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MARIAGABRIELARODRIGUESDASILVAFERREIRA
EutinhaumasasasbrancasCríticaTeatralnafundaçãodoTeatroNacional
(1837-1840)Vol.II
DissertaçãodeDoutoramentoemEstudosdeTeatro
apresentadaàFaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto
soborientaçãodosProfs.Drs.CristinaMarinhoeFranciscoTopa
FaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto
(2017)
VolumeII
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ÍNDICEGERAL
VolumeI
INTRODUÇÃO
ParteI–DaAcademiaaosExílios(1820-1823)
ExcertosJornalísticos
OPatriota(1820)
ABorboletaConstitucional(1821)
OPatriotaFunchalense(1821)
OPortuguêsConstitucionalRenegado(1821)
JornaldaSociedadeLiteráriaPatriótica(1822)
OToucador(1822)
HeráclitoeDemócrito(1823)
ParteII–DosExíliosaoSetembrismo(1823-1836)
ExcertosJornalísticos
OPopular(1824)
OPortuguês(1826)
OCronista(1827)
OChavecoLiberal(1829)
OCorreiodosAçores(1830)
OPelourinho(1830)
OPrecursor(1831)
CrónicaConstitucionaldeLisboa(1833)
OPortuguêsConstitucional(1836)
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VolumeII
ParteIII–DafundaçãodoTeatroNacional(1837-1840)…………….…… 7
ExcertosJornalísticos………………………………………………………………….…. 55
ONacional(1837)………………………………………………………………………… 57
OEntre-Acto(1837)……………………………………………………………………… 59
OBiógrafo(1838)……………………………………………………………………….... 71
OConstitucional(1838)………………………………………………………………... 75
JornaldoConservatório(1839-40)………………………………………………… 82
CorreiodeLisboa(1840)…………………………………………………………….… 488
VolumeIII
ParteIV–Últimasbatalhas(1840-1851)
ExcertosJornalísticos
OPortuguês(1840)
ARevoluçãodeSetembro(1840)
RevistaUniversalLisbonense(1841)
RevistadoConservatórioRealdeLisboa(1842)
UniversoPitoresco(1843)
JornaldasBelas-Artes(1843)
MemóriasdoConservatórioRealdeLisboa(1843)
AIlustração(1845)
OPopular(1848)
AÉpoca(1849
ASemana(1851)
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
ParteIII–DafundaçãodoTeatroNacional(1837-1840)
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É indiscutível,assimocremos,queapósosexílioseasamargasexperiên-
ciasdiplomáticas,nãoforaomesmoGarrettaregressaraPortugal;istoé,asideias
eramasmesmas, a coerênciado seupensamentopermanecera,masvinhaagora
nutridaeconsolidadapelasinfluênciasestrangeirasqueopróprionuncanegou.A
suapassagemporInglaterra,FrançaeBélgica,ondepululavaumconstantefervi-
lhardeideiasnovas,nãopoderiadeixarincólumeoseuespíritoinquietoesuperi-
or,entusiasmadocomnovidadesqueprocurounacionalizar.Aindaquenegando-se
aenfileirarnashostesdoromantismo,muitosdosfundamentosdessemovimento
impregnaramosseusescritos,semprenumaperspectivacomparatistaentreona-
cionaleoimportado,adaptandocriticamenteoquepermitissemelhorararealida-
deportuguesa.1AssuasestadiasemFrançatê-lo-ãoinfluenciado,certamente;con-
tudo, tal como em Portugal, também pelas terras do Sena o Romantismo estava
aindaemfaseseminal,desenvolvendo-sequasesimultaneamentecomosescritos
deGarrett.2JáosseustemposdepermanênciaemInglaterra,pátriadoliberalismo
constitucionaledosprimeirosromânticos,revelaram-separticularmentemarcan-
tes. Berço de Shakespeare,3primeiro precursor do movimento romântico, mas
1TomemoscomoexemplooqueopróprioAutorexpõesobrecomoprocedeuparaformu-
laroseuideárioeducativo,depoisdeterconcluídoque“nenhumaeducaçãopodeserboasenãoforeminentementenacional”: “Estudei, aprendi, extraí tudooquemepareceubom, [nosautoreses-trangeiros];masprocureidigeri-loeconvertê-loemsubstânciaminha.Alémdoslivrosetratadosdosmelhoresautores,eparamelhorajuizardesuasteorias,estudeipraticamenteaeducaçãonosmaisnomeadoscolégiosdeFrançaeInglaterra,compareiosmétodosdiversos,observeiosresulta-dos (…).Trateipoisde reunir (…)omelhordoquepor tantosvolumesandadisperso, juntei-lheminhas próprias observações, e arranjei-o à portuguesa e para portugueses.”: da Introdução aoTratadodaEducação,inObrasCompletas(Lello,1966),Vol.I,p.678.Porfim,”Doqueli,doquevi,doqueestudei,doquereflectiemmimenosoutros,doqueobserveinosmeiosempregadosenosresultadosobtidosdediversaseducações,formeiparamimumsistema,umencadeamentodeidei-asedeprincípios,quesingelaechãmenteexplorei,semalinguagemhirsutadascadeiras,sempre-ocupaçõesdeoriginalidade,bemcomosemservilismodeescola.”:idem,pp.687-688.
2Note-sequeaprimeirapartedoartigodeStendhal,RacineetShakespeare,saisomenteem1823eoartigocompleto,apenasem1825,quandoGarrettjáescreveraCamõeseDonaBranca,em1824,publicados, respectivamente,em1825e1826;oCromwell,deVictorHugo,eo seucélebreprefáciosãodivulgadosapenasem1827;entretanto,GarrettredigeAdozinda,quepublicaemLon-dres,em1828.
3EmDel’Angleterre,HeinrichHeinesalientaaubiquidadedeShakespearenanaçãobritâ-nica,ondeserecorrepermanentementeaosseusversos,aténoparlamento,oqueporsisójustifica
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também daMagnaCarta, génese do constitucionalismo, a Grã-Bretanha deixaria
marcas profundas e indeléveis na personalidade de João Baptista, não apenas a
nívelpolíticoeliterário,comotambémnosseusgostos,hábitoseindumentárias.4
Por outro lado, a famigeradamissãodiplomática emBruxelaspô-lo em contacto
comasmaisrecentesnovidadesdaliteraturaeculturaalemãs,ondesóisituar-sea
génesedomovimentoromânticoedosnacionalismos,assimcomodoconceitode
teatronacional,5bempatentenareformaqueGarrettjásonhavaempreendereque
nãodemorariademasiadoaconcretizar,pelomenosatéondeparatallhefoipos-
sívelchegar.6
sereleumsímboloimorredouro:“Shakespeareestlesoleil intellectueldontladélicieuselumière,lesgracieuxrayonsilluminentlepays.Toutyparledelui(…).Partoutonyentendlebruitquefontencorelesailesdesongénie(…).Cerappel incessantdeShakespeareparShakespearemefrappavivementpendantmonséjouràLondres(…).Toutceslieuxquejevisitaisviventdanssesdrameshistoriquesd’unevieimmortelle,etjelesconnaissais,graceàlui,dèsmaplustendrejeunesse.Maisen Angleterre, ce n’est pas seulement l’homme instruit qui connait ces drames; il n’est pas unhommedupeuplequilesignore(…).(…)C’estauparlementquecesouvenirmefrappaleplus(…)parceque,tandisquej’assistaisauxdébats,ilyfutplusieursfoisparlerdelui,etqu’oncitasesvers,nonpourleurvaleurpoétique,maispourleurimportancehistorique.”:pp.17-19.
4ArturdeMagalhãesBastodescreveGarrettdestemodo,numadassuasapresentaçõespe-ranteasCortes:“(…)casacaverdebronze,combotõesdemetalamarelo,recortadossobreoveludoverde;coletebrancodegrandesbandas,coletedeslumbrante;calçacordeflordealecrim;camisafiníssima,a tiraeospunhosencanudados;gravatadecores lúbricas, luvascordepalha.”:GarrettMundano,pp.30-31.
5Conformejáafirmámos,o“RomantismoquesevinhaimpondonaEuropa,desdefinaisdoséculoXVIII,terátidoasuagénesenaAlemanha,fundamentalmenteatravésdosescritosdeFichteedos irmãosSchlegel,ouatédeGoëtheeSchiller,comotomadadeposiçãocontraosdesmandosracionalistasdoiluminismoeapreponderânciaatribuídaàciênciaeàtécnica,comoforçasmotri-zesdoprogressoedoenriquecimentodasnações.
PrecedidadeSturmundDrang,dramadaautoriadeFriedrichKlinger,DieRomantikmani-festou-se acerbamentena épocapós-kantiana, umavezqueo filósofodeACríticadaRazãoPurarevelaraexcessivarigidezracionalista,queteráprovocadoumareacçãotãoradicalquantooforaoseumóbil,aindaquenumadualidadeentreanegaçãoeoseguimentonoutradirecção,maisnalinharousseaunianadoretornoànaturezaeàsorigens.Assimsendo,seaRousseauvãobuscaroselva-gemparaísoperdido,quepintam incansavelmente, aoexacerbaro individualismo,os românticosrevelam-se herdeiros de Kant, que mostrara quanto era fundamental o contributo do indivíduoparachegaraoconhecimento,noqueelesnãosefizeramrogados;deramlargasaosentimentoeàfantasiaejulgaram-sedemiurgos,istoé,autênticosgénioscriadores,nãomaisimitadores.Abuscautópicadomundo ideal, procuraram-na algunsnas características individuaisde cadapovo enoseu passadomedieval, sendo que este historicismo, no caso alemão, acabaria por degenerar emdesenfreadonacionalismo.”: JornaldoConservatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett,pp.13-14.
6Analisemos o que nos propõe o conteúdo de dois textos de Johann Elias Schlegel: Ge-dankenzurAufnahmedesdänischenTheaters –Pensamentossobrearecepaçãodoteatrodinamar-quês–eSchreibenvonderErrichtungeinesTheaterinKopenhagen–CartaacercadafundaçãodeumteatroemCopenhaga.Nelesreconhecemosasseguintesideias:asautoridadesdevemapoiarotea-tro, para que as companhias não tenham de obedecer a critériosmeramente economicistas, emdetrimentodaqualidadedosespectáculos;osensaioseasencenaçõesdeverãoserorientadasporuminspector;seráprecisofundarescolasparaformaractores;oeráriopúblicodevepermitirman-teredesenvolveradiversidadenacionaleculturaldospovos,comdiferentesgostosesensibilidade
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AAlemanha,dadasassuascircunstânciasepocais,representaumcasoatí-
piconasliteraturaseuropeias.ComomuitobemobservouGermainedeStaël,terá
sido a alemãaúnica literaturaque começoupela crítica;7ou seja, adramaturgia
precedeuodrama;depois criouum teatronacionalpara,por fim, fazernascero
sentimentodenação,oquenãoserevelariatarefafácil,dadaadispersãoterritorial
dosdiferentesestadosquecompunhamapátriadeGoëthe.SeGottschedeWieland
pretenderam evoluir na senda do teatro clássico francês, imitando os clássicos
Corneille,RacineouMolière,Klopstockpercebeuqueaescolainglesa,apesardas
váriasdiferenças, tinhamuitomaisemcomumcomascaracterísticasdacultura
alemã.8VejamosoqueconstatouLamport:
artística. Além disto, Johann Löwen, autor de uma crítica História do Teatro Alemão e primeirodirector teatraldeHamburgo,propunhaa instituiçãodeumaacademiadeactores,a fundaçãodeumacaixadepensõesparaosactoreseoincentivodenovorepertórioalemão,atravésdoestabele-cimentodeconcursosparajovensautores,sendoaindacriadoolugardedramaturgo,quedeveriaencarregar-sedaescolhadeumrepertórioequilibradoparaoTeatroNacional.Claroestáque, talcomoemPortugal,tambémemHamburgoacabouporserepresentarmaisteatroestrangeiroquenacional,sobretudodeautores franceses,pois foinecessário fazerconcessõesaopúblicoeaos fi-nanciadores,paramanteroespaçoafuncionar,atéMarçode1769,apósumagoradatentativaforadeportas.ApudManuelaNunes,IntroduçãoàDramaturgiadeHamburgo–SelecçãoAntológica,pp.8-9.Escusadoserásublinharquequase todosestesditamesestão incluídosnoprojectopropostopelofundadordonossoConservatóriodeArteDramática.
7“Lalittératureallemandeestpeut-êtrelaseulequiaitcommencéparlacritique;partoutailleurs la critiqueestvenueaprès les chefs-d’oeuvres:maisenAllemagneelle lesaproduits. (..)Lessingécrivitenproseavecunenettetéetuneprécisiontoutàfaitnouvelles(…)[etil]analysalethéâtrefrançais,alorsgénéralementàlamodedesonpays,etpretenditquelethéâtreanglaisavaitplusderapportaveclegéniedesescompatriotes.”:inDel’Allemagne,TomeI,pp.147-148.
8Diz-nosMadame de Staël que “l’art dramatique offre un exemple frappant des facultésdistinctes des deuxpeuples. Tout ce qui se rapporte à l’action, à l’intrigue, à l’intérêt des événe-ments,estmille foismieuxcombiné,mille foismieuxconçuchez lesFrançais; toutcequitientau
8Diz-nosMadame de Staël que “l’art dramatique offre un exemple frappant des facultésdistinctes des deuxpeuples. Tout ce qui se rapporte à l’action, à l’intrigue, à l’intérêt des événe-ments,estmille foismieuxcombiné,mille foismieuxconçuchez lesFrançais; toutcequitientaudéveloppementdesimpressionsducœur,auxoragessecretsdespassionsfortes,estbeaucoupplusapprofondichez lesAllemands. Il faut,pourque leshommessupérieursde l’unetde l’autrepaysatteignentauplushautpointdeperfection,queleFrançaissoitreligieux,etquel’Allemandsoitunpeumondain.(…)LesFrançaisgagneraientplusnéanmoinsàconcevoirlegénieallemandquelesAllemandsàsesoumettreaubongoûtfrançais.”:inDel’Allemagne,pp.128-129.Poroutrolado,“lesAllemandsontplusderapportsnaturelsaveclesAnglaisqu’aveclesFrançais;cependantilyadespréjugés,mêmeenAngleterre,contrelaphilosophieet la littératureAllemande.(…)Legoûtdelasociété,leplaisiretl’intérêtdelaconversationnesontpointcequiformelesespritsenAngleterre:les affaires, le parlement, l’administration, remplissent toutes les têtes, et les intérêts politiquessontleprincipalobjetdesméditations.LesAnglaisveulentàtoutdesrésultatsimmédiamentappli-cables,etde lànaissent leurspréventionscontreunephilosophiequiapourobjet lebeauplutôtquel’utile.(…)LaphilosophiedesAnglaisestdirigéeverslesrésultatsavantageuxaubien-êtredel’humanité. Les Allemands s’occupent de la vérité pour elle-même, sans penser au parti que leshommespeuvententirer.”: idem,p.130.Dequalquermodo,“Klopstocktint lepremierrangdansl’écoleanglaise,commeWielanddansl’écolefrançaise;maisKlopstockouvritunecarrièrenouvelleàsessuccesseurstandisqueWielandfutàlafoislepremieretledernierdansl’écolefrançaisedudix-huitièmesiècle(…).Klopstock,enimitantd’abordlesAnglais,parvintàréveillerl’imagination
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French neo-classic tragedy is a courtly and highly sophisticated form of
drama,whichmakesnoconcessiontothetastesoftheunlettered.Itscomiccoun-terpart, theworkofMolière,presentsawidersocialrangeofcharacters,ofobvi-ouslycontemporaryprovenance(…),anddrawsupontraditionsofpopulardrama,offarceandtheItaliancommediadell’arte,buttheseelementsarefirmlycontainedwithinaframeworkofmetropolitansophistication.Heretootheabsolutistcentral-isationofseventeenth-centuryFrenchsocietyisclearlyreflected.
Elsewhere in Europe, however, forms of drama arose inwhich the newlearningoftheRenaissancewasmorefreelyassimilatedtoexistingtheatricaltra-ditionandpractice,andinwhich lessattentionwaspaidtothe ‘rules’elaboratedbythescholars.ThiswasthecaseintheElizabethanEngland,whereShakespeare‘warbledhisnativewoodnoteswild’,asMiltonlaterfromhismorelearnedandor-thodoxneo-classicviewpointwastoputit–thoughShakespearewasfarfromig-norantofclassicallearning,andwaswellacquaintedwiththeplaysofPlautusandSenecainparticular.ButElizabethandramaundoubtedlyhadstrongrootsinpopu-lar forms of dramatic entertainment, in pre-Reformation religious drama and intheimprovisedperformancesofstrollingplayers.9
Terásido,portanto,oteatro isabelino juntamentecomosautoresdoSiglo
deOro espanhol, como Lope de Vega e Calderón, que mais poderosa influência
exerceramnosautoresalemãesqueidealizaramoseuteatronacional,comofactor
agregadordanaçãogermânica.10ÉnestecontextoquechegamosaLessingeàsua
HamburgischeDramaturgie, que,mais doqueum conjuntode reflexões teóricas,
frutodaanálisecríticaaosespectáculosencenadospeloTeatroNacionaldeHam-
burgo,entre1767e1769,terásidoamolapropulsoradaconcretizaçãodeumtea-
tronacionalalemão,deumaformamaissistemática.11Comefeito,saindoemdois
etlecaractèreparticuliersauxAllemands;etpresqu’aumêmemoment,Winkelmanndanslesarts,Lessingdanslacritique,etGoëthedanslapoésie,fondèrentunevéritableécoleallemande,sitoute-foisonpeutappelerdecenomcequiadmetautantdedifférencesqu’ilyad’individusetdetalentsdivers.”:idem,p.137.
9F.J.Lamport,GermanClassicalDrama,pp.3-4.10AtéaoséculoXVI,jáaInglaterra,aFrançaeaEspanhasehaviamtornadoestados-nação
centralizados, aopassoqueaAlemanhacontinuariadivididaemprincipadosepequenosestadoseclesiásticos.Logo,“theGermannationwasrealenough,inthesenseofthepeoplewhospoketheGermanlanguage;butithadnopoliticalidentity.”:F.J.Lamport,idem,p.5.Assim,jáquealínguapermaneciacomoúnicofactordeunião,haviaqueusaraliteratura,eparticularmenteodrama“–whichbyvirtueofitspublicperformanceisthemostsocialoftheliteraryarts–tocreateanationalculturewhichwould in the first instance substitute for, but perhaps in the future help to bringabout,nationalunityinthepoliticalsense.”:idem,p.7.
11Note-se,noentanto,que“antesdoempreendimentodeHamburgo”,lembraManuelaNu-nes,“jáhouveratentativasdereformadoteatro.(…)Comacolaboraçãodamulher,LuiseAldegun-de,edaactrizCarolineNeuber,Gottschedtentouimporumareformadoteatroeelevaroníveldoteatroitinerante,tornando-oaumtempoeducativoeatraenteparaopúblicoburguês.(…)Oses-forçosdeGottsched incidiramnão sóna criaçãodeumrepertórionacional, como tambémnumareformadatécnicaderepresentação,maiscomedida,enatentativadeintroduzirnopalcoousodeguarda-roupa histórico.”: Introdução àDramaturgiadeHamburgo– SelecçãoAntológica, p. 6. Naopiniãodestaautora,quederestopartilhamos, “osesforçosenvidadosporGottschedemproldoteatro alemãoapresentam, semdúvida, semelhanças comoempenhodosÁrcadesemrelaçãoao
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fascículossemanais, aDramaturgiadeHamburgodeveriaconter textosdecrítica
sistemática,tendoporalvotodasaspeçaslevadasàcena,dandocontadaevolução
doestadodaartedramática.Encarandooteatronosentidomaislato,Lessingpro-
punha-seanalisarnãoapenasotextocomotambémaformacomotinhasidoapre-
sentadoempalcoeotipoderecepçãoconseguida,peranteumpúblicoessencial-
menteburguês;12istoé,asuaintençãoerapedagógica,prevendo,atravésdoreco-
nhecimentodoerro,levaràsuacorrecção,talcomodiriaGarrett,noJornaldoCon-
servatório.13Tendodeabdicardeste aspecto,paraevitarmelindres,14enveredará
por debater aspectos de carácter essencialmente teórico, de pendor aristotélico,
comoasnoçõesdegénio(comregras),15mimeseeverosimilhança,comédiaetra-
gédia,ousobreaartederepresentar,ouaindasobreafunçãodamúsicanarepre-
sentação,oudosefeitosquearepresentaçãopossadespertarnopúblico.Mesmo
que os objectivosmais imediatos do dramaturgo possamnão ter sido atingidos,
pelomenoscabalmente,certoéqueocriadordeNathan,derWeise,inaugurouum
novo género, o da crítica teatral, coma qual esperavadar ferramentasparaque
panoramateatralportuguês,nãosónoquerespeitaàorientaçãosegundooexemplofrancês,comotambémà faltaderepercussãoulterior, tantodaobracomodomodelopreconizado.”: idem,p.7.Alémdisso,Gottsched“contribuiuparamelhoraroníveldorepertórioeoestatutosocialdosacto-reseactrizes.”:idem,pp.7-8.
12“Enãoestánamãodopúblicofazercomquesesuspendaouquesecorrijaoquelhepa-recedeficiente?Quevenha,eveja,eescute,eaprecie,ejulgue.Asuavoznuncaserámenosprezada,asuaopiniãonuncaseráouvidasemserrespeitada!”:inDramaturgiadeHamburgo–SelecçãoAn-tológica,p.28.
13TomemoscomoexemploestapassagemdaCrónicaTeatraldon.º17doJornaldoConser-vatório:“NodesempenhodoMáscaranegrasetemcontinuadoacometerosmesmoserrosdepro-núnciaquehavíamoscensuradoemnossoN.º15.OSr.EpifâniodizsempreLARVASemvezdela-vas; a Sra. Emília pronuncia sempre desisperação, terturas, golpis, &. sem tratar de emendar-se.Persuadam-seosnossosactores,quenuncapoderãochegaràcelebridadeaqueaspiramenquantose lhenotarem tão indesculpáveis faltas, eque lhes será absolutamente impossívelmereceremotítulodeactoresmaisquemedíocresenquantoseobstinaremnosseusdefeitos,mostrandoindoci-lidade,oupresunçosaindiferençaaossalutaresconselhos,quepela imprensa, lhesforemdados.”:nesteVolume,p.347.
14NoentenderdeE.M.deHostos,“ensusentidovulgar,lapalabracríticaequivaleacensu-ra.Eslacensuraquelosbuenoshacendelosmalosylaquetambiénhacenlosociososdelosactosyconductaquelesinspiraenvidiaolaemulacióndeldespecho.”:inCrítica,p.7.JáPedroTamenca-racterizaoscríticoscomo“gentequefazperguntas–aoscriadores,asimesmos,aopróprioTeatro–parapoderemdarrespostas(ah,semprefalíveis,fragmentáriaseprovisórias!)aomundoemquevivem.”:inOTeatroeainterpelaçãodoreal,p.5.
15Reagindo aos autores que se dizem oprimidos por regras, Lessing tem esta resposta:“Comoseogéniosedeixasseoprimirfossepeloquefossenomundo!Eaindaporcima,poralgoquetemorigemnelepróprio.Nemtodoocríticoéumgénio,mascadagénioéumcríticonato.Tememsi aamostrade todasas regras.Compreende, conservae segueapenasasqueexprimemos seussentimentosporpalavras.”:inDramaturgiadeHamburgo–SelecçãoAntológica,p.167.
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qualquer um fosse capaz de reflectir e construir a sua própria análise crítica.16
Alémdisso,chamandoaatençãoparaoteatrodeShakespeare,17abriuasportasà
evolução de um teatro nacional alemão. Até que, espoletada por Sturm und
Drang,18seimpõeDieRomantik,querevelaráGoëthecomoseumáximoexpoente.
Proveniente do denominado Classicismo de Weimar, juntamente com Schiller,
16Assimescreveuocrítico,nofascículon.º95daDramaturgiadeHamburgo:“Façolembraraquiaosmeusleitoresqueestaspáginasnãodevemencerrarumsistemadramático.Nãosou,pois,obrigadoaresolvertodasasdificuldadesquelevanto.Osmeuspensamentospodemparecerestarsempre pouco associados, ou atémesmo contradizer-se, desde que sejampensamentos que lhesdêemmatériaparapensaremporsi.Aqui,queroapenasespalharfermentacognitionis,ofermentodacogitação.”: idem,pp.164-165.EstavaLessingdeterminadoagermanizaroseupaís:“Lessing’scampaigntoraisecriticalstandardsandtooffsetFrenchinfluencebytheexampleofEnglishlitera-turewasmoresophisticated,morerealisticeven,butnotdifferentinkind:evenifhewasrightinthinkingthatEnglishliterature,andShakespeareinparticular,weremorecongenialtotheGermanmindthanRacineandCorneille,hetoowasproposingtomake literature fromliterature,awakengeniuswithgenius.Hewasthusoperatingwithinaworldofliteraturedistinctfromthesocialreali-tywhich(…)isthesoilfromwhichagreatandcoherentliteraturegrows.Butpreciselythisistheproblemforthecriticwhofacessuchlargeissues:hecannotlegislatedirectfortheformsofsocietywhichwouldnurture literaryproduction.Powerless tobring intobeing thepresumedcauses,hecan only describe andprescribe the hoped-for cultural effects.”: T. J. Reed,TheClassicalCentre–GoetheandWeimar(1775-1832),p.17.
17Opina o autor de Laokoon, no quinto fascículo daDramaturgia: “Embora Shakespearenão tivesse sido,naprática, tãograndeactor como foipoetadramático,pelomenossoubemuitobemoquefazpartedaartedeumedaartedooutro.Possivelmenteatéteráreflectidomaisafundosobreaartedoprimeiro,porquetinhamuitomenosgénioparaela.Pelomenos,cadaumadaspala-vrasquepõenabocadeHamlet,quandoesteestáaensaiaroscomediantes,éumaregradeouroparatodososactoresquedêemvaloraumaplausoracional.”:inDramaturgiadeHamburgo–Selec-çãoAntológica,p.31.EMadamedeStaëlacrescenta:“Lespremiersgéniesdelalittératureanglaise,ilestvrai,Shakespeare,Milton,Drydendanssesodes,etc,sontdespoètesquineselivrentpointàl’espritderaisonnement;maisPopeetplusieursautresdoiventêtreconsidéréscommedidactiquesetmoralistes.(…)LesAllemandsprofessentunedoctrinequitendsàranimerl’enthousiasmedanslesartscommedanslaphilosophie,etilfautleslouers’ilslamantiennent.”:Del’Allemagne,TomeI,pp.133-134.
18“(…)itisnotsurprisingthatthenewmovementshouldthusbreakoutinbackward,dis-united, frustrated Germany, for itwas amovement born of frustrations: born of a generation ofyoungmen’s passionate desire for self-expression, and of their often angry impatiencewith theexistingnorms– literary,cultural,social,andeven,at least implicitly,political–whichseemedtoexistonlytodenythemwhattheydesired.Sometimes,itistrue,theyseemtohavelittletoexpresssavetheburningdesiretoexpressthemselves.Typical isthedescriptionofthehero,Wild(…), inKlinger’sSturmundDrang itself: ‘Heutteredacurseand lookedup toheaven,as ifpossessedbysomedeep,genuinefeeling’.Butattheirbesttheyweregenuineidealists,longingforabetterworldinwhichmencouldenjoywhat the founding fathersof theAmericanrepublicproclaimed in thatsameyearof1776tobetheirself-evidentandinalienablerightsto ‘life, libertyandthepursuitofhappiness’.Klinger’splayisactuallysetinAmerica:hischaractershavecrossedtheseasinpursuitoftheirideals.”:Lamport,GermanClassicalDrama,p.33.“LiteraryhistoriansoftendatedeepocheofStormandStressfrom1767,whenthegreattheoristofthemovement,JohannGottfriedHerder,pubishedhisFragmenteüberdieneueredeutscheLiteratur(…).Buttherealbeginnings,especiallyas regards the drama, are to be sought in Strasbourg in 1770-1.Here, Goethe,whohad come toStrasbourgUniversityinthecourseofhislegalstudies,metHerder(…),andsubsequentlyJ.M.R.Lenz(…).Essaysbythesethreewriters,alldatingfrom1771-2,sumupthedramaticcreedofthe‘StürmerundDränger’(…).AroundtheiradulationofShakespearethethreeyoungmenbuildupareasonablycoherenttheoryofdramafortheirownage.Therearesomevariations,inLenzinpar-ticular,butagreatdealofcommonground.Goethe’sShakespeareaddressechoesindeednotonlyHerder’sideasbutalsoHerder’scharacteristic(…)prosestyle.”:idem,pp.33-34.
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JohannWolfgangvonGoëthefoiogénioquemelhorconjugouosvaloresdoIlumi-
nismocomosprincípiosdoRomantismo,conciliandoasuafacetadeautorromân-
ticocomumsaberenciclopédico,advenientedosseusmúltiplosinteresses.Como
"StürmerundDränger“,oautordeFaustocolocoutodaaênfasenopodercriativo
do génio individualista, libertando-se das peias das regras aristotélicas; segundo
esteautor,nodramaromântico,mais importantequea leidas trêsunidadeséa
construçãodaspersonagens, à semelhançade Shakespeare, que imprimiudensi-
dadepsicológicaatodasasfigurasquemodeloueatravésdasquaisseexprimiu.19
TambémHerder,grandeteóricodanovaliteraturaalemã,20foiseduzidopelodra-
ma shakespeariano,21pelo gótico medieval inglês e pela cultura popular, que
transmitiuaGoëtheequeétãovisívelnoUrfaust,versão inicialdeFausto,ainda
queoseuautor, tenhasidomaisacompanhadoporSchiller.22Em1795, insurgin-
do-secontraumartigoquelamentavaafaltadeboasobrasclássicasemprosa,na
literaturaalemã,oautordeDieLeidendesjungenWertherscontestoupelainjustiça
detalasserção,afirmandoperemptoriamenteoelevadoníveldaprosadaépocae
que não seria boa altura para a negligenciar. Em Literarischer Sansculottismus,
Goëtheassumiaquenãohaviadefactoumautoralemãoquesepudesseclassificar
comoclássico,mastambémnãohouveraaindacondiçõesparaquealgumsurgisse
naAlemanha:
Aclassicalauthor,hesays,will appearwhenhe findsgreatevents inhis
nation’shistoryresultinginahappyunity;whenthereisgreatnessinhiscompat-riots’modeofthinking,depthintheirfeelings,strengthandconsistencyintheirac-tions;whenhehimselfisimbuedwithanationalspiritandhisgeniuscansympa-thisewithpastandpresent;whenhefindshisnationatanadvancedstageofcul-ture,sothathisownprocessofcultivationismadeeasy;whenhecanviewanas-semblageof literarymaterialsandtheperfectand imperfecteffortsofhisprede-cessors,sothatthereisnoneedtopaydearlyforhisapprenticeshipbutheisena-
19“Goethe,atallevents inhisStormandStressperiod isconcernedtoemphasizetheex-
pressivenatureofShakespeare’scharacterportrayal.”:idem,pp.35-36.20NomeadamentecomajáreferidaobraFragmenteüberdieneueredeutscheLiteratur,de
1767.21Comoviria a escreverGarrett: “Ébemevidentequeodrama tomada tragédiaporque
pintapaixões,edacomédiaporquedesenhacaracteres.Odramaéaterceiragrandeformadearte,compreendendo,encerrando,efecundandoasduasprimeiras.CorneilleeMolièreexistiriaminde-pendentementeumdooutroseShakespearelhesnãointerpusessedandoamãodireitaaMolièreeaesquerdaaCorneille.Destemodoasduaselectricidadesopostasdacomédiaetragédiasecomu-nicam,produzindoumafaísca;eessafaíscaéodrama.”:JornaldoConservatório,n.º9,nesteVolume,p.221.
22SobreasversõesdeFausto,videLamport,GermanClassicalDrama,capítuloVIII,pp.132-157.
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bled toconceiveandexecutemajorworkwhilestill inhisprime.All this isobvi-ouslybeyondtheindividual’scontrol;itisamatterofthedevelopmentofanation-alsociety:‘einenvortrefflichenNationalschriftstellerkannmannurvonderNationforden’.23
Notavaaindaquenãohavia,naAlemanha,nenhumcentrosocialecultural
onde os escritores pudessem encontrar-se e debater os seus diferentes géneros,
mas orientados num sentido comum.24E, da mesma forma que em Portugal se
abusoudastraduçõeseadaptações,acimadetudodetextosdeautoresfranceses,
tambémnaAlemanhaseconstatouasupremaciadeculturas importadas,emde-
trimentodasnativas:
Anativeculture,thatis,fortheundoubtedcultivationoftheupperclasses
wasalwaysofforeignoriginandhasonbalancebeenmoreahindrancethanahelp(…).Inthesecircumstances,itisawonderthatanythingwasachievedatall.
Thesocialpreconditionsforclassicismoutlinedabovearehererestated–aslacking.(…)mostimportantofall,[Goëthe]standsin1795onthethresholdofmajor personal achievements, the creation of classicalworks in themodewhichhas come to be known as ‘high classicism’ (Hochklassik). If this was possibleagainst all the social odds, theremust be something peculiar about the Germancase.25
Eéprecisamentenessapeculiaridadequeresideointeressedohistoriador
literáriopeloClassicismodeWeimar,emquepontificaramGoëtheeSchiller,ocu-
padosemmostrarasfalhasdaculturaalemãeprocurandosoluçõesparaascolma-
tar.TendosidogoradaatentativadeHamburgoparafundarumTeatroNacional,
Lessing começara por atribuí-lo ao facto de não existir uma identidade nacional
alemã; julgara ser necessário começar por escrevermuitas obras, para formar a
naçãoecriar-lheogostopelacultura: concluiu, finalmente,queseriaprecisoco-
meçarporumteatronacional,paraeducarasociedade,parafazer,depois,nascer
umsentimentonacional.Então,porquemotivonãohouverapúbliconoteatrode
Hamburgo?Schilleravançacomumapropostaqueserevelaráprofícua.Dotadode
23T.J.Reed,TheClassicalCentre–GoetheandWeimar1775-1832,pp.17-18.24OmesmoconcluiuGermainedeStaël:“EnAllemagne, iln’yadegoûtfixesurrien,tout
est indépendant, tout est individuel. L’on juge d’un ouvrage par l’impression qu’on en reçoit, etjamaisparlesrègles,puisqu’iln’yenapointdegénéralementadmises:chaqueauteurestlibredese créer une sphère nouvelle.”:De l’Allemagne,TomeI, p. 126. E concluiu: “En examinant les ou-vrages dont se compose la littérature allemande, on y retrouve, suivant le génie de l‘auteur, lestraces de ces différentes cultures, comme on voit dans lesmontagnes les couches desminérauxdiversquelesrévolutionsdelaterreyontapportés.Lestylechangepresqueentièrementdenaturesuivant l’écrivain,et lesétrangersontbesoinde faireunenouvelleétude,àchaque livrenouveauqu’ilsveulentcomprendre.”:idem,p.135.
25T.J.Reed,TheClassicalCentre–GoetheandWeimar1775-1832,pp.18-19.
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umainconfundíveloriginalidade,tornou-seumcasodesucessodesdeDieRäuber,
suaprimeiraobradramática, iniciadaaindanaadolescênciae,depoisdeprofun-
damente revista, pela primeira vez representada no, posteriormente designado,
TeatroNacionaldeMannheim,em1772.Aclamadopeloseugéniodramático,logo
foivistocomoo,hámuitoaguardado, “Shakespearegermânico”.26Desafiando to-
dasasregrasclássicas,DieRäubertemtodasosatributoscapazesdecaptarointe-
ressedopúblicodaquelaépocaeotextoemprosa,apesardealgumainconsistên-
cia,possuiemsitodosostraçosqueoligamàcontemporaneidaderomântica.Die
Räuber é ahistóriada rivalidadeentredois irmãos–Franz, omaterialista frio e
calculista,eKarl,oidealistadefensordosfracoseoprimidos,àfrentedeumaqua-
drilhadebandidos,umaespéciedeRobinHood–,emque,cadaqualàsuamaneira,
ambosbuscamaliberdadeeaauto-determinação,sendoque,novamentecadaum
aseumodo,ambosterãoquelidarcomoinsucessoeodesespero:osegundore-
gressaàcasapararecuperarasuaantigaexistência;oprimeirooptaporpôrfimà
vida,paranãoterqueenfrentarapunição.Franzacreditavapodervencercomo
poderdasuarazão,masfalhou;Karlacreditavaqueconseguiriaviveràmargemda
leiinstituída,masfoiderrotadopelarealidade.Certoéqueestedramaíntimodas
duaspersonagensdesenhadasporSchillerconseguiuaclaraadesãodopúblicoe
foi o princípio de uma promissora colaboração com o Nationaltheater de Man-
nheim.27Entretanto,GoëtheiniciaoseuWilhelmMeisterLehrjahre,28obranovade
carácterhíbrido,onderetrata,de forma lúcida,omundodo teatroea sociedade
coeva.WilhelmMeisteréotípicoheróiromântico,inconstanteeplenodecontra-
26“BaronDalberg,thedirectorofthetheatre,hadseenSchiller’smanuscriptandhadreal-
ised thatherewasaworkof real theatricalgenius;onereviewerof theproductiondeclared thathereatlastwasthelong-awaitedGermanShakespeare.“:inF.J.Lamport,GermanClassicalDrama,pp.53-54.
27“TheMannheimtheatrewastomakeitsnamealittlelaterthroughtheactingofIffland,butthetechniqueofcommunicatingwasnotmatchedbydramaofvalue.ItsliteraryglorywastobeSchiller’s brief stay and the production of his earlyworks; but him it cast out as uncomfortablyradical and superfluous to practical needs. Thus literaturewas denied even the single pivoting-pointwhichitrequiredinordertotakeeffectwithoutthesupportofacoherentsociety.Schiller’searlyplayswerewrittenandproducedinaninsecure,hand-to-mouthsituation.Yettheyareposi-tive,evensanguineinmood:theyrespondtowhathesawasthehigherneedsofthetimeandtheenvisagednation.ThemoodwassharedbyGoethe,wholefttherichestandmostpreciserecordofthe German theatre, its aspirations and its relations with actual German society in these sameyears.”:T.J.Reed,TheClassicalCentre–GoetheandWeimar1775-1832,pp.23-24.
28AobraOsanosdeaprendizagemdeWilhelmMeisterestádivididaemoitolivros,corres-pondendooscincoprimeirosàsuamissãoteatral–TheatralischeSendung–redigidosporGoëtheentre1777e1786.
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dições, impreparadoe indecisoperanteavida.Oriundodeuma famíliaburguesa
abastada,éseduzidoporumabelaactrizeviajapelaAlemanhacomumacompa-
nhiadeactores,mascedodescobrenãotervocaçãoparaoteatro.Numaprimeira
fase,Wilhelmmantem-sejuntodosactores;entretantoéconduzidoaumaorgani-
zaçãomaçónica,ondeesperacompletarasuaformação,nãoexactamentepelaarte
maspeloconhecimento,sobainfluênciadoAufklärung.Dequalquermodo,oque
nosinteressasobremaneira,paraoestudodeGarretteoteatronacional,émenos
a tramadoque todaa sua envolvência, os condicionalismosdo teatropré-Sturm
undDrangeasequenteevolução:
Whatwedoseeisfascinatingenough.Goethegivesusanintimatepicture
ofactorsandactresses,theirprofessionalshortcomingsanddifficulties,theirsta-tus and the state ofGerman literature at the timeofGottsched’s supremacy, thehopes thatwerecherished for the theatreasanational institutionand influence,thereactionsofdifferentoflevelsofsocietytodramaandtotheactingcompaniesasasocialgroup.Inallthis,thingsofvalueminglewiththingsofnovalue,talentjostles charlatanry, ideals and ambitions are harnessed with plain gain-seekingandevenswindling.It’samixturewhichWilhelmfinallyaccepts.
Fromthefirst,hispersonalexperienceparallelsandrepresentsthatlargerphenomenon, the stateof the theatre.The individual is renderedas anundimin-ishedreality,but inadditionhecarriesageneralmeaning. (…)theytrytoohard,theylosethecharmofinnocencebuthavenothingyettoreplaceit.29
Chega,então,aumahipótese:nãoforaessaperdadeespontaneidade,talvez
tivessesidopossívelumprogressivodesenvolvimentonaturalatéchegaraumtea-
tronacional alemão;ou seja, a importação, e imposição,denormasestrangeiras,
nomeadamentefrancesas,retardaraosurgimentododesejadoteatronacional.Por
isso,comoviriaaescreveroautordeDonaBranca:"Vamosasernósmesmos,va-
mosaverpornós, a tirardenós, a copiardenossanatureza",30“mostrandoaos
novos engenhos os tipos verdadeiros da nacionalidade que procuram, e que em
nósmesmos, não entre osmodelos estrangeiros, se devem encontrar".31Note-se
29T.J.Reed,TheClassicalCentre–GoetheandWeimar1775-1832,p.24.Umoutroparalelo
importantecomaépocadeGottschedseráestabelecidonestaobradeGoëthe,“whenWilhelmme-etsthePrincipalofatravellingcompany.Hername,MadamedeRetti,masksthehistoricalidentityofKarolineNeuber(‘dieNeuberin’),famousasthepracticalcollaboratorinGottsched’sschemesfor‘regularising’thetheatre,thatis,forraisingitfromacommonpopularentertainmenttoanartisticinstitution.”:idem,p.25.Essa‘regularização’consistiaemabolirafiguradoArlequim,importadadacommediadell’arte,edoseucorrespondentegermanizadoHanswurst.Aomesmotempohaviaumatentativadetornaroteatromais literário,oquenaépocadeGottschedequivaliaaafrancesar,aocontráriodoquepreconizavamosStürmerundDränger.
30RevistaUniversalLisbonense,VolumeIII,p.103.31Idem,p.107.
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que,naalturadaproduçãodeWilhelmMeister,Goëthe jáestariaemprocessode
transiçãodaSturmundDrang paraodenominadoClassicismodeWeimar, ainda
que tal sejaperfeitamenteexplicávelporuma imaginária linhadeprogressãona
literaturaalemã,desdeatentativadeGottscheddeeducarogostoliterário,apartir
domodelofrancêsclássico,passandopelomoralismodeLessing,procurandodes-
pertaropúblicopelaexperiênciadotrágico,atéchegaraosStürmerundDränger
GoëtheeSchiller,queacreditavamserpossível,atravésdaartedramática,consci-
encializarcadaindivíduodasuacapacidadedeconstruirumanovasociedade,uma
novanação,32e,porfim,aoClassicismodeWeimar,quandoestesdoisúltimosau-
toresprocuraramsintetizararazãoiluministacomoidealismoromântico,acredi-
tandonumaartebaseadanasleisdanatureza,dahumanidadeedasociedadeem
queégerada.33TambémoautordeRomanceirocomungoudestaideia,aoafirmar
que“aliteraturaéfilhadaterra,comoosTitãsdafábula”.34
EmPortugal, aliás, o contexto teatral não seriamuito diferente doque se
encontravapor essaEuropa fora.De resto,desdeaúltimametadede setecentos
quesenotavaumafortenecessidadedemudança,comtodoumconjuntodetoma-
dasdeposição,àvoltadeumpequenonúcleodeiluministasestrangeirados35ou,
32Nas suas Cartas sobre a educação estética do homem (Briefe über die ästhetische Er-
ziehungdesMenschen),pelaprimeiravezpublicadasem1795.FriedrichSchillerenfatizaessapos-sibilidadedeelevaroserhumanoatravésdacontemplaçãodoBelo.
33OpinaT. J.Reed: “When inhis late years, [Goëthe] lookedatEuropean society, hewaspersuadedof its intractability tocultural influence,convincedthathispowerandcompetence layonlyintheculturalfield.Theresthadgrownbeyondtheindividualgrasp.Suchdisconnectionwasinherentinhissituationfromearlyon.Artinhisyouthlackedanadequatesocialbase.HebuilthisoeuvrewithoutsupportfromtheconditionsClassicismsnormallyarisefrom.Ithadtoborrowhisstrengthfromelsewhere, frompersonal impulses, fromscientific ideas, fromancientsources(…).YettheartheandSchillerproducedimpliesasociety–implies,thatis,alevelofthoughtandfeel-ing, of ethical andaestheticdiscrimination, of aspirationand compassion–whichneverarose tomatch it.Much of the bitterness directed at German Classicism in recent times springs from thedisappointmentofpoliticallyawarecriticsatthefailureofanationalsocietyevertocomeuptothestandards of an artwhich, throughout the nineteenth century, itwas so ostentatiously proud toown. (…)Whatdid follow insteadwas ‘grossePolitik’ (…).And evenbefore that stage,whathadfollowedwastheabrogationofliberalprinciples(…)byliberalmenwhooptedin1848foranationofexternalpowerratherthananationofinternalfreedom.(…)Intheend,howeversociallyawareourliterarycriticismandhistoriographyare(…),ithastoberecognisedthatliteratureisnotmere-lyonebranchofideology(…);thatithasadistinctivenature,withoutwhichitwouldlosevalueandinterest(…);thatthecriteriabywhichwejudgeitmustbeginbybeinginternalto literature(…);andthattheprimecriterioniswhatamanmade.”:TheClassicalCentre–GoetheandWeimar1775-1832,pp.256-257.
34NotasdoautoraoFreiLuísdeSousa,ObrasCompletas(1966),p.1149.35“Oconceitodeestrangeiradocomoforçadinâmicaeordenadanahistóriaportuguesaé
muito recente. Os grandesmentores do século XVIII não precisaram de o formular e, apesar daemigraçãopolítica,tambémsenãodeterminaemGarrett,Herculanoou,porcontraste,emCastilho(…)”,escreveuJorgeBorgesdeMacedo:inEstrangeirados,umconceitoarever,p.11.
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noquetocaaoteatroeàliteraturaemgeral,noseiodaArcádiaLusitanaesobre-
tudo,posteriormente,daNovaArcádia:
Jáoteatroarcádicooscilaraentreatentativaderestauraçãodatragédiae
acriaçãodecomédiasburguesas,deacordocomosparâmetrosdanovasociedadelisboeta.Naverdade,aindanasegundametadedoséculoXVIII,arainhadominanteeraaóperaitaliana,aindaqueapresençadacomédiaespanholasefizesse, igual-mente,sentir,nomeadamentenoTeatrodoBairroAlto,ondetambémpairavamosbonifratesdomalogradoAntónioJosédaSilvaeseusseguidores.Foradosteatros,diriaNicolauTolentino, ‘a cavalonumbarbante’distribuía-sea famosa literaturadecordel,queincluíatraduçõesdepeçasdeteatro,frequentementedegostoduvi-doso. Neste contexto, os Árcades pugnavam por uma tragediografia portuguesa,assentenosmoldesdoteatroclássicofrancês,deCorneilleeRacine,evoluindopa-raoiluminismodeVoltairee,posteriormente,paraasimitaçõesdeAddisonouAl-fieri, cujas obras eram ‘acomodadas ao gosto português’.36É de salientar, nestaplêiade,o contributodeManueldeFigueiredo,37que, senãosenotabilizoucomodramaturgo,revelouumaimportantecapacidadedeauto-crítica,paraalémdasua
Noentanto,continuaomesmoautor,“otermo‘estrangeirado’eraconhecido,assimcomo,a
possibilidade dele se aplicar à qualificação de um grupo específico, agindo em coerência. Aqueleporémexprimia,nãoumamentalidade,masfórmulaspolíticas,acusadoras,recusadas,consequen-temente, por quem visavam. O termo constituía uma expressão de crítica, de censura, apontavacorrupção; os liberais vintistas, quando o usavam, como intuito de delimitar um grupo, não lhedavamoutrafinalidade:
‘AcanalhaestrangeiradaberraaltoebomsompelaCartinha,sópelasingularidadedequeeladeportuguesasótemacapa,porquenãotemsidopossívelnaturalizá-laemInglaterra,conten-taram-seemquefosseescritaemfolhadeBananeira.’
No princípio do ano de 1838, o conceito de estrangeirado, quando aparecia,mantinha osignificadodesugerirumadependênciaindesejávelrelativamenteaoestrangeiro,noplanopolíticoesemqualqueralcancecultural:
‘Portugal infelizmente, não apresenta hoje um aspecto tão lisonjeiro como ao começar oano pretérito! Rendamos as graças a esse Partido Estrangeirado, que abusando da generosidadecom que fora tratado pelo povo, que o vencera em Belém, continuou conspirando a favor dessamesmagenerosidadeatéqueveioaorompimentodaGuerraCivil!TaissãooshomenschamadosdeD.Pedro(…).”:idem,pp.13-14.
Dequalquermodo,AntónioCoimbraMartinssintetiza,chamandoaatençãoparaofactodeque“doromantismoparacá,estrangeiradosseriaantesorótuloconferidoaoprogressista,insatis-feitoouinconformista,aopioneirodequalquernovidade,contraaqualsemobilizaanacionalinér-cia,aofranco-atiradorqueseautocondenaacrivardesetasamitologiareinante”:inCarlosLeone,OEssencialsobreEstrangeiradosnoséculoXX,p.8.
36Quandoaindajovem,tambémAlmeidaGarrettcedeuaestastentativasdeacomodarCa-tãoealgumteatrodeAlfieriaogostoportuguês.
37NestestermosserefereGarrettaManueldeFigueiredo,ao iniciarocapítuloIXdeVia-gensnaminhaTerra:“Viviaaquihácoisadecinquentaparasessentaanos,nestaboaterradePor-tugal, um figurão esquisitíssimo que tinha inquestionavelmente o instinto de descobrir assuntosdramáticosnacionais(…).Deixouumacolecçãoimensadepeçasdeteatroqueninguémconhece,ouquaseninguém,equenenhumasofreria, talvez, representação;masraraéaquenãopoderiaserarranjadaeapropriadaàcena.Queminatãoricaefértilparaqualquermedianotalentodramático!Quebelaseportuguesascoisassenãopodemextrairdostrezevolumes–sãotrezevolumesegran-des! – do teatrodeÉnio-Manuel de Figueiredo!Algumasdessas peças, combempouco trabalho,comumdiálogomaisvivo,umestilomaisanimado,fariamcomédiasexcelentes.(…)Sãomuitas(…)ascomposiçõesdofertilíssimoescritorque,passadaspelocrivodemelhorgosto,eanimassobre-tudonoestilo,fariamumrazoávelrepertórioparaacudiràmínguadosnosteatros.”:inObrasCom-pletas(Lello,1966),pp.44-45.
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relevantefacetadeteorizador,nosseusdiscursosprefaciais,abrindocaminhoparaareabilitaçãodoteatroportuguês.Aologodostrezevolumes,nosquaisseusirmãoAntóniodeFigueiredocoligiuasuaextensaobradramática,verificamosassuasin-cursõespelacomédiadecostumes,àsemelhançadoTeatroNovo,deCorreiaGar-ção,peloqualperpassaumacertaapologéticadatradiçãovicentina,naconstruçãodaspersonagens,aomesmotempoquesetornaumnotávelesboçodosgostostea-traisdosportuguesesseuscontemporâneos.38
Comoresposta,foicriadaaAcademiaRealdasCiênciaseaRealMesaCen-
sória,39comointuitodetravarosdesvariosprogressistas,queenfraqueciamopo-
der da intelectualidade tradicional e punham em causa o status quo.40Foi neste
quadro que, progressivamente, alguns nomes se foram descolando da etiqueta
clássicaeevoluíramparaumaescritadecaracterísticasalgodiferentes,anuncian-
doopré-romantismo;entreessasvozesdissonantes,jámaissensuaisdoqueraci-
onais, contamos aMarquesa de Alorna, Bocage e José Anastácio da Cunha, para
alémdoescolhidomodelogarrettiano–FilintoElísio,41oqual,apardasuaprodu-
38Maria Gabriela Ferreira, Jornal doConservatório: Comédia eDramadeAlmeidaGarrett,
pp.15-16.39JoséSebastiãodaSilvaDiaschamouaatençãoparaasdiversasfunçõesdesempenhadas
pelaRealMesaCensória,concentrandoas“responsabilidadesanteriormentedistribuídaspeloOr-dinário, pela Inquisição epeloDesembargodoPaço, e a situaçãomanteve-se comas instituiçõesquelhesucederam.Aindaquesemprebastantelimitativadaliberdadedeexpressãodopensamen-tonassuasincidênciaspolíticasereligiosas,aMesacorrespondeuaopropósitodeestadualizaçãoda censura e, aomesmo tempo, de liberalização da imprensa, namedida em que a liberdade depensamentopudessesercompatívelcomapolémicaantijesuíticaecomasdirectrizesregalistaseiluministasdoEstado.”:inJacintodoPradoCoelho(dir.),DicionáriodeLiteratura,vol.1,p.175.
40ConstatouMariadeLourdesLimadosSantosque“jána2..ªmetadedoséculoXVIII,ocle-ro tradicional via, inquieto, o enfraquecimentoda sua posiçãono campoda luta pela hegemoniaideológica,atingidopormedidascomoacriaçãodaRealMesaCensória(1768)oudaAcademiaRealdasCiências(1779).Comaprimeiradestasinstituições,ocontrolodetodasaspublicaçõescentra-lizava-senumorganismodoEstado, acrescentandoqueaRealMesadetinhaainda, para alémdafunçãofiscalizadora,oencargodetodaaadministraçãoedirecçãodosestudosdasescolasmeno-res, incluindooRealColégiodosNobres.Porseu lado,aAcademiarepresentavauma importantejogadaafavordeumaintelligentsiacompostadearistocratasestrangeirados(modelo:oduquedeLafões, homem formado pela Universidade de Coimbra,mas que depois viajara vários anos pelaEuropaondealargaraosseusconhecimentos),deliteratosemagistradosburgueses(CruzeSilva,NicolauTolentino…)edealgunseclesiásticos(padresoratorianos).Easforçasconservadorasviamcomsuspeitaestasordenseclassesreunidasemnomedeumacomumculturadasluzeseidentifi-cadas, enquanto aristocracia intelectual, num testemunho da crise dos velhos valores, sobretudoevidenciadaatravésdapresençadeeclesiásticos,enunciandoodesenvolvimentodentrodaprópriaIgrejadeumaatitudecríticaqueaminava[JoséLiberatoFreiredeCarvalhodirigia,quandoaindafrade,umabibliotecanoConventodeSãoVicentedeFora,querecheavacomobrasfrancesasforne-cidasporumlivreiroRey,doChiado,entre1800e1805(porestamesmaaltura,Liberatofazia-semação).Nabibliotecareuniram-sefrequentementeváriosintelectuais,queeramdesignadospelosfradesdoConventocomoos filósofos. (notadaautora)]”:ParaumasociologiadaculturaburguesaemPortugalnoséculoXIX,p.102.
41RecordemosquetambémJoãoBaptista foraalvodeumaformaçãoarcádica,dependoriluminista, cujos princípios nunca negou,mas aos quais soube aliar a almanacional, visandoummaisvastoalcance,oderefundarapróprianação.NomesmosentidoteorizouAlexandreHercula-no,aodefender:“queosportuguesesvoltemaumaliteraturasua”e“queamemapátriamesmoem
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çãodependorhoraciano,foitraduzindoalgunsautoresfranceses,nomeadamente
Chateaubriand. Aliás, a colagem aos modelos franceses, tal como acontecera na
AlemanhadeGottschedeWieland,eraoquemaisdesgostavaoautordeFloressem
Fruto,cansadodas“macaquicesfrancesas”quedominavamospalcosdacapitaldo
Reino,42mesmodepoisdaviragemdoséculoedasinvasõesnapoleónicas,aquese
seguiuaregênciabritânicae,em1820,arevoluçãoliberal,emverdadeclimaspou-
copropíciosparaoressurgimentodoteatroportuguêsemesmo,diga-sedepassa-
gem,paraqualqueriniciativacultural,decunhonacionalououtro;contudo,talnão
significou,evidentemente,queumanovaintelectualidadenãosefosseformandoe
tomandoassuasiniciativas,frequentementeapartirdoestrangeiro,comodurante
aprimeiraemigração,aindanadécadade10,e,fundamentalmente,nasquesese-
guirama1823,datadoprimeiroexíliodeGarrett,43queserevelariadeterminante
peloacumulardenovosconhecimentoseexperiênciaque,“emcorrelaçãodialécti-
ca, exacerbou por um lado a ponderação do realmultiforme, precário e sempre
imperativamentemodelador, e, por outro lado, a exaltação das potências do eu,
sacráriodeapelossublimeseantrodenefandaspaixões,mónadaparadoxal,que
sópoeticamentesecomunica,dadaaprosaopacadaexistência”.44Regressadodo
poesia:queaproveitemosnossostemposhistóricos,osquaisocristianismocomasuadoçura(…)tornarammaisbelosdoqueosantigos”eque,emvezdamitologiaerudita,invoquemanossa“mi-tologianacionalnapoesianarrativa;epelareligião,pelafilosofia,epelamoralnalírica.”:inMatto-so,José(dir.),HistóriadePortugal–OLiberalismo,p.546.
42ConformenotouMariadeLurdesLimadosSantos,“Entreaquelesqueapartirdosegun-doquarteldoséculoXIXfaziamcríticateatraleramfrequentesasqueixascontraasujeiçãoaotea-tro francês.Osmelodramas traduzidos tinham-se impostoaopúblicoe,paramuitos, constituíamumadascausasdadegradaçãodogostoteatral,responsabilizadospelacorrupçãodopúblico,dosactoresedosautores.”:ParaumasociologiadaculturaburguesaemPortugalnoséculoXIX,p.58.
43Comopodemosler,aindanamesmafonte,“naprimeirametadedoséculoXIX,asocieda-deportuguesa foi atravessadaporuma sériede acontecimentos (invasões francesas, domínio in-glês,revoluçãode1820,revoltasecontra-revoltasentre1834e1851)aolongodosquaissedesen-volveuumanovaintelligentsiacujaactividadeideológicaepolíticacontribuiriaparaalargaracriseorgânicado“antigoregime”,paracimentaroacessodaburguesiaaopoderpolíticoeparadarex-pressãoàspretensõesdassuasdiferentesfracções.Orecrutamento, formaçãoepossibilidadesdeactuação desta nova intelligentsia passaram por mudanças várias, que umas vezes apontavamavançoseoutrasvezesdenunciavamrecuosnacontendacomaintelligentsiatradicional.Progressi-vamente,odiscursodestaiasendodesalojadoporumdiscursonovo(novoprimeiropeloconteúdoesómaistarde–apartirdadécadade30–pelaforma);todaviaparaasuavalorizaçãoedifusãoseriaprecisocriaroutrassedesquenãoasqueaintelligentsiatradicionalconseguiadeteremmo-nopólio, sendomesmonecessário, em certas conjunturas, que aquelas sedes fossem clandestina-menteorganizadas.Oenvolvimentodosintelectuaisnosváriosconfrontosdoperíodoemcausaiadefinindo, através das diferentes configurações que assumia, todo um percurso, mais oumenosacidentado–opercursodasuaformaçãoenquantocategoriasocialdistinta.”:idem,p.93.
44OféliaPaivaMonteiro,AFormaçãodeAlmeidaGarrett–ExperiênciaeCriação,vol. I,pp.17-18.
