Ética como discurso da ação

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1 ÉTICA COMO DISCURSO DA AÇÃO 1 “As ações de um homem são a verdadeira medida das suas palavras; o testemunho de sinceridade da intenção voluntária é o começo do agir” (Paul Ricoeur, O Discurso da Ação, p. 96). Sérgio Dela-Sávia 2 Resumo: Este artigo pretende discutir os elementos implicados na análise ética da ação, enquanto discurso da ação significativa, buscando distinguí-la do juízo moral, entendendo este como a qualificação imediata da ação em termos de bem e mal, certo e errado. Para tanto, seguiremos algumas das análises e descrições de Paul Ricoeur acerca do discurso da ação. Palavras-chave: ação – ética – moral – intencionalidade 1. O horizonte da reflexão ética O eixo da ética é, desde sua origem grega, a ação. Por nascer no seio de uma filosofia diga-se, de um pensamento que não se compreende adequadamente se dele se abstrai seu caráter eminentemente político 3 a ética marcaria decisivamente a história do pensamento ocidental como filosofia da ação (RICOEUR, 1988, p. 10) 4 . Paul RICOEUR, no entanto, em sua obra O Discurso da Ação, faz preceder a ética, como discurso da ação, de uma descrição e análise do discurso da ação, enquanto discurso que diz o fazer. Assim, seguindo o filósofo em alguns pontos de sua análise da ação, procuraremos aqui, distintamente de RICOEUR, indicar brevemente a estrutura da análise ética da ação, a 1 Artigo publicado na Revista Ética Hoje. Brasília: Universa, 2002, p. 81-93. 2 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. 3 Cornelius CASTORIADIS, em uma conferência sobre o propalado adágio heideggeriano que afirma o “fim da filosofia”, considera precisamente contra Heidegger que “uma ‘interpretação’ da filosofia grega que ignora sistematicamente o fato de que a filosofia nasceu na e pela polis, e faz parte do mesmo movimento que criou as primeiras democracias, está condenada a uma doença incurável” (1992, p. 240-241). 4 Vale conferir a exposição fenomenológica do ethos do Prof. Henrique C. de LIMA VAZ (1993), em todo o capítulo primeiro.

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Este artigo pretende discutir os elementos implicados na análise ética da ação, enquanto discurso da ação significativa, buscando distinguí-la do juízo moral, entendendo este como a qualificação imediata da ação em termos de bem e mal, certo e errado. Para tanto, seguiremos algumas das análises e descrições de Paul Ricoeur acerca do discurso da ação.

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    TICA COMO DISCURSO DA AO1

    As aes de um homem so a verdadeira medida das suas palavras; o testemunho de sinceridade da

    inteno voluntria o comeo do agir (Paul Ricoeur, O Discurso da Ao, p. 96).

    Srgio Dela-Svia2

    Resumo: Este artigo pretende discutir os elementos implicados na anlise tica da ao, enquanto discurso da ao significativa, buscando distingu-la do juzo moral, entendendo este como a qualificao imediata da ao em termos de bem e mal, certo e errado. Para tanto, seguiremos algumas das anlises e descries de Paul Ricoeur acerca do discurso da ao.

    Palavras-chave: ao tica moral intencionalidade

    1. O horizonte da reflexo tica

    O eixo da tica , desde sua origem grega, a ao. Por nascer no seio de uma filosofia

    diga-se, de um pensamento que no se compreende adequadamente se dele se abstrai seu

    carter eminentemente poltico3 a tica marcaria decisivamente a histria do pensamento

    ocidental como filosofia da ao (RICOEUR, 1988, p. 10)4.

    Paul RICOEUR, no entanto, em sua obra O Discurso da Ao, faz preceder a tica,

    como discurso da ao, de uma descrio e anlise do discurso da ao, enquanto discurso que

    diz o fazer. Assim, seguindo o filsofo em alguns pontos de sua anlise da ao, procuraremos

    aqui, distintamente de RICOEUR, indicar brevemente a estrutura da anlise tica da ao, a

    1 Artigo publicado na Revista tica Hoje. Braslia: Universa, 2002, p. 81-93. 2 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. 3 Cornelius CASTORIADIS, em uma conferncia sobre o propalado adgio heideggeriano que afirma o fim da filosofia, considera precisamente contra Heidegger que uma interpretao da filosofia grega que ignora sistematicamente o fato de que a filosofia nasceu na e pela polis, e faz parte do mesmo movimento que criou as primeiras democracias, est condenada a uma doena incurvel (1992, p. 240-241). 4 Vale conferir a exposio fenomenolgica do ethos do Prof. Henrique C. de LIMA VAZ (1993), em todo o captulo primeiro.

