainda que
protegidos por uma nova e mais forte camada de
considerações científicas, foram todavia postos a des-
coberto sem a mínima reserva, sem piedade alguma. O
positivista alemão não atingiu o alvo que visara. A
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109
pátria de Kant não se deixou influenciar pela doutrina
de Comte.
E releva notar que Hugo Sommer não deu uma
idéia exata dos fatos, quando asseverou que Ernesto
Laas foi o primeiro a querer introduzir o positivismo na
Alemanha. A obra de Laas é de 1882(16)
, e bem antes
dessa época, em 1873, Lilienfeld, a quem já citei, havia
aparecido com o primeiro volume dos seus – Pensa-
mentos sobre a ciência social do futuro – no qual se
ocupou da sociedade humana como organismo real, e
pretendeu mostrar que é tão possível uma ciência deste
organismo, como dos outros organismos da natureza.
É verdade que Lilienfeld não se colocara no
mesmo terreno de Laas. O seu positivismo é mais
modesto, mais reservado, e quase que se limita
exclusivamente à questão da sociologia, ao passo que o
professor de Estrasburgo, para quem o ideal da ciência
é... “poder um dia, das propriedades imutáveis dos
agentes elementares, levada pela mão da lei da
causalidade, depreender a razão por que acontece isto
ou aquilo, exatamente neste ou naquele lugar, e neste ou
naquele tempo...”, o professor de Estrasburgo, dizemos,
toma uma posição decididamente agressiva e hostil à
filosofia alemã.
Nem um nem outro, entretanto, acharam eco no
espírito público do seu país. Devo, porém, observar que
o livro de Lilienfeld não é todo para pôr-se à conta de
uma escola opiniática e atrasada; há nele um certo
número de vistas novas, que certamente merecem
alguma atenção. Além disto, o escritor não caiu no erro
110
110
comum a todos os mais sociólogos, de dar a sociologia
como feita e acabada por Comte. Ele teve a cautela de
falar somente de uma ciência social do futuro; o que
importa reconhecer, ao invés do que pensam os
sociólogos franceses e seus discípulos, que atualmente,
pelo menos, a sociologia não existe. Já é uma grande
concessão, que convém deixar assinalada(17)
.
Acresce ainda que Lilienfeld foi o primeiro a
enunciar a idéia de uma embriologia social, paralela à
embriologia individual, e capaz de prestar os mesmos
serviços que esta última tem prestado nas mãos de um
Baer e de um Haeckel – idéia que não veio decerto
diminuir as dificuldades do problema, como teremos
adiante ocasião de ver, mas entretanto não deixou de
dar-lhe uma nova aparência de seriedade científica, e
talvez por isso mesmo foi aproveitada e repetida, anos
depois, pelo francês G. Le Bon.
A menção que fiz dos dois positivistas e
sociólogos alemães foi simplesmente exemplificativa.
Anteriormente a eles, em 1860, duas grandes nota-
bilidades, Moritz Lazarus e Heinrich Steinthal, já ti-
nham feito a seu modo, quero dizer, em mais vasto
plano, com proporções grandiosas, um tentame do gê-
nero, criando o célebre Zeitschrift Voelkerpsychologie.
Ora, o conceito da psicologia dos povos é irmão, se não
o mesmo que o de uma ciência da sociedade humana.
Mas o fiasco foi completo; o jornal não pôde
durar muito tempo. E se os dois sábios editores não
tivessem, para firmar a sua reputação, outros trabalhos,
senão os que se acham no pretensioso Zeitschrift, é bem
111
111
dubitável que alguém hoje se lembrasse de pronunciar -
lhes os nomes, com aquele respeito que sóem infundir
os legítimos representantes da ciência alemã.
VIII
A idéia da possibilidade e realidade de uma
sociologia procede de duas fontes distintas: o
predomínio das ciências naturais, por um lado, e um
certo número de aberrações políticas, por outro,
características do nosso século.
As ciências naturais, com efeito, têm podido por
seus triunfos cativar o espírito público, e esses triunfos
são sobretudo devidos à simplicidade e rigor do seu mé -
todo, bem como à importância prática dos seus resul-
tados. Daí o seguinte fenômeno geralmente observado:
tudo que de qualquer modo e em qualquer domínio
pretende chegar a um verdadeiro conhecimento,
endireita logo a sua marcha pelo caminho das ciências
naturais.
Daí também, portanto, o geral esforço que se nota
até em filósofos e literatos, para construírem uma
intuição mecânica do mundo, na qual antes de tudo só se
trata da relação de causalidade, do assinalamento de
causas e efeitos, da indicação de leis, que dominam os
acontecimentos. E esta exagerada apreciação traz como
conseqüência atirar-se para o segundo plano, como uma
superfluidade, aquela ânsia que há no espírito humano,
de conhecer também o que não lhe é imediatamente
112
112
atingível, nem lhe chega pela senda de exata
investigação.
Não serei eu, por certo, quem condene a
aplicação do método naturalístico a assuntos que até
hoje pareciam não comportá-lo. Não serei eu quem
condene a intuição e explicação mecânica do mundo
inorgânico e orgânico, até onde essa explicação é
cabível.
Mas ainda aqui estou agarrado ao manto de Kant,
para quem, como já vimos anteriormente, em relação à
forma dos organismos, há sempre um resto que a
mecânica não explica – aumentando esta inexplicabi-
lidade na medida do maior desenvolvimento dos mesmos
organismos e maior complicação de suas funções. Por
conseguinte, quando se atravessa toda a série de seres
organizados e chega-se a formações superiores, como o
homem, a família, o Estado, a sociedade em geral, o
mecanicamente inexplicável já não é um resto, mas
quase tudo. O que há de restante, exiguamente restante,
é a parte do mecanismo, a parte do movimento.
Aí está, pois, a origem do mal. Os sociólogos,
que em regra são espíritos tomados de admiração pelos
progressos e conquistas das ciências naturais, entendem
que nada há mais fácil do que construir a sua sociologia,
aplicando-lhe unicamente o método naturalís tico, isto é,
observando e induzindo. A ilusão é compreensível, mas
não desculpável.
A outra fonte da mania dominante, disse eu que
devia procurar-se nas extravagâncias políticas do nosso
tempo, em virtude das quais chegou-se ao ponto de
113
113
conceber o Estado e a sociedade como dois seres
diferentes, ainda que de igual posição, colocados vis-à-
vis um do outro, sendo que as suas pretendidas relações
recíprocas são julgadas diversamente pelos partidos
políticos e escolas filosóficas, conforme o ponto de
vista prático ou teorético de qualquer desses partidos ou
escolas.
Assim, para o liberalismo, o Estado é o criado da
sociedade, um criado, porém, que sabe ser indispensável
e não pode ser despedido, e que por isso é um pouco
inclinado a se mostrar arrogante e inconveniente. A
relação da sociedade com o Estrado é julgada, como a
de um empresário com os seus trabalhadores, que têm de
executar a sua tarefa, mas nada ordenar nem tomar para
si liberdade alguma.
Politicamente falando, a sociedade é para o
liberalismo o soberano, que já existia antes do Estado, e
só criou este para o seu serviço.
O socialismo por sua vez encara a relação das
duas entidades de um ponto de vista, em parte
semelhante, em parte contrário. Ele exige o arredamento
da concorrência por meio de uma ordem social positiva,
que indique a cada indivíduo o seu lugar e os seus
afazeres. Uma tal ordem parece tornar o Estado supér -
fluo e resolvê-lo de todo na sociedade. A sociedade
organizada não precisa de criado porque ela serve-se a
si própria; não precisa de senhor, porque é senhora de si
mesma.
Aos olhos da democracia – em geral não existe
sociedade. Este conceito, ela o substitui pelo de povo. O
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114
povo é para ela o que é a sociedade para o socialismo,
isto é, o soberano – ou este se deixa servir pelo Estado,
ou sirva-se a si mesmo.
E, com efeito, no seu ponto de vista, a demo -
cracia não deixa de ter razão de rejeitar o conceito da
sociedade e em seu lugar colocar o de povo. Aos
característicos daquela pertence a desigualdade dos seus
elementos, entretanto que no conceito do povo, como
soberano místico, abstrai-se de toda e qualquer
desigualdade.
Por isso também é que a aristocracia separa-os
um do outro. A sociedade, no sentido aristocrático, é
aquela parte da nação, em cujo conjunto são per -
ceptíveis e sabem fazer-se valer elementos desiguais de
notável significação, ao passo que o povo como resíduo
apresenta uma massa indistinta.
Ambos os conceitos, aristocrático e democrático,
coincidem no modo comum de considerar o povo com
um místico-elementar, com a diferença de que para a
democracia, além dessa entidade, politicamente nada
existe, ao passo que para a aristocracia ainda existe a
sociedade, da qual o povo não faz parte.
“Em harmonia com tais idéias, ou errôneas, ou
incompletas – diz F. Froebel, de quem são tomadas
algumas destas últimas considerações – surgiu a pre-
tensão de fundar com uma teoria da sociedade uma nova
ciência especial, quando é certo que essa teoria não
pode ser senão uma parte da teoria política em geral,
composta de elementos histórico -naturais e ético-
tecnológicos, pois que o pensamento diretor dos fatos e
115
115
juízos nela reunidos outro também não pode ser senão o
pensamento político.
É bem compreensível que numa época de
fermentação das idéias morais possa surgir semelhante
bolha de sabão teorética; porquanto uma tal nova
ciência seria o cânon, felizmente descoberto, do
socialismo, cujo conteúdo bastaria somente ser ensinado
nas escolas para tornar o Estado supérfluo em relação
aos negócios internos, e ao mesmo tempo animar a
esperança de que, com a final abolição dos limites entre
as nações e o estabelecimento de uma geral sociedade
humana, desapareceria também a necessidade dos
aparatos de defesa nacional...
As viagens projetadas para o país desta ciência
nova, são por isso tão sedutoras para uma fantasia
impolítica, como para uma impolítica especulação...”(18)
.
Perfeitamente bem. É assim que se rende preito à
verdade. O célebre companheiro de Roberto Blum, que
foi ao princípio uma vítima de ilusões políticas e
científicas, sabe hoje tirá-las com mãos de mestre. A
teoria, que ele qualifica de tonteira (Schwindel), de uma
sociologia ou ciência da sociedade, distinta da política,
não tem razão de ser, como não a tem a concepção
fantástica da sociedade e do Estado, como dois
organismos diversos e coordenados, mas não
subordinados um ao outro.
Entretanto o mais admirável é que filósofos da
estatura de Eduard von Hartmann e espíritos nota-
bilíssimos, como Lorenz Stein e muitos outros, tenham
prestado o apoio da sua autoridade e semelhante des-
116
116
propósito. E alguns não se limitam à díade do Estado e
da sociedade, associam-lhe ainda a velha Igreja, e
tratam de estudar a natureza desta tríade e descobrir as
leis da sua coexistência.
É verdade que Hartmann não comete os desatinos
comuns ao liberalismo e ao socialismo; pelo contrário,
ele vê com exatidão que a sociedade sai do Estado antes
do qual ela não pode existir, nem é ela que o cria para
os seus fins. O conceito da vida privada não pode surgir
senão por meio da consciência de uma vida pública.
Os primeiros impulsos que reúnem os homens e
mantêm-nos reunidos, são impulsos físicos, e os seus
efeitos históricos naturalmente apreensíveis e darwinis-
ticamente explicáveis. Mas também a reunião não vai
além da família natural, e um rebanho de homens não é
menos indigno do nome de sociedade, do que um
rebanho de animais.
Ouçamos ainda Júlio Froebel: “O Estado é quem
sujeita a sociedade aos seus desígnios, dando -lhe um
arranjo finalístico e pondo o seu movimento numa
direção metódica. Dentro deste arranjo e deste método, a
vida privada, de cujas relações compõe-se a mesma
sociedade, conserva a sua liberdade individual; somente
deve-se notar que é fácil a ilusão sobre a medida dessa
liberdade, ainda quando exista a maior parcimônia da
parte da legislação e do governo em todas as relações
sociais.
“No seio mesmo da mais livre sociedade a
vontade do Estado só deixa francos e abertos à vida
privada certos e determinados caminhos, que não lhe
117
117
concedem mais espaço, do que as veredas que
atravessam pelo meio de uma bem cultivada paisagem, e
não lhe é permitido tomar outra direção. Acontece que o
hábito, em mil casos contra um, não consente que as
restrições cheguem ao domínio da consciência. Na
realidade a vida social é um movimento executado por
caminhos, de antemão traçados e contidos dentro de
estreitos limites...”(19)
.
Lorenz Stein, de quem também fiz menção, ano é
um filósofo, mas um economista, e como tal não é de
esperar que vá muito além do ponto de vista econômico.
Entretanto ele vê no Estado a unidade de certo número
de homens, elevada à altura de uma personalidade, que
se rege e se move por si mesma; vê nele uma comunhão,
que aparece como vontade e como ato, não mais
dependente do capricho e interesse dos indivíduos.
Por sociedade entende ele, porém, a unidade
orgânica da vida humana, determinada pela distribuição
das riquezas, regulada pelo organismo do trabalho, posta
em movimento pelo sistema das necessidades, assim
como duradouramente ligada a certas gerações por meio
da família e seus direitos(20)
.
O erro de Stein, como se vê, consiste em abstrair
a sociedade do Estado, formando de uma e de outro dois
conceitos, que aliás não se excluem. No seu conceito do
Estado já está contido o da sociedade, e vice-versa. Isto
é tanto mais estranhável, quanto é exato que para ele as
duas coisas são na realidade inseparavelmente unidas,
para que, pois, com aquela dupla definição de uma
mesma idéia, auxiliar a vertigem de uma nova ciência
118
118
social – que nunca formar-se-á – ao lado da do Estado,
que ainda não está feita?
X
Eu sinto que tenha aqui de estranhar também a
um homem, a quem voto a mais profunda admiração, o
grande jurista e professor von Jhering, algumas das suas
idéias sobre o assunto que nos ocupa. Com efeito, na
última de suas obras – Der Zweck im Recht – prin-
cipalmente no segundo volume, onde o pensamento
diretor tomou novas e mais largas proporções, não
prometidas, nem sequer dadas a conjeturar no primeiro,
o ilustre autor esquematiza por demais a sociedade
como sujeito à parte, com suas próprias leis e seu
próprio desenvolvimento – contribuindo assim para re-
forçar a crença na ciência de um organismo autonômico
e autocinético, justaposto, se não antes superposto ao
organismo do Estado(21)
.
Não se faz preciso dizer que este não é realmente
o intuito do célebre jurista; mas há uma tal ou qual
aparência de Sê-lo, e tanto basta para perturbar o juízo
de leitores menos despreocupados. Não posso pois
deixar de sujeitar a uma crítica alguns pontos do escrito
de von Jhering, ainda que esta crítica seja feita, e só
deva ser feita... de joelhos.
É sabido que Herder, quando atacou a obra de
Kant, observou humoristicamente que a Crítica da
Razão Pura, em seu esquematismo, coordenava todos os
conceitos humanos de modo a formarem uma dualidade
119
119
simétrica, e que o próprio autor muitas vezes se
admirava de como eles se punham em ordem por si
mesmos e sem o seu intermédio...
Igual observação poder-se-ia fazer a respeito do
livro de von Jhering, com as suas esquematizações e os
seus grupos de conceitos coordenados em díades e
tríades sistemáticas, mas não de todo correspondentes à
realidade dos fatos.
Assim, entre outras, e como frisante exemplo do
que acabo de notar, limito-me a referir à dupla divisão
tripartida de uma ordem jurídica, uma lei jurídica e uma
coação mecânica do poder do Estado, por um lado, e
por outro lado, uma ordem moral, uma lei moral, e uma
coação psicológica da sociedade(22)
.
A coisa não é tão simples, como parece. A ordem
jurídica, não é mais do que a parte melhor acentuada da
mesma ordem moral. Elas são complementos, não
antíteses, uma da outra. Os fatores da primeira são mais
patentes – os da segunda mais latentes. A ordem moral,
que para von Jhering se confunde com a ordem social, é
a atmosfera da ordem jurídica – não podendo valer em
contrário a objeção das revoluções, que parecem querer
destruir esta última para melhorar a primeira.
Porquanto, antes de tudo, não se deve confundir
ordem jurídica com governo, nem também perder de
vista, que em tais condições, quero dizer nos casos de
revolução, o que se pretende é acabar com um estado de
desordem, restabelecendo a ordem jurídica em harmonia
com a ordem moral.
120
120
Quanto à lei ética, defrontando com a lei do
direito, é mister que nos entendamos. Se trata -se de uma
lei moral autonômica, a lei que o indivíduo impõe-se a
si mesmo – salta aos olhos que ela nada tem que ver
com a sociedade, pois tem o seu fundamento na
consciência individual.
Se trata-se ao contrário de uma lei moral
heteronômica, isto é, de uma lei imposta pela sociedade
em geral, ou por uma religião, por uma igreja em
particular – então... reconheçamos a verdade: aqui já
não se cogita de moral, porém de alguma coisa que não
é propriamente direito, mas como tal funciona.
Essa moral heteronômica é que dá lugar à coação
psicológica, de que fala o nosso autor, em oposição à
coação mecânica da ordem jurídica. Entretanto releva
notar que as duas formas de coação não se excluem;
nem psicológica é estranha ao direito, nem a mecânica é
incompatível com a moral.
Um indivíduo, por exemplo, que só deixa de
praticar um crime, formidine poenae, não é mais do que
um coagido da primeira espécie. Por outro lado, aquele
que abandona a prática de uma ação, juridicamente
indiferente, mas, entretanto, capaz de provocar a
indignação geral, que súbito se manifesta e à força de
pedradas o obriga a não continuar, obedece unicamente
a um meio mecânico. A história dos teatros dá
testemunho de não poucos casos desta natureza.
Nem de outro modo seria compreensível que aquele
alguém, de quem dizia Talleyrand ser mais sagaz que
Bonaparte, mais sagaz que todos os pilotos do mundo,
121
121
passados e futuros, isto é, a opinião pública, tivesse tanto
poder, e fosse mesmo, como pensava Palmerston, a única
força movente dos negócios políticos.
A opinião pública, assim considerada, é uma
espécie de organização da moral heteronômica, produto
da sociedade, no sentido iheringiano; moral que, como o
direito, também tem a sua mecânica, o seu aparato
material de compelir os remissos e propelir os afoitos.
A própria moral autonômica, a verdadeira moral,
não pode dispensar de todo os meios mecânicos. De
acordo com a filosofia monística – é a parte do movi-
mento, ainda que mínima, inseparável do sentimento.
Para melhor compreensão, basta lembrar as palavras –
benevolência e beneficência. Uma benevolência que se
limita somente a querer o bem dos outros, sem realizá-
lo em qualquer grau ou ao menos tentar realizá -lo, não
constitui moralidade. Mas também a beneficência –
ainda quando manifestada pelo simples fato do estender
a mão, que leva o óbolo oferecido ao pobre – obje-
tivamente apreciada, é um fenômeno cinético.
De tudo isto – eu creio – facilmente se depreende
que o grande jurista tedesco não andou bem na dupla
construção de uma ordem jurídica e uma ordem moral,
que levada com lógica pode chegar ao errôneo dualismo
do Estado e da sociedade, como entidades autônomas e
independentes; donde procede a idéia de uma
sociologia, filiada às ciências naturais, segregada da
política e superior a ela.
Este descuido é tanto mais sensível, quanto é
certo que von Jhering, na primeira parte de sua obra,
122
122
desenvolvendo a bela teoria das alavancas da mecânica
social, deixou ver bem claramente que o seu conceito da
sociedade não se presta à formação de uma ciência
particular, com ares de ciência exata, no sentido da
escola positiva.
Porquanto, uma vez estabelecido que quatro são
as forças que põem em movimento o mecanismo social,
isto é, a coação, a paga ou o lucro, o estrito cum-
primento do dever e a abnegação, ou, em outros termos,
o direito, o comércio, a moral prosaica da vida comum
e a moral poética das grandes dedicações e dos grandes
sacrifícios – uma vez isto estabelecido, não há mais
porta aberta para dar entrada a um quinto fator, que sob
o pomposo título de leis naturais, sem que resolva coisa
alguma, vem não só perturbar, como até um certo ponto
inutilizar os outros.
Já era esta, pouco mais ou menos, a teoria de
Robert von Mohl, segundo a qual o Estado, no mais
amplo sentido da palavra, se dirige por três categorias
de leis: leis jurídicas, leis éticas e leis de prudência o u
de conveniência; o que provocou uma injusta crítica de
Constantino Franz, para quem o Estado se origina por
meio de forças naturais; é em seu fundamento um
produto da natureza(23)
.
Mas afinal este mesmo autor reconhece que, ao
lado das leis naturais, existem leis ideais, que regulam a
vida das nações, operando ou devendo operar com
recíproca independência. O modo como isto se dá, é o
que ele não dignou-se de explicar-nos.
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123
Convençamo-nos uma vez por todas. A imagem
não é nova, mas pode ainda ser empregada com van-
tagem: o Estado é uma nau, em frase moderna, um vapor
imenso, com a sua inúmera tripulação de funcionários e
soldados, e ainda maior número de passageiros. Os
passageiros representam a sociedade, isto é, aquela parte
da nação, que se pretende que tenha uma existência
própria.
Ora, assim como pode suceder que muitas
pessoas, durante o trajeto de uma longa viagem, nunca
vejam o comandante do navio que as conduz – assim
também há indivíduos, que levam toda a sua vida, sem
recorrerem aos poderes do Estado, e até sem terem
consciência das garantias que ele oferece.
Mas daí é tão pouco dedutível que esses
indivíduos não precisem de um governo, como que
aquelas pessoas dispensem um comandante. A verdade,
porém, é que às ordens desde se acham tripulantes e
passageiros, ainda quando não o procurem nem o vejam;
e ele, por sua vez, está às ordens do mar e do vento,
cujas leis entretanto lhe são desconhecidas. O mesmo se
dá com a sociedade e o Estado.
X
Além destas e outras aberrações, os sociólogos
ainda são vítimas de uma ilusão, característica do
tempo, quero dizer, a ilusão, a mania da lei – de cujo
conceito se pode afirmar o que Brinz disse do de pessoa
jurídica, isto é, ser apenas um espantalho
124
124
(Vofelscheuche), uma figura de palha para afugentar as
aves, respectivé, confundir os tolos.
Porque a palavra lei – diz John Fiske – é
empregada para designar igualmente as generalizações
de Kepler e os estatutos do parlamento britânico, infe -
riu-se daí que o que é verdade a respeito de uns, deve
ser também verdade a respeito das outras. Mas uma tal
ilação da comunhão de nome para a comunhão de
natureza, é dificilmente escusável.
Que as leis de Justiniano tenham emanado de um
legislador, não é razão bastante para supor-se o mesmo
da lei da gravitação. As primeiras eram editos, que
impunham obediência, ao passo que a segunda não é
mais do que uma expressão generalizada do modo por
que ocorrem certos fenômenos(24)
.
Talvez aqui os sociólogos sintam-se um pouco
satisfeitos, por não serem alcançados pelas palavras de
Fiske, visto que eles não crêem em Deus e como tais
não admitem um legislador pessoal, antropomórfico, da
lei da gravitação. Nenhuma dúvida; mas nem porisso o
erro é menos notável. O que recusam a Deus, conferem
à natureza, que é então para eles a grande legisladora,
com um código tão crescido e variado, que já vai se
parecendo com a coleção de leis do Brasil.
Destarte fala-se, por exemplo, de uma lei que
regula, em uma época dada, o número dos nascimentos,
e outra lei que norma o número dos óbitos; de uma lei
que determina a quantidade dos crimes, e outra lei que
prescreve a repetição dos incêndios, e assim por diante.
125
125
Porém tudo isto – palavreado tosco e vão. Não
tenho motivos de pôr em dúvida a ciência dos
Schloezers, dos Niemanns e Quételets; mas acho-a
demasiado pretensiosa; promete muito e dá pouco. Há
cerca de cinqüenta anos, em 1840, dizia Dufau, um dos
seus cultores: “a estatística tem por alvo responder
questões, não descrever um país”, e ainda hoje a
verdade parece estar na afirmação contrária.
Seriamente, não me consta que ela se tenha
elevado muitos graus acima de um apêndice da
geografia, nem que haja perdido o seu primitivo caráter
de mera ciência descritiva, para assumir o de uma, “cujo
problema é reunir sistematicamente dados, por meio dos
quais, antes de tudo, certos fatos da vida da humanidade
mesma podem ser explicados, segundo o seu nexo
causal, e remontado às leis que o determinam”, confor -
me a fofa pretensão de Quételet.
Os sociólogos costumam pôr a estatística a seu
serviço e alegar que uma tal ou qual regularidade, com
que os números funcionam em certas ordens de fenô-
menos da vida social, é uma prova em favor da
existência das leis sociológicas. Eu, porém, sou mais
exigente; não vejo semelhante prova.
O criador de gado, o fazendeiro bucólico dos
nossos sertões, que apanha, segundo a própria ex-
pressão, os seus cinqüenta bezerros por ano, sabe
perfeitamente que aí não se trata de um número exato,
mas de uma média mais ou menos constante.
Se duas vacas geral anualmente dois bezerros, é
provável que quem possui o décuplo dessas forças
126
126
producentes, também tenha anualmente o décuplo dos
produtos.
Mas este fenômeno, que é tão simples, tão
facilmente compreensível, ninguém ainda se lembrou de
decorar – e seria até ridículo – com o título de lei; para
que, pois, qualificá-lo de tal, quando observado na
sociedade humana?
Já o disse no princípio, e não canso de dizê-lo: a
sociologia é uma frase. Não há um só dos seus
pressupostos, que, bem examinado, não se manifeste
errôneo.
Dificilmente pode-se conter um riso de desdém,
ao ler tiradas como a seguinte, escrita por Lilienfeld, a
quem cito de preferência, por me parecer o sociólogo
mais sério, mais convencido, e que dispõe de mais rica
bagagem científica – “As ciências naturais, diz ele, não
só tem esclarecido e alargado o horizonte espiritual do
homem em face da natureza, mas servem também de
alavancas poderosíssimas do desenvolvimento industrial
e do conforto material da humanidade. Do mesmo modo
deve a sociologia, sobre sólido terreno real, não só dar -
nos uma idéia exata da sociedade, como ainda tornar-se
o instrumento mais eficaz do progresso social, a mais
forte protetora do movimento civilizatório, e um dos
meios principais de elevação da prosperidade geral, do
bem-estar e da felicidade do gênero humano”(25)
.
Porém isto não produz uma certa impressão
cômica? Era em 1873, há quatorze anos, que o sociólogo
assim falava; e de então para cá, o que há feito a
sociologia em favor do progresso e do bem-estar da
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127
humanidade?... Se porventura nos respondem que ainda
não é tempo de vermos realizadas tão importantes
promessas, temos o direito de perguntar, como os
discípulos de Jesus: praeceptor, quando haec erunt...
(quando é que enfim chegará esse tempo?). Ora!...
deixemo-nos de visões escatológicas; basta de palavras
retumbantes(26)
.
Ainda mais característica é a seguinte proposição:
“A estrutura jurídica da sociedade é completamente
análoga à estrutura morfológica dos organismos, e a
perfeição relativa, quer da mesma sociedade, quer dos
mesmos organismos da natureza, é determinada por um
só princípio, isto é, pela maior especialização
possível”(27)
.
Se ao me engano, estas palavras envolvem um
grande contra-senso. Com efeito: uma sociedade, tant0
mais perfeita, quanto mais especializados são os órgãos
que a compõem, é assunto para sérios reparos. A
especialização dos organismos da natureza consiste em
que os órgãos se vão diferenciando, à medida que as
funções se diferenciam, e de tal modo, que aquilo que
uma vez separou-se, não se reúne mais; o que deixou de
ser perna para ser braço, não volta mais a exercer a
primit iva função.
Mas a sociedade não está no mesmo caso. O
maior grau possível de especialização do seu organismo
daria um resultado, que mal se compreende, isto é, fazer
de cada indivíduo o órgão próprio de uma função social
particular. O individualismo, que já perdeu há muito a
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sua razão de ser, entraria de novo na ordem do dia, com
mais crescida dose de exageração e dislate.
Se, porém, a especialização, de que fala
Lilienfeld, não se refere aos indivíduos, mas às classes,
não diminui por isso a dificuldade da questão. As clas -
ses especializadas, no sentido do nosso autor, acabariam
por ser outras tantas castas, tão impossibilitadas de
entrar, de dissolver-se uma na outra, quão impos-
sibilitados, por exemplo, estão os olhos de tornarem-se
ouvidos. E ainda mais impossível seria ordená-las e
hierarquizá-las, de modo a constituírem um organismo
uno e compacto.
Estes e outros erros de Lilienfeld são oriundos do
falso pressuposto, que estraga pela base todos os seu s
argumentos; É a idéia fixa de uma analogia real entre a
sociedade e a natureza – idéia que o conduz a extremas
e absurdas conseqüências, ou fá-lo cometer estranhos
paralogismos.
Assim diz ele confiadamente: “Se a sociedade
humana é um organismo, como os demais organismos,
ela deve mostrar também as mesmas fases evolutivas,
que em geral se dão em todos os fenômenos naturais...”
Mas justamente uma tal seriação do organismo
social nos organismos da natureza é pelo menos o que se
questiona. As palavras citadas encontram-se em um dos
primeiros capítulos do volume(28)
.O leitor não descobre
nas páginas anteriores nenhuma prova da tese que se dá
como assentada; o autor cai, portanto, em uma redonda
petição de princípio.
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Quando à analogia real entre os dois domínios,
ele se exprime em termos bem positivos, que eu me
permiti repetir no original: “Die reale Analogie zwischen
der Gesellschaft und der Natur muss, unserem innersten
Ueberzeugung zufolge, allem wissenschaftlichen Folge-
rungen im socialen Gebiete als Fundament dienen; sie
muss den Ausgangpunkt fuer die Erforschung der
Gesetze der socialen Entwicklung abgeden”(*)
(29).
Mas é precisamente essa analogia, que a pé firma
repelimos, os que não estamos pelos adjetivos dos
senhores sociólogos. Tomá-la, pois, como base, como
princípio diretor de indagação científica, no domínio
social, é o cúmulo do ilogismo.
Não fica somente aí. Em virtude dessa caprichosa
assimilação da sociedade à natureza, Lilienfeld esforça-
se por criar uma nova teoria se não antes uma nova
ciência – a embriologia social – a que já me referi; e
apostando consigo mesmo que esse conceito corresponde
a uma realidade, reúne fatos, acumula argumentos, e
acaba por tomar ares de quem saiu vencedor. Não o
contesto. Em tais condições, é facílimo ganhar a aposta.
Entretanto encaremos mais de perto a nova teoria,
que não deixa de ser um pouco engenhosa.
A lei geral da embriologia de todos os craniotas,
isto é, de todos os animais armados de crânio e cérebro,
(
*) A analogia real entre a sociedade e a natureza deve servir
como fundamento a todas as conclusões científicas no domínio
social, segundo a nossa mais íntima convicção. Ela deve fornecer o
ponto de partida para a pesquisa das leis da evolução social. (T. do E.).
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é a seguinte: o desenvolvimento embrional de cada
indivíduo é paralelo ao desenvolvimento paleontológico
do respectivo tronco. É esta lei que Lilienfeld, Le Bom e
outros querem aplicar à sociedade, sem notar que ela
encontra logo um primeiro embaraço, não muito fácil de
arredar, que é saber qual seja o embrião social, cuja
ontogênese mostre precisamente uma rápida repetição
da filogênese(30)
.
Não vejo razão plausível para supor que esse
embrião seja o menino. Parecia mais acertado, mais
simétrico, pelo menos, que fosse a família. Mas dado,
por hipótese, que o menino represente esse papel,
vejamos o que resulta.
A embriologia propriamente dita nos descobre
que em um certo período da evolução embrional, o
homem, o cão, a tartaruga, a ave, são iguais, porém logo
depois diferenciam-se, e cada um segue o caminho
traçado pelas leis morfológicas da sua espécie. Ela ainda
nos ensina que, entre os caracteres idênticos dos
diversos embriões, figura uma pequena cauda que
Haeckel chama – das Schwaenzchen des Menschen(*) –
esta cauda porém desaparece, bem antes mesmo de
completar-se a época da gestação(31)
.
Eis aí. Partindo agora do pressuposto de uma ana-
logia real e positiva da sociedade com a natureza, como
opina o sociólogo, a primeira confrontação a estabelecer
entre os dois ramos da embriologia, deve ser nestes
termos: assim como, nos estádios superiores da evolução
(*) - a cauda dos homens. (T. do E.).
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embrional do indivíduo, desaparece a causa do primeiro
período – assim também, nos estádios superiores da vida
do embrião social, desaparece... o que?... Hic haeret aqua.
O que é com efeito que neste segundo embrião
corresponde à pequena causa, ao rabinho do homem, e que
em seguida acaba-se de todo? Ninguém o sabe.
Lilienfeld não hesita em dizer que o menino
apresenta em forma real o grau de desenvolvimento, em
que se achava a humanidade histórica na sua meninice,
do mesmo modo que o embrião humano atravessou as
fases evolutivas da simples célula, de um molusco, de
um peixe...
Mas isto não passa de pura retórica. A com-
paração é só para embelecer; não esclarece nada. “O
menino...”, diz ele; porém... que menino? Qualquer
menino?... É inexato. De que idade?... de qualquer que
seja?... Horrivelmente falso.
Ainda mais decisivo. Diz o nosso autor: “Su -
ponhamos que existam na terra atualmente repre-
sentantes de todas as épocas da evolução do gênero
humano, e comparemos meninos destas épocas uns com
outros, como se comparam os embriões de todos os
organismos. Isto feito, a embriologia social comparada
daria um resultado inteiramente análogo à embriologia
orgânica comparada.
“Na primeira fase evolucional, as qualidades
intelectuais, morais e estéticas de todas as crianças,
mostrar-se-iam, pouco mais ou menos, iguais entre si.
Dado, porém, o segundo passo para diante, as raças
inferiores já ficarão atrás, no que diz respeito à
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formação dos órgãos nervosos superiores, ainda que o
resto do organismo possa atingir o seu completo
desenvolvimento...”(32)
.
A teoria é bonita demais, para ser verdadeira.
Efetivamente: um menino de cinco anos, nascido em
uma das nossas grandes cidades, que brinca sobre o
tapete dos nossos salões, não pode apresentar os
mesmos sinais de rudeza mental, que apresenta a pobre
criança da mesma idade, filha do alto sertão, ainda meio
alalus, que mal começa a conhecer e distinguir seus
pais. Igualá-los – é um disparate, que repugna à
observação e ao bom-senso.