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exílio,oautordeViagensestavamaispreparadodoquenuncaparaentrardenovo
nacenanacional,trazendoconsigoumanovaideologialiterária–tãoansiadapor
toda uma geração dramaticamente impelida para o campo das lutas ideologico-
políticas-,quepretendianacionalizar.45
Comofimdaguerracivil,nasequênciadaConvençãodeEvoramonte,de26
deMaio de 1834, Portugal estava relativamente pacificado. Contudo, à alamais
radicaldosliberaisdesagradavaafaltadeeficáciadochamadoPrimeiroCartismo,
quenãofizeraaindaasreformasnecessáriasepareciaperpetuarosprivilégiosde
alguns em detrimento de outros, pondo em causa os avanços conseguidos pela
Constituiçãode1822.Assimsendo,foicrescendoummovimentoemvoltadeum
grupo de deputados eleitos peloNorte, o qual, tendo ganho a adesão popular e,
acimadetudo,aconivênciadaGuardaNacional,se impôsperanteaRainhae to-
mouopoder.ComaRevoluçãode9deSetembrode1836eaascensãodePassos
Manuel,46ficaabertocaminhoparatodoumconjuntodereformasqueosliberais,
e sobremaneira João Baptista de Almeida Garrett, hámuito vinhampreparando,
sobretudoaoníveldaeducaçãoeinstrução,nomeadamentedoensinoartísticoe,
concretamente,daartedramática.47É,pois,nestecontextoqueoautordoTratado
45Decertomodo,umpoucocomodiriamaistardeAntónioSérgio,“fazeracasaportuguesa
utilizando a técnica europeia”: Carlos Leone, O essencial sobre Crítica Literária Portuguesa (até1940),p.77.
46Comojáfizemosnotar,comPassosManuel,“oSetembrismoalcançouoidealromânticode recuperação e preservação das raízes históricas nacionais: recuperou os edifícios das ordensreligiosasextintas,preservandooseurecheio,sendoasobrasdearteedejoalhariaguardadasemmuseus,oudistribuídasporigrejas,eoslivroscatalogadosparaaorganizaçãodebibliotecasesco-laresepúblicas.Alémdisso,implementouareformadoensino,escalonadoemtrêsníveis:primário,secundárioesuperior,efomentouacriaçãodosliceus,umemcadacapitaldedistrito,comumpro-gramaintegrado–humanístico,científicoeadministrativo–eumaclassedeestudoseclesiásticos,destaformaenquadradosnoensinogeral.Emboraoensinoaindanãofosseobrigatório,enfatiza-seaobrigaçãomoraldospaisdeconduziremosfilhosàescola,únicocaminhoatrilharpelosquenãoqueriampermanecersobo jugoda ignorânciaede todasassuasnefastasconsequências.”:MariaGabrielaFerreira,JornaldoConservatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett,p.28.
47“Quantoaoensinodasartes,jáaConstituiçãode1822,noseuartigo238,previaacria-çãodeescolascomessefim,paraalémdosestabelecimentosdeinstruçãopúblicaexistentes.MaséporsugestãodeGarrettquealgodenovovai,finalmente,surgir,noâmbitodeumambiciosoevastoprojecto, que vai relacionar amúsica e a dança coma formaçãode actores, noConservatório deArteDramática,comvistaàformaçãodeumacompanhiadeactoreseàconstruçãodeumrepertó-rio dramático genuinamente português, que possa ser apresentado no novo teatro nacional, queurgeedificar.”:idem,pp.28-29.
Eofactoéqueatéasnarrativasficcionaisquepublicouapresentamumaglobalconfigura-ção dramática, desenrolando uma acção fortemente emotiva num tempo curto, em cenas muitopreenchidaspordiálogos:ademoradoromancenaconstruçãodeespaçoetempo,naevocaçãodoaspectofísicoedavidainteriordaspersonagens,ounolevantamentodasmotivaçõesedodesenro-lardosconflitos,coadunava-sepoucocomoseupendorestéticoparaaintensidadenabrevidade(a‘concentração’diegéticaeemocionalqueoteatropede).Torna-serelevante,porexemplo,que,nos
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daEducaçãosevaimover, incansavelmente,entreoteatrodapolíticaeapolítica
doteatro,paralevaracaboagrandemissãodasuavida:areformadoteatroecom
ela a restauração da nação portuguesa. Com o mesmo intuito reformista, e na
mesmalinhacivilizadora,entreoiníciode1837emeadosde1840,Garrettfunda
doisjornais–OEntre-Acto,emMaiode1837,eoJornaldoConservatório,emDe-
zembrode1839–ecolaboranoutroscinco–ONacional,OBiógrafo,OConstitucio-
nal,UniversoPitorescoeCorreiodeLisboa.NomeadoInspector-GeraldosTeatrose
dos Espectáculos Nacionais, conforme previa o Decreto de 15 de Novembro de
1836, empreende todas as possíveis diligências para que comece a funcionar o
ConservatórioGeraldeArteDramática,oqueviriaaacontecernoiníciode1839.48
Pelomeio,aindaconseguearranjartempoparanovasproduçõesliterárias,comoo
exemplarUmAutodeGilVicente,49produzidoemmeadosde1838,comoquales-
fragmentosromanescos,surjam‘listas’comosnomesdaspersonagenserespectivasrelaçõesficci-onais, ou aindapequenasdidascálias antesdo iníciodo textopropriamentedito.”: da IntroduçãoaosFragmentosRomanescos,p.18.
48Segundoestipulaodecreto, idealizadoeredigidoporGarrett,nasequênciadaPortariaRégiade28deSetembrodomesmoano,tambémdasuaautoria:
“Artigo1.º§1.ºÉcriadoemLisboaumConservatórioGeraldeArteDramática.§2.ºOConservatóriodeArteDramáticaédivididoem trêsEscolas, a saber:1.ºaEscola
Dramáticapropriamentedita,oudeDeclamação;2.ºaEscoladeMúsica;3.ºaEscoladeDança,Mí-micaeGinásticaEspecial.(…)
§4.ºPararegerasEscolaseinstruirosalunosnasdiversasdisciplinasqueconvêm,serãotiradosdosdiversosteatrosdeLisboaosActores,eArtistasmaisexcelentes,aquemporseutraba-lhosedaráumagratificaçãocorrespondente.
§5.ºOInspectorGeralproporá(…)umplanodeEstatutoseregimentodestasEscolas,emque,pelosistemadeprémioseacessos,sefomenteeprotejaaArteDramáticaesuassubsidiárias.(…)
Artigo4.ºÀproporçãoqueseforemformandoosAlunos,seirátambémformandoumanovaCompa-
nhiadeActoresNacionais,queEutomodebaixodaMinhaEspecialeRégiaProtecção.(…)Artigo7.ºOSecretáriodeEstadodosNegóciosdoReinoficaautorizadoparalevaraefeitoacriação
desteútilEstabelecimento,eMeproporasmedidasqueforemconvenientesparaessefim.(…)”49Sobreascircunstânciasemquenasceuestapeça,diz-nososeuautor:“OSr.Garretten-
tendeuomandadocomvistasmaislargas;sólhehaviamencarregadoinspeccionarosteatros,eleresolveudar-lhesvida;haviasidonomeadoparaconservarrestos,queaindaexistiam,eledetermi-nouformarcomestesmesquinhoscabedaisumnovoedifício,começarnovaerateatral.Enãofoisomentecompreceitos,quetrabalhouparatalreforma;massimdeitoumãosàobraabrindocami-nho,quehámuitoninguémseatreviaatrilhar,poisqueaogéniomaduro,econfiadoemsuasforças,cumpresacudirojugoinveteradodaspreocupações.Lançoumãodealgunsactoresaindamalen-saiados, que um estrangeiro havia amestrado a recitar mal péssimas traduções, e lhe entregou,comovítimaparaosacrifício,umdramacompostoporele.Aimpaciência,egéniodopoetadobrouocantordoCamõesaensaiarpessoalmentealindacomédia,UmAutodeGilVicente;adelicadezado
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perava abrir caminho à reforma da escrita dramática em Portugal, consentânea
comoséculoecomascongéneresdomundocivilizado.50Nomesmoano,reescreve
acomédiaOCamõesdoRossio,tentadaporInácioMariaFeijóeprimeiradasobras
premiadaspeloConservatório,nosConcursosdeDramasOriginaisPortugueses,e
iniciaaredacçãodeASobrinhadoMarquês.51Jáem1840,compôsAmorePátria,
homemcortêsforçoueleasofrersubmissaasintrigasdebastidores,quesóavaliaquemdepertoasconhece.MastantostrabalhosteveporbemempregadosquandouniversaisaplausosmostraramaoautordeCatãooapreço,emquetodostinhamaquelanovaobra,eoscuidadosquelhedeveraasuaexecução.”:JornaldoConservatório,n.º15,nesteVolume,p.315.
Naintroduçãodesta“obrainiciáticadoromantismoteatral”,DuarteIvoCruzencontraumadoutrinação com “linguagemeconómica e expressamentedemercado – logo, à suamaneira enasuaépoca,tambémelaliberal”:“Oteatroéumgrandemeiodecivilizaçãomasnãoprosperaondeanãohá.Não têmprocuraos seusprodutos enquantoo gostonão formaroshábitos e comeles anecessidade.Paraprincipiarpoisémistercriarummercado fictício […]depoisdecriadoogostopúblico,ogostopúblicosustentaoteatro”(OsPolíticoseoTeatro.Governantes-DramaturgoseDra-maturgos-GovernantesdeGarrettaosnossosdias,pp.17-18),numaespéciedeprincípiodaofertaedaprocuraavantlalettre.Omesmoautorsugereaindaapresençadevalorescomoaliberdade(“nacortedeD.Manuel I”)ea“evocação(…)de ‘umacertaaristocraciadacultura’quesevalorizanoquadroenacoexistênciacomaaristocraciatradicional:
BERNARDIM–Desgraçadodoquetocarnestamão.Sãoduques,sãoreis,sãopríncipes?EusouBernardimRibeiro, o trovador, opoeta, que tenhomaior coroaquea sua.O ceptro comquereinoaqui,ganhei-o,nãooherdeicomoeles.
ValedizerqueGarrett,nofimdavida,‘ganhou’(nãoherdou)otítulodeVisconde,ebemsebateuporele…”:idem,p.18.
50ÉparticularmenteparadigmáticaaIntroduçãoqueodramaturgoescreveuparapublicarjuntamentecomaobra,peloseualcancedoutrinal,porquenelaexpõe,embreveresenha,oqueoteatroportuguêstemsidoeoquedeverápassaraseresignificar,comoinstrumentoderenovaçãonacional.Concordamos,por isso,comIolandaOgando,quandoafirma,sobreomodelo estruturaldoconteúdodageneralidadedosparatextosgarrettianos,quegira“àvoltadetrêsgrandeslinhasdeinteresse:aobra,oautoreanação.Parece-nosincontornávelestaperspectivaseconsiderarmosqueumdosalicercesdopensamentoestetico-políticogarrettianoéodautilidadedoteatroparaomelhoramentodanaçãoportuguesa,emtermosdeeducação,dignificaçãodaculturaoucriaçãodemodelos de comportamento.”:AlmeidaGarrett, Retrato Paratextual comTeatro ao Fundo, p. 9. Econtinua: “(…) parece-nos possível afirmar desde já que, ainda num regime de convívio com osaspectosformais,adoutrinaestéticateatralcorrespondeprincipalmenteàvontadedeintervençãoeaopapeldepoeta-cidadãoreivindicadosporGarrett,reproduzindoassimatendênciageralentreosintelectuaisromânticoseuropeus(…)eassumindoumpapelcentralnaconfiguraçãodaculturanacional portuguesa.” (idem, p. 10) De resto, “(…) esse ‘esforço de auto-legitimação assume (…)feiçõesdiversasquevãodasimulaçãoàencenação/teatralização,passandopelaauto-defesaepelaauto-justificação,comincursõespelaauto-glorificação,deformamaisoumenosassumidaouvela-da’.Podeafirmar-se,pois,semrodeios,ocarácterabsolutamentevoluntaristaeprojectivodaacti-vidadeparatextualgarrettiana,espaçoondeoautormaisvisivelmenteseapresentaetornapresen-te,dando/contadeumaverdadeira‘poéticaexplícita’(…)queseune(…)auma(…)função,adi-dáctica,essencialduranteoperíodoromântico”.(idem,pp.16-17)Paraalémdisso,as“novaspossi-bilidadestextuaislevamaque,duranteesteperíodo,osparatextosassociadosàpublicaçãodaobraliteráriase tornememsegundostextoscentraisdentrodovolumee,portanto,numgrupo textualmuitorelevantenoconjuntodaobradoautor.”(idem,p.14)
51ComoobservaDuarteIvoCruz:“ASobrinhadoMarquês(…)contémumasínteseideoló-gicadeGarrett,transpostaparaosconflitosde‘tirania’doMarquêsdePombal,mastambémasuapolíticamodernizadoraedesenvolvimentista.Noprefáciodaedição,Garrettdefineumposiciona-mentoclaramentesocio-político:
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dramaestreadocomoanónimo,noTeatrodoSalitre,pelosalunosdoConservató-
rio,em29deMaiode1840,eque,depoisderevisto, legariaàposteridadecomo
DonaFilipadeVilhena.52Cronista-MordoReinodesdeDezembrode1838,organi-
zaumconcorridocursode leituraspúblicas,versandotemasdeHistóriapolítica,
literária e científicadePortugalno séculoXVI, tão caros aosprecursoresdoRo-
mantismo. Entremuitas e variadas intervenções parlamentares53– como o cele-
bérrimodiscursodoPortoPireu,emrespostaaJoséEstêvão-,tambémanívelpes-
soaléesteumperíodomuitointenso:conheceAdelaidePastorDeville,pormeados
Nossospaiseavóstravaramaguerradaclassemédiacomaaristocraciaetiveramosreis
desuaparte.Duravaaindaapelejaaquiouali,quandoviemosaomundoquasetodososquehojevivemos:assistimosportantoàvitóriadosburguesesevimosamonarquia,suaprotectora,assus-tadaevacilantenocampodebatalha,temerdeseuprópriotriunfo,porqueseviuesentiunade-pendênciadosmesmosaquemtinhaajudadoavencer.
Pombal(…)éummodernizadorqueacreditanoprogressoeconómicoenumaclassemédianascente.Não tem ilusõesmasreconheceoprogressodecorrentedasuapolítica: ‘este jánãoéoPortugaldosfradesedasbeatas,eoquesemeienestaterra–sejamfloresouabrolhos–jánãooarrancam’.Combateavelhanobreza,masacabaporconsentirnocasamentodasobrinhacomumfidalgodevelhalinhagem.Eapropósito,éevocadaaperseguiçãoànobreza.(…)Háumamensagemclaradevalorizaçãodaclassemédiasemdestruiçãodavelhanobreza,desdequeestatambémsemodernize.Ehátodoumprojectopolítico,mesmoquandoassumidocomreservas:Pombalconfis-cou‘essedinheirodefidalgo(que)ia-setodoemtoirosecavalos’eencaminhou-o‘paraaindústriaecivilizaçãodoreino’(…).Ecita-seaInglaterra‘ondeháliberdade’!(…)Pombaldefineumprogra-made renovaçãosocial: ‘Elevara classemédia, tirá-ladonadadopovo,desligá-lados interessesdela! Riqueza, saber, força, tudo fica no contra. (…)”:Os Políticos e o Teatro. Governantes-DramaturgoseDramaturgos-GovernatesdeGarrettaosnossosdias,pp.21-22.Omesmoautordesta-caaindaaposiçãodojesuítaPadreInácio,que“prega ‘aregeneraçãodaespécieoperadasemcri-mesnemsangue,semviolência,pelainteligência’,pois‘acruzdeJesusCristoeraárvoredaciência,erabandeiradeprogresso’.”:idem,p.22.
52“Aqui,bemmaisdoqueemoutrasobrasdeGarrett, faz-seassumidamenteoconfrontoentretradiçãoemodernidade,sendoestacomoqueumaantevisãohistóricadadoutrinaepráticaliberaldeGarrettfaceàhistóriaeàvelhanobreza.OtemanucleardaRevoluçãode1640,comasuaexuberantedimensãopatriótica, éevidentementedominante.OdiscursodeD.Filipaarmandoosfilhoscavaleirosconstituiocerneromânticodapeça (…).Masoproblemadavelhanobrezaedanobrezaliberal,aalgocomodoisséculosdedistância,éexpressamentecolocado.QuandoD.Fran-cisco, o jovem filhodeD. Filipa, refereos conspiradoresdemenorounenhuma fidalguia, ouvealiçãooitocentistadeGarrett:
D.FILIPA–Fidalguiaounobrezanãoestánosangue,meu filho,estánacriação,estánossentimentosdaalma.Oqueestánosangueéaobrigaçãodesernobre.
Maisexplícito,emais‘moderno’,nãopoderiaser.Masaúltimafaladapeçavaimaislonge,equestionamesmoalegitimidadedopoderreal:‘[…]Opovohá-desempreamarosseusreispor-queosseusreishão-desempreamaraliberdadesenão…senão,não!’Temosaquiumareferênciamuitoclaraàdualidadedoconceitode liberdade:daPátriamas tambémdospovos.”:Duarte IvoCruz, Os Políticos e o Teatro. Governantes-Dramaturgos e Dramaturgos-Governates de Garrett aosnossosdias,p.19.
53Recém-restauradoeadaptadoàsnovasfunções,ovetustomosteirodeS.Bentotornou-seanovacasadosdeputadoseneleGarrettdiscursou,pelaprimeiravez,a1deMarçode1837,depoisdeeleitopeloscírculosdeBragaedaTerceira.
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de1837,dequemterádoisfilhos54–NunoviverápoucomaisdeumanoeJoãomal
ultrapassaráummês.55Há,dequalquermodo,algoqueinterligatodososmomen-
tosdasuavida:umavontadeimensadedeixarumPortugalmelhordoqueaquele
emquenasceu,maisculto,maiscivilizado,moralmentemaissão,56oqueimplica-
riaesforçosconcertadosporpartedediferentessectoresquenemsempreconse-
guiusensibilizar.57Nuncasoçobrou,apesardisso,easuaacçãofrutificoumanifes-
tamente,nãoapenasnaabundante legislaçãoque redigiu,masacimade tudono
54NãotendosobrevividonenhumdosfilhosquetevecomLuísaMidosi,etendomorridoos
doisprimeirosfilhosquetevecomAdelaidePastor,aúnicafilhaque lhesobreviveriaseriaMariaAdelaide,nascidaa12deJaneirode1841.EmAfilhadeAlmeidaGarrett(Subsídiosparaasuabio-grafia),p.7,informa-nosHenriqueFerreiraLima:“A12deJaneirode1841nasceuafilha,D.MariaAdelaide,deixando,porém,amãegravementedoente.”(aescrituradeperfilhaçãoelegitimação,uminteressante documento – “Saibamquantos este instrumento dePerfilhação e legitimação virem,quenoanodoNascimentodeNossoSenhorJesusCristodemiloitocentosequarentaedois,nestacidadedeLisboa,naruadoAlecrimnúmeroquarentaetrêseFreguesiadaEncarnação,eCasaemqueresideoIlustríssimoExcelentíssimoJoãoBaptistadeAlmeidaGarrett,FidalgodaCasadeSuaMajestade,doseuConselho,CavaleirodaAntigaemuitoNobreOrdemdeTorreeEspadadovalor,lealdade emérito, Comendador da Ordem de Cristo, Oficial da de Leopoldo da Bélgica, EnviadoExtraordinárioeMinistroPlenipotenciáriodeSuaMajestade, juizdotribunalSuperiordoComér-cio,acujacasaeuTabeliãovim,aíseachavaSuaExcelênciapresente,quedouféseropróprio(…)”:pp.10-11,datade4deJunhode1842)
Namesmaobra(pp.14-15),écitadooartigodeD.JoãodaCâmara,sobreafilhadopoeta,publicadonarevistaOcidente,de5deFevereirode1896:“Adoravam-na.Tinhaumcondãoextra-ordinário.Virtuosíssima,mas tendoa iluminar-lhea virtudeumaaltíssima inteligência,não faziasombraaninguém.Comumaluzfiníssimafaziaacríticadetodaaobradearte.Adoravaaleitura.Liamuitoesabialer.Umqualquerromancequecontasse,aumentavadevalornasuaboca.Como-via-senanarração,explicavacaracteres,faziadescrições.
Conhecendoadmiravelmenteaobradopai,explicava-acomentusiasmo.”55Nunonasceua25deNovembrode1838efaleceua9deDezembrode1839;Joãonasceu
a6deNovembrode1839,vindoafalecera16deDezembrodomesmoano.56ComosalientouMariadeLurdesCorreiaFernandes,“Naverdade,paraoscríticosdaal-
tura era sobretudo o aspectomoral que estava presente quando falavam em degradação (…). Omelodramaeaóperacómica,outrogéneromuitoemvoganosanos40,eramtidoscomoaltamenteperniciosos,ocultandoa imoralidadeatrásdohorroroudo riso.”:ParaumasociologiadaculturaburguesaemPortugalnoséculoXIX,pp.58-59.
Nestecontexto, referindo-seàurgentenecessidadedemoralizara cena teatrale, atravésdela,adosespectadores,escreveuMendesLeal:“[…]umapunhaladaemcadacena,umassassinatoemcadaacto,tudocommuitasressurreiçõesacompanhadasdeah!aheoh!oh!–etodoumpurovenenoparaosbonscostumes,paraosiso,paraadecência,paraamoralpública.”:in“CríticaLite-rária"dojornalOsPobresdoPorto,transcritonaRevistaUniversalLisbonense,1842-43,tomoII.Porisso,continuavaomesmoautor,“Amissãodosescritores,nãoécorromperoscostumespúblicos;pelocontrário,onossodeveréinstruiropúblico,mostrar-lheoerro,abrir-lheosolhosedesviá-lodoprecipício.”:idem.
57“Nesteprocesso,empresários,actoreseautoreseramigualmenteacusados;opúblicoeravítimaparauns,cúmpliceparaoutros.Osempresários,naturalmente,insistiamnosdramasviolen-tos,nas‘óperascantadas’ounograndeespectáculo,emqueoaparatoeosefeitoscénicossesobre-punhamaotexto,génerosmaiscapazesdeatrairumpúbliconasuamaioria inculto.Bempodiamdesesperar-sehomenscomoGarrett,paraquemadegradaçãoteatralsignificariafundamentalmen-temaugosto,selvajaria,numapalavra,excesso.”:inMariadeLurdesCorreiaFernandes,ParaumasociologiadaculturaburguesaemPortugalnoséculoXIX,p.59.
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terconseguidopôrempráticaoiníciodeumareformadoteatro,formandoactores
noConservatório,incentivandonovosdramaturgoseefectuandotodasasdiligên-
cias para ver de pé umnovo teatro nacional, ainda que frequentemente alvo de
entraves, antepostos pormedíocres incapazes de compreender o alcance do seu
génio inventivo.58Consciente de que o teatro “é um grandemeio de civilização,
masnãoprosperaondeanãohá”,sabiaoreformadordaurgênciade“formaros
hábitos[noespectador]ecomelesanecessidade”,provocandonas“plateias,gas-
tas e caquéticaspelouso contínuode estimulantes violentos” apremênciade se
voltar“paraaordem,paraasregras,paraoregimedemoderação.”59
Apesardetodaaclarezaeobjectividadedeseusditoseescritos,emdiver-
sasocasiõesutilizouGarrettaimprensaperiódicaparadesfazerequívocos,muitos
delespartindodaprópriacâmaradosdeputados,quasesempresobaformaepis-
tolar.Umadessasepístolas60podeserlidanon.º770d’ONacional,61comointuito
58Eisumaprova:“QuedireieudeGarrett?Denovo–nada.Mastambémnãosetrataaqui
denovidades:pelocontrárioéprecisofixarideias.Garrettédeputadodemuitosrecursos;apresen-taasquestõescomfortuna,eenriquece-ascomosataviosdoestiloedalinguagem.Entretantonãoédeputadoparaarrancaravitóriadasmãosdosseusadversários.NãoháladodacâmaraemqueGarrettnãotenhatomadoassento,nãoháopiniãoencontradaquenãotenhaadvogado,quasenãohámeio oratório de que não tenha lançadomão contraditoriamente, e portanto, quando fala, seprendeosouvidos,nãocativacorações.ExistecontraGarrettcertaprevençãoinvencívelemtodososmatizespolíticos.Depoisdeumdiscurso,queporconfissãounânimeseavantajaaquantosseescutaram,osouvintes–etodaviaaplaudiram,eriram-se,echoraram,eporventurainflamaram-se–mostram-semenosconvencidosquedasrazõesdeoutrodiscurso,acasoomaissomenos,deumoradorsecundário.OincredulusodideHoráciocirculadebocaembocalogoqueGarrettacabadefalar. Este senão desgraçado, esta falta característica de forçamoral, que tolhe a Garrett sobre acâmaraainfluênciaquetantoambiciona,eaquetítulosaprovadospareciamdar-lhedireito,opre-judicademodonãomenosefectivocomohomemdebando.Garrett, ligadoaumpartido,escreve,fala,maneja,trabalha;porémospróprioscomquemseachacrêemtãopouconassuasobras,quãopoucoosaquemnacâmarasedirigeacreditamnassuaspalavras.Afaltadefé,que,segundoareli-gião,nosvedaasportasdoCéu,segundoocredopolítico,nãoadmitecompensação.Ecomoaditi-ria? – o ateísta político carece dos estímulos indispensáveis para arrostar (…) com dificuldadesquaseinsuperáveis,comperigostemerosos,paracombater–gladiar–conseguirvitóriasdosinimi-gos–dosmelhoresamigos–eatédesipróprio.Sóafétransferemontanhas.Nemcomodeputadopois,nemcomohomemdebandoGarrettdevesertemido,porqueemcontínuodescontentamentodesiedosoutros,foramisterummilagreparamudardenatureza,eoEvangelhopôsporcondiçãoataismilagresafé:OafavordeGarrettéimpossível.”:AlgumasconsideraçõespolíticaspeloAutordeHontem,Hoje,eAmanhã,pp.37-39.
59J.B.deAlmeidaGarrett,UmAutodeGilVicente,prefácio,1841; “FreiLuísdeSousa”, inMemóriasdoConservatórioReal.
60Teremosocasião,umpoucomaisadiante,denosreferirmosamaiscorrespondênciadeGarrett,publicadaem1838,n’OConstitucional.
61EditadoemLisboaporA.C.Dias,ONacionalsaiudopreloentre3deNovembrode1834e19deJaneirode1843,totalizandodoismilduzentosequarentaequatronúmeros.Foiumjornalprogressista,queseopôsaogovernodeAgostinhoJoséFreire[MinistrodoReino]e JosédaSilvaCarvalho [Ministro da Fazenda]. ApudVARGUES IsabelNobre e CABRAL, Luís,Garrett Jornalista.BibliotecaPúblicaMunicipaldoPorto,1999,p.37.
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dereporaverdade,quantoaoquedisseranasuaintervençãoparlamentar,concre-
tamentenasessãode30deJunhode1837.ComodeputadodaTerceiraerelator
dacomissãodiplomática,Garrettsustentaraumparecerdefendendoqueaquantia
pedidapeloMinistériodosNegóciosEstrangeirosparamantera legaçãodeLon-
dresnão seria exorbitante, já que se tratavadanecessáriaparadignificaropaís
peranteInglaterra–“sustentaraliaquelamissãocomdecência”,nãolhecompetin-
do a ele olhar à parte económica62. Perante argumentos oponentes, acabou por
sugerirumaquantiamenor,manifestamenteinsuficiente63.Clarificando,nãopediu
simplesmenteummaiororçamentoparaarepresentaçãonacapitalinglesa,antes
propunha poupar metade dos custos na representação diplomática de Madrid,
maispróxima, parapoder gastarmais comadeLondres.Não terá sido, todavia,
atendido.
Entretanto, João Baptista criou O Entre-Acto,64que pretendia ser exacta-
mente um jornal dos teatros, na verdadeira acepção do termo.65Constatando a
melhorianaqualidadedosespectáculos,desdeque,emborararamente,osperiódi-
cosseiamocupandodasandançasteatrais66,ofuturoautordeUmAutodeGilVi-
62“Aminha teoria constitucional, e que não receio ver combatida (com senso comum) é
quenadiscussãodoorçamento,oMinistrodevesustentaroquepede,porquenãodevepedirsenãooestritoindispensávelnecessário,–eodeputadorecusartudooqueoministronãosustentarcomoindispensável.”:ONacional,N.º770de5deJulhode1837,nesteVolume,p.54.
63“Razõesdemelindreeindependêncianãosómeimpossibilitavamnasessãodeontemdetomarpartenodebatecomorelatordacomissão,masatéexigiamdemimqueocombatesse,comofizsubstituindoaverbadacomissãoporoutraquetornavaimpossívelaverificaçãodeumhonrosodestinoqueSuaMajestadehámuitotemposedignaradar-me,equeeuaindanãoaceitei.”:ibidem.
64NaopiniãodeErnestoRodrigues, “oEntre-Acto/JornaldosTeatros (…),quaseexclusivoseu,serespondeapreocupaçãopessoalsentidacomourgêncianacional,cedocansaoredactordotrissemanário.Acompanhar,erecensear,osespectáculosdacapitalnãoseriafácil.Ocorreaí,toda-via,etambémvezprimeira,otermo‘Folhetão’(…),oque,agorajámaispertodarealidadedrama-turgico-literáriaesocial,alémdeespecificamentegráfica,detãopoderosofactocomoseriaofolhe-tim (e aquele poderia traduzir, por enquanto, ‘feuilleton’), denuncia atenção rara aomovimentofrancêsconcernenteaogénero.”:“GarrettJornalista”,inRevistaColóquio-Letras,n.º153/154,p.63.
65Conformesepode lernoprimeironúmerodestenovoperiódico,queentrouemcenaa17deMaiode1837equecontinuariaaté2deJulhodomesmoano,“semprospectonemprograma,começamoshojeapublicaçãodoEntre-Acto,jornalinteiramenteconsagradoaosinteressesdramá-ticos,ecomoqualprocuramossatisfazer,aumaindicaçãosocialdeprimeiraordem,adefiscalizarasnossas cenas.”:OEntre-Acto, n.º1,nesteVolume,p.56.SegundoGomesdeAmorim,quantoàpossibilidadedeGarrett terescritomaisartigosn’OEntre-Acto, “sãodelequasetodososartigos”:Garrett:Memórias Biográficas. Tomo II, p. 306. Todavia, Isabel Nobre Vargues salienta apenas acríticaaOsPuritanoseOBrasileiroemLisboa:Garrettjornalista,p.38.Quantonosfoidadoobser-var, este último título seria umesboçodo texto apresentadon’AIlustração (Volume III, pp. 223-227),emJulhode1845,assinadoJacaré-Paguá.
66Comonotouoilustrefundadord’OEntre-Acto,“desdequeaimprensasedignouocupar-sedosteatrosemPortugal,edeexercersuacensurasobreosnossosespectáculos,ésensívelame-lhoraeaperfeiçoamentoquesetemseguido.Secompararmosoquehádezanoseramascenasde
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centereconheceuquechegaraahoradehaverumjornalespecializadonoexercício
deuma censura, sistemática e construtiva, aosprogramas apresentadosnos tea-
tros.Decidiu,então, jáquemaisninguémofizeraainda, fundaresse jornal67que,
alémdeservirdecensor,muitoútilserevelariaparaopúblicoocuparosinterva-
los–istoé,osentre-actos–,funcionandoduplamentecomodistracçãoeinstrução,
vistoqueeramestasasprincipaisfunçõesdoteatro.68Paratal,comprometiam-se
os redactoresa apresentarumnovonúmero trêsvezesporsemana, contendoa
relação dos espectáculos desse dia e do seguinte, assim como a análise desses
mesmosespectáculos,notíciassobreteatrosnacionaiseestrangeiroseainda,so-
brando espaço, preenchê-lo com variedades “elegantes e agradáveis”.69Note-se,
aliás,comooexercíciosistemáticodacrítica70pretendiairaoencontrodopúblico
edosactores,semprevisandoamelhoriadosespectáculosedostextos,fortecon-
Lisboacomoquehojesão,éimpossíveldeixardeconhecerestabenéficainfluência.Aopiniãotemsidomaisrecta;osseus julgadostêmsidoproferidoscommaisdeterminação,earmadosdeumasançãoquelhesfaltavaquandonãotinhamórgão.Etodaviaeraaindaimperfeitoesteestado.Rarae lenta era a censura exercida pela imprensa, que, sobretudo nestes nossos tempos de agitação,ocupadadegravesquestõespolíticas,nãopodiasenãoporacasoeligeiramentetratardosinteres-sesdasartes.”:n’OEntre-Acto,n.º1,nesteVolume,p.56.
67“Era preciso que alguém se desse exclusivamente a este objecto. (…) À falta de gente,vimosnósoferecer-nosaopúblicoamadorediletante,aquempornossaimparcialidadeezeloou-samosesperarqueseremosaceites.”:ibidem.
68“Faltava-nosemLisboaumafolhaque,segundosefazemtodasascapitaisdomundoci-vilizado,conversasseamiúdecomopúblicosobreosseusdivertimentos,queosexaminasse,quemoralizassesobreeles,dessetodasasnotíciasqueparaissoimportasaber,efosseenfimmaisummeio de encher o tempo, que às vezes parece tão longo – doEntre-acto.”: ibidem.Não quer istodizerquenãohouvessejáoutrosjornaisdeteatro,entrenós;contudo,nenhumqueseassemelhas-seaOEntre-Acto,maisajustadoaosqueoseuautorconhecera,queremLondres,queremParis.
69Idem,pp.56-57.70SegundoE.M.deHostos:“(…)enelejerciciodelaverdaderacríticaelinstrumentoprin-
cipaleslarazón,perofuncionandocontodalaregularidaddesusfuncionesnaturalesyaplicándosedelmodomásescrupuloso,vieneadarporresultadounjuicioexacto.”:Critica,p.8.QuantoaAntó-nioSérgio,“Sóhácríticaverdadeiranamedidaexactaemquenãoháféabsolutanaindiscutibilida-de do texto, em que se emprega pois uma ‘habilidade dialética’, uma certa ‘cavalaria intelectual’(nãosemuda,comefeito,anecessidadedosactos,pelosimplesfactodelhesdarnomescómicos).”:inObrasCompletas:Ensaios, Tomo IV, p. 212. Por isso, “Comopropagandista da reformamental,interessa-meomovimento,enãoachegada;oinstrumento,enãoaobra;osespíritos,enãoospa-péis; interessa-me a análise pela análise e a problemática pela problemática. O pensamento, emsuma,atrai-memaisdoqueacerteza–doqueaingénuacertezadecertosdoutoreslusíadas.(…)Interessam-mesobretudoosportuguesesdehoje,easuacapacidadeparamanejar ideias,esehá“intelectuais”quenãopercebemisto,éporquetomamospalavreadosedevaneiosocospeloverda-deiroexercíciodainteligência,queésempreanáliseerelacionação.‘Ilnefautpas(escreveuPoinca-ré)croirequel’amourdelavéritéseconfondeavecl’amourdelacertitude’.TodosselembramdafrasedeLessing:seDeusmedessenumamãoaverdade,enaoutraa investigaçãodascoisas,eupreferiria a investigação. Pois não disse isto por ser orgulhoso, senão pelo amor à actividade doespírito.”:idem,pp.214-215.
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tributo para a reposição das esquecidas tradições71e valores nacionais. Estaria,
assim,acrítica72aoserviçodaurgenterefundaçãodoteatroe,maisdoqueissoe
que verdadeiramente almejava o vate dramaturgo, da própria refundação nacio-
nal.73
AprimeiracríticaapresentadaemOEntre-ActoésobreaóperaOsPurita-
nos.74Apósumabreve resenha sobreoque foi opercursodapoesianos tempos
71ConcluiuTeófiloBraga:“Pelarevivescênciadastradições,àmedidaqueseinspiradelas,
équeGarrettsevaielevandoàindividualidadesuprema,emquenosPoemashistóricosacordaumpassadodeglória,noTeatroensinaomododeformarumaopiniãopública,enoLirismoimprimeocunhodasentimentalidadeamorosadopovoportuguês.Ohomem,asociedadeeaartesãoinsepa-ráveis(…).Garrettaparecerámaisdoqueumpoeta,umorador,umpolítico,umprosador,umdra-maturgo,umpedagogista,umjornalista,umerudito,émais–éumanacionalidadequeressuscita.Eenquantoasuaobrafor lida,essesentimentodenacionalidadenãoseapagaráfacilmente,apesardosatropelosquecontraeleexercemospoderesempíricos.”:inGarretteoRomantismo,p.7.
72ComoprovadaimportânciadacríticaparaoAutordoEntre-Acto,paraalémdosváriosparatextosedosartigosdosperiódicos,chamamosaatençãoparaoseguintelevantamentodeHen-riqueFerreiraLima:“–TextosdeCríticaliterária(secçãoVI):
80)EnsaiosobreaHistóriadaLínguaedaPoesiaPortuguesa,Paris,1826(impressono1.ºvol.doParnasoLusitano)LetradeGarrett,70pp.
81)HistóriaFilosóficadoTeatroPortuguês,umcaderno;HistóriadoTeatroPortuguês,ou-trocaderno.Aut.
82)Esquissedel’histoirelittéraireduPortugal,74pp.Traduçãodon.º80.Aut.83)ApontamentoseEstudosobreasdiferentesobrasdeLuísdeCamões.AutógrafosdeAl-
meidaGarrett,40folhas.”:inInventáriodoespóliodeGarrett,p.19.73ComoafirmouPhilipFisher,“themeasureofthefinesttheatreisthatitcanhaveapoliti-
calimpactandchangelives.”:inTAIT,Simon(ed.),100CriticalMomentsIntheCircle’scriticsontheartthatstoppedthemintheirtracks,p.14.EGarrettlevouesseprincípiomuitoasério:“asuaacçãosobrealínguaportuguesa(…)esobreadimensãopúblicadaarteliterária,comafundaçãodoTea-troNacional,atestabemcomoaosseusolhos liberais todaamaquinariacensóriaera jáobsoleta.Concomitantemente,asuainfluênciasobreacríticanãofoimenor.SóapartirdasuaObrahouvenasLetrasportuguesasumarenovaçãocapazdesuscitarumtrabalhocrítico tambémelenovoe,seguindooexemplodeGarrett,modeladoporpadrõeseuropeusmodernos.”:CarlosLeone,Oessen-cialsobreCríticaLiteráriaPortuguesa(até1940),pp.8-9.Éaindaesteautorquedescobrenolibera-lismoenacrítica literária suacontemporâneauma“misturade tendênciasculturais complexaseamplasque,nageneralidadedaEuropa,sehaviamdesdobradoaolongodeséculos;sendoque,emPortugal,iriamcomprimir-seempoucasdécadas,comtodasascontradiçõesinerentesaissotantonaestruturadasobrascomonopercursodosseusautores”, comoLuísAugustoRebellodaSilva,AntónioPedroLopesdeMendonçaeErnestoBiester,ouaté JoséMendesLealparaquemGarrettrepresentaráomodeloaseguir.Idem,pp.13-14.
74Aindaqueasuaatenção,comonãoserádeestranhar,sevirassefundamentalmenteparao teatrodeclamado,ocriadordoEntre-ActoerapresençaassíduaemS.Carlos(videdeXavierdaCunha,GarretteascantorasdeSan’Carlos),oque,deacordocomAntónioArroio,sereflectirianasuaobradramática,particularmenteemFreiLuísdeSousa,ondeoAutorteriaintroduzido“–àcus-tadacoerênciadramáticaetambémcontraasuaprimitivaintenção–oestiloconcertantedosFina-liitalianos.EArroiocomparaonovofinalcomodaFavoritadeDonizetti,estreadanoTSCem1842,poucoantesdapeçadeGarrett,equesetornaraumadasóperaspreferidasdopúblico.”:inMárioVieiradeCarvalho,PensarémorrerouoTeatrodeSãoCarlosnamudançadesistemascomunicativosdesdefinsdoséculoXVIIIaosnossosdias,p.207.EmSingularidadesdaminhaterra,AntónioArroio“vêtambémaobradeWagnersobretudocomoteatro.Trata-seaqui,emespecial,dacomparaçãoentreGarretteWagner,oquejáconstituía,emsi,umpassoqualitativamentenovo:Wagnerérefe-ridocomochavedacompreensãodomaiordramaturgoereformadorteatralportuguêsdoséculo
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queantecederamoautor,75começao trechodoEntre-Acto comumabreve intro-
duçãoaoargumentodeCarloPepoli,queestevenabasedaóperadeBellini,eque
alguns parágrafos depois desenvolverá,76numa união perfeita para reabilitar a
“verdadeira”poesia:
SecundadopelosexpressivosversosdeC.Pepoli,Bellini invocouogénio
daPoesiamoderna–daantigaselhoqueremchamar,–daverdadeirapoesia,co-mosólhechamareieu:eentrando,comWalterScott,nomaisdensoevivodointe-ressequeoferecemasguerrascivisereligiosasdeInglaterra,escolheuumaacçãoquepersi,pelosactoresqueaconduzem,pelosaltosprincípiosqueamovem,pelocontrastedossentimentos,daspaixões,pelavariedadedoscaracteres,pelovivoepalpitanteinteressequedoprincípioaofimsustentacrescendosempre,–erase-guramentearenaprópriaparatallutadorcomoBellini,praçad’armasdignadojus-tadoredotorneio77.
XIX.Arroyo(…)apontaváriosaspectosemqueGarrettteriadesenvolvidoprincípios‘wagnerianos’e,comisso,procurademonstrarqueeleteriaprenunciadoasconcepçõesdodramawagneriano.”:ibidem.
75“Oespíritohumanotinhaadormecidoàcantilenadossonetosd’amor,dasintermináveisenarcóticasimitaçõesdeVirgílioeOvídio,dasnovelasfrisadaseempoadasquefaziamasdelíciasdenossasmamãs;esealguémacordava,eraparadesprezartudoisso,econdenarpoetaseroman-cistasaqueoslessemestudantinhosoufreiras.”Atéque“doaltodasmontanhasdaEscócia,envol-toemsuasroupasdenévoa,coroadodasestrelasdanoite,esobraçandoaharpadostemposanti-gos,desceuogéniodapoesia romântica,daverdadeirapoesiaqueestán’alma,queDeuspôsnocoraçãodohomem,eque,emvezdosacordesmoles,efeminadoscomqueapreguiçosaliraclássicaembalaossentidosparaqueadormeçamnodeleite,–desfereaquelessonsagudos,penetrantesqueacordamoânimodesobressalto,equedizemaoespíritomaismortoemortal,comoavozquebra-douaoenterradodetrêsdias–Vem,surgefora!:OEntre-Acto,nesteVolume,p.57.Tambémaescul-turaeaarquitecturaseguiriamospassosdapoesiae,logodepois,amúsica.
76“Vamosàhistória.Estamosemumcasteloforteeemtodaaatitudedeguerra.Etudosepassa neste castelo, que está pelo Parlamento, contra El-Rei, sustentado por LordWalton e seuirmão,epelocoronelRicardoForth–famososentusiastasdacausaqueentãosesupunhaser,equeatécertopontoera,adaliberdade.
LordWalton, sectárioduroesevero, temuma filhaúnica,abelae inocenteElviraquesedeixoumorrerd’amoresporumcavaleirodopartidocontrário.
OPaizelosoeaferradoàsuacausaquercasá-lacomRicardo,pessoanotáveledeigualzeloemseupartido.ObomhomemSirJorge,tioindulgente(sãoboaspessoasgeralmenteecaritativasestestios!)emuitoqueridodasobrinha,consegueabrandararigidezdoirmãoefazê-loconsentirnocasamentodelacomLordArthur,ocavaleirodesuaescolha.
(CavaleiroschamavamaosqueseguiamaspartesdosStuarts–Puritanosaosque,poridei-asdesupostapurezadeprincípios,combatiamcontraele,peloParlamentoeporCromwell.)
Estamospoisnumcastelopuritano,povoadodePuritanos,eàvoltadosfinsdaguerra,quetodaviaduraainda.Masamortecidasaspontasdosódios,comoédeusoemguerrascivisquemuitoduram, começa a relaxar-se de severidade; e é já possível a aliança de duas famílias de opostosprincípios.”:OEntre-Acto,nesteVolume,p.60.
77Diz-nosocrítico:“Cônsciodoqueeraepodia,Belliniouviuascríticasdeseusinvejososcomoasouvemosgéniosquedeverassãograndes.Respondeu-lhescomoelesusam–mostrandooqueera.OsPuritanosforamarespostadeBellini.Abençoadoladrardeinvejososquetalproduziu!(…)”:idem,p.59.
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Depoisdeterassistidoarepresentaçõesdestaópera“nosprimeirosteatros
líricosdaEuropa,osdeLondreseParis”,78confessa-seGarrett surpreendidopor
emnadalhesficardevedoraaversãoqueteveocasiãodeadmiraremS.Carlos.79
Contudonão foiela isentade falhas,nomeadamenteaoníveldacaracterizaçãoe
escolhade guarda-roupa, osquais, como jánoutrasocasiões terá constatado, fo-
ramemalgunscasosdesadequados.Mereceram-lhe,entretanto,umacuidadaaná-
liseosdesempenhosdosintervenientes,oquevaifazendo,àmedidaquedescreve
oargumentoecomentaostrechosmusicais,aquiealipontuandoacríticacomal-
gunsversosdooriginal.Porfim,“acabatudoemmuitafesta,enoslindíssimosco-
ros(…).–BelosPuritanos,beloteatro!”80Eestaóperavoltarádiversasvezesaesse
beloteatronosanossubsequentes,comopoderemosverificarumpoucomaisadi-
ante.81
Possuidordeumcurrículojáverdadeiramentenotável,conseguidoemme-
nosdevinteanosdevidapública,JoãoBaptistad’AlmeidaGarrettterá,entretanto,
ocasiãodevê-lodescritoentreaspáginasd’OBiógrafo:leituraabreviadadaqueles
que se fazem célebres por génio, talento, virtudes, armas ou letras.82Falamos do
Prospectobibliográfico83,saídonosuplementode11deMaiode1839.Aindaque
nãopodendotomarà letratudooqueelecontém, jáqueébemconhecidoqueo
Divino tinhaporhábito fantasiarasuabiografia–ouporque jánãoserecordava
bemdealgunsfactos,ouporquenãolheatribuíamosencómiosquesabiamerecer
–,nãoserádespiciendochamaraatençãoparaeste textodasuaautoria,nãoso-
mentepelasverdadesqueencerra,mastambémcomoreveladordapersonalidade
doseuautor.Paraconhecermosoteord’OBiógrafo,valeapenareleroqueoseu
títuloespecificaenãoserá,pois,deestranharqueAlmeidaGarrettneleencontras-
78Ibidem.79Admiteque“grandefoiasurpresaquelhecausouverexecutarooutrodiaemS.Carlos
estaópera,tãoperfeitamentenoespíritodeseuimortalcriador,que,semfazercomparaçõesindi-viduais–asomatotaldosméritosnãoficaadevernadaaoquenaquelesgrandesteatrossefezoinvernopassado.”:idem.
80Idem,p.67.81Porexemplo,no JornaldoConservatórioRealdeLisboa(1839-1840),nesteVolume,pp.
291-292,p.319,ep.336,encontramosreferênciasaessaóperadeBellini.82FoiesteperiódicopublicadoemLisboa,entreJulhode1838e28deDezembrode1839.
Apud VARGUES Isabel Nobre e CABRAL, Luís,Garrett Jornalista. Biblioteca PúblicaMunicipal doPorto,1999,p.38.
83EsteProspectofoireproduzidonon.º16deOMosaico,de20deMaiode1839e,depoisdeadaptado,corrigidoedesenvolvido,teráservidodebaseàbiografiadoUniversoPitoresco,publi-cadanoseuterceirovolume(1843-1844)–pp.132-155doVolumeIII.
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seoespaçoadequadoàdivulgaçãodosseusescritos,porsesaberelepróprio,re-
petimos, célebre porgénio, talento,virtudes,armase letras. Atentemos, portanto,
noprimeiroparágrafodoProspecto:
Desejososdeconcorrerparaaglóriae ilustraçãodanossaépoca,empre-
endemosaediçãocompletadasobrasdeumcontemporâneoaquemninguémdis-putouaindaodistintolugarqueocupaentreosnossosprimeirosescritores.–Seusapaixonadosenumerososadmiradores,seusprópriosdetractoresreconhecemnoautordeCamões,deAdozindaedeD.Brancaogéniotranscendenteque,fundandoanossaliteraturasobreanossahistória,eanossapoesiasobreasnossascrenças,noslibertouassim,nopensamento,dojugolatinoegrego,comoFilintoElísionoslibertara,noestilo,dojugofrancês;–esecolocoudestasorteàtestadeumaescolaverdadeiramentenacionaleindependente;românticanasideiassemosdesvariosgrotescosdeVictorHugo,–clássicanalinguagemsemoservilismoacadémicodeafectadospuritanos.84
Eotextocontinuadestejaez,anunciandoasvirtudespessoaiseliteráriasdo
autor,apropósitodaapresentaçãodeumafuturaediçãodassuasobras(dasquais
sairiaumvolumeacadatrêsmeses,aopreçode600reis,especialparaassinantes),
paraevitar“grandeperdadanossaliteratura”.85Como“castoeprofundoescritor”
doTratadodeEducação(“fontedeinstruçãoedeciência,emododelinguagem”),
doResumodaHistóriaLiteráriadePortugal (“primeiratentativadestegéneroem
Portugal”) e doPortugalnaBalançadaEuropa(onde “osmais áridos pontos da
políticasãoanimadospelaenergiaevivacidadedoestilo”),considerava-se,incon-
testavelmente,umerudito, filósofoemestreda“nossabela língua”;peloque,pe-
84OBiógrafo,nesteVolume,p.68.85Poderáserinteressantesaberquaisasobrasemcausa,jáquenemtodaspassaramdein-
tenção:CAMÕES,poema,3.ªedição…………………………………………………………………………………...…1vol.ADOZINDA,romances–a1.ªparte,3.ªedição;a2.ªparte,inédita…………………..…………2vol.LICEUDASDAMAS(inéditodoestiloepelaformadasCartasaEmília,deDemoustier–com
ofimdeaperfeiçoaraeducaçãoliteráriadobelosexo…………………………………………….……………..1vol.RESUMODAHISTÓRIALITERÁRIADEPORTUGAL(2.ªedição)……………….………………..1vol.TEATRO,compreendendoCatão(4.ªedição),GilVicente,APadeiradeAljubarrotaeoutros
dramasinéditos……………………………………………………………………………………………………………………3vol.JOÃOMÍNIMO–a1.ªparte,2.ªedição;a2.ªparte,inédita…………………………………………2vol.DOISANOSDAMINHAVIDA,reminiscênciasdaemigraçãoememóriasdocercodoPorto
(inédito)……...……………………………………………………………………………………………………………………….1vol.ORETRATODEVÉNUS,2.ªedição……………………………………………………………………………1vol.D.BRANCA,2.ªedição……………………………………………..……………………………………………….1vol.TRATADODEEDUCAÇÃO………………………………………………………………..……………………….2vol.PORTUGALNABALANÇADAEUROPA,2.ªedição……………………………………………………..1vol.ORAÇÕESESCOLHIDAS……………………………………………………………………………………………2vol.
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ranteaingratidãodosqueoperseguiramecondenaramaoexílio,sevingoucomo
um“génio”,“levantandoàsuaglóriaoimortalmonumentodopoemaCamões(…),
que, enobrecendo ainda a fama do grande autor dos Lusíadas, serviu aomesmo
passodeimortalizarocisnequeousoucantá-lo”.QuantoaCatão,é“absolutamente
uma obra nova; tantomais largo é o desenho, tantomais verdadeiro o colorido
destegrandequadrohistórico”,86ondeonossoteatroachou“oseuregenerador”;
damesmasortequecomoAutodeGilVicente:
…queaindaoutrodiafezcorrertodaLisboaàRuadosCondes,veiomos-
trarquenemooradorepatriotaeloquentetinhaquebradonosdebatesdatribunaoseugrandeengenhopoético,nemodiplomático,ohomemd’Estadoprezavamaisashonrariasdascorteseasdistinçõesdospalácios,doqueasuacoroadepoeta,oseutítuloqueridod’homemdeletras.87
Sendoemboradetentordeumapersonalidadepoliédrica,capazdedesem-
penhardemodo irrepreensívelasmaisdiversas funções,o reformadordonosso
teatroescolheparasioepítetodepoetaehomemde letras, facetaque,deresto,
nãosecansoudeexibir,semprequeoassuntolherequisitavaasuainspiradapena
d’oiro,fosseparadefenderumacausanoParlamento,fosseparaenaltecerosméri-
tosdeumcompatriotarecém-falecido.Em1838,88Garrettviriaaserincumbidoda
Necrologia do Conselheiro FranciscoManoel Trigoso deAragãoMorato89, falecido
86OBiógrafo,nesteVolume,p.69.87Idem,p.70.88Pelas suas inúmerascapacidades, tambémnesteanode1838 foiGarrett incumbidode
participarnaredacçãodanovaConstituição.SobreestefactoafirmouJoaquimFranciscoFerreira:“AConstituiçãode1838pretendeuconciliaroregimepolíticodaCartaConstitucionalcomosavan-çostrazidosaopaísnasreformasde1832e1834.;pretendeusalvaguardarasoberaniadanação,expungindoovetodomonarcanasresoluçõesdoparlamento.Reentrava-senovintismo.Numma-nifestodascortes constituintes,publicadoem22deAgostode1837,escreveuGarrett: ‘Danossaparteestáanação,comoelaapareceuemAgostode1820’.OscabecilhasdoSetembrismoconheci-amaextensaculturajurídicadoescritor,osseusatributosmentais,asuainquebrantávellealdadeaopovo:chamaram-noacolaborarnaConstituição,queeleredigiuefoiaprovadaem20deMarçode1838.OSetembrismodeveu-lheumaintensacampanhadepreparaçãopsicológicanojornalismodacapital.(…)Assuaintervençõesnoparlamentoficarammemoráveis.Revelou-seneleumoradordemagnitudegigantesca,sobressaindonaspugnastribuníciaspelovigordasideiasepelaharmo-niadoestilo.”:inAMensagemdeGarrett,pp.68-69.
89Publicadon’OConstitucional,N.º272de13deDezembrode1838,contidonesteVolume,pp.75-77.EsteperiódicodeLisboafoiimpressopelaTipografiadeA.S.Coelho,entre10deJaneirode1838eJulhode1842,totalizandooitentaequatronúmerosetendocomoeditorresponsávelA.R.Veloso.ApudVARGUESIsabelNobreeCABRAL,Luís,GarrettJornalista.BibliotecaPúblicaMuni-cipaldoPorto,1999,p.38.
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deumataquedeapoplexia,quandoestavajá“retirado,esofridoporvelhoedoen-
tenocantodesuacasa”90.EoAutorlamenta:
Vãocaindo,umaauma,aspoucasfolhasmorredourasqueaindamalseti-
nhamnessaárvoredecrépita,játãofértilnosfrutosdaciência,defloresdelitera-tura!Pobresdenós!Empoucosanos,senosperguntarempelosnossosescritores,pelosnossossábios–teremosdemostrarasmascavadasfolhasdeumoudoisjor-nais–eresponder:‘aíestão,nessasrapsódiasmalcopiadasd’outrosscribleroses-trangeiros–nessasregateiricesoriginais(equedecertonãotemmodelonemnali-teraturadacafraria)tudoquantohojesabemosfazerepodemosler’”.91
Caraceterizado como filho de uma casa distinta, o Conselheiro Francisco
Moratoforaeducado“naseveradisciplinadeseutio,oilustreVice-reitordaUni-
versidade de Coimbra”92, onde recebeu o grau deDoutor emCânones. Ficou co-
nhecido por suasmemórias literárias pela “curadíssima edição das obras deDi-
nis”93, sendo dos mais notáveis membros da Academia das Ciências de Lisboa,
quandofoichamadoalernacadeiradedireitoeclesiástico(2.ºanodeDireito)na
mesmaUniversidadedeCoimbra94.Chamadoa“MinistrosoboregimedaInfantaD.
Isabel,edeputadoàsCortestrabalhou,comoentãotrabalharampoucos”;retirou-
sedepoisparaaoposição,atéàRevoluçãodeSetembro.Novamenteeleitodeputa-
do, afastou-se pouco depois, por não sentir já forças para aceitar amissão. Com
efeito, umdia depois de ter recusado o cargo, viria a deixar de viver umdesses
“derradeirosPortugueses que tão depressa vão acabando”.95Nas palavras do re-
dactordanotícia,“aRainhaperdeuneleumhomemdeconselhoefirmeza,oSena-
doumoradorsemrival,aAcademiaumdosseusúltimosornamentos,aUniversi-
dadeumprotectorzeloso,aliberdadeumcampeãomoderadomasfirme,areligião
umdefensorilustradoesincero.(…)Nãofaltaráquemmelhorfaçaoelogiodeum
dosnossosmelhoresemaisdistintoscidadãos”96,rematava,“noprimeiroabalodo
sentimentoedasaudade”,oilustreAutordotexto.
90OConstitucional,nesteVolume,p.77.91Idem,p.75.92Idem,pp.75-76.93Idem,p.76.94“Ométodo,a facilidadee felicidadedaexpressão,osvastosenãosofisticadosconheci-
mentosdahistóriapátriaedodireitoespecialdaigrejaPortuguesa,distinguiramlogooseumagis-térioquetãocurtofoiquantoserálembradoportodososalunosdaquelaacademia.”:idem.
95Idem,p.77.96Idem.
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Diversasforamtambém,comojávimosanteriormente97,asocasiõesemque
Garrettutilizouaimprensaperiódicaparadesfazerequívocos,quasesempresoba
formadecartaaoredactor.A9deMaiode1838,redigiamaisumesclarecimento,
destavezao redactordeOConstitucional98: “observoqueomeuparecer sobrea
formação da segunda câmara das Cortes, não foi entendido”99. Resumindo o seu
voto na câmara revisora, expunha a sua concepção pessoal de como devem ser
formadas as Cortes – ou por hereditariedade (“para que estes juízes do campo
constitucional não dependamdoRei nemdo Povo”), ou por eleição e nomeação
(“paraquedependamdeambos”).Parecendo-lheoprimeiromodeloomaisperfei-
to,mas impossívelemPortugal,osegundoseria,então,omelhor,dentrodascir-
cunstâncias da época.Achariamais liberal que a iniciativa partisse daCoroa e a
decisãodopovo,masnãoorepugnaqueainiciativasejadopovoea“decisãofinal
eterminantedaCoroa”;nãoparecequeresulte,masdevetentar-se,sefoiaesco-
lhida:“aexperiênciaodecidirá”. “Demais,eraoúltimocartuchodeumpartido:é
fortunaqueogaste:ficamostodoscomarmasiguais”.Antesdeterminaroseude-
poimento,pedindoquenãooenvolvessememmaispolémicas100,vistoquetodoo
seutempoerapoucoparasededicaràsLetras,constatava:
Hádoisanosqueporinjúriasecalúniassetemmuitagenteincomodadoa
excitar-me,comvisívelperdadeseutempo;porqueomeumenãosobradosmeuslivrosedeoutrasescriturasmaisagradáveisparamimqueadapolémica,ecomqueesperosermaisútil.Semeenganar,paciência.101
IgualmentepublicadapeloperiódicoOConstitucional102,umacartadirigida
aumproprietárioindustrialdavacontadasdiligênciaslevadasacaboporGarrett,
comoobjectivodecorrigirumadeterminaçãopoucofavorávelaosfabricantesde
seda. E, não tendo sido as actas publicadas, cita dememória todos os passos do
processo: apresentando o caso às Cortes em Novembro, pugnou por ele, conse-
guindoque“fossemandadoàcomissãorespectivacomurgência”103.EmFevereiro,
97ONacional,N.º770de5deJulhode1837,nesteVolume,pp.54-55.98N.º99,de12deMaiode1838,nesteVolume,pp.72-73.99Ibidem,p.72.100“Quemedeixem,porquemsão,quenãoprovoconinguém”:idem,p.73.101Idem,pp.72-73.102N.º169,de10deAgostode1838,nesteVolume,pp.73-75.103Idem,p.73.