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    fim de estabelecermos alguns elementos conceituais para a distino do julgamento moral da

    ao.

    De incio, diremos que uma anlise tica da ao no se confunde com um julgamento

    moral da ao. Tal afirmao obriga-nos a uma preciso conceitual preliminar. Assumimos

    que a tica, no sentido delineado por Jean LADRIRE (2001), distingue-se da moral por

    circunscrever o campo da ao humana, enquanto esta ao no condicionada pelo curso

    natural das coisas, ou seja, o sentido da ao remete dimenso da autodeterminao do

    sujeito, capaz, portanto, de decidir-se, de engajar uma reflexo sobre o melhor curso de ao a

    ser adotado. A moral, diferentemente, situa o sujeito no horizonte de uma ordem boa

    universalmente reconhecida e que, por fora de um dever, sobredetermina seu agir.

    No sentido marcado pela filosofia de Immanuel Kant (1724-1804) a autodeterminao

    do sujeito no se efetua de modo imediato, mas sempre um dever ser, sempre uma

    exigncia que impele a conscincia subjetiva jamais conforme existncia emprica do eu

    a tornar-se real. Como bem anota FLEISCHMANN: A moral no seno uma

    confrontao perptua entre o homem tal qual e este mesmo homem tal qual deve ser, um

    desacordo profundo entre ser e dever ser. O homem tal qual , o indivduo; tal qual deve ser,

    a lei moral universal (1964, p. 118. Em grifo no original).

    Onde ento ambas se encontram? Donde vem a proximidade e origem da confuso

    entre moral e tica? Sua raiz etimolgica comum o princpio do problema. tica, no

    grego (ethos), significa costume, assim como no latim, moral (mos: singular; e mores: plural)

    significa, igualmente, costume. Costume significa aqui o que podemos chamar de um

    universal simblico, institudo social e historicamente, isto , costume indica o horizonte da

    vida em comum que abriga tudo aquilo que confere vida de um povo sua significao,

    legitimidade e justificao histrica. A palavra grega para este universal simblico ethos.

    O ethos confere ao mundo de um povo seu rosto. O domnio do ethos , portanto, o

    domnio daquilo que sancionado por uma comunidade. Esse mundo com um rosto, a vida

    boa, o campo do desenrolar das aes humanas significativas ao qual concernem tanto a

    tica quanto a moral.

    Todavia, o ethos porque trabalho da cultura de um povo no espelho de uma

    ordem boa determinada intemporalmente e, portanto, no pode ser pensado como horizonte

    ontolgico ltimo, visto que ele somente como criao social-histrica. Isso no significa,

    como vulgarmente se poderia compreender, um relativismo tico, a indistino entre o bem e

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    o mal5. Certamente bem e mal no se equivalem. Mas, que universalidade possvel pretender

    para essas noes? A tica e toda tica tem como horizonte da ao a efetivao do

    Bem. Porm, nem a prxis tica a pura e simples traduo desse Bem e nem esse Bem , do

    incio ao fim e desde sempre, o Bem que deve-ser. Falamos do Bem como universal simblico

    que abriga as normas, leis, valores, costumes, hbitos, regras que valem enquanto tais

    precisamente porque so significativos para um determinado grupo social-histrico. Numa

    palavra, so criao histrica de uma sociedade que se auto-institui mesmo se parte desta

    no se enxerga partcipe desse processo.

    Nesse sentido, a instituio social-histrica do ethos um enigma insolvel6.