Quando ao ponto relativo às raças – isso é apenas
o efeito de uma outra mania do nosso tempo; a mania
etnológica. Eu quisera que Lilienfeld viesse ao Brasil,
para ver-se atrapalhado com a aplicação de sua teoria ao
que se observa entre nós. As chamadas raças inferiores
nem sempre ficam atrás. O filhinho do negro, ou do
mulato, muitas vezes leva de vencida o seu coevo de
puríssimo sangue ariano.
Demais... a embriologia orgânica comparada
ocupa-se de embriões de espécies diversas, ao passo que
essa pretendida embriologia social refere-se a objetos da
mesma espécie. Há nisto alguma coisa de manco e
defeituoso que, de antemão, e só por si, inutiliza as
conseqüências do seu emparelhamento.
Vamos concluir. A sociologia tem a pretensão de
incorporar-se às ciências naturais e, mediante o emprego
do mesmo método que as assinala, obter iguais resultados.
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Mas esquece que não existe uma ciência da natureza,
como ela pretende ser uma ciência da sociedade.
As ciências naturais são resultados de análise,
que não precisam de uma síntese; são diferenciações do
conceito da natureza, que correspondem a outras tantas
diferenciações da viva realidade dos fatos. Admitida,
por hipótese, uma perfeita analogia entre os dois
grandes objetos de indagação científica, seria con-
cludente que se incorporasse ao grupo das ciências
naturais, não uma sociologia ou pretendida ciência da
sociedade, mas um grupo de ciências sociais, tão bem
definidas e diferenciadas como elas.
Este plural de ciências particulares, relativas ao
cosmos social, não é uma idéia nova; pelo contrário, é
uma velha idéia, que já teve o seu tempo de domínio.
Mas começou a cair em descrédito; e o único meio, que
parece capaz de salvá-la, foi substituir o plural pelo
singular, criando, em vez de muitas, objetivament e
especializadas, uma só ciência universal e completa!...
Procedimento igual ao de quem porventura, não
podendo quebrar, uma por uma, as varas de um grosso
feixe, tentasse então, como coisa mais fácil, partir de
uma vez o feixe inteiro; o que só poderia explicar-se por
gracejo ou por loucura.
Vem aqui ainda a propósito uma rápida obser-
vação. Note-se bem: a palavra fisiologia que etimolo-
gicamente significava ciência da natureza está hoje
muito longe de semelhante conceito pois é o nome de
uma ciência especial, que tem por objeto uma ordem
especial de fenômenos, as funções orgânicas dos seres
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vivos. Não será possível que igual destino esteja
reservado à sociologia?
Quero crer que sim. Da mesma forma que do
conceito de uma desapareceu a idéia da natureza,
considerada em sua totalidade, para limitar-se a estudar
somente uma ordem particular de fenômenos naturais,
assim também é provável que desapareça do conceito da
outra a idéia da sociedade em geral, para restringir-se ao
estudo único de uma classe particular de fenômenos
sociais, respective, de funções – ou jurídicas, ou eco-
nômicas, ou políticas, ou de outra qualquer classe.
Deste modo, com este grande encurtamento de
diâmetro, a sociologia pode ter um futuro; e ao duvido
mesmo que, assim limitada, seja ela ainda divisível,
para melhor clareza, em dois pontos de vista distintos,
que serão designados por sociogenia e sociofilia,
segundo a doutrina e tecnologia de Haeckel.
Não posso melhor encerrar o presente trabalho do
que repetindo as palavras do insigne mestre de Jena, que
lhe serviram de epígrafe: “Só por meio da mais íntima
recíproca influência e penetração recíproca de filosofia
e empiria, é que se ergue o inabalável edifício da
verdadeira ciência monística”. A sociologia, como
temo-la, é simplesmente um produto de especulação
filosófica; o elemento empírico lhe falece de todo.
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NOTAS DO AUTOR
(1) No Brasil, procede-se com a República como se procede com a leitura dos romances de Zola: sem crítica ou convicção, somente pelo consciente ou inconsciente amor à França. (T. do E.)
(2) A palavra sentimento é aqui empregada no sentido genérico de manifestação sensível.
(3) A seleção artística da humanidade não compreende somente o psíquico, mas também o físico. No domínio da morfologia sobretudo, a seleção natural, por si só, seria incapaz de produzir certos fenômenos. Assim, e no que toca ao sexo feminino, a existência das cinturas finas, por exemplo, é ainda uma prova do que pode a cultura contra a natura. O espartilho é um fator cultural de evolução da beleza morfológica, talvez mais digno de nossas atenções, do que muito sistema de religião e filosofia, destinado a apertar cabeças e fazer, não belas almas, porém belos idiotas.
(4) Epochan und Katastrophen, pág. 2.
(5) Aqui poderiam objetar-me que não é balda de senso a expressão de lógica natural, da qual se costuma usar; sucede até que muitas vezes o lógiuco e o natural se identificam na linguagem. Quando se diz, por exemplo: quem combate a escravidão, é natural que não tenha escravos – aí decerto o natural é sinônimo do lógico, regulador da harmonia entre princípio e conseqüências. Mas justamente porque os fatos, em semelhantes casos, quase sempre exprimem o contrário, vê-se bem claro, quanto é infundada essa identificação. Para mostrar que as diversas formas de disciplina e seleção artística, acima referidas, se acham relacionadas entre si pela fonte comum, donde todos nascem, basta um exemplo, no qual se encontra violada, de uma só vez mais de uma regra da vida social. Imaginemos o seguinte quadro: um campônio é nosso comensal em um banquete festivo; erguem-se brindes, trocam-se ditos espirituosos, e cem bocas se abrem para sorrir. De repente o rústico franze o
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sobrolho e prorrompe nestas palavras: “vocês estão se rindo; logo isto é com eu”; e fazendo esforço para se mostrar bem falante, acrescenta: “vós todos sodes uma súcia de ladrãos”. Eis aí, de um só arranco, partida toda a madeira de liames da sociedade: moral, direito, polidez, gramática, lógica, sem excluir a própria religião, que no caso não deixaria de assinalar um pecado, isto é, um quebramento dos laços da caridade e mansuetude evangélica.
(6) Entre vários casos ilustradores da minha tese, basta lembrar o da civilidade que condena o franco e público exercício de certas funções excretivas, em completa oposição ao naturam sequi dos filósofos. Quantas vezes não sucede que uma retenção, um leve desrespeito a ordens, que vêm de dentro, provoque um retrocesso? É a vingança da natureza, que parece dizer: só me subordino até um certo ponto; cerras-me uma, eu saio por outra porta.
(7) Até aqui o presente ensaio tem o valor de uma segunda edição, pois que já foi publicado em vários numeros do Diário de Pernambuco do princípio de agosto de 1884, como também já o fora todo o ensaio sobre a evolução emocional e mental do homem, em julho do mesmo ano. Para o leitor inteligente, para o crítico imparcial deste meu livro, a apreciação das datas não é coisa indiferente.
(8) Ursprung und Entwicklung der menschlichen Sprache und Vernunft, págs. 232 e 287.
(9) Der Monistische Gedanke, págs. 314 e 315.
(10) Esta idéia de Deus representado como um nome, que só tem vocativo, como uma interjeição, posto que me seja própria, todavia não é nova. Eu a exprimi pela primeira vez em um escrito polêmico publicado no “Americano” em 1870. Julgo dever declará-lo, não por vanglória, mas tão somente para fugir ao perigo de passar por plagiário de quem quer que, depois de mim, tenha usado de igual expressão.
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(11) Não há exagero em dizer que ainda hoje a paremiologia ou ciência dos provérbios é a mais alta expressão da sociologia. Em matéria de experiência da vida social, o espírito humano não pode ir além dessas fórmulas, que encerram, por assim dizer, a quinta essência da observação quotidiana de inúmeras gerações. Fora das parêmias própriamente ditas, pode-se afirmar quase todas as proposições gerais. que se referem à vida dos homens em sociedade, e que não pertencem a uma ciência já organizada e reconehcida, são outras tantas teses sociológicas; de modo que, ainda atualmente, os órgãos natos, os maiores representantes da sociologia, são os oradores públicos, os tribunos populars. Não é preciso mais nada, para bem caracterizar a pretendida ciência. Quando o jornalista diz, por exemplo: “os povos têm o seu dies irae, que faz os tronos e as coroas rolarem no pó”, ou o orador e tribuno popular: “a liberdade é como o Cristo, morre, mas ressuscita” – onde acham eles todos esses princípios, todas essas proposições dogmáticas? Numa ciência feita? Não; numa ciência sempre por fazer, e que cada um vai fazendo a seu modo: a sociologia. Eu tenho o arrojo de crer que, se os senhores sociólogos fossem homens sérios, capazes de se deixarem convencer de uma verdade, ao resistiriam a considerações da ordem da que contém a presente nota. Mas eles não se curvam; na falta do talento preciso para refutá-la, tê-lo-ão bastante para me insultarem. Conto com isso.
(12) Gedanken ueber die Socialwissenschaft der Zukunft. Erster Theil, pág. 29.
(13) Segundo Littré: 1º, as nações cultas da Europa e da América; 2º, os muçulmanos; 3º, os índios, chineses, tártaros e japoneses; 4º, os peruanos e mexicanos; 5º, as populações negras; 6º, os caboclos da América; 7º, finalmente, os selvagens da Nova-Holanda. Segundo Le Bom: 1º, os homens da idade de pedra talhada ; 2º, os povos selvagens, tais como hoje ainda se encontram em algumas partes do globo, os quais representam as diversas fases, por que passaram os povos pré -histórico;
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3º, os bárbaros, como os citas, os germanos, etc.; 4º, enfim, os povos civilizados. É sabido que também Haeckel dividiu a humanidade, segundo os dados de sua teoria, em 12 espécies e 36 raças, começando as espécies pelo homo papua, e acabando pelo homo mediterraneus; principiando as raças pelos negritos, e terminando pelos indogermanos. Não mencionei esta divisão do célebre professor, porque ele não é um sociólogo, e eu não tinha, portanto, necessidade de pô-lo em contradição consigo mesmo, como creio ter feito com os dois sábios franceses. (14) Felizmente este meu livro não é destinado a ter ingresso na Faculdade, onde a maioria dos meus colegas, professores de direito, declarou guerra de morte às expressões phylogenesis, ontogenesis e outras, de sabor grego-alemão, que eles não caem na patetice de quererem compreender. Pode, pois, passar desassustada a minha classificação filogenética.
(15) Preussische Jahrbuecher Zweindfunfzigster Band, 1883, pág. 134.
(16) Idealismus und Positivismus... Zwei Baende. Berlim.
(17) Os nossos positivistas, por exemplo, não têm a menor dúvida sobre a realidade da grande ciência. Se algumas graves questões européias ainda não foram sociologicamente resolvidas, a culpa não é de A. Comte – opinam eles – mas de Guilherme e Bismarck, ou da Alemanha, que não quer desarmar-se, para que a França possa esmagá-la e fazer então então reinar a paz e a felicidade na terra. Aqueles dois bárbaros, com os seus soldados, têm tido força de retardar a solução do problema da república universal!... Já se vê: isto é dito com todo o sério. Mas também isto e o cúmulo da sandice humana; e o que mais espanta, é que estes senhores, a quem falta o senso comum, não trepidam de pretender os foros de homens de talento, de espíritos superiores”... É singular!
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(18) Die Gesichtspunkte und Aufgaben der Politik, págs. 72 e 73.
(19) Gesichstspunkte, etc... pág. 77.
(20) Geschichte der Socialen Bewegung, III, págs. 104 e seguintes.
(21) Confesso que já laborei por algum tempo na ilusão desse dualismo, semelhante ao de corpo e alma; porém, felizmente, livrei-me dela.
(22) Der Zweck im Recht, II, pág. 179.
(23) Die Naturlehre des Staates..., pág. 15.
(24) The laws of History – Fortnightly Review, 1868, pág. 282.
(25) Gedanken…, pág. 338.
(26) A escatologia dos judeus é a seu modo uma sociologia. Se hoje rimo-nos da primeira, por que tratar a segunda cmo uma coisa séria? Note-se bem: o que se lê em Paulo, Epístola prima ad Tessalonicenses, cap. IV – secunda-idem, cap. II, e mais em Mateus, cap. XXIV, Marcos, XIII, e Lucas, XXI, são belos pedaços de prognose sociológica, nem mais nem menos fantástica, do que os produtos similares dos escatólogos hodiernos. Já se vê que não é de hoje, mas há séculos que a sociologia faz uma má figura.
(27) Gedanken..., pág. 84.
(28) Gedanken..., pág. 82.
(29) Gedanken..., pág. 392. É aqui ocasião de observar que algumas asserções lançadas no correr do presente artigo parecem estar em contradição com idéias já por mim uma vez enunciadas, como por exemplo, as que se lêem na introdução do meu livrinho – Menores e loucos – e que mais não fazem do que repetir uma prova escrita de concurso acadêmico. Tenho convicção de que não sou contraditório; modifiquei apenas, acentuei melhor a doutrina que professo. Se, porém, me julgarem tal, pouco me importa. Chacun a les défauts de ses vertus, disse Goerge Sand. A minha maior virtude literária é
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não ter idéias preconcebidas, sem afagar um sistema querido; o defeito dessa virtude é viver constantemente em busca de novas e melhores teorias; donde resulta uma certa aparência de contradição.
(30) Gedanken..., pág. 245. L’homme et les sociétés, I, pág. 218.
(31) Natürliche Schöpfungsgeschichte. Fünfte Auflage, pág. 274.
(32) Gedanken..., pág. 249.
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141
V
RECORDAÇÃO DE KANT
(1887) I
Was man treffend von Lessing gesagt hat, das gilt ebensosehr von Kant: auf Kant Zurueckgehen heisst Fortschreiten.(
*)
HERMAN HETTNER La negatività è l’alfa e l’omega dell’alfabeto razionale: che, a simiglianza di quello degli Etruschi, è il noto segno d’um idioma ignoto.(
**)
ANTÔNIO TARI
I
Não há domínio algum da atividade intelectual,
em que o espírito brasileiro se mostre tão acanhado, t ão
frívolo e infecundo, como no domínio filosófico.
É certo que todas as outras manifestações da
nossa vida espiritual dão também testemunho de uma
singular e incomparável fraqueza. Mas é sempre dar
(
*) Aquilo que se diz acertadamente de Lessing, vale também
para Kant: retornar a Kant é progredir. (T. do E.).
(**) A negatividade é o começo e o fim do alfabeto racional: que,
à semelhança daquele dos etruscos, é o sinal conhecido de um idioma desconhecido. (T. do E.).
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142
testemunho de alguma coisa. Um certificado de doença é
em todo caso menos triste que um certificado de morte.
Assim, não temos poetas nem artistas de
merecimento; mas a poesia e as artes se cultivam entre
nós. Não podemos lisonjear-nos de possuir um só jurista
de estatura européia, como o Chile possui o seu Calvo, e
os Estados Unidos o seu Dudley-Field; porém, ao
menos, é certo que o direito possui uma das nossas mais
constantes ocupações intelectuais.
Ciência, história, literatura – tudo isto é fútil;
mas seria uma injustiça, querer exprimir tudo isto por
meio de uma fórmula absolutamente negativa. No fundo
da crítica fica sempre algum resíduo, que ainda pode
servir de fermento a mais sérias e mais dignas
produções futuras.
Com a filosofia o caso é bem diverso. Se nas
outras esferas do pensamento, somos uma espéc ie de
antropóides literários, meio-homens e meio-macacos,
sem caráter próprio, sem expressão, sem originalidade –
no distrito filosófico é ainda pior o nosso papel: não
ocupamos lugar algum; não temos direito a uma
classificação.
Este meu modo de ver não é novo. Há treze anos
(1874), escrevendo um ligeiro artigo sobre Eduard von
Hartmann, e depois de bem acentuar a nossa absoluta
ignorância em assunto de filosofia, já eu ousava dizer o
seguinte:
“Posto que pareça, não exagero; não altero, nem
numa vírgula, a objetividade dos fatos. Nas verdade, o
que é a filosofia entre nós? Simplesmente o nome de um
143
143
preparatório, que a lei diz ser preciso para fazer -se o
curso de certos estudos superiores.
Fora disto, ninguém há que se interesse, que tome
ao sério qualquer esforço de aplicação e cultura filo -
sófica. O ensino dessa disciplina – público ou particular
– é uma coisa mísera, e frívola em sua miséria. Um
exemplo basta para confirmá-lo; mas esse é decisivo:
por que título se distingue o lente de filosofia do
Colégio Pedro II? Sob que forma já se manifestou a sua
ciência? Quem sabe como ele pensa? Indubitavelmente
estas perguntas e suas respostas põem a descoberto, de
modo irremediável uma das faces negras do nosso
estado de mendicidade espiritual”(1)
.
Não ficou aí. Um ano depois, na redação do
curioso jornalzinho intitulado – “Deustscher Kaempfer”
– que tanto deu que fazer à confraria dos parvos, ainda
escrevi estas palavras:
“O que de melhor se pode dizer a tal respeito, é
afirmar que o ponto de vista filosófico do nosso
pretendido mundo sábio é caduco e imprestável. Nem há
dúvida que até as estrelas de primeira grandeza, os
célebres pensadores e escritores, só se assinalam pela
sua fé implícita no velho Deus da teologia e da igreja.
Nada sabem, nada compreendem do desenvolvimento da
vida espiritual da atualidade...
Uma coisa somente resta a observar: é que com
essa enorme ignorância caminham emparelhados o
orgulho e o desprezo dos grandes feitos científicos
estrangeiros, principalmente alemães...”
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144
O fim do meu escrito fora contribuir para elucidar
a questão de saber, se já tínhamos chegado ao ponto de
considerar a metafísica inteiramente morta, como então
pretendiam e ainda hoje pretendem os positivistas de
todos s feitos. Neste sentido continuei:
“Se atualmente nenhum homem culto pode
desconhecer que o dogmatismo da filosofia moderna, ou
a metafísica, foi espedaçado por Hume, cuja crítica
inexorável coube a Kant concluir em mais larga
extensão e com maior profundeza, não deixa de causar
admiração o grande espanto, que estas verdades triviais
ainda estão no caso de despertar entre nós.
Com efeito, bem antes que Augusto Comte, o
fundador do positivismo em França, enxotasse o
absoluto para o país das quimeras, já Hume tinha
derrubado todo o edifício metafísico:
Turrim in praecipiti stantem, summisque sub astra Eductam textis ......
E desde esse tempo, como diz Hermann Hettner, é
geralmente reconhecido que a proeza intelectual de
Hume constitui uma das fases mais importantes do
pensamento humano. Realmente foi a dúvida do grande
filósofo escocês sobre a validade dos juízos sintéticos
em geral, que tornou-se o móvel e o foco das profundas
indagações de Kant. Este filósofo mesmo confessava
que a lembrança de Hume fora quem primeiro o des-
pertara do seu sono dogmático...”(2)
.
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145
Eis aí. Há tanto tempo qu estas linhas foram
traçadas, e contudo, no que diz respeito à nossa
ineptidão para o estudo da filosofia, ainda conservam o
frescor da atualidade. É um velho diagnóstico, hoje
reforçado e confirmado por um novo exame do doente.
Mas é um trabalho supérfluo querer demonstrar
que o sol não é frio, ou que o Brasil não tem cabeça
filosófica. Renuncio ao prazer e à glória de uma tal
demonstração(3)
.
II
Ainda não há muito tempo que a filosofia, nos
países mesmos do seu maior cultivo, e onde mais rica se
mostra a sua história, se ressentia de um geral
descrédito.
Não aparecia uma nova obra filosófica, que a
crítica não tratasse logo de confrontar com essa
indiferença pública, já tida em conta de uma verdade
axiomática, ou para fazer-lhe a censura de vir aumentar
o sentimento dominante, ou para tecer-lhe o elogio de
que ela seria capaz de arredá-lo, capaz de reanimar o
interesse pela velha e abandonada filosofia.
Este fato, que é incontestável, prende-se a duas
causas principais: por um lado, o fiasco imenso do sis-
tema de Hegel que em sua pretensão satanicamente
orgulhosa de construir e compreender o universo, segun-
do a dialética do conceito, acabou por destruir a si
mesmo, dividindo-se em escolas e direções antagônicas,
em que os discípulos, depois de terem rasgado e par-
146
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tilhado entre si a capa do mestre, tornaram ainda mais
patente a insustentabilidade da sua doutrina; por outro
lado, o surto que tomaram as ciências naturais, filhas da
observação e da experiência, e como tais quase sempr e
avessas a todo e qualquer apriorismo especulativo.
O hegelianismo, sobretudo, que chegara a assumir
o caráter de uma filosofia, o remate e a coroa de todos
os sistemas anteriores, concorreu em grande escala para
desviar os espíritos da senda filosófica e infiltrar-lhes
um novo gosto e uma nova direção.
Com efeito: a filosofia de Hegel, superficial-
mente apreciada, se apresentara como um harmonismo
universal, que não admitia fora de si antítese alguma,
que tinha pelo contrário vencido e conciliado em si
mesmo todas as antíteses.
Na realidade, porém, e depois de uma análise
mais exata, ela se mostrou um perfeito modelo de
contradições, um exemplar de confusão caótica.
A filosofia de Hegel queria ser uma conciliação
absoluta do pensamento e da realidade; mas acabou por
ser uma volatilização espiritualista do real e uma
corrupção metódica do puro pensamento. Ela pretendia
ser medianeira entre a liberdade e a necessidade, entre a
intuição antiga e a intuição moderna, entre todas as
coisas enfim, que até então haviam passado por
absolutamente inconciliáveis; porém, no fundo, nada
conciliou. Todos os seus processos de harmonização são
outros tantos brinquedos de um espírito que se diverte
em excitar a guerra de tudo contra tudo, só para ter o
prazer de propor e formular a paz.
147
147
Já se vê que, chegando a este ponto, sendo esta a
última fase da sua evolução multissecular, a filosofia
estava exausta, a sua bancarrota era inevitável. Ela
devia dissolver-se, e efetivamente a dissolução deu-se
dentro da escola mesma por meio das próprias forças
inerentes ao sistema.
Foi assim que, depois da morte de Hegel (1831),
a especulação filosófica na Alemanha perdeu quase de
todo o seu valor de outrora. Os espíritos estavam presos
de uma pendência bem diversa. As obras de filosofia
que foram publicadas daquela época em diante, ou
passaram inteiramente desapercebidas, ou só mui
posteriormente, quando há havia começado o novo
período de relações harmônicas entre as ciências
naturais e os estudos filosóficos, puderam despertar a
atenção geral.
O quarto, quinto e sexto decênios deste século
contam ali bem poucos filósofos de velho cunho – e
esses poucos mesmos são todos de caráter episódico,
sem influência notável sobre os destinos da filosofia.
Predominava então a crítica soberana. Não er am
Hegel e Schelling, nem Herbart e Krause, mas eram
Strauss e Bauer, Fuerbach e Arnold Ruge, que estavam
na ordem do dia.
Entretanto por esse tempo o ecletismo na França
ainda conservava a cabeça erguida e ao lado dele, posto
que principalmente volvida contra ele, a filosofia
católica, pelo órgão dos Bautain, Guiraud e consortes,
acumulava tolices sobre tolices, que então valiam por
148
148
verdades preciosas, porém atualmente só podem causar
riso a qualquer leitor desprevenido.
Augusto Comte ainda não se tinha fe ito notar. A
revolução que ele produziu ou pretendeu produzir contra
as teorias filosóficas vigentes, só depois de sua morte
principiou a tomar um certo incremento.
De modo que justamente ao tempo em que na
França – de 1857 em diante – a filosofia especulativa ou
a metafísica entrou a ser posta no número das coisas
peremptoriamente acabadas, já a Alemanha havia
atravessado o período da desconsideração e menospreso
das indagações filosóficas, e tratava agora de
estabelecer uma nova e duradoura aliança entre a mesma
filosofia e as ciências naturais.
O que há, porém, de mais notável, é que, para
entabularem essa aliança, as ciências aceitaram de
preferência a filosofia de Kant. Os sistemas, que evolu -
tivamente saíram do kantismo, tornaram impossível
qualquer acordo neste sentido. Todas as questões que
hoje se suscitam e discutem no terrenos das ciências
naturais, inclusive a matemática, defrontando com a
filosofia, conduzem necessariamente aos fundamentos
do sistema kantesco, como um campo de operação
comum.
E dos chefes reconhecidos das escolas científicas
nenhum empenhou-se mais cedo, nem com mais
perseverança, do que Helmholtz, para que se fizesse
justiça à memória de Kant, como também nenhum outro
mostrou mais interesse pela reanimação dos esforços
filosóficos que são dignos deste nome, e não de todo
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149
imprestáveis, como os desvarios dos chamados filósofos
da natureza, Hegel, Schelling e seus aventurosos
caudatários.
Assim, quando ele primeiro deu público teste-
munho do seu respeito para com o mestre de Koenigs-
berg – nos anos de 1854 e 55 – não pertencia ao
costume geral fazer reverência à filosofia, em qualquer
das suas manifestações; e Helmholtz mesmo tinha bem
consciência de ir de encontro ao pensamento da moda,
como o demonstraram as palavras introdutórias da sua
conferência – Ueber das Sehen des Menschen(*) (1855).
No seu Handbuch der physiologischen Optik
(1867), ainda ele fala da... “negação da nossa época para
as pesquisas filosóficas e psicológicas”. O protesto la -
vrado naquela conferência de que não eram conside-
rações exteriores ou um oculto antagonismo, mas com-
pleto reconhecimento e alto respeito, os móveis que o
impeliam a dar expressão à sua veneração para com
Kant – esse protesto foi suficientemente confirmado por
meio das publicações científicas posteriores. A Óptica
Fisiológica, por si só, oferece muito mais do que
simples testemunhos oratórios em prova de que era com
efeito a própria disposição do assunto, que ao lado do
interesse naturalístico despertava igualmente o interesse
filosófico.
O reconhecimento não só da capacidade de Kant,
mas também dos resultados a que ele chegou, no tocante
à faculdade de conhecer, aparece de novo na Óptica
(*) Sobre a visão do homem. (T. do E.).
150
150
assim como nos outros escritos do grande naturalista, de
caráter mais popular, que mais tarde foram publicados.
E destarte, quando se trata das relações entre a filosofia
e a exata indagação, não há injustiça em considerar
Helmholtz como o mais apropriado representante da
última, em frente de Kant, que ainda é quem melhor e
mais dignamente representa a direção filosófica.
É mister todavia observar que a palavra filosofia
deve ser aqui tomada em sentido restrito, significando
unicamente aquela parte da ciência, que se ocupa da
teoria do conhecimento. Não se trata da estética, nem da
ética, mas somente da primeira das três questões
formuladas por Kant, nas quais se concentra, segundo
ele mesmo se exprimiu, todo o interesse da razão, ranto
especulativa, como prática; e a questão é a seguinte: o
que posso eu saber?...(4)
Ora, o problema desta parte da filosofia kantes-
ca, bem como de qualquer verdadeira filosofia, foi
excelentemente assinalado por Helmholtz na mencio -
nada conferência com as seguintes palavras:
“A filosofia de Kant não teve em mira aumentar o
número dos nossos conhecimentos por meio do puro pen-
samento; porquanto o seu princípio supremo é que toda e
qualquer noção da realidade deve ser bebida na
experiência; mas o seu único intuito foi o de inquirir as
fontes do nosso saber e o grau da sua legitimidade;
trabalho este, que há de sempre pertencer à filo sofia, e ao
qual nenhuma época poderá impunemente subtrair -se”(5)
.
151
151
A perfeita conciliabilidade da filosofia com as
ciências naturais aí se acha claramente formulada pela
limitação dos dois domínios, vis-à-vis um do outro.
Mas essa conciliabilidade e essa limitação não
querem dizer, nem que a filosofia deva conformar-se
com todas as induções das ciências naturais ou que estas
devam girar somente dentro do plano traçado por
aquela, nem também que seja vedado ao naturalista
lançar um olhar filosófico sobre o seu campo de
observação, ou ao filósofo penetrar, como indagador,
nos reinos da natureza.
III
Neste pé se achavam na Alemanha as relações
entre os dois grandes ramos do saber, quando uma das
primeiras autoridades nas ciências exatas, o professor de
astronomia física, Frederico Zoellner, em Leipzig,
publicou o seu célebre livro – Ueber die Natur der
Kometen – Beitraege zur Geschichte und Theorie der
Erkenntniss, (1872).
Nesta obra o notável professor mostrou ser
indeclinável o íntimo acordo, o consórcio da exata
investigação com a filosofia, semelhante, como ele
mesmo diz, à reconciliação de dois amantes, que
estavam há tempo arrufados e separados, em
conseqüência de recíproco erro.
Zoellner coloca em eterno laurel na fronte da
filosofia, provando que ela, por caminho puramente
especulativo, pressentiu e antecipou as mais importantes
152
152
descobertas, que as ciências naturais só muito mais
tarde vieram a fazer pela indagação experimental. O
apriorismo especulativo da lei da causalidade, admitido
por Schopenhauer, acha a sua confirmação empírica na
Fisiologia da Óptica de Helmholtz; e o naturalista
Wallace reforçou por meio de fatos, o que Schopenhauer
havia estabelecido pela demonstração metafísica sobre
matéria, força e vontade.
Em um capítulo especial, o último de seu livro,
Zoellner se ocupa de “Immanuel Kant e sua
benemerência para com as ciências naturais”: “Por meio
da prova do verdadeiro espírito científico e gênio “quase
profético do filósofo de Koenigsberg...”, deve -se tirar
da moderna geração de naturalist as o prejuízo que se
lhes inoculou contra tudo que se chama filosofia, e
incutir-lhes de novo a fé, que já vai perdida, na
fecundidade e necessidade de uma cultura filosófica
racional, até em bem do progresso nas ciências
naturais”.
Com esta obra de Zoellner, que fez época, não se
esgotam entretanto os documentos em favor da atual
significação da filosofia, em favor do novo reconhe-
cimento da sua indispensabilidade.
Cientificamente talvez de não maior importância,
mas em todo caso de ainda maior influência sobre a
cultura geral, poderia considerar-se o resultado
surpreendente, a que chegou, antes mesmo de Zoellner,
o mais avultado dentre os sábios materialistas dos novos
tempos, Ernesto Haeckel, em sua Natuerliche
Schoepfungsgeschichte, (1868).
153
153
Esse resultado culmina-se no arrendamento do
dualismo, até então mais ou menos dominante, de
espírito e matéria; e não decerto pela subordinação de
um princípio ao outro; por conseguinte, nem em favor
do materialismo, nem em favor do espiritualismo. O
corpo mesmo é o espírito desconhecido, o espírito,
porém, é o desconhecido no corpo, e a natureza com o
espírito que nela impera, uma unidade metafísica.
Tornar compreensível esta unidade, construir o seu
conceito, é o problema que Haeckel entrega a uma nova
filosofia, sob o título de monismo.
Mas não devo deixar inobservado que o ilustre
professor de Jena não foi sempre coerente consigo
mesmo no desenvolvimento da sua doutrina.
Antecipando a filosofia no modo de compreender a
unidade metafísica da natureza, ele acabou por eliminar
o espírito em proveito da matéria, e o seu monismo
degenerou em puro mecanismo(6)
.
Falando deste sábio e dos seus trabalhos
naturalísticos, diz Eduard von Hartmann: “Haeckel era
bastante alemão, para reconhecer francamente que a
nova teoria da procedência das espécies, umas das
outras, e da unidade do trono genealógico do reino
inorgânico, não pertence mais às ciências naturais, que
ela já é propriamente filosofia da natureza, e só pode
sair de uma mistura de base empírico-científica e
especulação filosófica. Ele honrou de novo perante as
ciências naturais a filosofia há tanto tempo desdenhada,
e forneceu mesmo em sua Generelle Morphologie
154
154
preciosíssimas contribuições, em diversos sentidos, para
a filosofia da natureza.
Infelizmente, porém, este aco lhimento da
filosofia não chegou até o ponto de desviá -lo do
prejuízo do tempo – a intuição mecânica do mundo – e
este prejuízo domina-o por tal modo, que até hoje o tem
impedido de se apropriar as restrições e ratificações,
cuja necessidade o mesmo Darwin tem confessado com
uma admirável abnegação em puro amor da verdade”(7)
.
São palavras magistrais, a que nada se pode
acrescentar, pois encerram a mais perfeita característica
do sábio naturalista. Além disto, elas servem ainda de
prova da verdade anteriormente enunciada, de que ao
filósofo não é vedado medir com olhos de investigador
os domínios da natureza. O exemplo de Hartmann é
eloqüentíssimo.
Entretanto, e por maior que seja a veneração que
tributo ao grande autor da Philosophie des
Unbewussten, não posso concordar com Heinrich
Landsmann, a quem aliás sou devedor de alguns
esclarecimentos sobre o presente assunto, quando diz
que o primeiro sistema de filosofia monística, reclamado
como uma necessidade para completar o edifício das
ciências naturais, de que Haeckel pode ser considerado
o genial arquiteto, foi o sistema de Hartmann.
É uma falsa apreciação esta, que se complica de
um agrave injustiça. Sem falar de filósofos anteriores,
como Schopenhauer, que teve a mais viva intuição da
unidade do espírito e da natureza, ou como Lazarus
Geiger, que pressentiu mais de uma verdade hoje
155
155
corrente e assentada entre os naturalistas, importa ainda
assim reconhecer que a filosofia do inconsciente não é a
mais apta para formar a cúpula do edifício.
É certo que ela se vangloria de proceder, segundo
o rigoroso método científico; mas acho um pouco
infundada semelhante pretensão. Pelo contrário: o hipo -
tético, o inverificável, o fantástico mesmo representam
nela um papel assaz considerável e de nenhum modo
adequado ao rigor e exatidão da ciência.
O próprio Haeckel, que rendeu preito às
excelentes observações e profundas idéias do autor, não
duvidou apoiar a crítica que fizeram à filosofia de
Hartmann, acusando-a de confundir sob a expressão de
inconsciente uma porção de coisas as mais diversas, que
necessitam de uma análise discriminadora; e afinal, para
ele, essa filosofia, considerada em sua totalidade, não
tem força para sustentar-se, ainda que nela existam
preciosos germes, que podem produzir riquissímos
frutos(8)
.
É, pois, evidente que o sistema de Hartmann não
resolve o problema que lhe destinou Heinrich
Landsmann. Posto que viesse primeiro, e como tal
pareça ter com efeito a prioridade no mérito, quando
somente lhe cabe a estéril prioridade no tempo, ele
desaparece diante de um outro sistema, de vistas mais
elevadas e mais sólidos fundamentos. É o monismo
filosófico de Noire. Só este realmente está no caso de
completar e corrigir o monismo científico de Haeckel.