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“àforçadeimportunidades”,obtevenovavotaçãonoCongresso,paraqueonegó-
cio fosse “impreterivelmente” tratado numa sessão extraordinária, o que não se
verificouantesdoVerão.Ofactoéqueumprojectodacomissãotaxavaduplamen-
teosfabricantesdeseda:“vinhamapagar,aomesmotempo,esobreosmesmos
produtos,duastaxaspesadíssimaseincongruentes;asaber:trêsporcentodopro-
dutobruto–edezporcentodoprodutolíquido!–Dízimaeredízima”.104Perante
tal situação, Garrett forçou a câmara a discutir o assunto. Porém, a comissão da
Fazenda,porzelodoFisco,insistianaproposta,atéporquejáeracostumeantigo
pagaros3%eninguémsequeixaraainda.Referiu, então,onobredeputadoque
pagavamos3%,masnãohaviaadécimaindustrial:“Insistiporqueseregularizas-
seadécimaindustrial,queerarazoável,eseabolisseoimpostobárbarodostrês
porcentoqueeraabsurdo”105.Casoestranho:nãoabdicaramdotributode3%e
acabaramporisentardadécimaindustrial,paranodiaseguinte,talvezverificando
oabsurdo,decidiremooposto:“anulandoostrêsporcento,eestabelecendoadé-
cimasobreolíquidoprodutodas fábricas”.106Satisfeitopor tercontribuídoparaa
resoluçãodoproblema,oeloquentetribunoterminacomumconselhoaosindus-
triais:“seagoranaexecuçãopretendemanularobenefíciolegislativo,minhaopi-
niãocomoJurisconsulto,équepodemresistiràarbitrariedadefiscal,eomeuvoto
comocidadãoéquedevemfazê-lo”.107
Demonstradasqueforamjáasinúmerasqualidadesdoperfilquenosocupa,
não surpreende que oUniverso Pitoresco108desse a conhecer a sua biografia,109
delineada pelo próprio criador d’OArco de Sant’Ana,porventura pouco discreta
nosauto-elogios,masquenosforneceinformaçõesdetalhadas,aindaqueasdeva-
mosinterpretarcomadistânciaquenosmereceaparcialidadedoAutor,tãoten-
denteaengrandecer-se,tantasvezesmagoadocomosparcoselogioscomqueos
seuscontemporâneosobrindavam.Começa,porisso,aditabiografia,pelaenume-
104Idem,pp.73-74.105Idem,p.74.106Idem.107Idem,p.75.108OUniversoPitoresco:jornaldeinstruçãoerecreiosaiudoprelodaImprensaNacionalde
Lisboa,entreJaneirode1839e1844,numtotaldevinteequatronúmeros,agrupadosemtrêsvo-lumes.ApudVARGUESIsabelNobreeCABRAL,Luís,GarrettJornalista.BibliotecaPúblicaMunicipaldoPorto,1999,p.39.
109UniversoPitoresco:jornaldeinstruçãoerecreio,nossoVolumeIII,pp.132-155.
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raçãodetodasassuasincumbências,presentesoupassadas,eassempretãodese-
jadashonrarias:
OSr.JoãoBaptista(daSilvaLeitão)deAlmeidaGarrett,deputadodanação
portuguesa, do conselho de Sua Majestade, fidalgo cavaleiro da casa real, ex-cronista-mordo reino, bacharel formado emLeis pelaUniversidadedeCoimbra,cavaleirodaantigaemuitonobreordemdaTorreeEspadadoValor,LealdadeeMérito,comendadordaordemdeCristo,eoficialdadeLeopoldonaBélgica,juizdotribunalsuperiordecomércio,enviadoextraordinárioeministroplenipotenciáriodeSuaMajestade,ex-inspectorgeraldosteatros,sóciodeváriasacademiasnacio-naiseestrangeiras,nasceunacidadedoPortoa4deFevereirode1802.110
Aindaquedemasiadolongaestaapresentação,faltariajuntar-lhealgunsda-
dos,comoofactodetersidonomeadoViscondeePardoReino,paraalémdasua
efémerapassagempelapastadosNegóciosEstrangeiros,factosqueforamposteri-
ores à redacção desta biografia. Mas, à parte estas gloríolas, tão do seu agrado,
inúmerasforamasmarcasquefoideixando,paraalémdasliterárias,portodosos
sectores da sociedade civil em que a sua intervenção foi solicitada. De resto, ao
longodetodaacitadabiografia,opoetajornalistavaidescrevendotodooseupro-
cessodeformação,desdeasuainfâncianoPorto,àpartidaparaailhaTerceira,na
sequência do avanço do exército de Soult pelo Norte; desde os seus progressos
intelectuais,naadolescência,porobradeseutio,D.FreiAlexandre,àformaçãoem
Leis, em Coimbra, berço das suas primeiras tentativas literárias mais sérias, a
mesmacidadeondedespertouparaapolítica,comosalvoresde1820.Falar-nos-á,
porisso,demoradamente,dosseusfeitospolíticoseliterários,nasagrurasdoexí-
lioounoperíododeimplantaçãodoliberalismoemsolopátrio,emcujoprocesso
seembrenhoudeformaentusiásticaeeficaz.Apesardotomdeverasencomiástico,
ecomlaivosdefantasia,comquetraçaoseuretrato,trata-sedeumabiografiacla-
ramentecircunstanciada,quernoquetocaaodesenrolardasuavida,quernoque
serefereàconstruçãodasuaobra,e,dentrodapersonalidadepoliédricadeJoão
Baptista,constatamos,defacto,umafacetadejornalista,quecultivoudurantemais
detrintaanos,semprecomomesmoacesofervordeserútilàsuaNaçãoqueaju-
dou a reconstruir, educando-a, instruindo-a e civilizando-a, para a trazer para o
seuséculoetorná-lagrandeentreasmelhores.Comtudoistoemmente,conseguiu
110Idem,p.132.Naverdade,oanodonascimentodeGarrettfoi1799;contudo,ébemco-
nhecidooquantoelegostavadese fazerpassarpormais jovemedelediriaOliveiraMartinsque“foimoçoatémorrer”.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Garrett serencarregadodeelaborarumplanoparaa fundaçãoeorganizaçãodo
teatroportuguês,logoaseguiràrevoluçãodeSetembroeàchegadadePassosMa-
nuelaoministériodoReino.111TinhachegadoahoradeJoãoBaptistapôremprá-
ticaumaideiaquehaviamuitoacalentava:112longamenteestudadaeamadurecida
peloseuautor, ia finalmenteser implementadaareformadonosso teatro113, co-
meçando pela criação de uma escola de actores, pela renovação do repertório
dramático português e pela edificação de um novo teatro nacional. Recém-
nomeadoInspectorGeraldosTeatroseEspectáculosNacionais114,assimfeznascer
111PreparandooDecretode15deNovembrode1836,surgidonasequênciadorelatório
queoreformadorapresentouem12deNovembrodomesmoano,assimditavaaportariade28deSetembrode1836:“MandaSuaMajestadeaRainha,queJoãoBaptistadaSilvaLeitãodeAlmeidaGarrettproponhasemperdadetempo,porestaSecretariadeEstado,umplanoparaafundaçãoeorganizaçãodeumTeatroNacionalnestacapital,oqualsendoumaescoladebomgosto,contribuaparaacivilizaçãoeaperfeiçoamentomoraldanaçãoportuguesaesatisfaçaaosoutrosfinsdetãoúteis estabelecimentos, informando ao mesmo tempo acerca das providências necessárias paralevar a efeito osmelhoramentos dos teatros existentes. E espera SuaMajestade que o dito JoãoBaptistadeAlmeidaGarrett, nodesempenhodessamissão sehaverá comzeloe inteligênciaquesão próprias do seu patriotismo e reconhecidos talentos.”: FERREIRA, Maria Gabriela, Jornal doConservatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett,p.29.
112Éopróprioautorquenosdizoquetinhaemmente,nasuabiografiaqueredigiuparaoUniversoPitoresco:“TalfoiopensamentodoSr.GarrettnaorganizaçãodoConservatório:ligares-tastrêscoisas,efomentá-lassimultaneamente:aedificaçãodoteatro;acriaçãodosartistas;acul-turadaliteraturadramática.”:nossoVolumeIII,p.147.
113“Comefeito,éporsugestãodeGarrettquealgodenovovai,finalmentesurgir,noâmbitodeumambiciosoevastoprojecto,quevairelacionaramúsicaeadança,comaformaçãodeactores,noConservatóriodeArteDramática,comvistaàformaçãodeumacompanhiadeactoreseàcons-truçãodeumrepertóriodramáticogenuinamenteportuguês,quepossaserrepresentadononovoteatronacional,queurgeedificar.”:JornaldoConservatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett,p.29.
114Nasequênciadorelatóriode12deNovembro,noqualGarrettconstatava:“Nemtemosumteatromaterial,nemumactor. (…)MasemPortugalhátalentosparatudo;hámais talento,emenoscultivaçãoqueemnenhumpaísdaEuropa!BastaqueVossaMajestadeSeDigneevocardocaososelementosqueaílutam;eumacriaçãobelaegrandesurgiráàSuaVoz(…).Osmeiosemo-dosdelevaraefeitoestagrandeobra,SegundoasOrdensdeVossaMajestade,osrecopileiemumplanobreve,ecoordenadoquantoentendo,eseifazê-lo”,estipulaoDecretode15deNovembrode1836:
Artigo1.º§1.ºÉcriadaumaInspecçãoGeraldosTeatroseEspectáculosNacionais.(…)§3.ºAInspecçãoGeraldoTeatrosseráconfiadaaumCidadãodereconhecidopatriotismo,
sabedoria,econhecimentosespeciaisnesteramo.§4.ºAsfunçõesdoInspectorGeralsãotodasgratuitas,eporelasnãohaveráordenadoal-
gum,nemperceberáemolumentos.§5.ºAoInspectorGeralincumbe:1.ºvelar,eproveremtudoquantonãoforapolíciaex-
ternadosteatros,emaisespectáculos;2.ºaprovaraspeças,emaisrepresentaçõesquesehão-dedaraopúblico;3.º interpor juízodeequidade,econciliaçãoemtodososcasosdedesinteligência,quepossamconcorrerentreosArtistasdosteatros,eseusEmpresários,ouDirectores,equenãopertençamaosJuízes,eTribunais;4.ºdirigir,efiscalizaraboaregênciadosConservatórios,eEsco-las,dequeabaixosetrata(Art.3.º);5.ºconvocar,epresidiraojúridosprémios(Art.6.º);6.ºpro-poraoGovernotodasasprovidênciasquejulgarnecessáriasaomelhoramentodosestabelecimen-tosquelhesãoconfiados.(…)
Artigo3.º
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oConservatórioGeraldeArteDramáticaeosseusConcursosdeDramasOriginais
Portugueses;assimpreparouacriaçãodeumaCompanhiadeActoreseaedifica-
çãodoTeatroNacionalD.MariaII.115Depoisdeterconseguidoobteromaisdifícil,
ouseja,mestresedirectores,nomeadamenteJoãoDomingosBomtempoeMr.Paul
(“um dosmais eminentes actores do Ginásio de Paris”), respectivamente para a
direcçãodaEscoladeMúsicaeparaaEscolaDramática,116bempoucomaispediao
InspectorGeraldosTeatros,massemoqualnadapoderiafuncionar.Naverdade,
ficavaa faltar“umacasaparanelasecolocaroConservatório”,aqualdeveriasi-
tuar-senumazonacentral,comoveioaserocasodovetustoConventodosCaeta-
nos,paraonde,apósalgumasescassasreparaçõesabsolutamente indispensáveis,
§1.ºÉcriadoemLisboaumConservatórioGeraldaArteDramática.§2.ºOConservatóriodaArteDramáticaédivididoem trêsEscolas, a saber:1.ºaEscola
Dramáticapropriamentedita,oudeDeclamação;2.ºaEscoladeMúsica;3.ºaEscoladeDança,Mí-micaeGinásticaespecial.(…)
§4.ºPararegerasoutrasEscolas,einstruirosAlunosnasdiversasdisciplinasqueconvém,serãotiradosdosdiversosteatrosdeLisboaosActores,eArtistasmaisexcelentes,aquemporseutrabalhosedaráumagratificaçãocorrespondente.
§5.ºOInspectorGeralproporá,semperdadetempo,umplanodeEstatutos,eregimentodestasEscolas,emque,pelosistemadeprémioseacessos,sefomente,eprotejaaArteDramática,esuassubsidiáriastãoabandonadaseperdidasentrenós.
Artigo4.ºÀproporçãoqueseforemformandoosAlunos,seirátambémformandoumanovaCompa-
nhiadeActoresNacionais,queEutomareidebaixodeMinhaEspecialeRégiaProtecção.Artigo5.º
§1.ºDomesmomodoseestabelecerãoprémiosparaosAutoresDramáticos,assimdepe-çasdeclamadas,comodepeçascantadas,oulíricas,quemerecendoapúblicaaceitação,concorremparaomelhoramentodaLiteratura,eArtesNacionais.
§2.ºUmadisposiçãoespeciallegitimamentedecretada,garantiráapropriedadedosAuto-resDramáticos,eregularáomododefazerefectivaestagarantia.
Artigo6.ºTantoosprémiosdequefalaoArtigoantecedente,comoosdequetrataoArtigo3.º,§5.º,
serãoadjudicadosporumjúrideLiteratoseArtistas,escolhidospeloGoverno,econvocado,epre-sididopeloInspectorGeral.
Artigo7.ºOSecretáriod’EstadodosNegóciosdoReino ficaautorizadopara levaraefeitoacriação
desteútilEstabelecimento,eMeproporáasmedidasqueforemconvenientesparaestefim.”115TodosospassospercorridosporGarrett,paraconduziroseuprojectoabomporto,des-
dea criaçãodo conservatórioaté àsperipéciasda construçãodoTeatroNacional, passandopelaformação de actores e pelo incentivo a novos dramaturgos, estão descritos na Parte II do nossoJornaldoConservatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett,pp.37-114.
116Refere o autor do ofício: “Não me tenho ainda ocupado da Escola de Dança, porqueaquelasduasprimeirassãoasmaisreclamadaspelanecessidadeouantespenúriadenossostea-tros; equiseravê-las aomenosemalgumcomeçodeorganizaçãoantesdedividir cuidadosparaoutraparte”.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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foitransferidooConservatóriodeMúsicadaCasaPia,117noiníciode1838,eonde,
emMarçode1839,começaramasaulasdeDeclamaçãoedeDança,parapreparar
a futura Companhia de Actores do Teatro Nacional, que aí desempenhariam os
seuspapéisdonovorepertório,incentivadopelosConcursosdeDramasOriginais
Portugueses.
Será,pois,nessequadroqueoautordonaufragadodramaInfanteSantovai
redigiroJornaldoConservatório118,neledandocontadetudooquedemaisrele-
vante se passava no mesmo Conservatório119e nos principais teatros da época,
quernacionaisquerestrangeiros,massobretudofazendodeleumverdadeiroins-
trumento de difusão cultural, uma autêntica escola de públicos de teatro, onde
tambémseensinavaaserportuguês,numaperspectivauniversalista,120comtudo
oqueissopudessesignificarparaoredactordoperiódico.Podemos,aliás,encarar
oJornaldoConservatório,esse“ousadocometimento”,121comocoroláriodosinuo-
sopercursodeseuAutor,sistematizandoedandocorpoatodasasreflexõesama-
durecidassobreoqueconsideravaessencial–oconhecimentocomocaminhopara
117OConservatóriodeMúsicadaCasaPia,fundadoem1835,tornara-seoherdeirodave-
lhaEscoladeMúsicadoSemináriodaPatriarcal,criadaporD.JoãoV,em1713.118Paramelhor conhecer as difíceis circunstâncias em que surgiu e se desenvolveu este
novo periódico literário, cujos vinte cinco números e um suplemento vieram a público todos osDomingos,entre8deDezembrode1839e5deJunhode1840,impressospelaTipografiadeJ.F.deSampaio,consulte-seonossoestudoanteriormentecitado,mormenteaspp.34-36.
119A“ArteDramáticanãofoiamaisprotegidanoconjuntodastrêsEscolas.(…)AEscoladeMúsicaterásaídobeneficiada,passandoaserconstituídapordozecadeiras,aopassoqueasEsco-lasdeDeclamaçãoedeDançativeramdecontentar-se,respectivamente,comtrêseduascadeiras.Nestecaso, jánão faziasentidochamar-seConservatórioGeraldeArteDramática.SendoaPresi-dência atribuída a ummembroda CasaReinante, na altura o rei-consorte,D. Fernandode Saxe-Coburgo-Götha, a convitedoprópriovice-presidente, e emconsequênciadoenormeêxitoobtidopelaFestadoConservatório[oSuplementodoJornal,datadode5deJunhode1840,é-lhetotalmen-tededicado],(…)Garrettelaboranovoseampliadosestatutosque,depoisdesumamentediscutidoseaprovados,serãopromulgadospordecretode24deMaiode1841,comoEstatutosdoConserva-tórioRealdeLisboa.”:JornaldoConservatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett,p.41.
120EmGARRETT:quatroaspectosdasuapersonalidade(p.18),JoãoGasparSimõesclassifi-caocantordeCamõescomo“umdosnossosescritores(…)depersonalidadeeestofomentalmaisdecisivamenteuniversalistas.”Aessepropósito,citaAndréeCrabbéRocha:“AlmeidaGarretttãodoseutempo,tãodasuaépoca,tãodomundoedavidaexteriorfoiaqueleaquemosseuscontempo-râneoschamaram ‘odivino’quenelepodemosver sempre,antesdemaisnada–antesdopoeta,antesdorevolucionário,antesdoromancista,antesdoetnógrafo,antesdocrítico,antesdopolítico,antesdoreformadorsocial–ohomemdeteatro,oheróideumdramacujaacçãosedesenrolanoseutempoecujosespectadoressão,antesdequaisqueroutros,osseusafinadíssimossentidosdepersonalidadeeminentementeespectacular.”(idem,pp.23-24)
121JornaldoConservatório,n.º1,de8deDezembrode1839:p.78destenossoVolume.
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aliberdadeplenaecriadoradoespírito;122nofundo,edeixandopassaroaparente
pleonasmo,ahumanizaçãodohomem.
Numa época em que diferentes jornais e revistas de teatro começavam a
circularnonossopaís,ejáqueabraçaraanobremissãodereformaroteatropor-
tuguês, numaperspectivauniversal, começandopela criaçãodoConservatório, o
criadord’OAlfagemedeSantarém,dispondodeescassosapoios,dentroouforada
escolaquecriara,tomouasuapenadejornalistaedispôs-seadivulgartudooque
serelacionavacomamesmainstituiçãoeoteatroemgeral,repartindogenerosa-
mente,comopúblicoeosagentesteatrais,asualargacópiadesapiênciaesabedo-
ria.123É,pois,oJornaldoConservatórioumvastomanancialdeensinamentos,ain-
122ComovincouManuelBorgesCarneiro:“ComopartedalógicasevosapresentaaCrítica,
triunfantedoerroedetodososembustes.Aquicumpresuporquenascestesontem,eusandodarazão, deste guia, que a natureza deu ao homempara o conduzir no caminho da vida, chamar aexameimparcialtodososescritos,todasasdoutrinas,etodasasopiniões(…).”:OMentordaMoci-dadeouCartassobreEducação,p.151.Porisso,“pertence-vos(…)examinarsemprevençãoascoi-sas;analisartodasaspartesqueascompõem;indagarsehánelaspreocupação;eformarentãoovossojuízo,epenetraratéàverdade.(…)sempredevemosteranossarazãopeloguiamenosenga-nador.ElaéaregraqueDeusnosdeuparanosdirigirmos,ecomaqualdevemoscompararcomoquelemoseouvimos.Éútilconhecerospensamentosdosoutros,porqueissono-lossugeretam-bém,enosajudaaformaronossojuízo;(…)[masnão]tornar-seplagiário,quecopiaospensamen-tos de outrem sem pensar também sobre eles; e sem os desenvolver e exprimir ao seumodo.”:idem,pp.153-154.
123AindanoséculoXVIII,jáLuísAntóniodeAraújodiagnosticavatodaumasériedeaspec-tosamelhorar,noquetocavaaagentesteatrais,edanecessidadedequeamudançafossepostaemprática,acatandosugestões:“OquedizemosdoTeatro,dosAutores,edosComediantes,nãopodeatribuir-semaisqueaointeresse,quetemosnaArteDramática.Respeitamosostalentos,emqual-quergrauqueestejam.Nadadizemoscom intençãodeofenderAutores,nemComediantes.Estesnosfarãotalvezumacríticadura:seelestomaremoverdadeiropontodevista,nãoacharãosenãooqueéo justo.DirãoquefizemosmalempublicarestaObra.Seríamosdeseuparecer,setodososLeitoresfossemComediantes.”:inHistóriaCríticadoTeatro,p.XII.Quantoaosrepertórios,verifica-va:“AlgumaspessoasdenomefizeramcomposiçõesdeTeatro,ouaindaobrasdeCiência,dePolíti-ca,deMoral,edeLiteratura;masestetropeldeAutores,quesesucedemunsaoutrosnoTeatro,ouquenosinundamdebrochuras,sãodesegundaclasse.Entraestamocidade,aindanãoconhecidadomundo,equerendodar-seaconhecer;doisobjectosapreocupamigualmente;ocuidadodeatrairasatenções,eodeprocuraramigos,eummododeestabelecer-se.AprendeunoColégioomeca-nismodosversos, fá-loscá fora,edá-seaconhecernassociedades.Algunsversosem louvordosmembrosdelasaacreditam.Estasproduçõessemultiplicamcomelogios.Estasninharias,quepro-vêmdepequenosincidentes,edasquaiselaseenvergonhamuitasvezesquandomelhoraschegaaconhecer, lhe inspirammais atrevimento;os conselhosdados com inteligência, ou semela, e aosquaisoamorpróprionãoescusa,viramaatençãodomanceboparaoTeatro.Quinhentosouseis-centos versos não são tão difíceis de compor. Um assunto Trágico não é também impossível deachar-se.Cenas,eActosquecoser,bonsversos,quecousaéisto!Obradeummês,quandomuito.‘Lança-semãodeumahistóriaqueagrada,dizoAbaded’Aubignac,esemsaberoqueelatemdeconveniente,oudeimpróprioparaaCena,semobservarqueornatos,ouinconvenienteséprecisoevitar’.Põe-seaotrabalho:tudoquantoescreveédelicioso.ApenasaartedeSófocles,edeCorneillelheoferecealgumespinho.Causa-lheadmiraçãooverqueestesgrandeshomensacharamacarrei-ralaboriosa.(…)JáoAutorrepresentanasuafantasiaopúblico,aplaudindooselogiosdestessábiojuízes; já cortejados dos grandes, e principalmente favorecido de la Finance, que protegendo osrapazesPoetas,buscaencherointervalo,queháentreela,eanobreza;eistonãoéopiorqueelafaz; já, tornoadizer, ficaelearrebatado,egozadeavançodasgraças,edashonras,queprodiga-
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dahojenadanegligenciáveis:atravésdele,conheceremos,apartirdasuagénese,a
históriadosprimeirosanosdoConservatórioedetudooquecomeleserelacio-
nou;tomaremoscontactocomactoresedramaturgos,coevosedopassado;esprei-
taremosaprogramaçãodosprincipaisteatrosdeLisboa,124assiduamentedoTea-
trodaRuadosCondesedoTeatroSãoCarlos,pontualmentedoTeatroSãoJoão,do
Porto,ouestrangeiros;perceberemoscomooarquitectodamaiorreformadoen-
sinodasartesdoespectáculoredigiacríticateatral–críticaanalíticaecircunstan-
ciada, com inúmeros conselhos e sugestões demelhoria, quer do texto, quer do
desempenhodos actores e outros intervenientes no processo; em suma, vislum-
braremosumaboapartedouniversogarrettiano,concretamenteduranteomeio
anoquedurouoJornal.
Deacordocomoprevistopelo seucriador,oConservatórioGeraldeArte
Dramáticacomeçouafuncionarcomtrêsdiferentesescolas:ademúsica,adedan-
çaeadedeclamação,125estaúltimadirectamenterelacionadacomaaprendizagem
doofíciodecomediante,aindaqueosfuturosactorestivessemdepassarpelastrês
escolas, a fimdegarantira suahabilitaçãoàCompanhiadoTeatroD.Maria II, o
sonhadoprincipalpalconacional.126AbrindooprimeironúmerodoJornaldoCon-
servatóriocomumapanorâmicasobreoqueatéaíforaaartedramática,emPortu-
gal, como Inspector Geral dos Teatros e Espectáculos Nacionais apresenta-nos,
seguidamente, osprogramasdas três escolas –declamação127,música edança–,
mentelhefazem.ImaginaqueestáouvindoaPlateiaperguntaremaltasvozesqueméoAutor.En-fim,depoisdedesgostossemnúmero,queeledevorou,conclui-sesuafortuna,seuDramaestápos-toemCena.Masapenassustémalgumasrepresentações,opúblicocometeainjustiçadenãoaplau-dir.Tambémestepúblico,dizeleirritado,nuncasemostroumenosconhecedorquehoje!Queim-porta,descobre-senesteensaioumclarão,queprometeumagrandeluz!OAutorfez-seconhecer,pôs-senoseu lugar,esuasconsideraçõessãocheias,aomenosnaparteessencial.Estasridículasvanglóriassãoosestudos,asrazões,quedeterminamosrapazesPoetasacomporemparaoTeatro.Sãoossocorros,osconselhosqueelesrecebem.”:idem,pp.176-180.
124Nonossoestudo, JornaldoConservatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett,debru-çámo-nosdetalhadamentesobreaprogramaçãodosteatroseacríticaaosespectáculos:ponto1.5.Programaçãodosteatrosecríticaaosespectáculos,pp.51-68.
125No tempo da fundação do Conservatório, distinguia-se entre teatro lírico – teatro deópera,ouitaliano–eteatrodeclamado,aquehojechamamossimplesmenteteatro.
126SobreascontingênciassubjacentesàedificaçãodoalcunhadoteatroAgrião(dadoestarconstruídosobreopontodeconfluênciadediversosribeiros, foidifícil fazeras fundações, jáquecontinuamente iaaparecendoágua), leia-se,naParteIIdonossoestudojácitado– JornaldoCon-servatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett-,ponto3.2.–“Anatomiadeumprojectoarquitec-tónico”,pp.97-110.
127Noprogramadaescoladedeclamaçãoconstavamosseguintesartigos:“ArtigoI.OcursodaEscoladeDeclamaçãoédivididoemtrêsperíodosdeensinoqueserão
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seguidodequatroregrasgerais128,para,apósaformalidadedeconseguiraanuên-
cia dos três conselhos de direcção, serem aplicadas pelo conjunto de todas elas,
taiscomoosarquitectara,naíntegra,JoãoBaptista.129Aorevelarestesdocumentos
aograndepúblico, todosos interessadospoderiam ficarapardoqueocorriano
seio da instituição recém-criada e imaginar o que poderiam esperar dela.Mas o
primeironúmerodoJornaldoConservatóriocontémaindaaactadeumasessão,130
naqual sediscuteoparecernegativo sobreodramaODoidopor força131, sendo
descritasasdiferentesintervençõeserespectivosargumentos.Melhorsortetevea
comédiaOCamõesdoRossio,àqualfoipossibilitadaapassagemimediataàsprovas
designadoscomonomedetermos.
Art.II.Osalunosmatriculadosnoprimeirotermo,frequentarãonasuaEscola,asAulasdeRectapronúnciaelinguagem;RudimentosHistóricos;enaEscoladeDança,aAuladedançapropri-amentedita,paraaposiçãoedesplantedocorpoedesembaraçodosmovimentos.
Art.III.NosegundotermofrequentarãoosalunosaAuladeDeclamaçãopropriamentedita,continuandoafrequentaradeRudimentosHistóricosnasuaEscola;eseguirãoaomesmotempo,nadeMúsica,adeRudimentosdaquelaarte.
Art. IV.NoterceirotermocontinuarãoosalunosafrequentarnasuaEscolaaAuladeDe-clamação,propriamentedita,enadeMúsicaadeCanto.
Art.V.SerãodispensadosdefrequentarasAulasdeMúsicaosalunosdeDeclamaçãoqueanteriormente as tenham frequentado, e que apresentarem certidão de estaremhábeis naquelasclasses.
Art.VI.TodososSábadoshaveráexercíciossemanaisaqueassistirãoostrêsProfessoresda Escola (presidindo oDirector) e juntos os alunos de todos os termos, repetirão uma oumaiscenas cómicas ou trágicas, segundo for ordenado pelo Director da Escola; fazendo cada um dosProfessores, ouduranteo exercício oudepoisdele, asnecessárias correcções e advertênciasquenospontosdesuarespectivadisciplinajulgarnecessárias.
Art.VII.NoúltimoSábadodecadamês, serepetirãodomesmomodoosmesmosexercí-cios,sobreumacenaoucenascomantecipaçãodesignadas.Eno fimdoexercício, tiradosàsortetrêsdefendenteseseisarguentes,haverácertameacadémicosobreasdisciplinasensinadasnaque-le mês; fazendo igualmente os Professores as necessárias correcções e advertências.”: Jornal doConservatório,n.º1,nesteVolume,p.84.Note-sequeexclusivamenteosfuturosactoresteriamdepassarpeloconjuntodastrêsescolas,oquenãoacontecianemcomosfuturosmúsicos,nemcomosfuturosbailarinos.
128Falamosdequatroregrasdecarácterprático,taiscomoprecedênciaseprazosdematrí-cula:idem,p.86.
129Oconjuntodosprogramaspedagógicosfoielaboradoàimagemdosdadosqueoautor,apósestudoscomparativos, foi recolhendoem instituiçõeseuropeiascongéneres,nomeadamenteemParis.
130JornaldoConservatório,n.º1,nesteVolume,p.87.131AcomissãodeliteratosdoConservatórioapresentouosmotivosporquenãosedeveria
admitirtaldramaàsprovaspúblicas:“semsedistinguirpelaoriginalidadedoenredo,eramerece-dordegravecensuraquantoaoestilo,enãomenospeloquerespeitaàlinguagem.Acomissãolou-vavacontudooengenhodoautor,quesoubeacharalgumassituaçõesdeassazmerecimentodra-mático,equesemdúvidadevemserdeefeitosobreacena.”:ibidem.
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públicas.132Antes da Crónica Teatral,133uma espécie de descrição crítica dos es-
pectáculosemcena,edaprogramaçãodosteatros,queencerratodososvintecin-
conúmeros,eque juntas informarãoe formarãooseventuaisespectadores,para
ostornarmaisatentoseesclarecidos,temostrêsartigosrelacionadoscomasma-
térias leccionadasnas trêsescolasdoConservatório, intitulados: “LiteraturaDra-
mática”,sobreaimportânciadamesmaparadaraconhecerosusosecostumesde
cadapovoeépoca,assimcomoapossível influênciadosautoresdeteatronaex-
pansãode ideiasnacionais;134“Dança”,135ondeapresentaumabreveresenhahis-
tórica da mesma; e “Música”,136definindo o conceito como derivado deMusa e
atribuindoasuagéneseaosgregos,queapassaramaosromanos,atéchegaraos
flamengos,quemuitoadesenvolveram,atéaoséculoXVI.Comalgumasvariantes,
eporvezescomumaordemdiferente,osnúmerosseguintesseguiriamaproxima-
damenteamesmaestrutura.Entretanto,outrosassuntosforamsurgindo,sempre
como intuito de instruir actores e público, visto que, comefeito, a sua intenção
pedagógicaestevesubjacenteàredacçãodetodosostextosdoJornaldoConserva-
tório,independentementedoseualvo.Esperava-se,aliás,queojornalismoteatral
contribuísseparaasignificativamelhoriadosespectáculos,peloqueseriatambém
necessáriorenovarorepertóriodramático,outrodoscruciaispilaresdareforma
garrettiana.OlançamentodeConcursosdeDramasOriginaisPortugueses137visa-
132OParecerdojúrifoitranscritonon.º12doJornaldoConservatório,de23deFevereiro
de1840:nesteVolume,pp.263-265.133JornaldoConservatório,n.º1,pp.93-95desteVolume.134Nesteponto,GarrettfazsuaaexpressãodeShakespeare,vendonaliteratura“themir-
rorandfashionofthetimes”,aomesmotempoquesalientaque“écommaisrazãonascomposiçõesdramáticasdeumpovoqueselhedevemoscostumeseusosestudar,eporelesconhecerasopini-õesdessepovonasdiversasépocas”.Masvaimaislonge:“Aoautor,queàcenadedicouseuslavoresevigíliascoubeporcertoexercerindividualinfluêncianasideiasnacionais;levaram-noseustalen-tosacoadjuvaressaespéciedeeducaçãopúblicaqueàsmassasédadoadquirirnorecintodeumteatro,comonagaleriadeumatribunapopular,ouemtornodeumpúlpitosagrado;–nãoselimitacontudosuamissãoainstruir,comotambémadeleitar:–aceitandoporjuízesosseuscoevos,cons-trangidosevêaregrar–peloshábitosemvoga–oseuprópriogosto,e,nãoraro,adar-lheslisonjaaosabusos,oucondescendênciaaoscaprichos”.ApresentaaindaexemplosdeEspanhae terminacom a Alemanha, “onde o drama verdadeiramente Nacional não chegou senãomais tarde”, masonde“podeachar-seumasemelhanteanalogia.”:JornaldoConservatório,n.º1,nopresenteVolume,pp.88-90.
135Idem,pp.90-91.136Idem,pp.91-92.137OsConcursosdeDramasOriginaisPortugueses,lançadospeloConservatório,terãoda-
doalgumfruto,comoconstatavaoentusiastaredactordoJornal:“Omovimentodramáticodestesúltimosvintemesesérealmenteespantoso,eexcedeaanelanteexpectaçãodosquemaisse inte-ressampelaspátriasletras.MaisdramasoriginaisviunascerPortugalnessespoucosmeses,doquetalveznosdoisséculostodosinteirosquenosprecederam,equefaziamoseufornecimentoteatral
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va,precisamente,oincentivoanovosdramaturgoseaproduçãodeumrepertório
renovado, genuinamenteportuguêse consentâneocomo seu século.Alémdisso,
comapublicaçãodospareceresdojúridoConservatório,esperavaodramaturgo
deFalarverdadeamentircontribuirparaoaperfeiçoamentodosnovostextos,que
muitomelhoradossairiam,seacompanhadosdosensinamentoscontidosnoutros
artigos,relacionadoscomacríticaeanáliseliterária,oucomadefesadasparticu-
laridadesda literaturanacional,doportuguêsautêntico, sem imitações,ouainda
doCursoLiteráriodeMr.Magnin, oudoestudodaLiteraturadaAntiguidadeao
séculoXIX,oumesmooscomentáriosatextosdereconhecidosautoresestrangei-
ros.Deresto,estesmesmosseriamtambémdointeressedograndepúblico, indo
aoencontrodafunçãocivilizadoradoteatro,“livrodosquenãolêemlivros”,138ea
exclusivamentenosrepertóriosestrangeiros.”:n.º2,de15deDezembrode1839,nesteVolume,p.97.Remetendoparaoponto2.1.OsConcursoseosPareceresdaComissão,donossoJornaldoCon-servatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett, sobretudopara aspp. 85-88, aí damos contadagrandeafluênciaaosmencionadosConcursos,entre31deMarçoe1deDezembrode1839,quandoonúmerodenovasproduçõesdramáticasseelevoua,pelomenos,vinte;asaber:opróprioGarrettapresentou,paramodelodasrestantes,oseudramahistóricoUmAutodeGilVicente,assimcomorefezcompletamenteacomédiaOCamõesdoRossio,levadaaconcursoporInácioMariaFeijó;Ale-xandreHerculanocontribuicomoutrodramahistórico,OFronteirod’África;AntónioMariadeSou-saLoboviuoseutambémdramahistórico,OEmparedado,comoaprimeiraaseraprovadapelojúridoConservatório;maisumdramahistórico,OsDoisRenegados, chegoupelamãode JoséMendesLeal,quepoucodepoislhejuntariaOHomemdaMáscaraNegra;JoséFreiredeSerpaPimentelcon-correucomoutrodramahistórico,DomSisnandoCondedeCoimbraeAActriz;JoséBayardocandi-datou-se comodramaOMarquêsdePombal,ouoTerremotodeLisboa; InácioPizarrodeMoraesSarmentotentouasuasortecommaisdoisdramas,LopodeFigueiredoeDiogoTinoco;trêsdramasescreveuCesarPerinideLucca,professordoConservatório,equeforamarranjadosemPortuguêsporAntónioFelicianodeCastilho–Ostrêsúltimosdiasdeumsentenciado,PhilippeMauverteGeral-dosempavor;porfim,odramaAmortedoCondeAndeiro.Entreosquenãoforamadmitidosacon-curso,estiveramDomPedroDuquedeCoimbra,ORenegadoeOsConjuradosouoPatriotismoPortu-guês.tambémestesdramashistóricos.ReprovadosaiuODoidoporforça,OsamoresdeD.PedroeD.InêsemortedestaeModaouumacenadosnossosdias.
138VemosaquiumarespostaàsdúvidasdeManuelaPorto,em“Comentáriosàmargemdoteatro”,deJunhode1946:“Éevidentequeeunãopodiaesperar,nemesperava,mesmoadmitindoqueacabodechegardequalquerplanetadistante,queumapopulaçãocomtamanhapercentagemdeanalfabetosedegentemalsabendoler(…)tivesseumgranderequintedegostos,interessando-seafundopelosflorescimentosmaisalevantadosdaespiritualidade.
Claroestáqueopúblicosópoderáintegrar-senoespectáculodesdequeesteonãotrans-cendaexcessivamentee,sendoassim,comoconseguir fornecerapessoasmalsabendolermuitasdelas,apessoaspoucohabituadasaescutareaindamenosaentender,representaçõesque,interes-sando-as,sejamaceitáveis,elevando-as,aospoucos,emvezde,maisemais,asfazeremdescer?”.”:citadaporDianaMarqueseMariaHelenaSerôdio(orient.),Teatrocomsentido:avozcríticadeMa-nuelaPorto,p.87.
AmesmafontecitaSimõesCoelhoque,em1909,apresentavaumaperspectivadiferentedaanterior:“Aartedoteatroéaúnicaqueparaasuareceptividadenãoexigedoespectadordeboaféestudoprévio,aúnicaquetediz,porentrechosartistizados,quantasperfídiaseabnegações,quan-tosdesejoseanseios,quantas lágrimaserisos,quantasvaidadesevirtudes,quantasvergonhasebenemerências, facetamaspaixõeshumanas.” [Econtinua:] “Dir-me-ás: ‘Ondeestáesse teatrodequetantopropagaisadoutrina?’Tensrazão:nãoexiste.HámuitosteatrosemPortugal–nenhum
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quemeradadaaconheceraprogramaçãodosteatros.Aindaascríticasaosespec-
táculospoderiamincentivarumamaiorafluênciadeespectadores,ávidosdenovi-
dade;139porém,asmesmas seriamdemaiorutilidadeparaosactores, sequises-
semintegrarassugestõesquelheseramfeitasparaamelhoriadoseudesempenho,
de acordo com as “Qualidades e deveres do comediante”,140conjunto de artigos
normativosparaumamelhoractuaçãoempalcoe,melhorainda,seoptassempor
seguirosmodelos,cujasbiografias141podemser lidasno JornaldoConservatório.
Porfim,demonstrativodoenormeesforçoqueestavaaserfeitoportodososagen-
tesdainstituição,almejandoaconstituiçãodeumaboacompanhiadeactorespara
ofuturoteatronacional,teremosàdisposiçãoumSuplemento142doJornal,de5de
Junhode1840, integralmenteocupado comamuito esperada, epor tantos acla-
delestepodedaraartequeprecisas.Aartequeteconvéméumaartenuadeprocessosartificiosos,umaartequesejaaexpressãoexactadavidanatural;umaartecheiadeluz,devigoredeinteligên-cia.”:idem,p.89.
139Dirigidosaopúblicosãoaindaosartigos“ArtedeAplaudirnosTeatros”e“Vermenos,gozarmais”,mais uma vez relacionados com essa necessidade de instruir, desta feita quanto àsmelhoresatitudesatomarnosdiferentesmomentosdosespectáculos.Éprecisoensinaropúblicoaaplaudiroqueefectivamentemereceaplauso,porqueumareacçãomaisoumenoscalorosapodeinfluenciaro trabalhodeumactor.Alémdisso, sóumpúblicoesclarecido será capazdenotar “ainteligência,agraça,aexpressão,omérito,eaindaatranscendênciadetalento”:JornaldoConserva-tório,n.º6,nesteVolume,p.177.Logo,“ide(…)muitasemuitasvezesaosnossosteatros(…).Sa-beismaisenãovosenfastiaistanto.”:JornaldoConservatório,n.º3,nesteVolume,p.127.
140Trata-sedeumconjuntodenoveartigos,emqueosprimeirosquatro(on.º3doJornaldoConservatóriocontémo1.ºartigo;o2.ºartigofazpartedon.º8;noJornaln.º9publicou-seo3.ºartigoe,porfim,o4.ºartigoinsere-senoJornaln.º11–correspondentes,nonossoVolume,àspp.113-115; pp. 212-213; pp. 215-216; pp. 257-258) se relacionam com os atributos que qualqueraspiranteaactordevecultivar–comosejamainteligência,asensibilidadeeanobrezadecarácter,quesereflectemnoolharenavoz-,enquantoque,nosrestantescinco(osartigosn.º5,6,7,8e9forampublicados,respectivamente,noJornaldoConservatórion.º12,n.º14,n.º17,n.º19en.º24–nestenossoVolume,pp.271-273;pp.304-305;pp.342-344;pp.376-378;pp.448-450),sãodesen-volvidos os deveres, quemais não são que a aplicaçãoprática das qualidades: no quinto e sextoartigos,mostra-secomodeveoactorusardeinteligênciaparaadequarafisionomia,ogestoeavozàilusãoqueoactordesejaproduzir,consoanteestejaarepresentarumatragédia,umacomédiaouumdrama;ogestoé,aliás,oassuntodesenvolvidonosartigossétimoeoitavo,sendooúltimodedi-cadoà importânciadequese revesteopapeldoactorparaumaboarecepçãodequalquerpeça,frisando-seanecessidadededecoro,dejustamedidanadeclamaçãoenasatitudes.Aestas“Quali-dadesedeveresdocomediante”jáaludimos,demodopormenorizado,emJornaldoConservatório:ComédiaeDramadeAlmeidaGarrett,pp.44-48.
141Como possíveis modelos, desfilam nessa galeria as actrizes Mademoiselle Rachel,MademoiselleGeorgeseLuísaHoltey;osactoresDavidKeaneLigier;oscantoresJúliaGrisieMariodeCandia;abailarinaMariaTaglionieosdramaturgosÉsquilo,WernereMarionDumersan.Situ-andocadabiografadonestenossoVolume:asactrizes–pp.316-317,pp.387-392,pp.464-467;osactores–pp.357-366epp.398-406,pp.406-715;oscantores–pp.308-312epp.331-333;abaila-rina–pp.340-342;osdramaturgos–pp.417-420epp.444-447,pp.423-428,pp.366-368.
142VidenossoVolume,pp.469-492.
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mada, FestadoConservatório143equemuito envergonhariamuitasdasnotasde
programaquehojecirculamnasnossassalasdeespectáculo.Chegadosaestepon-
to, constatamosque,paraalémdedivulgar todososmeandrosda instalaçãodas
trêsescolasdoConservatórioGeraldeArteDramática,assimcomotudooquecom
eleserelacionasse,aintençãopedagógicadoseuautorterásidoamaismarcante
doJornaldoConservatório,tendocomoalvos,paraalémdosdramaturgos,dosac-
toresedageneralidadedosagentesteatrais,ospúblicosdeteatro,queseesperava
quefossemcadavezmais,144e,porquenão,todososqueestivesseminteressados
emaprenderevalorizar-se.145Setivéssemosquedestacarapenasumdosassuntos
tratadosnesteperiódicosemanal,chamaríamosacrítica,146peloseupapeleminen-
tementedidácticoeabrangente.NoJornaldoConservatório,AlmeidaGarrettofere-
143EstaFesta,grandiosoespectáculodeteatro,músicaedança,noqualtodasasescolasda
Conservatóriotiveramocasiãodeexibiromelhorqueconseguiramalcançar,ocorreua29deMaiode1840,novelhoTeatrodoSalitre,ondeaFamíliaRealpresidiuaumasalaplenadeentusiastasecuriosos.Entreosmuitosnúmeros,apresentadosatéaltashoras,esteveumdramaanónimo,intitu-ladoAmorePátria,queoseuautorviriaapublicarcomoDonaFilipadeVilhena.
144Interroga-seManuelaPorto, em “Considerações inúteis acercado teatro”,de Junhode1947:“Nãoseráoteatro,entretodasasartes,aquelaquepossuimaiorrepercussão,pormaisdirec-ta?Nãoseráaoteatroquecompetetransmitirdegeraçãoemgeraçãoaquelatradiçãoqueimporta,naverdade,conservaresemaqualnãopodeconsiderar-secivilizadaumanação?Refiro-meàtra-diçãoliterária,àpurezadalíngua,numapalavra,atudoquantocontanohomemcomoserpensan-te.”:citadaporDianaMarqueseMariaHelenaSerôdio(orient.),Teatrocomsentido:avozcríticadeManuelaPorto,p.90.
145Oespectáculodeverá,pois, estimularo espectadorna suaprópria existência eno seuprópriopensamento: “Osentidodemissãoemrelaçãoaopúblicomuitasvezes funcionasónessecampo,nãovaimaislongedoqueisso.Abrirumajanelinhanacabeçaenasensibilidadedaspesso-as.Porvezesénasformasmuitosimplesqueissosucede.Umespectáculoquenãofaledenadademuitograve,quepareceterumalinguagemsuperficialesermeroobjectodeentretenimento,podeprovocarsensaçõeseemoçõesestéticas,podedespertarsensibilidadesnormalmentereprimidasnavidaquotidiana.”: emTiagoBartolomeuCosta,Ocegoqueatravessoumontanhas–ConversascomLuísMiguelCintra,p.27.
146Noentanto,éopróprioGarrettquenosdizquãoduroéoofíciodocrítico:“nãoémaisagradávelqueodoalgoz;adiferençaentreumeoutro,sóetodaconsisteemqueoalgozdáamorteàsuavítima;ocrítico,quandoseempregaemanalisarobrasdemérito(…),nãosólhesnãodámor-te, antesmais lhesanimaavida,propagandopelasgenteso conhecimentodas suasbelezas.”: “OHomemdaMáscaraNegra”,inJornaldoConservatório,n.º16,nesteVolume,p.328.
Ouentão,vejamosestoutroexemplo:“’IwishIwereanythingratherthananactor’,wroteWilliamMacready, ‘exceptacritic: letmebeunhappyrather thanvile’.Therelationshipbetweenthe reviewer and the reviewed has always been, at best, tetchy, and thememoirs of artists andwritersarepepperedwithloathing.‘IfI’dhavelistenedtothecritics’,Chekhovobserved,‘I’dhavedieddrunkinthegutter’.Thisduellinghasgoneondownthecenturieswithoutbenefitofreferee.Responsesfromartiststoadversereviewswerealwaysmorevituperativethanthecritics’apprais-als,andwithmostcriticsbeingfreelanceandworkingtocontract,theyseldomhaveaneditorwhocan interveneon theirbehalf.”: inTAIT,Simon(ed.),100CriticalMomentsIntheCircle’scriticsontheartthatstoppedthemintheirtracks,p.6.
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ceumlargoespaçoàvertentecrítica,147abarcandoosmaisínfimospormenorese
estendendo-sepelosváriosaspectosdoespectáculo,desdeaqualidadedotexto–
linguagem,estrutura,argumento,respeitopelaverdadehistórica,temanacionalou
não, sugerindoalteraçõesconcretas,nãorarasvezesaproveitadasemreposições
seguintes-;damúsica–emquerevelabastantesconhecimentosteóricos-;dadan-
ça–dequemostraconhecerosfundamentos-;àencenação–emquegabaesteou
aqueleponto,mastambémsugerealterações,queseriamounãoaproveitadasem
sessõesposteriores.Ascríticasaosespectáculos,contidasnoJornaldoConservató-
rio, referem-se largamenteàactuaçãodosactores,148ondeestessãoelogiadosou
criticadoscomsugestõesdemelhoria,deacordocomasenunciadas“Qualidadese
deveresdo comediante”, congratulando-se o autor quandoos artistas visados as
aproveitam nos espectáculos seguintes, ou lamentando quando as mesmas são
ignoradas,concretamenteosapontadoserrosdepronúncia,recorrentesemalguns
actoreseactrizes,ouasdeclamaçõesemmelopeiacantada,játãoforademodae
quenemproduzembomefeito,antesaborrecemeadormentamoespectador.Al-
vosdecríticasãotambémoscenários,oguarda-roupaeacaracterização,segundo
asuaqualidadeeadequaçãoacadatextodeteatro,essa“artedementircomver-
dade,consentindoquedescortinemosessamentiradesobosesforçosparaalcan-
çar realidades”.149Não poucas vezes o crítico denuncia erros de casting, como
quando actores cómicos são escolhidos para papéis sérios; lamenta dramas em
noites de Carnaval, “fazendo chorar quem só queria rir”; ou reprova noites com
duascomédias,geralmentemaisbrevesqueastragédias,fazendocomqueoespec-
táculoacabecedoedeixeosespectadorescomdemasiadotempolivrenoseuse-
147AindaManuelaPorto,nocitadoartigode1947,apropósitodecrítica:“Édeverdetodos
aquelesqueestimariamveraarteteatralerguer-seumpoucodolodoondeseencontrasoterradafazerdesassombradamente,eatéaofim,observaçõesqueconsideramjustas,esperançadosemquedelassejapossívelretiraralgumproveito,setomadas,nãocomomá,mascomoboavontade,eco-modesejodeverprogredirecrescer.”:DianaMarqueseMariaHelenaSerôdio(orient.),Teatrocomsentido:avozcríticadeManuelaPorto,p.95.
148ComonosdizoactoreencenadorLuísMiguelCintra:“Quandoaspessoasvêmaoteatro,vêmverotrabalhoqueestamosafazer,masessetrabalhodeveecoarcomoquiseremqueecoe.”:emTiagoBartolomeuCosta,Ocegoqueatravessoumontanhas–ConversascomLuísMiguelCintra,p.77.
149JornaldoConservatório,n.º3:nesteVolume,p.115.Curiosamente,aindanãohámuitotempoqueLuísMiguelCintradiziaalgosemelhante:“Oteatroexisteverdadeiramentequandoháalgumacoisaqueperturbaereflecte,ouelabora,arealidade.Oteatroexisteexactamentenomo-mentoemquenãosepodedistinguiraverdadedamentira.”:emTiagoBartolomeuCosta,Ocegoqueatravessoumontanhas–ConversascomLuísMiguelCintra,p.37.
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rão.150É,pois,acríticapassíveldeinteressaretransmitirensinamentosválidosa
todos os que escolherem lê-la, quer aos criadores de repertório, quer aos acto-
res151quer aos que simplesmente estiverem interessados em aprender a ser es-
pectadores autênticos,152capazes de ouvir, observar, analisar, tirar conclusões e
150Apud Maria Gabriela Ferreira, Jornal do Conservatório: Comédia e Drama de Almeida
Garrett,p.67.151Naactualidade,édestemodoqueLuísMiguelCintraencaraasuafunçãodeactoreen-
cenador:“Oofíciodoteatroserve-mecomomaneirademepôrapensar,egostodepensarnoqueandoafazer.”(…)“Emvãoprocuramosacoerênciadeumdiscurso.”(…)“Énasnossascontradiçõeseemtantoinconscientequesevaigerandooviveretentandoconquistarasabedoria.”EcitaLouisJouvet:“Condenadosaexplicaromistériodavida,oshomensinventaramoteatro.[Chama-lheumparaísoartificialetemporário,talvezàesperadeumparaísofuturo.(p.27)](…)Oconceitodeper-sonagemestámaispertododeactor,ouseja,deumartista,deumapessoanopalco,aconstruireadesconstruir pistasde sentido, umportadordas constantes ambiguidadespoéticas, doprazerdaprovocação.Oseupontodevista,obviamente,nãopodeserodasuapersonagemnaantigagramá-tica.”(…)“Sóavançamosporcontradições.Odesejodeabsolutopassapeloteatrodosofrimento.Avontadedealegriapelador.[…]Sónastrevasaluzpodebrilhar.”:Ocegoqueatravessoumontanhas–ConversascomLuísMiguelCintra,pp.13-14.Maisadiante,explicita:“(…)enquantoartistaestivesemprearemoeromesmoassunto.Éissoaambiçãodenosquerermosultrapassar.Eéaindasin-tomadequenuncameconsidereiumfazedordeespectáculos,massempreumapessoaquedisseserum intérpretedos textosdosoutros.No fundo,nuncame limitei a serum intérprete,porqueentendisempreasencenaçõescomoessedesejodeperceber,acadamomento,quetrabalhoseestáafazer.Éumavontadeeumdesejodeabsoluto.”:idem,p.19.“Umadascoisasquemaismediverteétentarperceberqueosprocessosqueoteatrotemusadosãomuitomaisantigosdoqueaquelesusadospelapoesia,pelaliteraturaoupelamúsica.Eoquetêmconseguidoédiferente.Amisturaeajustaposiçãodelinguagens,arejeiçãodarealidadeouarecusaemobedeceràssuasregrassãocoi-sasqueaindanãoaprendemosnoteatro.Oconfrontoaindaéumaformadetentarmosperceberoqueestamosaver.(…)Perceber,fragilizandoaprópriaescritadramatúrgica,éumadascoisasqueparamimmaisconta.Eisso,oqueé?Éfazeroespectáculoquemaisestejadeacordocomomodocomofuncionaanossacabeça.Normalmenteumespectáculolimita-nosaumadeterminadalingua-gem,masteraliberdadedeolevarparaoquepovoaanossacabeçaéfazeroespectáculoàimagemde como funcionamos.Masnão é só internamente que isto funciona. Também como espectadorcria-seumanovarelação,quenãoédejuizparajulgado,oudeclienteparaproduto.Éumarelaçãoquesópodeserdeigualdade.”:idem,p.53.
152EmÜberdasgegenwärtige teutscheTheater também Schiller se refere à influência daatitude do público na compreensão cabal do espectáculo: “he recognises that the theatre,whichmirrorslifeinsensuousform,mustbeamoreeffectivemeanstoformmoralitythanabstractpre-aching. But sensuousness is a two-edged quality. The moral of Emilia Galotti may be lost on aprincelyspectatorwhohaseyesonlyfortheactressplayingthevictimofprincelydespotism.(…)Intheend, theattitudepeoplebringwith them to the theatre isdecisive. If this is frivolousandvi-cious,thedramatistcannothopetobethe‘LehrerdesVolks’.”:T.J.Reed,TheClassicalCentre–Goe-theandWeimar(1775-1832),p.21.Porsuavez,lamentaGarrett,non.º6doJornaldoConservató-rio:Nãofaltamespectadoresqueandemacorrerosteatrosemcataunicamentedeactrizesmoçasebonitas, de cómicos formosos e apessoados: – quemontapara tal gente a inteligência, a graça, aexpressão,omérito,eaindaatranscendênciadetalento?–Nãoéodramanemapersonagemquemosacareia;contentam-secomaviajeirailusãodeumaconquistaamorosa,deumaaventuradeca-marim.Éohomemouamulherqueelesvêemenuncaoartistadramático;eparataisamadoresforaminventadosessesóculosgigantescosepesados,queumbraçovigorosoacustopodesusten-tar pormais de algunsminutos; que seriamóptimospara ler na faceda lua,masqueproduzemsobrealgunspobresactores(paranãodizeractrizes)omesmoefeitoqueoaneldeAtlantenafor-mosíssimaAlcina!”,quando“semelesveríeisumrostoencantadoraperfeiçoadopelaarte,melho-radopelaperspectiva.”:in“Vermenos,gozarmais”,nesteVolume,p.177.
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estabelecer juízos e, em último caso, aprender a viver em pleno;153não passiva-
mente,masparaládocomezinho,aptosafazerdiferente,omelhor;enfim,autenti-
camente,aprenderaSER,154poisquesóassimpoderãofazerdePortugalumpaís
maiscivilizadoedesenvolvidoecontribuirparaummundomelhor.Paratal,otea-
tro seria um poderoso instrumento adjuvante, aliando o lúdico ao didáctico.155
Ainda assim, o panorama teatral português do século XIX não sofreu a desejada
evolução.156SeosesforçosenvidadospelodramaturgodeFreiLuísdeSousasurti-
153LuísMiguelCintraveioaoencontrodestamesmaideia:“Duranteanosacrediteidesme-
suradamentenopoderde comunicaçãodo teatro (falodadiscussãode ideias,deprovocar senti-mentos,pensamentos,sensações)comumdesmedidoamorportantasobras-primas,sobretudodochamadoteatroclássico,queficaramcomosinaisdevidasdeautoresedeactoresquelhesderamvida,equeamimmeprovocammomentosdetãograndeprazer.Souactoreseicomosereinventavidaquandoseactuanoteatro.”:emTiagoBartolomeuCosta,Ocegoqueatravessoumontanhas–ConversascomLuísMiguelCintra,p.9.Continuando:“Noteatroounavida, fingidoouverdadeiro,nãointeressa,tudooquesepassatemrazãoporsi.(…)Comoencenadornãoseisertãopoetacomoospoetasqueadmiro,masaprendicomelesadefenderumteatrodifícil,queresponsabilizaoes-pectador,umteatroquelhepropõeumjogodedescobertadavidadecifrandoimagensvivas,pes-soasemcena,afinalverdadeiraseficcionadasmanifestaçõesdevidacriadasapenasparaumjogocomoconhecimento,conhecimentodavidamesmo,momentosúnicoseindividualmenteresponsá-veis de reflexão, de prazer, de partilha. Um trabalho com as consciências, um trabalho moral.”:idem,p.11.
154VoltandoaLuísMiguelCintra,“oquefazoteatro(equemdizoteatrodizaarte),comoareligião,écriarmetáforas,imagens,palavras,figuras,tãoopacascomotransparentes,paraquenadescobertadassuaschavesoshomenssejam,seunam,serelacionem,seamemesedistingam,serespeitemnasua individualidadeouresponsabilidade,queéomesmo,écriarumcorpoquenãofaçasentidosemumainterpretaçãoparasempreincompleta,parasempreimperfeita.Esenotea-tro a metáfora é o próprio homem, se a metáfora sou eu, transformo-me, transcendo-me, tomoconsciênciademim,serincompleto.”:idem,p.10.