    Podemos, assim, em parfrase a CASTORIADIS, afirmar, que o enigma insolvel da tica,

    seu desafio enquanto teoria o de pensar a instituio do ethos, de um mundo com um

    rosto, enquanto ainda esse ethos institudo. Evidentemente, o ser sempre, porque criao

    do social-histrico. Todavia, a tarefa de tentar elucidar o ethos, enquanto mundo que

    queremos reconhecer como nosso mundo, inalienvel ao esprito humano.

    2. Discurso da ao tica x juzo moral da ao

    Quando, em sua obra O Discurso da Ao, Paul RICOEUR se prope a descrever a

    ao ele tem em vista demonstrar que a descrio da ao a base sobre a qual se pode

    construir a tica (1988, p. 25). Note-se que o filsofo no ope discurso da ao e tica como

    discurso da ao. Apenas cuida de realizar uma investigao prvia da ao antes de situ-la

    como ao significativa7. Tomaremos em considerao, neste ponto, algumas das anlises de

    RICOEUR levadas a cabo nesta obra a fim de, uma vez elucidada a estrutura conceitual da

    ao, firmarmos distino entre um discurso da ao tica e um juzo moral da ao.

    S podemos compreender criticamente a ao tica se, a respeito da ao mesma, nos

    furtarmos a uma perspectiva positivista do fenmeno da ao. Sabemos que, para o

    positivismo lgico, apenas tm sentido as proposies que podem ser verificadas

    empiricamente. Revitalizara-se, desse modo, a perspectiva empirista, definindo a experincia

    e sua observao estrita como condio de validade do saber. Os dados da experincia

    5 Cf. texto de Emmanuel Carneiro LEO, tica e comunicao, In: KOSOVSKI, ster (org.), tica na comunicao, Rio de Janeiro : Mauad, 1999. 6 Dizemos da instituio social-histrica do ethos como enigma insolvel por inspirao da anlise de Cornelius CASTORIADIS da pedagogia (Cf. As encruzilhadas do labirinto III, 1992, p. 151-164). 7 Com efeito, afirmar o autor: O discurso tico um discurso da ao significativa (1988, p. 26).

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    chegam cincia j devidamente protocolados, isto , sob forma de proposies. A tarefa da

    cincia ordenar estes protocolos num sistema coerente, submetendo-os a todas as

    transformaes da lgica formal, e tirar deles novas proposies, as quais se tornam por sua

    vez objeto de um controle experimental (SCIACCA, 1969, p. 292). Desse modo, somente as

    proposies que referem-se a fatos, ou seja, que so observveis, so tomadas como vlidas.

    No limite: s so vlidas as proposies que podem ser observveis. Ora, se reduzimos,

    assim, a ao positividade do fato, ficamos cegos intencionalidade8 que marca a

    significao tica da ao, colocamos a ao no mesmo nvel do ser das coisas e, por

    conseqncia, abrimos espao para o julgamento moral cru da ao. A essa leitura positivista

    da ao, RICOEUR opor: A linguagem da ao faz sentido numa situao que no de

    observao, mas precisamente enquanto informa o prprio agir no processo da transao que

    decorre de agente para agente (1988, p. 16).

    Dizer que a ao no se reduz a fato assumir que a anlise da ao implica uma viso

    de histria. Ora, nada no domnio do humano algo. Tudo vem a ser alguma coisa. A

    intencionalidade da ao e uma anlise da ao que a tome por base conduz-nos a ler na

    ao, um sentido outro que aquele de uma verdade de fato. Como assinala o pensador: O

    mundo no um fato consumado. Se a ordem do conhecimento implica o encerramento do j

    feito, o mundo da ao implica a abertura do que ainda fica por tornar verdadeiro

    (RICOEUR, 1988, p. 37). Assim, verdade, na ordem dos fatos se verifica por sua evidncia.

    Por sua vez, no campo da ao j no se pode ceder ao mesmo fatalismo. Vale registrar, aqui,

    a considerao de Hegel a propsito do verdadeiro e o falso, no Prefcio da

    Fenomenologia do Esprito:

    O verdadeiro e o falso pertencem aos pensamentos determinados que, privados de movimento, valem como essncias prprias que permanecem cada uma no seu lugar, isoladas e fixas, sem se comunicar uma com a outra. Ao contrrio, deve-se afirmar que a verdade no uma moeda cunhada, que est pronta para ser guardada e usada (1999, p. 312).

    dogmtica, portanto, a postura de quem trata as aes como determinaes fixas,

    que toma o sentido das aes no varejo dos fatos, que se pe a dizer o que significam tais e

    8 RICOEUR precisar que s um movimento investido de intencionalidade uma ao (1988, p. 128).

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    tais aes, passando ao largo daquilo que, efetivamente, confere s aes seu sentido: os

    motivos do agente.