Assim me exprimindo a respeito da Philosophie
des Unbewussten, é supérfluo advertir que não faço coro
156
156
com críticos da têmpera de um J. Fischer na Alemanha,
ou de um Stiebeling nos Estados Unidos, para ambos os
quais o trabalho de Hartmann é a mais alta expressão da
insensatez do espírito filosofante.
O ponto de vista destes dois escritores é o do
materialismo nu e descarnado; e eu não ando por esse
caminho. O que julgo dever contrapor à filosofia de
Hartmann, não é um programa completo, uma espécie de
tábua, que não se pode aumentar, nem diminuir, de
verdades feitas e acabadas, como têm-na os materialistas
e positivistas; mas é uma outra filosofia, bebida nas
mesmas fontes, animada do mesmo espírito, e que
apenas me parece mais segura em seus princípios, mais
certeira em suas conseqüências.
E um dos melhores predicados do sistema de
Noire é que ele não se presta, como o de Hartmann, a
despeito de todo o seu aparato científico, a uma
chamada popularização das doutrinas filosóficas.
Será sempre digna de menção a verdade expressa
por Goethe: “Há um mistério na filoso fia. Deve-se
dispensar o povo de sondá-lo, e o menos que for
possível atrai-lo com força para a indagação de tais
matérias. O povo contenta-se com repetir bem alto, o
que bem alto lhe foi ensinado. Deste modo originam-se
os mais estranhos fenômenos, e as fátuas pretensões não
têm mais fim”.
Um homem simplesmente esclarecido, mas um
tanto rude e grosseiro, muitas vezes embebido em seu
falso saber, zomba de objetos, diante dos quais um
Jacobi, um Kant inclinar-se-iam com respeito. Os
157
157
resultados da filosofia devem vir em proveito do povo;
não se deve, porém, querer elevar o povo à altura de
filósofo.
Mas voltemos ao centro do nosso assunto.
IV
Quando se trata de pôr um termo à inimizade, que
até Schiller aconselhara se mantivesse ainda por algum
tempo entre a filosofia e as ciências naturais, e apela-se
para Kant, como o órgão mais sadio da especulação
filosófica, ao passo que foi também o filósofo mais
chegado ao naturalismo científico – muita gente toma-se
de espanto, não compreendendo como se possa conferir
semelhante honra ao maior dos metafísicos, sem dúvida,
como o chamou Augusto Comte, mas sempre um
metafísico, e como tal representante de um ponto de
vista atrasado, decrépito, inaproveitável.
Felizmente essa muita gente é balda de todo
critério, e não tem voto para decidir em coisas sérias.
Não obstante, aceito a observação, como se fosse feita
por pessoas competentes, para aproveitar o ensejo que
melhor se me oferece, de elucidar uma questão in-
teressante, da qual os positivistas fazem grande alar de, e
que é para eles a verdadeira linha divisória entre o
antigo e o moderno filosofar.
Refiro-me à questão da metafísica em geral.
Efetivamente: não há frase mais corriqueira na boca dos
discípulos e subdiscípulos de Comte, do que o epíteto de
metafísico desdenhosamente assacado a quem quer que
158
158
ousa ter uma idéia não de todo contida no cânon
positivista.
Mas entendamo-nos uma vez por todas: o que é
um metafísico? O sentido desta expressão se acha
determinado na história da filosofia; não era lícito a
Comte, nem a Littré, nem a outro qualquer conferir -lhe
uma significação que ela nunca teve.
Metafísico de velho estilo se diz aquele que
pretende sondar o que está fora de toda a experiência,
sem ter-se de antemão certificado de que um tal saber
seja possível, bem como do valor e aceitação que ele
possa ter.
Com uma admirável confiança os metafísicos
costumam afirmar e definir o absoluto, o ultra-
experimental; mas todas as suas teorias não passam de
simples hipóteses e conjeturas; isto se prova até pela
diversidade e contradição recíproca dessas mesmas
teorias.
Um filósofo alemão contemporâneo, A. Spir, faz
a seguinte notável observação: “Se um astrônomo
quisesse levantar hipóteses sobre os habitantes de Marte
e Júpiter, seus costumes, seus hábitos de vida, suas
instituições políticas e sociais – todo o mundo teria esse
procedimento por um gracejo e um ocioso passatempo;
entretanto a metafísica ainda é considerada por muitos
como uma ciência real e elevada.
Mas eu pergunto: quem está em condições mais
favoráveis e tem melhores razões em seu favor – o
pretensioso astrônomo, ou o pretensioso metafísico? Os
habitantes de Marte e Júpiter não podem decerto entrar
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159
jamais no círculo da nossa experiência; mas ao menos
eles repousam – caso existam – no domínio da expe-
riência em geral; e destarte o arrogante astrônomo tem
um longínquo vislumbre de autorização e competência,
para concluir do que se passa entre nós o que se passa
entre eles, e dar assim um livre vôo à sua fantasia.
Quais são, porém, os pontos de apoio do
metafísico, que quer pôr-se acima de toda a experiência,
e que deve também por conseguinte deixar atrás de si
todas as analogias do mundo experimental? Entretanto o
artifício dos metafísicos consiste exatamente em
transportar a experiência comum para as regiões do
absoluto. Eu devo confessar que julgo a direção
metafísica na filosofia uma espécie de doença, que não
se pode arredar por meio de argumentos...”(9)
.
Nada mais claro. Aí está perfeitamente delimitada
a carta da velha metafísica. Releva agora perguntar
afoutamente: o que foi que Kant afirmou sobre o
absoluto, sobre aquilo que repousa além da experiência?
Que hipóteses construiu, que conjeturas formu-
lou, que possam equiparar-se às gratuitas suposições do
astrônomo, de que fala Spir?
Ninguém poderá apontá-las. Pelo contrário: bem
longe de ser Kant um arquiteto de castelos aéreos, foi
ele quem acabou de arrasar por uma vez o palácio
encantado da velha fada, que seduzira e perdera mais de
um espírito superior. E fê-lo ciente e conscientemente.
A filosofia crítica, obra exclusiva de Kant, não surgiu
senão como antítese da filosofia dogmática, até então
160
160
dominante; e o dogmatismo filosófico é justamente a
metafísica.
Nos escritos do filósofo encontra-se a cada passo
os mais claros certificados da sua intuição inteiramente
nova e diametralmente oposta ao modo de ver comum.
Assim, por exemplo, ele diz: “a asserção dos metafísico
deve ser ciência, ou então é nada”(10)
.
Em outro lugar: “uma hipótese transcendental, na
qual uma simples idéia da razão fosse empregada para
explicar a natureza das coisas, não seria uma explicação,
pois aquilo que não é bastante compreendido em virtude
de princípios empíricos conhecidos, seria assim ex-
plicado por alguma coisa, de que absolutamente nada se
compreende”(11)
.
Mais ainda: “fora do campo da experiência,
qualquer opinião é um brinquedo do pensamento”(12)
.
Há muitas outras passagens, em que o filósofo
não hesita mesmo em reconhecer os direitos do
empirismo, até onde ele não se torna dogmático, mas
somente se opõe “à indiscreta curiosidade e audácia da
razão desconhecedora do seu destino, que se gaba de
penetração e de saber, lá onde cessam propriamente o
saber e a penetração, que confunde os interesses
práticos e teoréticos, para cortar, onde lhe convém, o fio
das indagações físicas”(13)
.
À vista de tais documentos, não há, pois, razão de
rir na cara dos positivistas, quando ousam afirmar que
Kant foi um metafísico no sentido de um visionário?
Não é o caso de mandá-los todos bugiar, desde os leões
da seita até os gatos dos nossos telhado s, isto é, desde
161
161
Comte e Littré até a récua de crétins brasileiros,
amarelos, empanturrados, de leque na mão e cigarrinho
na boca, fazendo filosofia positiva – que é uma espécie
de filosofia dos pobres – nas calçadas e confeitarias da
Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro?...
A coisa é realmente singular; e seria até capaz de
fazer rir o próprio Heráclito, de quem entretanto se diz
que só sabia chorar das misérias humanas. Mas há, aí,
sobretudo um ponto que merece especial atenção.
Que Augusto Comte não tivesse senso bastante
para compreender a reforma de Kant – ele que, além de
não conhecê-la de perto, julgava-se mesmo dispensado
desse conhecimento, pois estava convencido de que a
única valiosa só era a sua doutrina – é facilmente
explicável. Porém o mesmo não sucede com relação a
Littré.
Este sábio, que era familiarizado com a ciência
alemã, que estava nas melhores condições de entrar no
fundo da filosofia kantesca, não tem desculpa de haver
deixado sem correção o erro de seu mestre a tal respeito,
limitando-se a formar dessa filosofia a mesma idéia de
Comte, que a considerou do ponto de vista estreito e
sistemático de um crente, para quem não há outra
religião senão a sua.
Tenho plena consciência da impressão de horror,
que vou produzir; mas não importa; aventuro-me a
adiantar o juízo da história, que será este: Littré foi um
profundo lexicógrafo, um grande lingüista, um escritor
primoroso, mas um filósofo medíocre. Não lhe coube e
partilha a suprema faculdade filosófica de dar ao mundo
162
162
uma dessas verdades, que geram verdades, que são
sementes do futuro, atiradas no chão da história, donde
rebentam novos pensamentos e novas aspirações.
Não tivesse ele nascido francês, não houvesse
florescido em uma época, na qual a mania do france-
sismo havia atingido a sua maior altura, e talvez que o
seu nome não fosse hoje conhecido.
Nem há nisto exageração alguma. É uma verdade
deduzida da ordem natural dos fatos, quando não surgem
circunstância particulares, que neutralizam a sua ação.
Realmente, um homem que concebia a filoso fia
positiva como “o conjunto do saber humano (note-se
bem: do saber humano!)” e este por sua vez como “o
estudo das forças pertencem à matéria e das condições
ou leis que regem essas forças” – um homem que assim
pensava e acreditava seriamente que esse conjunto e
esse estudo existiram na cabeça de A. Comte, como
existiam na sua própria, pois um foi o criador e o outro
o propagador da célebre teoria; um espírito de tal
quilate é um espírito incompleto, adoentado mesmo, que
posto em outro meio e cercado de outras relações,
poderia até passar por um ridículo fanfarrão(14)
.
Entretanto, quero crer que, se não fosse a falsa
direção tomada por Littré, se ele se tivesse limitado a
cultivar o terreno da ciência, livre dos pressupostos
forçados da estéril e acanhada filosofia, de que se fez
apóstolo, muito maior seria o seu merecimento e muito
mais compreensíveis os motivos do seu renome.
Quanto a nós, porém – é o que resta a liquidar –
quanto a nós, os que não sujeitamos o pensamento à
163
163
disciplina claustral da filosofia positiva, só existe uma
razão de se nos ter em conta de metafísicos: é
justamente o não jurarmos pelo santo nome de Comte, é
o não sermos positivistas”
Para um católico de lei, o acatólico de qualquer
espécie é sempre um herege, um réprobo, um demônio.
É o mesmo ponto de vista dos sectários do comtismo,
que movem-se na névoa de idéias preconcebidas e frases
consagradas.
Em geral os positivistas não querem compreender
que o materialismo, do qual o seu sistema é uma das
últimas formas, sempre se ressentiu do defeito de
satisfazer-se com uma explicação do mundo, que
termina precisamente no ponto onde começam os
problemas da filosofia. Pôr de lado esses problemas, a
título de enigmas inextricáveis ou bolhas de sabão da
fantasia de espíritos enfermos, que se nutrem de
bagatelas, como certos animais se nutrem de palha, é um
procedimento cômodo, sem dúvida; porém pouco
filosófico.
Os positivistas não querem compreender que uma
coisa é a metafísica dogmática, que converte sonhos em
realidades, que fecha os olhos para melhor ver, que
desdenha da experiência, quando esta vai de encontro
aos seus oráculos, e outra coisa é a metafísica reservada
e consciente, que há de sempre existir, se não como
ciência, como disposição natural e inerradicável do
espírito, segundo Kant.
E mesmo como ciência – por que não? – A
matemática explica as grandezas no espaço e no tempo,
164
164
a física os fenômenos da natureza, a experiência
científica em geral os fatos existentes. Mas justamente
por meio desta experiência realiza-se um novo fato: o da
explicação científica mesma.
Ou será porventura o matemático um fato menos
real do que as suas figuras, o físico menos real do que
os corpos, que ele observa, a experiência enfim menos
real do que os seus objetos? As ciências exatas não
podem negar que elas têm uma existência, cujo
reconhecimento aumenta de dia em dia. Estes fatos
seriam os únicos, que não necessitam de uma
explicação? Não deve portanto haver uma ciência, que
faça da explicação deles o seu alvo: uma ciência, que
considere a matemática, a física, a experiência, como
seus objetos, da mesma forma que a matemática tem por
objeto as grandezas, a física os corpos, a experiência as
coisas em geral?
Ou dá-se porventura que a matemática, a física, a
experiência, expliquem-se a si mesmas? Ser não se
explicam, deve haver então uma ciência distinta e
autônoma, que esteja para a matemática, como esta para
as grandezas, que esteja para a física, como esta para os
corpos, que esteja enfim para toda a experiência, como
esta para os fenômenos dados.
Esta ciência, tão necessária como as outras, é a
filosofia crítica, é a metafísica, no bom sentido da
expressão(15)
.
Tratando de explicar a experiência, ela se eleva
muitas vezes além deste limite, e então é a teoria, não
do absoluto, que não pode ser objeto de ciência, mas do
165
165
conceito do absoluto, da origem, da significação e do
valor objetivo desse mesmo conceito.
Já se vê que, assim compreendido, o caráter
metafísico é inerente a toda pesquisa filosófica, pois,
como diz Edmond Scherer, a filosofia menos a
metafísica, é a filosofia menos a filosofia(16)
.
Antônio Tari, o célebre professor de estética da
universidade de Nápoles, reportando-se a Schopenhauer,
diz que no Tibete costumam representar uma pequena
comédia teológica, na qual o Dálai-Lama disputa com o
arquidiabo sobre a realidade ou a idealidade do mundo
Satã, realista, desavergonhado, declama sobre o in-
falível testemunho dos sentidos. O Lama, respondendo,
raciocina sonre a vaidade fenomenal do conhecimento.
Depois de um torneio cômico de razões pró e contra, os
disputantes, de comum acordo, entregando ao azar a
decisão da contenda, jogam a dados a solução metafísica
do enigma do universo; e o diabo perde a vaza(17)
.
É esta, pouco mais ou menos, a sorte reservada ao
positivismo, que é também a seu modo um realista
impudente.
V
O grande feito filosófico de Kant foi a indagação
do órgão do conhecimento, o estudo da razão humana. O
que é que a esta razão se pode atribuir como próprio,
originariamente próprio, antes de toda e qualquer
experiência? A filosofia dogmática tinha respondido até
então: Deus, liberdade, imortalidade, eternidade, etc. A
166
166
filosofia sensualista atalhava dizendo: não há tal; só
existem formas sensíveis, que a razão recebe do mundo
exterior.
Kant, porém, respondeu: - nenhuma outra coisa
senão espaço e tempo. São estas as formas puras e
originais, em que a razão funde todas as matérias da
sensibilidade externa, e com cujo auxílio pomos em
ordem o mundo inteiro. A atividade ordenadora da
inteligência (Verstand), que é quem eleva ao grau de
efetivo conhecimento o material fornecido pela
sensibilidade, se exerce por meio das categorias, que
Kant admitia em número de doze.
Entretanto, como Kant mesmo não atribuía a estas
categorias um valor apriórico absoluto, não foi muito
que Schopenhauer, segundo a sua própria expressão,
atirasse-as todas pela janela, reservando somente a
causalidade, em sua quádrupla raiz, isto é, como
fundamento ou razão da existência, do desenvolvimento,
do pensar e do querer.
Tal é a simples mecânica do nosso conhecimento .
Apreciando a grandiosa descoberta de Kant,
Schopenhauer se confessa sectário do idealismo
levantado sobre ela, com a seguinte declaração:
“Espaço, tempo e causalidade não são propriedades das
coisas, mas são puramente ideais, isto é, existem
somente em nossa cabeça. Nós não estamos no tempo e
no espaço, mas o tempo e o espaço estão em nós. A
essência da coisa em si, fora destas formas da intuição,
é imperscrutável”.
167
167
Já aqui se depreende quanta razão tinha o
chamado Buda da Alemanha em dizer orgulhosamente
que de Kant até ele, a despeito de toda a gritaria, a
filosofia não dera um passo para diante.
Foi ele quem melhor sondou o fundo da filosofia
crítica; e podemos repetir com Hans Kleser que, ainda
quando Schopenhauer nada mais tivesse feito, senão
desviar os alemães de Schelling e Herbart, Fichte e
Hegel, para obrigá-los a recuar e voltar a Kant, cuja
pura língua ele tornou ainda mais lúcida e mais bela –
só por isso mereceria um lugar importante na história da
ciência alemã(18)
.
Schopenhauer dizia de Kant que o seu principal
mérito consistia em ter derrubado a filosofia escolástica
com as suas pretensas provas da existência de Deus.
Pode-se também dizer de Schopenhauer que o seu maior
merecimento foi lançar do trono os imediatos discípulos
de Kant, e elevar de novo o grande filósofo à sua
verdadeira altura. É um fenômeno, ainda hoje digno de
estudo, a diversidade de sentido a que se prestou o
kantismo entre os filósofos do tempo, sendo aliás
incontestável que o mesmo autor da Crítica da Razão
Pura, além de ser claro na exposição da sua filosofia,
não perdeu posteriormente ocasião alguma que se lhe
oferecesse para melhor acentuar o seu pensamento(19)
.
Entretanto os discípulos divergiram entre si na
maneira de compreender o mestre. Além de Reinhold e
Fries – que fundaram, aquele a primeira, e este a
segunda escola kantesca em Jena – os nomes de Fichte,
168
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Schelling, Hegel, Oken, Herbart e Krause, indicam
outras tantas direções da evolução do kantismo.
Mas esta divergência não provinha das
dificuldades inerentes ao sistema, porém, sobretudo, da
abundância de idéias novas, da riqueza de pontos de
vista, dos quais cada um dos discípulos tomava o seu, e
acreditava poder, somente daí, dominar todo o horizonte
do mundo filosófico.
Ainda em vida do filósofo, e logo depois mesmo
da publicação da Crítica, foram tais as falsificações da
sua doutrina, interpretada por alguns em um sentido
exageradamente idealístico, que ele viu-se obrigado a
protestar. Vale a pena referir um desses protestos.
Ei-lo aqui: “O princípio de todos os verdadeiros
idealistas, desde os eleáticos até o bispo Berkeley, está
contido na seguinte fórmula: todo conhecimento
adquirido por meio dos sentidos não é mais do que
simples aparência, e só nas idéias do entendimento e da
razão pura existe a verdade. Pelo contrário, o princípio
que dirige e determina o meu idealismo, é o seguinte:
todo conhecimento das coisas por meio do puro
entendimento ou da pura razão é simplesmente aparente,
e a verdade só existe na experiência”.
Como se vê, uma completa antítese entre um e
outro modo de pensar. Nada mais falso, portanto, do que
a opinião que ainda hoje vigora entre nós, de ter sido
Kant um perfeito idealista, e de formar o seu sistema um
dos mais belos triunfos do racionalismo moderno.
É certamente um erro clamoroso, que só se
explica por total ignorância da obras do filósofo. Esse
169
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lado realístico da sua teoria, Kant esforçou-se por tornar
cada vez mais saliente, quer nos Prolegômenos escritos
para esclarecer a Crítica da Razão Pura, quer nas
reformas e correções da segunda edição da mesma
Crítica.
Se todo o nosso saber pressupõe a intuição dos
sentidos, como seria possível uma ciência do que está
acima dessa esfera? Uma psicologia, uma cosmologia e
uma teologia racionais são três brincos do pensamento,
são três ciências fantásticas, sobre as quais não há, nem
pode haver certeza de que correspondam a alguma coisa
de real e objetivo.
Kant demonstrou uma vez por todas a
impossibilidade de uma ciência do hipersensível. Se a
sua cabeça tivesse sido vasada no mesmo molde da de
Augusto Comte, pode-se dizer afoutamente que o
positivismo, com a sua estreiteza de âmbito e a sua fátua
pretensão de eliminar do espírito humano o elemento
metafísico, sem dar-se ao trabalho de inquirir e estudar
a sua fonte – o positivismo, como hoje vemo-lo, teria
primeiro aparecido com Kant.
Mas o grande filósofo alemão, antes de tudo, era
um homem sério, além de ser um espírito sadio. Re-
conhecendo o que havia de ilusório no velho dog-
matismo filosófico, não se deu todavia por satisfeito
com a simples declaração de que o mundo objetivo da
metafísica tradicional é uma falsa aparência; ele foi
muito mais adiante, para deixar peremptoriamente
assentado que a razão humana, por si só, a chamada
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razão pura, não fornece o conhecimento da coisa
nenhuma.
Neste sentido são dignas de especial menção as
seguintes palavras do filósofo, tão apertadas, tão cheias
de um frescor atual, que dir -se-iam dirigidas ao
positivismo dos nossos dias:
“Só a temperança de uma crítica rigorosa e justa
pode livrar-nos dessa fantasmagoria, que a tantos
conserva presos pelo atrativo, de imaginária felicidade,
e restringir todas as nossas pretensões exclusivamente
ao campo da experiência possível, não por meio de
insípida zombaria das tentativas tantas vezes
malogradas, ou por meio de pios lamentos sobre os
limites da nossa razão, mas mediante uma demarcação
dos seus domínios, executada segundo princípios certos,
a qual com a maior segurança inscreve o seu – não mais
adiante – nas colunas hercúleas, que a natureza mesma
levantou, para continuar a viagem da razão somente até
onde se estendem as plagas da experiência, que nós não
podemos abandonar, sem aventurarmo-nos a um oceano
sem margens, que sob aspectos sempre enganadores
afinal nos obriga a abrir mão de todo o penoso e
demorado esforço, como incapaz de nutrir a mínima
esperança(20)
.
Em outro lugar ainda ele disse com mais clareza:
“Para instigar a razão contra si mesma, fornecer -lhe
armas de ambos os lados e assistir então tranqüilo e
desdenhoso ao seu violentíssimo combate, parece um
ato da malignidade. Querer recomendar a convicção e
confissão da própria ignorância, não só como remédio
171
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contra a presunção dogmática, mas também como o
único modo de terminar a luta intestina da razão, é um
propósito inteiramente inútil, que não pode de modo
algum contribuir para dar à mesma razão um completo e
definitivo repouso”.
Perfeitamente. Sem querer e sem saber, Kant
talhou uma carapuça, que assenta em cheio na cabeça
dos positivistas hodiernos.
Estes senhores, que vivem sempre a falar de uma
disciplina mental, a que o seu sistema os subordina, e
pela qual não lhes é lícito transpor uma certa ordem de
idéias, ignoram duas coisas: primeira, que essa
disciplina, tomada no sentido de só dever-se estudar e
aprender o que Comte mandou que se estudasse e
aprendesse, é uma dogmática de novo gênero, e, como
todas as dogmáticas, um processo de encurtamento e
atrofia cerebral; a segunda, que uma vez admitida a
necessidade de uma disciplina da inteligência, em
sentido mais elevado, é preciso reconhecer que foi Kant
quem a criou.
Em mais de uma passagem das suas obras o
filósofo insiste na idéia de que a utilidade da crítica da
razão pra é de caráter negativo, pois que ela não serve
de órgão para aumentar o nosso saber, porém de
disciplina para determinar os seus limites; em lugar de
descobrir verdades, tem apenas o merecimento de
prevenir erros.
Assim como o mister da filosofia em geral
consiste mais em cortar do que em fazer brotar
luxuriosos rebentos, assim também a crítica da razão é o
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meio de arredar a ôca presunção de sabedoria. Ela
mantém-se para com a metafísica escolástica exatamente
como a química para com a alquimia, ou como a
astronomia para com a divinatória e predizente
astrologia(21)
.
Não ficamos aí. Segundo o nosso filósofo, há dois
modos de conhecimento racional: por intuição e por
conceitos. O conhecimento por intuição é matemático; o
conhecimento por conceitos é filosófico. Todos os puros
juízo da razão ou princípios apodícticos, no primeiro
caso, são mathemata; no segundo, são dogmata.
Mas não há uso dogmático da razão, não há
conhecimento racional, que se retira imediatamente à
essência da natureza das coisas. Os dogmas filosóficos
provocam sempre as suas antíteses. O domínio
metafísico, dogmaticamente cultivado, enche-se logo de
contradições; ao juízo afirmativo opõe-se o negativo
com a mesma pretensão à validade, e em lugar de uma
ciência acabada e irrefutável, como é a matemática, a
metafísica torna-se o campo de batalha de opiniões e
sistemas contrários.
Nesta luta, quem toma partido por uma das
opiniões opostas, mantém-se dogmaticamente. A quem
não quer assim proceder, só restam dois caminhos a
seguir: ou atacar e refutar uma das duas afirmações, sem
por isso defender a outra, ou negar igualmente ambas.
Na primeira hipótese, tomamos uma atitude polêmica;
na segunda, uma atitude céptica.
Mas a atitude polêmica é sempre mais ou menos
falsa; e afinal toda polêmica degenera em dogmática. O
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ponto de vista céptico nega todo o conhecimento
racional, e em lugar de uma imaginária e pretendida
ciência das coisas, coloca a convicção da nossa
ignorância. Mas sobre que se apóia esta convicção do
céptico? Com que fundamentos quer ele conhecer e
provar a ignorância da razão humana? Ou com
fundamentos da experiência, ou com fundamentos da
razão mesma. No primeiro caso, ela é simples
percepção; no segundo, ela é ciência real.
Suponhamos o primeiro caso, que efetivamente
tem lugar no céptico, e veremos que o cepticismo não
repousa sobre nenhuma base geral e necessária, não
descansa em nenhum princípio, é simplesmente uma tese
empírica, que, incerta e vacilante, como todas do mesmo
gênero, está por sua vez sujeita à dúvida, e deste modo
facilmente se dissolve.
Se, porém, a convicção céptica é haurida no
estudo que se faz da natureza da razão humana, se ela é
baseada em princípios, então é uma ciência dos limites
da mesma razão, um verdadeiro e real conhecimento. O
cepticismo pois, ou o incientífico e por isso infundado,
ou, se é científico, não é mais céptico, porém crítico.
Esta diferença do ponto de vista cépt ico e crítico
pode tornar-se ainda mais saliente por uma comparação
tirada do geógrafo e do observador comum. Este
conhece somente os limites do seu horizonte, ao passo
que aquele conhece os limites da terra e da geografia em
geral. Como o empírico e o geógrafo mantêm-se entre si
relativamente à explicação do horizonte humano, assim
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mantém-se o filósofo céptico e crítico no tocante à
explicação do conhecimento.
O filósofo crítico é o geógrafo racional; ele
conhece o diâmetro da razão, sua extensão e seus
limites, ao passo que o céptico só presta atenção aos
seus términos exteriores, e tem da sua verdadeira
constituição uma idéia tão pouco desenvolvida, como
aquele empírico, que só sabe explicar os limites do
horizonte pela experiência sensível, sem conhecer a
verdadeira forma da terra.
Que o nosso horizonte é limitado em todos os
casos – nisto estão de acordo a percepção empírica e a
ciência geográfica, mas as razões explicativas são
diferentes. Assim podem também o filósofo céptico e o
crítico harmonizar-se na mesma afirmação, que aliás
eles fundamentam de modo mui diverso.
Compare-se por exemplo Kant com Hume, a
quem o mesmo Kant considerava – “o mais talentoso de
todos os cépticos”. Para ambos a causalidade é um
conceito, que só tem valor empírico. Mas o fi lósofo
céptico afirma que o conceito da causalidade é formado
por meio da experiência, ao passo que o crítico sustenta
que a experiência é formada por meio desse conceito.
Eis aí. É preciso não conhecer de Kant, senão o
nome, para comungar a errônea idéia de ter sido ele um
metafísico, um racionalista, um vidente de coisas
transcendentais e invisíveis, como tantos outros, que têm
enchido de sonhos e disparates a história da filosofia. A
verdade está na afirmação contrária.
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A obra decisiva de Kant consiste justamente em
que por meio dele a filosofia dogmática tornou-se
filosofia crítica, ou, como disse Schiller, em ter ele, da
razão filosofante, restabelecido a sã razão.
Há mais de trinta anos (1857) Rudolf Haym
falava de uma filosofia do futuro, que deveria ser de
novo uma filosofia crítica. Chegou enfim essa época de
renovação filosófica, que já foi dignamente iniciada
pelos trabalhos de Hartmann, Noire, Spir, Fortlage e
outros. Resta somente que os espíritos, para quem a
filosofia é assunto de entretenimento banal, mas uma
das mais nobres ocupações do pensamento humano,
saibam aproveitar-se do exemplo e da lição dos
mestres.L
NOTAS DO AUTOR (1) Um sinal dos tempos, nº 7. Escada, 1874. É preciso entretanto observar que nessa época o Colégio Pedro II ainda não contava no seu corpo docente o insigne talento de Sílvio Romero, que é ali presentemente professor de filosofia. Mas também aproveito a ocasião para dizer que Sílvio Romero mesmo ainda me serve de prova do nenhum valor, que têm no Brasil os estudos filosóficos. A influência mesológica foi perniciosa ao ilustre professor. Reconhecendo a impossibilidade de uma reação benéfica, ele viu-se obrigado a ser rotineiro, a ensinar somente pelo esterilíssimo programa da filosofia oficial. O resultado era inevitável – das matérias que ele cultiva, é hoje a filosofia a que talvez menos preocupe o seu elevado espírito.
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(2) “Deutscher Kaempfer”, nº 1. Recife, 1875, Vide Menores e Loucos, 2ª edição, pág. 130 (nota).
(3) Em honra da verdade, é preciso confessar que o Brasil já teve um filósofo extraordinário: foi aquele menino insigne, filho do autor dos Fatos do Espírito Humano, de quem este se ocupa em um dos últimos capítulos da sua obra; criança maravilhosa, de um gênio filosófico muito superior ao seu pai, que na t enra idade de oito anos já sabia dar uma definição de Deus, capaz de fazer impallidir i filosofii, como diria Gallupi. Realmente esse menino prodigioso, se não tivesse morrido, seria hoje a maior glória literária do Brasil; como também sê-lo-iam alguns outros, que por aí andam, já maduros e experimentados, se não tivessem vivido; deixando então aos pais filosóficos o cuidado de nos contarem as maravilhas da sua precocidade filosófica.
(4) Merece aqui uma apreciação particular o modo por que o chefe do posit ivismo francês julgou o autor da Crítica da Razão Pura. No primeiro volume do Cours (pág. 112), Augusto Comte, que certamente nunca tinha lido Kant, pois os termos da sua crítica mesma dão a conhecer que ele falava de outiva, atribuiu ao filósofo alemão a divisão geral das idéias humanas segundo as duas categorias da quantidade e da qualidade!... Mas é uma falsa atribuição, proveniente sobretudo da ignorância de Comte sobre o conceito da categoria na linguagem filosófica de Kant. Com efeito: eu ouso perguntar, já não a Comte, porém aos seus mais fanáticos discípulos de aquém e de além do mar: em que parte das obras do filósofo tedesco está escrito que as idéias humanas se dividem daquele modo? Vamos lá; respondam; quero ver isso. E se é certo que Kant nunca fez semelhante divisão, que juízo deve-se formar da seriedade científica do tal Sr. Augusto Comte?... Mas o melhor é o seguinte. Em uma das últimas lições (vol. 6, pág. 619), Comte diz: “Le plus grand des métaphysiciens modernes, l’illustre Kant, a noblement mérité une éternelle admiration en tentant, le premier,
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d’échapper directement à l’absolu philosophique par sa célèbre conception de la double realité, à la fois objective et subjective, qui indique um si juste sentiment de la saine philosophie”. É um pedaço interessantíssimo. Salta aos olhos a falta de compreensão da reforma de Kant. Dizer que este filósofo foi o primeiro que tentou escapar do absoluto, é um erro pueril, já porque antes dele outros tinham feito a mesma tentativa, já porque Kant não se limitou a querer evitar o absoluto; ele o eliminou totalmente do domínio da filosofia, como objeto de conhecimento. E além disto, ainda afirmar que esse grande mérito de Kant proveio da sua célebre concepção da dupla realidade, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva – é um disparate inqualificável. É imputar ao filósofo alemão um dualismo, que está em perfeita oposição com a idéia capital da sua teoria; dualismo que, entretanto, não exclui o absoluto. Os filósofos dogmáticos, os metafísicos propriamente ditos, que fizeram do mundo hipersensível objeto de sérios estudos, foram pela mor parte dualistas. De tudo isto se depreende que Augusto Comte falou de Kant, como falou de muitas outras coisas, ignorando-as completamente; mas julgava poder apreciá-las por uma espécie de intuição profética, própria do seu caráter de salvador do espírito humano!...
(5) Ueber das Sehen des Menschen, pág. 5.
(6) Vide acima, pág. 46.J
(7) Wahrheit und Irthum im Darwinismus, pág. 150.
(8) Natuerliche Schoepfungsgeschichte. Vierte Auflage, pág. XXXIX.
(9) Denken und Wirklichkeit, I, págs. 5 e 6.
(10) Prolegomena, pág. 28.
(11) Kritik der reinen Vernunft, (edição “Kirchmann”), pág. 600.
(12) Kritik der Urtheilskraft, (idem), pág. 357.
(13) Lange – Geschichte des Materialismus – I, pág. 21.
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(14) Realmente o velho sábio francês já era vítima de uma espécie de monomania positivista, e como tal produzia muitas vezes uma impressão de bobice, que causava dó. É assim que já tinha chegado ao ponto de enviar urbi et orbi a benção papal do comtismo, dirigindo cartas consoladoras a todos os que nele viam o seu diretor espiritual e descobrindo por toda a parte, até nas Farpas do escritor português Ramalho Ortigão, quelques directions positivistes! O vulto histórico de Littré é semelhante a certas montanhas, que vistas por um lado mostram-se altíssimas, inacessíveis, sublimes, ao passo que do lado oposto apresentam um declívio tão suave, que pode-se galgar o cima até a cavalo. O colaborador de Robin, o autor do dicionário, o tradutor de Hipócrates, é o lado escarpado e majestoso da montanha; o discípulo de Comte, porém, é a parte prosaica e rasteira, que não desperta nem merece atenção.