155RecorrendoaindaaLuísMiguelCintra,“Oquemeinteressaéopoderdetransformaçãodoprópriojogoeaquiloquenojogotranscendeaminhaconsciênciadoespectáculo,queédaor-dem da relação que o público terá com o espectáculo.”: em Tiago Bartolomeu Costa,Ocegoqueatravessoumontanhas–ConversascomLuísMiguelCintra,p.35.Atéporque“sóquandomuitagentepensarpelasuacabeçaeessepensamentocoincidircomumasériedecoisastudosetornaráinte-ressante”(idem,p.28),poisque“éapartirdatransformaçãodo indivíduoquesechegaráaumatransformaçãodasociedade.”:idem,p.36.NomesmosentidoopinouManuelaPorto,numartigodeJunhode1949, intitulado “Algumas reflexõesapropósitodo teatro”: “Sempre foi característica emissãodoteatroserexpressão-síntesedosentimentoíntimoeideias,numapalavra,dafédospovos,sóconseguindoatingirverdadeirobrilhoecumprircabalmenteasuamissãoquando,transformadaapalavraemacção, transbordaoedifícioteatral,alcançaarua,arrastaconsigoamultidão,expri-mindoatravésdosmeiosàartecénicapeculiares,omaisimportantedasensibilidadeedopensa-mentodessamassadegente.”:inDianaMarqueseMariaHelenaSerôdio(orient.),Teatrocomsen-tido:avozcríticadeManuelaPorto,p.85.
156ComoobservouMariadeLurdesLimadosSantos, “Emsuma,asituaçãoda instituiçãoteatralapartirdosegundoquarteldoséculoXIXatéaosanos70apresenta-sericadecontradiçõesemPortugal (…).Apardenumerosos indíciosdeumavida teatral fervilhante–desenvolvimentodascompanhias;atribuiçãodesubsídiosoficiais;existênciadeumConservatóriodeartedramática;organizaçãodeconcursosdramáticos;aumentoemelhoramentodesalas;multiplicaçãodasrevis-tasdaespecialidade;aparecimentodeactoresmaisqualificados;utilizaçãodemeiospublicitários;vedetismo;criaçãodeváriosgruposdeamadores-,encontram-se,poroutrolado,repetidascríticasàdeficienteformaçãodosactores,àfaltadequalidadeepoucavariedadedosrepertórios,àincultu-radopúblicodo teatroe, sobretudo, à carênciadeumaproduçãodramáticaoriginal.”:ParaumasociologiadaculturaburguesaemPortugalnoséculoXIX,pp.61-62.
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ramalgumefeito, concretamenteatravésdas iniciativasdoConservatório, a ver-
dadeéqueaimpreparaçãodopúblico,porumlado,eaavidezdelucrosimediatos
dosempresáriosteatrais,poroutro,nãopermitiramquesefossemuitolonge.De
todaaforma,oânimodeAlmeidaGarrettnuncaesmoreceueograndereformador
conseguiualgunsavanços,deixando-nos,paraalémdomais,osseustextosdoutri-
nários,assuaslúcidasanálisescríticas,aindahojedegrandevalia.
Apesar,porém,doseuperseverante,emesmopertinaz,empenhonarefor-
madoteatroportuguês,semdúvidaaquelaquetomoucomograndemissãodasua
vida,aactividadedoilustrepedagogonãopoderiaresumir-seaisso, jáqueoseu
espíritomultifacetadoeinquietotalnuncalhepermitira.Daíqueasuaintervenção
setenhaestendidoamúltiplosoutroscampos,semprecomointuitodeconseguir
omelhorparaPortugaleparaosPortugueses.Aindacomumartigocrítico,157de
19deJaneirode1840,destafeitaforadoâmbitoteatral,antessobreopoemade
Florian,Eliéser,ouaternurafraternal, traduzidoemversosportugueses,porMa-
nuelRodriguesdaSilvaAbreu,158oautordeFolhasCaídasparticipounon.º7do
CorreiodeLisboa.159SobreaobradeSilvaAbreu,160depoisdelheelogiaroaspecto
exterior,161notaoatentocríticoque“olivroébonitopordentroeporfora”,cons-
157CarlosLeonesalientaoobjectivodeeuropeizaroumodernizarPortugal,assimcomoo
papelreflexivodacríticaliteráriaromântica,”demodoalgumrestritivoàaferiçãodovalordeumaobraouautor.A reflexividadeda crítica literária émáxima,pois serve-sedomesmomeiodeex-pressãoqueoseuobjectodecrítica,aescrita,e,talcomoele,dirige-seaumasociedadequenãolheéestranha,i.e.,aumpúblicoquepartilhaointeressee,emmedidavariável,aprópriaactividade.Ora,noPortugaldoséculoXIX,nafaltadeumtalpúblico(commassacríticarelevante),asvariantesdoconfrontoentreromantismoeiluminismoadquirirammatizesbemcontrastados(…).”:Oessen-cial sobre Crítica Literária Portuguesa (até 1940), pp. 36-37. Garrett constitui, pois, um exemploparadigmático,tentandoformarmassacríticaondeelaerapraticamenteinexistente,numpaísqueLeonedenominoucomoPortugalExtemporâneo,sempreareboquedosqueevoluemmaisrapida-mentee,porisso,chegamprimeiroondesóchegaremosdepois.Masissonãopodeserumainevita-bilidadeeojornalistada“penad’oiro”bemosabia.
158ManuelRodriguesdaSilvaAbreu foibibliotecárionaBibliotecadeBragaepublicouoseulivroem1839:ApudVARGUESIsabelNobreeCABRAL,Luís,GarrettJornalista.BibliotecaPú-blicaMunicipaldoPorto,1999,p.37-38.
159SaídosdoprelodaTipografiaCarvalhenseos983númerosdoCorreiodeLisboa,de23deOutubrode1837a22de Janeirode1842, começarampor surgir trêsvezespor semanaparadepoispassaremadiário.DeacordocomSilvaPereira,nasceuesteperiódicosetembrista,tornan-do-seposteriormentedefensordeCostaCabral.Idem,p.37.
160De acordo com Ernesto Rodrigues, “é favor de amigo, e nervo de esteta, que logo naprimeira linha reúne ‘bonito' e ‘elegante’, para nos aproximar do ‘livrinho’. Incapaz de esquivarmodasepolítica,dedefendersemdescansomestreFilinto,é igualmente informadonoprazerdografismo,comoelementosignificante.”:“GarrettJornalista”,inRevistaColóquio-Letras,n.º153/154,p.64.
161“Éumvoluminhopequeno,masnitidamenteimpresso,bemtalhado,bemproporciona-do, comoumabrochura deParis, feita para se cortar com faca de nácar no bufete aveludadodo
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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truídonum“estilopuroelinguagemcasta”,seguindoFilintoElísio,seutãoprezado
modelo,naimitaçãodanatureza.Mas,maisdoqueisso,salientouodramaturgode
OAlfagemedeSantarémouaEspadadoCondestável,soubeotradutortransformar
opoemaefazê-loportuguês.162Edestemodoconcluiuobenevolentearticulistaa
sua análise, sempre procurando fazer sobressair o melhor,163num tommais de
incentivodoquedecensurapropriamentedita,comoeraseuapanágio,poistinha
Garrettessagrandegenerosidadequesempreacompanhaogénio.164
boudoir.Eesteeleganteespécimedanossatipografiavem-nosdosprelosdeBraga,cidadequenãotinhaassentoemcortesdeprogresso!(…)Asproporções,asdistâncias,adistribuiçãodosdiferentestiposqueseempregamsegundoanaturezadasdiversaspartesdequesecompõeolivro,prefácios,corpodopoema,notas,versos,prosas,tudoestátãobemcalculadoedisposto!Estaciênciadotipó-grafo,estetactoquevemdogostonatural,aperfeiçoadopelaobservaçãoeestudodosbonsmode-los;abelezaquedelaresulta,esemaqualpoucobrilhaadotipomaisbemfundido,adopapelmaisacetinado,estaéaquemaisabsolutamenteignoramosnossosimpressoreseque–mirabiledictu!–pelapresenteobravemosquechegouaBragasemdardespachonasalfândegasdeLisboaoudoPorto.”:CorreiodeLisboa,nesteVolume,p.493.
162“…aparteintelectualnãoésomenosàmaterial,antesaexcedemuito.Comosouvidostrilhadosdoestilodeseumestre, convertidaa imitaçãoemnatureza,o sr.Rodriguessegue facil-menteesemesforçopelocaminhodeFilintoElísio,traduzindoemsincerosversosportugueses,apoéticaprosadeFlorian.(…)/Pesa-meterdepassaremclaroportodasascircunstânciasqueem-belezameaviventamestesingeloquadrodequesódouoesboçodescarnadoparanãoanteciparsobreogostoeprazerdosleitores./Oestiloépuro,alinguagemcasta.Acasoalgumperluchonota-rá,aqui,ali,seuFilintismoquedirãofanáticopelomuitoqueoA.sevêquedesconfioudesiparaconfiaràscegasemseumestre./Pormim,quenãosoutãoescrupuloso,regalei-mecomaleituradobomEliéser,quefoihebreuedepoisfrancês,masagoraéportuguêsdeveras;eestouqueassimsucederáatodososqueoleremesouberemapreciarcomoestalindacomposiçãomerece.”:idem,pp.493-496.
163ComodiriaJoséMarinho:“Hácertamentenotáveiscasosdegrandespoetasouartistasque foram críticos.Mas devia ver-se quenão são críticos pelomesmodomque os fez poetas ouartistas.Acríticaé,desuaessência,filosófica.Ocríticoéumpesquisadorcompreensivoevalorativodaverdadeexistentenasobrasdoshomens.Distingue-sedofilósofoemqueesteprocuraaverdadenoamplomundo,noshomensetambémnanatureza,ouparaalém.Ocrítico,porseuturno,atendeapenasàsobrasdoshomens,aosentidoeaovalordeles.(…)Nãohá[,porém,]juízosemconceito,nãohácríticasemconsciênciareflectidadoseufundamento,doseuprocessoefinalidadeprópria.”:TeixeiradePascoaes,PoetadasorigensedaSaudadeeoutrostextos,pp.511-512.
164Aocontráriodosqueocriticavampornãoalcançaremaelevaçãodeseusjuízos,oautordeAdozinda,tinhasempreocuidadodenãodesanimarosseusalvos,antesoincentivavasempre,comcríticasconstrutivaseconcretas.ComoafirmouE.M.deHostos:“Elobjetodelacríticaestam-biénjuicio,pues(…)lafuerzamismadelarazónnoslleva,pormediodeljuicio,aafirmaronegaroabstenermosdedeclarar,enfavoroencontradecuantopuedesercausadelejerciciodelarazón.Perocuandodecimosqueelobjetode lacríticaes tambiénel juicio,queremosdecirdeunmodomásenfático,quelacríticatienedetalmodoporobjetoeljuicioque,enrealidad,ellanoseocupadeotracosaquededirigir,encaminar,reencaminaryfijareljuiciodemodoqueloafirmadoporélcorrespondaexactamentealoreconocidoporlarazónenelobjetodeconocimientoqueexamina.Lodicho(…)estanexacto,queaquellapartedelaLógicaquetieneporobjetoelanálisisdeljuiciosellamacrítica.”:Crítica,pp.9-10.Ora,acrítica“seaplicaalahistoria,alajurisprudencia,alapoli-tica,alamoral,alaartes,alasletras;ensuma,atodocuantoresultadelaactividaddelserhumanoenlahistoria.”:idem,p.13.Alémdisso,deveobedeceraumaregrafundamental,quenuncadeveriaseresquecida:“laLiteratura,másqueningúnotroarte,estáenproporcióndirectadeldesarrollodelasociedad.Esindudablequeenéstacomoentodaotraesferadelavidasocial,avecesinfluyentandecisivamentelasgrandespersonalidadesintelectualesqueenmomentodadopuedenimpulsarde
Eutinhaumasasasbrancas
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unamanerainesperadaeldesarrollodelarteliterario.Peroestonoseoponealarealidadyutilidadde lasreglasantessentadas,puestoque losméritos individualestransmitidosaunaactividadso-cial,dejanipsofactodesercompletamentepersonalesparasersociales:elméritoprincipalserádelimpulsor;peroelaprovechamientoserádelasociedad,yloquequierelaregladelacríticaesque,al juzgardeundesarrollooflorecimientoliterario,setengaencuentaelestadodelasociedad.Alolvidarseestareglafundamental,lacríticafaltafrecuentementeasudeberydejadehacerunodelosbeneficiosaqueestállamada.Cuando,alcontrario,lacríticaseatienealasreglas,esunverda-deroyutilísimoauxiliardelaSociología,puestoquesirveparapatentizarlarelaciónenqueestáneldesarrollodelasociedadyeldecualquiermanifestacióndelavidasocial.”:idem,p.28.
EXCERTOSJORNALÍSTICOS
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ONACIONAL
N.º770de5deJulhode1837
Sr.Redactor–ÉtãopoucointeligíveloquenaSessãodeontem30deJunho
mefizeramdizerosseustaquígrafos,quenãopossodeixardelhepedirofavorde
inserirestacartaminhanoseujornal.
NaSessãoanterioràquela,eutinhasustentado,comorelator,oparecerda
Comissãodiplomática aprovando adespesapedidapeloMinistériodosNegócios
EstrangeirosparaanossalegaçãoemLondres.Persuadido,comoaindahojeestou,
quenãoerademasiadoopedidopararesidênciatãocara,equecumpriasustentar
aliaquelamissãocomdecência,tomeisobremeusombrosocargodesagradávele
impopulardecombaterosargumentosdeeconomiapúblicacomquefuiguerreado,
equeaoMinistérionãoamim,quesoudeputado,incumbiasuportar.
Era isto,comoontemdisse, inverteraordemrepresentativaconstitucional,
eraumsacrifícioqueeunemdevianemqueriacontinuarafazer.
Razõesdemelindreeindependêncianãosómeimpossibilitavamnasessão
deontemdetomarpartenodebatecomorelatordacomissão,masatéexigiamde
mimqueocombatesse,comofizsubstituindoaverbadacomissãoporoutraque
tornavaimpossívelaverificaçãodeumhonrosodestinoqueSuaMajestadehámui-
totemposedignaradar-me,equeeuaindanãoaceitei.
Mas não eram somente razões de melindre: em consciência estou ainda
persuadidoque,assimcomonãopodemosdeixardefazeradespesadeumamis-
sãodesegundaordememLondres,estamostãopertodeMadrid,quealinosbas-
tariaterumadeterceira,quecustamenosdemetade.
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Tal foiomeuproceder,easrazõesdele,queumeoutras foramavaliados
pormeus ilustres colegas;mas que tão desfiguradas aparecem no seu Jornal de
hoje.
Aminhateoriaconstitucional,equenãoreceiovercombatida(comsenso
comum)équenadiscussãodoorçamento,oMinistrodevesustentaroquepede,
porquenãodevepedirsenãooestritoindispensávelnecessário,–eodeputadore-
cusartudooqueoministronãosustentarcomoindispensável.
Nestaverdadeirademanda,oMinistrorepresentaasnecessidadesdoEsta-
do,nósosinteressesdoscontribuintes.Nãoqueministrosedeputadosnãodevam
zelarambasascoisas;masanaturaleprincipaladmissãodeuméesta,adooutro
aquela.SouSr.Redactor,oDeputadopelaTerceira,J.B.deAlmeidaGarrett
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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OENTRE-ACTO
N.º1de17deMaiode1837
__________
OENTRE-ACTOLisboa17deMaio
Semprospectonemprograma,começamoshojeapublicaçãodoEntre-Acto,
jornal inteiramenteconsagradoaos interessesdramáticos,ecomoqualprocura-
mossatisfazer,aumaindicaçãosocialdeprimeiraordem,adefiscalizarasnossas
cenas.
Desde que a imprensa se dignou ocupar-se dos teatros emPortugal, e de
exercersuacensurasobreosnossosespectáculos,ésensívelamelhoraeaperfei-
çoamentoquesetemseguido.Secompararmosoquehádezanoseramascenasde
Lisboacomoquehojesão,éimpossíveldeixardeconhecerestabenéficainfluência.
Aopiniãotemsidomaisrecta;osseusjulgadostêmsidoproferidoscommaisde-
terminação,earmadosdeumasançãoquelhesfaltavaquandonãotinhamórgão.
Etodaviaeraaindaimperfeitoesteestado.Raraelentaeraacensuraexer-
cidapelaimprensa,que,sobretudonestesnossostemposdeagitação,ocupadade
gravesquestõespolíticas,nãopodiasenãoporacasoeligeiramentetratardosin-
teressesdasartes.
Eraprecisoquealguémsedesseexclusivamenteaesteobjecto.Faltava-nos
emLisboaumafolhaque,segundosefazemtodasascapitaisdomundocivilizado,
conversasseamiúdecomopúblicosobreosseusdivertimentos,queosexaminasse,
quemoralizassesobreeles,dessetodasasnotíciasqueparaissoimportasaber,e
fosseenfimmaisummeiodeencherotempo,queàsvezesparecetãolongo–do
Entre-acto.
Eutinhaumasasasbrancas
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À falta de gente, vimos nós oferecer-nos ao público amador e diletante, a
quempornossaimparcialidadeezeloousamosesperarqueseremosaceites.
Étençãonossafazeroseguinte–1.º.Publicarumn.ºdoEntre-actotrêsve-
zesnasemana.2.º.Anunciarosdivertimentosdaquelanoiteemtodososteatros–
eosdanoiteseguinte.3.º.Analisartodasaspeças,dançasequaisqueroutrosdi-
vertimentosqueforemàcena.4.º.Dartodasasnotíciasqueinteressemaosteatros,
assim nacionais como estrangeiras. 5.º. Quando nos sobre espaço, enchê-lo com
variedadeseleganteseagradáveis.
ComeçamoshojecomaanálisedosPuritanos,artigoquenosfoicomunica-
do,equenosparecedignodaatençãodosleitores.
__________
TEATRODES.CARLOS
OsPuritanos
(MúsicadeBellini)DoaltodasmontanhasdaEscócia,envoltoemsuasroupasdenévoa,coroa-
dodasestrelasdanoite,esobraçandoaharpadostemposantigos,desceuogénio
dapoesiaromântica,daverdadeirapoesiaqueestán’alma,queDeuspôsnocora-
çãodohomem,eque,emvezdosacordesmoles,efeminadoscomqueapreguiçosa
liraclássicaembalaossentidosparaqueadormeçamnodeleite,–desfereaqueles
sonsagudos,penetrantesqueacordamoânimodesobressalto,equedizemaoes-
píritomaismortoemortal,comoavozquebradouaoenterradodetrêsdias–Vem,
surgefora!
Oespíritohumanotinhaadormecidoàcantilenadossonetosd’amor,dasin-
termináveisenarcóticasimitaçõesdeVirgílioeOvídio,dasnovelasfrisadaseem-
poadas que faziamas delícias de nossasmamãs; e se alguémacordava, era para
desprezar tudo isso,econdenarpoetaseromancistasaqueos lessemestudanti-
nhosoufreiras.Atéchegavaagenteatervergonhadedizerocontrário.
Masàvozdogénioregeneradordapoesia,desobressaltonoslevantámos:
dentrodepoucosanos todaaEuropa liaos romancesdeWalterScott. Jáa traça
comianaEnciclopédia,eoscominhosandavamnaspolíticasfolhasdeMr.DePradt.
Ocoraçãotinhareagidosobreacabeça.Apoesiaenramouatéoesqueletodapolí-
tica;e começouumaeranovanomundo.Estudou-seohomemnahistóriaenão
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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nasteoriasdosfilósofos.Discutiram-seasmaisgravesquestõesdemoralidadenas
cenasdoteatro,nosquadrosdoromance:enãosefizerammaisdesseslivroster-
ríveisqueparaapagarasfogueirasdosautosdefé,fazemdarbatalhascomoade
Waterloo.Voragensdefogoapagadascomriosdesangue!
Tristemelhoramento!ehorrorosoprogresso!
VivaaPoesiaque,nosreconcilioucomnósmesmos,quenosmostrouque
éramosmelhoresdoquenóscuidávamos,equenossoubedizer,demodoqueo
entendemosecremos:
“Homemnãocreiasnaperfectibilidadequenuncahás-deconseguir,epela
qualtedestróis.Estuda-teemteucoraçãoenahistóriadeteusavós.Embainhaa
espadaemedita.Brigarásdepoissetopediroânimo.”
Eoshomensmeditaram;enãoquiserambrigarmais,senão…senãoquando
osprovocouatirania.Efizeramoshomensmuitobem.
Estarevoluçãodapoesiaéafeiçãomaiscaracterísticadanossaidade;che-
gouatudo,modificoutudo;asuainfluênciaéomnipotente.
Comahistóriaabertadiantedesi,contandoecantando,apoesiatemmuda-
doomundo.EWalterScott,umdeseusprimeirossacerdoteseapóstolos,popula-
rizou o novo culto com rapidez incrível. Zeloso e eloquentemissionário que em
todaaterrasefezouvir.
AsguerrascivisdarepúblicaedeCromwell foram-lhetema inesgotável,e
doqualsaíramsuasmaisbelasemaisoriginaisproduções.Daespantosainfluência
queexerceram,nãopodiamisentar-seasbelas-artes.Jálheobedeciaapinturare-
moçando as consuetudinárias formas gregas e romanas com visível inclinação à
nacionalidade.Jáaesculturaearquitecturaaseguiam!easogivasdeWestminster,
ostorçadosdaBatalhaapareciamnosnovosedifícios,rivalizandocomosacanthos
doPanteãoecomaspalmasdaAcrópole.
Quefariaamúsica,aartegémea,oecomoduladorquevaidobrandoeredo-
brandoosprimitivossonsdadivinavozdapoesia?Oprimidapelaescolaparasita
damoda,carregadadeseusadornosmeretrícios,amúsicasuspiravaporumsal-
vador, bradava por uma alma forte, enérgica e audaz que lhe acudisse, que lhe
abrisseocaminhoparaanatureza,dondeaafastavamsempre.
Eraprecisoumgrandegénio,umdestesrarosespíritosquevivemdopró-
prioentusiasmoqueosqueima,cujaexistênciaécomoadofogo,–luzporquedes-
Eutinhaumasasasbrancas
-63-
trói. Este homem apareceu: foi Bellini, talento extraordinário, mas filho de sua
épocaesintomadela.Comumcoraçãodegiganteemcorpodedonzela,bateuaté
quearrombouopeitoqueoencerrava;–masdesuasvibraçõeshá-deficarmemó-
riaeternanomundo.
OPiratajácorriaaEuroparoubandoosaplausosdetodasasnações–eti-
randoapalmaatodasasglóriasmusicaisantigasemodernas.Amofinava-seain-
veja, e (como é d’uso) ondemais não tinha que dizer, despicava-se em inventar
absurdos–queBelliniatrabiliárioedoentetudotingiadacordesuasnegrasideias;
queeraforteebelasuamúsica,mastodaamesma,semvariedadenemviço–matas
vigorosasmasverdenegrasecheiasd’espinhos–semumaflorqueasmatizasse,sem
umaluzdeestrelarisonhaquenessasdevesasentrasse.
Cônsciodoqueeraepodia,Belliniouviuascríticasdeseusinvejososcomo
asouvemos géniosquedeveras sãograndes.Respondeu-lhes comoelesusam–
mostrandooqueera.
OsPuritanosforamarespostadeBellini.
Abençoadoladrardeinvejososquetalproduziu!
SecundadopelosexpressivosversosdeC.Pepoli,Belliniinvocouogénioda
Poesiamoderna–daantigase lhoqueremchamar,–daverdadeirapoesia,como
sólhechamareieu:eentrando,comWalterScott,nomaisdensoevivodointeres-
sequeoferecemasguerrascivisereligiosasdeInglaterra,escolheuumaacçãoque
persi,pelosactoresqueaconduzem,pelosaltosprincípiosqueamovem,pelocon-
trastedossentimentos,daspaixões,pelavariedadedoscaracteres,pelovivoepal-
pitante interessequedoprincípioao fimsustentacrescendosempre,–erasegu-
ramentearenaprópriaparatallutadorcomoBellini,praçad’armasdignadojusta-
doredotorneio.
Tendoadmiradonosprimeiros teatros líricosdaEuropa, osdeLondres e
Paris,estacomposiçãomaravilhosa,executadaporcantoresdeproverbialsuperio-
ridade,–ingenuamenteconfessaquemassimaquiàtoavailançandonestaslinhas
ossentimentosquelhemoveram,asreflexõesquelheforamnascendo,–ingenua-
menteconfessaquegrandefoiasurpresaquelhecausouverexecutarooutrodia
emS.Carlosestaópera,tãoperfeitamentenoespíritodeseuimortalcriador,que,
semfazercomparaçõesindividuais–asomatotaldosméritosnãoficaadeverna-
daaoquenaquelesgrandesteatrossefezoinvernopassado.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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DamososparabénsaoEmpresário,portãoplenaesatisfatóriareabilitação,
que bem necessária lhe era. Começávamos a desconfiar da sua companhia: com
documentos como este dos Puritanos, executados por este modo, ficamos de fé
viva,ecrentescomobonsmuçulmanos.
AtrocodehouriséquesemorreporMafomas.
Vamosàhistória.Estamosemumcasteloforteeemtodaaatitudedeguer-
ra.Etudosepassanestecastelo,queestápeloParlamento,contraEl-Rei,sustenta-
doporLordWaltoneseuirmão,epelocoronelRicardoForth–famososentusias-
tasdacausaqueentãosesupunhaser,equeatécertopontoera,adaliberdade.
LordWalton,sectárioduroesevero,temumafilhaúnica,abelaeinocente
Elviraquesedeixoumorrerd’amoresporumcavaleirodopartidocontrário.
OPaizelosoeaferradoàsuacausaquercasá-lacomRicardo,pessoanotá-
veledeigualzeloemseupartido.ObomhomemSirJorge,tioindulgente(sãoboas
pessoasgeralmenteecaritativasestes tios!)emuitoqueridodasobrinha,conse-
gueabrandararigidezdo irmãoe fazê-loconsentirnocasamentodelacomLord
Arthur,ocavaleirodesuaescolha.
CavaleiroschamavamaosqueseguiamaspartesdosStuarts–Puritanosaos
que,porideiasdesupostapurezadeprincípios,combatiamcontraele,peloParla-
mentoeporCromwell.
Estamospoisnumcastelopuritano,povoadodePuritanos,eàvoltadosfins
daguerra,quetodaviaduraainda.Masamortecidasaspontasdosódios,comoéde
usoemguerrascivisquemuitoduram,começaarelaxar-sedeseveridade;eé já
possívelaaliançadeduasfamíliasdeopostosprincípios.
OSr.Colleti,napartedocoronelRicardo,éocampeãodoPuritanismo,ova-
lido do exército republicano. Exaltado por seus princípiosmísticos, desesperado
pelapaixãocomqueadoraElvira,estecarácter,postoquesódesenhadoagrandes
traços,reflectidoempoucasmaisenérgicasnotasdemúsica,éperfeito;éumtipo
daquelesódioseinvejasnaturaisqueaindanosânimosdemelhorfé,suscitamas
convulsõesrevolucionárias.
Nãoéestaamaisrecebidanemamaisgeralmentesentida–maséminha
humildeopinião:queassimmesmomalesboçadocomoé, estecarácteréamais
genuínaeoriginalcriaçãodeBellini.–EodoPirata?dirão.OdoPirata,respondo,é
beloeacabado,mastantomaiscomumeusado!
Eutinhaumasasasbrancas
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Lord Gualter (o Sr. Eckerlin), Henriqueta (a Sra. Ripamonti), Bruni (o Sr.
Crossa)personagensmuitosecundárias,sãonamúsica,bemcomoforamnahistó-
ria(enolibretoselheincumbe)depoucaacçãonoDrama.Todaviadesempenham
bemsuamissão;esónotaremosqueaSra.Ripamontiestavamuitoimpropriamen-
tetrajada;ejuraremosanossosDeusesqueapobreHenriquetadeFrançanunca
assimvestiu,anãoserquetrouxessedatorredeVincennesparaWhitehallalgum
fatovelhodasuabisavó–quetantomaisantigoéocostumecomquedaíatrans-
portaramaS.Carlos.
OmesmodefeitonotamosemLordArthur(Sr.Regoli)quemaispareceum
CavaleirodaCortedeHenriqueVIII–doqueojovemfilhodeumcortesãodeCar-
losI.
Ejáquesetocanisto,aconselhamosaoSr.Empresáriomaissériafiscaliza-
çãoecuidadoempontosdecostumes.SirJorgeéoúnicobemvestidodosseusac-
tores:–(OSr.Campagnoli)senãoforaopenteadoeapluma,eraumverdadeiro
Wandik,umperfeitoretratodeumpuritanodistintodotempodeCromwell.Mas,
comodigo,nemessemesmoestáperfeito,porquenuncapuritanosseatreverama
trazeramelenacomprida,distintivoespecialíssimodoscavaleiros.Quemignoraa
alcunha de round-heads, cabeças redondas, tosquiados, com que sempre foram
designadosospartidáriosdeCromwelledarevolução?
Ofatoporémnãodiferiatantoentrepuritanosecavaleiros,comoacabeça.
Mais simples e grave o dos republicanos,mais garrido o dos outros, com
muita fitaemuitasrendaspelosgolpeadosedescosidosdascosturas;maisgaios
decoresuns,maissóbriosoutros;–masotalhequaseomesmo.Éverasnossas
modasdotempod’El-ReiD.JoãoIV.
Todavia o erro, com ser grande, não é dos que ofendemmais os olhos, –
nemqueimpeçadesegozaromuitoquehádeperfeitonamiseenscènedaópera.
Vamosaela–Estamos,comojádisse,emumcastelofortificadoedefendido
pelospuritanos;erompeacenacomobelocorodassentinelas
Allerta,Allerta–L’albaappari.
Allerta,Allerta–Rompeuaaurora.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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com cujos agudos sons guerreiros vêm logo misturar-se os moderados
acordesdaharmoniareligiosa:–éohinomatutinoquesecantadentro,ecujabela
simplicidadevai,comotodaaverdadeiramúsicareligiosa–direitaaocoração.
Apropósito–aconselhoaosnossosmestresdecapela,quesubstituamcom
músicadestaespécieostrechosdoBarbeirodeSevilhaedaSemiramisqueporaí
se tocam e cantam durante a celebração dosmais solenesmistérios do templo.
QuemsenãolembradascélebresmissasdaLapa,nocercodoPorto–queàsaída
dopadreparaoaltartocavaoórgão:largoalfactotumdellacitá!
Seoórgãonão foraa inocentecriaturaqueé,dizíamosquesacrificavaos
seusmelhoresamigosaogostinhodefazerumepigrama.
Terceirocorodeoutrodiferentegénero–(éricadeacordevariedadeapeça
toda)vemjuntar-seaosprimeiros.Sãooshabitantesdocastelofestejandoasbo-
dasdeElvira.–Lindíssimasestasduasprimeirascoplasdacanção:
GarzonchemiraElvira&c.tãolindasetãoviçosascomoasprimeirasflores
da esperança de um amor nascente! Ponho-as aqui, não traduzidas –mas como
elasme fizeram cádentro eco, nas recordações e nas saudades de certa história
queeusei,–euemaisalguém…Eoleitorquelheimportacomisso?Importarátal-
vezaleitora…–Como,seoescrevedorsenãoassinou?–Adeus;hão-deirosversos.
Quem,seumavezpôsosolhos
Naquelafacetãobela,
Nãoviunela–asuaestrela
Rainhadeseuamor?
Emseuslábiosumsorriso,
Éaluzdoparaíso!
Eocorardafacelinda
Édesabrocharderosa
Queamanhãcomsuavinda,
Debruçoun’hásteaespinhosa,
Parainvejadasmaisflores.
Eutinhaumasasasbrancas
-67-
Assimforaelasingela
Aminharosatãobela!
Nemmudasseassimamores,
Comoasoutrasfolhaecores!
N.B.–Háaquiumagrandelacunanom.s.Achamo-nos,semmaistransição,
na2.ªcenadoIacto.
(OEditor.)
__________
Ricardo, afogado de esperanças perdidas, desesperado com o espectáculo
da felicidadealheia,entracomorecitativo:Ordovefuggoiomai!Seguidodabela
ária:
Ah!persempreiotiperdei,
executada – segundo o Sr. Coletti executa. Como devia ser, e como costuma ser
quantofazesteadmirávelcantor,foiaplaudidaaária,esuacaballeta,cujamúsicaé
fielreflexodesuasúltimaspalavras:
Ohcomoatormenta
Nodiadador
Lembraroqueforam
Asglóriasd’amor!
MasaquivemaquartacenacomoriquíssimoduetodeElviraeJorge,cuja
caballeta particularmente mereceu vivíssimo aplauso. A Sra. Tavola, que nesta
óperaseelevouaumaalturaondenemseusmaisentusiásticosadmiradoresespe-
ravamvê-lasubir,logonesteduetonosdeupromessasdoquedepoishaviadefa-
zer.Desdejácumpredizerumacoisa;équeabelaactrizeainsignecantoraanda-
ramsempreapar;quenumaenoutraqualidadeaSra.Tavolasoubepossuir-sedo
verdadeirocarácterdeseudifícilpapel;queentrounoespíritosublimementepoé-
ticodamúsicadomestreBellini;equenasmodulaçõesdesuavoz,enaexpressão
deseusgestos,Elviraérealmenteaquelaingénuaecândidadonzela,emcujocora-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-68-
ção a austeridadedeumaeducação religiosanãodeixoupenetrar amenor ideia
impura–oudemal–paraquemtudorinaventura,tudochoranoazar.Domundo
comoeleé,domundoegoísta,factício,traidoreabsurdo–quesabeapobreElvira?
AssimafezacriadoramúsicadeBellini;assimareverberouperfeitamente
aexecuçãodaSra.Tavola.
Osuspiradoamante,eafortunadoesposoquevaiser,chegaenfim,entreos
aplausosdeumcorodeguerreiros;eentreele,aamante,o tioeopai começao
primorosoquarteto–Ate,ocara,amortallora;quemuitobemdesempenhadofoi.
Aparticularexpressão,todad’alma;comqueElviracanta:–OhmioArturo!– foi
vivamentesentidapelosespectadores.
TudosãoalegriasentreestagentequeacodeareceberArthur–menosem
umapobresenhoradetidaporsuspeita;equelogovemoschamadaaLondrespara
responder(comacabeçaprovavelmente)desuaafeiçãoàcausaReal.Quemserá
estainfelizdama?Poucoimportaaessesindiferentesquenemparaelaolham.Mas
não assimArthur. Adivinha-lhe o coração ao nobre e generoso cavaleiro que ali
estáumailustredesgraça,queháaindaumderradeirosacrifícioafazerporaquela
causaaquejátudosacrificara.Há-defazê-lo,quetemalmaparaisso.
Enquantoasuabelanoivavaivestirasroupasnupciais,Arthurtratadesa-
beronomedaproscrita.Bemlhodiziampressentimentos,éaviúvadeCarlosI.Lá
aesperaemWhitehall omesmocuteloque imolouEl-Rei seuesposo…Épreciso
salvá-la,ejáArthurnãohesita.Mascomo?
Nomeiodestaterrívelansiedade,–alindaesposaqueentra–eumsublime
pensamentoquedespontanaideiadonoivo–odomaisdevotoegenerososacrifí-
cioqueaindafoifeito.Pensamentoheróico,dosquesóapoesiacelebra,equeme-
recem cantores comoBellini para quenuncamais pereçamnamemória dos ho-
mens!Todasasgrandesebelasconcepçõesdaóperaounascemdestaideiaprinci-
pal;ouaelatendem.
Maisoiçamosabelíssimapollacad’Elvira,quejávestidadasvestesnupciais,
coroadaderosas,ecomoalvoetransparentevéud’esposanamão,vem,todaale-
griasejúbilosinocentes,mostrar-seaoamantequeaadmire–quelhedigaaquelas
palavrastãodocesdeouvir:“comoésbela,comoestásbonita.”
Nãosedescreveoentusiasmoqueexcitouamúsicaeaexecuçãodestetre-
cho,queéumdosmaisbelosqueBellinicompôs,eque,eleeaáriado2.ºacto,são
Eutinhaumasasasbrancas
-69-
asduascoisasmaisdifíceisque lhesaíramdapena, contandoparasuaexecução
comtodasasforçasetalentosdeGrisi,hojeaprimeiracantoradaEuropa.Damos
sincerosparabénsàSra.Tavoladesehaversaídoportalmododetãodifícilprova.
Cantoucomtodaaperfeição,correucomextremadaagilidade, jásubindo, jádes-
cendo,aquelasvolatassemitonadastãodifíceisetãorápidas.Otrillonãoédemeio
tom,comoestamosacostumadosaouvir,masdetominteirocomoeledeveser.Em
suma,amigoseinimigos,entendidoseignorantestodosfizeramjustiça,eaplaudi-
ramcomarrebatamento.
E todavianemseduçõesdestaordempuderamdesviarogenerosoArthur
deseugrandepropósito.Elviratinha,porfolgar,postonacabeçadaproscritaRai-
nhaovéunupcial;eenquantoseausentauminstante,Arthuraproveitaaocasião,
envolvemaisnovéuorostodaRainha,esaicomelapelomeiodetodososguardas
esentinelasqueatomaramporElvira,eossupõemidosàigrejacasar-se.Umasó
pessoaselheopõe,odesesperadorival,queovemdesafiaramortalcombate.
Descobre-separaeleasupostanoiva,eRicardocessadepersegui-los,certo
quenaquelafugalheviráaelemelhorardesorte.ArthurdesprezaElviraporHen-
riqueta: cuidou ele, cuidam todosno casteloquando sabemde sua fugida; e não
menoso cuidaadesgraçadaElviraque,depuroamoredesapontamento, enlou-
quece;eportodoorestodesteacto,eporquasetodoosegundo,vaidevaneando
nasmaisbelasharmoniasatéchegaràquelasentidaeriquíssimaária:
Quilavocesuasuave.
Etodaviaomaisbelomovimentodo2.ºactodestapeçaéna4.ªcena,quan-
doSirJorge,conhecendoquesóainfluênciapoderosadeRicardopodesalvarArt-
hur,Arthurquepor livrar aRainhado cutelo revolucionário, foraproscritopelo
Parlamento,–apelaparaossentimentosdeelevaçãoenobrezad’almaquenema
febredos ciúmespode apagarde todo empeitosbemnascidos. Este é o famoso
dueto:
Ilrivalsalvartudei,
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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queosSrs.ColettieCampagnoliaindanãopuderamcantarsemseremobri-
gadosarepeti-lopelopúblicoinsaciáveldeosouvir.DiremostodaviaaoSr.Cam-
pagnoliquefarámuitomelhorsefrasejarmaisoseucantoquandodiz:
Sefrailbujoumfantasmavedrai.
Pedimos-lhequeimiteaquioseucompanheiro,noestilo,–noportamento
davoz,quenãoéimpossível.
RicardocedecomefeitoaosrogosdeJorge;eentãoaproverbialcaballetado
dueto,queexpressandoumsentimento,hojefelizmenteeuropeu,emtodaaEuro-
paserepetecomentusiasmoepaixão.
Somoschegadosaoterceiroacto.Arthur,quevoltouaInglaterra,apesarde
proscrito,equeparaveraquelaquetantoadoraequeseudeveroforçouaaban-
donar,todososperigosarrosta,Arthuraparecena1.ªcenadesteacto(quetodoé
dotenor)começando-acomumdaquelesmagníficoseexpressivosrecitativosque
sóBellinisabiafazer.
Elvira,sempreloucaeaflita,estáagoraemumacasadecampoaopédocas-
telo;eaopédessacasavemosagoraoseuamante.Énoite;acasaestáalumiada,e
pelosvidrosseestápercebendoainfelizdonzelaquepasseiacantandoobeloro-
mance:
Aunafonteafflitoesolo.
ÉacançãodeArthur,queeleouveereconhecelogo,eaquerespondecon-
tinuando-a,porqueElvirasomentecomeçou.
OSr.Regolicantaperfeitamenteesteromancecomaqueleseumétodoaca-
badoquenãotemextraordináriosefeitos–masemquetambémsenãoachafalha.
Terminaoromancecomalindamúsicaelindaletra:
Sempreegualihailuoghiel’ore
L’infelicetrovator;
Solo,ahsoloallorchemuore
Trovaposan’eldolor.
Eutinhaumasasasbrancas
-71-
Sítios,horas,tudoéomesmo
Paraopobretrovador;
Aisóquandochegaamorte,
Selheacalmaaquelador.
Coitadodotrovador!oravãolásertrovadorporcoisanenhuma.Énamorar
emprosa,queémaisseguro–esólido.Quandonão,façamcomoeu,que,sóseme
descobriremaquelalínguadeMr.Jourdain–nemprosanemverso.
Deusnosdêjuízo.Amen.AssimofezeleàpobredaElvira,quesaroucoma
cantiga:Arthurédescoberto,epreso;maslogosalvodajustiçapopularpeloindul-
todoParlamentoqueseurivallheobtivera,equenaquelemomentochega.
Acaba tudo emmuita festa, e nos lindíssimos corosque aindame estão a
zumbirnoouvido,quenãohádar-meosono.–BelosPuritanos,beloteatro!Mas
malditossejameles,quemenãodeixamdormir.–Bonito!sãoquatrohorasdama-
nhã;seiquejánãopregoolho;–masvou-medeitar.–Muitoboasnoites.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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OBIÓGRAFO11deMaiode1839
OBRASDEJ.B.DEALMEIDAGARRETT
18–VOL.COMUMRETRATODOA.
Ediçãonítida,ecompreendendo,alémdasobrasjáimpressas,váriasoutras
inéditas,todasrevistas,correctaseaumentadaspeloAutor.
_____________________
PROSPECTODesejososdeconcorrerparaaglóriaeilustraçãodanossaépoca,empreen-
demosaediçãocompletadasobrasdeumcontemporâneoaquemninguémdispu-
touaindaodistinto lugarqueocupaentreosnossosprimeirosescritores.–Seus
apaixonadosenumerososadmiradores,seusprópriosdetractoresreconhecemno
autordeCamões,deAdozindaedeD.Brancaogéniotranscendenteque,fundando
anossaliteraturasobreanossahistória,eanossapoesiasobreasnossascrenças,
noslibertouassim,nopensamento,dojugolatinoegrego,comoFilintoElísionos
libertara,noestilo,dojugofrancês;–esecolocoudestasorteàtestadeumaescola
verdadeiramentenacionaleindependente;românticanasideiassemosdevaneios
grotescos de Victor Hugo, – clássica na linguagem sem o servilismo académico
d’afectadospuritanos.
AocastoeprofundoescritordoTratadodeEducação,doResumodaHistória
LiteráriadePortugaledoPortugalnaBalançadaEuropamenossepodecontestar
otítulodeerudito,defilósofoedemestredanossabelalíngua.
DesdeseusprimeirosanosqueoA.doRetratodeVénusedoCatãonosdeu
mostrasdeseutalento.–Perseguidopelosseus,obrigadoafugirdapátria,tomou
destaingratidãoavingançadogénio,levantandoàsuaglóriaoimortalmonumen-
todopoetaCamões,composiçãoemqueasdelicadezasdosentimentoeasgalhar-
dicesdopatriotismoparecemapostadasaqualhá-deproduzirmaiornúmerode
belezaspoéticas.– “Camões,oúnicorivaldeTasso,dizumescritor,nossocoevoe
compatriota,achoutambémquemlheerguesseummonumentoque,enobrecendo
aindaafamadograndeautordosLusíadas,serviuaomesmotempodeimortalizar
Eutinhaumasasasbrancas
-73-
ocisnequeousoucantá-lo.”–Seguiu-selogoD.Branca,poemacertamenteomais
original,e,quaisquerquesejamosseusdefeitos,umdosmaisnacionais,quetemos
emnossalíngua.
OResumodaHistóriaLiteráriaéaprimeiratentativadestegéneroemPor-
tuguês:aimparcialidadeeogostopresidiramasisudacríticaqueescreveuaquelas
curtaseconceituosaspáginasqueoA.doPortugalIllustrated(Londres,1828)eo
ForeignQuarterlyReview(1828e1831)citamrepetidasvezescomlouvor.
JoãoMínimoéumainvençãomodestaegraciosadequeoA.seserviupara
nosapresentaradepuradaescolhadesuasmelhorespoesiaslíricastantoclássicas
comoromânticas.
AAdozindaéoantigoeoriginalromancedapenínsula,oumaisexactamente,
dostrovadores,ressuscitadoemtodasuaingenuidade,porémmaisformosoere-
gular.–Traduzindoconsideráveistrechosdestalindacomposição,oForeignQuar-
terlyReviewde1832fazaoA.eàobracondignoselogios.–Maisdeumescritor
dos nossos dias tem ido buscar àmina riquíssima de nossas canções populares
assuntoetomparaseuspoemas.–Mas,semnegar-lhesomérito,nãosepodedei-
xardeconfessarqueaAdozindalhesfranqueouocaminho.
OCatãoreimpressoemLondresem1830éabsolutamenteumaobranova;
tantomaislargoéodesenho,tantomaisverdadeiroocoloridodestegrandequa-
drohistórico!
Nestatragédia,quetãopopulartemsidoemPortugalenoBrasil,aLiberda-
deachaumpoemadignodela,eonossoTeatrooseuregenerador.
EbrevenaextensãomaisimensonapoesiaopoemetoqueintitulouAVitó-
riadaTerceira, noqual celebraaomesmo tempoa terrade seuspais, a sua ilha
favorita,eogloriosofeitod’armasde11deAgostode1829.
Chegadoaovigordaidadefeita,afilosofiaeasciênciasreclamaramdopoe-
taseuquinhãodotempoedesvelos,quenãodeviamsópertencerà literatura.O
TratadodeEducaçãoéfontedeinstruçãoedeciência,emodelodelinguagem.
OPortugalnaBalançadaEuropatratounãosóaquestãoportuguesa,masa
europadanossaépoca,detalmodo,queaseusoutrostítulosliteráriosonossoA.
juntou, comestaobra, odepublicistaprofundo. Senhorde todas as grandezas e
riquezasdalíngua,osmaisáridospontosdapolíticasãoanimadospelaenergiae
vivacidadedoestilo.–Tãovigorosaéasuadialética,quandoargumenta,tãosolene
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-74-
aexposição,quandonarraoudescreve,nestelivrotãonotável,eproblemáticoem
muitoscapítulos,comoerasublimeeenternecidoopoetaquenoschoravaasdes-
graçasdeCamões,quenoscantavaosamoresdeD.Branca;–comoeraengraçado
egalantequandonosfaziarircomasbufoneriasdeFr.Soeiro;–comofoigrandee
altissonante quando nos elevou até à gigantesca virtude de Catão! Direis e com
verdadequeaestenossopoderosoescritortodososestilosobedecem.
OAutodeGilVicente,queaindaooutrodiafezcorrertodaLisboaàRuados
Condes,veiomostrarquenemooradorepatriotaeloquente tinhaquebradonos
debates da tribuna o seu grande engenho poético, nemo diplomático, o homem
d’Estadoprezavamaisashonrariasdascorteseasdistinçõesdospalácios,doque
asuacoroadepoeta,oseutítuloqueridod’homemdeletras.
Dequasetodasestasobras,algumasdasquaisjátiveramsegundaeterceira
edição,muitosmilexemplaressetêmesgotado;d’outrosjánãorestaumsó.Espe-
culadoresbrasileirostêmsubrepticiamentereimpressoalguns.–Econstando-nos,
alémdisto,poramigosdoA.quemuitascomposiçõesinéditasjaziamnasuacartei-
ra, e talvez seviriamaperder, comoduranteo cercodoPortoouvimosquenão
poucasselheextraviaramcomgrandeperdadanossaliteratura;tratámosdeob-
tereobtivemosoconsentimentoeacooperaçãodoA.paraestaediçãodetodasas
suasobrasimpressaseinéditas,quetodasreviueaumentouconsideravelmente,e
cujacorrecçãoseencarregoudesuperintender.–Pornossapartenãopoupamos
cuidadonemdespesasparaafazermosdignadoPúblico,edoAutor.
AediçãoseráfeitanomesmoformatoetipodoProspecto,quelheficaser-
vindodemodeloeamostra.
Formará18volumes;asaber:
CAMÕES,poema(3.ªedição)…………………………………………………………….1vol.
ADOZINDA,romance………………………………………………………………………2vol.
–primeiraparte(3.ªedição)
–segundaparte(inédita)
LICEUDASDAMAS(inéditodoestiloepelaformadascartasaEmíliade
Demoustier–comofimd’aperfeiçoaraeducaçãoliteráriadobelosexo………..1vol.
RESUMODAHISTÓRIALITERÁRIADEPORTUGAL(2.ªedição)………….1vol.
TEATRO,compreendendo……………………………………………………….………..3vol.
–Catão(4.ªedição)
Eutinhaumasasasbrancas
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–GilVicente
–APadeirad’Aljubarrota
–Eoutrosdramasinéditos
JOÃOMÍNIMO…………………………………………………………………………………..2vol.
–primeiraparte(2.ªedição)
–segundaparte(inédito)
DOISANJOSDAMINHAVIDA,reminiscênciasdaemigração,ememóriasdo
cercodoPorto(inédito)………………………………………………………...…………………….1vol.
ORETRATODEVÉNUS(2.ªedição)…………………..………………………………..1vol.
D.BRANCA(2.ªedição)……………………………….…………………………………….1vol.
TRATADODEEDUCAÇÃO…………………………..…………………………………..…2vol.
PORTUGALNABALANÇADAEUROPA(2.ªedição)…………………………….1vol.
ORAÇÕESESCOLHIDAS………………………………………………………….…………2vol.
Opreçodecadavolumeempapelsuperfinoserá,paraosassinantesde,600
reis,pagossomentenoactodereceberoexemplar.
NosprimeirosdiasdeJunhopróximofuturosairáo1.ºvolume;econtinua-
ráasairumvolumetodosostrêsmesespelomenos.
Publicado o 3.º volume não se aceitarãomais assinaturas, e o preço será
aumentado.
Recebem-seassinaturas,emLisboa,emcasadaViúvaBertrandeFilhos,aos
Mártiresn.º45,enadaViúvaHenriques,naruaAugustan.º1.
NoPorto,emcasadeMr.Moré,ruadeS.Antónion.º42.
EmCoimbra,emcasadeAntónioLourençoCoelho.
Lisboa,20deAbrilde1839.
OsEditores.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-76-
OCONSTITUCIONAL
N.º99,de12deMaiode1838
Sr.ReadactordoConstitucional–Peladiscussãoquevejocorrerentreoseu
jornaleoTempo,observoqueomeuparecersobreaformaçãodasegundacâmara
(oucâmararevisora)dasCortes,nãofoientendido,–nemimaginarqueroquefos-
sealteradodepropósito.Fuimuitoinfeliz;porquenasCortespusoúltimoesforço
emserclaro,erevicuidadosamenteestesmeusdiscursosquandosereimprimiram.
Dê-me licençaque resumaomeuvoto empoucas linhasde interpretação
autêntica.
Sóconcebodoismodosdeformarumacâmaraverdadeiramenterevisorae
com as condições do equilíbrio social: ou o hereditário, para que estes juízesdo
campoconstitucionalnãodependamdoReinemdoPovo,ouomistodeeleiçãoe
nomeação,paraquedependamdeambos.
Oprimeiro,disseeuqueeraomaisperfeito,masabsolutamenteimpossível
emPortugal.
O segundo, sustenteiqueeraomaisprópriodenossaspresentes circuns-
tâncias.
Inclinando-meàmodificaçãodestemétodoquedáa iniciativaàCoroaea
decisãoefectivaaoPovo;não impugnei(ebemclaroodisse,eoporquê)aoutra
modificaçãoemqueainiciativaédoPovo,eadecisãofinaleterminantedaCoroa.
Achoaquelamais liberal:queremqueantessejaestoutra.Nãodisputariaeu lon-
gamenteporisso:pesa-mequesecreiaassim;eaexperiênciadecidirá.
Masfrancaelealmentedeclaroque,emmeuentender,opéssimomodode
todoséoque sevenceu.E folgo todaviaque sevencesse,porque jáqueénosso
fadovivernainquietaépocadastransiçõeseexperiências,sejatambémfeitaesta
Eutinhaumasasasbrancas
-77-
experiência e julgada por seus resultados. Demais, era o último cartucho de um
partido:éfortunaqueogaste:ficamostodoscomarmasiguais.
Peço-lheoobséquio, sr.Redactor, de inserir quandopuder, no seu jornal,
estaspoucaspalavras,quenãoexcitouaescreversenãoodesejodefazerretirarda
polémicaomeupobrenome.Hádoisanosqueporinjúriasecalúniassetemmuita
genteincomodadoaexcitar-me,comvisívelperdadeseutempo;porqueomeume
nãosobradosmeuslivrosedeoutrasescriturasmaisagradáveisparamimquea
dapolémica,ecomqueesperosermaisútil.Semeenganar,paciência.
Atéabrigarcomoscampeõesqueporaísaematerreiro,cuidoquechegava
eu.Masjádeiomeucontingenteparaessaslutas(quenãodesprezoaliás);egladi-
adorcansado,peçovéniaedesculpa.Quemedeixem,porquemsão,quenãopro-
voconinguém.
Nestamesmatãodecenteepolidalutaaquehoje(comraraexcepção)oes-
tilo geral dos jornais se vai habituandonão entraria agora, nementro, e só quis
exporclaramenteminhaopiniãoparasereliminadodela.
Soucommuitaconsideração,Sr.Redactor,
Seuconstanteleitor
J.B.deAlmeidaGarrett
Lisboa,9deMaiode1838.
__________________________
N.º169,de10deAgostode1838
(Doc.n.º2)
AcusoarecepçãodacartaqueV.S.ªfezfavordedirigir-meem8docorren-
te(eaquesóhojeminhacansadasaúdemedálugarderesponder)paraqueoin-
formassedoquenasCortessedecidirasobrea justareclamaçãodeV.S.ªemais
proprietáriosdefábricasdeseda,daqualmeencarreguei,ecomtantogostoeem-
penhoprocureiquefosseatendido,comodeviaser.
A falta, que é gravíssima e causadora de graves danos, da publicação das
discussõesdasCortes,eatédesuasprópriasactas,meobrigaarecorreràmemória,
paraoinformarcomodeseja.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-78-
Foipelos finsdeNovembropassadoque apresenteinasCorteso requeri-
mentodequemeencarregaram;etendooradoporele,conseguiquefossemanda-
do à comissão respectiva comurgência.Mas apesardisso edeminhas repetidas
instâncias, apesar de que, já em Fevereiro deste ano, à força de importunidades
obtivessedenovoumavotaçãodoCongressoparaqueonegóciofosseimpreteri-
velmentetratadoemumasessãoextraordinária,–contudosónasúltimassessões,
eporocasiãodadiscussãodaleidemeios,pudefazercomquesetomasseemcon-
sideraçãoaqueleobjecto.–Conseguisuspenderummomentoatorrentedasvota-
çõesemglobo,para reclamarcontraogravamedos fabricantes,quepeloodioso
projectodacomissão,vinhamapagar,aomesmotempo,esobreosmesmosprodu-
tos,duas taxaspesadíssimase incongruentes;asaber: trêsporcentodoproduto
bruto–edezporcentodoprodutolíquido!–Dizimaeredizima.
Destemodo foi, para assimdizer, forçada sobre aquela lei a discussãodo
requerimentodosfabricantes.
Apoiadoporalgunsdosmeusnobrescolegas,egeralmentebeminclinadaa
câmara,acheicontudoamaisviolentaeteimosaoposiçãodapartedacomissãoda
Fazenda,que,por louvávelmasmuitomalentendidozelodoFisco,defendia sua
absurdaproposta,nãoobstanteprovar-se-lhepalpavelmentequemantertaxastão
violentassobreoprodutobrutodeumaindústriaquenãoprosperavaeracontra
ospróprios interessesdoTesouro, eradeceparpelo troncoa árvorepara colher
verdeemaduro, enquantoqueaboaeconomiapolíticamandava regar e adubar
agora,paracolhermais,emelhordepois.
Insistiporqueseregularizasseadécima industrial,queerarazoável,e se
abolisseoimpostobárbarodostrêsporcentoqueeraabsurdo.
Aosargumentosdequeeraantigoaqueletributoetranquilamenteconsen-
tidopelosfabricantes,respondiquenessetemponãohaviaounãosepagava(co-
mohoje)adécimaindustrial;equeosfabricantesgozavamentãodobenefíciode
haverem livresdedireitos todasasmatérias-primasestrangeiras–demodoque
tinhaoGovernoabsolutoprotegidomaisaindústriadoquenós,paranossavergo-
nha!
Nãotiveafortunadeconvencerailustrecomissão;esóafinal,protestando
euqueeraimpossíveltaxarumamesmacoisacomdoisimpostos,equeeraforçoso
optarporum–seveioaresolver(coisaestranha!)queficasseodetrêsporcento,
Eutinhaumasasasbrancas
-79-
e que se isentassem da décima. Custou-me a conformar com esta decisão; mas
sempreeramelhorpagarumtributodoquedois.
No dia seguinte porém, chegando à câmara já depois de aprovada a acta,
soubequesesuscitaraquestãosobreoacertodaresoluçãodavéspera,equeas-
sentaramretractá-la,anulandoostrêsporcento,eestabelecendoadécimasobreo
líquidoprodutodasfábricas.
EisaquitemV.S.ªeseusco-interessadosoquesepassounasCortes.Seal-
gumdiasevieremapublicarosdebatesdaquelaslongassessões,veráquemaisde
vintevezesmecanseiamimeaosmeusouvintescomreiteradasinstâncias,erepi-
sadas demonstrações. Tenho muita satisfação de haver concorrido com minhas
fracasforçasparaovencimentodetãojustacausa.Eseagoranaexecuçãopreten-
demanularobenefíciolegislativo,minhaopiniãocomoJurisconsulto,équepodem
resistiràarbitrariedadefiscal,eomeuvotocomocidadãoéquedevemfazê-lo.
Tenhoahonradesercommuitaestima
DeV.S.ª
Ilm.ºSr.ManoelJoaquimJorge.
Muitoatt.ºven.ºecriado
J.B.d’AlmeidaGarrett.
S.C.30deJunhode1838.
__________________________
N.º272,de13deDezembrode1838
NECROLOGIA
OntemfaleceudeumataquedeapoplexiaoConselheiroFranciscoManoel
TrigosodeAragãoMorato.Emtodoopaís,emtodootempoaperdadeumhomem
tãosábioetãovirtuososeriadelamentar:paranós,hoje,écalamidadepública,é
motivodelutonacional.Vãocaindo,umaauma,aspoucasfolhasmorredourasque
aindamalsetinhamnessaárvoredecrépita, já tão fértilnos frutosdaciência,de
flores de literatura! Pobres de nós! Em poucos anos, se nos perguntarem pelos
nossosescritores,pelosnossossábios–teremosdemostrarasmascavadasfolhas
de um ou dois jornais – e responder: “aí estão, nessas rapsódias mal copiadas
d’outrosscriblerosestrangeiros–nessasregateiricesoriginais(equedecertonão
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-80-
temmodelonemna literaturadacafraria) tudoquantohojesabemos fazerepo-
demosler”.
Indústria–nãoaháhojesemauxíliodasciências–civilizaçãosemletras–
liberdade semambas. –Que importa!Oprogressohá-de caminhar. –Como, com
quepés?