    Evidncia Inteno (encerramento do dado) (abertura do vivido)

    Est claro que pr em questo a distino entre verdade de fato (reduzvel sua

    evidncia) e verdade da ao (vinculada necessria considerao da intencionalidade do

    agente) fazer remisso capacidade dos sujeitos para o exerccio da autonomia. Significa,

    pois, compreender que os fatos no trazem um sentido de ser inerente a eles mesmos; que

    nada j verdadeiro, mas que o verdadeiro deve ser buscado na mediao dos agentes,

    capazes estes de formular para si um sentido de ao e de reconhecerem, na e pela

    interpelao do outro, o sentido da ao de quem quer que seja.

    2.1 A intencionalidade das aes

    Se, como notamos acima, as aes no podem ser reduzidas a meros fatos, com um

    sentido inerente ao seu ser dado, no se pode, todavia, pretender captar o fundo de sua

    significao na mera declarao do agente da inteno com a qual este faz isto ou aquilo. Dir

    RICOEUR: A ao se pode tratar como um texto e a interpretao por motivos como uma

    leitura (1988, p. 52). preciso, pois, se se quer verdadeiro acesso ao sentido da ao, e no a

    pura e simples descrio de fatos, criar um espao de encontro de sujeitos para que a seja

    designado publicamente o carter da ao que se pretende analisar. Assim, marca RICOEUR:

    S no jogo da linguagem da pergunta e da resposta, tal como se compreendeu perfeitamente numa situao de interao e de interlocuo, que o conceito de inteno adquire sentido, isto , quando se responde a perguntas como: que vai fazer? Por que o fazes? neste jogo em que perguntas e respostas se tornam mutuamente significantes que a palavra inteno adquire sentido (1988, p. 41).

    ORDEM DO CONHECIMENTO

    (fatos)

    MUNDO DA AO

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    Neste jogo de linguagem, dado em um espao de interao, o que se tem em vista

    ser, pois, aquilo de que a ao expresso efetiva. Toma-se, portanto, a ao propriamente e

    se pergunta pela inteno seu porqu que significa esta ao. Desse modo, ao

    explicitar a minha inteno pelos motivos9, intento menos dar uma explicao do que uma

    significao, tornar [a ao] inteligvel a outrem e a mim mesmo; isso interpretar: considerar

    algo como isto ou aquilo (RICOEUR, 1988, p. 45). O que interessar tica, no apenas o

    diagnstico da inteno de algum ao agir de tal ou tal maneira, mas se a articulao das

    razes da ao remontam ao mesmo ponto, tendo como horizonte um fim desejvel (Id., 1988,

    p. 48) e, mais ainda, um fim justificvel.

    O desejo de agir , pois, inseparvel da prpria ao, no algo contingente e externo

    ao ato. Dar o motivo da ao , precisamente, explicitar o que se desejou com tal ato, que se

    agiu em vista de tal fim. Concordaremos, ento, com RICOEUR ao afirmar que esta funo

    da motivao, como aquilo que torna a ao inteligvel, a condio de todo o processo tico.

    (...) Seja qual for a inteligibilidade implicada pela motivao, [esta funo] ao mesmo tempo

    a possibilidade que tem a ao de poder ser aprovada ou desaprovada (1988, p. 53).

    Nenhuma ao significativa sendo o agente neutro com respeito s suas reais motivaes.