(15) Kuno Fischer – Geschichte der neuern Philosophie – III, págs. 15 e 16. Releva aqui advertir que é este pelo menos o sentido que a metafísica tem na Inglaterra, isto é, o da teoria de conhecimento, ou de um ramo dela. Assim, por exemplo, M’Cosh em sua obra The Laws of discursive Thought (1870) diz: “The science which treats of the intuitive operations of the mind, is called Metaphysics (pág. 1)”. Mas também, segundo Lewes (Hist. of Phil., I, pág. XXIII), Metaphysics “sometimes means Ontology. Sometimes it means Psychology. Sometimes it means the highest generalities of Physics”.
(16) Études critiques sur la littérature contemporaine – I, pág. 302.
(17) Appendice in lettere quattro alla monographia – Ente, Spirito e Reale – pág. 63.
(18) Koelnische Zeitung, 1888 – nº 8. Betrachtung zu Schopenhauers 100 Geburtstag am 22 Februar 1888. (*) (*) Jornal da Colônia, 1888, nº 8. Considerações sobre o centenário do nascimento de Schopenhauer, em 22 de fevereiro de 1888. (T. do E.).
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(19) Isto distoa do modo de ver mais seguido, que é atribuir a Kant uma obscuridade insuperável. Porém, tal obscuridade não passa de uma história de franceses, criada e fomentada por V. Cousin, qu não era um filósofo, que achava, portanto, incompreensível tudo que ia além do chamado senso comum.
(20) Saemmtliche Werke (Rosenkranz u. Schubert) – III, pág. 314.
(21) Saemmtliche Werke, II, págs. 384 e 613; III, pág. 143; VII, pág. 352.
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180
VI
A IRRELIGIÃO DO FUTURO
(1888) M
Die aufgeklaerte Meinung dass die Gemeinsamkeit und Oeffentlichkeit der Religionsuebung einer ueberschrittenen Kulturstufe angehoere, und dass der hoeher gebildete Mensch seine religioesen Beduerfnisse, wenn er noch solche habe, fuer sich allein befriedige, ist theils ein Irrthum, theils eine Ausflucht der Indifferenz, weiche sich der Gemeinschaft zu entziehen sucht.(
*)
JULIUS FROEBEL
I
Acabo de ler o livro de Guyau – L’Irréligion de
l’Avenir – que dizem ter causado um certo ruído no
mundo literário. Bem entendido: no mundo literário
francês, porque fora daí é muito provável que esse livro
tenha passado e continue a passar desapercebido(1)
.
É um grosso volume de cerca de quinhentas
páginas, no qual o autor se propôs resolver, segundo ele
(
*) A opinião liberal de que a comunidade e publicidade do culto
religioso pertence a uma fase ultrapassada da cultura e que os
homens mais cultos, quando ainda o têm, satisfazem-se por si sós, é
em parte um erro, em parte um subterfúgio com que procura se afastar da comunidade. (T. do E.).
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181
crê, a seu modo e com os seus próprios dados, o velho
problema do destino ulterior da religião.
O velho problema – digo eu – porque velho
realmente ele é; mas Guyau está convencido de que deu-
lhe uma face nova, nunca sequer pressentida pelos que
anteriormente se ocuparam do assunto.
A pretensão é burlesca, porém ao certo
legitimamente francesa. É um dos distintivos dessa
gente o querer recomeçar tudo, sempre no intuito de
fazê-lo melhor que os outros. Para o francês não há
continuidade histórica em coisa alguma. Qualquer
questão, já muito elucidada e debatida, ele a encara e
discute com uma seriedade ridícula, dando como
inexistentes todos os seus antecessores, e tomando para
si a glória da solução do pretendido enigma.
Isto quer dizer que todo francês, sem a menor
cerimônia, reputa-se u gênio, pois que só ao gênio e às
vezes concedido derramar um certo frescor de novidade
sobre assuntos gastos e cediços.
Mas a genialidade não é fenômeno comum. Em
regra, pois, os franceses, que fazem cara de quem abre
novos caminhos, não passam de uns pobres desco -
bridores de mundos descobertos, ou exploradores de
terras exploradas. Guyau está neste caso.
O célebre israelita Ludwig Boerne disse uma vez
que o alemão em geral só escrevia ouro, ou cobre, ao
passo que o francês ordinariamente escrevia prata. A
expressão não é somente espirituosa, porém justa e
verdadeira, no sentido de que os livros alemães quase
sempre se distinguem, por um uma profundeza admi-
182
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rável, ou então por uma esterilidade sem igual, enquanto
que os franceses mantêm-se numa tal ou qual mediania,
eqüidistantes dos dois extremos, sempre à vista de terra,
sem ousarem jamais lançar-se ao alto mar...
Releva, porém, observar que o critério estabe-
lecido por Boerne era talhado para um certo e
determinado tempo. Os alemães, é verdade, continuam a
escrever ouro ou cobre, mas os franceses já não
escrevem prata. Deles disse com razão Johannes Sherr
que, depois da guerra de 1870, não perderam somente os
milliards, mas perderam também o espírito.
Com efeito: não há injustiça em afirmar que
depois da queda do segundo império e da criação da
república, os franceses têm mostrado uma espécie de
exaurimento intelectual, que contrasta abertamente com
o seu belo passado e provoca sérias dúvidas sobre o seu
futuro. Em mais de uma face da vida espiritual, o
império apresentara vivos sinais de regresso; a república
porém importou, por assim dizer, uma decadência na
decadência, piorando sobremodo os vícios e defeitos da
época anterior(2)
.
Qui dit Paris, dit tout la France. Os filhos mais
moços de Madame Lutetia não produzem coisa alguma
que seriamente mereça ser lida e meditada. Em geral o
proveito que se aufere da leitura de qualquer dos seus
trabalhos científicos e pouco mais ou menos o mesmo
que pode resultar da de um romance de Zola. Nenhuma
idéia nova, nenhuma excitação para indagar e refletir.
Na maioria dos casos, somente vox, vox, praetereaque
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183
nihil – é a impressão que resta ao leitor desabusado e
ávido de aprender.
No estrito domínio literário mesmo, a decadência
se faz sentir de um modo bem notável. Ainda não há
muito tempo, um dos mais sisudos e conscienciosos
críticos franceses, De Vogüé, dizia o seguinte: “O
começo do século XIX trouxe-nos novas necessidades.
Mas todos os fundos apresentaram-se exaustos. Tivemos
então de tomar emprestado à Inglaterra e à Alemanha, e
a literatura reanimou-se. Atualmente, porém, surgiu de
novo para a França uma época de fome e de anemia”.
É isto mesmo, exatamente isto. O honrado crítico
confessa sem rebuço a falta de originalidade do seu país,
e leva a sua despreocupação ao ponto de reconhecer que
chegou também a vez dos russos, a quem agora cabe a
missão de vir em socorro da indigência literária dos
franceses.
Esta idéia, que vinte anos antes teria provocado
um grito de espanto, ou uma gargalhada de desdém,
presentemente nada encerra de estranho e contestável. é
uma verdade que transluz das atuais condições da
França e suas relações com a Rússia. O eslavofilismo
hodierno dos franceses não exprime somente, como é
crível à primeira vista, uma necessidade de coadjuvação
e reforço intelectual(3)
.
Mas não percamos de vista o objeto da nsosa
crítica. Nenhuma obra francesa da atualidade oferece
uma prova mais cabal da infecundidade da França, do
que o livro de Guyay. É um livro sintomático da última
fase mórbida do francesismo em dissolução. Se nisto vai
184
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uma hipérbole, e com a hipérbole uma injustiça da
minha parte, é o que passamos a ver.
II
Logo em princípio vem a pêlo observar que a
obra de Guyay deve uma grade parcela da sua nomeada
ao ar de novidade e estranheza do seu título. Realmente:
suponhamos que ele a tivesse intilutado – A religião do
futuro, ou mesmo O futuro da religião: estudo filosófico
– podemos afianças que ninguém ter-se-ia dado ao
trabalho de lê-la. Já de antemão se sabia o conteúdo do
livro. Era uma velha cantiga, que o leitor se dispensaria
de ouvir pela milésima vez.
Não assim, porém, com o retumbante nome – A
irreligião do futuro: estudo sociológico . As duas frases
– irreligião e sociológico – foram de um efeito
prodigioso; a primeira, por conter um certo sabor de
impiedade, e a segunda, por estar de acordo com a folie
raisonnante do positivismo, que é hoje o característico,
pelo menos entre nós, da semicultura frívola e
pretensiosa(4)
.
Por minha parte, declaro que não precisava de
outro critério para determinar o quilate do espírito de
Guyau. Conheci-o logo na pinta: o homem é sociólogo,
sem o que não se explicaria o subtítulo que conferiu ao
seu livro. Mas não é a sua socio logia o que aqui me
proponho analisar e combater. A nossa questão é
diferente.
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185
Acompanhar o autor em todas as voltas e
sinuosidades do seu extenso livro é um trabalho, para o
qual há mister de uma coragem não comum. O fio
vermelho, o pensamento capital de toda a obra perde-se
muitas vezes nas meadas inextricáveis de uma retórica
estéril e impertinente.
A um espírito superior, a um espírito mais
profundo, teria bastado um livro de cem páginas, ao
muito, para discutir e resolver o problema de que se
trata. Porém Guyau é dos tais que preferem os rodeios
aos atalhos, e tem a certeza de escrever para leitores,
que em geral não acreditam em livretes; o volumaço é o
distintivo da alta sabedoria.
Entretanto ele nos fez o obséquio de dar aqui e ali
uma vista sintética da sua doutrina; e este favor não é
para ser rejeitado. Por uma única linha, em que o autor
define a religião, avalia-se o livro inteiro, como por uma
só gota, que se prova, conhece-se a ruindade da água de
um imenso lago.
Como diz ele na introdução: “A religião é um
sociomorfismo universal. A sociedade com os animais, a
sociedade com os mortos, a sociedade com os espíritos,
com os bons e maus gênios, a sociedade com as forças
da natureza, com o princípio supremo da natureza, não
são mais do que formas diversas desta sociologia
universal, em que as religiões têm procurado a razão de
todas as coisas, tanto dos fatos físicos – como o trovão,
a tempestade, a doença, a morte, como das relações
metafísicas – origem e destino, ou das relações morais –
virtudes, vícios, lei e sanção”.
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186
Não há dúvida: isto é bonito; ma sé bonito demais
para ser verdadeiro. Guyau labora numa ilusão pueril. O
sociomorfismo universal, de que ele fala, não constitui a
essência da religião. A tese é falsíssima. Para prová-lo,
basta lembrar que a história nos dá testemunho de
religiões nacionais, exclusivamente nacionais, que são
incompatíveis com esse universalismo.
A religião dos hebreus, por exemplo, com o seu
Deus guerreiro e solitário, nada tem de sociológico, no
sentido de Guyau.
O cristianismo mesmo, não obstante o seu pendor
cosmopolítico, não podia elevar-se, com a sua intuição
maniquéia de céu e inferno, de eleitos e precitos, à
concepção de uma sociabilidade, que envolve todos os
seres, que “vai até as estrelas”.
Esta idéia de um sociomorfismo universal,
refletida e esclarecida, como ela hoje nos aparece, é de
data bem recente. Ela se prende à filosofia de
Schopenhauer.
Ao passo que o próprio cristianismo olha com
indiferença para os outros seres, considera este mundo
como pecaminoso, dominado pelo diabo, e dirige as suas
vistas para um outro mundo, puro e espiritual, a nova
teoria alarga o círculo das criaturas, que merecem a
nossa simpatia, ensina a compaixão, não só para com as
classes humanas estigmatizadas pela doutrina da Igreja
com o desprezo terreno e com a eterna condenação, mas
também para com os animais que estão muito abaixo do
homem, procura tornar mais suportáveis os seus
sofrimentos, e destarte, por assim dizer, expurgar uma
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velha culpa da humanidade, pela qual ela r eclamou para
si esta terra como sua posse exclusiva, e sujeitou
tiranicamente aos seus fins todos os outros seres(5)
.
O espanhol com a sua feroz paixão pelas
tauromaquias, o francês com o seu provérbio: on n’est
pas cheval pour rien, e o italiano, que desapiedado
martiriza o seu burro e se justifica dizendo: non é
cristiano, non crede a la santa Madonna, são os
representantes populares deste antiquíssimo grosseiro
egoísmo humano, que tira mesmo o seu alimento da
pura doutrina do cristianismo.
É indubitável, acrescente Noire, que a consciên-
cia da humanidade, que começa a reconhecer parentes
em todos os seres, anuncia ao mesmo tempo uma nova
época de mais alta nobilitação, e deste modo podemos
também alegremente saudar a propaganda, que se torna
cada vez mais geral, da filosofia de Schopenhauer (não
obstante o seu verniz budístico) e da teoria de
evolucionismo como verdadeiramente favorável à
cultura e capaz de conduzir à realização da pua
humanidade, que aumenta de dia em dia.
Porquanto essa consciência há de vir em proveito,
não só dos animais, como também de uma grande parte
dos nossos irmãos. Quanto sangue, quantos tormentos
não têm custado a uma infeliz raça humana o fato de
parecer ela ter a maior semelhança com o orang!...(6)
.
Não há, pois, idéia mais falsa do que a de Guyau.
“Se fôssemos obrigados – continua ele – a encerrar a
teoria deste livro em uma definição necessariamente
estreita, diríamos que a religião é uma explicação física,
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metafísica e moral de todas as coisas por analogia com a
sociedade humana, sob uma forma imaginativa e
simbólica. Ela é, em duas palavras, uma explicação
sociológica universal, de forma mítica”.
Será preciso dizer que tudo isto não tem senso? O
diabo da sociologia transtornou a futrica filosófica do
francês, e levou-o até o terreno do galimatias e do
disparate ridículo. Efetivamente: a religião considerada
como uma explicação sociológica do universo, em
forma mítica – é coisa que mal se compreende, que dá
tratos à cabeça de qualquer mortal não iniciado nos
mistérios da sociologia comtesca.
O proton pseudos do nosso autor está em falar da
religião, como os demagogos falam da república, isto é,
não desta ou daquela, nem mesmo de todas elas, mas da
religião em abstrato, uma religião ideal, uma religião
que não existe. E é o que basta para ferir de morte a sua
teoria.
Guyau esquece que o conceito da religião não é
filosófico, porém histórico. Isto posto, e aplicando -se a
qualquer das religiões conhecidas à medida da sua
definição, evidencia-se o erro dela. E, se não, vejamos.
O cristianismo pretendeu, é verdade, difundir -se
pelo mundo inteiro, mas esbarrou diante do impossível.
Uma vez organizado, teve de obedecer à lei do
polimorfismo ou da divergência do caráter, pela qual os
indivíduos orgânicos, chegando a um certo grau de
desenvolvimento, cindem-se e multiplicam-se em for-
mas heterogêneas, saída de base homogênea.
189
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A igreja grega e o protestantismo constituem
essas formas, que separando-se do tronco primit ivo, e
tomando direções diferentes, ainda tornaram mais difícil
o problema do unum ovile et unus pastor.
Não é só isto. O caráter sociológico de Guyau
atribui à religião, está em perfeita contradição com os
fatos, no que diz respeito ao cristianismo, principal-
mente em sua forma católica. Monaquismo, ascetismo,
misticismo – são palavras que tornam bem patente o
lado anti-social e egoístico da religião cristã.
Não são melhores as condições da fonte precípua,
donde ela derivou. Refiro-me ao judaísmo. Á primeira
vista parece que a idéia-mater da religião judaica se
harmoniza com a teoria do nosso filósofo, atento que os
judeus representavam a sua vida religiosa sob a imagem
imponente de uma aliança com Deus. Mas é inexato.
“A concepção, diz Michel Nicolas, ao mesmo
tempo tão simples e tão elevada, de uma aliança de
Jeová com a família de Israel, de uma teocracia que era
no fundo, posto que sob uma forma imperfeita, o que
depois se chamou a cidade de Deus, tinha ficado,
durante séculos, no meios dos filhos de Israel, um ideal
geralmente desconhecido, acima da inteligência de um
povo, de quem ela não pudera vencer os hábitos
inveterados, enraizados provavelmente em reminiscên-
cias e instintos de raça.
Se não havia caído em um completo olvido, ela o
devia a uma sucessão não interrompida de homens que,
desde a época dos juízes até a volta do cativeiro de
Babilônia, constantemente pugnaram pelo seu triunfo.
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Estes ardentes defensores da obra, cuja primeira
idéia a tradição faz remontar a Moisés, não conseguiram
levar os filhos de Israel a tom arem a concepção
mosaica por base e regra de sua vida social e religiosa;
eles tinham-na pelo menos conservado como um pre-
cioso depósito, e haviam-na transmitido – engrandecida
e espiritualizada – à posteridade que devia enfim sentir
a sua grandeza e a sua verdade”(7)
.
Já se vê que o judaísmo em seu pr incípio nada
menos foi que uma explicação sociológicos universal,
em forma mítica. O sábio crítico religioso cita em apoio
de sua doutrina um outro sábio francês Edouard Reuss,
em sua Histoire de la Theologie Chrétienne – que
comunga a mesma idéia.
É verdade que mais tarde, quando os judeus
voltaram do cativeiro babilônico, uma grande modifi-
cação se havia operado em seu espírito. O jeovismo ou a
concepção mosaica de Deus e do mundo tinha ganho
todo o terreno, para ficar, como ficou sendo desde então
a única religião desse povo.
Mas ainda assim seria um erro dar ao jeovismo o
predicado de sociológico, visto que, mesmo depois de
geralmente aceito e depurado pelos sofrimentos dos seus
sectários, ele não perdeu a primitiva feição de
exclusivismo nacional. A bitola de Guyau não lhe
assenta, pois, de modo algum; e o que se diz do
judaísmo, é aplicável em igual escala a todas as outras
religiões orientais.
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191
III
O palavroso autor da Irréligion tem uma idéia
fixa, que se deixa facilmente ler entre as linhas do seu
grosso livro. É contribuir com o seu melhor para provar
que ces cochons d’allemands, que se dão por criadores
da ciência da religião e da mitologia comparada, não
merecem o preito que se lhes rende. Tudo que tem
produzido, é errôneo, ou pelo menos incomple to. Há
mister de que o francês venha sempre escrever uma
adenda e corrigenda aos trabalhos do alemão.
Ele não se exprime precisamente assim; mas é o
que se depreende do seu escrito, o que se deduz da sua
pretensão. Nem se julgue que essa idéia fixa é
propriedade de Guyau; pelo contrário, ela é hoje bem
comum de todos s franceses mais ou menos cultos. Já
um pouco desesperançados da revanche pelas armas,
afagam a ilusão de uma revanche pelas letras! É justo
não perturbá-los no gozo de tão belo sonho.
Entretanto, ponde de parte a ilusão que o obceca,
devo observar que o livro do nosso autor não contribui
bastante para elevar os créditos científicos da França.
Uma questão, como a que ele empreendeu resolver, não
é com frases e declamações que se chega a elucidá -la, se
é que ela, depois de tão batida e tantas vezes manu -
seada, ainda contém algum atrativo.
Anteriormente, e dentro mesmo dos dois últimos
decênios, religião do futuro já tinha sido tratada por
vários escritores. Assim, La Religion, de Vacherot
(1869), La Religion de l’Avenir, de Laurent (1869), Der
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alte und der neue Glaube, de Strauss (1872), Die
Religion im Zeitalter Darwin’s, de Heinrich Lang
(1873), Die Selbstzersetzung des Christenhums und die
Religion der Zukunft, de E. von Hartmann (1874) –
todas estas obras – sem falar de outras, procuraram dar
solução, cada uma a seu modo e sob o seu ponto de
vista, ao mesmo problema de que se ocupa o livro que
analisamos.
Estava, pois, determinado pela própria natureza
do assunto que o autor da Irréligion de l’Avenir nada
trouxesse de novo e original. Nada trouxe realmente. É
certo que a sua tese destoa da de Laurent, da de Lang e
da de Hartmann; mas bem pouco se distingue da tese de
Vacherot, que ele discute com muito mais retórica,
porém também com muito menos talento.
A pretensão de novidade da parte de Guyau não
pode ser mais infundada. “É essencial – diz ele – não se
enganar sobre esta irreligião do futuro, que nós
quisemos opor a tantos trabalhos recentes sobre a
religião do futuro. Pareceu-nos que esses diversos es-
critos repousavam sobre muitos equívocos. Primei-
ramente, confunde-se a religião propriamente dita, ora
com a metafísica, ora com a moral, ora com ambas
reunidas, e é em virtude dessa confusão mesma que se
sustenta a serenidade necessária da rel igião”.
Aqui há um acerta falta de sinceridade. Além de
Vacherot, cujo livro também foi consagrado à religião
do futuro, no intuito de mostrar que há de extinguir -se
com o tempo o sentimento religioso, que para ele
constitui um estado psicológico provisório, e não
193
193
perene, o ponto de vista de Strauss em sua Velha e nova
fé é exatamente este mesmo.
Há somente uma diferença, que aliás não altera a
identidade: é que para Vacherot o sub-rogado da religião
será a filosofia com o seu absoluto e o seu infinito, ao
passo que para Strauss serão as ciências naturais, cujos
resultados vão pouco a pouco revelando os segredos do
universo, o qual existe por si só, cheio de vida e de
inteligência, independente de um Deus.
Para que, pois, essa pacholice de vir “submeter a
questão a um novo exame” quando tudo que diz, é coisa
velha, e afinal a questão não adianta um passo?
A anomia religiosa, o individualismo religioso,
de que fala o fofo crítico, está contido, intimamente
contido na doutrina dos dois escritores há pouco
mencionados.
Porquanto desaparecida a religião, cujo domínio
na alma humana, como pensa Strauss, é semelhante ao
dos caboclos na América, que de ano em ano vai
recuando e diminuindo pela conquista e ocupação da
raça branca – é tão inconcebível que ela continue a
inspirar e dirigir as ações do homem, como é
inconcebível que os caboclos, depois de extintos,
continuem a ocupar este ou aquele pedaço de terra
americana. Um completo estado, por conseguinte, de
anomia ou de falta de lei religiosa.
Não é só isto. A idéia do individualismo
religioso, como ausência de qualquer religião, mas ainda
assim operando e influindo religiosamente, verdadeira
ou falsa, esta idéia vem de mais longe. Foi um poeta
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alemão, educado na filosofia de Kant, foi Schiller, quem
primeiro a formulou nos seguintes versos:
Welche Religion ich bekenne? Keine von allen, Die Du mir nenmst. Und warum keine? Aus
Religion (*)
Já se vê que a obra de Guyau, bem examinada,
não apresenta um só traço de originalidade. Além do
conceito esdrúxulo da sociologia, que a golpes de
martelo ele fez entrar como um prego no âmago de
religião, não há mais nada que produza a impressão da
descoberta(8)
.
Durante a leitura do livro, sentimo-nos por vezes
obrigados a parar a perguntar a nós mesmos, se já não
lemos coisa igual em outra parte; tal é a riqueza de
idéias alheias que, não sei se consciente ou incons -
cientemente, o autor dá como próprias.
Mas o pior é que ele, convencido como se acha de
que o seu trabalho vem suprir uma lacuna, se não antes
fazer uma revolução, é o primeiro a não saber ao certo o
assunto de que se trata. Neste estado de vacilação,
cambaleia algumas vezes e cai em contradições.
Eis uma delas: “Não é por um abuso de
linguagem – diz Guyau – que Spencer, por exemplo, dá
o nome de religião a toda especulação sobre o
incognoscível, donde lhe é fácil deduzir a perpetuidade
(*) Que religião professo? – Nenhuma das que você indica. E por que razão, nenhuma? – Por religião. (T. do E.).
195
195
da mesma religião, assim confundida com a
metafísica?”(9)
Primeiramente é bom notar que esta confusão da
religião com a metafísica não é própria de Herbert
Spencer.
O autor não devia ignorar que a idéia de perfeita
identidade entre os dois sentimentos, formando ambos
uma só necessidade humana, pertence a Schopenhauer(10)
.
Mas seja de quem for, o certo é que nas linhas
citadas Guyau repele essa identificação. Entretanto isto
não o inibe de, oito páginas adiante, asseverar o
seguinte: “No sentido filosófico da palavra, só é
religioso aquele que investiga, que pensa, que ama a
verdade”.
Porém isto quer dizer outra coisa senão que, no
sentido filosófico da palavra, só é religioso quem é
filósofo, quem é metafísico em qualquer grau? Não,
decerto; a contradição é portanto incontestável.
Apreciado com justiça, o livro todo é um ato de
contradição. Porquanto, se o autor está convencido da
morte inevitável de todas as religiões, se já vem perto,
muito perto, a futura anomia religiosa, que há de reinar
sobre as ruínas das velhas crenças – para quem foi enfim
que escreveu o seu volumaço? – Quem é que pode ter
prazer ou interesse em lê-lo? O povo inculto não abri-
lo-á; e a pequena parte culta do mundo civilizado só
pode ser-lhe indiferente ou hostil.
Nada existe por conseguinte de mais burlesco no
gênero do que as palavras iniciais da obra de Guyau
combinadas com os resultados a que ela chega. “A
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gênese das religiões – diz o crítico – tem uma impor-
tância maior que qualquer outra questão histórica: não é
somente a verdade de fatos e acontecimentos passados,
que aí se acha empenhada; é o valor de nossas idéias e
de nossas crenças atuais. Cada um de nós tem alguma
coisa em jogo neste debate”.
É um garganteio de velho romantismo religioso.
A gênese das religiões, mais importante que outra
qualquer questão histórica, é simplesmente uma frase de
estouro para prender a atenção do leitor. Quando Guyau
afirma que cada um de nós tem alguma coisa em jogo
neste debate, não se lembra que no meio desse nós vai
muita gente, para quem a questão da origem das
religiões não envolve interesse de ordem alguma.
Ele mesmo, o grão profeta da irreligião ou a-
religião do futuro, que também faz parte daquele plural,
dado o caso de ser sincero não pode achar no assunto
outro atrativo, senão o atrativo comum a todos os
assuntos científicos, e como tal, tanto lhe importa ocu-
par-se da gênese das religiões, quanto lhe importaria,
por exemplo, tratar da gênese das estrelas, das
montanhas, ou das minas de carvão-de-pedra. O inte-
resse é um só.
Como se vê, o autor francês cedeu a uma ilusão
de que Hartmann mesmo não se mostrou isento. Em seu
precioso opúsculo – Die Selbstzersetzung des Chris-
tenthums – o filósofo alemão também começa por uma
proposição, que provoca sérias dúvidas. Ele diz com
efeito: “Bem raras vezes tem havido uma quadra mais
irreligiosa do que a nossa, e todavia as questões reli-
197
197
giosas não têm muitas vezes agitado uma época mais
profundamente do que vemos nos nossos dias”.
A primeira asserção é verdadeira; mas a segunda
é falsa. Por nada menos se distingue a época presente do
que por uma paixão particular pelos chamados pro -
blemas religiosos. Para que uma quadra se diga
religiosamente agitada, não basta que meia dúzia de
teólogos e igual número de filósofos, ainda que sejam
da estatura de um Hartmann, escrevam grandes ou
pequenos livros sobre o assado, o presente e o futuro da
religião. Faz-se preciso muito mais do que isso.
Faz-se preciso que o público tome ao sério tais
questões, que leve o seu entusiasmo por elas até o
sacrifício, até o martírio. Mas onde é que este fenômeno
se dá nos dias atuais? Qual é no tempo hodierno, já não
digo o jovem inexperiente, mas o homem feito mesmo,
que ponha em jogo a favor da religião um cabelo
branco, sequer, dos que começam a encanecê-lo, e que
aliás ele bem quisera ver arrancados, para parecer
menos velho do que realmente é?
Não é mais cabível nem desculpável qualquer
ilusão neste sentido. Um dos grandes vultos da escola
crítica de Heidelberg. Adolf Hausrath, escreveu estas
palavras notáveis, que julgo adaptadas ao nosso tema:
“Está determinado pela própria ordem da vida
espiritual que os seus órgãos não sejam todos aptos ao
mesmo tempo, nem todos em igual medida, para
apreender os fatos do mundo externo e sujeitá-los ao
trabalho interior. Às épocas de recolhimento, em que
198
198
repousaram os problemas práticos, sucedem outras, nas
quais o espírito só a eles se consagra.
A gerações inteiras aparece como o alvo supremo
da vida realizar o ideal artístico, andar no encalço da
verdade teorética, estabelecer claramente as regras do
pensamento e da ação – e ao seguinte decênio já se
mostra insípido e indiferente tudo o que não tem uma
relação imediata com a vida, com as instituições do
Estado, com a disciplina jurídica das realidades
existentes.
É difícil dizer, como se opera uma tal mudança.
Ela se prepara em ocultos laboratórios, é impelida para
adiante pelos acontecimentos, que ela mesma produziu,
arrasta consigo as pessoas, que também por sua vez
reagem poderosamente sobre ela. Deste modo sucede
que um povo de pensadores torna-se um povo de
políticos, uma nação de conquistadores, uma nação de
industriais, e que a um país nada parece mais longínquo,
mais estranho e indiferente, do que aquilo que uma
geração antes absorvia toda a sua atividade”(11)
.
Exatamente. Mas ninguém dirá com acerto que a
época vigente, ou os dois a três últimos decênios, que
podem ser designados como tal, se caracterizam por
qualquer sinal de verdadeiro interesse religioso. Pelo
contrário, ela é uma daquelas, de que fala Hausrath, nas
quais os problemas práticos tomaram a frente dos
especulativos, A preocupação da vida, que se manifesta
em todos os domínios por um sôfrego movimento, por
um trabalho incessante, atirou para a beira dos túmulos,
199
199
a preocupação da morte, com os seus associados: Deus,
a imortalidade, o céu e o inferno.
Cada tempo tem o seu demônio. O demônio do
nosso tempo não é religioso, mas político e social, se é
que não basta dizer – político – para exprimir uma e
outra coisa.
Devo aqui, entretanto, prevenir um engano. Não
se pretenda deduzir deste meu modo de ver que eu esteja
de acordo com a tese positivista da provisoriedade da
religião. Há dezoito anos que protestei contra ela,
combatendo as idéias de Vacherot, cuja filiação no po-
sitivismo não me passou então desapercebida: demons-
trei-a cabalmente(12)
.
E hoje não tenho opinião diversa, continuo a
pensar da mesma formaN
. O que porém não admito, é
que se tome, como pretexto para fazer livros, o falso
pressuposto de que a nossa época, ainda que com-
pletamente ímpia, aprecia em alta escala o estudo
genético das religiões, que se qualifica de um dos mais
importantes, porque vem determinar “o valor de nossas
idéias e de nossas crenças atuais”. Isto não tem senso.
É claro, pois, que o livraço de Guyau, além do
mais, se ressente de uma absoluta falta de acomodação e
correspondência às necessidades do tempo. Quem o lê,
quem tem a coragem de lê-lo com atenção, não fica mais
nem menos instruído, mas acaba enfastiado, e a única
impressão que lhe resta, depois da enfadonha leitura, é
que o autor não passa de um genial borrador de papel ;
fenômeno que aliás não é raro entre os escritores da
200
200
França hodierna. Penetremos todavia um pouco mais no
interior da obra.
IV
O escritor francês, tomando ao sério a tarefa
inútil, que se impôs, começa por passar em revista a
doutrina de diversos autores sobre a gênese religiosa.
Max Mueller, E. von Hartmann, E. Renan, H. Spencer –
todos lhe fornecem ocasião e motivo para uma refutação
em regra, isto é, para alargar demasiado as proporções
do seu livro.
É tal o abuso de detalhes e a abundância de
episódios, de que o livro se acha entumecido, que a
idéia central do autor, como já fiz notar, não se deixa
bem aperceber. Há no volume um grande número de
passagens, em que ela poderia dizer como Voltaire: on
m’étouffe de fleurs. E o leitor não se sente menos
asfixiado de frases banais e exalações pedantescas.
Em geral Guyau produz a impressão de um desses
maus cavaleiros, que têm um porte garboso e um bonito
sofrear de corcel. Mas ninguém se iluda: ao primeiro
arranco do animal, tombam por terra como um fruto
podre.
O autor da Irréligion também se distingue por um
certo garbo e sabe perfeitamente acabar os seus
períodos. Porém é só isso. Quando entra a criticar e
filosofar, que para espíritos da sua têmpera são dois
movimentos bruscos, a queda é infalível.
201
201
Mal se pode conter o riso diante da arrogância do
francês, que pretende passar um traço em tudo que de
melhor até hoje se tem escrito sobre a matéria, e dar a
verdadeira fórmula para a solução do problema. Esta
ousada pretensão, por si só, provoca a antipatia contra o
livro e seu autor; tanto mais, quanto é exato que esse
livro não encerra novidade nem verdade alguma – ou, o
que tem de novo é coisa ruim, e o que tem de verdadeiro
é coisa velha – para ainda servir-me da bela expressão
de Lessing, de que já uma vez me aproveitei em ocasião
análoga.
A ciência não pode ser semelhante à teia de
Penélope, que desmanchava durante a noite o que fizera
durante o dia. A crítica científica não deve tomar para si
o trabalho noturno da rainha de Ítaca. A sua função –
sou o primeiro a reconhecer – é principalmente
destrutiva; mas isto mesmo tem seus limites. Só se deve
destruir por necessidade; e é uma prova de insensatez a
destruição por luxo.
Os críticos franceses atuais, sobretudo quando se
ocupam de obras alemãs, não raras vezes lembram a
fúria de Napoleão III em derrubar quarteirões inteiros de
casas novas em Paris, para reedificá-los e aformoseá-los
melhor. Mas o que era possível ao déspota, não o é
igualmente ao crítico. Não se destroem teorias mais ou
menos firmes e assentadas com a mesma facilidade com
que se derrubam edifícios.
Guyau dividiu a sua obra em três partes, que se
intitulam: primeira, A gênese das religiões nas socie-
dades primitivas; segunda, Dissolução das religiões nas
202
202
sociedades atuais; terceira, A irreligião do futuro. Cada
uma destas partes subdivide-se em várias seções,
conforme os diversos pontos de vista da análise do
autor.
É assim, por exemplo, que a primeira parte se
compõe de três capítulos. A física religiosa, a metafísica
religiosa e a moral religiosa, recortando-se cada um
deles por sua vez em diferentes assuntos.
A idéia de cada física religiosa, o autor tirou-a
visivelmente da física social do positivismo. Há
somente a lastimar que não levasse mais longe o
paralelo, e que assim como Comte nos fala de uma
estática e uma dinâmica social, Guyau não nos falasse
também de uma estática e uma dinâmica religiosa.
Não basta mostrar – se tal demonstração é
possível – como nascem as religiões; é preciso também
mostrar, como elas se desenvolvem. Entre a sua gênese
e a sua dissolução medeia o imenso período do seu
desenvolvimento, que é sem dúvida o mais importante
para o historiador e o filósofo.