OConselheiroTrigoso,segundofilhodeumacasadistintadaEstremadura,
dedicou-seàsletras.EducadonaseveradisciplinadeseutiooilustreVice-reitorda
UniversidadedeCoimbra,recebeualiograudeDoutoremCânones,ejáconhecido
por suasmemórias literáriaspela curadíssimaediçãodasobrasdeDinis, eraum
dosmaisnotáveismembrosdaAcademiadasCiênciasdeLisboaquando foicha-
madoalernacadeiradedireitoeclesiástico(2.ºanodeDireito)namesmaUniver-
sidadedeCoimbra.
Ométodo,afacilidadeefelicidadedaexpressão,osvastosenãosofisticados
conhecimentosdahistóriapátriaedodireitoespecialdaigrejaPortuguesa,distin-
guiramlogooseumagistérioquetãocurtofoiquantoserálembradoportodosos
alunosdaquelaacademia.
Apenas(em1821)foiconsultadoovotodosPortuguesessobreaescolhade
seusmandatários,oConselheiroTrigosoobteve,entreosprimeirososufrágiopo-
pular.Etodaviaseusconhecidos,enuncatraídos,princípiosnãoeramdosquese
apregoam mais populares. Inteiro e severo e Português dos da têmpera velha,
FranciscoManoel Trigoso não lisonjeou nunca nem no Paço nem na Praça. Não
escondeunemsofisticoununcaassuasopiniõesreligiosas;eteveacoragemdeser
cristãoecatólicoquandoamodalançavaoridículo,eosdesvariospolíticos,oaná-
temasobretodososquenãobradavamcomoincipiente:nonestDeus!
Caluniadodepouco liberal, porquenãoera irreligioso, a contra-revolução
de1823,achoutodaviaonobreTrigosonoseupostoinalterável,semmudarnem
fingir.Ousousercidadão,agoraquetodosqueriamousesuscitavamaservassalos.
NacélebrejuntaparaaformaçãodaCartaprometidaemVilaFranca,–elesó–e
outronãomenosvirtuosonemmenoscaluniadocidadão,–sustentouaobrigação
emqueel-reiestavadedaraCarta,apesarde todasasrazõesdeconveniênciae
necessidadepolíticaqueseopuseram.
Talentosarmadosdestainteireza,seeramjápoucoaceitesàoligarquiatri-
bunícia,comooseriamaodespotismo?Nemeleserviaatalgoverno,nemtalgo-
Eutinhaumasasasbrancas
-81-
vernolheservia.Viveuretiradoecomosseusamigostodoaqueleinterregnoatéà
gloriosa ememorável época de 1826 emque a liberdade renascida pela Carta o
chamouemseuauxílio.MinistrosoboregimedaSenhoraInfantaD.Isabel,edepu-
tadoàsCortestrabalhou,comoentãotrabalharampoucos,emsegurareregularo
preciosodomqueoutorgaraoSr.D.Pedro4.º.
Comotodososhomensdeverdadeiroesinceroamordaliberdade,(queéa
Justiçaarazãoeasabedoria)oSr.Trigosotemiaosexcessosdosqueafazemde-
generarnoabsolutismodosmuitos,nãomenosqueasusurpaçõesdeumsóoude
alguns.–Acasoaseveridadedeseucarácterlevouporvezesoescrúpuloalémdas
raiasdaprudência–eseacanhouportímidoecautelosoemexcessoondeeramis-
terdarmais largasàexpansãodoentusiasmo–deixarantesdelirardoquepere-
cer…Masse,conformenossomododeverepensar,podemosfazeressacensuraao
seuministério,todaelarecaisobreoespíritonãosobreocoraçãodoministropa-
triota.Podiaenganar-se,trairnunca.
Retirado,esofridoporvelhoedoentenocantodesuacasa,peloGovernoda
usurpação,nuncadobrouojoelhoaotirano.Arestauraçãooviuaopédotronoda
Rainhacomamesmaindependência,comamesmaabnegação–algumcensorme-
nosindulgentedirátalvezcomomesmocortejodeciúmeedeinvejacomquenes-
tamalfadada terra foram sempre vistos os homens superiores pela vulgaridade
presumidaeciosaequeentrenóspisacompé igual (comoamortedeHorácio)
pauperumlabornasregnumqueturres.
Um tamborete no conselho de Estado e a vice-presidência na câmara dos
Pares–era faltara todasas conveniênciasedecênciaspúblicasduvidarummo-
mentodeosdaraFranciscoManoelTrigosodeAragãoMorato.Masnenhumadis-
tinçãoportuguesacobriununcaoseupeito,nemohonradonomedeseusPaisse
trocouportítulovãoesemhistória.Honragrandeseosrecusou–honramaiorse,
poresquecido,nãoprecisourecusá-los.
Atéàrevoluçãode1836estevesemprenaoposição:retirou-sedosnegócios
depois;equandochamadooutravezàsCortespelovotopopularnaseleiçõesdeste
ano,jánãosentiaforçasparaaceitaramissão.Nodiaseguinteàrecusa,tinhadei-
xadodeviverumdosderradeirosPortuguesesquetãodepressavãoacabando.–A
Rainhaperdeuneleumhomemde conselhoe firmeza,o Senadoumorador sem
rival,aAcademiaumdosseusúltimosornamentos,aUniversidadeumprotector
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-82-
zeloso,aliberdadeumcampeãomoderadomasfirme,areligiãoumdefensorilus-
tradoesincero.
Escrevem-se estas linhas no primeiro abalo do sentimento e da saudade.
Nãofaltaráquemmelhorfaçaoelogiodeumdosnossosmelhoresemaisdistintos
cidadãos.
Eutinhaumasasasbrancas
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JORNALDOCONSERVATÓRIO
n.º1,8deDezembrode1839
Ousadocometimento,ésemdúvidaoquenoslevaameterombrosàredac-
çãodeumPeriódicoliteráriocomotítulode–JornaldoConservatório!–OCon-
servatório, esse rico vergel, que a ilustração vai como solícitamão cultivando, e
donde já colhepara o seudébil e definhadoPortugal substanciais e perfumados
frutos:–essefrondoso,epomíferoOásis,que,nomeiodossedentosareaisdaig-
norância, promete conforto e deleitosa sombra: – o Conservatório, congresso de
quantoháaídemaisilustrenasbelas-arteseliteratura,eondealgumnomeseagi-
gantacomovolumeimensodeumareputaçãoquaseimensa…–OConservatório,
decujonomenosabroquelamos,láestá!–porventurapara,sefraquejarmos,nos
esmagar com o pendor dessemesmo nome! e por ventura então provocaremos
umapropriedadeignóbil,comoaquelequesopesandoambiciosoumcofredepe-
drariaseoiro,de tantasriquezassucumbe,emorre!–NãoprazaaDeus,que tal
desgraçanoscaibaemsorte;nemamerecemosnós!–Aceitámostãoárduaincum-
bência;–velaremoscomfervornossasarmas,aperceber-nos-emosparaarefrega;
porém,sehouvermosdesucumbir, lealmenteodeclaramos,nãoseráaumaimo-
destaepresunçosavaidade;masaumdesejovivo,eardente,aumanobreambição
de juntarmosnossominguadocabedalaessebancoderiquezas intelectuais,que
tãogenerosamentesepropõedifundirentrenósoperdidocomérciodasletras.–
Pormoedacorrentequiseramreceberestesnossossentimentos,eànossapobre
obscuridade nos foram buscar, para que desde já fossemos os emissores desses
bens,quetantodemistersefazemao,játãoopulento,eagoratãonecessitadoPor-
tugal. Imparciais e solícitos procuraremos ser na sua distribuição; e oxalá que a
nossasintençõespuras,edesinteressadasnãosejanegadoverasvariegadasflores
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-84-
da literaturaorlarem-seem ledo festãoemtornoda frontesombriadapátriado
grandeCamões,danossaamadapátria!
Coubeoutrora,comoàsdeAugusto,eLuísXIV,umacoroa,emqueestavam
fundidasemjustasproporçõesaglóriaeartes,asletraseopoder!Pátriadofeliz
Emanuel!…
–NaqueletempoPedroNunescomamenteesvoaçandopeloscéus,eodedo
apontandoparaooceano,lhemarcavanovirgemdorsoaquelaestrada,queseme-
adadeperigos,aindahaviadeseroalvodastenazessanhasdoAdamastor.–Com
apontada lançaosheróisdeÁsia, eÁfrica alargavam impérios sujeitos: – lusos
HeródotoseTucídides realizaramemsuashistórias tudoquantode incrível,por
subido,egeneroso,tinhamostentadoGregos,eRomanos.–Foinoseiodessaglória,
queadramáticamúsicaportuguesaserecostou;porentreseusfulgoreselasele-
vantara,soberba,majestosa,elibérrima!
Nos sumptuosos festejos, que tiveram lugar pelo casamento da infantaD.
Beatriz,brilhou,comoomelhordeles,umapeçadramática–aprimeiratalvez,que
assombrouasEspanhas;poisqueasdocastelhanoEncinanãopassavamdepasto-
risproduções.–FoiumAutodograndeGilVicente!…–Estepaidonossoteatro,
semmodelosqueseguisse,ouqueporventuralhepudessemserconhecidos,sóde
persiconseguiucativaraplauso,eadmiraçãodoscoevos,evindouros,mostrando
aomundo,queaindasemosgregos,ouromanospoderíamosobterumteatrover-
dadeiramente nacional; teatro de cuja escolha saiu o admirável Lope de Vega; e
que,imitandoaindependência,egenerosoânimodosPortugueses,reagiumaisde
umavezcontraastentativasdeestranhojugo.
Mashaveráaí,quemjulguepretendermosderivardoSéculoXVIaprimeira
ideiadaartedramáticaemPortugal?…Doisséculosantesmourarias,mistérios,e
entremezes faziam o deleite e revelavam a propensão, e gosto dos portugueses
paraaquelegénerodeliteratura:–entretantoessasproduçõestinhamcomapoe-
siadramáticamuiremotaafinidade;eaGilVicentecabeaglóriadeverdadeirocri-
adordonossoteatro:–àsuaprimeiracomédianãonosédadoconceder-lhepri-
mogeniturasobretodasasdaEuropa;masédamaiorjustiça,queaograndeautor
tributemosashomenagens,quetantolhesãodevidasporsuaincontestávelsupe-
rioridadesobreascontemporâneas;easuanotávelinfluênciasobreoteatronaci-
onaleestrangeiro;rebentandodetãoopulentomanancialascaudalosastorrentes
Eutinhaumasasasbrancas
-85-
dos sublimes e característicos Vega, e Calderón; fazendo que por todo omundo
corresseafamadossarausdacortelusitana;doquenasuacarta6.ªnosdeixouSá
deMirandaumclarodocumento.
EfoioilustreSádeMiranda–essemesmoque,tomandoparamodelosde
suascomédiasos latinos, fundoupoucodepoisoteatroclássico!–esseque,mais
ainda do que imitador feliz, conseguiu enobrecer a nossa arte dramática, esmal-
tando-adetalgraça,eaticismo,comoporventuranãopossuíamTerêncios,ePlau-
tos.–Exercitou-setambémnacomédiaocélebreAntónioFerreira;masasuapal-
matriunfal,opadrãodeumabemmerecidaglóriafoiaadmirávelTragédia=Inês
deCastro=asegunda,quemaravilhouaEuropa;ecujolouvorpassouaténósin-
desmentido,eviventeporsobrelongaseesquecidaseras!–ForampoisMirandae
Ferreiraosilustresebeneméritosfundadoresdoteatroclássicoportuguês.
Jádeentãoperanteoteatropuramentenacionalesteseapresentaousado,e
soberboporsuacartadenaturalização,eantiga linhagem:–a lutareviveuferre-
nhaemnossosdias;emuitocumpriria,queumageraçãodaimparcialidadeeluzes,
intervindo, com razoáveis emútuas concessões lhe pusesse termo; para que de
rivalidadetãoinsensatanascesseaíntimafraternizaçãodassubidasprendas,quea
ambososteatrosadereçam!…TodavianoséculoXVIaindaoclássicofoivencido.O
teatro nacional venceu: –mas que vitória; que efémero triunfo!…Ruína e ferros
forambemdepressaapartilhadePortugal;forampartilhadapoesiadramática!E
a despeitodos esforçosde algunsbons literatos – relíquiasdo séculodo grande
Manuel,onossoteatrosofreucastelhanojugo!Osnossosportuguesesescreveram
espanhol;eaindadepoisderestaurados,aindaemtodooséculoXVIIumasópro-
dução=AMUSAENTRETIDA=sóessaproduçãoaparece!–PobrePortugal!…
NosprincípiosdoséculoXVIIIchamouD.JoãoV,aLisboa,aÓperaItaliana;
eentãoaindaoutromonstruosogénerodeliteraturanasceetomacorponanossa
deslustradacena.–Nasóperasportuguesasrepresentadasnosteatrospúblicosdo
Bairro Alto, e Mouraria, invenção, estilo, linguagem, tudo falta; excepto uma vis
comicatãopronunciada,unsademanes tãooriginais,quecativam,equepor isso
mesmotornaramaquelaadopçãomuitomaisdanosa.–AntónioJosédaSilvafoio
autordessasóperas;ejáporelasmuitonomeado,oseuimerecidoetrágicofimlhe
acareiabemlastimosasefataisrecordações!
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-86-
Raiou finalmenteoportentosoministériodoMarquêsdePombal: regene-
rou-sequasecompletamenteapátria;eaonossoteatrofoidadoumforteevivifi-
cante impulsopelaSociedadedaArcádia.Todaviaomal tinha lançadoprofundas
raízes;eosmeiosparaoextirparnãoforamsuficientes.Resumiram-seatraduções
dosclássicosfranceses,eitalianos,nãosurgindoentreosautoresportuguesesum
sóengenhooriginalepotente,aquemfosseconcedidoergueroestandartedare-
generaçãodramática,laureando-ocomsuasobras.
Dest’artevolviadébil e lânguidaaArteDramática!–Essearbusto,queno
abençoadoeaquecidosolodaLusitâniaémeneadopelafragrânciadeseuszéfiros,
influídopelapoesiadaqueleroxocéudoalvorecer,ouporaqueleazuldesafiradas
caladasepalpitantesnoites–essearbustopreciosodefinhaàmínguadepredesti-
nadocultor!–E…piedadeporele!…–borrascaspolíticasabalamomundotodo!–
roblessecularesgemem,caemporterra!–eopobrearbusto,queédele?…
A arte dramática, como a flexível planta, resistiu isolada e humilde; e até
mesmo, passados tempos, umvirente garfo veio encher-nos de animadora espe-
rança:–eraaNovaCastro, tragédiade JoãoBaptistaGomes;porém,comodeal-
quebradoporumextraordinárioeincomportávelesforço,oteatrosefoimostran-
docadavezmaisenfraquecido,evaletudinário.
Umapoderosaantagonistateve,alémdasvicissitudesaquehavemosaludi-
do,o teatronacionalnaópera italiana.– Jávimosdequandodataasua intrusão
nosteatrosdaindependenteLusitânia;econquantonãoprazaaDeus,quenoste-
nhampornegadoresdocosmopolitismodasarteseciências;maltodaviapodemos
sofrer,quepormeiodosforosdecidadãocheguequalquerdelasatiranizarasou-
trastornando-seexclusiva.Foiistooqueaconteceucomaóperaitaliana,queaté
hojefoisubindodepontoemtodososreinados;eclipsandocomseusbrilhantese
donososatributosalusacenaquasenumcompletodesamparo!…
Desviemos a magoada vista de sobre os derradeiros anos de superstição
opaca,eodiosojugo;voltemosnossoolharansiosoparaesseorientedeesperan-
ças,dondefulgurantesdeveriampartirasartes,easletraseacivilização:Oh!que
seumabondadosaprovidêncianosoutorgassedescortiná-lo!…
É a existência do Conservatório um grandemeio para podermos alcançar
essapreciosaedesejadameta. –Fascículodos luminosos raiosda ilustração, ele
por igual adistribui sobre todaaespéciede literatura; e conquanto sobremodo
Eutinhaumasasasbrancas
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tomeapeitooprogressodaArteDramática,nãotempoupado,nempouparádili-
gênciaseesforços,paraquenosonoroPortugalamúsicaseeleveàcategoria,que
lhecompete,entreasnaçõesquedemusicaisblasonam.–Éverdadequehavemos
acoimadoaópera italianade terprejudicadoanossa cenaportuguesa;masnem
poristoseentenda,queamenosprezamos:–longedenóstalideia,denósaquem
amúsicaapaixona,eatémesmoresvalaaentusiastas;denósquetemosnodevido
apreçoessadonosaessênciadaóperaitaliana.–Equemháaítãoempedernido,ou
completamenteesterilizado, cujopeito lhe recusepalpitaçõeseenlevo!–Tendes
ouvidoàbeiradoregato,comoorouxinoldespenhatorrentesdemúsicasuavíssi-
ma!Escutastesalgumavezpelanoitesilenciosaosoberbocantodasvagassobrea
costa,omisteriosoconcertodasestrelas?…Ah!queentão,quandotodaanatureza
éumhino,maltecaberáquereresisentar-tedeseumelodiosoinfluxo.–ÓBeetho-
ven,em tuas inspiradassinfonias, tucompreendesteessehino!E tu,Bellini, rou-
baste ao rouxinol os sentidíssimos queixumes, e às estrelas osmistérios de seu
coro!
EstanossaterradaLusitânia,rival,jáquenãopelasartes,aomenospelana-
turezadessaItália,quetrocaraosferros,comqueagrilhoavaomundo,pordelicio-
soseperfumadosfestõesdeaprimoradasartes,–estanossaterra,apátriadeGrão
Vasco,edoimortalCamõestambémporvezesmódulossonorosos,emterníssimos
acentos,quefizeramnomundodaharmoniainvejadosecos:–assazoostentaram
PortugaiseEvangelistas.
AArteDramática,aquemasoutrasartestêmservido,comoirmãscarinho-
sas;eaquemafilosofianãoduvidaprestarseuapoiosublime;aArteDramáticana
Comédiacastigaentreledosrisososvícios,osdefeitos,osridículosdaSociedade:–
na Tragédia comove-nos com deleite; acostuma nosso peito a sensibilizar-se, e
nossosolhosaderramaremvoluptuosas lágrimassobreosmalesqueaohomem
assoberbam;espelhando-nos,paramodelos, anobrezadesentimentos, amagna-
nimidade, e a virtude! – no drama esclarecem-semuitos eventos obscuros; e ao
realce,einteresse,queprovêmdocontrastedosmodernoscomosantigostempos,
acresceocomemorarmuitaslendas,etradiçõesesquecidas;finalmenteacomédia
etragédiacomseusatributosgraciososesublimesnelesedãofraternalmenteas
mãos.–Edamúsica?Quedireidamúsica?–Nãofoielaescolhidaparalevarnossos
votosperanteoTodo-Poderoso?Não foramnasprimitivaserasmuitospreceitos
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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morais,eatéleiscivisajudadaspelocantoparamaiorincentivoarecordações?É
umaverdadeincontestável;comotambémoquantoelasuavizaeembrandeceaté
osmaisrefractáriospeitos.–Nãodizaengenhosafábula,queOrfeuarrastavaapós
siosfragosospenedos,ecarniceirasferas?…–Serãoportantoamúsica,eDramáti-
caoalvoprincipal,aquenossainvestigaçãotenderásolícita:–adança,amímicae
asdecoraçãojamaiscontudoserãoolvidadas;poisquesãocomoformosasodalis-
cas,ouíntimasevalidascompanheirasdaquelasduasSultanasdoTeatro.
IlustrarepromoverassimaArteDramática comoadamúsica, e todasas
maisarteseletras,ei-lopoisovalioso,ebeneméritoempenhodoConservatório!
E senosnãosobejassemprovas, cujademonstraçãoomitiremos,peloque
sãoatodososolhospatentes;bastariaparaaincredulidade,ouirónicocinismo,o
Programadeestudos,queregulaocursodasEscolasdeDeclamação,deMúsicae
deDança,cujaíntegradamosemseguida.–Nós,aquemoConservatórioescolheu
paraseuórgão,nóstambémenvidaremosnossasforçasparadesempenhar,como
cumpreatãoárduatarefa,essamissãodefilantropia,suavidade,ecivilização.
___________||______________
JoãoBaptistadeAlmeidaGarrett,doConselhodeSuaMajestade,Inspector
GeraldosTeatros&c.Façosaberqueemexecuçãodosartigos21,25,e29Tit.II,III,
e IV doRegimentodeste Conservatório, e ouvidos os Conselhos deDirecçãodas
EscolasdeDeclamação,deMúsicaedeDança,tenhoordenadooseguinteprogra-
madeestudospararegularocursodecadaumadasditasEscolasnopresenteano
lectivodemiloitocentosetrintaenoveamiloitocentosequarenta.
Programa
ESCOLADEDECLAMAÇÃOArtigo I.O cursodaEscoladeDeclamaçãoédivididoem trêsperíodosde
ensinoqueserãodesignadoscomonomedetermos.
Art.II.Osalunosmatriculadosnoprimeirotermo,frequentarãonasuaEsco-
la,asAulasdeRectapronúnciaelinguagem;RudimentosHistóricos;enaEscolade
Dança,aAuladedançapropriamentedita,paraaposiçãoedesplantedocorpoe
desembaraçodosmovimentos.
Eutinhaumasasasbrancas
-89-
Art. III. No segundo termo frequentarão os alunos a Aula de Declamação
propriamente dita, continuando a frequentar a deRudimentosHistóricos na sua
Escola;eseguirãoaomesmotempo,nadeMúsica,adeRudimentosdaquelaarte.
Art.IV.NoterceirotermocontinuarãoosalunosafrequentarnasuaEscola
aAuladeDeclamação,propriamentedita,enadeMúsicaadeCanto.
Art.V.SerãodispensadosdefrequentarasAulasdeMúsicaosalunosdeDe-
clamaçãoqueanteriormenteastenhamfrequentado,equeapresentaremcertidão
deestaremhábeisnaquelasclasses.
Art. VI. Todos os Sábados haverá exercícios semanais a que assistirão os
trêsProfessoresdaEscola(presidindooDirector)e juntososalunosdetodosos
termos, repetirãoumaoumais cenas cómicas ou trágicas, segundo for ordenado
peloDirectordaEscola;fazendocadaumdosProfessores,ouduranteoexercício
ou depois dele, as necessárias correcções e advertências que nos pontos de sua
respectivadisciplinajulgarnecessárias.
Art. VII. No último Sábado de cadamês, se repetirão domesmomodo os
mesmosexercícios,sobreumacenaoucenascomantecipaçãodesignadas.Enofim
doexercício,tiradosàsortetrêsdefendenteseseisarguentes,haverácertameaca-
démicosobreasdisciplinasensinadasnaquelemês;fazendoigualmenteosProfes-
soresasnecessáriascorrecçõeseadvertências.
ESCOLADEMÚSICAArt.VIII.OcursodaEscoladeMúsicaédivididoemquatroperíodosdeen-
sino,outermos.
Art. IX.Osalunosmatriculadosnoprimeiro termo frequentarãoaAulade
Rudimentospreparatórios,esolfejoemtodasassetechaves.
Art.X.Osegundotermodocursopodeserdemúsicainstrumentalouvocal
àescolhadoaluno.
Art.XI.Oterceirotermoéconsagradoaoestudodaharmoniaesuasacessó-
rias.
Art.XII.OquartoaoestudodoContrapontoecomposição.
Art.XIII.TodososSábadososalunosdasdiversasclassesetermosquepara
issoestiveremsuficientementeadiantados,sereunirãoemexercíciosemanal,sob
adirecçãodetodososProfessores,presidindooDirectordaEscola,sendoobjecto
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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deexercícioapeçaoupeçasqueomesmoDirectordesignar;fazendoosrespecti-
vosProfessoresascorrecçõeseadvertênciasquejulgaremnecessárias.
Art.XIV.NoúltimoSábadodecadamêshaverá,pelomesmomodo,omesmo
exercício sobre a peça, ou peças, que anteriormente for designada; e, durante o
exercícioouno fimdele,osalunosserãomaisestritamenteexaminadossobreos
princípioseregrasdoquepraticaram.
Art.XV.OsalunosdaclassedeCantodaEscoladeMúsicaquesedestinarem
aoteatroserãoobrigadosafrequentarehabilitar-senoprimeiroesegundotermo
daEscoladeDeclamação.
Eaosqueonão fizeremsenãopassará títulopara sepoderemescriturar
emqualquerteatrolírico,comoalunosdoConservatório.
ESCOLADEDANÇAArt.XVI.OcursodaEscoladeDançaeMímicaédivididoemtrêsperíodos
outermos.
Art.XVII.Noprimeiro termo todososalunosestudampromiscuamenteos
rudimentosdaarte,efazemosexercíciosgeraisqueoDirectorordenar.
Art.XVIII.NosegundotermosedividirãoosquesededicamàArteMímica
para frequentaremas liçõesdaquelaAula;eosquesededicamàDançapropria-
menteditacontinuarãoaexercitar-senelapelomodoenapartequeoDirectorda
Escoladeterminar.EstesúltimosporémaprenderãonaAuladeMímicaaquelapar-
tedasliçõesqueoDirectordaEscolajulgarconveniente,eàquaisdeveráassistir.
Art.XIX.Noterceirotermotornarãoareunir-seasduasclassesdeMímicos,
edançantesparaestudaremasregrasdacoreografiaecomposição,frequentando
aomesmotempooprimeirotermodaEscoladeMúsica,emcujasdisciplinaspro-
varão por certidão que se acham habilitados para se lhes haver de passar carta
comoacimasediz(art.XV)dosalunosdaEscoladeMúsica.
Art.XX.TodososSábadososProfessoresdaEscolapresidindooDirector,
reunirãoosalunosdasdiferentesclassesetermos,queparaissoseacharemsufici-
entementeadiantados,ehaveráexercíciosemanalemcomumsobreumacenaou
cenasmímicas,passooupassosdebailequeoDirectordesignar, fazendoosres-
pectivosProfessoresascorrecçõeseadvertênciasqueforemnecessárias.
Eutinhaumasasasbrancas
-91-
Art.XXI.Noúltimosábadodecadamês,oexercícioseráfeitosobrepontos
dados com antecipação; e os alunos serãomais estritamente perguntados pelos
princípioseregrasdoquepraticaram.
REGRASGERAISPARATODASASESCOLASArt. XXII. Nenhum aluno poderá ser admitido amatricular-se no segundo
termodequalquerEscolasemapresentarcertidãodeseacharhabilitadonopri-
meiro;eassimdosegundoparaoterceiro;edomesmomodoparaosseguintes.
Art.XXIII.NomêsdeSetembroseabriráaprimeiramatrícula,econtinuará
abertaduranteseissemanas;contadasdoprimeirodiaemqueseabrir.
Art.XXIV.NoprimeirodiadepoisdasOitavasdaPáscoaseabriráasegunda
matrículaqueestaráabertaduranteseissemanas.
Art.XXV.Foradestasduasépocassenãofarãomatrículasdenovosalunos
nemtãopoucodosquepassamdeumtermoparaoutro,salvoalgumcasoextraor-
dináriodedoençaoudeoutrograveimpedimentoprovado,emquepoderádar-se
dispensa;ebemassimsedaráparaaadmissãodealgumtalentonãovulgarquese
julguemerecê-la.
Este seráafixadonosGeraisdasEscolasdoConservatórioe remetidopor
cópiaautênticaaosDirectoresdasEscolasqueofarãoregistarecumprirtãointei-
ramente comonele se contém.DadoemLisboa, e InspecçãoGeraldosTeatros e
EspectáculosNacionaisedoConservatório,aosdoisdiasdomêsdeOutubrodemil
oitocentosetrintaenoveanos=JoãoBaptistadeAlmeidaGarrett=OSecretário
RodrigoJosédeLimaFelner.
____________________||____________________
CONSERVATÓRIOGERALDAARTE
DRAMÁTICA
Sessãodo1.ºdoCorrenteReunindoojúriliterário,econcluídooexpediente,oSr.JoséAugustoLeal,
servindodeSecretário,leuoparecerdaComissãoespecialencarregadadoexame
doDramaemumacto,edoisquadros,ODoidoporforça.Acomissãodeclaravanão
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-92-
ojulgarnascircunstânciasdemereceraaprovaçãodoConservatório,epassaràs
provaspúblicascomofundamentodeque,semsedistinguirpelaoriginalidadedo
enredo, eramerecedordegrave censuraquantoaoestilo, enãomenospeloque
respeitaàlinguagem.Acomissãolouvavacontudooengenhodoautor,quesoube
acharalgumas situaçõesdeassazmerecimentodramático, eque semdúvidade-
vemserdeefeitosobreacena.
OSr. InácioPizarrodeMoraesSarmento,membro,masnãorelatordaco-
missão,tomandoapalavra,abundounasideiasdoparecer,desenvolvendo-asmais
largamente, e concluiu, reservando-sedefenderomesmoparecerno casode ser
combatido,poisquenãoseachavapresentenenhumdosoutrosdoismembrosda
respectivacomissão.
OSr.D.JosédeLacerdaconformou-seemgeralcomoparecerdacomissão,
quetodaviataxoudediminuto,eporextremosevero.Observouquesupostooesti-
lododramadesselugaràcensura,contudoquenãosepodiadizerabsolutamente
impróprio,porqueemgeralestavabemacomodadoaobaixocómico,géneroaque
pertenciaodramadequesetratava.Acrescentouquealinguagem,apesardenão
ser aprimorada, não deixava de ser corrente, e criticou algumas expressões por
seremdemasiadobaixas.–Notouqueoenredoeratrivial,eoscaracterescomuns.
Concluiuqueachavamerecimentonoautor,equenãoduvidariaaprovarodrama
paraserrepresentado,masnãonumteatronormal,nemcomdireitoaprémio.
OSr.PizarroreflectiuqueaopiniãodoSr.Lacerdaseconformava inteira-
mentecomadacomissão,equeporissonãotinhaaapresentarnovasconsidera-
ções.
Postoavotosoparecerdacomissãofoiaprovado.
Entrouemdiscussãooparecerdacomissão,queexaminaraacomédiaori-
ginalportuguesaem3actos,OCamõesdoRossio,depoisdehaversidolidopeloSr.
Secretáriointerino.Acomissãoliberalizandograndesgabosaodramaoaprovava
parapassar imediatamente àsprovaspúblicas. Contudoa comissão censuroual-
gunscaracteres,comomenosperfeitosdoquepodiamserapresentados,–oestilo
comoassazdifuso–ecomodefeituosoopensamentomoral,pornãoapareceras-
sazcastigadoovício.
OSr.Lacerda,pedindoapalavra,oroucomalgumaextensão,edeclarando
queaprovavaaconclusãodoparecerdacomissão,acrescentouquenãopodiacon-
Eutinhaumasasasbrancas
-93-
cordarcomgrandepartedascensurasespeciais.Entrouentãonoexamedasdife-
rentesarguiçõesfeitasaodrama,eprocuroumostrarquenãoeramsuficientemen-
tefundadas.
OSr.AugustoFredericodeCastilho,relatordacomissão,respondeuaoSr.
Lacerda, sustentando o parecer da Comissão em parte dos seus fundamentos, e
declarandoquenãoentravaemdisputaacercadealgumasespecialidades,porser
matériadegosto,oquelevariamuitolongeodebate,semcontudoinfluirnovalor
absolutododrama,noqualtodosconcordavam.
Nãohavendomaisquempedisseapalavra,postoavotosoparecerdaCo-
missão,aprovou-sequeaComédia–CamõesdoRossiopassasseimediatamenteàs
provaspúblicas.
______________||_________________
LITERATURADRAMÁTICASea literaturaservindo-sedaexpressãodeShakespeareéoespelhoonde
vem reproduzir-se a imagem dos tempos, reflectida com todas as suas variadas
formas,
Themirrorandfashionofthetimes,
é commais razãonascomposiçõesdramáticasdeumpovoquese lhede-
vemoscostumeseusosestudar,eporelesconhecerasopiniõesdessepovonas
diversasépocas.–Aoautor,queàcenadedicouseus lavoresevigíliascoubepor
certoexercerindividualinfluêncianasideiasnacionais;levaram-noseustalentosa
coadjuvaressaespéciedeeducaçãopúblicaqueàsmassasédadoadquirirnore-
cintodeumteatro,comonagaleriadeumatribunapopular,ouemtornodeum
púlpitosagrado;–nãoselimitacontudosuamissãoainstruir,comotambémade-
leitar: –aceitandopor juízesos seus coevos, constrangido sevêa regrar–pelos
hábitosemvoga–oseuprópriogosto,e,nãoraro,adar-lheslisonjaaosabusos,ou
condescendênciaaoscaprichos.–Retratosquedesenha;diálogosquetrava,sópo-
demelescolheraplauso,secomtalarte foremconcertados,queosespectadores
cuidemreconheceremsiprópriosasfisionomias,oscaracteres,eosdiscursosde
cadaumadaspersonagens.Podebemdizer-secúmplicecadaépocadosdesviosdo
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-94-
seu autor favorito, em razão de parte que teve aquela na composição das peças
dramáticas.Apreciandoasinfluênciasrecíprocasdoteatrosobreopovo,edopovo
sobreoteatro,équesepoderiacomporahistória,porventuraamaisacabada,dos
costumesdasdiferentesclassesdasociedade;porquetodasoteatroconvidaaseus
prazeres, e nenhumadeixade levar-lhe em tributo suas virtudes epaixões, seus
vícios,eridículos,seuportesenhorilouapoucado,eaté,paraquesejacompletaa
ilusão,asuaváriamaneiradetrajar.
EmEspanha,anãoseresse famosoromanceondeospriscossentimentos
decavalariasão(emmal!)tãoescarnecidoscomoastresloucadasimaginaçõesna-
cionais, não será Lope de Vega, Calderón, e outros poetas dramáticos, seus con-
temporâneosesucessores,quemnosreproduztodaahistóriapopulardaPenínsu-
la?Acasonãoserãoelesosmaisapropriadosexemplaresparacomamaiorsegu-
rançainvestigarmosessemistodecegadevoçãoepoéticoentusiasmo,osadema-
nesorgulhososeaburlescafamiliaridade,todososcontrastesenfimqueperfazem
o carácter espanhol? –Quando os críticos deMadrid, querendo reivindicar para
umdosseuscompatriotasareputaçãoquegranjearaGilBrazdeSantilhanaexauri-
ramtodososmeiosbibliográficossemquepudessemacharooriginaldondeaque-
leromanceforatraduzido,tiveramainsensatezdenãobuscar-lheoselementosda
suaverdadeiraorigem,istoé,nasmuitaspeçasdeintriga,ouComédiasdecapae
espadaqueLeSagesabiapalavraporpalavra.
QuemignoraquenaInglaterra,ondeograndeMarlboroughcitavanopar-
lamento as crónicas de Shakespeare como a única autoridade histórica para ele
conhecida,quemignoratersidooteatroaminafecundíssimaque,deigualcomas
tradiçõesebaladas, forneceaWalterScottas tintasparaessesquadrosvivosdo
passadoquetantoseadmiramemsuasnovelas?Aospoetasdramáticosemgeral
deveeleaverdadedoseudiálogo,e, semfalardoqueScottsoubeaproveitarde
Shakespeare,aquemtantasvezesenfeitouesouberemoçar,oseuDavidGallatey
emWaverley, e seus graciosos sãoos clownsdas antigaspeças; a fisionomiados
seus estalajadeiros é amesma que a dos deBen-Jonson; o Alasco deKenilworth
assaztomoudoAlquimistadomesmopoeta;–osobrinhogastadordoCondestável
deChesteréoWellborndeMassingeremoNovomododepagarasantigasdívidas;
odissolutoCavaleirodeWoodstockfalacomos libertinosdeDryden;eoscostu-
mestãocheiosdeoriginalidadedosantuáriodeWhitefryars,ondeNigelbuscare-
Eutinhaumasasasbrancas
-95-
fúgio,sãodesenhadosdeumaComédiadeShadwell intituladaoSquiredoAlsace,
ondecomoutrosnomes,sereconhecemasmesmaspersonagens.
NaAlemanha, ondeodramaverdadeiramenteNacionalnão chegou senão
maistarde,podeachar-seumasemelhanteanalogia.
_____________
N.B.Sobreoutrosartigospareceuàredacçãodarapreferênciaaosseguin-
tes;porque,tendodefalarquasesempredemúsica,edançalheprimeiroalardeas-
setítulos,desenrolassepergaminhos;eapardobeloefagueiro,ostentasseonobre
emajestosodeumaorigemtãoantiga,comoomundo.AcercadaArteDramática
noquerespeitaaPortugal,jáalgumacoisadissemosnoprimeiroartigo.
__________||__________
DançaEmpenhodeociosidade,eporventuradeinsensatez,seriaodaquelequese
desseainvestigarcomoantiquárioaorigemdaDANÇA;–quemtalcoisaintentasse
depersiconfessariaoutrasupor-lhe,quenãoaquelavastaorigemdondeasgran-
desmoçõesdaalmadimanam–apanágiodaspaixões. –Naverdadequemsofre
umasúbitaalegria,nãosónorostolheressumbralogo,quetambémaexprimepor
meiodevivosgestosemovimentos,emtudosemelhantesaosquenadançaseexe-
cutam;–comose,criadosparaadoresofrimento,houvesseemnósumaforçare-
pulsivaquenosobrigasseaexpeliressejúbilo,sentimentoestranhoànaturezado
homem!–Eseessasinsólitasalegriaspormaisdoqueumsãopartilhadas,entãoé
quedando-sequasemaquinalmenteasmãos,etravando-sedosbraços,ojubiloso
bandoprorrompeemfolguedos,esemsabercomo,formaingénuaschoreias.
Jáosmaisantigospovostinhamsolenesdanças,cujocaráctersemodelava
pelodaspersonagens,eeventosquerepresentavam.Aindanasmaisbárbarasas
deparara;eeraocultodadivindadeasuaprincipalaplicação.
ForamGregososqueintroduziramadançanatragédiaenacomédia,sem
quetodavialhedessemrelaçãoíntimacomaacçãoprincipal,anteslheseracomo
deestranhoornamento.–NãotardaramosRomanosemseguiresteexemplo,mas
soboreinadodeAugustodoishomensextraordináriosapareceramemRoma,cri-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-96-
adoresdeumnovogénero,queaomaisaltograudeperfeiçãofizeramsubir–eram
Pílades,eBatilo.–Oprimeiro,naturaldaCilícia,encarregou-sederepresentarpor
meiodadançaasacçõesfortesepatéticas,enquantoqueosegundo,filhodeAle-
xandria, reservoupara si a representaçãodas jucundas, alegres, e lascivas. –Os
nomesdePíladeseBatiloadejaramportodososouvidos;esoaramportodosos
pórticosdeRoma;eosprópriosbárbarososescutavamabsortos,….eosAntistes
doPaganismofaziamlibaçõesaonovogrupodivino–Terpsicoredandoamãodi-
reitaaMelpomeneeaesquerdaaTália!–Masveioparaelesamorteenãoveio
vidaaquemossubstituísse!…
Adança,bemcomotodasasartes, longotractopermaneceusubmersanos
séculosdebarbárie,esónoséculoXVseviuressurgirnaItália.
__________||__________
MúsicaDerivaramamaiorpartedosautoresapalavraMúsicadogregomusaatri-
buindoàsMusasainvençãodestaarte.DeumnomeegípcioafezdescenderDio-
doropresumindosernoEgiptoqueamúsicaressuscitoudepoisdodilúvio,edela
haveremdadoasprimeiras liçõesossonoroscanaviais,que,meneadosporbrisa
harmoniosa,guarnecemasorlasdoNilo.–Quantoanós,semquerermosextenuar
osmeios inventivosdasnovedonzelas,erespeitandocomodevemosaverdeor-
questraqueacompanhaosaudosocantodaságuasegiptanas,nãopodemosdeixar
de tecer queixumes pela parcimónia de tão apoucados conceitos, quemais para
menoscabodetãoprecioso,esobretodosantigoinvento,queparaseurealcepare-
cemajeitados.Posporaorigemdamúsicaàcriaçãodohomeméabsurdoincom-
portável;fazê-lacoevadoprimeirofiatéheresiaqueaoCéubrada;poisquesem-
prenoCéuhouvemúsicas,edesdetodoosempreexistiuumCéu,eanjos,ecânti-
cos,emúsicas.–Masessasraiasdoinfinitonãoasalcançamastradiçõesdosho-
mens, e se damúsica houvéssemos de historiar, teríamos de recorrer aos docu-
mentosescritos,ediríamosporventura,quejánotempodeLabãoeradeusofeste-
jarosestrangeiroscomhinosderegozijoecomamúsicadosinstrumentos;recor-
daríamososcânticosdeMoisés,enãopoderíamosesquecerosbrandosprelúdios
daharpadeDavid.Masparaquê:seamúsicaédetodosostempos,comodetodos
ospovos, aindaosmais rudes, e agrestes? –Vedeo venerandoOssian, soltas ao
Eutinhaumasasasbrancas
-97-
vento as cãs, como se aprazmisturando os sonsmelancólicos do seu alcide aos
gemidos dos heróis que lhe adejamnas pavorosas nuvens, o contemple oÁrabe
inocenteescutandoembasbacadoosnobresPoemasdeAutorquelhecantaopai
datribo!…
APitágoras se atribuemasprimeiras regras fundamentaisdamúsica, por
eledeterminadascomextremasagacidade.Havendonotadoqueosmartelosdeum
ferreiroproduziamnabigornasonsdiferentes,achouqueestesharmonizavamnos
intervalosde4.ª,5.ªe8.ªoqueatribuiuaoseudiversopeso,eoresultadolhecon-
firmouasuposição.Cordasdeiguaiscomprimentosforamporeledistendidascom
pesos namesmaproporção que os de cada umdosmartelos e deles resultaram
sonsnosmesmosintervalos.DesteprincípiopartiuPitágorasnainvençãodoMo-
nocórdio,instrumentodeumasócorda,eadaptadoadeterminarfacilmentearela-
çãodossons.
FoidosGregosqueosRomanosreceberamamúsica;e,seosEtruscosjáes-
tavamdepossedestaarteantesdafundaçãodeRoma,certoqueemgrandeatraso
elaseachava.AtéaotempodeEvandroquasequesóascharamelasdospastores
eramconhecidasna Itália,eaindanos temposseguinteseraamúsica tãopouco,
queVitrúvioseviuobrigadoaadoptarparaelatodaanomenclaturagrega.
AosFlamengossedevemosprogressosmaisimportantesdamúsicadesde
oséculoXIIatéaofimdoXVIemqueasguerraslhevieramoporgraveresistência.
__________________
CRÓNICATEATRALOsnossosteatrosnacionaleitaliano,continuamaentreteropúblicodaCa-
pital:–onegociante,oartista,o fidalgo,ohomemsérioeoperalta,animadosde
ummesmosentimento,deum igualgosto,concorremnestasnoitesde Invernoa
essesdonosose faladosclimas, sempreanimadosdeumcalorsuave,deuma luz
brilhante, eondeoraninfas traçamchoreias, edescantamamores, ora, comoem
levesonho,sevêemirpassandocasosestranhos,terríveis,alegres,trágicos,joco-
sos;e,pararequintaroprazerdoespectador,aindaoscamarotes;aindaessesafor-
tunadosnichosdasmaisbelasSantas!…
NoTeatroNormalvoltaramhápouco,àcenaOsDoisRenegados,econquan-
tofossegrandeoreceiodequeafaltadoexcelenteActor,queumamorteprematu-
raveioroubar-nos,senãosentissenaquelaóptimaprodução, todaviaostalentos
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-98-
doSr.Vitorino remediaramomal comremédiomuitomais eficazdoqueerade
esperaresepodedizerqueobrouimpossíveis,poisqueopapeldeLopodaSilva
nãofoi,nempodiaserfeito,paraumcaráctercomoodoSr.Vitorino.–Nemopa-
peldeRichelieunadelicadíssimacomédia–MademoiselledeBelle-Isle–estárigo-
rosamente preenchido,mas, em atenção ao pessoal do teatro, vê-se claramente,
queninguémmelhoropoderiadesempenhar;eaverdadeé,quemesmocomtoda
a generalidade, essaparte ébemdesempenhada, apesarda corpulênciadoactor
quepareceriadificultar-lheavivezademovimentos,egraçademeneioseesgares,
própriosda flordosCortesãosdeLuísXV.ASra. JoanaCarlota soubenestapeça
compreender bem a delicada insolência, estudada coqueteria, e cortêsmaneiras
queconstituemocarácterdeMadamedePrie,dandomostrasdeque,paramaisdo
queseesperava,éoseumerecimento.–Aingénuavirgem,obotãoderosadaBre-
tanha,amuijovemMademoiselledeBelle-Isle,érepresentadaaípelaSra.Talassi,
actrizdesubidomérito,eaque,pordesgraça,seencarregoudepapéis,quemuitas
vezesestãoemcontradiçãomanifestacomosseusmeios;–taléodeMademoiselle
deBelle-Isle,comojáoutroraofoiodaMadrinha;atalentosaactrizfazoquepode,
echegaatéainteressarvivamenteemqualquerdosdoiscasos;mas,ómeuDeus!
que inverosimilhança!… O Sr. Epifâniomostra-se qual deve; amante apaixonado
comalgumtantodesombrio,ecavalheirogeneroso;todososoutrosvãobem,eo
Sr.VaneznopapeldeDuqued’Aumonddesenvolvebastantegraça.
OsDezasseisanosouosIncendiáriostiveramaceitação,eospapéis foram
bemdistribuídos;estapeçaemquesenotamgravíssimosdefeitos,começandolo-
gopelotítulo–OsIncendiários–quandonenhumdosprotagonistaspertenceaes-
sa infesta sociedade;estapeça, comassuascenasprolixas, equeseriamporex-
tremofastidiosassenãofossemtãobemdesempenhadas;estapeça,comreconhe-
cimentos logonoprimeiroacto,ecomoseupoucoesmerodeestilo,temcontudo
partes que lhemovem simpatias, e não é amenor inclinar o coração às paixões
brandasesuaves,mandandoantesaosolhosquechorem,doqueaoscabelosque
seericem,aosmembrosqueestremeçam;vimosderramarsuaveslágrimas,eesse
vernosfezperdoaraodramaosseusdefeitos,quealgumtantojáeramcompensa-
doscomobomdosdoisúltimosactos;odesfechosobretudoéexcelente,rápido,
inesperado, e demuito efeito. – Foi ultimamente à cenaumdrama intituladoM.
Eutinhaumasasasbrancas
-99-
Morin. O público lhe fez justiçamostrando-se-lhe avesso: com efeito seria difícil
encontrar-lheumasócoisaboa.
Teófilo,Mr.Cagnard,ManoelMendes,oEnredador,osDoidos,eoEnsaiode
umaTragédia,eisasfarsasquenestesúltimostempostêmocupadoonossoteatro.
OSr.Sargedaséumóptimogracioso,senão,évê-lonoTeófilo;estafarsatodavia,
movendomuitooriso,vaiprovocá-loridicularizandocoisasbemsériaserespeitá-
veis:éengenhoso,masaideiaéimoral,oumelhor,irreligiosa,nemaindaoAlcorão
quiséramosverachincalhado,quantomaisaBíblia!–Outrotantonãopodedizer-
sedeMr.Cagnard,cujafinacríticaauxiliaumaficçãoenlaçadacommuitoespírito.
–OEnredadoréapenas tolerável,nãoo sendomuitoa sórdidaembriaguez com
que,muito ao natural, afecta o Sr. Teodorico: se os Espartanos expunham, para
escarmento,aosolhosdosseuseducandosumescravoembriagado;nós,nemes-
tamos na Esparta, nem os espectadores são educandos, nem deve supor-se que
receiemcairemtãohediondovício:–dequeservepoisumtãoasquerosoexem-
plo?Deexcitaroriso?–Omeioéextremamentegrosseiro.Umacoisatemestafar-
sa,quedesejaríamosemtodas,–amúsica.OSr.Lisboacantacommuitochistea
suaarieta;emuitoéparanotarqueasSras. JoanaCarlota,eEmíliapermaneçam
caladasnocorofinalquandoocantoéparatodossemexcepção.DosDoidoseMa-
noelMendes todos sabem tanto, queocioso seria falardeles. –OEnsaiodeuma
Tragédiaéumamuitoordinária farsa; talvezdasmais inferioresqueà cena têm
subido:–nãolheagoiramoslargavida.
Noteatroitaliano,acoisaquemaistemmerecidoasatençõeséanovadan-
ça–OsPortuguesesemTânger.Aindamaisumavezamagnificênciasetemosten-
tadonaqueleteatro:luxodevestuários,riquezadedecorações,profusãodenovas
emuicustosascenas.Sementrarmosnasuaanáliseoqueexcederiaoslimitesde
umacrónicaviageira,contento-meporora,commuitobrevesreflexões.Foigeral-
mentebemdesempenhada,distinguindo-semuitooSr.Molinari, aoqual todavia
nãoqueríamos tornaraverpraticara felonia (imprópriadeumcavaleiroportu-
guês)deservir-sedoestandartequetemnamãoesquerda,paramatartraiçoeira-
menteo seuadversário,quecomele sebateem leal combateàespada; também
notaremosdepassagem,quenuncaosportuguesesusarambandeiraazulouverde,
como ali se representa. Toda esta dança estámuito bemensaiada, e os bailados
produzemomelhorefeito,nãoesquecendoadançadosnegros,eo lindoduono
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-100-
gostoárabe(ouespanhol)executadopelasSras.MorenoeSoler;amúsicaéapro-
priadaaoassuntosemcontudoserdetantaforçacomoadeNabucodonosor.
DeRobertodoDiaboteremosocasiãodefalar;edeRicardoeZuraidanada
diremospoisqueestapeçavaiapassar;eneméjácedooseupassamento!Seja-lhe
leveapateadadopúblicoaquemnãoagrada,ecomrazão,esseapontoadodereta-
lhosdetodasasóperasdeRossini.
___________________
AEXPRESSÃO,paraquesejadramática,devesersimples,pitoresca,ecor-
recta.Oestilododramanãosofrecircunlocuções,nemcansadosrodeios,nempe-
ríodos científicos. Nele se não deve sentir o trabalho da pena. Cumpre que seja
verdadeirocomoaspersonagens,lógicocomoaacção,rápidocomooenredo.
___________________
Aquele que buscamuito as palavras; que faz trocadilhos de palavras, que
limaafrase,queróiafrase,essenãoépróprioparaodiálogo.
___________________
Apenatratadepolir,eacabaporenervar.
___________________
QuasetodososMestresdaCena;essesquesouberamdesenharcostumese
mostrar-nosohomem,possuíramoqueaindahojesechamaumestiloincorrecto.
Eporquê?–Porqueodramavivede interrupções,desigualdades, arrojos,
ardilezas;porqueprofundamenteabsortospelaideia,lhesfoisecundáriaaforma.
___________________
ANÚNCIOSTEATRONORMAL–Hoje8docorrente–OsDoisRenegados–eafarsa–O
EnsaiodeumaTragédia.
SÁBADO14–embenefíciodoSr.Lisboairápela1.ªvezàcenaodramaem
3actoseemversointitulado–D.SISNANDO–éumoriginalportuguês.
TEATROdeS.CARLOS–8docorrenteóperaNORMA,fazendoaSra.Picoo
papeldeAdalgisa,eDança–OSPORTUGUESESEMTÂNGER.
___________________
Eutinhaumasasasbrancas
-101-
n.º2,de15deDezembrode1839.
Seé incontestável,que,deumprimeiro impulsodadocomenérgica força,
dependequasesempreasérieprogressivadesalutaresefeitosquetantoavultam
nas grandesmáquinas físicas emorais, sem hesitação pode afirmar-se, que será
esseoprimeiro impulso frustrado,seaelesócometermosasnossasesperanças,
deixando-oasimesmo,enãoocoadjuvandoatodooinstante.Comoacontinuida-
dedemovimentosenãodánamatériasemacçõesconstantesqueasolicitem,as-
simassociedades,asinstituiçõesdoshomenspoucopoderãomedrar,edébeisre-
sultadosoferecerão,senãohouverhomens-potenciais,quetomandocomoofícioa
filantropia, todossedêemaprosperá-las,empregandotrabalhose fadigas,eper-
severança,eatéàsvezesobstinação,paralevaremacabo,oqueumavezsecome-
çoudesobfaustosauspícios.
Omovimentodramáticodestesúltimosvintemesesérealmenteespantoso,
e excede a anelante expectação dos quemais se interessampelas pátrias letras.
MaisdramasoriginaisviunascerPortugalnessespoucosmeses,doquetalveznos
doisséculostodosinteirosquenosprecederam,equefaziamoseufornecimento
teatral exclusivamente nos repertórios estrangeiros. A Espanha, depois dela a
França,algumavezaItália,nuncadirectamenteaAlemanha,erarasvezesaIngla-
terra,davamassuasmelhoresproduçõesaosnossosintituladoscompositores,que
asarranjavam, comoelesdiziam–aogostodoteatroportuguês–istoé, introdu-
zindo-lhes um certo número de arrieiradas para fazer rir o populacho;muitas e
absurdasmutaçõesdecena;seeramtragédias,enxertando-lhesalgumascenasde
graciosos(quelhesficavamamatar)e finalmentenestesúltimostemposquando
tudovinhadeFrança,deslavandoosespirituososVaudeville,aengenhosacomédia
francesa,ouonobree reguladoversodaTragédiaemprosadeGazeta, torpede
erros,delinguagem,edetalmodoininteligível,queopobredopúblicoabriaabo-
caeperguntavamuitasvezesoqueeraaquilo,equandosehaviaderirouchorara
gente,porqueemverdademalperceberiaatraduçãoquemnãoconhecesseoori-
ginal.
Taleraoestadodacenaportuguesa,quandocomeçaramamanifestar-seal-
guns vislumbres demelhoramentos, que ora se ostentam já grandes luzeiros de
regeneração.–Criaram-sesociedadesdramáticas,instituíram-seescolas,propuse-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-102-
ram-seprémios,animaram-seartistaseempresas;edesdeentãocomeçouoespíri-
tododramaadesenvolver-se,eprogredindofoicomtalvalentia,quejánãosobeja
umteatroparacontertodasasproduçõesemdiversosgéneros,etodosoriginais
portuguesesquedeumtalinfluxotêmemanado.Lance-seumasimplesvistasobre
oquepassamaexpor;eosfactosporsimesmosfalarão.
TêmconcorridoesteanoaoConservatórioasseguintesproduçõesdramáti-
cas:–OEMPAREDADO,dramahistóricoem3actos,admitidoàsprovaspúblicas
emconferênciade31deMarçode1839,erepresentadopelaprimeiraveznoTea-
troNormalem15de Junho.–OSDOISRENEGADOS,dramaextra-históricoem5
actos,admitidoàsprovaspúblicasemconferênciade5deMaio,sendoasuapri-
meira representação em7 de Julho. –DOMPEDRODUQUEDECOIMBRAdrama
históricoem4actosretiradoporseuautorantesdadecisãodoConservatório.–
DomSISNANDOCONDEDECOIMBRA,dramaem3actoseemverso,peloSr.José
FreiredeSerpaPimentel,admitidoàsprovaspúblicasemconferênciade6deOu-
tubro,erepresentadoontempelaprimeiraveznoTeatroNormal.–ORENEGADO,
dramahistóricoem5actos,eemprosaquenãofoiadmitido.–ODOIDOPORFOR-
ÇA, comédianumacto,que foi reprovadaemconferênciado1.ºdocorrente.–A
ACTRIZ,dramaem5actoseemprosa,quefoidevolvidaaseuautorparaemendar.
–OCAMÕESDOROSSIO,comédiaem3actoseemprosa,admitidaàsprovaspúbli-
casemconferênciado1.ºdeDezembro.Estaúltimapeça,comooseutítuloindica,
tratadepintaroscostumesdoreinadod’El-ReiD.JoãoV;aACTRIZéumquadroda
vidaactual:–todasasoutrasreferem-seaépocasmaisantigas.
Cumpreobservar,queaspeçasadmitidasàsprovaspúblicas,segundoalei
doConservatórionãoficamdefinitivamentepremiadas:nofimdoanotemdepro-
ceder-seanovojuízo,emquehão-deserreconsideradasàvistadoefeitoquepro-
duziramnacena,edaopiniãodopúblico,deferindo-seentãooprémioàsquereu-
niremmaissufrágios.Nestejuízofinaldevemsertambémconsideradas,segundoa
mesmalei,quaisqueroutraspeçasoriginaisquetenhamaparecidonosnossostea-
tros,aindaquenãotenhamsidoapresentadasaoConservatório.
Osdramasoriginaisque seachamnesteúltimocaso sãoos seguintes=O
MARQUÊS DE POMBALOUO TERREMOTODE LISBOA, drama em 5 actos e em
prosa,peloSr.Bayardo;erepresentadonaRuadosCondes.–LOPODEFIGUEIRE-
DO,dramaem3actoseemprosa,peloSr.InácioPizarro.–DIOGOTINOCO,drama
Eutinhaumasasasbrancas
-103-
históricoem3actose emprosa,pelomesmoautor. –AMORTEDOCONDEAN-
DEIRO,dramaem5actosimitadodaantigatragédiaportuguesa–D.JoãoPrimeiro.
–TodostrêsrepresentadosnoSalitre.
Já anteriormente tinhamaparecidonoTeatroNormal –UMAUTODEGIL
VICENTE,dramaem3actoseemprosa,peloSr.Garrett.–EnoSalitrehaviamsido
representadososseguintesdramas–OSTRÊSÚLTIMOSDIASDEUMSENTENCIA-
DO,em3actoseemprosa.–PHILIPPEMAUVERT,em5actoseemprosa.–GE-
RALDOSEMPAVOR,em4actoseemprosa.–TodostrêspeloSr.Perini,earranja-
dosemportuguêspeloSr.AntónioFelicianodeCastilho.–OFRONTEIROD’ÁFRICA,
dramaem3actoseemprosapeloSr.AlexandreHerculano.
OteatrodoPortonãorecebepeçaspremiadas,porqueoseuempresáriose
obrigouporescrituraa fornecercadaanoquatropeçasoriginais,sobrecujopré-
miotemdeentender-sedirectamentecomosautores.Aspeçastodaviasãoprevi-
amenteaprovadasporumadelegaçãodoConservatórioquenaquelaCidadeexiste,
juntoàdaInspecçãoGeraldosTeatros.Atéagoratem-sedadoapenasnoteatrodo
Portoumdessesdramas–OCONDEANDEIRO,em5actoseemprosa,peloSr.Pe-
rini,aprovadoemconferênciade7deAgosto,erepresentadopoucodepois.
NãosabemosseoConservatóriochamaráàcolacçãoparaosseusjuízosdo
fimdoanotodosestesdramas:algunssãoanterioresaotempomarcadonosEdi-
tais,nãoéportantoprovávelqueosconsiderecomopremiandos.
Eisaípoisoqueumsóanotemproduzido;eisaíresultadosquerevelamgi-
gantescosmeios;eisaífinalmente,comoumaplantadébilerecente,seobteveos
cuidadosdeesmeradoscultores,empoucotemposealardeiacarregadaderiquís-
simosfrutos.
------------------
Tendo tencionadodedicarumartigoespecialàanálisedaComédiadeMr.