    A inteligibilidade da ao e aqui estamos interessados em focar a dimenso tica da

    ao se decide na referncia ao poder do agente em arrancar-se a toda forma de

    determinismo causal, de decidir sobre a direo que quer conferir sua ao. A procura por

    uma causa das aes humanas, no sentido fixado pela tradio moderna, nos torna cegos

    para a capacidade de deliberao do agente. Ele , com efeito, autor do sentido de suas

    aes. Com efeito, a anlise causal e a explicao causal podem aplicar-se relao ente

    coisas feitas e conseqncias; mas no pode dizer-se que o se faz seja o efeito da ao; o lao

    entre a ao e o que se faz intrnseco e lgico, no extrnseco e causal (RICOEUR, 1988, p.

    123. Em grifo no original).

    A ao no imediatamente qualificvel, como pretende o juzo moral, precisamente

    porque seu sentido no est colado ao fato, ela no a traduo, no terreno do ser, de um

    sentido unvoco externamente verificado como sua causa. A anlise tica da ao,

    diferentemente, porque abre o espao da fala do sujeito, de sua autoafirmao, porque quer

    9 Mais adiante, RICOEUR afirmar que inteno e motivo so noes conexas, distinguindo-se da relao fenomnica entre causa e efeito, concernente a fatos (1988, p. 50). Nesse sentido, a relao causal uma relao contingente no sentido de que a causa e o efeito podem identificar-se separadamente e que a causa pode compreender-se sem que se mencione a sua capacidade de produzir tal ou tal efeito. Um motivo, pelo contrrio, um motivo de: a ntima conexo constituda pela motivao exclusiva da conexo externa e contingente da causalidade (1988, p. 51).

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    compreender a ao como posio de um sujeito no mundo, no se precipitar na reduo da

    ao por referncia aos valores herdados da tradio.

    O que acontece sempre um fazer-acontecer-algo. , portanto, na e a partir da escuta

    do agente da explicitao da inteno que o moveu a fazer isto e no aquilo que

    podemos nos aproximar da raiz significativa da ao: a intencionalidade. Afirma RICOEUR,

    a propsito, que o que a intencionalidade introduz a reto-referncia a um centro de

    responsabilidade donde procede a ao (1988, p. 118). A ao no coisa entre as coisas.

    Ela corresponder sempre a um vivido posto como motivo do agir que a ao confere

    existncia. Um vivido, enquanto motivo para a ao, algo mais que aquilo que o senso

    comum assume como dado. Numa aproximao com a fenomenologia de Edmund Husserl

    (1859-1938), RICOEUR indagar:

    Porque que Husserl diz que o vivido est estruturado, tem um sentido, dizvel? Porque intencional e porque sempre possvel explicitar o sentido de um vivido pela objetividade que pretende. (...) Com efeito, doravante ser possvel dizer o que a conscincia vive, ao dizer o que pretende (1988, p. 140).

    3. Consideraes finais

    Pretendemos neste trabalho traar algumas consideraes de ordem conceitual que nos

    permitisse sustentar a distino entre uma anlise tica da ao e um juzo moral da ao.

    Estamos certos de que a muitos essas consideraes ou no sero dignas de crdito,

    precisamente por apresentarem como distinto aquilo que sempre se tomou como equivalente,

    ou no sero assumidas como vlidas, porque os pressupostos de anlise tomaro outros

    referenciais tericos. Isso plenamente compreensvel, sobretudo, porque, em matria de

    tica a ltima palavra simplesmente no existe. Um discurso sobre a tica que se pretenda

    unvoco a mais franca forma de contradio do que pode ser a reflexo tica.

    Todavia, uma reflexo tica que no possa sustentar seus pressupostos, que no possa

    justificar-se como inteligvel, ser pensamento irreverente ao qual no se deve respeito. A

    tica palavra correntemente usada, em todos os lugares, em todos os campos do saber. E que

    bom que assim o seja. Que bom que, em todos os lugares e cincias, hajam indivduos

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    dispostos a situar todas as coisas sob o olhar humano10, que as coisas no em si mesmas nem

    boas nem ms, mas que somos ns que lhes conferimos valor e valor humano. Desse

    modo, cabe-nos, para encerrar, to somente marcar o que fundamental de tudo o que

    buscamos estabelecer ao longo deste texto.