Nem se diga que na passagem de uma física à
metafísica e à oral religiosa já existe um certo processo
evolutivo. Não há tal. Esses três conceitos não repre-
sentam fases sucessivas, mas momentos que coexistem
na prática de qualquer religião.
A física religiosa, que primitivamente se mani-
festa no feitichismo, no sabeísmo, e em todas as outras
formas rudes de adoração à natureza, continua a formar
o corpo do sentimento religioso em todos os graus da
cultura humana.
203
203
O protestante ortodoxo dos nossos dias, que
acredita na sua bíblia, que nela nutre a sua crença, ainda
está dentro dos limites de uma física religiosa. Dir -se-á
talvez que o que ele aí adora, não é a parte exterior e
material do livro, porém a força oculta da palavra
divina, que este livro encerra(13)
.
Mas também o homem primitivo, que se curva
diante do seu fetiche, não o faz pelo fetiche mesmo,
porém somente pelo poder misterioso que lhe atribui; de
modo que no ato mais grosseiro da física religiosa já se
deixa ver uma tal ou qual concepção metafísica.
Aqui são dignas de menção estas palavras de
Schopenhauer: “Os materialistas se esforçam por mos-
trar que todos os fenômenos, até os espirituais, são
fenômenos físicos. Com razão; somente eles não vêem,
por outro lado, que tudo que é físico, é ao mesmo tempo
metafísico”.
Um dos erros capitais de Guyau consiste pre-
cisamente em procurar separar, como independentes um
do outro, os elementos físico e metafísico da religião.
Com uma ingenuidade infantil ele chega mesmo a
lisonjear-se de havê-lo conseguido. É assim que ousa
dizer no final do primeiro capítulo da gênese:
“Acabamos de ver que o nascimento da religião
não é uma mudança de vista teatral no seio da natureza,
que tudo a prepara entre os animais superiores, que o
homem mesmo aí chega gradualmente e sem abalo.
Nesta gênese rápida das religiões primit ivas não tivemos
necessidade de introduzir as idéias de alma, espírito,
infinito, causa primeira, nem mesmo nenhum sen-
204
204
timento metafísico. Essas idéias se desenvolveram
posteriormente, elas são mais um efeito do que uma
causa das religiões...”(14)
.
Há nisto completo engano. Que Guyau tenha
apostado consigo mesmo não introduzir nas primeiras
cinqüenta páginas do seu livro as idéias de alma,
espírito, infinito, causa primeira e quantas mais lhe
hajam parecido dignas de excluírem-se, e na sua própria
opinião tenha ganho a aposta – nenhuma dúvida. Mas a
questão é outra: saber se realmente essas idéias foram
excluídas, ou se mau grado do autor entraram por
alguma fenda, por algum interstício da prisão, em que
ele emparedara a sua teoria.
A segunda hipótese é a verdadeira. Eu abro o
livro ao acaso em uma das páginas da primeira parte, e
leio as seguintes linhas:
“Quem de nós não tem por vezes perguntando a si
mesmo, se uma vida poderosa e oculta não circula, sem
que o saibamos, nas grandes montanhas levantadas para
o céu, nas árvores imóveis, nos mares eternamente
agitados, e se a natureza muda não pensa em alguma
coisa de desconhecido para nós? Pois que, ainda hoje,
nos achamos neste pé, crê-se porventura que ser-nos-ia
fácil convencer de seus erros um desses homens
primit ivos, que creram sentir palpitar aquilo que os
alemães chamam coração da natureza? Depois de tudo,
este homem era destituído de razão?
Tudo vive em torno de nós; nada existe
inanimado senão em aparência, e a inércia é apenas uma
palavra; a natureza é uma tensão, uma aspiração
205
205
universal. Só a ciência moderna pode medir mais ou
menos os graus desta atividade espalhada em tudo,
mostrar-nos que ela é aqui difusa, ali concentrada e
consciente, fazer-nos conhecer a diferença que separa os
organismos superiores dos organismos inferiores, e estes
dos mecanismos das reuniões rudimentares da matéria.
Para o homem primitivo, a quem todas estas
distinções, todas estas graduações são impossíveis, só
há uma coisa evidente: é que a natureza inteira vive; e
ele concebe naturalmente esta vida sobre o tipo da sua,
como acompanhada de uma consciência, de uma
inteligência tanto mais estupenda, quanto mais mis -
teriosa; ainda uma vez ele é homem e humaniza a
natureza; ele vive em sociedade com outros homens, e
estende a todas as coisas as relações sociais de amizade
e inimizade”.
Nada mais claro. Essa vida que se adivinha
existir em toda a natureza, e que já o homem primit ivo
adivinhava – essa vida que permanece eternamente in-
sondável – é uma idéia puramente metafísica. O homem
primit ivo já a possuía.
Mas o autor ainda vai adiante. “Daí a divinizar a
natureza – continua ele – há apenas um passo... Quem
diz um Deus, diz um ser vivo e forte, particularmente
digno de temor, de respeito ou de reconhecimento. Já
temos a noção da vida; nos é mister agora a de poder,
que só é capaz de infundir respeito no homem primit ivo.
Esta noção não parece difícil de obter, porque aquele
que coloca vida e vontade no fundo da natureza, não
pode tardar em reconhecer em certos grandes fenômenos
206
206
a manifestação de uma vontade muito mais poderosa que
a dos homens, e por conseguinte mais terrível e mais
respeitável.
Em resumo, a concepção mais simples e mais
primit iva que o homem pode formar da natureza, é ver
nela, não fenômenos dependentes uns dos outros, mas
vontades mais ou menos independentes e dotadas de um
poder extremo, podendo agir umas sobre as outras e
sobre nós”(15)
.
Eis aí. Para quem sabe ler entre as linhas, tudo
isso que Guyau atribui ao homem primit ivo, importa
reconhecer que ele já tem confusamente as idéias da
alma, espírito, etc. E o que é um poder extremo, de que
são dotadas as vontades animadoras e diretoras da
natureza, senão um poder infinito?
Não teria peso algum a consideração de que a
idéia do infinito na cabeça do selvagem é muito
diferente do que ela é na cabeça do homem culto.
Porquanto, se ainda hoje os espíritos superiores mesmos
não são capazes de isolar completamente essa idéia dos
dados da imaginação, como sê-lo-ia o homem primit ivo.
É bem certo que o pensamento hodierno tem uma outra e
muito mais diferenciada idéia do infinito, porém sempre
uma idéia mais negativa do que positiva, justamente
como a do selvagem.
Para este o infinito é uma coisa, que ele mal pode
imaginar; para o homem culto uma coisa, que ele mal
pode conceber. O selvagem se espanta de tudo que não
sabe nos moldes da sua imaginação; o homem culto já
não tem motivo para tal espanto, pois aquilo que
207
207
ultrapassa as proporções de uma imagem, ele pode
apreender sob o esquema de um conceito;
A diferença é digna de nota. Nós outros, homens
de hoje, podemos perfeitamente representar-nos na
imaginação polígonos de três até cinco ou seis lados; daí
para cima já se torna dificílima a figuração interna; de
modo que, quando chega-se ao decágono ou
dodecágono, não há mais nada de imaginativo; só fica
no espírito o conceito do polígono; a figura desa-
pareceu. Mas não pasmamos por isso, como sucede com
o selvagem, em quem o número excedente de dez já
produz a impressão da miríada, do inumerável do
imensamente grande e horroroso...
Nos pedaços acima citados, que não deixam de
ser bonitos, não se faz somente notar uma tal ou qual
inconseqüência da parte do autor; há também aqui e ali
um ou outro testemunho de verdadeira leviandade
francesa. É assim que ele nos fala de alguma coisa “que
os alemães chamam coração da natureza”. Mas onde
achou isto? Por que motivo especial adjudica aos
alemães o invento dessa expressão?
Se ela fosse realmente uma criação germânica, a
íngua atestá-lo-ia, e os dicionários dariam conta da
palavra – Naturherz – visto que não se trata de uma
idéia deste ou daquele alemão, porém dos alemães; uma
idéia saída da mesma fonte, donde saíram outras, que de
fato lhes pertencem como – Weltanschauung, Moment,
Ding and sich, etc. etc. Mas uma tal palavra não existe.
Só Guyau é quem sabe desse alemanismo. O francês é
impagável!...
208
208
Cabe aqui ainda observar que a teoria de um
período pré-humano da religião, existindo em germe nos
animais superiores, é legítima darwínica. Há vinte e seis
anos, em um belo artigo sobre Darwin’s Auffassung des
geistigen und sittlichen Lebens des Menschen(*), dizia
Júlio Frauenstaedt:
“O sentimento de devoção religiosa, que é um
misto de dependência, veneração, reconhecimento, te-
mor e esperança, só pôde aparecer, quando as facul-
dades intelectuais e morais já se tinham desenvolvido
até uma certa altura. Não obstante, nós vemos uma
espécie de aproximação deste estado espiritual no
íntimo amor de um cão para seu senhor, associado a
uma completa subordinação, alguma coisa de temor, e
talvez ainda outros sentimentos. Um cão olha para o seu
dono de certo modo como para um Deus...
Destarte, segundo Darwin, está provado que até a
fé religiosa não separa radicalmente o homem do
animal, que este, pelo contrário, já apresenta um esboço
de religiosidade. A fé religiosa nos selvagens só bem
pouco se distingue do sentimento de dependência e
devotamento observado nos animais(16)
.
Há no livro de Guyau algumas páginas, que são
apenas variações deste velho tema.
(*) A concepção darwinista do espírito e a vida moral do homem. (T. do E.).
209
209
V
O autor francês tem a pretensão de haver es-
tabelecido um novo ponto de vista no modo de apreciar
e resolver o problema religioso. Mas o seu engano é
manifesto. As palavras de Júlio Froebel, que me ser -
viram de epígrafe, revelam claramente, quanto essa
pretensão é infundada.
Com efeito: a tese racionalista de que a co -
munhão e publicidade dos exercícios religiosos pertence
a um grau atrasado da civilização humana, e que o
homem de cultura superior satisfaz por si só a sua
religiosidade, se ele ainda a tem – Froebel considera em
parte um erro, e em parte um subterfúgio da indiferença,
que procura retirar-se das vistas da comunhão(17)
.
Não há dúvida que o que só se combate, é o
pretendido individualismo religioso, do qual Guyau faz
tanto alarde; e o robusto pensador alemão não podia ir
de encontro a uma doutrina fantástica; só podia
impugnar uma teoria, uma opinião existente.
Mas não se limita a isto. Ele diz positivamente:
“É um grande erro, muito espalhado em nosso tempo, e
que aliás se tem na conta de uma vista mais profunda da
marcha da história, supor que a humanidade se
encaminha para um estado a-religioso (religionlos).
Este modo de ver seria errôneo, ainda quando a religião
não fosse mais do que a metafísica da grande massa dos
homens, incapaz de reflexão filosófica.
Porquanto nem é destino do gênero humano
compor-se todo de filósofos, nem a necessidade
210
210
metafísica pode extinguir-se naqueles, que filósofos não
são, e tampouco alimentar-se com os resultados do
materialismo científico, que apenas toca na superfície
das coisas, admitindo mesmo que esses resultados
pudessem ser acessíveis à inteligência comum(18)
”.
Não parece uma prévia refutação do livro de
Guyau? É inegável. Acresce porém que, combatendo a
idéia de uma religião do futuro, Froebel d irigiu-se
principalmente contra Hartmann; e alguns pontos fracos
da doutrina deste filósofo, que o francês critica, já
tinham sido, dez anos antes (1878), apontados pelo
autor alemão.
Como se vê, a admissão de um estado ulterior da
humanidade, que se distinga de todos os precedentes
pela completa eliminação do sentimento religioso, é
uma tese desacreditada; tanto mais, quanto é certo que
ela não se apóia num regular processo lógico de
observação e indução.
Efetivamente: os seus sectários não dispõem, nem
podem dispor de dados suficientes para traçar a lei do
acabamento de todas as religiões. É certo que a vid da
alma vai sendo cada vez ais sobrepujada pela vida da
inteligência e as necessidades religiosas vão em
constante decrescimento. Mas é preciso ponderar, como
diz Hartmann, que aí, em parte, confunde-se um
passageiro fenômeno do tempo com uma duradoura
tendência evolucional, e, em parte, interpreta-se
inexatamente esta mesma tendência, até um certo ponto
concessível, na sua reação sobre a religiosidade e o
sentimento em geral(19)
.
211
211
Os apóstolos da futura anomia religiosa não têm
o direito de inferir o seu advento do fato ocasional e
transitório da descrença que lavra em todos os domínios
do espírito na época vigente. É um fenômeno que se tem
muitas vezes repetido no decurso da história. A única
indução cabível seria atribuir ao senso religioso um
desfalecimento periódico; nunca, porém, condená-lo a
uma total extinção.
O que Guyau chama dissolução das religiões nas
sociedades atuais, que corresponde à Selbstzersetzung
des Christenthums(*) de Hartmann, com a notável
diferença de que o filósofo alemão limita-se ao cris-
tianismo, e o francês refere-se indistintamente a todas as
religiões em todas as sociedades hodiernas, posto que
não se tenha ocupado, como o título do livro fazia
esperar, do atual movimento religioso dos povos do
Oriente, o que Guyau assim qualifica é uma série de
fatos, que constituem a sintomatologia de uma velha
doença moral, cujo aparecimento sempre se dá com
intermitências seculares.
Eu não sei que grande distância medeia entre o
ponto de vista do homem do povo, que observando um
terremoto, uma inundação, ou a passagem de um
cometa, conclui logo que o mundo vai acabar-se, e o
ponto de vista de certos filósofos, que diante da
incredulidade e da indiferença religiosa dos nossos dias,
induzem como lei o fim da religião. O erro no primeiro
não é maior do que no segundo caso.
(*) - a autodissolução do cirstianismo. (T. do E.).
212
212
Além disto, releva advertir que, segundo atesta a
história, todas as épocas malsinadas de impiedade se
caracterizam também por excessos de superstição. São
duas ordens paralelas de fenômenos diferentes, dos
quais se pode tirar, com igual direito, conclusões intei-
ramente opostas.
“É uma infelicidade dos homens que a razão
mesma afinal lhes causa enjôo e a ciência torna -se
fastidiosa. As imagens e idéias fantásticas voltam de
novo e agradam, porque têm o atrativo do maravilhoso.
Acontece no domínio da filosofia o que aconteceu no
domínio da poesia: o público fatigou-se da leitura de
romances inteligíveis e desde algum tempo voltou aos
contos de fadas”.
Esta observação de Leibnitz – diz Karl Frenzel –
pode ser feita em qualquer época, em que o curto das
ciências naturais, da filosofia materialista e da arte
realista, provoca a contradição nas almas melancólicas,
nas cabeças sonhadoras, nos corações descontentes.
O século de Voltaire, de Diderot e La Mettrie, foi
também o de Casanova e Cagliostro, de Swedenborg e
Saint-Germain. A quadra na qual vivemos não é diversa
de todas as mais em que a ilustração intelectual e a
crença nos milagres existem sempre ao lado uma da
outra, e a força do entendimento desperta por sua
parcialidade a força da fantasia.
A sociedade romana dos últimos anos da
república, do tempo do império, e mesmo dos primeiros
séculos da era cristã, ainda fornece uma prova do fato
que apreciamos.
213
213
Nas assembléias populares e nas discussões do
forum, Cícero ousava negar o inferno, o Cérbero e os
Manes. Ovídio cantava e ridicularizava as metamorfoses
dos deuses. O poema de Lucrécio, que bania os numes
deste mundo visível e se esforçava por livrar os homens
de qualquer temor e respeito diante do hipersensível e
da morte, formava o estudo e o tácito entusiasmo dos
espíritos cultos de então. O cauteloso Virgílio não se
atreve a proferir o nome do temerário poeta, mas julga -o
feliz, por ter conhecido as causas das coisas: felix qui
potuit rerum cognoscere causas. Exatamente como o
Système de la nature andava de mão em mão na
sociedade parisiense do século passado.
Porém esses romanos que em nada criam –
continua Frenzel – que julgavam pueril, deixar-se
amedrontar do inferno e do seu Cérbero tripícite, eram
os mesmos que interrogavam ao astrólogos ascerca do
futuro; regulavam o horóscopo dos recém-nascidos e
queixavam-se de filtros e feitiçarias. A qualquer amante
da literatura clássica são bem conhecidos os versos de
Horácio contra a feiticeira Canídia. Como irrompe de
todas as maldições e esconjuros do poeta o íntimo e
indeterminado terror do feitiço!
Tácito está cheio de milagres, profecias e
inauditos fenômenos da natureza. Roma se achava
obstruída de padres de Ísis e Serápis, de taumaturgos de
todo gênero. A história de Apolônio de Tiana e a
veneração quase divina, que lhe tributavam igualmente
grandes e pequenos, deixam atrás tudo o que se conta de
Swedenborg e de Mesmer(20)
.
214
214
É a mesma idéia de Th. Mommsen, quando diz:
“Superstição e descrença, que são refrações diversas de
um só fenômeno histórico, andavam também associadas
no mundo romano de então, e não faltavam indivíduos,
que em si reuniam ambas, que com Epicuro negavam os
deuses, e todavia oravam e sacrificavam diante de
qualquer capela...
Quando o Senado (no ano 50 antes de Cristo)
ordenou a destruição dos templos de Isis erigidos dentro
dos muros que cercavam a cidade, nenhum trabalhador
ousou começar um tal serviço e o cônsul Lúcio Paulo
deveu mesmo dar o primeiro golpe do acha. Podia-se
apostar que, quanto mais devassa era a prostituta
romana, com tanto mais piedade adorava a sua Ísis(21)
.
Entretanto qual foi o resultado? Nem a descrença
nem a superstição mataram os velhos deuses. Um Guyau
daquele tempo teria dito: a religião está morta; é a
filosofia, são os sistemas metafísicos, que devem ocupar
o seu lugar, conforme o gosto e disposição dos
indivíduos. Porém assim não sucedeu. As divindades
continuaram a banquetear-se no Olimpo; mais eis que de
repente, como diz Heirich Heine, apareceu cansado e
anelante um judeu pálido e ensangüentado, com uma
coroa de espinhos na cabeça e uma cruz de pau sobre os
ombros, e atirou a cruz em cima da mesa do banquete:
as taças de ouro tremeram, os deuses emudeceram e
descoraram, e cada vez se tornaram mais pálidos, até
que enfim desapareceram na névoa...
É difícil afirmar que a revolução operada por
Jesus seja um intermezzo, como tantos outros, na vida
215
215
religiosa da humanidade. Em todo caso, é altamente
provável que, desaparecendo o cristianismo, não será a
filosofia e a ciência, que virá substituí-lo.
Há para as idéias uma espécie de metempsicose,
em virtude da qual elas tomam, no decurso do seu viver
histórico, novas formas e novos nomes, ao passo que
deixam de lado, como destituídas de espírito, as velhas
formas e instituições anacrônicas. O cristianismo mesmo
deve a sua existência a essa metempsicose.
Não é muito, pois, que dele venha também a
brotar um novo ramo, mais fresco e verdejante, capaz de
dar as flores e os frutos, que ele já não está em
condições de fornecer.
Não é fácil apontar o motivo, pelo qual o
cristianismo não possa comportar um depuramento, uma
clarificação a um avanço, por cujo efeito se adapte a
tornar-se a religião de um novo período cultural. A
transição para isso necessária não é um rompimento da
continuidade histórica, mas um antecedente da evolução
logicamente fundada.
Os indícios da dissolução deste sistema religioso
tão intuitivamente expostos por Hartmann provam a sua
queda, como os fenômenos da metamorfose de um inseto
podem provar a morte do animal.
VI
Passo a ocupar-me dos últimos pontos da minha
crítica; e parece que vou acabar por onde devia ter
começado.
216
216
O grandioso título de Gênese das religiões nas
sociedades primitivas, com que se decora a primeira
parte do livro de Guyau, é por si só suficiente para fazer
compreender que aí não se trata de um estudo sério, não
se trata de um nobre esforço de indagação consciente,
mas de um produto ordinário da bombástica francesa;
O homem é de um desplante admirável. Em-
preende tratar da gênese das religiões, e não vê que tem
pela frente uma questão insolúvel. Com efeito: quem
fala de uma tal gênese, só pode compreendê-la, ou no
sentido psicológico de uma pesquisa das causas e do
modo por eu surge o sentimento religioso, ou no sentido
histórico de uma determinação da época, bem como do
grau de cultura, em que a religião aparece.
Mas ambas as posições do problema são
igualmente inacessíveis. Se é um trabalho improfícuo
pretender assistir ao primeiro ímpeto, ao primeiro vôo,
que atualmente a alma humana ensaia em demanda do
céu, não o é menos – e talvez até que seja mais – fazer-
se contemporâneo dos povos primitivos e observar a
origem das suas crenças e das suas superstições.
Os que se têm metido em semelhante empresa, só
têm chegado no melhor dos casos a longínquas pro -
babilidades e vaguíssimas conjeturas. Nada existe até
hoje definitivamente assentado, e há motivos para crer
que não existirá jamais.
A gênese das religiões, conforme Guyau pretende
explicá-la, tem o defeito capital de dar como líquido e
incontestável aquilo que constitui o fundo mesmo da
questão. Porquanto é lícito perguntar: de que religiões aí
217
217
se cogita? De todas elas, sem dúvida. Mas todas elas
terão a mesma gênese? Quem foi que já mostrou essa
identidade? E dado mesmo que ela exista, será possível
mostrá-la?
É preciso que nos convençamos uma vez por
todas: o conceito de uma gênese das religiões é um
daqueles, de que fala Kant, que formando uma síntese,
devem ter-se na conta de palavras sem sentido, se tal
síntese não pertence à experiência. Ora, um
conhecimento empírico das religiões pode somente ser
obtido dentro dos limites da história; porém a gênese
delas fica sempre além desses limites. Qualquer
conceito, pois, que se forme da genética religiosa, não
passa de um flatus vocis, a que nada corresponde de real
e positivo.
Suponhamos que Guyau, tratando de resolver a
questão proposta, em vez de se entregar a vagas
generalidades, tomasse por objeto das suas indagações
uma religião histórica, o judaísmo por exemplo, e
procurasse mostrar a sua origem. Tê-lo-ia conseguido?
Indubitavelmente, não.
Para limitar-me a alguns pontos: antes de
professar o monoteísmo, os hebreus tinham sido
politeístas? Como se originou, quer uma, quer outra
destas formas religiosas? O jeovismo, que marca um
grau superior no desenvolvimento da religião hebréia, já
estava contido na mente dos patriarcas, ou foi um
resultado da influência egípcia?
São questões que ainda esperam uma solução
decisiva. Entretanto elas se agitam num terreno muito
218
218
menos escabroso do que a questão da gênese das
religiões em geral.
Pode-se dizer da religião o que Guilherme de
Humboldt disse da língua: “Como um verdadeiro e
inexplicável milagre, ele rebenta da boca de uma nação,
e, como coisa não menos pasmosa, do balbuciar de uma
criança”. É igualmente digno de menção este conselho
de Ewald: “Quanto mais difíceis de conhecer são os
fatos espirituais de remotíssimos tempos, tanto mais
deveríamos acautelar-nos de juízos precípites e
infundados, e com tanto maior diligência reunir as
verdadeiras faíscas de plausível conhecimento, que
ainda hoje podemos encontrar”(22)
.
Infelizmente, porém,para o esclarecimento da
questão que se ventila, nem essas mesmas faíscas
podiam ser encontradas. A despeito de um tal ou qual
aparato de erudição moderna, o autor francês não tratou
do seu problema, nem como naturalista, nem como
historiador, nem mesmo como crítico, mas simplesmente
como filósofo. A sua obra é em última análise uma
filosofia religiosa, como tantas outras que por aí
existem, que podem agradar pelo palavreado, mas não
têm substância nutritiva.Para dar um ajusta medida da
estéril abundância de Guyau, eu cito entre muitas a
seguinte passagem: “A grande oposição que existe entre
a religião e a filosofia, não obstante semelhança ex-
teriores, é que uma procura e a outra declara ter achado;
uma presta atenção, ao passo que a outra já ouviu; uma
ensaia provas, a outra formula afirmações e conde-
nações; uma crê de seu dever levantar objeções e
219
219
respondê-las, a outra não fazer para o seu espírito sobre
objeções, fechando os olhos às dificuldades”.
Não contente com esta variedade de proposições,
que repetem pouco mais ou menos o mesmo
pensamento, ainda ele insiste e diz: “O filósofo, o
metafísico pretende agir sobre os espíritos pela
convicção, o padre pela inculcação; um ensina, o outro
revela; um procura dirigir o raciocínio, o outro suprimi-
lo, ou pelo menos desviá-lo dos dogmas primitivos e
fundamentais”(23)
.
Que leitor não se sente tentado a atalhar com o
Nero de Pietro Cossa: Basta, buffone, e vieni all’ar-
gomento?... Para que exprimir por muitas formas uma só
idéia; para que fotografar em posições diversas uma
mesma teoria? Um legítimo pensador teria dito: “A
grande oposição que existe entre a religião e a filosofia,
é que uma procura e a outra declara ter achado”. Ou isto
somente: “O filósofo pretende agir sobre os espíritos
pela convicção, o padre pela inculcação”. Tanto bastava
para produzir, e até mais profundamente, a impressão da
verdade.
A este pendor para a tautologia associa-se um
outro defeito, igualmente incompatível com a seriedade
da ciência. É o abuso de uma espécie de intuição
profética, com que o autor analisa em todas as suas
particularidades, sob o ponto de vista religioso, os
tempos que hão de vir.
É inegável que o próprio título e natureza da obra
determinavam um certo entretenimento em domínio
desconhecidos; a indução devia somar os dados da
220
220
observação. Mas este mesmo processo tem seus limites;
e Guyau não os conhece. Em muitas páginas do livro,
não se lê um sábio que induz, mas um vidente que
domina com o seu olhar o passado e o futuro da
humanidade.
Alguns exemplos para confirmá-lo. Assim diz o
autor: “Pelo progresso do pensamento humano, chegar -
se-á a conhecer melhor as direções, que é preciso tomar
para aproximar-se da verdade...
O ângulo dos olhares humanos, dirigido para as
diversas figuras do ideal, irá diminuindo cada vez mais;
porém à medida que as inteligências forem assim menos
divergentes, tornar-se-ão mais penetrantes. Então produ-
zir-se-á esta conseqüência inesperada, que as hipóteses
sobre o mundo e seus destinos, por serem mais vizinhas
uma das outras, não ficarão menos numerosas nem
menos variadas.
O pensamento humano poderá mesmo tornar-se
mais pessoal, mais original e nuanceado, tornando-se
menos contraditório de indivíduo a indivíduo. À
proporção que melhor se lobrigar a verdade, os pontos
de vista, em lugar de permanecerem uniformes,
adquirirão mais diversidade nos detalhes e mais beleza
no conjunto”.
Ainda mais: “Segundo nós, a religião deve ser
não somente humana, mas também cósmica. E é com
efeito o que terá lugar pela força das coisas, ou antes
pela força da reflexão humana. O teísmo será obrigado,
para subsistir, a encerrar-se na afirmação mais vaga
possível de um princípio análogo ao espírito com
221
221
misteriosa origem do mundo e do seu desenvolvimento.
Este princípio terá por caráter essencial não ser
verdadeiramente separado do mundo, nem oposto ao seu
determinismo”...
E assim por diante, sempre com este desembaraço
e segurança de profeta, com os verbos no futuro, como:
chegar-se-á, irá, tornar-se-ão, produzir-se-á, ficarão,
poderá, adquirirão, terá, será etc., etc. Mas onde e
como descobriu que tudo isto tem de acontecer? Quem
foi que lhe revelou todos estes arcanos? Ninguém o
sabe, e o autor ainda menos.
Proposições de tal ordem são tanto mais
censuráveis, quanto é exato que Guyau mesmo declara
que “sendo o dever da ciência não ultrapassar jamais,
quer nas suas afirmações, quer nas suas negaçõ es, o que
ela pode estabelecer ou demonstrar, importa não
estender sem prova a todo o futuro o que só o passado
verificou”. E não obstante, ele estende ao porvir, sem
prova alguma, não somente o que o passado só ve-
rificou, mas também aquilo de que esse mesmo passado
não teve nenhuma idéia, como no caso das profecias
citadas.
Na terceira e última parte do volume, que é o
ponto culminante do edifício, o autor se espraia em
considerações de todo gênero, a fim de deixar fora de
dúvida a tese da sua oposta, isto é, que a religião vai
morrer, que o espírito humano se dirige para um estado
de completa irreligiosidade. Não demorar-me-ei em
refutar ainda uma vez, o que já foi precedentemente
refutado. Mas não posso prescindir de sujeitar a uma
222
222
ova apreciação o baldado esforço, o délit manqué
filosófico do guapo escritor francês.
Antes de tudo, convém não esquecer de Guyau é
um semi-positivista, ou um positivista apóstata. De
acordo com o comtismo admite a transitoriedade do
estado teológico ou religioso do espírito humano, mas
em oposição à doutrina do mestre, estabelece a
perpetuidade do estado metafísico. Acho nisto uma certa
incoerência. Os positivistas inteiros são mais lógicos,
sustentando a identidade dos dois estados, dos quais o
segundo é para eles apenas uma transformação do
primeiro(24)
.Efetivamente: quem não crê que a religião
seja eterna, por que razão deve crer na eternidade da
metafísica? Se esta é inerente ao espírito humano, por
que razão aquela não sê-lo-á? O objeto e fundamento de
uma é o mesmo que o da outra, se não convém antes
dizer com Schopenhauer que a necessidade metafísica é
uma só, manifestada sob duas formas ou espécies
diversas – a religião e a filosofia. O que importa, é não
confundir essa necessidade com os monopolistas dos
meios de satisfazê-la – de um lado, os padres, e, de
outro lado, os filósofos professores, os que fazem da
filosofia um modo comum de manter a vida, como
pensava o mesmo Schopenhauer.
“A necessidade religiosa – são palavras de Carl
Du Prel – é somente uma especialidade da metafísica,
que serve de fundamento à filosofia. Se o valor de um
homem deve ser medido segundo o grau de uma tal
necessidade, é claro que ela não lhe deve ser atribuída,
somente quando ele resolve de um modo determinado os
223
223
problemas comuns, religiosos e filosóficos, como por-
ventura por meio dos dogmas da igreja católica, porém
também quando esses problemas são por ele sentidos
como tais, quando ele tem consciência da sua im-
portância, quando lhe é ingênuo o desejo de resolvê -los.
Quer encontre esta ou aquela solução, quer não
encontre mesmo nenhuma, ele possui em todo caso esta
disposição de espírito aproximada da religiosidade, que
os crentes erradamente reclamam para si sós. O
incrédulo nega unicamente uma certa maneira de
responder às questões religiosas, mas não diz por isso
que tais questões sejam supérfluas. Ele não nega os
problemas em si, mas somente não pode tranqüilizar -se
com a solução que lhe foi incutida na meninice...”(25)
.
Delineando o quadro da futura vida religiosa,
Guyau declara que os profetas, como os padres, serão
então substituídos pelas grandes individualidades de
todas as ordens do pensamento humano, da poesia, da
metafísica e da ciência. Mas esta idéia é a mesma de
Strauss, no seu notável escrito: Ueber das Vergaenliche
und Bleibende im Christenthum, de 1837. É a teoria do
culto do gênio, como sub-rogado do culto religioso, que
nada encerra portanto de novo e original.
O próprio fundo da obra de Guyau, isto é, a idéia
de uma transformação religiosa do espírito humano,
antes mesmo dos autores que trataram do assunto, de 69
para cá, já tinha sido objeto das indagações de Daumer.
Este ilustre visionário, em um dos seus trabalhos, Die
Religion des neuen Zeitalers (1847, escreveu o seguinte:
“Diante de nós, em um futuro provavelmente pró ximo,
224
224
está uma nova religião, que há de dar ao homem os mais
puros contentamentos, há de abranger toda a hu -
manidade na unidade pacífica de um império universal,
e transformar a sua desgraça, as suas queixas, em júbilo
e felicidade...”
Uma religião só de prazer, uma religião sem
momento negativo, é uma contradictio in adjecto, é uma
religião irreligiosa. A futura religião de Daumer é a
mesma irreligião de Guyau, o qual, por vir mais tarde, é
ainda mais ridículo do que o autor alemão.
Tratando das hipóteses metafísicas, que segundo
a sua opinião têm de substituir os dogmas religiosos, o
nosso filósofo acaçapa-se até a parvoíce. Afigura-se-lhe
a coisa mais simples deste mundo que a humanidade
inteira passe a dirigir a sua vida moral, de conformidade
com os princípio desta ou daquela filosofia; e neste
ponto de vista discorre largamente, sem notar que todo o
seu dispêndio de palavras repousa no chato paralogismo
de dar como assentado o que aliás constitui o âmago da
questão: saber se o povo será um dia capaz de reflexão e
compreensão filosófica. Não sê-lo-á jamais.
Assim como a última expressão do indivi-
dualismo político é sonhar uma época, em que cada
indivíduo seja o seu próprio legislador e juiz, assim
também a última expressão do individualismo religioso
é conceber um tempo, em que cada indivíduo seja o seu
próprio padre, como pretende Guyau; e de ser o seu
próprio padre a ser o seu próprio Deus, vai apenas um
passo. Mas o individualismo político é tido como uma
loucura; o que é, pois, o religioso?
225
225
Dado mesmo de barato que o gênero humano,
indistintamente, se eleve à altura que lhe vaticina o
escritor francês, ainda assim resta um pouco duvidoso,
que é preciso liquidar.
Apoiando-se nos trabalhos de Roskoff, Réville e
Girard de Riálle, Guyau aceita como verdade que não
existem hoje, sobre a superfície da terra, povos
absolutamente destituídos de senso religioso, posto que
se lhe pudesse opor a opinião contrária de Lubbock,
Burton, Hearne, Bath e alguns outros. Sem fazer questão
sobre qual dos dois modos de ver seja o mais auto-
rizado, admitamos também como certo esse inatismo da
religião, e vejamos o que daí resulta.
Se o homem é naturalmente religioso, se a sua
religiosidade é um produto da natureza, de duas uma: ou
ela importa uma qualidade má, alguma coisa de
semelhante à ferocidade primit iva, que o processo da
cultura tem por fim eliminar e extinguir – ou importa
uma boa qualidade, que o mesmo processo cultural
aperfeiçoa e melhora.
Nesta segunda hipótese, não é compreensível que
a religião se dissolva, à força de aperfeiçoamento; pode
bem modificar-se, depurar-se, tomar mil formas di-
versas, mas nunca desaparecer. Na selvática, essa garra
ou essa cauda original, ainda mesmo desaparecendo por
tempos, não esteja sujeita a reversões atavísticas?