AlexandreDumasintituladaMlle.deBelle-Isle,lemosporacasooqueabaixotrans-
crevemosescritopelaapuradapenadeMr. J. Janin,e julgamos,queseriadepre-
sunçososnãoaaproveitar,substituindo-lheonosso;etantomaisquantoégrande
aaceitaçãoquetêmmerecidoemFrançaosescritosdaqueleautor.Estamoscon-
tudobemlongedeconformar-nosemtudocomasideiasdoilustreFolhetinista;e
noparágrafoúltimodoseguinteartigodiremosemquedeledissentimos.
--------------------
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-104-
MADEMOISELLEDEBELLE-ISLE
Comédiaem5actoseemprosapor
AlexandreDumasSim,aítendesvósumaComédia;eumaComédiabemfrancamenteatacada,
emelhordefendida,muibemenredada,edeumenredotodaviatodofácilecheio
declareza.–AbundaestaComédiadearteeengenho,muitoestro,regularestilo,
intençõesfiníssimas,grandesousadias–masquepassaram;coisasmuiaventura-
das–masqueforamaceites:palavras,queàdistânciadeumalégua,járescendem
àRegência;costumestodosàLuísXV;numapalavra,grandemovimento,umaen-
cantadora vivacidade, e um nunca-acabar de saborosos ditos, que muitas vezes
chegamapassar furtivamenteo limiardaalcova.–Assimrimosnósàsgargalha-
das;divertimo-nosalémdetodososlimites;aplaudimosatéasmãosnosescalda-
rem.Sim,umalindaevivaComédia,meianua,deixandovertudoquantopodever-
se,oseio,obraço,aperna,ocolo,eaindamaisalgumacoisa.–Queventurateve
AlexandreDumas,achandonofundodoseualforgetãograndecópiadeestro,ar-
didezearrojadoespírito!
OraMme.dePrie,essamulherambiciosaesemcoração,queporinstantes
dominouaFrançacomoCardealdeFleurysobaprotecçãododuquedeBourbon;
Mme.dePriehabitaocastelodeChantilly,eaocomeçardapeçaestáentretidaem
queimar as suas cartas amorosas – precaução que ordinariamente se toma no
princípiodeumapaixão.–Aindabemunsnovosamoresnãocomeçamaenvolver
ocoraçãodeumamulher,adeus todososamoresantigos.Cumpreque tudoseja
destruído e reduzido a cinzas, cartas, madeixas, retratos – penhores eternos de
umapaixãoefémera.Enemumadessascartas,nemumsódessesretratosoutrora
tãoamados,podemobterúltimovolverd’olhos.–Adamalançaaofogotodasessas
paixõesdavéspera–Sauvequipeut.
OcasoéhaverMme.dePriedistinguidoumbeloenobremancebo,queela
háfeitooficial,ecomoqueramá-locomtodasascomodidades,vai-seprevenindo
comasmaiorescautelas.–Eeisaí,meusamigos,emquesetornamosmaissince-
rosamores!
QueimandoequeimandoMme.dePriecontaasuaaia,queoduquedeRi-
chelieuaindaontempossuíaoseucoração,equeeleaindamuitoaadora.Eapro-
Eutinhaumasasasbrancas
-105-
vaéqueoduqueainda lhenãorecambiouametadedeumsequimdeouro,que
entre ambos haviam dividido, com a condição, que o primeiro que cessasse de
amar,enviaria logoasuametadedamoeda,semquefosse lícitoaooutrofazera
maispequenaqueixa.–Excelenteinvenção,ecómodasobretudo;abreviadelongas,
epoupaas lágrimaseo rangerdedentes.TemapenasMme.dePrieacabadode
contarequeimar, emqueentraoduquedeRichelieu, comoquementrapor sua
casa.
Aconversaçãoentreosdoisamantesédasmaisnaturais,eodiálogotodo
esmaltadodessesditosagudosqueforamefectivamentepronunciadosnassalasdo
Parisespirituoso,céptico,elicencioso;masestãoessesditostantonoseulugar,e
comtalnaturalidadeengastadosnestecintilantediálogo,queé impossíveldistin-
guiraíplagiato;oautornãofazmaisdoqueentrardepossedosseusbens,onde
querqueosachou;equemseatreveraanegar-lheodireito?
Richelieu tirandoumacarteiraaapresentaaMme.dePrie,dizendo-lhe:–
“Penseiemvós;aceitaiestacarteira,quetemestampadoovossobrasão”–Eela:–
Aceitaimeucaroduqueestabolsaemqueporminhamãoestábordadavossafir-
ma”–Entãodespedem-se;eapenassó,Mme.dePrieabreacarteira;equeacharia
ela? – A metade do sequim. – No mesmo instante entra Richelieu que também
achounofundodabolsaaoutrametade!Eei-losarir,earir.–Oraistoéquese
chamainventar.
Entãoseanimadepontoaconversaçãoentreosdois,egraçasaumatãopa-
téticasimpatia,RichelieueMme.dePrieentendem-semelhordoquenunca.–“E
queméqueamais,Marquesa?”–“Amoocavaleirod’Aubigny;evósmeucarodu-
que?”–“Eu!estouperdidod’amoresporMlle.deBelle-Isle”–EntraMlle.deBelle-
Isle.
Entãosevosapresentaumadonzelacujasgraçaseserenidadelhecompõem
semparformosura.Simplesegraciosa,enterneceovê-la.–VemsuplicarMme.de
Prie,quefaçapôremliberdadeseupaieirmãosqueestãonaBastilha.Oh!como
elanarrasuatristehistória;osdesastresdetodaasuafamília,asoledadeemque
vive,eocativeirodeumpai!–Richelieuparecedevorá-lacomosolhos;eMme.de
Prie,egoístacomoé,sentemover-sedepiedadepelamesquinha,queaíjazaode-
samparonessacorrompidahabitaçãoquesenãolembradeBossuet,nemdogrão
Condé.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-106-
Aquiointeressejávivamenteexcitadoportodasessasengenhosascircuns-
tâncias vai ainda aumentar-se. Toda essa Corte de Chantilly se apinha na ante-
câmaradeMme.dePrie.RichelieurecentementechegadodaAlemanhaénatural-
menteoobjectodessaconversadesainete:então,rodeando-o,àporfialhecontam
asgrandesresoluçõesocorridasnasuaausência:comooCardealdeFleuryrefor-
mouoscostumes;comoéamissaantepostaaobaile;comoasmulheresqueatéaí
tinhamdoisamanteseumconfessor, jásecontentamcomdoisconfessoreseum
amante!–Oduquepermaneceabsorto,masafinalcansadodetantashistórias,que,
comoelediz,sãoprópriasparafazerdormirempé,exclama:–“Talcomomevedes,
apostomilluísesqueobtereiserintroduzidoestanoitenoquartodaprimeiramu-
lherquesenosapresentar”–“Valeu,respondemosamigosdoduque;milluíses.”
EntraaMarquesadePrie;masRichelieujogadorbizarroseinclinaparaos
parceiros dizendo-lhes: – “Esta não vale; seria roubar-vos o vosso dinheiro.” No
momentoseguinteentraMlle.deBelle-Isle.
Então ummancebode quemal se dera fé na sala, e que ouvira a terrível
aposta,dirige-seaoduque.–“Soueu,senhorduque,aquemcompeteaceitaravos-
saaposta,euquedentroemtrêsdiashei-deseresposodamulherquehojepre-
tendeisdesonrar.
Oduqueaceitaapropostadomancebo,oqualvêpelaprimeiravez.Confes-
soquenãofoipequenoomeureceionestaocasião:tremipensandoqueandariaaí
algumbastardocontrafeitocomoodeAntony;dessesrapazessemleiranemgeira,
cujamelancoliaé insuportável; insípidosquenãosabempensar,nemamar,nem
sofrer,eque,todosababar-seemseusembevecimentos,aquantochegampoluem,
semmesmolhesescaparemasverdespaixõesdabelaidade:todaviadestavezes-
capei.OCavaleirod’AubignyamantedeMlle.Belle-Isle,conquantomaissentimen-
talqueosoutros,nãodeixadeserdamesmatêmpera.Nadaausteroemsuavirtu-
de;nadachorãoemseuamor:éumverdadeirosoldado,queseostentariadosmais
valentesemFontenoy.Sealgumasvezessetemmostradomaistristedoquecon-
vinha,nãoéporculpadoautor,masdeLockroyquenodesempenhodessepapel
sepôsaentristecer-seporsuaconta,porématentaaespertezadesseartista,ébem
depresumir,quedepressacompreendaelequenãocumprerepresentaraídebello
tenebrozo;quenamenoridadedeLuísXVnãoestavaemmodaavozcavernosa;que
nessetempoospensativosByronistasprovocariamorisodetodaacorte;efinal-
Eutinhaumasasasbrancas
-107-
menteque,paradarboacontadesemelhantepapel,énecessárioserhomemdessa
época,istoé,terviveza,ousadia,volatilidade,e–porúltimo–nãoduvidardecoisa
alguma.
Raras vezes se temvistoum3.º actode tantabeleza; rápido claro, ebem
constituído. Cada um no seu elemento; o espírito circulando por todo o diálogo
comoosanguepelasveias:–Cadapersonagemdissejáoquedeviadizer,emos-
trouoquehá-desernorestodapeça,Richelieulevianoelouco,amarquesaegoísta
evaidosa;Mlle.deBelle-Isleinocenteecasta,d’Aubignyamanteeapaixonado;pos-
toquealgumacoisatriste.Poderiamobjectarqueojovemcapitãoéumabemfraca
figuraparaousaropor-secaraacaraaSuaExcelênciaoduquedeRichelieu;maso
autorteveaprevençãodeadvertir-nos,queocavaleirod’Aubignypertenceauma
dasmaisnobresfamíliasdaBretanha.
Dasdificuldadesdo2.ºactoidesvósjulgar;esãoelasdetalmonta,queem-
baraçadomevereiparaasdeslindar,euquesentadoavossolado,meentretenhoa
entreter-vossozinho;oravedeminhabeladama,quantomeseráprecisoparacon-
tartodasessascoisasaduasmilpessoasreunidas,edasquaisumametadesejulga
obrigadaacorar,anãocompreender,eaapertarosbeiçosparanãorir!–Anoite
daaposta se aproxima;nessaapostaRichelieuempenhava suahonra;mas como
penetrarnoquartodeMlle.deBelle-Isle,simples,honestaedesmaliciada?Empe-
nhotantomaisdifícil,quantoMme.dePrieonãoquercoadjuvar;pelocontrárioa
damaaindaselembradacarteira,eapesardoprograma,quervingar-se.Efectiva-
menteMlle.deBelle-Isleéhospedadanopróprioquartodamarquesa,eesta lhe
trazlogoànoiteumacartaparaogovernadordaBastilha.–Dentrodeduashorase
meiaMlle.deBelle-Isleabraçaráseupai,eseusirmãos,eestarádevoltapelasseis
damanhã;ninguémnocastelosaberádasuapartida,eenquantooduquedeBour-
bonforPrimeiroMinistroseráguardadoumsegredoinviolável.–Ficandosó,Mme.
dePrie,quesabedecoroseuRichelieu, tratade fecharàchave todasasportas,
exceptoaoculta,daqualRichelieujuraraterolvidadoachaveemPariscomapres-
sadeseguirMlle.Belle-Isle–expressãodignadoCavaleirodeGrammont.
Por suaparteRichelieuestádealcateia: todasasdificuldadesdaempresa
lhesãologopatentes;portasejanelasfechadas,criadosvigiandodapartedefora,
nadaodescoroçoa.–AchavedaportaocultaémandadabuscaraParis;chega,eeis
oduqueondesedesejara.–Homemprecavido,Richelieu,jálevaescritooseguinte
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-108-
bilhete,quelançapelajanela–“Émeianoite,estounoquartodeMlle.deBelle-Isle;
amanhãvosdirei aquehora saí.” –Opapel éapanhadopord’Aubigny.Oduque
temganhadoa aposta, ede sobejo ganhada, poisque amarquesa, não contando
queaportaseabrisse,apagaraasluzes.–Caiopano…adivinhaiorestosepodeis.
Parece-meestarouvindogritosd’aquid’El-Reicontraaimoralidade!…Ora,
senhorpé-de-boi, bastade exclamações, olhequeperdeo tempoe o feitio; todo
esteenredo foioptimamenteaceitepormuitaspessoascapazesqueopresencia-
ram,equesenãotrocamporVocemecê.–Mulhereshonestíssimasoaplaudiram
semlhedeitarmalícia.Tudosepodedizerentrepessoasdeboaefinasociedade.
Aventaicomaousadiaesemrodeiosovossodito;nãohesiteiseexprimi-voscom
todaanaturalidade,queninguémsequerpensaráemchamar-vosinsolente;–mas
seentraiscomhesitações,eacorar,eafazermotetesparadizeracoisamaissim-
ples,osVaudevillistas vos irão logo taxardeobsceno!–Onossopoetacombinou
maravilhosamentebemtudo;foiatrevidocomoumpajemdeMme.deParabére;e
àforçadegraça,bomhumor,ousadia,eespírito,fezquetudopassasse.
Chegao3.ºacto.Mlle.deBelle-IslerecolheudaBastilha,felizcomoumafi-
lhaquevemdeabraçarseupai,quenãoviaháoitoanos.–Mme.dePrieacha-se
maisbemvingadadoqueesperava.–Richelieu,insolentecomoé,sente-sealgum
tantoadmiradodasuaprópriafelicidade.–Sód’Aubignyestátriste.Àsuavistase
introduziuosedutornoquartodasuanoiva;ouvindo-lheavozda janela;o fatal
bilheteestánassuasmãos:comoduvidardoseumal?Comonãocrernaperfídia
deMlle.deBelle-Isle.Eelaserenaealegrecorreaoencontrodocavaleiro:comoo
acharácarrancudo!
CompeteouvirMlle.deBelle-Isle,comosedefendequantopodedashorrí-
veisacusaçõesdocavaleiro,jáelaquerterumaexplicaçãocomRichelieu,mandado
chamaratodaapressa,efazesconderoamantedemaneiraquetudopossaouvir.
– Richelieu chega, mais insolente, mais presunçoso que nunca: – e fala à pobre
donzelacomoumamantefeliz;tãoconvencidoestádasuavitória!Efoielatãofácil,
etãocompleta!
Estacenaédramáticaenatural.ÉfácildecompreenderadesolaçãodeMlle.
deBelle-Isle,vendo-seassimtratada,ecomumdesembaraçotãoinexplicáveletão
natural.Oquemaiscustaaentender,écomoamíseradonzela,perdidaedesonra-
daaosolhosdoseuamante,lhenãodeclareimediatamenteondepassaraessanoi-
Eutinhaumasasasbrancas
-109-
tefatal.ÉverdadequefezumjuramentodeonãorevelarduranteoMinistériodo
duquedeBourbon;masempresençadetaldesastre,comoguardarumsegredo?E
tendod’Aubignyassazdeprobidadeparanãoabusardeumaconfidência! –Mas
paraquebuscarobjecçõesnumaComédiaquetambémselevaenuncapára;queri
porentrelágrimas,ecujosorriso,ecujoprantoé,quantopodeserdonoso!
Enotaibemqueacçãodramáticavaicorrendoaomesmotempoqueospra-
zeresenegóciosdessacorte,tãoocupadadenegócioseprazeres.–Taleraavida
dessa época, sobejando para asmais difíceis empresas do espírito e do coração.
Sustentandocomigualprosperidadeaespada,eapena,eoceptro,eataça,eole-
quedasdamas.–HápoisumbaileemcasadeMme.dePrie.Osmaiselegantesfi-
dalgosreunidosnessasricassalasque jánãoexistementregam-secomfervorao
jogo.Richelieu, tendopassadoodianacaça,chegaumpoucomaistarde,eaíen-
contra d’Aubigny que não cessou de procurá-lo todo o dia. O Cavaleiro provoca
Richelieu;esteaceitaodesafio;masummalditocapitãopropostopelos Juízesdo
Pontod’Honraparaimpedirosduelos,eavisadoporMme.dePrie,vemsuspendê-
los; e fazdarpalavrad’honra aosdois Campeões, quenão combaterão, semque
primeirotenhamcomparecidoperanteosMarechaisdeFrançaexpondoosmoti-
vosdasuadesavença.–ComofariapoisopobreCavaleiroparavingar-se?
–“Senhorduque,precisodeumaprontasatisfação;nãonosélícitocomba-
ter, não podemos ir deslustrarMlle. de Belle-Isle na presença dosMarechais de
França;poisbem,joguemososdados,eaquelequeperderdoislancesmatar-se-á
amanhãpelasnovehoras.–Omeioéengenhoso!respondeRichelieu.
Edepoisdiz:–Aceito!–JávedesqueoDuquesenãodesmenteumsóins-
tante:–eporquerazãonãoaceitaria?elequeeraohomemmaisfelizdetodoesse
felicíssimoséculoXVIII.Nascidoaindaatempodevernoseuocasoosúltimosrai-
osdesse sol chamadoLuísXIV, coube-lheumaparte (e talvezamaior, contando
mesmocomLuísXV),dasflores,doespírito,daglória,eamoresdoreinadoseguin-
te;efinalmentedepoisdeterassistidoaessalutadetantogénioetãodiferentes
forçasqueproduziram89,morreuassazatempoparanãoverarevoluçãofrance-
sa.–Certoqueumtalhomem,aindasemterdemasiadovalorpodiajogarsuavida
aosdados;bemseguroestavadeganhar.
EfectivamenteéRichelieuquemganha;eenquantojoganãoperdeocasião
degracejar.–“Quemqueririnteressadocomigo?dizeleaoscortesãosqueorodei-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-110-
am.–D’Aubigny,tendoperdido, levanta-seesai,dizendoaoduque:–Amanhãàs
novehorassereispago,senhorduque.
Nomesmo instante chegaanotíciadeestarpresonaBastilhaoduquede
Bourbon,enomeadoPrimeiroMinistrooCardealdeFleury,eMme.dePrieman-
dadadesterrar.Aconfusãoéuniversal,eamarquesaforadesiquerescreveràRa-
inha,aquallhedeveotrono.Escreve:eentãoreconheceRichelieualetraqueele
julgaraserdeMlle.deBelle-Isle,ecompreendeconfusamenteoseufatalengano.–
“Comoéisto?perguntaoduque.–EMme.dePriecontinuandoaescreverlheres-
ponde–“Nãoadivinhais?…”
Richelieusenterevolver-se-lheaalma;–enganou-se!desonrouumahones-
tadonzela!Deitouaperderummancebo;etãojovem,tãobemapessoado,tãova-
lente,tãohonradoetãoamoroso;equeamanhãpelasnovehorasjánãoexistirá.É
precisopartir,salvard’Aubigny.CumpreimploraroseuperdãodeMlle.deBelle-
Isle…Frustrada esperança!Um capitão das guardas vempedir aRichelieu a sua
espada.–Tudoestáperdido!
Oravamos,desassombrai-vos:enãoreceeis,queninguémhá-demorrer.–É
verdadequeoamantedeMlle.deBelle-Islequeraindavê-laantesdeexpirar.Che-
gaaChantilly,encontraaquelaqueadora,eavêmaisbelaemaissentimentalque
nuncaavira:esemchorarlhedizadeus,eadeusparasempre.Ela,adesgraçada,
nãocessaderepetir-lhe;–Euteamo:porémelequerpartir.–Aomenos,dizGabri-
ela(taléseunome)esperaiquevolteMme.dePrie,eeuvosdireientãoosegredo
quememata.–Mas,respondeomancebo,nãoignorasqueelafoidesterrada,eque
oduquedeBourbonestánaBastilha!–Entãoadonzela,jádesligadadoseujura-
mento, arrebatadade alegria, exclama: – “NaBastilha!Oduque!E lápassei eu a
noite,elávimeupai:enãovolteisenãoàsseishorasdamanhã;eoduquedeRi-
chelieumentiu!–Perguntai-oameupai,ameus irmãos!”–Sim,menti,bradaRi-
chelieu que apressado chega, ou antes, fui burlado como um simplório, e venho
pedir-vosperdãodejoelhos,avósquesoisumanjo!Eperdoam-se,eabraçam-se,e
oduquedeRichelieu torna-seomelhor amigodoCavaleiro, eMlle. deBelle-Isle
torna-seMme.D’Aubigny.
_____
TaléoartigodeMr.J.Janin,aqueminvejamosagraça,facilidade,eaprimo-
radodesleixo,comqueescreve;sentimospoisnãoconcordarcomasreflexõesque
Eutinhaumasasasbrancas
-111-
eleacimafazacercadodesempenhodeLockroy.–OautordaComédiatemcuida-
dodeprevenir-nosdequeoCavaleirod’AubignychegouhápoucodaProvíncia(e
daBretanha!)nãoépoisdeesperarquenelesedêemosmesmoshábitos,estraga-
doscostumes,emodosdepensar,queafectaramoscortesãosdeLuísXV,antesé
crívelqueosseusprincípiosacercadavirtudeedoamorsejamausteros;nemse
deveesperarqueelesemostreleviano,etantodobomtom,quedenadaduvide.–
Eseriacrívelqueumplatónicoprovincianosenãomostrassecarrancudo,vendo,
quenaprimeiravisitaasuaamada,estatratedeodespedir,sobfúteispretextos,
chegandoaté apedir-lheencarecidamenteque se retire,porqueestá cansadada
jornada?–Eseriaverosímilqued’Aubignyencolhesseosombros,enadadissesse,
esenãomostrassesentido,edesesperadoefurioso,comasprovasasmaisclaras
da ingratidão,dasórdidaperfídiadasuaamante;daquelaqueadoravacomoum
anjode inocência,eummodelodevirtude?–Parece-nosqueLockroymereceria
desculpa,ouporventuralouvores.
________
TEATRODES.CARLOS
ROBERTODODIABO
MÚSICADEMEYERBEERAquelehomem,queerguendoosolhosparaumgénio,quebrilhanohori-
zontedomundo,seabalançacoma friabitoladeumespírito terrenoamediros
raios incomensuráveis, que da alma lhe dispartiram, para abrilhantar, aquecer e
aditaromundo;–essehomem,aidele!porqueasuafriezaonãolivrarádeseren-
golidopeloEtnaabrasado.AnãotersobreeledescidooespíritodeRafael,ouMi-
guelÂngelo,odeDante,Lamartine,ouByron;porventuracairásobreeleacom-
paixãodoshomens;comosobreoinsensato,quefitandoosol,frenéticoseencole-
riza, por nãopoder imitar nopapel aquele inimitável deslumbramento e as sete
belíssimascores,quedelepodetirarcomfacetadovidro;ouencarandoatempes-
tadelhesejamnegadastintasparaoterríveldosrelâmpagos,emedonhonegrume.
Quasenomesmocasonosachamosnós,tendodefalardograndeMeyerbe-
erimpusemo-nosporémaponderosamissãodeescritorpúblico,desempenhá-la-
emospois,aindaquenoscuste;maspedindoantesvéniaaomúsicodivino,entra-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-112-
remoscomamaior circunspecção, e receioemseus fantásticos, e fadadosdomí-
nios.
Quandonasartesalguma inovaçãosealevanta, indodeencontroàs ideias
correntes,eafigurandoameaçá-las,ergue-setodoomundocomespanto,comin-
dignaçãocontraohomemtemerário,queousouaventá-la,ostentando-se inimigo
dessesprincípios,queúnicoshãoproclamadoverdadeiros.Masseogéniofoipar-
tilha desse homem, a prevenção do público cedo ou tarde se esvaecerá, como o
fumo; e suas criações, não compreendidas ao princípio, arrastarão finalmente, a
despeito de um cunho extravagante e fantástico, a geral admiração e universais
louvores. Por semelhantes provas hãopassado sistemasdeBeethoven, eWeber,
Rossiniasexperimentou;etriunfaramtodos.Queóperanaapariçãotevedesofrer
maisataques,maisdesdéns,maiscólera,queROBERTODODIABO!Mas,comotu-
doquantoporbeloesublimeseextrema,agrandeobravenceu,acareandoaseu
autorrenomeimorredoiro!
Nãoentraremosemdiscussãosobreaproeminênciadosdiversossistemas
musicais;poisqueistonoslevariamaislonge,doqueaextensãodeumsóartigo
comporta; todavia a nossa franqueza nãonos consente esconder quenamúsica,
bemcomonapoesia,tendoemmuitoestesmelodiosostrechos,quenoferracíssi-
moRossinideliciosamentenosextasiam,aindadamaiorpredilecçãonoséaescola
alemã.–AbriaCriaçãodeHaydn,asóperasdeMozart,assinfoniasdeBeethoven,
vereisasublime inspiraçãodogénio lutandoevencendoantigosabusos,edoces
prestígios, por suamesma ancianidade, formidáveis: – vê-la-eis lançando os pri-
meiros fundamentos,cinzelandoerguidascolunas;e,pelograndeMeyerbeeraju-
dada, ostentando grandiosa fábrica, onde amúsica livremas respeitadapudesse
dignamenteostentar seus foros, edireitos à fraternização comasoutras artes, a
quemnãocedeprimazia.–Jádehámuitosehaviamelasemancipado;enãosóto-
mandoanaturezaporespelho,mascombinandoaverdadedaimitaçãocomaex-
periênciadoquedeveriaagradar.Meyerbeerfazianamúsicaumarevoluçãoseme-
lhante lembrando-se, talvezdoquedizGrimno:Queaverdadesedeve idealizar,
concorrendoparaestefimimaginação,eespírito;porqueosublimeéatransfigu-
raçãodobelo.–Meyerbeerdramatizouamúsica;amelodiaeharmoniaseabraça-
ram;eaplicandonovosmusicaisacordesaquantoaíhádemaisassombroso,apai-
xonado,sentimental,religioso,eterrível,formulouessaobrafantásticaesublime,
Eutinhaumasasasbrancas
-113-
quetraduzemvibrantes,esonorasletrasasardidasdeDante,Lamartine,eByron.
–EssaobrafoiROBERTODODIABO!…
Nãoentraremosnaanálisede todas asbelezas, queencerra esteprodígio
musical;repulsandotambémcomhorrorqualquerpensamentodecrítica,queuma
obrahumanapodesempreacarear,aindaquediminutíssimafosse;poisquefoiaos
homensnegadaaperfectibilidade.–FoiaóperadeMeyerbeerrepresentadapela
vezprimeiraemS.Carlosa2deSetembrodoanopassado;eaindaquepelasen-
chentesconsecutivas,queseviramnaqueleTeatro,sepossageralmentedizer,que
o ROBERTO DO DIABO teve grande acolhimento entre os Portugueses; se aten-
dermosaomuitograndioso,insólito,opulento,eextraordináriodosacessóriosde
semelhanteespectáculo;porventuraquesenosinsinuarãodúvidas,separaelesou
para amúsica sublime tão afanosos se reuniram. – Eu direi omeu pensamento,
emboramepese,eaalguémportemerário;euodireicomfranqueza.–ORoberto
doDiabonãofoiaplaudidocondignamente!–EécontudononossoPortugalmais
doqueumprazer,quaseumanecessidadeamúsica;ehánanossapátriamaisdo
queverdadeirosdilletantti,hámúsicoseentendedoresdesubidomérito;todavia,é
mister confessá-lo, uns e outros,mas especialmente os últimos, são embempe-
quenonúmeroeositalianostêmpossuídoomonopólioquaseexclusivodestapre-
ciosaarte.Serialongo,enãodesteartigo,averiguaremarcarascausasdestanossa
inconsequentepenúria;porhojebasta,quearatifiquemosparaonossopropósito.
–OROBERTODODIABO–Quantasvezesnomeiodosraptosdivinosdogrande
mestre, dasharmonias extraordinárias, dos incógnitosprimoresde instrumenta-
ção se notaram em S. Carlos sussurrantes conversas, distracções enfadonhas, e
tíbiosaplausos.Quantasvezesosnãovejoeunegartotalmenteaosolenepatético,
esublime,dequeabundao3.ºe5.ºactosdaópera,quandonoutrasnoitesse ti-
nhamprodigalizadoestrepitososapretensiosas fiorituras,edeslocadassolatas,e
toursdeforce?–Foiempartesnãobemexecutadaamúsica?–elaassimmesmode
sobejoserevela,eentãoporquênegar-lhecomignorantefrieza,oudesconsolado
egoísmotãomerecidosaplausos?…
TemidoestarepetiçãodoROBERTODODIABOmuitocorrentemente,ese
exceptuarmososcoros,queporvezesdeixam,porindesculpávelcaleçaria,defazer
o seudever, talvez sepossa sem receio aventar, que empoucos teatroshá visto
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-114-
Meyerbeerasuaobratãodignamentetraduzida;easuapérolatãoricamenteen-
gastada,poisquetrajes,edecoraçõesdificilmentepoderãoserexcedidas.
O Sr.Mariani (Bertrando) desempenha bem o seu tão custoso papel, e se
apresentamuitobemcaracterizado–amúsicadeMeyerbeerestáboaparaasua
vozcheia,ebastanteextensa;mascujaflexibilidadeémuidiminuta,eamobilidade
temmuitopoucafirmeza.OSr.Marianialémdeoutrasboasqualidades,temade
sermuitotrágico,desempenhandocommuitainteligêncianãosóquantoàmúsica,
masaocanto,todoosublime5.ºactodaóperaemquestão.–No3.ºactotambémo
mesmoactorsefazdignodeelogio,porémnãooqueríamossempretãocarregado,
e trágico,masporvezesdisfarçadoe risonho, comono interrogatóriodeAlice=
Dimme,Alice,checos’hai?emaisirónicono=Tul’haivoluto…
Esteúltimopredicadolhequeríamostambémmaisfrisanteno1.ºacto,as-
simcomomaiorsorrisodiabólico:–amelancolia,eumraiodeamor,quequalre-
lâmpagoemtempestade,selhedevebruxulearnorosto,relevaqueespecialmente
predominemdomeiodo3.ºactopordiante.
O Sr. Conti tem uma linda voz de peito, muito simpática, muito cheia de
frescura, eo seumétodoémuitopuro; todaviaparece-nosqueoSr.Continãoé
para estas peças de Meyerbeer, em que para a música produzir o efeito, que o
grandemaestrosepropôs,énecessárioumaforça,epotênciadevoz,eumafacili-
dadeematacarasnotasagudas,queporémesteartistanãopossui;porémdeve-
mosconfessaremabonodoSr.Conti,queeleassimmesmosefazmuitodignode
louvorparticularmentenoformosíssimoduetodo5.ºacto,esublimetercetofinal.
ASra.S.Ferlotti(Alice)desempenha,comotemdecostume,comaapropri-
adamúsica, e bom canto; caindo bem suas delicadas fiorituras no belíssimo ro-
mancedo3.ºacto,quenosfazlembrardessasmanhãsdeAbril,emqueaumahor-
rorosatempestaderebatidadetrovões,esulcadaderelâmpagos,vemossucederos
sonoros,eperfumadoshálitosdozéfiro,eoledogorjeiodospassarinhos,eosus-
surrodoarvoredo,aquembanhaojácristalinoarroio.–ÉpenaqueavozdaSra.
Ferlottihátemposaestapartesetenhatantoescasseado.
ASra.Barili(Isabella)équem,nanossaopinião,vaimenosbem:–tantoo
seucanto,comoasuamímica,quenaGEMMAsetinhamfeitonotartãovantajosa-
mente,semostraramnoROBERTOcommenosprimordoqueesperávamos.–Mui-
tonoscustaterdenotardefeitosnumaactrizdetãoboasprendascomoaSra.Ba-
Eutinhaumasasasbrancas
-115-
rili,eoxaláquenóspudéssemossemprelouvar,queofaríamosdemelhorgrado.–
ASra.Barilialémdasuapoucafirmezadeintonaçãotalveztenhaporcostumein-
troduzirfiorituras,ebordadosnocanto:–quandonãopudesseevitarinteiramente
aprimeiracoisa,julgamosquefariabemdemoderarasegunda,comespecialidade
nasóperasdeMeyerbeer;poisquenãoéamúsicadesteautorparasebrincarcom
elasemprecaução.
ASra.BarilinaCavatinado2.ºactocantacompoucasimplicidadeoandante
enacambaletamudaevariaaseubel-prazer.–No4.ºactolhequeríamostambém
mais timidez, e ingénua simplicidade no canto emímica. – Não relevámos estes
defeitosàSra.Barili;porissomesmoqueseriamuitoparalastimar,queumaactriz
tãodistintapordotesnaturais,eadquiridos,deixasseempanartanto lustre:–na
vozdaSra.Barilisefazelemuitosensívelpoisqueémuitoextensa,cheia,melodi-
osa,esimpática,sendobelíssima,emuitorara,naescolhadosgraves.
______________________
CRÓNICATEATRALDOMINGO8deDezembro=OsDoisRenegados=Mr.Cagnard=OEnsaio
dumaTragédia=Jánonossonúmeroantecedentefalámosdestasduaspeças,as-
simcomoda suaexecução; restam-nosaindaalgumasobservações. –Nãogosta-
mosdeveroSr.MattanosDoisRenegados,desortequeadeslocaçãodoSenhor
Vitorinopormaisdeummotivoseháfeitosentir.OSr.Mattanacenadamaldição
no3.ºactodevetomarumaatitudemaissolenesemcontudosairdonatural;deve
simtrovejarcomavoz;masnãoimitarogritodasavesprocelárias.Reconhecemos
merecimentonoSr.Matta;temo-lovistocomdistinçãodesempenhandohabilmen-
tediversospapéis;eporissomesmomuitosentiríamosqueeleemalgumdesme-
recesse:–persuada-seesteactor,queatélhesomosafeiçoados,eporissonoscus-
taráadverti-lotodasasvezes,quetivermosdeofazer.
ComtodaageneralidadeaplicaremosesteúltimoperíodoàSra.Talassi,ac-
triztãodignadegrandesencómios;enaverdademuitosentimosobservar-lheque
nosDOISRENEGADOS,dramaemquetantosedistingue,avimosporvezesdialo-
gandocomoutraspersonagens,eespecialmenteno4.ºacto,dirigirosolhoseace-
nadoparaosespectadores,quandodeveabstrairdetudoquantonãosejarelativo
aIsabelfilhadoCavaleiroPêroGonçalves.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Dia10=ACOMPADRICE=TEÓFILO=ACompadriceéumabonitacomédia
deScribe,cheiadealusõeschistosas,efinacríticasemmordacidade.Éumapatota
paraaeleiçãodeumdeputado,maspormeioshábeisepermitidos,jásesabe.–A
compadriceestábemensaiada,evaimuitoregularmente:algumaveznoslembrou
umartista…–Seja-lheaterraleve.Advertimoscontudoqueoengraçadodotalen-
todoSr.Sargedasfazquantopode.OsSrs.EpifânioeVanezvãobem,assimcomoa
Sra.Talassi,eEmília:naSra.JoanaCarlotaqueríamosmaisnobredesembaraço,o
quedecertolhenãoserádifícilostentar,comonoutraspeças;queríamostambém
quefalassemaispausadamente,aplicandoàspalavrasmaissentido;enãocomoo
discípulo,quedandoaliçãodecor,querbrilharpelavelocidadecomqueseexpri-
me.–FaremosestasadvertênciasàSra.J.Carlota,porissomesmoqueelavaimos-
trando disposição para a arte difícil, a que se dedicou; e ultimamente tem feito
progressos.
FoiaindaoutravezàcenaoTEÓFILO,oquenãoesperávamosdepoisdas
justas observações, que fizemos no nosso número antecedente. O TEÓFILO tem
galantes situações, e bastante sal; porémnão podemos levar a bem, que se faça
burla,eparódiadecoisastãorespeitáveisportodososmotivos,comoaBíblia.–Se
acostumardesoespectadorarirporcoisasemelhante,nãovosadmireisdepois,se
elecomeçandopelogracejo,acabarpelodesprezodetudoquantoédignodomaior
acatamento,eveneração.
Dia12=ACOMPADRICE=OEnsaiodeumaTragédia= Já falámosdestas
duaspeças,queforamregularmenteestanoite,apesardenãosergrandeaconcor-
rênciaematençãoaomautempo.–Houve-amuitograndeontem14;nãosópelo
Espectáculo,quemuitoprometiaaosespectadores;masporseroBenefíciodoSr.
Lisboa, gracioso de tantomérito, e justa aceitação. – Constava o espectáculo do
DramaOriginalPortuguês=D.SISNANDOCONDEDECOIMBRA–edarepetiçãoda
engraçadacomédia–OCabritoMontês–deumaeoutrapeçafalaremosnonúmero
seguinte.
TeatrodeS.Carlos–Domingo10deDezembro–NORMA–OSPORTUGUE-
SESEMTÃNGER.–MuitosetemditodestaÓpera,eporextremoéconhecidano
mundomusicalestaobra-primadoimortalBellini.Estecomplexodesensibilidade,
paixão,eternura,ondeadodesolenes,oupatéticasmelodias,quantoéparacativar
coraçõessensíveis.Enãovosenvergonheis,minhalindadama,devosassomarem
Eutinhaumasasasbrancas
-117-
rubores, e palpitar o coração; e humedecerem-se-vos os olhos… – Caem-vos tão
bemestesindícios!…–Masseestaisconvencidadistoquevosdigo,quantovoshá-
dedesconsolaraNorma, comoelaagoraseapresenta!–Como tudoquantoéda
terra,temamesquinhatidoseusmauspassos;taissãoosporqueelatempassado,
depoisqueumaAdalgisasepartiu,enosdeixoucámuitasaudade!–PobreNorma!
Aindaassim lá foi caminhandoultimamente, comoDeus foi servido,pelos
esforçosdaSra. Santini, aquempediremos,quena suavíssimapreguiera –Casta
diva–nãovolteascostasparaadeusaqueinvoca,poisquenuncaeemtempone-
nhumseadoraramdivindadesdestemodo. –Nem,poramordeDeus!nosargu-
mentemcomosoutrosteatrosparatalincoerência.
DebutouestanoiteaSra.Pico, e foimuitomelhordoque seesperava, fa-
zendoesforçoporagradar,oqueéparaagradecer;masnemasuavoz–meiocon-
traltodeixaqueamúsicaproduzaoefeito,queseuautorseprometeu,nemasua
figurareforçadaeseusdesembaraçadoselivresademanesatornamprópriapara
aquele fervormisto,econcentrada ternurada inocente,que imploraocéu–Deli
protegini,ódio!…Nemparaaquelasconfidênciasapaixonadas,echeiasdetimidez,
nem…–ASra.Picofazoquepode,masnãoquantoeramister.
Nosdias11e15repetiu-seomesmoespectáculo,enodia13foioROBER-
TODODIABO,dequefalamosseparadamente.
_______________
ORIGEMDAARTEDRAMÁTICAAntesqueoshomens tivessemaspalavraspara se exprimirem, certoque
sualinguagemdeviaapenasconsistirnaemissãodesonsinarticuladosesemacen-
tuação;amúsica,eocanto(simplesmentemodulado)éprovávelquehouvessem
precedidoapalavra,e,paraestapoderadoptar-seaoétimoharmónico,secrioua
poesia.–Modulou-seocanto;eentãoogestooudançamímica,veio,comoades-
cuido,acompanhá-loparaaumentar-lheaexpressão.=Dessastrêspartesdistintas
–MÚSICA,POESIA,eDANÇA,abraçadaseconfundidasnasceuaARTEDRAMÁTICA.
__________________________
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-118-
n.º3,de22deDezembrode1839.
Emnossonúmeroanteriormostrámos,porinegáveisdocumentos,osgran-
des, e admiráveis resultados, que uma bem combinada perseverança, e enérgica
filantropiatêmcolhidoparaaArteDramática.–Muitosdramasoriginais,ealguns
deumméritodistinto,vãoassomandonohorizonteliterário,prometendoaoane-
lante espectador alguns instantes de emoção deliciosa, de salutares terrores, de
jovialerisonhacensura.Todaviaparaqueestesfins,aqueodramasepropõe,te-
nhamefeito;paraqueopoetadramáticonãodescoroçoenaespinhosaedifícilve-
reda,queháencetado,relevaqueseenvideamaiorsolicitudeeesmeronaexecu-
çãodesuasobras.–Podequalquerdramaprescindirdapompacénica,doluxodas
decorações,etalvezqueatédaverdadedostrajes;podefazertantoefeitonoteatro
comonumasala;porémnunca lheserápossívelprescindirdeumfiel intérprete:
tãopoderosaconsideraçãonos insinuouqueporventuranãoseriamextemporâ-
neas algumas observações acerca do comediante, e seus importantes deveres. –
Masparaque,adespeitodaconcisãoeclareza,queprocuraremosdaraestadou-
trina,nãosejamosdeenfadoparaalguém, i-la-emosemsucessivosartigosdisse-
minando.
Aartedocomedianteé,detodasasdeimitação,aquemaisimperiosamente
exige a posse dos naturais dotes de uma grande inteligência, pureza e força no
órgãodavoz,graçaebelezanocorpo;porémmaugradoàreuniãodetãorelevan-
tespartes,oestudo,aobservação,eotrabalho,farãosomente,queaperfeiçãose
atinja.
Oórgãomaispreciosoparaoactorésemdúvidaodavoz;poisquemanifes-
tandoossentimentosqueaohomemagitam,interpretando-lheaspaixões,naalma
dosouvintesaseubel-prazerasexcitaouaplaca.–Éinútilobservarquepormuito
excelentequesejaesteórgão,jamaisdesculparáignorânciasdelinguagemeacen-
tuaçãoprosódica:–ecomoémuitodifícilreunirtodasasqualidadesdavoz,eque
aomesmotemposealardeiesonora,extensa,eflexível,émisterqueumcontínuo
exercícioadirija,egraduesemesforço,eporteorqueasintonaçõeslhedome.
Osolhosqueseincumbemdereceberimpressões,aindamaisprontosquea
voz,asdeverãotransmitir;eporissodeverãotambémnacenamostrar-seemcon-
tínuoe apropriadomovimento: – observarosde seu interlocutor, e entendê-los,
Eutinhaumasasasbrancas
-119-
sendoumaparteessencialdaarte;éumadasqualidadesessenciaisdoactorum
olharexpressivo.
Nãoétambémparadesprezarotalentodaaudição;–sujeita-seafisionomia
sempreàsimpressõesdeolhoseouvidos;emesmoinvoluntariamentetomaocor-
poaatitudequeexigemestasimpressões.–Têmalgunscómicososenãode,sem
queescutem,responderem;outrosvolvemsobreopúblicoolhos,quenuncadeve-
riamultrapassaracena;eunseoutrossemelhamentãoexercitadasmáquinas.
Sendoaimitaçãooprincipalobjectodocomediante,éclaroquesóporum
contínuotrabalhoelongohábitopoderáeleadquirirafaculdadedesetransformar
portalguisa,quedissimuleaartedessatransformação.–Equetactoadmirávelse
nãofazmisteraoactorparaadivinhar,quelheédadoumsómodelo–anatureza;
nãosemelhandoalguém,eatodosreproduzindo;desprendendoolhosefaculdades
deumasópessoaparafitá-lastodas,encontrandoemsimesmoasprincipaisfei-
çõesdessetãovariado,masimutáveltipo!…–Comorevelarsegredosdessaartede
mentircomverdade,consentindoquedescortinemosessamentiradesobosesfor-
çosparaalcançarrealidades?–Quemincumbir-sedeensinotãomaravilhoso?…
___________||_____________
V.HUGOEA.DUMASJULGADOSPELOS
CRÍTICOSINGLESESOFERECEMOSanossosleitores,comocoisadesainete,algunsextractosde
umartigodeQuarterly-Review,acercadanovíssimaliteraturadramáticadeFran-
ça,emaisparticularmentedosdoisgrandesAutoresqueaexcitaram,esustentam.
–Daraopúblicoumaamostradasideiasdosinglesesaesterespeitonãoétomar
pornossasessasideias,asquais,conquantoemalgumapartejudiciosassãogeral-
menteexpressasportalarte,queassazrevelamparcialidadenoscríticosdaGrã-
Bretanhaalémdequebemdeveatenuar-seaimpressãoquepossamcausaraor-
todoxamoraldosIngleses,easeveridadequeemseusjuízoscostumamempregar,
atentaabemmerecidareputaçãodosdoisPoetas,queelescomtantocalorimpug-
nam.
“Algunsanosháquealiteraturafrancesasedividiuemduasescolas,quefo-
ramdesignadascomasdenominaçõesdeclássica,eromântica.Osclássicosdecla-
ram-sedefensoresdaregularidadeelegantedeBoileau,Racine,eVoltaire;os ro-
mânticos quiseram imitar a independência e arrojo dos Alemães e Ingleses. Os
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-120-
clássicoseramoscatolico-romanosdaliteratura,acatandoemAristóteles,esuces-
sores,umaespéciedeautoridadepapal;masporsuaexclusivadevoçãoparacom
modelosjátãousados,tornaramridículoumsistema,que,tendooriginariamente
porbasesaverdade,eanatureza,desfiguradoseachavacomabsurdospreceitos,e
ficçõesincríveis.–PorsuaparteosromânticosbemcomoosCalvinistas,tãolonge
levaramoseudesprezodaantigaautoridade,quepretendendodespojaraescola
antigadassuas lantejoulas ,sacrificaramdevoltadelasmuitasdassuasmaisno-
bresvestes:eporfim,em1830,começaramaentregar-seàscegasatodasases-
travagânciaseimoralidadesdeumalicenciosaliberdade.–Hátodavianaliteratura,
comonareligião,certomezzotermine,quenós(Ingleses) tivemosassazdegosto
paradescobrir,eassazdejuízoparaadoptar,enquantoqueanaçãofrancesa,toda
extremos,viudividir-sesualiteraturaemclássicaeromântica,aquemelhorcha-
marias–escolapedante,eescolaextravagante;poisnessepaíspareceninguémter
emvistaoqueénatural.–Écoisaquediverte,observarospedantesboquejando
debobo a Shakespeare, e os românticos exagerando comabsurdosmonstruosos
todososdefeitosqueosantigosclássicoscondenavamnograndepoetadanature-
za…
Os autores que em seus romances, e peças de teatro mais extravagância
alardearam,obtendoporconsequênciamaiorpopularidadecomoautoresdramá-
ticosforamM.VictorHugoeAlexandreDumas:–emostramelesagradação,com
queindivíduosdemaistalentoquegosto,demaisforçaqueentendimento,tratam
deexceder-semutuamente,eatédeasiprópriosseexcederem,umavezlançados
nacarreiradavoga.
Aconcepçãodamaiorpartedosmodernosdramas(dramasfranceses)re-
velaevidente imitaçãodeShakespeare.–Aspeçashistóricasdaqueleautor,além
dasuabeleza intrínseca, sãode tanto interessepelosnomeseeventosdosanais
inglesesquejáoutrorahaviamexcitadoaemulaçãodeVoltaire;masviuestebal-
dadosseusesforçosquando intentouhelenarAdelaideDuguesclin,eoSenhorde
CoucycomotinhaafrancesadoSemiramiseOrestes.–Chenier,aproveitandooen-
sejo daRevolução, fezrepresentara sua tragédia histórica intitulada – Carlos IX,
cujaaceitação,conquantoextraordinárianãofosse,deveespecialmenteatribuir-se
aoprazerqueasturbassaboreavamvendoumreideFrançapintadocomodiosas
cores, e à analogia que uma absurda ferocidade lhes fazia achar entre esse real
Eutinhaumasasasbrancas
-121-
monstroeLuísXIV.Aindaquetodavia fossemostalentosdeCheniermaioresdo
queeramnarealidade,asregraspedantescasdoantigoteatrofrancêspornenhum
teor semoldariam à representação da vida real, emuitomenos à dos costumes
nacionais.”
PassandoafalardeV.Hugoeseuscolegas,comoaquelesquesacudiramo
jugodacríticaafimdepoderemaproximar-sedanaturezaerealidade,acoima-os
severamenteaREVISTAdenãocumpriremamissãoqueelesprópriosseimpuse-
ram,e,analisandotodasasobrasdeV.HugoeA.Dumasintentamostrarverdadei-
ra sua censura. – Ainda mais um parágrafo transladaremos para que por essa
amostrasejulguedomaisquesuprimimos.
“NasmulheresquefiguramemdezpeçasdeV.HugoeA.Dumasrepresen-
tadasemtrêsouquatroanos,contam-seoitoadúlteras,cincoprostitutasdedife-
rentesclasses,eseisvítimasd’unseducteur,dasquaisduasdãoàluzquasenace-
na;quatromãesnamoradasdeseus filhosougenros,edessesquatroconsumam
trêsocrime;–onzepessoassãoassassinadasdirectaouindirectamenteporseus
amantes;finalmenteemseisdessaspeçasosprotagonistassãobastardos,ouenjei-
tados.–Nãoolvidamosqueocrime,eaindaosmais infestoscrimestêmsempre
entrado na alçada da tragédia; esquecer não podemos as famílias de Atreu e de
Laionoteatrohistóricoemitológico,bemcomonaliteraturainglesaABelaArre-
pendida,JoannaShore,JorgeBarnwellemuitasoutraspeças;contudotiveramelas
pelamaiorparteumfimmoral;nenhumaofendeadecência,ouinflamaaspaixões
criminosas.–OquenosespantaeafligenoteatrodeFrançaé,vermosaexcepção
tornadaemummomentoregra,enãoacharmossenãotorpezacadanoite,emto-
dososteatrosdeumgrandepovocivilizado,eemtodasasobrasdeseusescritores
quandogozamdemaispopularidade:verporderradeirosemelhantespeçasrepre-
sentadascinquentaousessentavezeseaplaudidascomentusiasmo,atéqueoau-
torpelaglóriaelucroestimulado,tenhatidotempodeengendraroutrodramado
mesmogénero,oupiorainda,etc.”
MaisiapordianteoartigodeQuarterly…masquebremosnósessapesada
cadeiadegravíssimascensuras,dispensemosanossos leitoresdesapaixonadosa
sériedecoroláriosquedelapretendetiraroRedactorInglês;coroláriosquetodos
tendemadardopúblicoedosautores francesesamais funesta ideia, agoirando
mateàcivilizaçãoeliteraturadaquela–porexcelência–civilizadaeletradanação.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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–Nemtaisagoirossevãocumprindo,nem jamais terãoderealizar-se.–Oultra-
romantismosubiuemFrançaaoseumaisaltograu;masnestesúltimostemposé
visívelquantoseháelemodificado:éumaeróstatoqueimpelidopelointensíssimo
gásdainovaçãoedoprogressorápidoseelevouatéàsmaisaltasregiõesdaatmos-
feradramática,quasequeatéchegouapospô-las,eaasfixiarosaeronautas;mas
brevetractosedemorounessesubidoponto,enãotardouadescereadescer.
___________________________
AVÉSPERADENATAL
OUUMMISTÉRIODOSÉCULOXIXGrandeemisteriosoparaocatolicismoéodiadeNatal!–eanoite,queo
precede, épor tradiçãoanoitedospastores emagos,dopresépiohumilde, eda
luminosaestrela,dosvagidosdolorososdoMeninocánaterra,eledoscantosdos
anjoslánocéu.–Era,naferventeidademédia,anoitedeNatal,umanoitederadi-
antesmissas,eumanoiteemquevetustascatedraisdegranitosacudiamàsombra
oalvomantodeneve,eparaafestamísticaesplendidamenteseiluminavam.–Mas
agora!…afécerrouasníveasasas;e,dascatedraisantigasbastantesemviuvez,e
solidãosobumbrumosoventochoram,e comoabandonadas ruinas semostram
silenciosasnaNoitedeNatal!…
EentretantoanoitedeNatalé,aindaemnossaépocadecepticismo,anoite
das pastorais – religiososmistérios, que sulcando os tempos, têm sobrevivido à
tragédiaclássica;e resistido,mesmonoséculoXIX,aodramaromântico.Tinhaa
religiãoproduzidoosMistérios;areligiãono-losconservacomoumalembrança,e
umatradiçãodasantigascrençasdessasingelaépoca,emqueaartedramáticase
revestiadesimbólicosremendos,egrotescostrajes:osprincípiosdobemedomal
lutandoambos;umSantoeumDemónio,disputandocompalavrasequívocas;as
cerimóniasdeumcultorespeitadosemelhandomascaradas;avidaepaixãodeN.S.
JesusCristotraduzidasempoucodecentesquadros;aFé,aEsperança,aCaridade,
asVirtudesTeologaiseossetegrandesPecadosdançandoobscenasgigas!…–Mui-
tasvezesamorte,aprópriamorte foiparodiada: flutuante lençol lhependiados
ombros, rasgãodeensanguentado linho lhe imitava transparentesentranhas;ea
viamsobreoteatrodançardefrontedaTumba,desdentadavelhacujorostoépáli-
do, e as faces encovadas comoum sepulcro!…– Finalmente senossos irmãos ti-
Eutinhaumasasasbrancas
-123-
nhamvivas e fortes crenças, e se inclinavamsobospreceitosda fé; parodiavam
tambémerepresentavammistérios.
OMistériodonascimentodeJesusCristosechamavatambémPastoral;sem
dúvidaporcausadoimportantepapel,quedesempenhavamospastoresdeBelém.
ErapoisavésperadeNataldoanode1837.–Umnevoeiroespessoe frio
envolviacomoumlençol,umapequenavilassituadanasabasdosnivosos,eapru-
madosalcantisdaSerradaEstrela.Com todasaspressas sedirigiamsilenciosos
paraumaantiga,esombria fábrica,cujos torreõesgóticos lembramdespenhadas
torrentes;equesealçam,eflutuamvagamentenabruma,comofantasmasgigan-
tescos.Arua tortuosaemalcalçadadaescuravilaescorregavaporhúmida;eos
quepassavam,cuidariasseremfugitivassombras.Sopravaovento,egemiapelas
torres e lascadas árvores, como alma de purgatório, que anda cumprindo a sua
sentença;aneveremoinhavaemgeladapoeira:eraenfimumaverdadeiranoitede
Natal!…
–Vamos,boamãe;diziaumavozsibilante,eseca:vamos,apressemo-nos!–
quandonãochegaremosjátarde,eolugar…–Vêde!norelógiodocompadreMen-
deséjámeia-noite!
Comefeitomeia-noitesoaraatorredafreguesia…–Meia-noite?–horaso-
lene,horaemqueocorodosanjosreboalánoscéuseosmagosseprostraramsob
osbrilhantes olhosda estrela queos guiou! –Meia-noite é a horadaPastoral, é
enfimahoradecadaumsemoverimpacienteeapressado;oquenaverdadeacon-
teceuentão,poisdenadamenossetratava,queveroDiaboempessoa,eSantíssi-
maVirgem,eosSantos!…–Dissestesvós,comadreJosefa,quenãohavia lugar,–
retorquiucomindignaçãoavelhainterpelada,andandocomamaiorpressa!…Que
nãohavialugar!…Eraoquemefaltava!…AmimquesoumãedoquefezdereiHe-
rodes!Simsenhor,doreiHerodes!comoseumorriãodoirado,equefezdegolar…
Masjáogrupochegavaàtãodesejadae lentametaaodarosinoaúltima
badaladadameia-noite;enalargaescadariaencontraramdesentinelaumsoldado
doreiHerodes.
Eraosacristãoda freguesia,disfarçadodeantigoguerreiro,eencostadoa
uma enorme lança. Passaram as ilustres personagens, levando-se por um longo
corredor, onde tinham visto outros enfiar e perder-se; mas adiantando-se, uma
mortiçaluz,quebruxuleavaaolonge,serviuadirigi-las.–Umaportaseabriu,eei-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-124-
las numvasto aposento arruinado, de aspecto lúgubre, e cujas paredes húmidas
tinhamsidoparaarepresentaçãocobertasdevelhospanosdeArrás,quetambém
representavamdramasdeantigostempos.–Duaslâmpadas,queexalavamfumoe
bastantecheiro,eramameaçadasporcadarepelãodevento;alumiandovagamente
osnumerososespectadores,quecomabocaabertaconsideravamalternadamente
otecto,aslâmpadas,easflutuantestapeçariascomassuasbatalhas,carros,cava-
los,eafogueadosguerreiros!…
Serviadepanoparaesconderotabladoumacortinabrancaorladaeborda-
dacomramosdepinheiroeabetoemconcertadosfestões.Enfimumaescadacolo-
cadaaumdosladosdacenaanunciavamaosespectadoresaintençãodeestabele-
cerumacomunicaçãoentreasala,eumlugarmaiselevado;entreaterraeocéu!
Detemposatempos,parafazeresperarcompaciência,umacarantonhadesviava
umpoucoacortina;egargalhadasdoidasepateadaasaudavam:–ouviam-seas
estridentesvozes,efantásticorisodascrianças;easlâmpadas,fazendoavultaras
trevasdasala,espalhavamumnevoeirodefumosobreesteoceanodeondeantes,e
apertadasfiguras…–Mascaluda!…Láselevantaopano!…
Ergueu-se o pano; a um imenso clamor seguiu-se um profundo silêncio:
quatromeninasdevestidobranco,ecomcestinhoecajadovêmreclamaraindul-
gência do público para o espectáculo que vai começar. – Então três lindos anjos
combrancasasasdepapeltrepampelaescadaacimamencionada,ecorremsobre
cordas,cantandodivinosNatais,àimitaçãodosanjosládocéu.–EntramdepoisS.
JOSÉeaVIRGEMMARIA,edialogandofazemaopúblicoaexposiçãodapeça.
AVIRGEM,enquantodurouestediálogomuipitoresco,recolheu-seemsua-
vemodéstia,etodaruboresfoisubindoaescadaatédesaparecer.S.JOSÉficouem
cenadeclamandoebracejandoporteorassazcómico.
Aessetempoospastores,avisadospelosanjos,vinhamcorrendotodosen-
feitados,comoparaumagrandefesta,ecadaumtraziaoseutributoparaofertar:
qualumaçafatedequeijosfrescos,qualumcabazdefrutos,ouumcasalderolas,
ou ramalhetesde fresquíssimas flores: aVIRGEMtornouentãoaaparecere lhes
lançouumacordialbênção.
Entãocomeçoualevantar-sedohorizontedoteatroumaluz,figurandoser
aluminosaestreladoOriente:trêsturcoscomseusturbantesepantalonaverme-
lha,trazendocadaumsuabandejacarregadadericospresentes,caminharamgra-
Eutinhaumasasasbrancas
-125-
vementeparaaVIRGEMeajoelhandolheapresentaramoquetraziam,eseretira-
ram.
Acabaramapenasdesairquandoseviramdoisanjosdescervelozmente,di-
rigiram-se aos espectadores, e penetrando por entre eles foram apresentando a
cadaumdelesumpratodeestanhoondeseouviramsucessivamentecairmoedas
deprataecobre–esmolasdosdevotos.
Depoisdestacurtainterrupção,ouviram-seatrásdacenagritoshorríveise
inarticulados;eummonstrosacudindo férreascadeias,eduasvermelhaspontas,
seapresentouterrível.NomesmoinstanteapareceS.MIGUELsobreumtronores-
plandecente;outroanjolhepõenasmãosumadascadeiasqueomonstroagitava
convulsivamente;eoguerreirocelestefazumaprédicaaSATANÁSdepoisdeoter
castigadocomaflamejanteespada!…
OreiHerodesfilhodanossaconhecidavemcontarseuspesareseinsónias
por causa do SOBERANO recém-nascido. – Ordena logo omonarca omorticínio
geraldosinocentes,esesuicidadepoisàvistadetodos!
Baixou-seopano;eSatanás,osturcos,osanjos,S.Miguel,eaVirgemvieram
abraçarseusfilhosemaisfamília:nãoesquecendooreiHerodes,cujamãejánós
conhecemos.
Retiram-setodosfinalmente,porextremosatisfeitosdasfortesperipéciase
esplêndidasdecoraçõesdoMistériodoSantíssimoNatal.