    Dissemos que as aes no so reduzveis a meros fatos, que trazem, colados neles

    um sentido de ser evidenciado pela observao. Nada mais positivista do que o propalado

    adgio de que contra fatos no h argumentos. a mais cabal declarao da impossibilidade

    humana frente s coisas. O que preciso tomar conscincia , justamente, que o julgamento

    moral da ao se fundamenta numa postura semelhante diante dos fatos11. Significa tomar os

    fatos como j inscritos em um quadro de valores slidos e mo dos quais podemos

    sempre nos servir para dizer no como tudo , mas como tudo deve ser.

    J a Gestalttheorie e a fenomenologia, notadamente a de Merleau-Ponty, nos

    mostraram que percepes de fato no so conexes de pontos sensveis que se do em uma

    superfcie verdadeiramente homognea; antes, o campo perceptivo j carregado de um

    sentido, em que as figuras so sempre solidrias de um fundo, sem o qual so ininteligveis12,

    ou seja, o campo perceptivo contexto significativo porque estamos embaralhados nele. O

    sentido do mundo no resulta de um puro em-si das coisas, ao qual devamos nos render, nem

    , tampouco, o puro correlato do esprito. O mundo no aquilo que eu penso, mas aquilo

    que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas no o

    possuo, ele inesgotvel (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 14).

    A moral, ao olhar positivamente o fato da ao, faz disso um absoluto das coisas

    mesmas, esquecendo-se o moralista de que este colorido do fato ele mesmo quem o

    d enquanto olha para o fato.

    Diferentemente, a anlise tica da ao no se assume como teoria do puro dever-ser.

    Esta anlise entende a tica como dimenso prpria do agir humano. Evidentemente, toda

    tica tem por fundamento uma antropologia13. Se aceitamos isto, ento preciso dizer que no

    10 LADRIRE, lembra-nos que o termo objeto (ob-jectum) , precisamente, aquilo que de certa forma, lanado diante de ns, que se encontra exposto ao nosso olhar (2001, p. 19-20). 11 Vale indicar o pensamento de Husserl acerca da crise das cincias do seu tempo: As cincias de fatos puros e simples produzem homens que no vem mais do que puros e simples fatos (A crise das cincias europias e a filosofia, In: CHRISTOFF, 1971, p. 199). Os problemas que decorrem da sero inmeros: sociais, polticos, culturais e ticos. Seguir, pois, Husserl, perguntando a que se referem esses problemas? Ele prprio responde: Eles referem-se finalmente ao homem naquilo em que ele decide livremente nas suas relaes com o mundo humano e extra-humano que o cerca, naquilo em que ele livre nas suas possibilidades de dar uma forma racional a si mesmo e ao mundo (Id., 1971, p. 200). 12 Afirma o filsofo: O algo perceptivo est sempre no meio de outra coisa, ele sempre faz parte de um campo (1996, p. 24). 13 O prof. LIMA VAZ afirma isto da prtica poltica (1993, p. 138-139).

  • 9

    podemos falar de tica sem falarmos, ao mesmo tempo e isto desde a modernidade de

    liberdade do indivduo, sem discutirmos as condies sob as quais deve ser assegurada sua

    autonomia.

    Ora, o homem da ao um existente, um ser que se pensa em distino daquilo que

    tomado como j dado. O homem existe na permanente tentativa de estabelecer para si um

    equilbrio e um equilbrio para seu mundo. Isto o que caracteriza este modo de ser

    humano: existir deriva do latim existere (ex: fora de; essere: ser). Existir significa, pois, ser

    (ou estar) fora de si. O humano , permanentemente, este ser lanado para fora de si mesmo.

    Um ser em des-equilbrio. Mas que, todavia, esfora-se por pensar a si mesmo a partir desta

    sua situao no mundo, sabendo-se sempre indefinvel em ltima instncia. O ser humano

    projeto de ser humano.

    Uma anlise da ao, portanto, que pretenda estabelecer um discurso tico da ao,

    somente poder dizer algo da verdade da ao se for capaz de ouvir o sujeito da ao em sua

    inteno de agir e, sem pressupor resposta, perguntar, ento: porqu? Somente a palavra

    prpria que principiar uma anlise verdadeiramente tica, pois, a ao designada

    intencional neste jogo de linguagem (RICOEUR, 1988, p. 43).

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    BIBLIOGRAFIA

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