Ninguém, por certo; e tanto seria bastante,
quando ouras razões não houvesse, para contrariar a
teoria do nosso autor. Um dos ideais da cultura humana
é a libertação da lei do atavismo, quase no mesmo
226
226
sentido em que o poeta falou de uma libertação da lei da
morte; porém esse ideal nunca será completamente
realizado. O homem cultíssimo hodierno, o mais desa -
busado e isento de preconceitos religiosos, ainda não
está livre de ser de repente agredido por um sentimento
invencível, que o obrigue a joelhar -se e adorar o ídolo
de pau ou de pedra dos espíritos mais incultos. Há bons
motivos de crer que no futuro o fenômeno será o
mesmo.
NOTAS DO AUTOR (1) L’Irréligion de l’Avenir. Étudo sociologique. 1887.
(2) Convém aqui lembrar que não é justo atribuir, como se costuma, ao governo de Napoleão III todas as aberrações literárias da França dos últimos tempos. La Dame aux Camélias e Le Roman d’une Femme, de Dumas Filho, as Scènes de la Vie de Bohéme, de Murger, e La Crise, de O. Feuillet – apareceram antes da eleição presidencial de Luís Napoleão; e nessas obras já se achavam representadas todas as direções da literatura devassa, que atualmente ali vigora. (3) Assim falando, posso também passar por um eslavófilo. Não me envergonho do epíteto; pelo contrário, aceito-o de bom-grado. Há somente a ponderar que o eu entusiasmo pela Rússia refere-se exclusivamente à Rússia literária; quanto à política, esta me é antipática, sobretudo no que diz respeito ao seu ódio estúpido contra a Alemanha. Se me engano na minha apreciação da cultura espiritual dos russos, consola-me a lembrança de estar ao lado de Juliano Schmidt, George Brandes, De Gubernatis e inúmeros outros corifeus da crítica européia, para quem a literatura russa é um tesouro digno do maior apreço.
227
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(4) Com efeito: a chamada sociologia é uma das manias da nossa época, que provavelmente a história literária ainda designará,para bem assinalá -la e distingui-la, por época sociológica. Não há presentemente fenômeno algum, nem ordem de fenômenos da vida política e social, que não se faça logo entrar na categoria da moda. A sociologia abrange tudo; hoje tudo é sociológico, inclusive a toleima dos que falam e crêem em semelhante coisa.
(5) Noire. Der Monistische Gedanke, pág. 237.
(6) Devo confessar que acho mais atestador de um bom coração a compaixão para com certos irracionais, do que mesmo para com certos indivíduos humanos. A meu ver, as sociedades de proteção aos animais, como elas existem fundadas em alguns países da Europa, encerram muito mais senso ético e religioso, do que, por exemplo, as sociedades abolicionistas entre nós. Não é motivo de espanto; reparem bem. O escravo, até um certo ponto, sofre porque quer, desde que pode reagir, ou evitar o martírio pela fuga. Mas os pobres animais não estão no mesmo caso.
(7) Des doctrines religieuses des Juifs pendant les deux siècles antérieurs à l’ère chrétienne, pág. 13.
(8) O autor é somente original em criar expressões pomposas e retumbantes, mas se difícil compreensão. É assim que ele nos fala de uma mitologia sociológica, que podia muito bem ser trocada, e sem mudar de sentido, por uma sociologia mitológica. Quer de um, quer de outro modo, a parvoíce era a mesma.
(9) L’irréligion, etc., pág. XI.
(10) Die Welt als Wille und Vorstellung , II, pág. 175.
(11) Neutestamentliche Zeitgeschichte, II, pág. 3.
(12) O “Americano”, nº 6 e seguintes. Recife, 1870.
(13) O selvagem que transubstancia uma pedra em divindade, está muitíssimo distante do católico hodierno, que transubstancia pão e vinho no corpo e
228
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sangue de um Deus? É difícil afirmá-lo. Aqui, bem como ali, é uma operação de física religiosa.
(14) L’irréligion, etc., pág. 51.
(15) L’irréligion, págs. 43, 44 e 46.
(16) Unsere Zeit. Achter Jahrgang. Erste Haelfte, 1872, pág. 543.
(17) Die Gesichtspunkte und Aufgaben der Politik, pág. 276.
(18) Die Gesichtspunkte etc., págs. 245 e 246.
(19) Die Selbstzersetzung des Christenthums , etc., pág. 95.
(20) Renaissance und Rococo, págs. 333 e 334.
(21) Roemische Geschichte, III, cap. 12.
(22) Geschichte des Volkes Israel, pág. 455 (nota).
(23) L’irréligion, etc., págs. 226 e 227.
(24) A infidelidade de Guyau para com o positivismo é tanto mais estranhável, quanto é certo que ele aceitou do sistema a sua maior extravagância, isto é, a visão sociológica. Bem como o Deus de São Tomás, que vê todas as coisas numa só idéia, idêntica ao seu próprio ser, os positivistas vêem tudo na sociologia e através da sociologia. O nosso autor não faz exceção; pelo contrário, pode-se dizer que neste ponto ele foi adiante dos genuínos comtistas; como se explica, pois, que não os tivesse acompanhado no abandono da metafísica, que é um dos pressupostos da sociologia? Não o compreendo.
(25) Citado por M. Conrad. Humanitas, pág. 48.
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VII
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
(1887/1888)O
I
Idéias propedêuticas. Posição do homem
em a natureza.
A ciência do direito, bem como outro qualquer
ramo do saber humano, não existe isolada. Na imensa
cadeia de conhecimentos, logicamente organizados, que
constituem as diversas ciências, ela figura também como
um elo distinto, ocupa um lugar próprio, e tem a sua
função específica.
Mas seja qual for esta função, e quaisquer que
sejam os limites assinalados à ciência do direito, ou se
aumente ou se diminua seu campo de observação e de
estudo, o que fica sempre fora de dúvida é que ela trata
de uma ordem de fatos humanos, tem por objeto um dos
traços característicos da humanidade, faz parte por
conseguinte da ciência do homem.
E por mais independentes que as verdades
jurídicas pareçam dos dados de tal ciência, que se lhe
mantenha o clássico nome de filosofia quer se lhe dê o
de antropologia, basta um pouco de reflexão para
convencermo-nos de que o direito, sob a forma
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científica, isto é, como sistema de conhecimentos. deve
ter uma verdade primeira, uma primeira proposição, a
que se prendam todas as proposições e verdades
ulteriores.
Ora, dado de barato que o direito não tenha como
princípio diretor senão o que se acha contido na sua
própria definição, é claro que esta só pode ser bebida
em fonte estranha, em um domínio científico mais largo
e mais compreensivo.
Já se vê que o estudo do direito está subordinado
ao de outra ciência que logicamente o precede. Esta
subordinação, este laço de dependência é que dá lugar
ao que no meu programa designei por idéias pro-
pedêuticas, e que também pode se chamar propedêutica
jurídica.
São idéias introdutórias, iniciais, preliminares.
Não há ciência que não as tenha. O que importa é que,
para expô-las, não se comece de muito longe, não se
tome tamanha distância, que afinal possa perder-se de
vista o objeto a estudar.
Se o direito, como disse, faz parte da ciência do
homem, não lhe é decerto indiferente saber de antemão
o que seja esse mesmo homem e qual a sua posição na
natureza.
Mas para isso não há mister de recapitular idéias
que pertencem exclusivamente ao círculo das ciências
naturais. E nós outros que reclamamos para o direito,
como ramo científico especial, um caráter autonômico,
seríamos contraditórios, se o quiséssemos reduzir às
mesquinhas proporções de uma seção da zoologia e da
231
231
botânica, fazendo depender o seu conhecimento do
conhecimento da célula, da morfologia e fisiologia
celular!...
Não é preciso remontar à época tão longínqua,
indo além do período pré-histórico, e, entrando até no
período pré-humano da evolução do mundo orgânico.
Uma introdução regular ao estudo do direito não quer
isto, não carece disto. O seu entroncamento na
antropologia não impõe a necessidade de cavar até as
últimas raízes. O contrário é cair numa espécie de gnose
jurídica, ou numa oca pantosofia, que aliás não está
contida no pensamento do programa.
O que se quer, e o que importa principalmente, é
fazer o direito entrar na corrente da ciência moderna,
resumindo, debaixo desta rubrica, os achados mais
plausíveis da antropologia darwínica. E isto não é
somente uma exigência lógica, é ainda uma necessidade
real para o cultivo do direito; porquanto nada há mais
pernicioso às ciências do que mantê-las inteiramente
isoladas.
Eis porque se torna preciso animar o direito, que
já tem ares de ciência morta, como a teologia ou a
metafísica de antigo estilo, pelo contato com a ciência
viva, com a ciência do tempo, com a última intuição de
espíritos superiores. Mas é possível que se objete: a que
propósito elucidar aqui a posição do homem da
natureza, se o direito nada tem que ver com o homem
natural, mas somente com o homem social, tal como ele
se mostra aos olhos do historiador e do filósofo?
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232
A resposta surge de pronto. A questão do
programa não é ociosa. Conforme o lugar preferido ao
homem no meio dos outros seres, conforme o papel que
se lhe distribui entre as espécies animais, o direito
assume também uma feição diferente.
Destarte, se ainda estamos em tempo de prestar
ouvidos à velha filosofia dualista, que nunca passou de
um comentário mal feito do símbolo dos apóstolos(1)
; se
ainda estamos em tempo de beber todos os nossos
conhecimentos na covinha de pedra, onde bebem as aves
do céu e as almas dos santos, isto é, no mito hebreu de
uma criação teológica do universo; em uma palavra, se o
homem continua a ser um dioscuro, o filho mais moço
do criador e o rei da criação, então não há dúvida que o
direito deve ser ressentir dessa origem; a ciência do
direito deve encolher-se até tomar as dimensões de um
capítulo de teologia.
Não há meio termo. A controvérsia só tem hoje
um sentido entre estes dois extremos: ou a criação
natural, conforme a ciência, ou a divina, conforme o
Gênesis; e os resultados não são os mesmos para quem
toma um ou outro caminho.
Mas o homem é realmente um ser à parte, uma
obra da mão de Deus? Ainda há lugar para esta
crença?... Um espírito sério só pode responder que não.
Enquanto, pois, o homem, este fidalgo de ontem, não
sustentar com melhores dados as suas pretensões de
celígena pur sang, há boas razões de tê-lo somente em
conta de um fenômeno natural, como outro qualquer.
233
233
E o homem do direito não é diverso do da
zoologia. O antropocentrismo é tão errôneo em um como
em outro domínio. Admira mesmo que esta verdade
ainda hoje precise abrir caminho a golpes de martelo.
Desde que dissipou-se a ilusão geocêntrica, desde que a
terra, soberana e grande aos olhos de Ptolomeu, foi
empalmada e comprimida pela mão de Copérnico, até
fazer-se do tamanho de um grão de areia perdido no
redemoinho dos sistemas siderais, a ilusão antropo -
cêntrica tornou-se indesculpável. Porquanto, com que
fundamento pode o homem considerar-se rei da
natureza, se o planeta que ele habita é tão insignificante
na vastidão do universo? Se a terra poderia desaparecer
do concerto imenso dos corpos celestes, despercebida
para muitos e sem a mínima quebra da harmonia de
todos, por que também não poderia o homem extinguir -
se com o seu planeta, sem lançar a mínima perturbação
na ordem dos seres criados? Onde está, pois, a sua
supremacia?
A vaidade ou o orgulho inspirou ao homem a
singular idéia de ser o mais perfeito dos entes da terra.
O certo, porém, é que ele é um animal distinto, nem
mais perfeito, nem mais imperfeito do que o menor
infusório. Qual é, portanto, a medida segundo a qual ele
gradua a escala da perfeição? Será porventura a
chamada luz divina, faísca celeste, e todas as mais
frases do uso?
Er nennt’s Vernunft und braucht’s allein Um thierischer als jedes Thier zu sein.
234
234
(Ele a chama razão, e contudo só a emprega para
ser mais animal do que outro qualquer animal.)
Importa enfim atirar para o meio dos ferros-
velhos estas doutrinas que cheiram a incenso...
A crença na origem divina do homem é um dos
muitos resíduos, que existem dos primórdios da cultura
humana; é um survival, como diria Tylor, semelhante ao
do dominus tecum, ainda hoje inconscientemente
repetido, no ponto de vista antiquíssimo dos que
acreditavam que o espirro importava sempre a entrada
de um bom ou a saída de um mau espírito no corpo do
indivíduo. Sobre qual seja, porém, a sua verdadeira
procedência, as pesquisas modernas não são unânimes;
mas isto não embaraça a marcha das ciências, que têm
base antropológica, às quais só interessa deixar
estabelecido que o homem não é “um anjo decaído, que
se lembra do céu”.
Quando à questão ardente da origem piteciana,
não é aqui o lugar de apreciá-la. Em todo o caso,
pensamos com Schleiden que a indignação moral com
que muitas pessoas repelem qualquer parentesco da
nossa espécie com a dos macacos, é altamente cômica.
II
Lei geral do movimento e desenvolvimento
de todos os seres.
O largo e fecundo estudo das ciências naturais
tem exercido sobre os nossos tempos uma influência
235
235
poderosa. Steffens disse: “as idéias religiosas do homem
descansam em última análise sobre as suas intuições a
respeito da natureza”. Ele podia ter dito: não só as
religiosas, como também as filosóficas, políticas,
sociais, em uma palavra, todas as que tocam, de longe
ou de perto, a direção da vida.
Com efeito, que favores não são devidos à
geologia, à astronomia, à química e à ótica, por suas
imponentes e significativas conquistas!... Elas nos
ensinaram a encarar de sangue frio as mais vertiginosas
alturas do pensamento, e nos habituaram às conjeturas
mais ousadas. Com razão diz Émerson: “o religionário
acanhado não pode impunemente estudar astronomia,
pois que o credo da sua igreja se desfaz como uma folha
seca ante a porta do observatório; um ar novo e sadio
refresca o espírito e eleva a sua capacidade inventiva”.
Perguntando agora a que se devem atribuir
tamanhos progressos das ciências naturais, a resposta
não é duvidosa: ao rigor do seu método, à simplificação
das suas leis.
É possível, é mais plausível, mais científico
mesmo, que o universo não tenha sido, como disse
Newton, feito de um jacto; mas o certo é que tudo
parece dominado por uma só força. A massa é como o
átomo: a mesma química, a mesma gravitação, as
mesmas condições. Os asteróides são fragmentos de uma
velha estrela, e um meteorito o fragmento de um
asteróide. Um espírito sagaz, por uma única observação,
descobre a lei com seus limites e suas harmonias, como
o pastor, por meio de um só rasto, conhece o seu
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236
rebanho. explicando-se o Sol, explicam-se os planetas, e
vice-versa.
Toda pluralidade quer resolver-se em unidade.
Tudo mostra uma tendência ascensional. A forma
inferior aponta para a superior, a superior para a
suprema, desde os mais exíguos portadores da vida,
desde o radiolado, o molusco, o anfíbio, o vertebrado,
até o homem, como se todo o mundo animal fosse
somente um museu destinado a apresentar a gênese da
humanidade.
E neste ponto de vista, unicamente nele, é que o
velho bastão do sábio, a nua realidade, o ramo seco dos
fatos, reverdece e deita flores; a ciência assume um
caráter poético. Quando ela tinha a pretensão de
explicar um réptil ou um molusco, isolando-o, era como
se pretendesse achar a vida dos cemitér ios. Molusco,
réptil, homem, anjo mesmo, se quiserem, só existem, no
sistema, no parentesco. Toda forma animal ou vegetal é
um passo inevitável pelo caminho da força criadora.
O atrativo da química repousa principalmente na
convicção de ter da matéria uma massa igual, mas sem o
mínimo vestígio da forma primitiva. O mesmo sucede
com as transformações animais, por exemplo, com a
larva e a mosca, o ovo e a ave, o embrião e o homem.
Destarte vemos que todas as coisas se desvestem, e da
sua antiga forma escorregam para uma nova; que nada
permanece estável senão aqueles fios invisíveis, que
chamamos leis e a que tudo se acha ligado.
Como a língua se encerra no alfabeto, assim a
natureza, o jogo das suas forças, encerram-se no átomo.
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237
Que significação tem tudo isto? Qual a moralidade que
transluz deste imenso apólogo do universo?
É a questão eterna da metafísica, da poesia e da
religião. Não nos incumbe resolvê-la. O único sentido
superior que se nos depreende da observação do mundo,
é que todo parece penetrado de um pensamento
homogêneo; e quase podíamos afirmar com o Carlyle
americano acima citado: “Há somente um animal, uma
planta, uma matéria, uma força. Pesando esta
monstruosa unidade, o indagador nota que todas as
coisas na natureza, animais, montanhas, rios, estações,
árvores, pedras, ferro, vapor, se acham em misteriosa
relação com o seu próprio pensamento e com a sua
própria vida”.
Assim é certo que tudo se transforma, exceto a
transformação mesma, que tem a constância da lei; e
como o processo transformístico se reduz, em última
análise, à passagem de um estado a outro estado, há
razão para dizer que também tudo se move. Mas que é o
movimento? É a mudança original, que repousa no
fundo das demais mudanças da natureza. Todas as forças
elementares são forças moventes, e o alvo supremo das
ciências naturais consiste justamente em achar os
movimentos ou os princípios motores, que servem de
base a todas as outras mudanças.
Pelo caminho da análise, procurando remontar às
simples causas fundamentais, pode tudo na natureza ser
induzido sob o conceito do movimento. Até hoje, é
verdade, só em poucos domínios científicos tem sido
possível reduzir os fenômenos naturais a vibrações e
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abalos de um caráter determinado. Chegaram a esse
ponto somente a astronomia, a acústica e a óptica. Nada
obsta, porém, que a conquista vá mais longe.
Os fenômenos do universo, ao menos os que caem
sob os nossos sentidos, por mais inco ngruentes que
pareçam entre si, são todos redutíveis, como frações
diferentes, a um mesmo denominador. Este denominador
é o movimento, Uma ligeira prova, e a tese será
facilmente compreendida. Eis aqui: os astros brilham, as
flores desabrocham, o vento silva, o mar estua, o raio
fuzila, o leão ruge, as aves cantam, o sol abrasa, o
sangue circula, o coração palpita – tudo isto: brilhar,
desabrochar, silvar, fuzilar, rugir, cantar, abrasar,
palpitar, e o mais que não se sujeita a uma enumeração
– é um complexo de fenômenos cinéticos ou formas de
motilidade.
Que influência não exercem sobre os seres
telúricos a luz e o calor solar?!... Tyndall disse: “as
forças inerentes ao nosso mundo, os tesouros repletos
das nossas minas de carvão, nossos ventos e nossos rios,
nossas frotas, exércitos e canhões são produzidos por
uma pequena parte da força viva do sol, que aliás não
monta, nem sequer 1 da força inteira”
2.300.000.000
Que é porém, essa força viva? Ou seja luz, ou
calor, ou magnetismo, ou eletricidade – unicamente
força motriz.
O conceito do movimento, considerado assim
como a expressão mais simples da imensa variedade dos
fenômenos naturais, dá lugar a uma intuição científica
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239
do mundo, que é exata no seu princípio, no seu ponto de
partida – a existência de uma só lei – mas torna-se
inaceitável, quando antecipa as suas conclusões e
pretende sustentar que a explicação mecânica abrange a
totalidade dos fatos, e que não há exceção possível.
É a doutrina haeckeliana, o monismo naturalístico
do sábio professor de Jena. Mas não podemos confor -
mar-nos com ela. À intuição monística de Haeckel
achamos preferível a do filósofo Noire, que nos parece
dar melhor conta da realidade das coisas.
Com efeito, o monismo de Noire, que pode ter o
nome de monismo filosófico em oposição ao na-
turalismo de Haeckel, assenta em base mais larga. A sua
idéia diretora é que o universo compõe-se de átomos,
inteiramente iguais, que são dotados de duas pro -
priedades: uma interna, o sentimento; e outra externa, o
movimento. Bem como os átomos, o sentimento e o
movimento, que lhe são inerentes, são também
originariamente iguais. Destas duas propriedades origi-
nárias, inseparáveis, resulta todo o desenvolvimento, ou
antes, o que se chama desenvolvimento, é a soma ou
produto de ambas; de modo que todo e qualquer
desenvolvimento é redutível a uma modificação do
movimento, mas também, e ao mesmo tempo, todo e
qualquer desenvolvimento é redutível a uma modi-
ficação do sentimento(2)
.
A coisa não é fácil como a tabuada; mas nem por
isso deixa de ser compreensível e digna de aceitação. O
que o monismo, em falta de expressão mais apropriada,
chama sentimento, não é diverso do que Schopenhauer
240
240
chamou vontade, nem mesmo estaria longe de se poder
substituir pela palavra espírito, se a velha filosofia não
nos tivesse habituado a formar do espírito uma idéia
falsa, na qual assenta o erro do dualismo.
As duas propriedades referidas, posto que
inseparáveis – com o andar dos tempos, isto é, dos
séculos de séculos, ou milênios de milênios – chegam ao
ponto de manterem-se entre si numa razão inversa; ao
maximum de movimento corresponde o minimum de
sentimento, e vice-versa. É a diferença que vai do
mundo anórgano ao mundo orgânico superior.
O monismo filosófico é conciliável com a
teleologia, não tem horror às causas finais; ao passo que
o naturalístico só admite as causas eficientes, e crê
poder com elas fazer todas as despesas da explicação
científica.
É aí que nos separamos do grande mestre de Jena.
O mecanismo, já o dissera Kant, não é suficiente para
dar a razão dos produtos orgânicos; em relação à forma
dos organismos há sempre um resto mecanicamente
inexplicável. Ora, esta inexplicabilidade mecânica
aumenta gradualmente, à proporção que os organismos
são mais desenvolvidos e as funções mais complicadas;
por conseguinte, quando se atravessa toda a série de
seres organizados, e chega-se a formações superiores,
como o homem, a família, o Estado, a sociedade em
geral, o mecanicamente inexplicável já não é um resto,
mas quase tudo. O que há de restante, exiguamente
restante, é a parte do movimento.
241
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Eis porque, tratando-se da lei geral do movi-
mento, importa adicionar-lhe a do desenvolvimento. A
tese – tudo se move – é verdadeira, porém de uma
verdade parcial, que é preciso completar e esclarecer
por esta outra: tudo se desenvolve. E o caminho que leva
o desenvolvimento dos seres, diz Noire, é a constante
elevação do sentimento, da propriedade interna dos
mesmos seres. Esse caminho nos conduz da primeira
esfera de névoa do nosso sistema solar à formação da
terra; daí aos primeiros elementos da matéria animal:
daí ao primeiro homem, para chegar enfim à hu -
manidade hodierna, que é propriamente o que interessa
ao nosso estudo. Um imenso caminho, sem dúvida, mas
o moderno pensamento filosófico não conhece outro(3)
.
III
A sociedade é a categoria do homem, como o espaço
é a categoria dos corpos.
Na linguagem filosófica, a palavra categoria é
empregada no sentido de uma forma, um esquema do
pensamento, ou uma condição a priori, sem a qual não
há conhecimento possível.
Em rigor, e de acordo com a filosofia kantesca, o
espaço não entra propriamente na tábua das categorias:
é uma das duas formas puras e originais, em que a razão
molda todo o material sensível. A outra é o tempo. Mas
não havemos mister desse rigor. O que serve aqui ao
nosso fim, é a idéia de que, assim como os corpos que
não podem ser percebidos, quer em todas, quer em parte
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242
das suas propriedades, senão ocupado um espaço, do
mesmo modo o homem, o homem do direito, da ciência
que nos ocupa, não pode ser pensado, estudado,
analisado, senão sob o esquema social, como membro de
uma sociedade.
Não nos interessa, nem viria a propósito, agitar o
problema da idealidade ou realidade do espaço, e saber
quem tem razão – se Helmoltz, de um lado, ou Stuart
Mill e Bain, de outro; se os nativistas ou os empiristas;
porém dado que entrássemos nesse assunto, o termo de
comparação não perderia o seu valor. Segundo Kant o
espaço tem ao mesmo tempo uma idealidade
transcendental e uma realidade empírica. Sob uma
semelhante dupla face, também a sociedade se oferece à
nossa apreciação: a face real, que entra no domínio da
ciência, que pode ser objeto de estudo, e a face ideal,
que é mera condição formal, apriorística de todos os
fenômenos éticos e jurídicos. Isto não é indiferente para
a questão da existência ou não-existência de uma so-
ciologia, que entretanto pomos de lado, por ser alheia a
este ponto(4)
.
Parece, à primeira vista, que a tese do programa
desta das antecedentes, e quase que se ressente de um
pouco de anacronismo. Não é somente o homem que
apresenta caráter social; a sociabilidade pode tão pouco
servir de diferença específica na definição do ente
humano, quão pouco pode, por exemplo, a faculdade de
respirar por pulmões, que é comum a todos os
mamíferos, como é comum a muitos animais o viverem
associados.
243
243
Mas a questão é outra. A sociedade, de que se
trata, ao é a natural, cuja observação e análise pertence
à zoologia.
Quando ainda no estado primitivo, o homem
procedia em tudo como animal, só obedecendo ao
princípio da luta física pela existência. É certo que já
nesse estado originário da sociedade humana, qualquer
grupo social, ou fosse composto de uma família, ou de
um tronco, logo que os indivíduos se reuniam a formar
um todo, portava-se como um organismo, dotado de
forças comuns, e buscando atingir um alvo comum.
Mas também o reino animal nos mostra uma igual
reunião de indivíduos, que vivem uns com os outros e se
nutrem, sob a observação da lei da divisão do trabalho.
Semelhantes aos homens associados, esses animais
desenvolvem, por meio de recíprocos reflexos e sim-
patias nervosas, instintivos impulsos, conceito e neces-
sidades comuns, Em monstruosas corpos do exército
eles emigram, sustentam guerras entre si, com inimigos
externos, aniquilam os seus adversários com as suas
habitações, ou reduzem à escravidão das abelhas, e
particularmente das formigas, chegaram, neste assunto,
às mais surpreendentes descobertas.
Entretanto, não exageramos o sentido dos fatos.
No reino animal, todos esses fenômenos não se elevam
acima do estado primitivo. Depois que o desen-
volvimento social tem atingido um certo grau, aí fica
estacionado, se não é que algumas vezes toma uma
marcha regressiva. Entre os vertebrados superiores
mesmos, o combate pela vida não passa de um combate
244
244
puramente físico a um social. As simpatias permanecem
instintivas; as guerras têm sempre como resultado,
mediato ou imediato, a completa destruição do inimigo.
A sociedade do homem tem outro aspecto. Ela é
ao mesmo tempo uma causa e um efeito da própria
cultura humana. No reino animal, os indivíduos, quase
exclusivamente, só podem reunir -se uns com os outros
pelo caminho das relações sexuais, e isto mesmo nos
graus mais próximos de procedência congênere. Ao
contrário, o homem pode unir -se com os seus iguais,
sem atenção às distinções de raça ou de nacionalidade,
não só por aquele caminho, mas também e sobretudo
pela reciprocidade social.
Não raras vezes, em um mesmo lugar, convivem
duas, três e mais nacionalidades, falando línguas
diversas e até pertencendo a religiões diferentes, sem
que por isso deixem de formar um todo político firme e
compacto. Isto, porém, só é próprio da espécie humana.
O instinto do trabalho, da atividade econômica,
leva algumas espécies animais a constituírem asso -
ciações, que aos olhos do naturalista parecem miniaturas
de monarquias ou de república. É o que se observa, por
exemplo, nos formigueiros e nas colméias. Mas é digno
de nota que só a sociedade não reage beneficamente
sobre os seus membros. A abelha de hoje não sabe
compor o seu mel com ais habilidade do que a abelha de
Virgílio. O caráter distintivo da associação humana está
justamente nessa reação do todo sobre cada um a das
partes donde resultam as mudanças e melhoramentos
ulteriores.
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245
Goethe já tinha dito: “O olho é um produto da
luz”. A verdade desta sentença a respeito de todos os
órgãos vegetais e animais tem sido plenamente
demonstrada pelos progressos da biologia moderna.
Com igual justeza pode-se também dizer que os órgãos
nervosos superiores do homem são o produto da
sociedade. Tudo que constitui o homem de hoje, o
homem do direito, da moral, da religião... é um produto
social.
Assim, quando Lazarus Geiger disse: “A língua
criou a razão”, poder-se-ia acrescentar: e a sociedade
criou a língua. Mas sem língua e sem razão ao se
concebe a vida humana; logo esta só é tal, só pode ser
tal o seio da sociedade.
IV
Impossibilidade de uma sociologia como ciência
compreensiva de todos os fenômenos da ordem social.
Se para justificar o nome de ciência, atribuído a
esta ou àquela espécie de conhecimentos, bastasse
alegar que desde antigos, antiguíssimos tempos, filó -
sofos e pensadores de primeira grandeza tentaram dar a
esses conhecimentos um caráter científico, procurando
organizá-los e reduzi-los a sistema, a sociologia, ou a
ciência da sociedade seria ao certo uma das mais
autorizadas.
Porquanto, com a primeira reflexão que o homem
fez sobre a origem das coisas, surgiu também a primeira
reflexão que ele fez sobre a ordem das coisas. É o
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246
começo de toda a filosofia. Diz bem Eduardo Lasker:
“uma genética e uma ética são as formas primit ivas do
saber humano”. A mesma necessidade que levou o
homem a indagar das causas geradoras do universo, o
impeliu também para a pesquisa de regras ou de
princípios diretores da vida social.
Pode-se até afirmar que a ética precedeu à
genética, no sentido de que, bem antes que os espíritos
reduzissem à forma científica os seus conhecimentos
sobre a natureza, já havia uns vislumbres de ciência
prática. A época dos Anaxágonas e dos Demócritos veio
depois da dos Cleóbulos e dos Tales. A sabedoria
gnômica dos sete sábios antecedeu às especulações
metafísicas das escolas gregas. As sentenças ou
máximas, que se lhes atribui, são induções baseadas na
observação dos fatos e relações sociais. Assim, quando
Pítaco dizia: pondera bem o tempo ; ou Cléobulo
aconselhava: moderação em tudo; ou Periandro de
Corinto: refletir antes de obrar, eram os primeiros
lineamentos de uma ciência futura, que sob o nome de
política, ou de sociologia, ou sob outro qualquer título,
havia ainda de pretender entrar no conhecimento das leis
que regem a sociedade humana, e assim contribuir para
a sua melhor direção.
Entretanto a cultura helênica prosseguiu na sua
marcha. Com a revelação operada por Sócrates, a
ciência da natureza ou a física; isolou-se da ciência do
homem ou filosofia propriamente dita, que passou a ser
metafísica. A esta incorporou-se a ciência de Deus, bem
como a da sociedade. Todos os grandes sistemas
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247
filosóficos fizeram sempre a sua parte de sociologia.
Platão e Aristóteles foram também sociólogos. Mas o
que há enfim de realmente assentado, depois de tantos
séculos de observação e de estudo, no que toca a uma
verdadeira ciência social? Coisa nenhuma.
Os sociólogos modernos não desconhecem esta
verdade; porém buscam enfraquecê-la pela consideração
da impropriedade do método, até hoje aplicado à
sociologia, que eles julgam dever sujeitar-se aos
mesmos processos lógicos das ciências naturais, para
tornar-se então efetivamente capaz de resolver o seu
problema.
Não deixam de ter razão os que assim acusam as
velhas tentativas sociológicas de vaguidão especulativa
e inanidade metafísica; mas nem por isso é menos
censurável a ilusão em que laboram, quando pensam
remediar o antigo mal com a simples mudança de
método. A questão principal não é de método, mas de
objeto. A sociologia não tem um, que possa ser regu-
larmente observado. Se ela pretende alguma coisa séria,
é sem dúvida abranger no seu círculo de observação a
totalidade dos fenômenos sociais e descobrir as
respectivas leis. É pelo menos o que diz Lilienfeld, um
sociólogo alemão: “Estado, igreja, ciência, arte, vida
comunal, direito, força, liberdade social, não são
especulações, porém realidades, como a forma e o
movimento dos corpos. A sociologia não pode negar,
nem deixar despercebidas essas realidades; ela deve
procurar inquiri-las e explicá-las”.
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248
Mas isto será possível? Não nos paguemos de
palavras vãs. O positivismo nos fala de uma estática e
de uma dinâmica social: aquela compreendendo as leis
da existência, e esta as leis do desenvolvimento da
sociedade; porém a pergunta surge espontânea: que
sociedade? A humana, por certo.
Mas a frase – sociedade humana – não passa de
frase, ou simplesmente a soma dos mil e quatrocentos
milhões de terrícolas. No sentido jurídico, moral,
religioso, político e até econômico ou comercial mesmo,
não tem valor nenhum.
Se, porém, o objeto da ciência não é a sociedade
em geral, mas esta ou aquela, geográfica e histo ri-
camente determinada, não diminuem por isto as difi-
culdades de observação, e acresce que teríamos tantas
sociologias, quantos são os grupos sociais, que mostram
um caráter distinto e um desenvolvimento mais ou
menos homogêneo, ou sejam raças, ou povos, ou Estado,
o que aliás não merece uma refutação.
A divisão das condições da vida social em
estáticas e dinâmicas é belamente simétrica, e não deixa
de ter o seu fundo de verdade. Mas a ciênc ia não vive de
simetria, do arquitetônico das suas divisões; antes de
tudo, ela vive de fatos. O saber que tais condições
existem, é um bom princípio regulador; mas nada
aproveita, enquanto não se sabe quais e quantas são
elas, como se determinam o seu valor e a sua recíproca
influência.
Este conhecimento é impossível.
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Não obstante a improficuidade dos seus esforços,
os sociólogos continuam a gastar papel e tinta. Um
insigne dentre eles, o fisiologista francês Gustave Le
Bom, não tem a mínima dúvida sobre as justas
pretensões de tal ciência. No empenho de sustentá-las
ela apresenta quatro hipóteses, únicas possíveis, de
explicação dos fenômenos sociais, e excluindo as três
primeiras, que julga inaceitáveis, só deixa de pé a
última, que é justamente a sua tese. Ei-las: primeira, um
poder superior, chamado Deus ou Providências, dirige a
seu bel-prazer as ações dos homens; segunda, os acon-
tecimentos são o resultado do acaso; terceira, os acon-
tecimentos são a conseqüência das vontades humanas;
quarta, os acontecimentos representam uma cadeia de
necessidades estreitamente ligadas e trazem em si as
causas de sua evolução fatal.