___________________
TEATRODES.CARLOS
PARISINADevidaàcooperaçãodeF.RomanieDonizettifoiestaóperadenovoàcena
nodia18docorrenteparaodebutedo1.ºbaixoSpech.–Éumaimitaçãodopoema
deByronintitulado–Parisina,umadasmaisbelasproduçõesdograndelíricoin-
glês;erelevaconfessar,queopoetaitalianonãoquisdesmerecerdogéniosublime,
cujainspiraçãoháprocurado;poisquemuilindosversossenotamnolibreto,cujo
assuntoéoseguinte.–Azzo,Marquêsd’Este,zelosodesuaesposa,enãosemmo-
tivo;poisqueParisinaadoraum jovemeousadocavaleiro–Hugo-o-Bastardo; e
comtalextremooama,queemsonhosdeixaescaparseunome.Azzomordendo-se
decóleraeciúmeentregaorivalaocarrasco,eesserivaléseufilho,eParisinaque
ovêcaiemorreexalandomaldiçõesaoassassino.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-126-
Situações felizes e fortemente dramáticas tornamo segundo acto da peça
bastantenotávelpodendoespecializar-seoduetodeAzzoeParisinadesempenha-
do commuita expressãoemímica:masodesfechonosparece chegarumpouco
antesdoqueconvinha.Apartiçãoémuitasvezesfria,edubiamenteorquestrada.
Alémdistooferecendonãopequenonúmerodereminiscênciasdassuasobraspre-
cedentesselhereconhecemporintervalosfrasesdeRossinieBellini,aquemmui-
toquerimitar.TodaviaapeçatalvezpeloSr.Spechobteveaplauso,oquelhenão
aconteceuemPariscomMlle.Grisi,Tamburini,eLablache.
EmtalóperadebutouoSr.Spech;e se foiporescolhasuanãoa julgamos
muitofelizparanós,masespecialmenteparaele:–amúsicaforçadadaParisinase
prestademaugradoaoexercícioouvidodosdilletanti,eaobomdesejodosacto-
res;talvezporissooseudesempenhotambémnãofosseemalgumaparte,tãoca-
bal,comoseriaparadesejar.–MasvamosaoSr.Spech.
Esteactortemumavozdebassosonora,pura,bastantementeextensa,eex-
pressiva;eapesardenãolhepodermosavaliar,senãomediocrementeosseusefei-
tos,porqueoseupapelédebempoucobrilhantismo,ouvimoscomprazeroan-
dante da sua nãomuito característica ária cantado com expressão, delicadeza, e
graça:–ospianissimos forammoduladoscomperfeição,enasonoridadedaquela
vozdopeitose tornamporextremoagradáveis; finalmentenotámosumtrinado,
quenos arrebatoupela sua firme limpidez, bemsustentadobrilho eporumeco
dulcíssono, e donosamentemodificado. Cumpreporémadvertir que a vozdo Sr.
Spechconquantobastanteextensa,nospareceupoucocheiaecomalgumatenaci-
dadenaescaladosagudos.Oseumétodoépuro;masavocalizaçãonospareceu
aindanãosuficientementeexercitada,nãodomandosempreas intonações talvez
quantoeraparadesejaremespecialaquemestáafeitoaoexercitadoesuavíssimo
estilo–Coleti:–todaviaédenotarqueoSr.Spechnãoacostumadoaonossogran-
deteatro,teveporventurareceiodenãoserouvidosuficientemente;etambémé
nossaopiniãoqueamúsicadaóperaofavoreciapouco.–Sejaoquefor,denossos
receiosouesperançaso futuromelhordecidirá;masnósqueaesterespeitoafa-
gamosdepreferênciaasúltimas,contamosqueoSr.Spechaindamaisvantajosa-
mentesemostraránoutrapeça.
Se exceptuarmos oDueto com o actor jámencionado, a Sra. Barili esteve
bempoucoparaagradarestanoite.–Vacilaçãonocanto,ebastantedeslize,edesi-
Eutinhaumasasasbrancas
-127-
gualdadenosdiversostons,sobejonosmortificaram.-Todaviacumprenotar,que
os trechosquemais poderão incorrernesta censura, por issomesmoque sendo
acompanhadosdealgumpretensiosorelevoselhefizerammaissalientesosdefei-
tos,foramessesosquedeumapartedaplateiamerecerammaisdistintosaplausos.
OSr.Regolinãoépróprioparaestaspeças;porqueasuavoztempoucode
dramáticaeextensa;adespeitodepossuirqualidadesrecomendáveis.
___________
OSR.CASIMIRONumafestividadequetevelugarnodia12nafreguesiadeS.Cristóvão,ou-
vimosumaMissadacomposiçãodesseinsigneartista,quenosentranhouomaior
prazer, e admiração, e pasmo. Em verdade, di-lo-emos com franqueza, não cui-
dávamos haver no presente um géniomúsico português de tal força. A delicada
melodia, as soberbas e altivas harmonias, os grandes efeitos de instrumentação,
tudoenfimabunda,quenãofalta,nestaprodução.TenhaoSr.Casimiroestasnos-
sasexpressões,comofilhasdenossaadmiraçãoconscienciosa;poisquenãotemos
o prazer de conhecê-lo; – ostente-se sem receio, que em simuito para criminar
seria;emetaombrosàcomposiçãodeumaÓPERA;poisqueesperamossejaum
condignorivaldosgrandesmestres,especialmentealemães,cujapreexcelentees-
colatãoditosolhevemosseguir.
_________||____________
SAINETE
AESTALAGEMDOSTRÊSPINHEIROSNomêsde Janeirode1587haviano teatrod’Anversumcomediante cha-
mado Verbruggen, o qual costumava desempenhar papéis de diabo. – O teatro
d’Anvers,queentãoerasituadomuitoaquémdaPortavermelha,maispareciauma
espéciedearraialdoqueumteatro,eneleserepresentavamosmistériosdoInfer-
no e do Paraíso à luzmortiça de algumas candeias. Um frade recolleto deMons
chamadofreiPhilippeBosquiez(cujossermõesecomentáriosescritosem3volu-
mesinfolio,eimpressosemColónianoanode1620,sãodegrandeestimaçãopara
antiquários);freiPhilippeeraentãoopoetadesseteatromístico,cujosinterlocu-
toreseramnadamenosqueoPai,oFilho,eoEspíritoSanto.–OpobreVerbruggen,
comedianterafado,nadamaispossuíaqueoseuguarda-roupadediabo,consistin-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-128-
doapenasemcincovestuárioscor-de-fogoeenxofre,todosmuitobemvariegados
com suasdivisas emonogramaspróprios daquele tempo. –Dedia entretinha-se
Verbruggenemescrevercomtodooesmeroassuascogulas,empolirerepoliras
garrasbemcomoaspontas de arameenroladodestinadas a adornar-lhe aparte
anteriordacabeça;masnãoeraporumrequintedeasseiodiabólicoeinfernalque
odesgraçadosedavaatodoessetrabalho;eraanecessidadedeaquecer-se,quea
taloreduzia.Achuva,ovento,todososflagelosdaestação,tinhamentradafranca
nomiseráveltugúriodosaltimbanco;eseriambaldadososesforçosdeVerbruggen
para obter de seu director algo comque se aquentasse, porque este lho negaria
fundadonoirrevogávelaxioma–adequeosdiabosdevemsempretercalor.
Umanoite,depoisdehaverrepresentadonumsoberbodramadefreiPhili-
ppe,enoqualtinhasidoaplaudidocomomaiorentusiasmo,entrouVerbruggenna
suamesquinha habitação, em cujo lugar se eleva a estas horas a Estalagem dos
TRÊSPINHEIROS.–Osaplausosquereceberanãopodiaminfelizmentediminuir-
lheofrio;olarestavacobertodegelo,esemumatristeachadelenha;eumvento
penetranteofeztiritarquandodespiuacoguladeBelzebu.
–Inferno!bradouele(poisnessetempojáseusavaestaexclamaçãodramá-
tica,dequetantodepoissetemabusadoemcena).Osdentes lhebatiamcomtal
forçaquepareciamcastanholastocadaspordedosdecigana,easpernas lhetre-
miam,apenasprotegidasporumapobresotainaqueoventoenfunavacomoavela
deumnavio.
–PorSatanás!–continuouocoitadoolhandoparaolargeladoporSatanás.
Queroterlume!
Nomesmoinstantecaírampelachaminétrêsgrandesgalhosdepinheiro.
Verbruggenapesardoseuparentescocomodiabo,julgouqueeraprudente
benzer-se: todavia foi lançando mão de uma lanterna córnea (espécie de fogão
económicoondeele acalentavaordinariamenteosdedos inteiriçados)e sepôsa
acender a preciosa lenha; cada umdos galhos era do tamanho de uma pequena
árvore.–Eisaresinadospinheiros jácorrendoemfio,eumavivachamadispu-
tandoapossedo larao jádesfeitogelo–Verbruggen triunfava.Umaenorme fo-
gueira,umafogueirainfernal,eobomdocomedianteaaquecer-setodaanoiteà
regalada;masnaseguintenemumsótição,eomíserodesesperado.Aafliçãoem
Eutinhaumasasasbrancas
-129-
queestavalhetrouxeàbocaaspragasdocostume:chamouSatanás–elogotrês
achaspelachaminé.
Masdestavez,acompanhandoalenhaveioodiaboempessoa.
Traziavestidaumacogulavermelhacomoadoactor,asunhaseramnegras
eretorcidas,eumalanternacórnealhepejavaamãodireita.
–Eis-meaquicomquepossasterlumetodooInverno,disseodiaboaoco-
mediante.
Aomesmotempoapresentou-lheumsaquitelcheiodedobrõesemaravedis.
O comediante recuou, pois era algum tanto supersticioso; contudo foi tomando
ânimo,ecomeçouainvectivarseuirmãocomoumverdadeiroSatanás.
–Misericórdiadivina!Concluiuocómico:eaquemroubasteessedinheiro?
–AofradePhilippeBosquiez,disseodiabo;éodinheiroporqueelevendeu
o seuúltimodrama intituladoOInferno. Era justoque tendo eudadoo assunto,
participassedoslucrosdoautor.
Ocomediante continuoua fazer-segravepor algum tempo;masapertado
pelanecessidade,epeloengododeumfogoeternoestendeuamãoefoiaceitando.
Daíemdiantenuncalhefaltoulumeparaseaquecer,efoiacendendocada
noitetrêsgalhosdepinheiro,empregandosempreonúmerotrêscomoumnúme-
rosacramento.
Quando ia ao teatro evitava com o maior cuidado encontrar o frade re-
colleto; mas um dia não se lhe podendo esquivar, este lhe pediu licença para ir
aquecer-seàsuafogueira.
–Bemsabeisvós,Reverendíssimo,queumpobrecomediantecomoeunão
temlumeemcasa.
Verbruggenmentia;noseularardiajáumbomlume:aschamassereflecti-
amnasparedes,eoaromadaresinaselhedifundiaemnuvensdefumopeloapo-
sento.
Ofradelogoqueentroufezumacruzdirigindo-separaachaminé,esorriu-
se.
–QueestaisfazendofreiPhilippe?
–Asvezesdeumbomdiabo,amigoVerbruggen.Fuieuqueumanoiteaqui
vimrepresentardeSatanás:nãoteparecequesouumexcelenteactor?
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-130-
Verbruggendesfez-seemagradecimentos,esaltouaosabraçosaobomdo
frade.Poucodepoiscasou-se,edizacrónicad’Anversquetevemuitosdiabinhos;e
omaisvelhodestesfoiofundadordaestalagemconhecidadesdeentãopelonome
deESTALAGEMDOSTRÊSPINHEIROS.
CORRESPONDÊNCIARecebemosumacartadoSr.EmílioDouxpedindo-nosalgumasexplicações
acercadaDoutrinado1.ºartigoqueselêno2.ºNúmerodesteJornal:–porfaltade
espaçonãotranscrevemosaditacarta,oquefaremosnoNúmeroseguinte,prome-
tendodesdejáresponder-lheconvenientemente.
_________________________
ARTEDEAPLAUDIRNOSTEATROSPoucoounadatemmedradoentrenósaartededaraplausosnosteatros;e
adianteveremoscomonesta(eporventuraemoutrasmuitas)osmodernosestão
bemlongedelevarvantagemaosantigos.
Osaplausosdistinguem-seemRomadasaclamações,eaprincipaldiferença
consistia em serem estas últimas executadas com a voz em brados de louvor, e
aquelessemqueseproferisseumaúnicapalavra,empregando-seasmãos,ealgu-
masvezesumaabadaTogacomqueseacenava.OImperadorAurelianodistribuiu
aopovoumasfaixasprópriasparaosaplausos,evitandoassimqueastogasservis-
semparaesseefeito.Entrenósreduzem-seosaplausosàspalmas,epoucasvezes
serecorreaolençobranco:–osfrancesesfazemtambémusodaluva,doJornalde
Teatrosqueestãolendo,easdamasempregamtambémoleque,eoramalhete.
Nosteatros,circos,eanfiteatroséqueosantigosfaziamouvirmaisaclama-
çõeseaplausos;foipoisparaessasassembleiasqueaartedeaplaudirfoisujeitaa
preceitosimprescritíveis.
OsRomanos,símplicesegrosseiros,aplaudirampormuitotemposemmé-
todo;maquinalmenteseentregavamaoentusiasmoouaumaadmiraçãoirreflecti-
da,quelhesarrancavamaplausosproporcionaisàssensaçõesqueverdadeiramen-
te experimentavam. Esta simplicidade indicava os primeiros tempos de Roma,
porqueOvídiofalandodoraptodasSabinas,dizqueentãoosaplausosaindanão
estavamsujeitosanenhumaregra.
Eutinhaumasasasbrancas
-131-
Inmedioplausu,plausustuncartecarebat.
________________________
CRÓNICATEATRALFechou-seontemaSemanacomodiadobem-aventuradoS.Tomé,quetan-
tosedistinguiudetodososoutrosSantospelasuapiaincredulidade;–equedeu
origemaonossoverecrercomoS.Tomé,rifãoqueparecefeitoexpressamentepa-
raosnossosteatros,emaisaindaparaoquenelessepassounasemanafinda.–
Perguntaiàquelesquehibernam,seporestaschuvosasnoitesfossemobrigadosa
sairdecasa,equesecontentamcomtomarrepousadamenteoseuchá,ecomas
representaçõesdoseuteatrodoméstico;perguntai-lhesoquesabemelesdenovo
acercadeteatros;oqueouviramdizerdeD.Sisnando,edoCabrito,edaParisina,e
doSignorSpech,eapostoeuqueeles,comasuagordapachorra,vosresponderão:
–VerecrercomoS.Tomé.–Enaverdadesãodetalmaneiradisparatadasasopi-
niõesqueseouvemcáporfora,queumpobrehomemdeboafénãosabeparaon-
devoltar-se,equandochegaomomentodeirpresenciarosfactos,eexaminá-los
comos seusprópriosolhos, levaa cabeça tãocheiadeburundangas, ede tantas
prevençõessimultaneamentepróecontraoquevaiver,queédifícildiscriminá-las,
edeentreelastiraralimpoumsãojuízo,oudasuacombinaçãocolherumresulta-
dorazoável.–Orapois,seédifícilajuizardosteatrosaquemosfrequentaquanto
mais o será para quem se contenta como que deles lhe contam! – Ide portanto
muitasemuitasvezesaosnossos teatros, sequereisevitar talconfusão,alémde
quemisturareis assimoútil como agradável: – sabeismais enãovos enfastiais
tanto.
Sábado14deDezembro,embenefíciodoSr.Lisboa–D.SisnandoCondede
Coimbra,dramaoriginalportuguêsem3actoseemverso,peloSr. J.F.deSerpa
Pimentel–OCabritoMontês,comédiaem3actos.–DeD.Sisnandopoucodiremos
porquenosreservamosfalardelemaisdeespaçoemoutronúmero.Adistribuição
nãodeviafavorecer-lheoefeito:– jáporvezestemosobservadoqueumCómico,
porexcelentequesejanoseugénero,nãotemprivilégiodeProteuparamoldar-se
atodososcaracteresdequepretendemrevesti-lo.–ASra.Talassinãoestábemno
papeldeAdozinda,quenãorequeriatantaforçafísicaemoral,masantesmaisde-
licadatimidez.OSr.Sargedas–Osman–tambémestáforadoseuelemento,eas-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-132-
sim,quandonoúltimoactoquerdarvalentiaàsamargasexprobraçõesquefazao
Conde,se lhe fazmisterengrossaravozdeummodotão forçadoquedesvanece
todaailusão.Tambémachamosquenenhumdosactoresdeclamavaoversocom
perfeição,ficandocontudomenoslongedelaaSra.TalassieosSrs.EpifânioeVa-
nez:–nemdeveissocausarestranhezapelasmuirarasocasiõesdeseexercitarem
noversoquesetemdadonacenaportuguesa.–OTiufadonãodeveriatercantado
tanto.–AsCenasnovaseramricas,edebastanteefeito.
OCabritoMontêséumalindíssimacomédia,eospapéisdabaronesaMatilde,
e damarquesa, e do rendeiro inglês sãomuito bem desempenhados pelas Sras.
Josefina,eTalassi,epeloSr.Lisboaoqualenchederisotodososespectadores:o
novomarquês,oSr.Macedodevemostrarmaisdesembaraço,emaneirasmaiscor-
tesãs,demaneiraqueavulteadiferençaentreeleeosrústicoscomquemestátra-
tando,tantomaisdesejamosqueesteactoremendeosseusdefeitos,quantoécer-
toquesedivisanelenãopequenadisposiçãoparaaCena.
Domingo 15 – Repetiu-se omesmo espectáculo, havendo a notar, que no
dramaD.Sisnandosefizeramalgumasmodificações,especialmentenoúltimoacto.
Terça-feira17–OsIncendiários –OCabritoMontês.Dosprimeiros já falá-
mosemoutroNúmeroesóacrescentaremosqueaSra.EmíliaéumFelixextrema-
mente sensível, e exprime com verdade as comoções apaixonadas, e o delicado
timbredessejovemadolescente.
Quinta-feira19–LuísadeLigneroles,dramaem5actos.–OsDoidos–OEn-
saiod’umaTragédia.AsSras.TalassieEmília,osSrs.VitorinoeVanez,desempe-
nhamcabalmenteosseuspapéis:oúltimo,especialmenteno5.ºacto,serádifícilde
excederemnaturalidadeeverosimilhança;oSr.Vitorinofoimuitoaplaudido.
Teatro de S. Carlos –Domingo 15 deDezembro –RobertodoDiabo: – foi
comodecostume.–Segunda-feira16–NormaeosPortuguesesemTânger–nadaa
notar.
Quarta-feira18.–Parisina–OsPortuguesesemTânger.Daprimeirafalámos
emseparado.NadançanotámoscomsatisfaçãoqueoSr.Molinari tirouproveito
dacensuraquenopassadoNúmerolhefizemosacercadocombatefinal.EstePri-
meiroMímico reúneosmelhoresdotesdanatureza, os quais ajudadospela arte
muito o fazem sobressair. = Continuamos a notar a bandeira azul, que ninguém
diráserportuguesa.EstaDançatemcontinuadoaseraplaudidacomentusiasmo;a
Eutinhaumasasasbrancas
-133-
músicaéexcelente,eadetodoprimeirobailadoengraçadíssima;avistadames-
quitaégrandiosa,eaúltimacenadeslumbradesoberba.
NãoesqueceremoslouvaraSra.MorenopelodesempenhodoseuSolo.=A
Sra.SolerpormoléstianãopôdeiràCena.
Sexta-feira20.–Norma–OsPortuguesesemTânger
Porto=TeatrodeS.João=Nodia4docorrentedebutaramnaqueleteatro
duasactrizes,umadasquais–aSra.GrataNicoliniobteveosmaioresaplausosde
umnumerosoconcursodeespectadores;oSr.Gamatemparaseudebuteodrama
original português intitulado Almançor Aben-Afan. = São bem conhecidos nesta
CapitalostalentosqueaSra.GrataostentounosdramasPhilippeMauvert,Frontei-
rodeÁfrica,eoutros;eéopiniãogeralqueseestaactrizchegaraperderdetodoa
acentuaçãoepronúnciaitaliana,poderácompetircomasmelhoresdoteatropor-
tuguês. Todos conhecem o Sr. Gama pelas representações no teatro do Salitre;
consta-nosqueesteactorsetemaplicadomuitoàbelaartequeprofessa.
POST-SCRIPTUMAgora que é meia-noite saímos do Teatro Normal, onde uma brilhante e
aristocráticasociedadesetinhareunido,bordando-seoscamarotesdamaisesco-
lhidaebelacompanhia.=EraoBenefíciodoConservatórioe foinumerosíssimoo
concurso,queseapressouapatentearcomasuapresençaoquantoreconheciaa
utilidadeextremadetãoimportanteEstabelecimento.OalunodomesmoConserva-
tórioA.José,discípulodoinsignerabequistaoSr.Mazonimuitosedistinguiu,efoi
devidamenteaplaudido.=OSr.Anglois,nãohápintaraadmiração,eprazercom
queoescutámos;eosfrenéticosbravosdopúblico.
AVISOAEmpresadoTeatrodeS.Carlos,precisadetrêsprimeirossopranospara
coros;quemseacharnascircunstânciasdepreencheresteslugares,podedirigir-se
aoEscritóriodaDirecçãonaRuadoAlecrimnúmero1todososdiasdas11horas
damanhãatéàs3datarde.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-134-
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EspectáculosnasemanacorrenteTEATRODES.CARLOS.22–RobertodoDiabo.–23–Parisina–Dança–Os
PortuguesesemTânger.
26–Idem–Idem–27–Idem.
Debutaa1.ªDançarinaCarlotaDeVechiemumPas-de-deuxcomMr.Theo-
dore.23–Parisina–Dança,PortuguesesemTânger.29–RobertodoDiabo,última
noiteemquedançamnesteTeatroMlles.ClaraeAdock.
__________________________
n.º4,29deDezembrode1839.
Éhojeumdosúltimosdiasdoanode1839;anoquebempodeconsiderar-
secomooprimeiroelodeumacadeiaderepresentaçãoparaaartedramáticaem
Portugal.JáemumdosnossosanterioresNúmerosfizemosumaenumeraçãodas
peças,que,nessecurtoprazo,nosvieramenriqueceraliteratura,animaracena,e
deleitaro curiosopúblico, sempreávidodenovasproduções, e apreciador,mais
quedeoutras,dasnacionais:novasreputaçõesliterario-dramáticascomeçarama
surgireamedrareoutras,emuitas,severãoiraparecendonoporvir,porqueas
letrasvão-setornandonecessidade,eacenavaiatraindoasitodasasletras.
Aartecontudo,bemcomoanatureza,ésucessivanoseucurso,enãopode
deumsaltosalvargrandesdistâncias.–Comoseverápelodocumentoqueemse-
guida trasladamos, seis prémios foram propostos para aqueles dramas originais
portugueses que neste ano de 1839 fossem pelo Conservatório julgados dignos
dessasubidadistinção;nãopassamtodaviadequatroosquemereceramseradmi-
tidosàsprovaspúblicas,enofinaldoconcursover-se-áquaisdevemconsiderar-se
comodefinitivamentepremiadospelaconcorrênciadojuízodoConservatórioedos
votosdopúblico.
Cumpretodavialembrarquemesmoaquelesdramasquenãomerecemaúl-
timaaprovaçãojádevemconsiderar-secomoassazqualificadospelosimplesfacto
dehaveremsidojulgadosdignosdeafrontarasprovaspúblicas:–eefectivamente,
essa foiamentedos legisladores, estatuindoqueoautordeumdramaadmitido
peloConservatórioàsprovaspúblicasrecebessedoEmpresáriodoTeatroNormal
Eutinhaumasasasbrancas
-135-
aquantiade50$000reisoude36$000conformeapeçafossedetrêsacincooude
umatrêsactos:–eassimsetemcumpridocomosdramas–OEMPAREDADO–OS
DOISRENEGADOS–D.SISNANDO–eoCAMÕESDOROSSIO.
________________
INSPECÇÃOGERALDOSTEATROSJoãoBaptistad’AlmeidaGarrett,InspectorGeraldosTeatroseEspectáculos
Nacionais,porSuaMajestadeFidelíssima,queDeusoguarde,etc.etc.
FaçosaberqueemvirtudedoRealDecretode12deOutubrode1838,que
regulouaadjudicaçãodossubsídiosaoTeatroNacionalNormaldeLisboa,epela
escrituracelebradacomoEmpresáriodomesmoTeatro,ficoueleobrigadoaterà
disposiçãodoConservatórioDramáticoasomanecessáriaparaserempremiados,
nesteanode1839,seisDramasOriginaisPortugueses,aquepeloditoConservató-
riosejamadjudicadososprémios.
TrêsprémiossãodestinadosàsPeçasgrandesdetrês,oumaisactos,sejam
Tragédias,Comédias,ouDramasHistóricos.
APeçaquenestaclasseforcoroada,ouaprovadaemprimeirograu,obterá
oprémiode96$000reis.
APeçaquenestaclasseobtiveroaccessit,receberáoprémiode50$000reis.
OsoutrostrêsprémiossãodestinadosàsPeçaspequenasdeum,oudoisac-
tos.
APeçaquenestaclasseforcoroada,ouaprovadaemprimeirograu,obterá
oprémiode64$000reis.
APeçaquenestaclasseobtiveroaccessit,receberáoprémiode36$000reis.
OConcursoaestesprémiosfoireguladopelamaneiraseguinte,emConfe-
rênciageraldoConservatórioDramáticode24docorrentemêsdeFevereiro.
Artigo I. Toda aComposiçãoDramáticaquehouverde concorrer aospré-
mios,seráremetidaemsobrescritoaoInspectorGeraldosTeatros,eacompanhada
deumaCédula fechada, e lacrada separadamente, a qual deve conter o títuloda
Obra,eonomedoAutor.
§1.ºOsobrescritodaComposiçãoDramáticatrarátambémporforaotítulo
daObra,eonúmerodasfolhasdoManuscrito.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-136-
§2.ºUmnúmero,ouqualqueroutrosinal,escritoexactamentedomesmo
modo,assimnosobrescritodaPeçaDramática,comonosobrescritodaCédulafe-
chada,terádeidentificarumacomaoutra.
§3.ºOsobrescritodaPeçaDramática,depoisdeassinadopeloSecretáriodo
Conservatório,serádevolvidoaoportadorparaservirdetítulodereclamação.
Art.II.ApenasrecebidaaPeçaDramáticaoInspectorGeralreuniráoCon-
servatório,epublicamentefarátiraràsorteosnomesdetrêsJuradosdaSecçãode
Belas-Letras,osquaisemcomissãoprocederãoaoexameecensuradaObra.
Art. III. AComissão apresentarádentrodeoitodias, o seuParecer, decla-
randoseacha,ounão,naPeçacensurada,méritosuficiente,paraseradmitidaàs
provaspúblicas.
Art. IV. EntregueoParecer ao InspectorGeral, serão convidados todosos
MembrosdoJúriaexaminaroditoParecer,bemcomoaComposiçãoaqueserefe-
re;eparaesteefeitoestarãoambospatentes,porespaçodequinzedias,naSecre-
taria.
Art.V.SeduranteesteprazooAutorquiserfazeralgumasalteraçõesnoseu
Drama,deveráremetê-las,emcartafechada,aoInspectorGeral,pelomesmomodo
prescritonoArt.I.
Art.VI.Nodécimo-sextodia,depoisdaemissãodoParecersereuniráoJúri,
eemconferênciapúblicaseprocederáàleituraediscussãodele.
§.único.Fechadaadiscussãosedecidirá,porescrutíniosecreto,àplurali-
dadedevotos,seoParecerdeveounãoseraprovado.
Art.VII.ASecçãodeBelas-ArtesdoConservatóriopodetomarpartenadis-
cussão;masnãoéconvidadaavotarsobreobjectosexclusivamentedramáticos.
Art.VIII.Decidindo-sequeoDramamereceseradmitidoàsprovaspúblicas,
ouqueoficarámerecendoseoAutorsesujeitaraalgumaalteraçõesquesepro-
ponham, lançar-se-áestadeclaraçãono fimdoManuscrito, eeste será rubricado
emtodasassuasfolhaspeloSecretário.
§1.ºAPeçaassimlegitimadaseráremetidaaoEmpresáriodoTeatroNor-
malparaserrepresentada.
§2.ºOInspectorGeral,apenaslheforapresentadoosobrescrito,queserve
detítulodereclamação,lavraráneleordemaoimportadorparalheserpagapelo
Eutinhaumasasasbrancas
-137-
Empresárioaquantiadecinquentamilreis,seaPeçafordetrêsoumaisactos,ou
aquantiadetrintaeseismilreis,seaPeçafordeumoumaisactos.
Art.IX.SeaObraforrejeitada,tantooManuscrito,comoaCartafechadase-
rãoentreguesàpessoaqueapresentarotítulodereclamação.
§.único.SeoAutordeumaPeçarejeitadaaquiseremendarecorrigir,pode
voltarcomelaaoconcurso,esobreamesmaseprocederácomoseforaumanova
composição.
Art. X. O Empresário doTeatroNormal é obrigado a fazer representar as
Peçasassimadmitidas,pelomenos,trêsvezes.
§1.ºOAutorouproprietáriodaPeçanãopoderetirá-ladacena,sobpretex-
toalgum,durantetodooanocorrente.
§2.ºOAutorouproprietáriodaPeçanãotemdireitoaexigirdoEmpresário,
pelastrêsprimeirasrécitas,retribuiçãoalguma.
§3.ºEmtodasasoutrasrécitas,seashouver,sópoderáexigirosdireitosde
Autor,queordinariamentesepagamemcadanoite,seguindo-seoqueporusoge-
ralestáestabelecido,enquantoporLeinão foremreguladososreferidosdireitos
deAutor.
Art.XI.Depoisdaterceirarepresentação,oAutorfarádepositarnoConser-
vatórioumacópiafieldoseuDrama;enãoocumprindo,ficaráexcluídodoconcur-
soaquenofimdoanosetemdeproceder.
Art.XII.SeduranteosensaiosoAutorjulgarindispensávelalgumamodifi-
caçãonadistribuiçãodaspartesdoseuDrama,expô-lo-áporEscritoàInspecção
Geral, para que, sendopossível, e não contrariando as conveniências teatrais, se
satisfaçaaoseupedido.
Art.XIII.Nofimdoanocorrente,emconferênciageraldoConservatório,se
procederáàeleição,porescrutíniosecreto,deumaComissãodecincoJuradosda
SecçãodeBelas-Letras,aqualseráencarregadadeexaminarasPeçasrepresenta-
das,epropordeentreelasasquejulgardignasdatotalidadedoprémio.
§ 1.º A Comissão reconsiderará escrupulosamente o mérito das Peças, e
formaráumrelatórioemqueexponhaoefeitoquefizeramnacena,eacolhimento
quehouveramdoPúblico,asemendasoucorrecçõesqueoAutorlhestenhafeito,e
oconceitobemoumalfundadoquedelasfizeramosliteratos,ouaimprensa.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-138-
§2.ºTantooRelatório,comoasPeçasaqueelesereferir,estarãopatentes
naSecretariadoConservatório,porespaçodequinzedias,paraseremexaminadas
porqualquerMembrodoJúri.
Art.XIV.SenodecursodoanocorrenteaparecernoTeatroNormalalgum
DramaOriginal,dequalquergénero,que,semtersidopreviamentesubmetidoao
juízo do Conservatório, obtenhamanifesto aplauso, e favor público, o Inspector
GeralfarásobreissoRelatóriocircunstanciado,que,comareferidaPeça,ouPeças,
seráentregueàComissãodoscinco,dequetrataoArt.XIII,parahaveremdeser
porelaconsideradas,eexaminadas,comosetivessempassadopelojuízoprévioda
Comissãodostrês.
§.único.EnãohavendojáàdisposiçãodoConservatórioasomanecessária
parasatisfazeraoprémioqueestaPeça,ouPeças,sejulguemerecem,seráodito
prémiosatisfeitopeloprimeirodinheirodoanoseguinte.
Art.XV.Nodécimo-sextodiadepoisdaemissãodoParecerdaComissãodos
cinco,seconvocaráoJúriparaserlidoediscutidooditoParecer,eseaprovarou
alterar,segundofordecididopelamaioriadosvotos.
§.1.ºConcluídaestaúltimavotação,seprocederáemactocontínuoàaber-
tura das Cédulas, e serão proclamados os nomes dosAutores cujas Peças foram
coroadas,ouobtiveramoaccessit.
§.2.ºAosAutoresdasPeçascoroadas,ouàspessoasaquemeles,porqual-
quermodo,tenhamtransferidoseusdireitos,seentregaráordemparareceberem
doEmpresárioasomacomplementardoprimeiroprémio.
Portanto,douporabertooConcursoaosreferidosprémios.Eparaqueche-
guemestasdisposições ao conhecimentodequemconvier, se afixaráopresente
nasportasdoConservatório,eseráinsertonoDiáriodoGoverno.
Lisboa,eInspecçãoGeraldosTeatroseEspectáculosNacionais,26deFeve-
reirode1839.=(Assinado)JoãoBaptistadeAlmeidaGarrett.=Estáconforme=O
Secretário,RodrigoJosédeLimaFelner.
____________________
Eutinhaumasasasbrancas
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EXTRACTODASESSÃODOCONSERVATÓRIODE
DOMINGO22DOCORRENTEAbriu-seaSessãonavoltadomeio-dia,efeitaachamada,acharam-sepre-
sentes26membrosefectivosdoConservatório.–Foilida,eaprovadacomligeiras
emendasderedacçãoaactadaSessãoantecedente.
OSr.PresidentedeupartedequeSuaMajestadeEL-REID.FERNANDOSe
DignaraaceitaraPRESIDÊNCIAdoConservatório,que,emconsequênciadareso-
luçãounânimeadoptadanaSessãoprecedente,foraoferecidaaSuaMajestade.
–OSr.PresidentedeclarouqueSuaMajestadeoencarregaraaelePresiden-
tedefazerassuasvezesenquantoomesmoAugustoSenhornãovinhapreencher
asfunçõesdoCargoquelheforaofertado,eAceitara.
Propôs em seguida S. Exa. que se votassemagradecimentos aosmembros
do Conservatório que tinham executado várias peças demúsica no Benefício do
mesmonoTeatroNormalNacional,equesefizessehonrosaeespecialmençãodo
obséquioprestadoaoConservatórionoreferidoBenefíciopelomuitodistintoar-
tistaoSr.Langlois.Assimseresolveu,igualmenteporaclamação,queoSr.Langlois
fosseconsideradodesdeestediamembrodeméritodoConservatório.
Tratou-seseguidamentedoprovimentodolugardeSubstitutodoProfessor
daAuladeDança,esaíramsorteadosparaasuaadjudicaçãoosSrs.AntónioPorto,
CésarPerini,J.F.d’AssiseAndrade,AlexandreHerculano,LuísMontani,AugustoF.de
Castilho,D.JoséM.C.deLacerda.Nãosehaviaapresentadonenhumoutroconcor-
renteaolugaraproversenãoaSra.MORENO.–AcomissãodoJúriretirou-separa
deliberar,epassadosvinteminutosvoltoucomaresoluçãoafirmativa,segundoa
qualdeclaravaaSra.MORENOnascircunstânciasdeserpropostaaSuaMajestade
paraolugaraqueconcorrera.
OSr.PresidenteponderouentãoaoConservatórioqueemconformidadeda
lei,naquelaSessãodeveriaproceder-seaojulgamentodefinitivodaspeçasdramá-
ticasapremiar,equenodecursodoanohaviamsidoadmitidasàsprovaspúblicas.
Acrescentouporémquelhepareciaquenãoseachavapresenteumnúmeroassaz
consideráveldemembrosdoConservatório,equeporissojulgavaserconveniente
queficasseestenegócioparasertratadonaseguinteSessão.Assimsedecidiu.
Suscitou-seumabrevediscussãoacercadomododeresolveroparecerda
comissãosobreastrêspropostasoferecidasparaaempresadoTeatrodeS. João
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-140-
doPorto,queeraoobjectodequeprincipalmente sedevia tomarconhecimento
nestaSessão.TomarampartenadiscussãoosSrs.Leal,Lacerdaed’AssiseAndrade.
OSr.Presidentepropôsentão–SeporventurasedevianomearumaComissãodo
JúriparaexaminaroparecerdaComissãopermanenteencarregadadoexamedo
cumprimentodasestipulaçõesdosTeatrosnacionais&c.?-Resolveu-sequesim.
Propôsmais–SeosmembrosdaComissãopermanentedeviamfazerparte
danovacomissão?–Resolveu-sequenão.
Propôsenfim–Seorelatordaquelacomissão,oSr.Lacerda,deviaconcorrer
àcomissãoquevinhadesernomeadaparadarquaisqueresclarecimentosquese
houvessempor necessários;eseosproponentesalideviamserchamados,a fim
deseremouvidosarespeitodoqueaComissãoentendesseoportuno?–Resolve-
ram-seafirmativamenteambasaspartesdestequesito.
Procedeu-sedeseguidaaoSorteamentodosmembrosdaComissão,quese
concordarafossede5membros,eforamnomeadososSrs.Castilho(António),Ma-
nuelInocênciodosSantos,J.F.d’AssiseAndrade,CésarPerini,eManoelJ.dosSantos.
–AComissãoretirou-separadeliberar,eoSr.PresidentesuspendeuaSessãopelas
2horaseumquarto.
Porvoltadas4horasvoltouaComissão,trazendoprontososseustrabalhos,
e progrediu a Sessão, lendo o Presidente da Comissão, o Sr. Assis o parecer da
mesma,oqualsereduziaaqueseadoptasseoparecerdaComissãopermanente
comasnovasdeclaraçõesfeitaspelosproponentes.AComissãopermanenteanali-
sava no seu parecer as três propostas que haviam concorrido, e preferia às da
companhiaFonseca, eda companhiaLombardi, adaSociedadeCarradori por ser
maisvantajosaparaopúblicoeparaoConservatório.ExigiacontudoaComissão
permanentealgumasdeclarações,eorepresentantedaSociedadeCarradoria to-
daselassesujeitou,comopreviamentetinhadeclarado.Orepresentantedacom-
panhia Lombardi, em consequência de explicações que se lhe pediram, declarou
quesesujeitariaàsmesmascondições,demodoqueasduaspropostasseacharam
emidentidadedecircunstâncias.
Excitou-sealgumadiscussãoacercadomodode resolveronegócio,oque
deulugaraváriasreflexõesdosSrs.Castilho,J.Jordani,LealeLacerda,observando
esteSr.entreoutascoisasograveinconvenientedeouvirosproponentesnoacto
de se resolveremaspropostas, pois da lei vinha especialmente a dificuldade em
Eutinhaumasasasbrancas
-141-
queoConservatórioseachava.DepoisdediversasreflexõesoSr.Lacerdalembrou
queseriatalvezconvenienteremeteradecisãodefinitivadestenegócioaoGoverno,
relatando-se-lhecommiudezaoestadodaquestão.Estalembrançafoigeralmente
apoiada,efazendooSr.PresidenteapropostanestesentidoaoConservatório,as-
simseresolveu.
OSr.PresidentelevantouaSessãoeramquasecincohorasdatarde.
___________________
DAARTE
(FRAGMENTOS)
IEmumatardedeestio,àhoradaluzincertaesaudosa,queextremaodiada
noite,quandoumaaragemfrescasussurrasuavementepelomatorasteirodacam-
pina,ouvia-seaindaogemerdosferidos,eoarrancodosmoribundosnosplainos
deAljubarrota.Pelejara-senessediaabatalhadaliberdadedestaterraportuguesa.
Umsoldado,comasarmasrotasetintasemsangue,estavaempévoltadoparao
ocidente,ondeosoldeixava,sumindo-se,umalongafaixavermelha.Olhavaparalá
fito, como senamajestadedo crepúsculohouvesseumaharmonia comoque se
passavanasuaalma.Derepentecruzouosbraçoscomânsia,comoquemretinhao
coração.Osavambraçosdaarmaduratiravamumsomprofundodassolhasdefer-
roquelhecobriamopeito;epelasfacesescoaram-lheduaslágrimas,daquelas,que,
a tais horas, em campinadeserta, ouno cimodemontanha selvosa,mais de um
poetatemderramado,ecujalembrançaeleguardacomciúmenotesourodassuas
recordações.
EstesoldadoeraAFONSODOMINGUESo futuroarquitectodaBatalha,em
cujamentedeArtistacomeçavaaavultaraconcepçãodaquelereidosmonumen-
tos,aoescutarobradodaconsciência,quelhedizia:
Poetadomármore,ouvisteantesdapelejaovotodoMestred’Avis?Ergue-
te!–quetepedeoseumonumentoaglóriadapátria.Oteunomenãomorrerá!-
FoidiantedaimagemidealdotemplodeSantaMaria,eimpelidopelopen-
samentodaglórianacional,queobomsoldadodeAljubarrotaapertoucomânsiao
peito,edeixou fugirem-lheduas lágrimaspelas faces,ondebatia,porentresom-
bras,aluzavermelhadaefrouxadoúltimoclarãododia.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-142-
___________________
…Eraumaposentogótico.Porumafrestapontiaguda,eestreita,masalta,
osraiosdosoldomeio-dia,coadosporumcendal,quetomavatodoovãodafresta,
vinhamalumiarcombrandaclaridadeumatelaalvacentaqueestavaretesadaso-
bre um cavalete. Ao pé via-se uma paleta e alguns pincéis espalhados sobre um
bufetedelavorbárbaro,segundoasregrasimprescritíveisdamarcenariaclássica;
istoé,esculpidodebestiães,ecomospéstorneadosemespiral.Aoladodoaposen-
tosobreumaespéciedealtarestavaumcrucifixo,ediantedeleumvultodejoelhos,
queorava,equeexclamouporfim,comoacentodeconvicçãoprofunda:
–Jesus,Jesus,tuésoVerbo!–tuésaSabedoria!Aciênciahumana,compa-
radacoma tua, émaisescuraqueas trevas,maismesquinhaquea sortedeum
condenado.–
Depoisohomemergueu-se;pegounapaletaenospincéis,ecomeçouapin-
tarnatelaretesadaealvacenta.
Era o GRÃO-VASCO, que principiava a sua obra divina:OMeninoentreos
Doutores.
___________________
AindahojeemMacausevêcertagruta,ondeumcavaleiroportuguêscos-
tumavapassarhorasinteiras.Quefaziaeleali,sozinho?–Nãoosabiaovulgo;mas
sabia-oDeus:–sabem-nohojeosquecomelenasceramparacrer,eamar,epade-
cer,esofrer,e legaràposteridadeumapequenapartedasuavida íntima,umou
doissonsdasmelodiasdocéu.Quefaziaaliocavaleiro?Curtiaamarguraesauda-
des.Aimagemdapátriavia-asurgirpoucoapouco;eabraçava-secomestasom-
bra,quetantoamou.Entãoasprocelasdasuaalmaserenavam;eelerepetiauma
estrofedoseu largohinoda terranatal.Depoisvinhaanoite,ea tempestadede
agoniasdenovolheentenebreciaocoração.
Este cavaleiro eraumpobre soldado,pornomeLUÍSDECAMÕESque fez
umlivrodetrovas.Ninguémoconheceuentãosenãooutropobrehomem,chama-
doDiogodoCouto.Veioàcorte:nãohouvequemfizessecasodele.TambémLisboa
abundava nesse tempo em espíritos bem nascidos, poetas que vós conheceis de
nome, ou nem de nome. O trovador sumiu-se nomeio do esplendor das glórias
contemporâneas,e–comoeradejustiçaliterária–morreusobreaenxergafétida
deumhospital.
Eutinhaumasasasbrancas
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___________________
MasquefaziaAfonsoDomingues,traçandonamenteodesenhodaBatalha?
QuefaziaoGrão-Vascoquandocombinavasobreatelaostraçosdoseupincelvi-
goroso?QuefaziaLuísdeCamões,rimandonagrutadeMacauasestrofesdosLu-
síadas?
Eramtrêspoetasarrebatados,cadaumporseupensamento.Eramtrêsho-
mensquecriam.
ComoosantigosprofetascediamàvozdeDeus,quandonomeiodopovo
trovejavamameaçasdevingança;comoomártirdosprimeirosséculosdoCristia-
nismo, arrastadoporuma convicção íntima, dava testemunhodoVerbo entre as
doresdosuplício;assimopoetadomármore,opoetadatela,opoetadalinguagem
rítmica, cediamaumpensamentopoderoso,queos constrangiaa revelarempor
viadeexpressõessensíveisoqueexistiasónassuasinteligências.
_________________
IISim! – A arte consiste em trespassar fragmentos do mundo ideal para o
mundo real. Omister do artista é dizer àsmultidões: – Vede as existências que
Deuslançounomeuespírito;existênciasque,ounãoasháentrevós,ouque,seas
comparardes com as que vos rodeiam, são gigantes, quer no bem, quer nomal;
quernobelo,quernodisforme;quernosuave,quernoterrível.Examinaiseháaí
nasdaterraasdimensõesouaintensidadedasqueestavamescondidasnosseios
daminhainteligência.Omeuuniversoseráoquepovoamosanjos;seráoqueha-
bitamosdemónios;será,sequiserdes,umsonhodefebricitante;masnãoé,decer-
to,omundoemquevósvosarrastais.Omeuuniversoéimenso,nassuasindividu-
alidades,nassuascombinações,nassuasharmonias.
–Aquelequepodeesabedizeristo,demodoqueasturbasocompreendam,
équemverdadeiramentesedevechamarpoeta,ou,commaisexacção,artista.
Osubstratumdaarteéumsó:oideal.Assuasexpressõeséquesãovárias:–
asformas.
Há,pois,emcadaobraartísticatrêselementosdistintos,e todavia insepa-
ráveis:–oideal–opoeta–aforma.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Dá-lheoprimeiroasubstância;osegundoascondiçõesabsolutas;aterceira
ascondiçõesrelativas,dependentesdomundomaterial.Oidealéomistério;opoe-
taéovidente;aformaéarevelaçãoescrita.
OspedantesdafilosofiadisseramàTrindadedoEvangelho:–Mentira!–Os
pedantesdaspoéticasdirãoàminhatrindade:–Anátema!
EtodaviaoEvangelhofalavaverdade.
_________________
IIIQuemprimeirodisse,queohomeméumforagidodaterra,pôsodedoso-
breaúlceramaisdolorosadestecorpomoral,chamadoogénerohumano.Àforça
desetornartrivial,estaverdadeeterna,queresumetodooespíritodoCristianis-
mo,deixoudeoserparamuitos.Daínasceuomaterialismo.Masasublimefilosofia
dobarro,edapodridãopassou;porqueeradebarroepodridão,eahumildever-
dadedoNazareno,porqueeraeterna,tornouafecharnamãooscoraçõesdosho-
mens.Daíocaráctergraveesolenedaliteraturaactual;daíodesprezodavida;daí
asgalasdeque,paratantos,pareceamortevestir-se;daí,até,asexagerações,que
sãoinevitáveis,quandoosânimosdesandamnacarreiraporqueseatiravam.
Qualéaqueleque,sentado,pornoitedeluareserena,sobreumafragama-
rinha,nãosenteirem-se-lheosolhosapósessegrandevultodaságuas,trémulase
prateadas,oupelassolidõesprofundasdofirmamento,onde,largo,emrodadaluz,
cintilammilharesdeestrelas, todasderramadaseperdidasna imensidadedoes-
paço,queécomoumátomo,sumidonoseiodeDeus?Quementãonãocrê,como
na vida jamais creu? Quem então não ama como nunca amou? Quem então não
sentequeestánofundodeumcalabouço,deondedivisaacustoaconsoladoraluz
doSol?Quemnãodeixaentãoescorregarpelasfacesalgumaslágrimas,enãoso-
nhaummundomelhor?Quemnãosoltaentão,umgemidodesaudadeangustiada,
enãodizaoSenhor:–MeuDeus,meuDeus!–dá-meapátria,queeuvi;porqueéa
minhapátria?
Emtalmomentoohomemcrê–espera–ebendizosepulcro.
Estavida,sonhadapeloqueescutaosilênciodanoite,éumapartedomun-
doidealdopoeta;–epoetaserásobreafragamarinhatodoaquelequetivercora-
çãoparaamar,eentendimentoparacrer.
Eutinhaumasasasbrancas
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Apátria,porém,queenxergámos,quandonasolidãoestivemosa sóscom
Deus,éadaesperança–éoCéu.AharpadoPsalmista,oudeLamartine,arevela.
Maso idealdopoetaaindaémaisamploqueocéu.Asalturaseoabismosãoas
fronteiras dele; nomeio estão todos os universos possíveis. Este é o império do
génio.
Daí arrancou AFONSO DOMINGUES o seu templo, o GRÃO-VASCO o seu
quadro,CAMÕESoseuhinoeterno.Edepoiscadaumdostrêsartistasdeitou-seno
leitododerradeirorepouso.Foramtrêsbênçãoscelestes,quealegraramaterra.
_________________
HojeninguémsabecomcertezaondeéquejazemascinzasdostrêsHome-
rosdaarteportuguesa.Muitossabemondeéquerepousamosrestosdemilno-
bresabastados,quenasceram–comeram–emorreram!
Pazsejacomosossosdeles.
Façamos,porém,umcortenoâmbitodomundo ideal.Ogloboemquevi-
vemos,colocou-odapartedeforaamãodaProvidência.
Amen!
___________________
IVUmpensamentodominante,eocrerfortementesãoascondiçõessubjecti-
vaseabsolutasdacomposiçãoartística.Estaspõe-nasopoeta.
A arte, comodissemos, nadamais é queo vazarmos emmoldes sensíveis
inspiraçõesdecima.Opoeta,querescrevanopapel,quernomármore,quernatela,
quernascordasdeumaharpa,énacadeiadosentesoanelqueuneocéucoma
terra,oidealcomoreal,oespíritocomamatéria.Daínasceaunidadenasobrasda
arte;nãoaunidadeineptaeimpertinentedeAristóteles,edospoetasdearcádiase
academias;masaunidadedopensamento,aunidadequevemporcondiçãoabso-
lutadamentedoartista,aunidadequeresultadasíntesedoideal,antesdeesteser
reveladopelaexpressãomaterial; aunidade,enfim,queopoetanãocalcula,que
lhe sai da inteligência, espontânea, inteira, perfeita, comoMinerva da cabeça de
Júpiter.
Éestepensamento,estaunidade,quecorreeseencarnaportodososmem-
brosdaobraartística,equeserveparaexplicá-la:–éoverbodela,asuarazãode
existência.Odrama,apintura,opoema,nãoéumfacto;éumaideia,queasmulti-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-146-
dõessentem,masnãopercebem,equeosfazedoresdepoéticasedecríticasnem
sentem, nem percebem. Esta ideia ressumbra na primeira estrofe do poema, na
primeiraharmoniadapeça,música,noprimeirovultodoquadro,etransfunde-se
portodaacomposição,eliga-a,econverte-aemumasó.
Crer é a outra condição absoluta da arte. Forçoso é que o poeta creia no
pensamento, queo agita, e no ideal, onde temde ir buscarumcertonúmerode
existências, análogas a esse pensamento, e que valham a representá-lo, quando
desceremaomundopositivo,expressasnalinguagem,queestepodeentender–as
formas.AqueleaquemDeusnãodespartiuogéniodeartistavivena terra,vê-a,
palpa-a,emorre;masopoetavivetambém,evê,epalpa,nãosóomundopequeni-
noemorto,ecobertodeúlcerasdospolíticos,edosvereadores,edosbufarinhei-
rosdemonumentosalfabetados,masaindamaisvezesoideal,ondeháotipope-
reneecompletodequeorealapenaséimagemgrosseira,eenfezada,eraquítica.O
ideal,todavia,nãoovêemosolhos,vê-oainteligência;é,pois,necessáriocrernele.
Oidealnãoodemonstraarazão;narra-oaconsciência.Quandooartistaduvidasse
dessemundo,queDeuscriouparaele–enasuaplenitudesóparaele,nessemes-
moinstantedeixariadeserartista,epoderiaircomprarvotosparaeleitor,depu-
tado,ouprofessordaPolitécnica.
Umpensamentodominante,evivamentecrido,éoqueconstitui,repetimo-
lo,aunidadedaobradearte.Todasasmaispodememcertoscasossercondições
formaisouobjectivas;mascomosubjectivaseabsolutas,sãoumsonhoabsurdo.
Quereisaunidade?–Buscai-anospoemasdostrêspríncipesdaarteportu-
guesa;buscai-anaBatalha,noMeninoentreosDoutores,nosLusíadas.
__________________
VQueconcepçãoháaíqueigualeadeSantaMariadaVitória,livroimenso,li-
vrodemármore,ondeestáescritaapoesiadeumageraçãointeira?Bela,comoos
temposquedescreve, é essa larga epopeiade João I, quenosdeixaramFERNÃO
LOPESeAZURARA;masseacompararmosàdeAfonsoDomingues,àepopeiada
Batalha,comoelaficapálidaemorta!Queéacrónicadepalavrasaopédacrónica
depedra?Parecequeaindahojerestrugenosnossosouvidosobaterdasespadas
portuguesasnoselmoscastelhanos;parecequeaindahojereboanosaresoestou-
Eutinhaumasasasbrancas
-147-
rardasportasdeCeuta, e relampejamas centelhasde ferrospolidosdas lanças,
enristadasemcombatedodécimoquintoséculo;parecequeaindaretumbampor
nossosmaresdesertososbradosdosgaleotesdasnaus,queentãoosaravam.Tudo
issoseagita,efala,eviveaoredordenós,quandoacabamosdeleraescriturado
patriarcadanossahistóriaedoseucontinuador.
MasseolhaisparaaBatalha,entãoéquesentiuqueoarquitectopodeoque
nãopuderamospoetas-cronistas.Embreveespaçoencerraoedifícioumséculo.
Esteestáaí todoporqueaí estáo seuespírito,o seupensamento, a suaunidade
moral–ocrernaglóriaeemDeus.OscavaleirosdeJoãoIcreram.Eisoquenosdiz
a Batalha. E estas poucas palavras, cuja significação é imensa, estão escritas em
cadapanodomuro,emcadafrestaesguia,emcadacoluna,emcadaarcopontiagu-
do,cujovérticeoartistaatirouparaosarescomoumsuspirodeproscrito,arre-
messadoporcimadooceanoparaaspraiasdapátria.CreréavitóriadeAljubarro-
ta,éadefensãodeLisboa,éaconquistadeCeuta;eomosteirodaBatalhaéaex-
pressãosensível,otipoaparentedesseverboíntimodaqueleshomensgenerosos
dosfinsdoséculocatorze,que,segundorezamvelhascrónicas,parecequeforam
nossosavós.
Opensamentoeradetodaumageração.Ogénioqueoreveloufoiumsó.Cá
naterra,chamavam-lheAfonsoDomingues,omestreimaginador.
________________
Quequadroéesse,queaíestá,obradeverdadeiropintor,ricodecores,de
harmonias, de posturas escolhidas com inteligência, de impressões, tanto para a
almadoartista,comoparaasdovulgo?ÉoMeninoentreosDoutoresdoCamõesda
pintura,dovelhoVasco;éumprofetaentreossaduceuseosfariseus,oprecursor
clamandonasolidão,umoásisnoareal,umpoetaemacademia.Jesus,aindainfan-
te,pelejacomossábiosdalei,aniquila-lhesosargumentos,emudece-os,convence-
os,desespera-os.Tudoissodizoquadroaquemtiverolhosparaver,coraçãopara
sentir, entendimento para perceber.Mas diz somente isto? –Não. Ao artista diz
queháaíemcadaposturademembros,emcadagesto,emcadarugadessamulti-
dãodefrontesexpressivas,umpensamentodepoeta:–onadadosaberhumano
anteaciênciadeDeus,expressonalutadasduassabedorias.
___________________
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-148-
AbriosLusíadas;vedeoprimeiro,oquinto,oúltimocanto;aprimeiraoua
últimaestânciadequalquerdeles,oudequalqueroutro.Quepensamentoachaislá,
embebidoemcadaverso,emcadafrasedodivinopoemadobomsoldadodaÁfrica
e da Índia! A glória da pátria. É esse pensamento, que lança nomesmo cadinho
poéticofaçanhaspassadasdeAfonsoHenriquesefaçanhaspressupostasdeSebas-
tião;ousadiasdosdeInglaterra,edosdescobridoresdaÍndia;AljubarrotaeSala-
do;InêseMaria;EgasMonizeMartimdeFreitas;VascodaGamaeAdamastor:não
comoforamnahistória,mascomoCamõesosviunasuaidealidadedepoeta.Gló-
riasdovelhoPortugalaíestãotodas;maciças,vivas;masidealizadas.Equedizem
láosentendedores,oscarpinteirosdaspoéticas?Quedizemaregra,ocompasso,o
cortamão,onível?
“Queopoemanãotemunidadedeacção…”
Épena!
“EqueAristóteles,eHorácioeVida,eBoileau,eopadreFreire…”
Beatipauperesspiritu!
__________________
VIAgoraquereisvóssaberqualfoiafilosofiadacríticaliteráriaeartísticadu-
rantedoismilanos?–Dir-vo-lo-ei.
UmdiaAristóteleslembrou-sedefazerumlivrosobrealgumobjectodeque
nãoentendesse.Pegounocálamoeescreveu:
PoexiPihxicsx
Depois,comodizumseucomentador,foiestudaraartenossaraus,banque-
tesetertúliasdeAtenas.Olugareraomaisaptopossível.Lá,nofundodeumodre
ounasvisagensdeum truão, achouadefiniçãodaarte: veiopara casa, e lançou
sobreopapiroumapalavrafatal:
Mimhsia!
AGréciabaixouacabeça,erespondeu!Mimhsia!
Edepoisveioumpoetaromano,cujasnobresinspiraçõestinhamchegadoà
alturadastabernasedoslupanares,eescreveuunspoucosdeversosdesordena-
dos,queaprouveaoscríticoschamar–Arte-poética.Estesversosassentariamso-
breapalavradeAristóteles.Debaixodacervizcavalar,edourinol,edosguisados
Eutinhaumasasasbrancas
-149-
antropófagosdeAtreu,edonariztorto,edassanguessugasdeHorácio,estavaes-
critaessapalavrafatal.
ERomabaixouacabeçaàvozdopoetadasânforasedasprostitutas,eres-
pondeu:Imitatio!
Quando,nosprincípiosdoséculodezasseisrenasceualiteraturagrega,ro-
manaepagã,emorreuada idademédia,nacionalecristã,bradaramoseruditos
emgrego,emlatim,emportuguês;eemtodasaslínguasdaEuropa:
–Aarteéaimitaçãodanatureza.
Esteaxiomarepetiu-seatéaosnossosdias.
Está,portantodemonstradoqueoParthenondeAtenas,oColiseudeRoma,
asPirâmidesdoEgipto,oscantosdeTirteu,osdeuses,osheróis,oscentauros,as
sereiasdeHomero,asbolgiaseoUgolinodeDante,osarabescosdeAlhambra,edo
Vaticano,asfadaseosgiganteseosgrifosdeAriosto,foramimitaçõesdanatureza.
Aristótelesláestábradandodotopodedoismilanos:
Mimhsia!
Abraçadascomopostealtíssimoemqueotempoempalouopobrefilósofo,
asacademias,eescolasrespondemcádebaixo:Imitação!
SeDeusdesseaestagenteafaculdadedepensar,aomenoscincominutos
pordia,eramaisumactodasuainfinitamisericórdia.