Dividida assim a questão em quatro pontos de
vista, aparentemente irredutíveis, nada mais fácil do que
escolher um deles e tirar então, por meio da lógica, as
conseqüências desse pressuposto.
Mas o erro é evidente. A separação exclusiva dos
membros da divisão não tem assento nos fatos; é puro
trabalho especulativo, um resultado de análise, que
procede por abstração. Concedendo-se ao espírito
científico, ao desabusado espírito do tempo, que Deus
seja banido da história, que seja um ingrediente inútil na
mecânica social, nem por isso os outros três fatores
deixam de poder coexistir. A quem, pois, dissesse que a
sociedade se mantém pela combinação de uma tríplice
ordem de fenômenos, como provar o contrário?
250
250
E enquanto não se demonstrar que o acaso é de
todo uma palavra sem sentido, e que as vontades
humanas são forças naturais, são simples forças
motrizes, como o calor ou a eletricidade, que vale a
sociologia? Certamente nada.
A questão do acaso é mais séria do que se supõe.
Carlos Ernesto Baer o define: um acontecimento que
coincide com outro, sem achar-se preso a ele por
nenhum nexo causal. Lazarus Geiger dz que o acaso está
entretecido e indissoluvelmente ligado com tudo que se
desenvolve. Noire é desta mesma opinião, E, bem
ponderado, é difícil não abraçá-la.
Com efeito, a sociedade e a natureza apresentam
quotidianas coincidências, cuja explicação não pode ser
dada por nexos causais. Como, po rém, o espírito
humano sente a necessidade de ligar todo fenômeno a
uma causa, ele transporta muitas vezes esta lei do
pensamento a domínios, onde ela não vigora, e daí
resulta uma porção de contra-sensos, que ainda hoje
perturbam a marcha regular da indagação científica. A
superstição e a crença no milagre descendem, em
grande parte, dessa conversão arbitrária do casual em
causal.
É bem sabido como a lógica do povo continua a
amarrar à cauda dos cometas a peste, a guerra, e em
geral, todas as calamidades, que porventura depois deles
apareçam na terra. Quantos são, porém, infundadas estas
e outras iguais crenças, basta a seguinte consideração
para mostrar. Suponhamos que uma estrela, e a hipótese
não é gratuita, que a estrela Alcione, por exemplo, de
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repente desaparecesse do céu; mas também suponhamos
que esse fato viesse imediatamente depois de um grande
acontecimento humano: a destruição de um vasto im-
pério, a queda do papado, ou outro qualquer sucesso
notável. Proclamada a morte da estrela pela extinção d a
sua luz, qual seria o crente que não visse no desa-
parecimento do astro um indício da cólera divina,
motivada ou causada pelo fato dado no mundo?
Entretanto, é certo que, se isto porventura
acontecesse no correr do ano vigente, a estrela em
questão nada tinha que ver com as coisas que figuramos,
pela simples razão de já haver morrido há séculos. O
último alento vital exalado por ela teria sido em 1312,
pois que a sua luz gasta não menos de 573 anos para
chegar até nós. Não haveria portanto nenhuma relação
de causalidade, e a aparente sucessão imediata dos dois
fenômenos seria um mero acaso.
Como se vê, o acaso figura legitimamente na
ordem das idéias que têm um conteúdo positivo. Não
pode, pois, ser de todo eliminado, para deixar imperar
somente o puro causalismo das forças naturais.
Deus mesmo, o obscuro e incognoscível Deus!...
Merece ele com efeito não ser levado em conta pelos
arquitetos do edifício sociológico? A parte que lhe
compete no mecanismo da sociedade, é tão nula, como a
que lhe cabe no mecanismo da natureza? Excluído Deus
como poder, como força criadora de fenômenos
naturais, é fácil também excluí-lo como poder, como
força motivadora de fenômenos sociais? Estas questões
parecem ter algum valor.
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252
Não é decerto e nome de Deus, que os planetas
giram em torno do sol, e as falenas em torno da luz, que
vai queimá-las; não é em nome de Deus, que o mar se
quebra na praia ou os rios caem dos montes, ou a chuva
estraga as searas, ou a peste mata os rebanhos. Mas é
incontestável que o homem, em nome de Deus, podendo
fazer muita coisa ruim, também faz muita coisa boa.
Não é preciso ser devoto para o afirmar; a sinceridade
científica obriga a reconhecê-lo.
Se, pois, Deus pode ser posto fora do universo,
como força real mediata ou imediatamente eficaz, não
pode sê-lo da sociedade, como força ideal, que sob a
forma psicológica do motivo concorre para um sem-
número de ações elevadas, como também para um sem-
número de ações indignas. Ainda que ideal, é sempre
força, aliás não suscetível de explicação mecânica, e
com tal destinada a perturbar os cálculos de qualquer
ciência, que pretenda reduzir os movimentos da di-
nâmica social à exatidão das fórmulas da dinâmica
celeste.
Em última análise as quatro hipóteses de Le Bom
me parecem quatro pés, indispensáveis todos à marcha
da sociedade. Se dentre eles algum se mostra manco e
pesado, é a tal cadeia de necessidades, pois até hoje, no
que toca à vida histórica dos povos, não tem passado de
um conceito a priori, donde a dialética pode tirar
bonitas conseqüências teóricas, mas a prática nada tem
haurido de sério e aproveitável.
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253
V
O direito é um produto da cultura humana.
Conceito de direito.
Dizer que o direito é um produto da cultura
humana importa negar que ele seja, como ensinava a
finada escola racionalista e ainda hoje sustentam os seus
póstumos sectários, uma entidade metafísica, anterior e
superior ao homem.
A proposição do programa é menos uma tese do
que uma antítese; ela opõe à velha teoria, fantástica e
palavrosa, do chamado direito natural, a moderna dou-
trina positiva do direito oriundo da fonte comum de
todas as conquistas e progressos da humanidade, em seu
desenvolvimento histórico.
Faz-se, porém, preciso deixar logo estabelecido o
que se deve entender por cultura, em que consiste o
processo cultural.
Antes de tudo: o conceito da cultura é mais amplo
que o da civilização. Um povo civilizado não é ainda
ipso facto um povo culto. A civilização se caracteriza
por traços, que representam mais o lado exterior do que
o lado íntimo da cultura. Assim, ninguém contest ará,
por exemplo, aos russos, aos turcos mesmos, a muitos
outros povos do globo, relativamente florescentes, o
nome de civilizados. Eles têm ais ou menos ordenadas
as suas relações jurídicas; possuem, pela mor parte,
constituições e parlamentos; aproveitam-se dos pro-
gressos da ciência, da técnica e da indústria moderna;
seus altos círculos sociais falam diversas línguas, lêem
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obras estrangeiras, vestem-se conforme a moda no-
víssima de Paris, comem e bebem, segundo todas as
regras da polidez. Porém não são povos cultos.
Estas últimas idéias, que nos parecem exatas,
tomamo-las de empréstimo a Cristiano Muff, um
escritor alemão, mas alemão insuspeito para os espíritos
devotos, por ser um dos que trazem sempre na boca o
nome de Deus. Já se vê que o conceito da cultura é
muito mais largo e compreensivo do que se pode à
primeira vista supor. Sem uma transformação de dentro
para fora, sem uma substituição da selvageria do homem
natural, pela nobreza do homem social, não há
propriamente cultura.
Quando, pois, dizemos que o direito é um produto
da cultura humana, é no sentido de ser ele um efeito,
entre muitos outros, desse processo enorme de constante
melhoramento e nobilitação da humanidade; processo
que começou com o homem, que há de acabar somente
com ele, e que aliás não se distingue do processo mesmo
da história.
Determinamos melhor o conceito da cultura. O
estado originário das coisas, o estado em que elas se
acham depois do seu nascimento, enquanto uma força
estranha, a força espiritual do homem, com a sua
inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não
as modifica, esse estado se designa pelo nome geral de
natureza.
A extensão desta idéia é constituída por todos os
fenômenos do mundo, apreciados em si mesmos,
conforme eles resultam das causas que os produzem, e o
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255
seu característico essencial é que a natureza se
desenvolve segundo leis determinadas e forças que lhe
são imanentes; não se afeiçoa de acordo com fins
humanos. Quando isto porém acontece, quando o
homem inteligente e ativo põe a mão em um o bjeto do
mundo externo, para adaptá-lo a uma idéia superior,
muda-se então o estado desse objeto, e ele deixa de ser
simples natureza.
É assim que se costuma falar de riquezas naturais
e de produtos naturais, significando alguma coisa de
anterior e independente do trabalho humano(5)
. Mas o
terreno em que se lança a boa semente, a planta que a
mão do jardineiro nobilita, o animal que o homem
adestra e submete a seu serviço, todos experimentam um
cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria
natural. A cultura é, pois, a antítese da natureza, no
sentido de que ela importa uma mudança do natural, no
intuito de fazê-lo belo e bom. Esta atividade nobilitante
tem sobretudo aplicação ao homem. Desde o momento
em que ele põe em si mesmo e nos outros, c iente e
conscientemente, a sua mão aperfeiçoadora, começa ele
também a abolir o estado de natureza, e então aparecem
os primeiros rudimentos da vida cultural.
Vem aqui muito a propósito as seguintes palavras
de Júlio Froebel: “A cultura em oposição à natur eza é o
processo geral da vida, apreciado, não segundo a relação
de causa e efeito, mas segundo a de meio e fim. Ela é o
desenvolvimento vital, pensado como alvo, e até onde
chegam os meios humanos, tratados também como
alvos; é a vida mesma considerada no ponto de vista da
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256
finalidade, como a natureza é a vida considerada no
ponto de vista da causalidade”.
Eis aí. No imenso mecanismo humano, o direito
figura também, por assim dizer, como uma das peças de
torcer e ajeitar, em proveito da sociedade, o homem da
natureza, bem ao contrário do que pensava Rousseau,
para quem tudo consistia ... à ne pas gâter l’homme de
la nature, en l’appropriant à la société.
O direito é, pois, antes de tudo, uma disciplina
social, isto é, uma disciplina que a sociedade impõe a s i
mesma na pessoa dos seus membros, como meio de
atingir o fim supremo – e o direito só tem este – da
convivência harmônica de todos os associados. Daí vem
o dizer de von Jhering que o fim ou o alvo é o criador de
todo o direito. Nenhum intuito jurídico, por mais
elevado que seja na escala evolucional, que não tenha
um caráter finalístico, ou um resto da forma primitiva
do interesse e utilidade comum.
Este modo de conceber o direito como um
resultado da cultura humana, como uma espécie de
política da força que se restringe e modifica, em nome
somente da sua própria vantagem; esta concepção do
direito, não como um presente divino, mas como um
invento, um artefato, um produto do esforço do homem
para dirigir o homem mesmo – esta concepção ainda
conta presentemente decididos adversários.
São aqueles que viciados por uma péssima
educação filosófica habituaram-se a ver no direito e na
força duas coisas de origem inteiramente diversa, ou
dois poderes, como Arimã e Ormuz, que disputam entre
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si o primado sobre a terra; quando a verdade é que o pio
Ormuz do direito e o fero Arimã da força constituem um
mesmo ser; Ormuz não é mais do que Arimã nobilitado
Disse-o também Rudolf von Jhering.
E é digno de ponderar-se: os sectários de um
direito, filho do céu ou obra da natureza, os que não
podem compreender que o homem tenha podido forjar a
sua própria cadeira, criando regras de convivência
social, estão no mesmo pé de simplicidade e lastimável
pobreza de espírito, em que se acha o povo ignorante,
quando atribui a causas divinas muita coisa que afinal se
verifica ser efeito de causas humanas.
Um exemplo basta para confirmá-lo. É sabido
como ainda hoje, nas ínfimas camadas da rudeza
popular, mantém-se a velha crença nas pedras do trovão
ou do corisco, qu se entranham pela terra sete braças, e
no fim de sete anos voltam à superfície, onde é feliz
quem as encontra, porque tem nelas um talismã
inestimável...
Entretanto, o progresso dos estudos pré-históricos
já chegou a estabelecer como verdade incontestável que
essas pedras são instrumentos de que se serviram os
homens primitivos. Ainda no começo do século assado
(1734), quando Maüdel, na academia de Paris, atribuiu -
lhes uma tal procedência, foi objeto de escárnio público.
Mas de que se tratava então?... Não era de dar uma
origem humana àquilo que se supunha, sem exceção dos
próprios sábios da época, formado nas nuvens e caído
do céu?... Que diferença há, pois, entre este e o atual
espetáculo em relação ao direito, que o rebanho dos
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doutores ainda tem na conta de uma ordenação divina?...
O futuro responderá. Bem entendido: o futuro para nós,
visto como em outros países já o futuro é o presente.
Convençamo-nos portanto: o direito é um insti-
tuto humano; é um dos modos de vida social, a vida pela
coação, até onde não é possível a vida pelo amor; o que
fez Savigny dizer que a necessidade e a existência do
direito são uma conseqüência da imperfeição do nosso
estado. O seu melhor conceito científico é o que ensina
o grande mestre de Goettingen: “O conjunto de
condições existenciais da sociedade coativamente
asseguradas”. Se ao epíteto existenciais adicionarmos
evolucionais – pois que a sociedade não quer somente
existir, mas também desenvolver-se – aí temos a mais
perfeita concepção do direito.
VI
O direito como idéia e sentimento: psicologia do direito.
O direito como força: fisiologia e morfologia do direito.
Há muito que se costuma dividir o direito em
objetivo e subjetivo: mas nunca se refletiu bastante
sobre o valor de cada um destes membros da divisão.
Designa-se por direito objetivo o conjunto de
regras ou de princípios, estabelecidos e manejados pelo
Estado, que têm por fim a ordem legal da vida; e por
direito subjetivo o cunho da regra abstrata, constituindo
uma autorização concreta da pessoa.
São exatas estas definições. Mas dado até de
barato que se definam de outra maneira aquelas duas
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259
faces do direito, aqueles dois únicos modos de
compreendê-lo e apreciá-lo, o que fica fora de dúvida é
que o direito subjetivo indica sempre alguma coisa de
pessoal, de característico e inerente à personalidade
humana.
E quando bem se entende que o termo – subjetivo
– foi tomado de empréstimo à tecnologia filosófica,
onde ele tem um sentido determinado, significando tudo
que pertence ao mundo interior, ao mundo da cons-
ciência, facilmente se chega a perguntar, se tal
subjetividade não vai até aos domínios da psicologia
propriamente dita; se além da facultas agendi ou do
“cunho da regra abstrata que constitui uma autorização
concreta da pessoa”, o direito não é ainda objeto de
observação interna, uma forma ou um dado psicológico,
emocional e mental, que abrange muito mais do que uma
simples faculdade de agir.
Tal foi e tal é o pensamento do programa. Assim
como se fala de uma psicologia da música, de uma
psicologia da religião, e até mesmo de uma psicologia
do amor, no sentido de estabelecer o que se passa no
espírito a propósito de amor, de religião ou de música,
assim também pode-se falar, e com igual significação,
de uma psicologia do direito(6)
.
Ainda hoje se diz dos antigos romanos, que eles
tinham em alto grau o senso jurídico da mesma forma
que se atribui aos italianos o senso musical, o senso
artístico, aos judeus o senso religioso, etc. O que é
verdade a respeito dos povos ainda mais se acentua a
respeito dos indivíduos.
260
260
O senso jurídico individual é um fato psicológico,
de observação quotidiana. Ele se manifesta de dois
modos: pelo sentimento do próprio, e pelo sentimento
do direito alheio. O primeiro é uma das bases do caráter;
o segundo, uma das fontes da virtude. Ser justo não é
mais do que sentir o direito dos outros e proceder de
acordo com um tal sentimento. Mas este sentimento, que
aliás pode elevar-se até a paixão e o entusiasmo, não
existe isolado. Verdadeira ou falsa, clara ou obscura, há
sempre uma idéia que o acompanha.
Já se vê que não se inova coisa alguma em tratar
da psicologia do direito, como nada haveria de novo em
tratar, por exemplo, da psicologia da arte. O direito não
é só uma coisa que se conhece, é também uma coisa que
se sente.
Mas estes dois momentos psicológicos não
esgotam o seu conteúdo; não basta apreendê-lo como
idéia e sentimento nos limites da vida interior; o que
importa sobretudo é encará-lo como função, como
atividade, como força. É o que dá lugar a uma fisiologia
e uma morfologia do direito.
São expressões estas capazes de provocar séria
estranheza. Como se compreende tal fisiologia e
morfologia jurídicas? A pergunta é natural, e a resposta
ainda mais. Comprometo-me a dá-la completa, exigindo
apenas um pouco de atenção.
É geralmente sabido que a palavra fisiologia
sempre foi aplicada com a significação de ciência que se
ocupa das funções vitais, assim como a palavra
morfologia, que é de data mais recente, emprega-se no
261
261
sentido de ciência das formas orgânicas. E qualquer que
seja a extensão que se dê a uma e out ra, o fundo
permanece o mesmo. A fisiologia pressupõe a morfo-
logia, como a função pressupõe o órgão.
Isto é incontestável. Pois bem; vejamos agora o
que sai daí.
Não é de hoje, mas há muito tempo que as frases
organização social, organização política, organização
judiciária, e outras semelhantes existem até na lin-
guagem do vulgo. Todo mundo está de acordo sobre o
sentido que se lhes atribui. Não são metáforas vãs. Se
elas querem dizer alguma coisa, é exatamente que a
sociedade, o Estado, a justiça se nos afiguram como
seres, como todos orgânicos, análogos aos demais orga-
nismos da natureza.
E essa analogia foi sempre reconhecida pelas
melhores cabeças pensantes. Além de Platão e
Aristóteles, que são ricos de paralelos a tal respeito,
basta lembrar na antiguidade romana Menênio Agripa,
que por ocasião da celebre secessio in montem sacrum,
fez o povo voltar ao cumprimento dos seus deveres por
meio da frisante comparação das diversas camadas e
classes sociais com os diversos órgãos e aparelhos do
corpo humano.
Ora, onde quer que haja uma função, onde quer
que ele fale de função, aí há uma fisiologia; mas no
grande organismo da sociedade as funções precípuas,
essencialmente vitais, são as funções jurídicas; a vos
organisatrix do Estado é justamente o direito. Como
pois, não compreender que o direito tenha uma fisio -
262
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logia, quando se compreende que ele tenha as suas
funções? E se a toda fisiologia corresponde uma
morfologia, como a todo funcionalismo corresponde um
organismo, por que achar inconcebível uma morfolo gia
do direito? É muita opiniaticidade(7)
.
A psicologia, a fisiologia e a morfologia do
direito mantêm entre si uma certa relação hierárquica,
de modo que a primeira não existe sem a segunda, e esta
não existe sem a última. Mas a recíproca não é
verdadeira. É possível a existência do órgão jurídico,
separado da respectiva função, como também a
existência da função independente da idéia e sentimento
do direito.
As coisas em geral, enquanto apropriadas e
acomodadas às necessidades do homem, são outros
tantos órgãos, por meio dos quais ele funciona. Até o
seu cão e o seu cavalo são projeções da sua atividade,
são órgãos do seu direito. A abelha da minha colméia,
que não trabalha para si, mas para mim, é uma
irradiação jurídica da minha personalidade. Isto é
aparentemente estranho, mas no fundo, verdadeiro.
A criança no berço, o próprio feto no seio
maternal, já não é somente um órgão, porém um
funcionário do direito, ainda que a sua única atividade,
a sua única função jurídica, seja a de viver. Entretanto,
faltam-lhe os momentos psicológicos, mental e emo-
cional; ausência esta que é a base filosófica da
necessidade, reconhecida por todas as nações cultas, da
representação tutelar dos menores e desassisados(8)
.
263
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Nada mais simples. Desde o martelo do operário,
mais abaixo ainda, desde o machado do pobre campônio
até o pincel ou o cinzel do grande artista, estende-se a
rica variedade do aparelho morfológico do direito, como
função da vida nacional. A própria pena do escritor é
um instrumento jurídico, é um órgão de igual função. A
terra mesma, com todo o seu armazém de forças, faz
parte desse aparelho.
Há, porém a ponderar uma circunstância notável.
A ordem natural do valor e importância das coisas, que
servem de meios à atividade humana, não é a mesma que
a ordem jurídica. Assim, a natureza estabelece a série
das coisas imóveis, móveis e semoventes, para empre-
garmos a expressão consagrada, pouco mais ou menos
como: 1,2,3; mas o direito a estabelece, em sentido
inverso como: 3,2,1. É certo o que disse Börne que, só
pelo fato de viver, um boi é melhor do que o mais rico
brilhante; porém em face do direito, como órgão de
função econômica ou de trabalho, que é também função
jurídica, o brilhante vale mais do que o boi.
Adiante voltaremos a este assunto, que os parece
mais fecundo do que talvez se suponha.
VII
Ciência do direito: definição e divisão.
Uma vez concebido o direito como o complexo de
princípios reguladores da vida social, estabelecidos e
manejados pelo Estado, importa averiguar o que é e em
que consiste a respectiva ciência.
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264
A vida do direito no seio da humanidade, diz
Pessina, requer duas grandes condições para o seu
aperfeiçoamento, isto é, a arte e a ciência. Crono-
logicamente a arte antecede a ciência, porém vai
melhorando com o surgir e progredir da ciência mesma,
assim como na vida econômica do gênero humano, a
arte transformadora da natureza precedeu o conhe-
cimento científico dos fenômenos naturais, para depois
aproveitar-se das vitórias alcançadas com o surgir e
progredir de uma ciência da natureza.
Quando o programa fala de uma ciência do
direito, nem é no sentido das vagas especulações,
decoradas com o nome de filosofia, nem no sentido de
um pequeno número de idéias gerais, que alimentam e
dirigem os juristas práticos. A ciência do direito, a que
o programa se refere, tem o cunho dos novos tempos;
não consiste em saber de cor meia dúzia de títulos do
Corpus Juris, e tampouco em repetir alguns capítulos de
Ahrens, ou qualquer outro ilustre fanfarrão da metafí-
sica jurídica.
A ciência do direito é uma ciência de seres vivos;
ela entra por conseguinte na categoria da fisiologia, ou
filogenia das funções vitais. O método que lhe assenta é
justamente o método filogenético, do qual diz Eduard
Strasburger ser o único de valor e importância para o
estudo dos organismos viventes(9)
.
Quando Alexandre de Humboldt define a vida –
uma equação de condições – a definição é verdadeira,
não só quanto à vida dos indivíduos, mas também
quanto a dos povos. Ora, entre as condições cuja
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265
equação forma a vida destes últimos, o direito ocupa um
lugar distinto, pois ele é o conjunto orgânico dessas
mesmas condições, enquanto dependentes da atividade
voluntária e como tais asseguradas por meio da coação.
A ciência do direito vem a ser, portanto, o estudo
metódico e sistematizado de quais sejam essas formas
condicionais, de cujo preenchimento, ao lado de outras,
depende a ordem social ou estado normal da vida
pública.
Mas assim considerada, a ciência do direito
assume feição histórica e evolutiva, apresentando por
conseguinte dois únicos lados de observação e pesquisa.
São os dois pontos de vista da filogenia e da ontogenia,
conforme se estuda a evolução do mesmo direito na
humanidade em geral, ou nesta ou naquela individua -
lidade humana, singular ou coletiva(10)
.
Assim como existe, segundo Haeckel, uma
ontogenia glótica, pelo que toca ao desenvolvimento
linguístico do menino, e uma filogenia glótica,
relativamente ao mesmo desenvolvimento dado no
gênero humano, assim também se pode falar de uma
ontogenia e de uma filogenia jurídica. Se é certo que a
humanidade em seu começo tinha tão pouco o uso da
linguagem, como ainda hoje a criança o tem, não deve
haver dúvida que, no domínio jurídico, a ontogenia
também seja uma repetição da filogenia. A humanidade
em seu princípio não sentia nem sabia o que é direito,
como não o sabe nem o sente o menino dos nossos
dias(11)
.
266
266
Entretanto, não convém parar aí. A ciência do
direito pode ainda ser considerada sob outro ponto de
vista. Como ciência que indaga as relações dos homens
entre si, ela se divide em várias partes, segundo as
diferentes formas sociais, dentro das quais a ação do
homem se desenvolve.
Assim, costuma-se mencionar um direito interno
e outro externo, conforme se trata das relações do
Estado com a humanidade, o que até hoje não passa de
mera aspiração, ou das relações do Estado com os
indivíduos e com as sociedades dentro dele organizadas.
O direito interno e ramifica em privado e público.
Este, por sua vez, quando limitado ao modo de orga-
nização política, forma o direito constitucional; e
aplicado à indagação das leis de coexistência das
comunas e das províncias com o Estado, dá origem ao
direito administrativo. Tratando-se, porém, da segurança
pública e das mais eficazes garantias da sociedade vê-se
nascer o direito e o processo criminal.
É por uma análoga diferenciação que brotam do
mesmo tronco o direito comercial e o direito ecle -
siástico. Mas releva advertir que todas estas divisões
não alteram a natureza do direito, que pelo lado formal
permanece sempre o mesmo, ainda que varie pelo lado
material. O direito é um todo orgânico; as diferentes
divisões a que ele se presta, não desmancham a
harmonia do sistema. São resultados da análise, que
entretanto ainda esperam a síntese ulterior.
267
267
VIII
Como se deve compreender a teoria de um dire ito
natural, que não é a mesma coisa que uma lei
natural do direito.
A idéia capital do programa está na combinação
das duas seguintes proposições: não existe um direito
natural; mas há uma lei natural do direito.
Isto é tão simples, como se alguém dissesse: não
existe uma linguagem natural, mas existe uma lei
natural da linguagem; não há uma indústria natural, mas
há uma lei natural da indústria; não há uma arte natural,
mas há uma lei natural da arte. Coisas todas estas que
qualquer espírito inteligente compreende sem esforço,
no sentido de que, perante a natureza não há língua nem
gramática, não há semítico nem indo-germânico; o
homem não fala nem falou ainda língua alguma, não
exerce indústria, nem cultiva arte de qualquer espécie
que a natureza lhe houvesse ensinado. Tudo é produto
dele mesmo, do seu trabalho, da sua atividade.
Entretanto a observação histórica e etnológica
atesta o seguinte fato: todos os povos que atravessaram
os primeiros, os mais rudes estádios do desenvolvimento
humano, têm o uso da linguagem; todos procuram meios
de satisfazer às suas necessidades, o que dá nascimento
a uma indústria; todos enfim são artífices das armas com
que caçam e pelejam, dos vasos em que comem e
bebem, dos aprestos com que se adornam, e até dos
túmulos em que descansam.
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268
Particularmente a cerâmica, a arte do oleiro,
oferece neste ponto um precioso ensinamento.
Encontram-se vasos por toda a parte: nos míseros
tapumes que constroem os indígenas da Austrália, para
os protegerem contra os ventos do mar, assim como nas
choças dos cafres e betjuanos, e nos wigwams dos
selvagens da América do Norte. Encontram-se vasos nas
habitações dos primeiros íncolas da Grécia, da Itália e
da Alemanha, bem como nas dos antigos americanos e
nas dos asiatas(12)
. Encontram-se vasos por toda a parte:
sobre a mesa dos sábios, no toilette das damas, nas
choupanas, nos templos, nos palácios, em todas as fases
da cultura, desde a bilha de Rebeca até o lindo
frasquinho de cristal, ou o ovóide de prata, que entorna
pingos de essência no seio da moça hodierna.
Como se vê, são fenômenos repetidos, que,
submetendo-se ao processo lógico da indução, levam o
observador a unificá-los sob o conceito de uma lei, tão
natural, como são todas as outras que se concebem, para
explicar a constante repetição de fatos do mundo físico.
Assim, pode-se falar de uma lei natural da
indústria, ou de uma lei natural do fabrico de vasos, ou
de uma lei natural do uso do fogo, tendo somente em
vista a generalidade do fenômeno, em os primeiros
momentos da evolução e nos mais separados pontos da
habitação da família humana; do mesmo modo que se
fala de uma lei natural da queda dos corpos, ou do
nivelamento das águas.
Mas nunca veio ao espírito de ninguém a singular
idéia de uma indústria, de uma cerâmica, de uma arte
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269
natural, no sentido de um complexo de preceitos,
impostos pela razão, para regularem as ações do homem,
no modo de exercer o seu trabalho, ou de fabricar os
seus vasos, ou de construir os seus artefatos. Seria esta
uma idéia supinamente ridícula.
É isto mesmo, porém, o que se dá com relação ao
direito. Como fenômeno geral, que se encontra em todas
as posições da humanidade, desde as mais ínfimas até as
mais elevadas, em forma de regras de conduta e
convivência social, o direito assume realmente o caráter
de uma lei. Mas esta lei, que se pode também qualificar
de natural, não é diversa das outras mencionadas.
Se o direito é um sistema de regras, não o é
menos qualquer mister, qualquer arte, ou qualquer
indústria humana. Se as regras do direito são des-
cobertas pela razão, não deixam de ser também oriundas
da mesma fonte as normas dirigentes da atividade do
homem em outro qualquer domínio.
A razão que entra na formação de um código de
leis, ainda que seja perfeito e acabado como o Corpus
Juris, é a mesma, exatamente a mesma, que assiste ao
delineamento de um edifício, ou à confecção de um par
de sapatos(13)
. Dizer, portanto, que o direito é um
conjunto de regras, descobertas pela razão, importa
simplesmente uma tolice, visto que se dá como
característicos exclusivo das normas de direito, o que
aliás é comum à totalidade das regras da vida social.
Assim, para limitar-nos a poucos exemplos, a
civilidade tem regras; quem se descobriu? A dança tem
regras, que as descobriu? Não há arte que não as tenha,
270
270
quem as descobriu? Ninguém ousará negar a presença da
razão em todas elas; mas também ninguém ousará
afirmar que haja um conceito a priori da civilidade, nem
um conceito a priori da dança, ou de outra qualquer
arte. De onde vem, pois, o apriorismo do direito?
A pergunta é séria. Uma razão que, por si só, sem
o auxílio da observação, sem dados experimentais, é
incapaz de conceber a mais simples regra técnica, é
incapaz de elevar-se à concepção, por exemplo, de uma
norma geral de fabricar bons vinhos, ou de preparar
bons acepipes, como pode tal razão ter capacidade
bastante para tirar de si mesmo, unicamente de si, todos
os princípios da vida jurídica?
Os teimosos teoristas de um direito natural são
figuras anacrônicas, estão fora de seu tempo(14)
. Se eles
possuíssem idéias mais claras sobre a história do tal
direito, não se arrojariam a tê-lo, ainda hoje, na conta
de uma lei suprema, preexistente à humanidade e ao
planeta que ela habita.
Como tudo que é produzido pela fantasia dos
povos, ou pela razão mal-educada dos espíritos diretores
de uma época determinada, como a alma, como os
deuses, como o diabo mesmo, do qual já houve em
nossos dias quem se aventurasse a escrever a crônica(15)
o direito natural também tem a sua história. Não é aqui
lugar próprio para apreciar o processo da formação
desse conceito, desde o seu primeiro momento na antiga
filosofia grega; mas podemos estudá-lo entre os
romanos, cujo alto senso jurídico é uma garantia em
favor dos resultados da nossa apreciação.
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Antes de tudo, é um fato incontestável que a idéia
de um direito natural foi inteiramente estranha aos
romanos, durante muitos séculos. Como todas as nações
da antiguidade, Roma partiu, em seu desenvolvimento
político, do princípio da exclusividade nacional, em
todas as relações sociais.
Mas pouco a pouco, e à medida que o povo
romano foi se pondo em contato com outros povos,
abriu-se caminho a uma ova intuição oposta àquelas
tendências de exclusivismo nacional, e como resultado
dessa intuição apareceu, na esfera jurídico-privada, o
conceito do jus gentium.
O velho direito romano, o orgulhoso jus civile
romanorum era uma espécie de muralha inacessível ao
estrangeiro. Mudaram-se, porém, os tempos, as con-
dições de existência do grande povo, e fez-se então
preciso dar entrada a novos elementos de vida. A idéia
do jus gentium foi o primeiro passo para uma
desnacionalização do direito. A exigência fundamental
do jus civile fazia depender da civitas romana a
participação de suas disposições. Era uma base muito
estreita, que só podia agüentar o edifício político de um
povo guerreiro e conquistador.
Mas essa base alargou-se, e em vez da civitas, o
senso prático de Roma lançou mão do princípio da
libertas como fundamento da sua nova vida jurídica. Já
não era preciso ser cidadão romano – bastava ser homem
livre – para gozar das franquias e proventos do direito.
Não ficou, porém, aí. A cultura romana, tor-
nando-se cultura greco-latina, pela invasão e influência
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do helenismo, cuja mais alta expressão foi a filosofia,
recebeu em seu seio grande número de idéias ent ão
correntes sobre a velha trilogia: Deus, o homem e a
natureza. Este último conceito, principalmente, mostrou-
se de uma elasticidade admirável. A filosofia de Cícero
lhe deu feições diversas. Não só a natura, mas também a
lex naturae, a lex naturalis, a ratio naturalis, a ratio
naturae, representam nos seus escritos um importante
papel.
Nas obras dos juristas posteriores estas frases
assumiram proporções assustadoras. Na falta de outro
fundamento, a natura era o último refúgio de qualquer
explicação filosófica. Não deixa até de produzir
atualmente uma certa impressão cômica o sério
inalterável, com que grandes jurisconsultos faziam as
despesas de suas demonstrações, só à custa de uma
chamada ratio naturalis(16)
.
Nada mais simples, portanto, do que marcha
evolucionária do direito, mediante o influxo da filo -
sofia, dar ainda um passo adiante e construir mais
amplas doutrinas, tomando por base o conceito da naura
hominis, de onde originou-se o jus naturale, não
somente aplicável aos homens livres, mas aos homens
em geral.
Era a última forma da intuição jurídica do povo
rei. Era um direito novo, sem dúvida, mas também um
direito de escravos. E por uma dessas notáveis coin-
cidências da história, esse direito dos pobres, dos
míseros de todo o gênero, aparecia ao mesmo tempo que
começava a ganhar terreno a religião dos desvalidos(17)
.
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Tudo isto, porém, foi resultado do espírito
particular de uma época. A desnacionalização do direito,
começada com a idéia do jus gentium e concluída com a
dos jus naturale, foi apenas aparente. A grande
naturalização de Caracalla, ou concessão da civitas a
todos os habitantes do Império, fez que os domínios
deste coincidissem com os do mundo culto de então. A
humanidade formava, segundo a frade de Prudêncio, ex
alternis gentibus uma propago. O direito romano era
direito humano. Os princípios do jus naturale, como um
direito quod naturalis ratio inter omnes homines
constituit, tiveram um valor prático. A grandeza e
unidade do Império suscitaram a idéia de uma societas
humana, à qual se aplicassem esses mesmos princípios.
A ilusão era desculpável. O que, porém, não
merece desculpa é a cegueira de certos espíritos que,
virando as costas à história e desprezando o seu
testemunho, insistem na antiga e errônea doutrina de um
direito natural.
Com efeito, na época de Darwin, ainda haver
quem tome ao sério a concepção metafísica de um
direito absoluto, independente do homem; ainda haver
quem tome ao sério os chamados eternos princípios do
justo, do moral, do bom, do belo, outros muitos
adjetivos substanciados, que faziam as despesas da
ciência dos nossos avós, é realmente um espetáculo
lastimável.
Nós temos a infelicidade de assistir a esse
espetáculo. A despeito de todos os reclamos do espírito
filosófico moderno, os homens da justiça absoluta e do s
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direitos inatos ainda ousam erguer a voz em defesa das
suas teorias. E ninguém há que os convença da
caducidade delas. É tarefa que só ao tempo incumbe
desempenhar.
Nem nós outros que os combatemos, aspiramos a
tal glória; assim como não queremos, digamo -lo fran-
camente, não queremos que se nos tenha em conta de
inovadores. A negação de um direito natural é coeva da
tese que primeiro o afirmou. Seria um fenômeno
histórico bem singular que, havendo em todos os tempos
cabeças desabusadas protestado contra as aberrações da
especulação filosófica, somente a oca teoria do direito
natural nunca tivesse encontrado barreira. Esse fenô -
meno não se deu.
Já na Grécia, e entre outros Arquelau, um jovem
contemporâneo de Heráclito, havia contestado a
procedência divina das leis humanas. Particularmente
Carnéades, o céptico de gênio, negou a existência de um
direito natural, e reconheceu somente como direito o
direito positivo. Jus civile est aliquod, naturale nullum.
Este seu princípio corresponde exatamente à intuição
dos nossos dias(18)
.
Mas a questão não está em saber se já houve na
antiguidade quem contradissesse a doutrina de um
direito estabelecido pela natureza. O que deve hoje ser
tomado em consideração, é o modo de demonstrar a
invalidade dessa mesma doutrina, são os novos
argumentos deduzidos contra ela; e isto basta para
legitimar as pretensões da teoria hodierna.
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275
NOTAS DO AUTOR
(1) Bem pudera dar-lhe o nome de filosofia do passaporte. Ela ensina com todo o sério que são três os seus problemas capitais: Que é o homem?... Donde vem ele?... E para onde vai?... São justamente os pontos mais importantes de qualquer salvo-conduto policial.
(2) Qualquer senhor, mestre ou discípulo, que não tiver cultura ou pelo menos leitura filosófica suficiente, faria bem em abster-se de dar juízos decisivos sobre tais assuntos, com que tem tido a felicidade de não estragar o seu talento. Aceite in limine, como um crente, ou rejeite in limine, como um descrente; não lhe cabe outro direito.
(3) O autor destes estudos ousa perguntar: se os novos Estatutos das Faculdades de Direito exigem como preparatório o estudo da zoologia, se a zoologia está cheia de nomes de Darwin e Haeckel, se a filosofia, sem abdicar a sua independência, procura utilizar -se dos dados zoológicos, naturalísticos, em geral, não é pôr-se de acordo até com o pensamento do governo, fazer preceder ao estudo do direito essa nova ordem de idéias?...
(4) Ainda outra analogia, que se pode tirar da definição do espaço dada por Herschel: “space in its ultimate analysis is nothing but an assemblage of distances and directions”. A sociedade será também, em última análise, outra coisa mais do que uma reunião de distâncias e direções? Que é, no fundo do seu conceito, a chamada sociedade humana, senão isto mesmo?
(5) Os fabulistas do direito natural mal compreendem que fazem dele um irmão dos frutos que se colhem nas selvas, ou do ouro e prata que se extraem das minas, ou até dos mariscos que se apanham na praia!... O direito natural vem a ser, segundo eles, o direito sem mistura de realidade positiva, considerado em sua pureza
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original; uma espécie de direito em pó ou de direito em barra, que vai sendo pouco a pouco reduzido a obra... Não há maior contra-senso.
(6) Não vão porventura supor que fazemos o direito irmão da música. É uma simples comparação de que nos servimos para esclarecer o nosso pensamento. Entretanto, permita-se-nos observar que não deixaria de ser um problema histórico muitíssimo importante a indagação das causas, pelas quais o povo do Corpus Juris, o povo donde saíram os Pompônios e os Paulos, passou a ser o povo dos Palestrinas, dos Lattis, dos Cherubinis e outros. Mas repetimos que não queremos igualar o direito à música ou religião. Os ilustres voluntários da ignorância, que riem-se de tudo que eles não compreendem, não desperdicem o seu desdém; reflitam um pouco e verão que a coisa é muito simples.
(7) Para maior clareza, lembramos ainda as expressões corriqueiras – órgão da justiça pública, funcionário público, função pública. Os espíritos desprevenidos acharão nelas mais um argumento em favor de nossas idéias.
(8) Estas idéias terão mais largo desenvolvimento no programa número 13, onde se trata do direito como uma função da vida nacional. O leitor inteligente não precisa de maiores minúcias para compreender a justeza das expressões do programa. No entanto importa observar que podíamos ir muito adiante, e, além de uma fisiologia e morfologia, admitir até uma mecânica do direito. Isto seria de causar espanto; mas nós perguntaríamos apenas: que é uma forca ou gu ilhotina: Um instrumento jurídico, ninguém contestá-lo-á; porém de que natureza? A resposta é decisiva.
(9) Se o leitor entende, tanto melhor para si; caso, porém, não entenda, não é culpa nossa. Talvez nos perguntem: quem é esse senhor Eduard Strasburger? Só podemos responder que não é lente da nossa Faculdade, nem candidato à deputação geral; mas é professor universitário de Jena, e o escrito dele, ao qual nos
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reportamos, intitula-se: Uber die Bedeutung phylogenetischer Methode für die Erforschung lebender Wesen.(*)
(*) A significação do método filogenético na pesquisa da essência da vida. (N. do E.).
(10) Consultem-se as obras de Haeckel, principalmente a História da Criação e os Alvos e Caminhos da História Evolucional. Aí melhor compreender-se-á o profundo sentido das ominosas expressões – ontogenia e filogenia.
(11) Os doutores que pretendem felicitar a mocidade brasileira com a conservação dos cacaréus de direitos naturais, direitos inatos, originários, etc., têm um exato pressentimento da própria derrota, quando se insurgem contra estas e outras aplicações de dados naturalísticos à esfera jurídica, pois elas põem bem patente a inanidade das velhas doutrinas. E é digno de nota que ainda hoje há quem fale com todo o sério de um direito primigênio, sem refletir que esta última expressão foi tomada de empréstimo à história natural, em cuja tecnologia latina é que se encontra a frase elephas primigenius. Mas quão distante o sentido de uma da outra expressão! Aqui significando um dos maiores fósseis, um quadrúpede da época diluvial, cuja espécie desapareceu; ali, porém, querendo significar um primeiro direito, um direito gerador de todos os direitos humanos, o direito da liberdade, que aliás ainda não é de todo nascida, e que na genealogia dos direitos segundo promete a história, há de ser o último nato. Que disparate de tais senhores!
(12) Gustav Klemm – Westermann’s Monatshefte – VI, 259.
(13) Reflitam, e verão que a verdade é esta. A razão é tão necessária para escrever-se, por exemplo, um compêndio de direito natural, como é necessária para fazer-se, por exemplo, um par de botas, ou um par de tamancos. A prova é que se os chamados animais irracionais não têm compêndios de direito natural, também não têm tamancos nem botas.
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(14) Vale a pena fazer aqui a seguinte observação. O leitor note bem: ao profundo conhecedor do direito civil, dá-se o nome de civilista; ao do direito criminal, o nome de criminalista; ao do direito público, o de publicista; ao do comercial, o de comercialista; etc., etc.; que nome dá-se, porém, ao sábio do direito natural? A nossa língua não o conhece. Isto é significativo.
(15) Por exemplo, Die Naturgeschichte des Teufels(*) – von Dr. Karsch.
(*) A História Natural do Diabo. (T. do E).
(16) Basta lembrar os seguintes textos: ...naturalis ratio
efficit (Dig. 41, i-L, 7, § 7); naturalis ratio permittit
(Dig. 8, 2-L, 8); naturali ratione communist est (Dig 9,
2-L, 4); naturali ratione pertinet (Dig. 13, 6-L, 18, § 2);
naturalis ratio suadet (Dig. 3, 5-L, 39); naturali ratione
inutilis est (Dig. 44, 7-L, 1, § 9) ... e assim inúmeros
outros.
(17) Releva aqui dar conta de um fato pouco notado. O
primeiro protesto contra a desnaturalidade da escravidão
não partiu de filósofos, nem de fundadores de religiões,
porém de juristas. Foram decerto os jurisconsultos romanos
que, ao fecharem o período do seu maior esplendor, deram
àquela desnaturalidade um fundamento teórico,
estabelecendo como princípio que, segundo o jus naturale,
todos os homens são livres e iguais; pelo que a escravidão é
contra o direito. Princípio este atualmente estéril, mas
naqueles tempos fecundo e admirável.
(18) O estudo superficial e quase nulo, que s costuma
fazer da filosofia grega não dá uma idéia exata do
importante papel histórico do cepticismo. Entretanto os
cépticos eram todos espíritos superiores, os quais
rompendo com as tradições recebidas declaravam guerra
de morte às verdades convencionais do seu tempo. E a
prova do quanto eles valiam, é que a própria filosofia de
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Sócrates, propondo-se combater o cepticismo dos
sofistas, acabou por destruir as bases da velha intuição
filosófica, de um modo ainda mais decisivo, do que
fizeram-no os sofistas mesmos. Os cépticos eram antes
de tudo homens sinceros, que não acreditavam nas
frivolidades então ensinadas, e tinham a coragem de o
declarar. Carnéades foi um desses.
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NOTAS DOS ORGANIZADORES
DA PRESENTE EDIÇÃO
A – O tema da dissertação era o seguinte:
“Conforma-se com os princípios da ciência social a
doutrina dos direitos naturais e originários do homem?”.
O manuscrito consta das páginas 61v. a 65 do
correspondente livro de registro, no arquivo da
Faculdade. Foi também divulgado na “Revista
Acadêmica” daquele estabelecimento de ensino. Seu
autor usou-a como “introdução” ao volume Menores e
loucos em direito criminal, tanto na primeira (1884)
como na segunda edição (1886).
B – Apareceu originariamente, na forma de
artigos, em diversos números do “Diário de
Pernambuco”, do mês de junho, figurando também na
primeira edição de Questões Vigentes de Filosofia e
Direito (1888).
C – Refere-se ao artigo “Ensaio de pré-história da
literatura clássica alemã”.
D – Idéias desenvolvidas no artigo “Traços de
literatura comparada no século XIX”.
281
281
E – Ao reeditar, no livro Estudos Alemães (2ª
edição, 1892), este ensaio, Sílvio Romero adicio nou-lhe
a seguinte nota: “Releva ponderar que o que o autor diz,
neste período, de A. Comte, reporta-se à primeira fase
da evolução deste filósofo, porquanto, na Política e na
Síntese, ele mudou de pensar. Este assunto de Tobias
Barreto é, na opinião dos competentes, o seu mais
completo trabalho, e das melhores coisas escritas sobre
o assunto até hoje. É de 1884”.
F – Divulgado por Sílvio Romero que, ao fazê-lo,
informa: “Estes apontamentos para uma lição num dos
cursos da Faculdade de Direito são de 1885” .
G – Os cinco capítulos iniciais foram divulgados
no “Diário de Pernambuco” (agosto, 1884). A parte
restante foi elaborada durante o ano de 1887, segundo se
pode ver da correspondência que o autor mantinha com
Sílvio Romero. Tobias Barreto incluiu-o nas Questões
Vigentes (1888).
H – Para o perfeito entendimento da interpretação
do kantismo por Tobias Barreto, transcrevemos a seguir
o capítulo dedicado ao filósofo de Koenigsberg no
trabalho “Traços de literatura comparada do século
XIX” – elaborado em 1887, a partir de anotações para
um curso sobre o tema, ministrado no ano anterior –
divulgado por Sílvio Romero na segunda edição dos
Estudos Alemães. Apareceu inicialmente, em artigos
parcelados, no “Jornal do Recife”.
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282
Compõe-se o estudo de 10 capítulos e abrange
113 páginas. Não chegou a ser completado. O confronto
será estabelecido entre as literaturas alemã, francesa,
inglesa e italiana. Seu conceito de literatura é bem mais
amplo que o aceito comumente. Diz: “A literatura, como
ciência, é a história da vida espiritual de uma nação,
total ou parcialmente considerada, no que esta vida
encerra de mais nobre e elevado, acima dos interesses
materiais, pela inspiração dos gênios, pelo esforço dos
talentos”. Na verdade, a tarefa a que se lança é a de
delimitar os aspectos principais da história da cultura
daquelas nações européias.
O capítulo que a seguir se transcreve vem
precedido de uma esquematização dos principais fatos
históricos e culturais da época moderna, na Alemanha,
que divide em nove períodos. No sétimo (1720/1770),
apenas aponta os fatos mais importantes, como por
exemplo a criação da Universidade de Gotinga (1735).
Somente a partir do oitavo período (1770/1830), é que
procederá à análise mais detida de suas principais
figuras: Lessing, Herder, Klopstock e Wieland.
Eis o seu texto integral:
IV
Ao lado de todos estes egrégios representantes do
heroísmo intelectual da Alemanha levanta-se também a
283
283
não menos esplendida e singular figura de Emanuel
Kant(1).
Parece à primeira vista que a apreciação de um
sistema filosófico, ainda limitada aos seus princípios,
aos seus pontos capitais, não entra de pleno direito no
quadro de um ensaio de história literária. Mas dado
mesmo que assim fosse, o que não é aceitável, haveria
mister de abrir aqui uma exceção a respeito do filósofo
genial de Koenigsberg, cuja doutrina foi uma espécie de
roble viçoso, com o qual abraçou-se e confundiu-se a
hera do pensar e do poetar alemão, desde o fim do
passado até muito além do primeiro quartel do século
vigente.
“Um dos mais maravilhosos paralelos, que a
história pôde mostrar-nos, diz Johannes Scherr, é o que
se dá entre os dois seguintes fatos.
Ao passo que além do Reno começava a pôr-se
em cena a tragédia revolucionária, cá bem longe, em
uma velha cidade da Alemanha, no gabinete de estudo
do mais pacífico dos professores, excetuava-se também
a mais ousada revolução do pensamento.
(1) Para que não me julguem exagerado, por causa desse
heroísmo intelectual , que confiro à pátria de Kant, seja-me lícito
observar que o grande romancista inglês Eduardo Bulwer,
dedicando aos alemães uma das suas obras, chamou-os um poco de
pensadores e de críticos. Ainda mais: o notabilíssimo escritor
americano Ralph Waldo Emerson, agradecendo a Augusto Auerbach
a lembrança que tivera de traduzir em alemão os seus Ensaios, disse
que muito se honrava de ver as suas idéias expostas na língua da
mais inteligente das nações... the most intellectual of nations. – Já
se vê que estou em boa companhia.
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284
Um homenzinho, de aparência vulgar, tímido e
cauteloso, sempre lépido e bem penteado, com uma
regularidade de vida, que tocava à monotonia do
relógio, tão embebido nas suas meditações, que nunca
avançou um passo fora dos subúrbios da sua terra natal,
este homem fez surgirem idéias, que escalaram o céu e
organizadas no sistema do idealismo crítico transtor-
naram a concepção teológica do mundo(2)...”
Entre todos os sistemas de filosofia nenhum nem
tão pouco de comum com os precedentes, como o
sistema kantesco. Nunca a linha de separação entre o
antigo e o moderno foi tão clara e vivamente acentuada.
Quaisquer que sejam as comparações que se façam, as
afinidades que se descubram, a antítese é sempre maior
do que a analogia.
É certo que também Bacon e Descartes, os dois
fundadores da filosofia moderna, mantêm-se com o
passado em decidido antagonismo, ambos querem
reformar a obra da ciência, recomeçando-a, fazendo-a
voltar sobre seus passos; mas afinal o que eles
produzem, encontra nos velhos tempos uma espécie de
parentesco.
A explicação mecânica de Bacon, Descartes,
Spinoza, em oposição à que se funda sobre o conceito
das causas finais, acha exemplos na antiguidade. A
antinomia entre a intuição mecânica e a intuição
teleológica não é nova.
(2) Schiller und seine Zeit. (Schiller e seu tempo), pág. 397.
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Basta lembrar que Bacon mesmo, tão inimigo da
antiga filosofia, torna-se entretanto defensor da doutrina
atomística de Demócrito; e Leibnitz, que sustenta o
princípio da finalidade, não faz mais do que continuar
Platão e Aristóteles.
É isto, porém, o que não se dá com Kant. Ele não
é reformador, nem aperfeiçoador de nenhum sistema
precedente. Para ele não se trata de saber, se a verdade
está no mecanismo, ou no finalismo do universo. A sua
questão é muito diferente, quer no modo de propô-la,
quer no modo de resolvê-la. O que importa,
principalmente, é compreender com exatidão este novo e
diferencial da revolução kantesca.
Antes de tudo, é inegável que a filosofia só pode
ter uma feição definida, como ciência, se ela se
distingue claramente de todas as outras, se ocupa-se de
assuntos de que as outras se não ocupam, que as outras
lhe não disputam. Só assim o seu domínio está seguro e
fundada a sua posição. Esta firme posição, ela não
chegou a assumir, senão por intermédio de Kant.
A filosofia antiga e a teologia medieval podiam
falar de boca cheia. As ciências ainda eram menores e se
achavam sob tutela. Mas desde a Reforma e as grandes
descobertas, que a precederam, elas emanciparam-se
depressa, e a filosofia ficou colocada na dura alternativa
de entregar-se-lhes de corpo e alma, ou de morrer
esuriente, inanida, à falta de alimentação.
Kant achou o meio de salvá-la; foi dar-lhe um
novo objeto, um objeto próprio, um objeto seu. Est e
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objeto é o conhecimento mesmo, estudado em sua fonte;
é a faculdade de conhecer, sua extensão e seus limites.
Eis aqui, pouco mais ou menos, os traços gerais
do kantismo. Todo e qualquer conhecimento compõe-se
de matéria empírica e de forma intelectual, aplicada a
essa matéria; não há, pois, conhecimento algum tirado
do puro pensamento; conhecer o que está acima dos
sentidos, entra no reino da impossibilidade. Não passa,
portanto, de um tatear nas trevas, quando deixamos a
esfera dos fenômenos, para elevarmo-nos ao mundo
hipersensível.
As nossas idéias desse mundo são quimeras; são
afirmações caprichosas sobre coisas, que tanto se podem
provar que existem como que não existem(3).
O alvo e o resultado da Crítica da Razão Pura
foram expressos pelo próprio Kant em uma carta a seu
amigo Tieftrunk: “Objetos sensíveis, nós só os
conhecemos como eles nos aparecem, e não como eles
são em si mesmos, objetos supra-sensíveis não
(3) É a bela teoria, que o filósofo qualificou de ... tética e
antitética da razão pura. Infelizmente não foi para nós que Kant operou tal revolução. A respeito de filosofia ainda estamos em
plena Idade Média, o atqui e o ergo da escolástica fazem todas as
nossas despesas de argumentação. Ainda hoje, até ilustres
professores do ensino superior oferecem como teses, seriamente
discutíveis, verdadeiros motes ou bouts-rimés filosóficos, para os
estudantes, para os doutores mesmos glosarem, e discorrerem, quer
neste, quer naquele sentido, ora no pró, ora no contra, com o
mesmo senso da verdade e profunda observação dos fatos, com que,
por exemplo, um exímio poeta dos nossos dias, o vate de Jaboatão,
sobre o mote, emblema da simpatia, construiu aquela mimosa
décima, em que vem mencionada a espada da sua bola. É triste, mas é verdade.
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constituem para nós matéria de conhecimento”. É uma
formal condenação da metafísica, mas da metafísica
como ciência, e não como disposição natural
(Naturanlage) e indestrutível do espírito.
De tudo isto se depreende que Kant foi realmente
o Copérnico da filosofia; não o Copérnico do erro,
segundo a tola expressão de um Sr. Edouard Manec,
tradutor francês da Filosofia Fundamental de Balmés,
mas o descobridor da verdadeira arquitetônica do
pensamento humano. Há somente a lastimar que o
filósofo tenha sido muitas vezes combatido por gente
que nunca o leu.
Os teólogos, sobretudo os fedeístas de grande e
de pequeno estilo, ainda continuam a fundibular contra
ele, na errônea persuasão de apedrejarem assim o maior,
o mais perigoso racionalista, quanto aliás é certo que foi
justamente Kant, quem matou por uma vez o racio -
nalismo de todos os tempos e de todos os tamanhos.
A proposição é nova e arriscada; mas basta
refletir um pouco, para compreender a sua exatidão.
Com efeito, nada mais simples: se a pura razão, sem
base experimental, não é capaz de produzir senão
quimeras, com que direito se fala de um conhecimento
racional de Deus e das coisas que lhe dizem respeito,
desde que Deus não é objeto sensível, e como tal, tanto
pode ser afirmado, como pode ser negado, com
argumentos igualmente lógicos, igualmente vigorosos?
Quem quer, pois, que sinta a necessidade de um Deus
pessoal, de uma vida ulterior, e todos nós sentimo -la,
não tem de apelar para a sua razão, que no caso é nula,
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mas somente de atirar-se nos braços da fé que vivifica,
nos braços de uma religião, de uma Igreja, cujo credo
melhor corresponda a essa necessidade.
A emenda que o filósofo, no seu livro posterior,
segundo a opinião corrente, parece ter feito em sua
primit iva doutrina, não é uma tal. Entre as visões
quiméricas da razão pura e os postulados da razão
prática não vai uma longa distância; e afinal, tudo bem
examinado, o resultado é que há tão pouco direito de
afirmar-se, só em nome da razão, um Deus remunerador,
condição e garantia de eterna felicidade, como há de
admitir-se, pelo mesmo processo, um criador, uma causa
suprema do universo. Para chegar a esta altura e nela
permanecer tranqüilo, sem correr o risco de entontecer e
cair, o homem necessita de tomar outro caminho.
Já se vê que o sistema de Kant, conforme se
deduz de um estudo mais sério das suas bases, não
prestou, nem podia prestar apoio algum às chamadas
teorias racionalísticas. Certamente as suas idéias, como
disse Johannes Scherr, desbarataram a intuição teológica
do mundo; mas isto só é exato, e só deve compreender -
se no sentido da teologia como ciência, não menos
fantasmagórica e impossível do que a metafísica, que é a
teologia da razão, como a teologia é a metafísica da fé.
A Crítica da Razão Pura, o primeiro manifesto
revolucionário do filósofo, saiu à luz em 1781, um mês
depois da morte de Lessing (15 de fevereiro), e dois
meses depois da primeira representação do Idomeneu, de
Mozart, ópera em que o jovem componista (25 anos)
rompera com as tradições recebidas. Coincidência
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notável: nesse ano também surgiu Le mariage de
Figaro, de Beaumarchais, la révolution déjà en action,
como mais tarde exprimiu-se Napoleão a respeito da
célebre comédia, que entretanto só começou a ser
representada em 1784.
Era o tempo do maior fulgor do classicismo
alemão. Winkelmann, que morrera em 1768, estava na
ordem do dia.
Em 1787 apareceu o Ardinghello, de Heinse; em
1788, os Deuses da Grécia, de Schiller, e a Crpítica da
Razão Prática, de Kant; em 1789, Os Artistas, de
Schiller; em 1790, as Elegias Romanas, de Goethe, e a
Crítica do Juízo, de Kant; em 1795, os Prolegômenos,
do mesmo Kant, bem como a Educação Estética, de
Schiller; e assim por diante até Hermann e Dorothéa, de
Goethe (1797), e outras criações do gênero. A seriação
diz tudo. Era uma bela embriaguês; as melhores
esperanças da humanidade tinham acordado vívidas e
impetuosas.
Convém agora apreciar o modo por que os
contemporâneos receberam a filosofia de Kant.
“Esta nova filosofia, escrevia Staendlin em 1784,
exerceu uma encantadora influência sobre todas as
ciências e ganhou amigos e sectários entre aqueles
mesmos, que não se consagram a estudos filosóficos.
Ela é de tal natureza, que ainda em um remoto futuro
novos germes de conhecimento daí se podem
desenvolver”.
No mesmo ano dizia também Fichte: “A filosofia
de Kant é por hora ainda uma pequena semente; porém
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esta semente há de e deve tornar-se uma árvore capaz de
cobrir com a sua sombra a humanidade inteira”. O
vaticínio cumpriu-se.
“As idéias fundamentais da filosofia ideal, é
Schiller quem fala, em 1805, são um eterno tesouro; e
só por causa delas devemos julgar-nos felizes de ter
vivido nesta época”.
“A grandeza e a força da fantasia, disse então W.
de Humboldt, comentando as palavras de Schiller, a
grandeza e a força da fantasia existem em Kant, ao lado
da profundeza e rigor do pensamento”.
Da harmonia de todos esses nobres espíritos, só
um destoou, com desvantagem para o seu renome: foi
Herder. Entretanto Kant teve a singular fortuna de que
depois, logo depois do seu alto feito filosófico, não
houve, em geral, pensador notável, que não quisesse
pôr-se de acordo com ele, subordinar-se, filiar-se a ele.
Reinhold, o velho, foi que tomou a frente. A
teoria da ciência (Wissenschaftslehre), de Fichte, veio e
completou o que Reinhold começara. Da teoria da
ciência saiu imediatamente a filosofia da natureza de
Schelling, e desta desenvolveu-se o sistema de Hegel.
Jena foi o ponto de partida da evolução kantesca.
Ali se acharam numa mesma quadra, como professores
universitários, e professores de filosofia, primeiramente:
Schiller, Fichte, Schelling; depois, Schelling, Hegel,
Fries; depois: Hegel, Fries e Oken.
Os filósofos que seguiram-se a Kant, podem
dividir-se em quatro classes. A primeira é a dos
kantistas pur saang, que agarraram-se à letra do mestre
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e tomaram a crítica da razão por um sistema completo
da mesma razão. A segunda é a dos que procuraram tirar
todas as conseqüências do kantismo; a esta pertencem
Fichte, Schelling e Hegel. A terceira é a dos que
trataram de acomodar essa filosofia às necessidades da
vida, como Reinhold e Jacobi. Na quarta, finalmente,
estão compreendidos os semikantistas, que buscaram
abrir novos caminhos, um pouco desviados da direção
do chefe. Foram eles: Fries, Herbart, Shopenhauer,
Benecke, Reinhold Filho, Trendelenburg e outros
modernos.
Destas quatro classes, só a segunda e a quarta
mostraram-se fecundas, e foram além da época do seu
aparecimento.
Os kantistas pur sang não tiveram descendência
filosófica. Os da terceira classe, Reinhold e Jacobi na
frente, posto que se entregassem à popularização do
sistema, não puderam todavia levar muito longe os
resultados dos seus esforços.
A razão disto está em que Reinhold havia
recebido uma educação jesuítica. Ele compreendeu e
procurou desenvolver a filosofia do mestre, no sentido
de uma teoria religiosa, ou uma espécie de religião
racional.
Jacobi, porém, fez-se medianeiro entre o seu
tempo e as idéias kantescas. O seu mérito consiste em
ter promovido o reconhecimento dessas idéias e a sua
propaganda em mais largos círculos. Mas teve medo de
chegar até os extremos que a lógica exigia.
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Todavia estes dois popularizadores prepararam o
terreno, em que os kantistas sistemáticos e conseqüentes
deviam lançar a semente frutífera. Destarte, quando
Kant morreu (1804), já a sua filosofia, encarada
sobretudo pelo lado prático, a sua teoria da virtude, o
imperativo categórico do dever, tinham ganho a maior
influência. A prova é que três anos depois da morte do
grande pensador (1807), o seu discípulo Fichte, nos
famosos Discursos à nação alemã, já encontrava um
povo predisposto para entusiasmar-se e transformar-se
por força de tais idéias.
E aqui releva tomar nota de um fenômeno
excepcional. Fichte, que foi e ainda hoje é considerado
o mais difícil, o mais obscuro dos filósofos alemães, foi
também ao mesmo tempo o mais claro, o mais
convincente, o mais popular dos oradores dessa nação.
A antítese é singular, mas não deixa de ser
explicável. Como filósofo, Fichte teve a pretensão de
dar mais largas dimensões ao kantismo; o resu ltado foi
torná-lo menos puro e menos acessível a inteligência
geral. Como orador, porém, ele não fazia mais do que
tirar, diante da miséria nacional, os corolários práticos
do imperativo categórico de Kant, que já era então bem
comum entre as classes cultas do país.
Além disto, é bom não esquecer que a eloqüência
está sujeita a condições cronológicas em muito maior
grau do que a poesia e a música.
Demóstenes, S. Paulo, Savonarola, Lutero,
Bernardino Ochino da Siena, Mirabeau, etc., etc., foram
todos produtos da sua época, dos sucessos que nela
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influíram, dos fatores que a determinaram. Fora daí, tais
homens teriam sido impossíveis. Mas esses sucessos e
esses fatores não se evocam à vontade. Eis a razão por
que, em geral, a oratória da atualidade não tem mais o
sério e a força de outrora. O orador hodierno, o grande
orador mesmo, e eu só me refiro aos grandes,
assemelha-se a um genial tocador de viola; admirável,
estupendo, sublime, mas sempre anacrônico, sempre
fora de seu tempo, e como tal um pouco ridículo.
A Fichte não faltaram as condições necessárias
para o desenvolvimento da verdadeira eloqüência. Era o
estado excepcional da sua nação. E é por isso que os
Discursos constituem um feito heróico: levantaram-na
do abatimento e humilhação em que se achava. A
palavra do orador contribuiu para que em 1813 se
vingassem as afrontas dos anos anteriores.
Os Discursos foram proferidos em Berlim, onde
Fichte morreu em 1814, passando logo depois (1818) a
sua cadeira de professor da universidade a ser ocupada
por Hegel. Desde então o hegelianismo começa a ganhar
uma certa preponderância, e torna-se filosofia oficial.
Quanto a Kant, resta-me observar que poste-
riormente à sua obra capital, ele não foi sempre fiel a si
mesmo, sobretudo nos pequenos escritos, como Zum
ewigen Frieden(*) (1796), Metaphysische Anfangs-
gruende der Rechtslehre(**
) (1796), Streit der
Fakultaeten(***
) (1798), etc., etc., nos quais a razão re-
(*) Sobre a paz perpétua. (T. do E.).
(**) Fundamentos metafísicos da teoria do Direito. (T. do E.). (***) Luta das Faculdades. (T. do E.).
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presenta, às vezes, um papel, que não está muito de
acordo com os princípios da Crítica.
Mas isto se explica, não só como um efeito da
velhice, mas também como resultado do fanático
entusiasmo, de que o filósofo se deixou possuir pela
revolução francesa, a ponto de pretender pôr a sua
filosofia a serviço das chamadas idéias de 89, que aliás
são outras tantas afirmações gratuitas, em frente de
outras tantas gratuitas negações.
Por exemplo: o domínio dos pretendidos dir eitos
eternos, absolutos, inalienáveis, imprescritíveis , e como
quer que mais se qualifiquem, entra no reino do
hipersensível, não pode ser matéria de conhecimento.
Como foi, pois, que Kant caiu na contradição de querer
dar uma aparência filosófica a esses e quejandos
produtos abortivos do espírito revolucionário? São
fraquezas humanas.
Felizmente para ele, a posteridade já não lê
semelhantes desvarios de um septuagenário cansado e
aborrecido da brutal reação, que o sucessor de Frederico
II, fizera praticar-se contra as luzes e as generosas
tendências de período anterior, e continua a ligar o seu
nome e a sua glória quase exclusivamente à Crítica da
Razão.
Em todo o caso é certo o que disse Hermann
Hettner, que a palavra de Kuehne sobre Lessing aplica -
se a Kant com igual direito: “voltar a ele é um
progresso”.
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I – Escrito especialmente para figurar no livro
Questões Vigentes de Filosofia e Direito , cuja
impressão começou no início de 1887 para só se achar
concluída em junho do ano seguinte.
J – Refere-se à primeira edição de Questões
Vigentes, tendo em vista o capítulo III das “Variações
anti-sociológicas”.
L – Ao incluir a “Recordação de Kant” na edição
dos Estudos Alemães, que promoveu em 1898, Sílvio
Romero acrescentou-lhe a seguinte nota: “Este artigo, de
1887, assim como o seguinte, “A irreligião do futuro”,
de 1888, e mais os dois: “A evolução emocional e
mental do homem” (de 1884), e “Variações anti-
sociológicas” (1887), devem ser considerados a
profissão de fé última do pensador sergipano”, repetindo
a sua nota inclusa na edição do mesmo volume em 1892,
M – Elaborado, em 1888, para o livro Questões
Vigentes de Filosofia e Direito.
N – O artigo citado no parágrafo anterior e
indicado em nota denomina-se “A religião perante a
psicologia” e figura na Parte I deste volume. Sobre esse
estudo, dedicado à análise do livro La Religion de
Vacherot, Sílvio Romero deixou-ns a seguinte
indicação: “É trabalho capital na vida intelectual de
Tobias Barreto. Por três vezes diversas, e com longos
intervalos, ele voltou ao problema religioso, e sempre se
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reportava àquele estudo: em 1878, nas notas ao
“Discurso em Mangas de Camisa”; em 1881, nos
“Traços Sobre a Vida Religiosa no Brasil”, e,
finalmente, neste estudo sobre Guyay, em 1888”.
O – Sílvio Romero informou haver encontrado as
anotações para aulas – que divulgou com o nome de
“Introdução ao Estudo do Direito” – entre os papéis de
Tobias Barreto que chegaram às suas mãos. Apesar de
que vários trechos são tomados aos ensaios “Variações
anti-sociológicas” e “Nova intuição do direito”, decidiu
divulgá-las por achar que continham “páginas intei-
ramente novas, que deviam aparecer, que não era lícito
ocultar, por um lado, e, por outro, não nos atrevemos a
alterar o trabalho do autor, fazendo-lhe cortes”. Ao
incluí-lo na edição que promoveu dos Estudos de
Direito, Sílvio Romero não indicou a data de sua
elaboração. A julgar pelo teor das idéias, deve ter sido
em 1887/88, quando ainda desenvolveu intensa
atividade e acalentou ambiciosos planos em matéria
editorial.