___________________
Paraaoutravezasformasdearte.
A’paideutus
CRÓNICATEATRALPoucointeresse,ouantespoucanovidadeofereceramosnossosteatrosdu-
ranteapassadasemana.–NoTeatroNormalfoinovamenteàcenaoSINEIRODES.
PAULO sendo o papel doMédicoAlbinus desempenhado pelo Sr. Viana, que em
tendomaisdesembaraço, e chegandoaadquirirmais fácil enatural gesticulação
seráumactordevalia;émuitomoçoeassaznoviçonotablado,eosmuitosdefei-
tosquepororase lhenotamnãoodevemdescoroçoar,poisqueapardelesbri-
lhamboasqualidades,eestasseaperfeiçoamenquantoaquelesseperdem.Conti-
nuaessebelodramaaseraplaudido.–NafarsaOSDOIDOS,mostraram-seosacto-
resmenospossuídosdosseuscaracteresdoquenasoutrasvezes.–LUÍSADELIG-
NEROLEScontinuacomboafortuna.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-150-
No TEATRO DE S. CARLOS debutou sexta-feira a 1.ª Dançarina a signora
CARLOTADEVECHI emumpas-de-deux comMr. THEODORE. –Não emitiremos
aindaumaopiniãodecisivaacercadoméritodestaartista:–umdebutenãoésufi-
ciente,nãoépróprioparadelecolherumconceito,pareceu-noscontudoqueaSra.
DE VECHI não é dançarina de prima forza, e que não professa o delicado gosto
francês,masoitaliano.
___________________
Nas lojasseguintesseachaàvendaoJORNALDOCONSERVATÓRIO,enas
mesmasserecebemassinaturas.
ViúvaHenriques,RuaAugustan.º1
Bordalo,RuadosCapelistas
RuadaPratan.º109
Assinaturaportrimestre------400rs.
Avulso------------------------------40rs.
________________________________________________________________
ESPECTÁCULOS
DaSemanaCorrenteTEATRONORMAL
Domingo:Drama–OS16Anos;Comédia–OEnredador=Ensaiodeuma
Tragédia.
3.ª-feira:Drama–OsDoisRenegados;Comédia–OsDoidos.
4.ªe5.ª-feira:Drama–OCamõesdoRossio;Comédia–OBomAmigo.
TEATRODES.CARLOS
Domingo: Óperas – Roberto do Diabo; Danças – Entram pela última vez
Mlles.ClaraeAdock.
2.ª,4.ªe5.ª-feira:Ópera–Parisina;Dança–PortuguesesemTângereentra
pelaúltimavezMr.Theodore.
__________________________
Eutinhaumasasasbrancas
-151-
n.º5,de5deJaneirode1840.
OCAMÕESDOROSSIO
COMÉDIAORIGINALPORTUGUESA
EMTRÊSACTOS
PeloSr.FeijóQuarta-feira 1.º do corrente, emBenefício da Sra. CarlotaTalassi, foi pela
primeiravezàcenaanovaComédia–OCAMÕESDOROSSIO–aqualhaviasido
peloCONSERVATÓRIOadmitidaàsProvasPúblicasemConferênciado1.ºdeDe-
zembropassado.
ÉestaaprimeiraCOMÉDIApropriamentedita,OriginalPortuguesa,quese
temrepresentadononossoTeatroNormal,e,quandooutrasahouvessemprece-
dido,temoscomodecerteza,quemereceriaelaoprimeirolugarentretodas.Muito
hásemprequedizerquandoumaproduçãonãoéboa;osdefeitossãovastaarena
paraqualquerescritor,ecomodeunssegeraordinariamenteumacompridasérie
deoutrosdefeitos,oassuntoéquaseinterminável.Époisbemdemisériahumana,
que emobjectosquedemandam louvores, não sejadadoao coração expandir-se
como deseja, vendo-se coibido a exprimir seus sentimentos com uns poucos de
usadossuperlativos,taiscomo–ÓPTIMO,BELÍSSIMO&c.…etodaviaessesmes-
mostemosnósdeaplicarànovaComédia–OCAMÕESDOROSSIO.
Maiordoquepareceàprimeiravistaéadificuldadequeofereceacomposi-
çãodeumaboaComédia.Obelo,ogrande,oideal,oapaixonado,opoético,nãoos
podeoautorempregarnasuaObra;equelherestapoisparaexcitaraatençãodo
espectador,paralhemoverointeresse,paralheagradar,efinalmenteparacaptar-
lheosaplausos?Osrecursosdoespírito:–masquesãoelesaopédosmovimentos
docoração?–Oscostumespositivosdasociedade,eosseusridículos.–Eoquesão
eles,seoscomparaisaopatético,aosublime,aoinsólitodaspaixões?…Finalmente
aComédiaéaprosadavida;oDramaapoesiadaalma:–equalterámaisrecur-
sos?…
Épois o CAMÕESDOROSSIOuma lindaComédia de costumes, oumelhor
talvezANEDÓTICA;oenredoétrançadocomamaiornaturalidade,eestalherele-
vamuitomais a graçaem todososmuitospassosverdadeiramente cómicosque
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-152-
nelasenotam:sóacustoéqueresistimosaodesejoquetínhamosdecontarmiu-
damenteestaComédiaaosnossos leitores,massupondoquemuitosaindaanão
viramrepresentada,nãoqueremosatenuar-lheointeresseprevenindo-os.
AépocadoreinadodeEl-ReiD.JoãoVéaífielmenteretraçada,ecommuita
artedeixamalgumaspersonagensdescaircertosgestosqueaindamaisaostentam,
eemtodasassuasrelações:aestepropósitonoslembraaanimadíssimacenado
2.ºactoemqueaBeatalouvaoSenhorpelopiedosoânimodeEl-Reique tantos
presentestemmandadoaoSantoPadre,eháesgotadotesourosemfazeredificar
Basílicas:–nãoesquecendoagrandesatisfaçãodoscerieirospeloconsumodasua
droganasfestasdeIgreja&c.–OCapitãodeOrdenanças,oProcuradordaIrman-
dade,eaBeatasãofigurasperfeitamentecaracterísticas:easpessoasdeD.JoãoV,
edeCAMÕESsãoalémdissodeumaverdadehistóricabemconhecida,sendocon-
tudoosseuscaracteresconduzidoscommuidelicadacircunspecção.–E,afalara
verdade,quempoderiaanteverqueoReisesairiatãodecentemente,chegandoas
coisasaopontoemquesevêemnoprincípiodacenafinal?
AmúsicaétambémassazfelizmenteintroduzidanestaComédia;ocorodo
princípiodo1.ºactoproduzomaisbeloefeito,amúsicaeascoplasdetodoseles
sãomuiapropriadasaosdiversostranses;nãopodemosporémdeixardenotarem
alguma parte demasiados floreados especialmente no canto dos camponeses.
Tambémnospareceuqueapeçacolheriamaisaplausossenãotivesseocorofinal,
que dá tempo a esfriarem os espectadores, e ocasião a que muitos se retirem
achandojásatisfeitasuacuriosidade;todaviaésomenteparaoautorquetalcoisa
seriadefeito,porlheminorartriunfos;enãoparaopúblico,que(forçaédizê-lo)
nãosabeainda repartiraplausosemproporçãocomomerecimento, eque tanto
bateaspalmasaobastardoBOMAMIGO,comoaproduçõesquelheestãoinfinita-
mentesuperiores.–Salvamelhoropinião,parecia-nosquetalvezo2.ºactoacaba-
riamais cómico, eproduziriamuitomaiorefeito, seo fingidomorto seerguesse
logoque cessa amúsica, edeitasse a fugirpor aí fora, deixandoosoutros todos
desapontados,ecaísseimediatamenteopano.–Masistonãopassadeumamera
lembrança.Resta-nosfalardalinguagem,quemodeladapelosdiversoscaracteres
daspersonagens,muitoconcorreparaa ilusão,ouverosimilhança tãonecessária
numaComédiadaquelaordem.
Eutinhaumasasasbrancas
-153-
Foiestapeçamuitobemdesempenhada:–OSr.EPIFÂNIOéemverdadeum
actordemuitomérito,ecustaaacreditarcomosemoldatãobemapapéis intei-
ramentedisparatados;contrafazcomtodaanaturalidadeovilão,emuidelicada-
mentedeixaluzir,porentreasmaneirasefalarderústico,umolharinteligente,e
umsorrisodefinamofa.–ASra.JOAQUINAémuiboabeata,esabeperfeitamente
oseupapel,talvezexagerealgumtanto.OsSrs.TEODORICOeFERREIRAvãomui
bem;enoSr.LISBOAnãohámaisquedesejar.OSr.MATAnopapeldeCAMÕES
excedeuanossaexpectaçãopostoquebastantecabedalfaçamosdosmeiosdesse
bomactor.–ASra.EMÍLIAnãodesmerecenoseupequenopapel,e,nacenado3.º
actocomamadrinhaeseupai,amuacomoquemofazdeveras.–OSr.VITORINOé
umhonradolavrador;eoSr.ROSASmereceumtrono.
NocantomerecemespecialmençãoosSrs.LISBOAeSARGEDAS,–nãoes-
quecendoaSra.JOAQUINAquedesempenhoucommuitochisteasuaarieta,eos-
tentoubemboavoz.–EstaarietaéescritanogostodaariadavelhanoBARBEIRO
DESEVILHA.
_________||___________
TEATRODES.CARLOS
ESMERALDA
MÚSICADEMAZZUCATOOassuntodestaóperaéextraídodocélebreromancedeV.Hugointitulado
=NossaSenhoradeParis=Esmeraldaoenlevo,eamordequantosaviram,bri-
lhantecomoumaestrela,puraesingela,comoaflordosbosques,rendeasuaisen-
çãoaumbeloCavaleiro–FebodeCharaupers,quelhesalvaraainocênciaetalveza
vida;porquantoumhomemterrívelClaudioFroloaquemopovotemiacomomá-
gico,erespeitavacomoArcediagodeNossaSenhora,perdia-sedeamorespelaen-
cantadoraciganaqueoodiava;eaperseguiaardentemente.–Nãopodendovencê-
la,ele,seescondenumacasa,ondeosdoisamantesseentregavamaterníssimos
colóquioseapunhalandoaFebo,odeixavanosbraçosdainfelizEsmeralda,queé
condenadaàmorte.Quandochegavaaolugardosuplício,Frololhediz,quesópro-
nuncie=Euteamo!=eserásalva;masapobreciganacheiadehorror,eindigna-
çãolheclama=T’aborro!…
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-154-
Muitopoucodiremosdapartiçãodaópera;porqueseriapresunçosateme-
ridadeaventarjuízosdeumamúsica,que,comoesta,necessita,paraseavaliar,ser
bastanteouvida,nãoimitandoasquetantosetrauteiameassobiampelospasseios.
–Poderemoscontudodizeremgeral,que,conquantosejadeautor Italiano,sabe
muitoàescolaAlemã;aindaqueatenuidadedamúsicadeixereconhecerogosto
Francês,cedendo,maisdoqueconviria,àsmelodias.Emuitoemboratenhaaópe-
raalgumasdemuidelicadogosto,comooromancedeEsmeraldano1.ºacto,ea
aria final;mas o sacrifício das harmonias se lhe faz por extremo sensível, como
tambémadebilidadedaorquestração,eafaltademovimentomusical,einspirada
fantasia.
QuemháaíqueouvindoonomedeEsmeraldasenãorecordedaquelepri-
mordoromânticosublimeV.Hugo,edaquelalindíssimaciganatãoaérea,tãoisen-
ta,tãosílfide?…–Eoautordolibretonãoquisdesmerecernalindapoesiadequeo
revestiu.–OuvicomoEsmeraldasequeixasuavemente.
Derelittagiovinetta
Vodamandoinognilido,
Cosaalmondononmialletta
Pureiocanto,pursorrido.
Ah!traspassailvivermio
Comeilmurmure,d’unrio,
Chediscorremesto,mesto,
Bencheinsenoall’erbe,aifior.
Quantoàexecuçãopodedizer-sequefoiaSra.Ferlloti,quemobteveashon-
ras. É verdade que o Sr.Ferretti, que novamente debutou se fez dignode elogio
mostrando-semaisamestrado,eprocurandoacarearasbenevolênciasdopúblico;
masporventuraonãopoderiasempreconseguirporqueasuavozdetenorbarí-
tonoéumtantoescura,easuapoucaextensãolhefazatacarumnãomuitograto
falsete;cumpredeclararqueoSr.Ferrettinãodesagradou,oquenãoaconteceuao
Sr.Spech,quenãovaibemnestapeça.–Finalizaremosesteartigoprometendorec-
tificaralgumasasserçõesmenosseguraspoisqueolavramostendoouvidoumasó
vezaEsmeralda,eacrescentaremos,queaindaqueestaóperaagradoubempouco
esta noite, esperamos todavia se tornemais grata aosdilettanti: cumprindo-nos
Eutinhaumasasasbrancas
-155-
porúltimorenderosdevidosencómiosaosautoresdasexcelentescenasdo1.ºe
3.ºacto.
_______||________
ROBERTODODIABONinguémháqueaomenosumavez,navida,nãotenhaoantojodeformar
algumagrandeecuriosacolecçãoderaridades;masquantosdeiralémdasprimei-
raspeçasconservarampaciência?–ComsobejorigorhátratadoLaBruyereesses
homensheróicos,quemiramporvinteanosàsatisfaçãodeummesmocapricho,
dispendendoobscuramentemaistempo,dinheiro,vontade,manhas,ediplomaciaa
reunir,eclassificarautógrafos,quemuitagentealevaracaboousadasempresas.
Quedeprazeresnapossedeumacolecção,quetodososdiasenriquecemos!
–NaBélgicaeHolanda,paísesondeasfortunassãocolecçõesdeescudosumde-
poisdeoutropacientementeacumulados,ondeoespíritodeordeméextremo,eas
paixõescommaistenacidade;quevivezaseostentam;éprincipalmentelá,quese
encontramascolecçõesdemaiorpreço,asmaisnumerosas,eàsvezesasmaises-
quisitas, – desde o ricodonodequadros alemãespor ordem cronológica, até ao
pobreepacienteamadordegravuras,oucartasdegeografia;quedevertodasas
manhãs,oquenãopodeadquirir, se contenta;mobilando,emvezdogabinete, a
memória,–desdeotulipistasublime,queesmagaacebola,quelhecustoudozemil
cruzadospara ficaroúnicoproprietáriodaespécie,atéaohomemperseverante,
que formaumacolecçãodemoedascerceadasde todosospaíseseanosdurante
umcertoperíodo;–todasasespéciesdeamadoresdestegéneronaHolandaeBél-
gicaseencontrariam.
Citar-vos-ei por exemplo um rico proprietário Holandês, que unicamente
comosanúncios teatrais, impressoshávinteanos, formouumabibliotecademil
volumes.Parahaveràmãodocumentosoriginaisdeutilidadeàsobretodassingu-
laríssimaestatística,nada lhe foipesado;nemoestabelecimentodeumacorres-
pondênciaregularemcadacidadeimportante,nemaremessadetodosessescar-
tazesvermelhos,azuis,amarelos,evariegados,queporaíjazemcadamanhãpelas
esquinas;nemaescolha,classificação,encadernações;nadadetudoistolhecustou.
Nessabibliotecaachareistodososdebutes,benefícios,nomesdeactores,einven-
çõesdedirectores.Aíveríeisosfamososcartazesdeumteatrodeprovíncia,anun-
ciandoaFlautaMágicadocélebreMozart,aqualporfaltadecantores,eorquestra,
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-156-
deviaporestavezserrepresentadasemmúsica:–osdeLondres,emqueDonGio-
vanidomesmoMozart,arranjadoporcompositoringlês,eenriquecidodemuitas
gigas, e modas nacionais, era pomposamente prometido aos dilettanti da Grã-
Bretanha.Tambémnasbibliotecasdotalholandêsseencontraamutávelhistória,
eagitadavidadessamultidãodeactores,quedeteatroemteatro,aplaudidosaqui,
eacolápateados,passandodeumaoutropapel,ecobertosoradediamantes,ora
defalsaslantejoulas,surgemalgumasvezesàforçadetalento,eventura;enchem
desua famaomundo,edepoiscaemnospapéisderradeiros; terminamsobreos
tabladosavelhice;e fazendodeprimeirosgalãsemcompanhiasdecincoouseis
geraçõessucessivas,acabamindoparaasuaterra,ouparaohospital.–Todaessa
tumultuosahistória deummundoparticular a estampamcartazes com todos os
caracteres,queaimpressãolhepodeministrar;desortequeasletrasgótica,pan-
decta,egípciagigantescaequaseinvisívelbreviáriotêmnabibliotecadonossoho-
landêsumaeloquência tão especial queos renomes se aumentam, oudiminuem
comasletrasdeimprensa.
Suahistóriaepergaminhosencerramtambémnestesarquivosaspeçasdo
teatro.Umfactocurioso,averiguadopormeiodestamultidãodeCartazestãolabo-
riosamentecoligidos,équeastrêsóperasmaisvezesnomundorepresentadassão
ROBIN DES BOIS de Weber, TANCREDO de Rossini, e ROBERTO DO DIABO de
Meyerbeer.Seriadifícilestabelecerumateoriasobreestasingularreunião;como
tambémsobreapreferênciadadapelopúblicoaTancredosobreoutrasobrasex-
celentesdeRossini:–massejaoquefor,osucessouniversaldoROBERTODODI-
ABOseexplicaperfeitamente.
AmúsicadoROBERTOencerratodososgéneros,ecadagrupodeespecta-
dorespoderáencontrarbocadosdepredilecção.–Oassuntodapeçapareceráfilo-
sóficoemFrança,poéticonaAlemanha,pitoresconaItália,eemtodaaparteinte-
ressante:–atodosospovos,etodasasidadesaprazamcontos,apaixonamfábulas;
e se lhe juntares variedades nas situações, diversidade e riqueza na decoração,
movimentonasdançaslúgubresegraciosas,sobrenaturaisaparições,esobretudo
a música admirável, e tão maravilhosamente combinada, que se lhe descobrem
novasbelezastodososdias;–certovosnãocausaráadmiração,queoROBERTO
DODIABOtenhacircundadoomundo;jádenovocomece,eaindadevaportodaa
parteseroenlevodeolhos,eouvidos.
Eutinhaumasasasbrancas
-157-
OROBERTO temsido representado sobre centoequarentae três teatros,
incluindoosdaNovaOrleans,New-York,IlhadeFrançaeBourbon,Argel!…
Foiestaóperarepresentadapelavezprimeiraem1831,epode-se formar
ideiadainfluência,queduranteestesoitoanosdeveriaexercersobreaarte,eso-
breosartistas,osucessoimensodoROBERTODODIABO.–Quedesucessivasge-
raçõesde tenores e damas têmpassadopelospapéis deRoberto,Alice, Isabel!…
SomentenaÓperadeParis se temvisto trêsouquatroRobertos e cincoou seis
Alices.–Encher-se-iaumarmazémdamúsica,quehásido inspiradapelostemas
deRoberto:para todosos instrumentos,para todasasassembleias,paraa Igreja
temelasidoinesgotável;eemVienacomoemParis,seouveROBERTOnataverna
enoteatro;naIgrejaenosconcertos;nachoupanaenosgrandesbailes.
Goëthe quase que havia predito ROBERTO DO DIABO; pois que indicara
Meyerbeer como o único compositor capaz de fazer cantar dignamente aMefis-
tófeles.O ilustreautordeFAUSTO,esperavadeMeyerbeerumamagníficaÓpera
fantástica,seoingratonãotivesseesquecidoapátria,compondocavatinasparaos
italianos.EntretantoaAlemanhatomoupossedoROBERTO,comodecoisaquelhe
pertence,enofimdedoisoutrêsanosjáestaobra-primasetinhamostradoato-
dososestadosgermânicos.
TodaviaacensuradeVienahaviainterditocompletamentearepresentação
da peça; pois que se escandalizara de toda essa mitologia cristã, inventada por
Scribe, e poetizada pelomaestro: – impiedade imperdoável lhe era reunir numa
mesmacenasantosedemónios,fradeseaigreja,cruzeaportadoinferno.–Mas
dizia-sequeamúsicaeratãobela;queaFrançatantoporelaseentusiasmava;e
quealgumascidadesdaAlemanhahaviamporsuacausaobtidosucessostãoincrí-
veis,queacensuradeVienasedeixouabrandar,epermitiua representação, su-
primindoacenadacruz,eadasfreiras;eproibindonoquintoactoadecoraçãoda
igreja.–Tambémotítulofoimudado,porqueacensuranãoquisexporoshabitan-
tesdeVienaapronunciaronomedodiabo,quandolessemoscartazes:–ROBER-
TODODIABOemudouonomenodeROBERTODENORMANDIA.–Foioteatrode
Josephstadt,queprimeiroopôsemcena;masoteatrodacorte,movidopelogran-
de ruído dos ensaios, quis também fazer representar a grande ÓPERA. Pouco a
poucoacensurasefoidobrando,eROBERTODODIABOsechamouROBERTOTI-
GRE, sendo restituídaa cenada cruz, comaúnica condiçãode ser colocadaesta
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-158-
nosbastidores:–finalmenteoteatrodacortefortementeprotegidoobtevenovas
concessões;asfreiraslheforamconcedidassobavestedeperegrinas,eROBERTO
tomoudefinitivamenteoseuverdadeironomedeROBERTODODIABO.Desdeen-
tão têmosdois teatrosdadoemconcorrênciamaisde150representaçõesdesta
obra,cujosucessofoiomaisbelo,quenuncaemVienasehávisto.
ValidodereiseImperadores,foioROBERTOqueacortedeVienaescolheu
para as festas da coroação emPraga; para ser representado depois na presença
simultânea dos Imperadores daRússia, Áustria e Prússia; finalmente para a pri-
meirarepresentaçãodoROBERTOdeixouoseuretiroadecaídamajestadedeCar-
losX.
EmLondresoROBERTO foi representadosobrequatro teatrosaomesmo
tempo;enaépoca,emqueacólerasefezmaisterrívelemParis,Mme.Damoreau,
Levasseur,eNouritforamaLondresrepresentaraÓPERAdeMeyerbeer.
Nointervalojáhaviamtentadorepresentá-laeminglês;masapartiçãopara
pianonão tinha sido aindapublicada; e a grandepartição fora, por condição ex-
pressa,reservadaparaacompanhiafrancesa,eteatroitalianodeParis.–Foipara
estefimMr.BishopdeputadoaFrança.Fezeleaaquisiçãodealgunspedaçosiso-
lados;eassistindoregularmenteatodasasrepresentações,quetiveramlugardu-
ranteasuademoranacorte,reteveoquepode,suprindoaoresto,instrumentando
aseumodo,efinalmenteesboçandoaÓPERA;comoviajante,queapanhaderelan-
cesobreaestradaalgumpontodevista.Apobrepartiçãoassimarranjadafoipara
Inglaterra;ensaiaram-naatodaapressa,eacobriramdeaplausos.
AhistóriadoROBERTOemFrançaébastantecuriosa.Éfácildeverquantos
esforços seriam necessários para repetir uma obra de tal importância namaior
partedosteatrossecundários;etodaviaosucessofoiigualemtodos.–Nascidades
maioresasfériasdosgrandesartistasforamaproveitadas;enoutrasandavamde
empréstimocoroseprimeirosactores.Em1834,passandoMeyerbeeralgunsdias
nacidadedeNice,oconselhomunicipalnotouumasubvençãode4$000 francos
paraqueapresençadoMestrefossecelebradacomumasolenerepresentaçãodo
ROBERTO. Pediram-se os coros a Marselha; os cantores apenas costumados ao
Vaudevillefizeramquantolhesfoipossível;enofimcolocaramapartiçãosobreum
pedestal,eacoroaramdeflores,cantandoemcoroamarchadotorneio.
Eutinhaumasasasbrancas
-159-
Na Itália oROBERTO foi repelido pela censura, quando jáMilão,Nápoles,
FlorençaeTriestepreparavamtraduções.UltimamenteomarquêsMartellinitinha
conseguidorepresentá-loemFlorença:eNouritaquem,poucoantesdasuamorte,
haviam para este fim convidado, fundava grandes esperanças nesta aparição do
ROBERTODODIABOalémdosmontes.
FinalmenteoROBERTOfoirepresentadoemNova-Orleansporquatrome-
sesseminterrupção,eemdoisteatrosaomesmotempo.
OteatrodaIlhaBourboncomosseuscamarotesaristocráticos,emqueos
brancosseapartamdoshomensdecor,reboouaplausosunânimesaoRoberto.
ÉcomelequeonovoteatrodePERAseráinaugurado…
TaléalongaecuriosahistóriadestaOBRA-PRIMA!…esóacrescentaremos,
queasúltimasrepresentaçõesemFrançaforamparaodebutedeMlle.Rieux;eque
nonossoteatrodeS.CARLOSteremosaoutranoiteogostoamargodeaplaudir-
mospelavezderradeiraagraciosasílfide,quejáoutroraemBruxelassehaviator-
nadotãodistinta,comobelaevoluptuosaabadessadeSANTAROSÁLIA,equeen-
tãoaindamaisabrilhantadadeprendasadquiridasnonossoteatro,foiemtãodeli-
ciosopapelavivarbemsaudadesquenosdeixa.
A lembrança deMlle. Clara Lagontine será sempremuito cara a todos os
nossosdilettanti.–TambémdançanoROBERTODODIABOeporúltimavezMlle.
Adock, quemuito se fez admirar por sua extrema firmeza; aéreos e dificultosos
passos.
________________
ABEN-AFAN
DramaoriginalPortuguêsadmitidopela
DelegaçãodoConservatórionoPortoDos jornaisdoPortoextraímososartigosseguintesquedãocontadapri-
meirarepresentaçãodestedramanaquelacidade.OautordeD.Sisnandodeumais
umaprovadoseuinquestionáveltalentopoéticoedramático,assimcomodasua
imperíciadacena.Muitofácilédesuprirecorrigirestedefeitoondeháaquelavir-
tude.Aben-Afanéumafigurahistorico-romanescadeoutroquadromaior jábem
conhecidonanossaliteratura.AsinspiraçõesdeD.Brancadesenvolvidasporcir-
cunstânciasqueasCrónicasmencionamequeparecenãoterqueridoaproveitar
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-160-
depropósitooautordaquelenossoprimeiroromancenacional,–produziramesta
nova composição. Há-de forçosamente ser curiosa e interessante para o público
portuguêsverreflectidosnoteatroporumjovemliteratoaqueleAben-Afan,aque-
laD.Brancaessascriaçõestãopoéticasetãoportuguesascomqueoutramãomais
práticaexercitadanosabriuograndecaminhodahistória,dastradições,doscos-
tumes,nacionaisporondehojevaicorrendo,felizmente,anossaliteraturatoda.
_______________
TEATRO
RepresentaçãodoAben-AfanAssistimosontemàrepresentaçãodestenovodrama,produçãodoautorde
D.Sisnando,jovemdetalentoedeesperanças.
Osdoisprimeirosactosforammuitobemrecebidos:aSra.GrataNicolinina
2.ª cenado2.º acto, com tantanaturalidade e paixão soube repelir as sedutoras
promessasdeAben-Afan,ecomtantadignidadeseusferos,queaplateiarompeu
emaplausos; geralmente estaActriz andoumuitobem, e bastava estapeçapara
estabelecerseuscréditos;sendomaisdignadeelogiopelomodoporquedeclamou
overso,sendoestrangeira,quandooutrosactoresouvimosque,sendonacionais,
faziamarrepiaroouvido.NessacenagostámostambémdoSr.Dias,querepresen-
toubem;postoquenacenadaembaixadaqueríamosvê-lorecitarcommaismimo,
queéumdosmelhoreslugaresdodrama,elevantarmenosavozno3.ºacto,defei-
toqueporvezesnotámosnoSr.JoãoManoel,quealiásagradounodesempenhodo
CavaleirodeCarpentos.
OSr.GusmãoeoSr.JoséAntónioandarambem,aquelenoPríncipeFalula,e
esteemHussem.NãoconhecemosoCómicoquefezdeEmbaixador;porémquem
quer que fosse, desejáramos que empartes que exigembomdesempenho como
esta,poisqueaEmbaixadadoReiLusitanoaoReiMourodeviainteressarumaudi-
tórioportuguês,seescolhesseActorquesoubessemaisdoseuofício.
Seosdoisprimeirosactosagradaram,emuitoo2.º,nãoaconteceuomesmo
como3.º:metadedoactoficaD.Brancamortanacena;oCavaleirodeCarpentos
mata-sedepois,eláficajuntodelamorto,atéqueAben-Afanvenhaacabardemor-
reremcenajuntodeD.Branca?Umsussurrodeenojoeimpaciênciaseouviunos
espectadores,ecomrazão;quenãoéacenaoPradodoRepouso.Paramais,foium
Eutinhaumasasasbrancas
-161-
tristeactorquefezdeMestredeSantiago,poisqueporcertonemasuafiguranem
odesembainhardasuaespadaeraparafazertremerMouros…
Dizem-nos que esta peça foi aprovada no Júri dramático na suposição de
quevoltariaaseuautor,paraemendarnelabastantesepalpáveisincorrecçõesque
elatem;esentimosqueaempresaconhecessetãopoucoosseusinteresses,elhe
importasse tãopoucoo créditodoautor,quea apresentasse talqual emcena; e
queoSr.Sub-inspectorfossetãopoucorigorosoquedeixasseassimabusardade-
cisãodoJúri,consentindoqueelaserepresentasseatécomgrosseiratrocadepa-
lavrasquecometeraocopista.
Dovestuáriosótemosafalarcomelogio,eanovavistadesalarégiagótica
agradou.
Quiséramosveroutravez emcenaeste lindodrama–masqueo3.º acto
fosseprimeiramenterefeitotodopeloAutor.NadahádeverosímilemqueAben-
Afan,sabendoquerebentaradentrodosmurosdeSilvesumaconspiraçãodecris-
tãos,quenasruasseestavambatendocomseussoldados,queoMestredeSantia-
gojápenetravaasmuralhas,respondaaosseusGeneraisquesevãobater,queele
ficanoserralhoaverseD.Brancaseresolve.
(Comunicado)
______________
TEATROPORTUGUÊSSubiuontemàcenaoDrama=Aben-Afan=OsActoresdesempenharamos
seuspapéisexcelentemente,etodaaPeçacorreumuitobem–àexcepçãodoBar-
ba-RoxaéamaisbemensaiadaquetemaparecidocomaactualCompanhia.ASra.
Grata representou como costuma optimamente. Os Srs. João Manoel, Gusmão, e
Diasmaisqueumavezmereceramaplausos.
AEmpresaesmerou-senovestuário;eanovavistadeSalaGóticaagradou
muito–éevidentequeoEmpresárionãosepoupaadespesas,nemtrabalho,para
queopúblicoseretiresatisfeito.
Desejamos com ansiedade saber qual terá sido o resultado das propostas
paraoanofuturo;porqueénaverdadesingularquenumasefaçamençãodeActo-
resquenosinformamestarãojátratadoscomoSr.Lombardi!
___________________
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Por abundância dematérias que exigiam ser inseridas nesteNúmero não
damosneleumRETROSPECTOLITERARIO-DRAMÁTICODOANODE1839,artigo
quesópoderáirnoNúmeroseguinte.
CRÓNICATEATRALNoTEATRONORMALhouvegrandeconcorrênciaduranteapassadasema-
na:–nodomingofoiàcenaapeçaOSINCENDIÁRIOSsempreaplaudidaebemde-
sempenhada; na segunda-feira tornaram a representar-se OS DOIS RENEGADOS
comacostumadaboafortuna;enessesdoisdiasserepetiramasseguintesfarsas–
OENREDADOR,OENSAIODEUMATRAGÉDIA,eOSDOISRENEGADOS.Oquepo-
rématraiumilharesdepessoas foi a representaçãoda comédia–OCAMÕESDO
ROSSIOquetevelugarna4.ªfeiraemBenefíciodaSra.TALASSI,edequedamos
conta em separado. –Também foi nessanoitepelaprimeira vez à cenaumape-
quena peça intitulada BOM AMIGO. O mesmo espectáculo se repetiu na quinta-
feira.
OBOMAMIGOéumacoisaquequerserdramaequersercomédia,eacaba
porserasombradeumanoveladeMme.DEGENLISintituladaASMÃESRIVAIS;já
teveoutronome,poisantigamentechamava-seAESPOSAREPUDIADA;hojeapa-
rececrismada,ouparamelhordizer(poisseachaminterrompidasasnossasrela-
çõescomaCortedeRoma)apresentou-se-noscomumnomesuposto!–Masisso
denadalhevaleu,porquesempreéamesma,começandoporondeasoutrasaca-
bam,istoé,endoidecendoaheroínalogonoprincípiodapeça;edialogando-sepor
todaelaemportuguêsmoiroougentiooucomoqueiramchamar-lhe.Porexemplo:
–ÓminhaSenhora,tuqueres,tuvais,tuacontecesses?etc.eoutrosquejandosvas-
consos.–Poiségrandepena,porqueessapequenapeçafoimuitobemdesempe-
nhada, distinguindo-se mui especialmente os Srs. TEODORICOS e a Sra. JOANA
CARLOTAquenaverdadeémuitoprópriaparaessegénerodepapéis;estapeçafoi
assazaplaudida,oquemaisdeveatribuir-seaoseubomdesempenho.
TEATRODES.CARLOS–Domingo29deDezembro–ROBERTODODIABO.–
Grandeemuitoselectaconcorrênciadeespectadores;estrepitosaspalmas;sono-
rososBRAVOS;e coroasde flores;ebravosepalmas.–EraadespedidadeMlle.
CLARA LAGONTINE, damui voluptuosa abadessadomosteirode Sta.ROSÁLIA. –
EratambémaúltimanoiteemqueaSra.Adocktinhadefazeradmirar-sedopúbli-
Eutinhaumasasasbrancas
-163-
coportuguês.–Pareceque,nessaúltimanoite,nessanoitedesaudadeeprazer,a
graciosaABADESSArequintoutodaamoledelicadeza,todaahonestavoluptuosi-
dade, todaagraçadeatitudes, comquedasoutrasvezescostumava tentareen-
brandecer o inflexível ROBERTO. – Ainda depois de cair o pano se ouviram por
muitotempoosaplausosdopúblico;e,saindoaagradecê-los,foiabeladançarina
acolhida com brados de entusiasmo, e vitoriada com coroas de flores: – ela, de
agradecida,ascolheudotabladoondehaviamsidolançadas,ecorrespondeucom
enternecidassaudaçõesaojustofavordosespectadores.
Mlle. ANGELIQUE ADOCK não obteve tantos triunfos, não colheu tantos
aplausos;etodaviaessaartistaédebemrelevantemerecimento!–Aelasticidadee
firmezadoseudançar,aperfeiçãocomqueexecutatodosospassosdifíceis,e fi-
nalmenteosdesejosquesempretemmostradodeagradaraopúblicoportuguês,
assazatornavammerecedorademaisbrilhanteacolhimento;econfessemosquea
expectaçãoemqueseestavapelasuamaisfelizrivalalienouosespíritosdemanei-
raquemuitos (por certo)olvidaramque, aquelaque tantasvezesaplaudiramse
lhesapresentavatambémpelaúltimavez.–ASra.Adocktinha,alémdosreferidos,
oraromerecimentodeQUASENUNCAESTARDOENTE.
Vão-sepois as duasDANÇARINAS;mas coma glória dehaverem sido em
Portugalapreciadas.–Enãoéde levequeessaglóriaseadquire,emquepesea
velhosimpertinentes,ouasábiosdeletrasgordas;quenãoésósobreoslivrosque
seempalidece,easELSSLERSeasTAGLIONISatantasfadigassederam,comoos
melhorespintoresepoetasqueaigualpontosesublimaram.–Difícilseriaenume-
raracansadasériedetrabalhoseperseverançaquedemandaessaARTEconside-
radapormuitoscomofrívola;bemcomoosincessantescuidados,efastidiosasre-
petiçõesqueserequeremparanelaseadquirircertaperfeição:–sóaessasdeusas
que tantonos arrebatam, eparecemnãopertencer à terra, seriadado explicá-lo
comasuainsólitaeloquência;elasqueatantocustooaprenderam:eentãovería-
mosquenadaháaídesobre-humano,sendoantesofrutodosofrimentoedafadi-
ga–comotudoquantoédosfilhosdohomem!
Masvoltemosànoitede29deDezembro,eaROBERTODODIABO.–Tem
sidoobjectodegeralcensuraamaneiraporqueosCORISTASfrequentesvezesse
hãohavidono seu canto; especialmentenessanoitededomingo cantarama seu
bel-prazersemlhesimportarorquestranemcompasso,enocorofinaldo4.ºacto
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-164-
fizeramharmoniasverdadeiramente infernais.–ASra.BARILItambémdesafinou
nacaballetadacavatina,eporsinalquehouvequemnessaocasiãolhedessepal-
mas,emesmooseubravosinho–beatipauperesspiritu, comodizonossoamigo
A’PAIDEUTOS! –Quanto aomais ROBERTODODIABO agrada sempre, e os dois
tercetosforamexcelentementeexecutados.
Segunda-feira representou-se a PARISINA, e OS PORTUGUESES EM TÂN-
GER;dançoupelaúltimavezoSr.THEODOREquenosdeixabastantesaudade,e
quesempremereceuosaplausosdopúblicoentendedor.
Quarta-feira, primeira representação de ESMERALDA, de que falamos em
artigoseparado.–Dança–OSPORTUGUESESEMTÂNGERcomopas-de-deuxdas
Sras. SOLER eMORENO que o dançaram àsmilmaravilhas, sendo devidamente
aplaudidas.
Quinta-feira–Repetiu-seomesmoespectáculo.Sexta-feira–PARISINAeOS
PORTUGUESESEMTÂNGER.
NB.NaCrónicadonossoantecedenteN.napartequedizrespeitoaoTeatro
Normal,analisandoopapeldeAlbinos,porequívoconosdirigimosaoSr.Viana,sen-
dooSr.Tassoquemdesempenhouaquelepapel.
_____________
ÁlbumNo2.ºactodeROBERTODODIABOtem-sedadohátemposumacoisanotá-
vel:=cincopoderosasNaçõesdançandomuidesenfastiadamenteumQUINTETO.
BempodemospoisasseverarquereinaamelhorharmoniaentreaFrança,Ingla-
terra,Itália,Espanha,ePortugal.NesteQUINTETOoSr.THEODORErepresentavaa
França,aSra.ADOCKaInglaterra,oSr.JORCHaItália,aSra.SOLERaEspanha,ea
Sra.MORENOPortugal.
___________________
Ilgiuramento,óperadeMercadante,cujoassuntoétiradododramaANGE-
LOdeV.HugoobtevegrandesaplausosnoteatrodellaScallaemMilão:=todosos
JornaisdaquelaCidade lhederamelogios.Umadasmaisbrilhantesreuniõesque
naquele teatro se temvisto teve lugar por ocasiãode uma récita extraordinária,
cujoprodutodeviaseraplicadoparaaconstruçãodeummonumentoàmemória
deMme.MALIBRAN, e executado pelo célebre escultorMARCHESI. Uma cantata
Eutinhaumasasasbrancas
-165-
divididaemquatropartesfoicompostaporestaocasião:Donizetti fezaSinfonia,
Pacinia1.ªparte,Mercadantea2.ª,Coppolaa3.ª,eVaccaiaúltima.
___________________
UmjovemadmiradordostalentosdeMlle.BrohnactrizfrancesadoTeatro
Vaudevilleaventurou-seumavezapedir-lheumbeijo.Aindulgentedonzelafingiu,
coitadinha,nãoocompreender.=Orapazinsistiu:“Oradê-meumbeijoporcari-
dade”=“Deusofavoreçairmão”,respondeuabela,“eucátenhoosmeuspobres”.
___________________
Comtodooseutalento,comtodooseuespírito,nuncaobteveKotzbuese-
nãoumefémerotriunfo,semjamaisatingiraperdurávelglóriadeverdadeiropoe-
ta,degrandeescritor.Quelhefaltavapois?=Umcoraçãorecto?
___________________
EspectáculosdaSemanaCorrente
AVISOPRELIMINAR
CONCERNENTEÀGRANDEGALERIA
ÓPTICA
Quesehá-demanifestarnolargodeS.Paulo
N.º11,emcasadoMarquêsdePombal,
emquatrosalasno1.ºandar.
Desdealgunsanoshãosidoenfastiadosospúblicosdequasetodasascida-
desdaEuropacomrepresentaçõesópticas,apresentadasdebaixodosnomesvari-
adosdeCOSMORAMA,ASTEORAMA,FUSIORAMA,CICLORAMA,AUTEORAMA,DI-
ORAMA, NEORAMA, PANORAMA, POLIORAMA, GEORAMA, URANORAMA, NAVA-
RAMA, ou outra qualquer denominação desta tão numerosa família de RAMAS,
anunciando-as,paramaisatrairapúblicacuriosidade,comavisospomposos,não
tendosidoamaiorpartedestasrepresentações,aindaquediversamenteanuncia-
das,maisqueumamesmacoisa,contandomormentenarepresentaçãodealgumas
lâminasgravadaseiluminadas,sumamenteinsignificantes,equepodiamproduzir
poucaoutalveznenhumailusão.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Porconseguinte,nãoseriaestranhoqueopúblicoseadmirassedopresente
anúncio,exclamando:Outravezum indivíduodesta família inumeráveldeRAMAS,
masdebaixodoavisotrocadodeGaleriaÓptica!Eistodepoisdeterassistidoamui-
tasrepresentaçõesópticascompreendidasnasditasdenominações.
Nãosendosuaintençãodetrairoméritodasquesepresenciaram,julgao
DirectordapresenteGaleriaÓpticaqueanuncia,poderassegurarsemexagero,que
opúblico ilustradoacharáumadiferençanotávelnas suasRepresentações, eum
géneroabsolutamentenovonadenominaçãoNEORAMA,equecertamentenãose
lhenegaráaqueleméritoquehágranjeadopeloespaçodedezanosnaItália,país
dasArtes,epátriadaPintura.
ArespeitodasRepresentaçõesquesederam,serefereaoavisoqueteráa
honradepublicardentrodepoucosdias:prevenindo,quesóseexporãoalgumas
sessõesdevistas,cadaumadelasde15em15dias,cominteiranovidadeemcada
exposição.
PROGRAMA
DA
PRIMEIRAEXPOSIÇÃO
queprincipiaráSábado23deDezembroaté
Segunda-feira13deJaneiroinclusive.
NOGÉNERODENEORAMA1.OsSubterrâneosdeS.DiniscercadeParis,ondeseencontrarãoosSepul-
crosdosReisdeFrança.
2.OMonumentodoPríncipePolacoJoséPoniatowky,naCidadedeLeipzig
(aoLuar).
3.OSepulcrodaVirgemMaria,noValedeJosaphatcercadeJerusalém.
NOGÉNERODECOSMORAMA4. Atenas, com os restos de suas passadas grandezas, como existe actual-
mente.
5.APraçadoPovoemRoma,nosúltimosdiasdeEntrudo.
6.HerefordnaInglaterra.
Eutinhaumasasasbrancas
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7. A Praça deArmas deMilão, comuma evoluçãoMilitar executada pelas
tropasAustríacas.
Opreçodaentradaéde240réisporcadapessoa.
AditaGaleriaestaráabertatodososdiasdesdeas11horasdamanhãatéàs
3datarde,edesdeanoitinhaatéàs9horas.
N.B.–AsvistasapresentadasnumaExposição,nãoserepetirãonasoutras.
___________________
NaslojasseguintesseachaàvendaoJORNALDOCONSERVATÓRIO,enas
mesmasserecebemassinaturas.
ViúvaHenriques,RuaAugustaN.º1
Bordalo,RuadosCapelistas
RuadaPrata,N.º109.
Assinaturasportrimestre------400rs.
Avulso-------------------------------40rs.
TEATRONORMALDomingo5docorrente–OCamõesdoRossio,comédiaoriginalportuguesa
em3actos.
Segunda-feira6–Omesmoespectáculo.
TEATRODES.CARLOSJaneiro5=RobertodoDiabo,suprime-seoquintetodo2.ºacto,pornãote-
remchegadotodososbailarinos,eosolodo3.ºacto,serádesempenhadodaquiem
diantepeloSuplementoMlle.Moreno.
6=Parisina=PortuguesesemTânger.
8=Esmeralda=NovoDivertissementdeMr.Jorch,intitulado=TRIUNFODE
AMOR.
10=Parisina=PortuguesesemTânger.
12=RobertodoDiabo.
___________________
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-168-
n.º6,de12deJaneirode1840
CURSOLITERÁRIO
DE
Mr.MagninDoisanostinhamdecorridodesdequenafaculdadeliteráriadeParis,uma
cadeiradeliteraturaestrangeirasehaviacriado.ForaoeruditoMr.Faurieloseu
primeiroprofessor,porémnoanode1835dela tomouoponderosoencargoMr.
Magnin,Conservadordosimpressosdarealbiblioteca,econhecidoportrabalhos
científicosmuitoestimados.Sendonotórioquehá largotemposeocupavaelede
conscienciosas investigaçõessobreasorigensdramáticasantigasemodernas,de
muitograndenúmerodeouvintesseviuinundadaasaladesdeoprimeiroatéao
últimodiadoliteráriocurso.Édele,queeutentareidaralgumaideia;mastendode
encerraremcurtíssimos limitesumlavordeseismeses,desobejo fastidiosopor
analítico,correreiporventuraperigo;masseopudereucompensarcomaexacti-
dão,taldefeitomedeveráserrelevado.
Geralmente se acredita que o génio dramático por sete ou oito séculos
adormecido,numabelamanhãdo13.ºou14.º sealevantara:quasiqueousaram
aventurar-seaindagaraprópriahoraediaemquetãograndemudançasehavia
operado:seriambemfundadasindagações!–Emverdadecumpreremontarmuito
alto para encontrar as origens do teatromoderno, cujosmistériosemoralidades
sãodenósaexpressãomaisvizinha:talvezporquemelhoraconhecemos,ajulga-
mosúnica!…
Entretanto não nos devemos esquecer de que a humana inteligência não
dorme,nãopára jamais:– transforma-se,esemcessarprogride.–Outracoisase
nãodarianesselongointervalodecomposiçãoerecomposiçãosocial,quehánome
=IDADEMÉDIA; imensoperíodo,emqueogéniodramáticosotopostoaumaca-
madaespessadebarbárie(sedimentodecadaumadasinvasorashordas,queso-
breoimpérioromanosearremessaram)vislumbravaapenas!Todavianãoéláque
oteatromodernocomeça;comaeracristãnasceoteatro!
Antesdeexporoqueelefoidesdeo5.ºatéao12.ºséculo,extintono6.ºo
teatropagão,Mr.Magnindeveriasemdúvidaexplicaraseusouvintesoqueerana
antiguidade este teatro pagão, sem contudo entrar no exame das peças, que o
Eutinhaumasasasbrancas
-169-
compunham.Paraeste fimencarandoaantiguidadegregae latina soboaspecto
dramático,observatrêsgénerosdistintos.Oprimeirocontémodramamaravilho-
so,mágico,esobrenatural;constituindooteatroeclesiástico,litúrgico,sacerdotal:
–osegundosecompõedodramaaristocráticoereal,quenosprimeirostemposda
conquistalevouemdiasdegalasuasalegriasepompasafeudaiscastelos,epaços
dereis:–oterceirocompreendeodramapopulareplebeu,quenasencruzilhadas,
eadescobertonuncajamaiscessoudeespairecerealegraratristezadosservos,e
oscurtosensejosdosvilões:–génerotenaz;teatro,porassimdizer,indestrutível;
equeporissomesmoformaoelo,queuneamodernaàantigacena.
Examinando cada literatura na sua origem acharemos constantemente o
génerodramáticodeenvoltacomasoutras literáriasclassificações;–comaepo-
peiaporexemplo.Antesdonascimentodoteatrogrego,ebemtempoantesquea
carreta de Téspis alguns histriões houvesse passeado, as poesias do encanecido
cego, já essas poesias divinas eram cantadas, e por ventura representadas pelos
rapsodos.–Omesmosereproduzna idademédia,eemnossosdiasatestamvia-
jantestervistoestefactonoOriente.Dest’arteem1825serepresentavamimica-
menteemBénarésopoemadeRhannayana,enquantosobreumacenapróximase
procediaàleituradacomposiçãoescrita.
Nãomenosaolíricotemsidomisturadoogénerodramático.Quasesempre
naGréciaoscantoseramacompanhadosdepantomimas,canções,edança.Pode-
remosportantoencontrarodramanamaiorpartedasobrasdoespíritohumano;o
quemuibempelodiálogo,eimitaçãosereconhece.–Umacoisabemcuriosaéque
em todos os povos o génio dramático começa pela imitação dos animais; sendo
portantoafábulaomaisantigogéneroliterário.
NaGréciatodasasfestas,todasasartes,todososjogosentramnadivisão,
quechamamoshierática:–pertencemàdivindade.FoinasfestasdeMinerva,que
anualmente emAtenas se celebravam,que seoperoua transformaçãododrama
hieráticoemdramanacional;masquasesónoanditodostemplos,enacelebração
dosmistériosseencontramverdadeirasrepresentaçõescénicas.
OteatropopularnaGréciafoimuitotempodistintodoteatronacional,que
nasceuda combinaçãoprimeira como teatro hierático;mas a despeito da fusão
operadaporÉsquilo,estes trêsgénerossubsistiramsimultaneamente.Na Itáliao
teatropopulartevemaisinfluência,quenaGrécia,sobreoteatrooficial;gozandoo
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-170-
teatroaristocráticodamaiorextensão:–imensonúmerodeteatrosparticularesse
erigiramemRoma.–Oquedistingueprincipalmenteoteatrolatinodogregoéo
amordoreal,edaferocidade.Osgregosimitavamoassassínio,eosromanosma-
tavamsobreacena.
No primeiro século se operou em Roma uma revolução funesta ao génio
dramático.Omovimento,impostopelaGréciaàcivilizaçãoromanadepoisdacon-
quista,seafrouxa,eoengenhoromanoquesehavia feitogrego, tornouaserro-
mano:–ogéneroqueentãodomina,éapantomima.Augustoditosodeporalgum
modoterencontradoumalínguauniversal,quepudesseligarentresitodosospo-
vosdoseuimpério,deuaestegéneroomaiordesenvolvimento;aescarnecedora
comédia,eatragédiarepublicanaoincomodavam;foramportantoquasedestruí-
das.
Nosprimeirostemposdoteatro,bemcomonaidademédia,assalasdesti-
nadasàsrepresentaçõesforamprimeiramentedemadeira.Muitasvezesrepresen-
tava-seemrasacampanha,eeraumacolinaolugardacena;masnãotardouquese
nãoconhecesseanecessidadedemaissólidasconstruções.Tendo-sena7.ªOlim-
píadaaluídooteatrodeAtenas,queerademadeira,umnovoseconstruiudepe-
dra,aquechamaramteatrodeBaco.–NaItáliaaindahojedeumgrandenúmero
seencontramruínas;eéporessasquesevaitentarreconstruirumdeles.
Acena,entreosromanos,eraadecoraçãodofundo;oquehojechamamos
cena,eraoproscénio,eaquelapartedele,ondeosseuspapéisrecitavamosactores,
lhechamavampúlpito.Soboproscéniohaviaohiposcénio,ondesecolocavamas
máquinas;enapartesuperiorestavaoepiscénio.
Eraolugardehonraaorquestra;ocamarotedoImperadorsechamavacu-
bículo.Ocorosecolocavanomeiodaorquestrasobreotímele,queeraaoprincí-
pioumaespéciedealtar,ondedepoisseexecutaramdanças.
Osespectadoressentavam-seembancoscirculareschamadoscuneci,sepa-
radosporescadas,quepermitiamsubiraossuperiores.Oscavaleiros,oscônsules
ocupavamosmaiscómodos;eoresto,asummacavea,eraabandonadoaopovo.–
Havia também locarii encarregados de abrir os camarotes, guardar os lugares, e
verificarobilhetedemarfimoudepau(tessera),quelhesdavadireito.
No princípio os teatros eram descobertos, de sorte que se fezmister aos
Romanos,pararemediareste inconveniente,adoptaralgumasmodas, tal foiado
Eutinhaumasasasbrancas
-171-
chapéu,galerus,queigualmentecontraachuvaesolosprotegia.–Apartedotea-
troconsagradaaosespectadoreseradecoradacomluxo,emuitasvezesperfuma-
da:espéciesdecascataserepuxosd’águaodoríferaemfinosalseiro,borrifavamos
assistentes, purificando o ar. No último período da república foram toldados os
teatros.
Noprincípioarepetiçãod’umapeçadeteatrosefaziaemumlocalseparado,
aquechamavamodeon;masdepoisestasalaserviuparaconcertose leituras.Os
teatrospúblicostinhamverdadeiroscartazes,comoocomprovaramasescavações
dePompeia;osteatrosparticularesserviam-sedeoutramaneiradeanunciar.
Comoeramtrêsasespéciesdecenas,atrágica,acenacómica,easatírica,
haviatambémtrêsespéciesdedecorações,e trêsgénerosdetrajes,quesubsisti-
ramatéaomomentodaconfusãodosgéneros.Otrajecómicoconsistiaematoga,e
opálio,deitadosobreobraçoesquerdo:ovestuáriotrágicoeramuitoexagerado.A
estátuadoactor,porcausadeumaespéciedeandas,eradeoitoanovepés;econta
Philostrato,queumactordequemNeromeditaraamorte,refugiando-senaEspa-
nha,inspiroudesdeasuaentradaemcenaterrortamanho,quetodososespecta-
dores fugiram, soltando apavorados gritos. – A máscara trágica era na verdade
muitomaiorqueonatural,ebemprópriaacausarabárbarosumaimpressãoter-
rível;masoteatroantigonãopodiaprescindirdela;esendoumtipooherói,coe-
rentelhedeviacorresponderotraje.
Aindamuitomaispoderíamosestenderessasmateriaisespecificações,que
igualmentesereferemaoteatropagãoantesdaeracristã,eaoprimeiroperíododa
mesmaépoca;maspareceram-nossuficientesparadarumaideiasumáriadacena
gregaelatina.–Continuaremos.
---------------------
ANOIVADECORINTO
porGoetheUmmancebovindodeAtenasentravapelaprimeiravezosmurosdaopu-
lentaCorinto.Doceeraomotivoqueaíoconduzia;–desposarumadonzelapurae
lindaquedehámuito,porcomumacordo,ospaisdeamboslhehaviamdestinado.
Bomagasalhoesperaomancebo;ebomagasalhoencontraráele?–Pagão,
comotodososseusparentes,é jácristãsuanoiva,ebaptizadaeanovafamíliaa
queirápertencer.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-172-
Reinavaosilêncioportodoopalácio;sóvelavaamãedadonzela.Oestran-
geirochega,ecombenevolênciaeafagoérecebido:elaoconduzaoaposentoque
lheeradestinado,eapresentando-lhevinhoseiguariassedespede,desejando-lhe
umanoitefeliz.
Eessasiguarias,eessesvinhospreciosos,sãodebaldeparaomancebo,que,
todoalvoroços,seentregaabemdiversospensamentos…atéqueaofim,soçobra-
dopelocansaço,recosta-senoleito,evaicerrandoosolhoscomoparaadormecer.
Suspensadofeixedaabóbodaporcadeiadeouro,umalâmpadaespalhava
emtodooaposentoumaluztrémulaepálida,queiadecrescendoevacilandoaté
detodosumir-senosúltimosângulosdasparedes;eondeavanasarcadasdotecto,
comoumrelâmpagocontínuo,oucomooaziagofolgardasalmasvagabundasdos
insepultos.
OGregonãodormia,eàluzdessalâmpadaselheafigurouenxergaraolon-
geumaformahumana.Olhoumaisfitonadirecçãodovultoqueapercebera,eque
apassoslentossevinhaaproximandoaoseuleito:–eraumadonzeladetalhees-
beltoeaéreasformas;alvasdeneveeramasroupasqueaenvolviam,eumarcode
ourolhecingiacomodiademaafronteprendendoumvéunegroquepelosombros
selhedebruçavacomumachuvadecabeloslouros.–Celesteaparição!
Aoveroestrangeirocomoquesesobressaltou,eerguendoaoCéuasmãos
tãobrancascomoaaçucena,exclamoucomvozsuave:
“Esoueujátãoestranhanestacasa,queassimmedeixamignorarapresen-
çadeumhóspede?–Éassimquemetêmenclausurada,equeremque todosme
esqueçam!…Repousatu,mancebo,repousa;eumevou,etedeixoempaz.
“–Oh! não te vás, divina criatura, não te vás; amor, amor…masparaque
empalidecesassim?Ah!tureceias,eeuteamo!Vem,senta-te,escuta…
“– Afasta-te, mancebo, afasta-te; as doçuras deste mundo acabaram para
mim!Aúltima, a últimabarreira, eu a transpuspara todo o sempre.Minhamãe
consagrou-meaoseuDeus:mocidade,natureza,tudo…oh!tudosesacrificouàes-
perançadealcançaroCéu!
“E os antigos deuses de nossos pais abandonaram este palácio silencioso.
UmEnteinvisível,umSalvadorcrucificado,eisocultoquenosimpuseram…Enem
jánovilhos,nemtourosporvítimas,porém…vítimashumanas!
OEstrangeiroainterrompeaçodado:
Eutinhaumasasasbrancas
-173-
“–Épossível!seriastuaquelaquemeédestinada!Oh!sêminhaesposa,en-
cantadoravirgem:ojuramentodenossospaisnosasseguraabênçãodoCéu.
“–Nãomais:oh!nãoinsistasmais,bommancebo:tenhoumairmãmaisno-
va,elateestáreservada.Eu…penarei:mesmonosbraçosdela,pensaalgumavez
nestapobreinfeliz,emmimque,longedeesquecer-te,morrereideteamar,ede-
pois…atumba.
“–Porestaluzquenosalumia,peloCéu,pormim,teabonoqueassimnão
será.Tuperderesavida,eeuperder-te!…Fujamos;segue-meaolarpaterno,não
nosseparemosmais,ódoceamada,somosesposos,sentemo-nosaofestimnupcial.
Ambososnoivosfizeramtrocadosseusanéis:elapassouaocolodojovem
umacadeiadeouro,eaceitouumamadeixaquelhehaviapedido.
Entãosoounorelógiodopalácioahorafúnebredosespíritos:avirgempa-
receu tranquilizar-semais, e chegando aos lábios desbotadosuma taçade vinho
purpúreocomosangue,aofereceudepoisaomanceboquealegrementeaestancou.
Mais violento amor lhe entranhou no peito esse banquete silencioso, e a
donzelaafurtar-se-lhesempre;erogoseprotestos,efinezas,tudoébaldado…De-
sesperado, furiosodeamoredespeito,arroja-seenfimsobreo leitosoluçando,e
rompeemtristeecopiosochoro.
Elasesentouaoseulado,emeigalhedisse:“Nãoépormeuquererqueeu
teaflijo:estremecerásquandosouberesoquevouconfiar-te:alvacomoaneveéa
noivaqueescolheste,mastambéméfriacomoaneve.
Masomanceboatomanosbraços,eapertando-aconvulsomurmuraestas
palavras:
“Omeucoraçãotedarácalor,óvidaminha,ofogoquemedevorateconsu-
mirá…
“Esuspiros,ebeijos,elágrimas,eosbraçosenlaçados,easalmasconfundi-
das…
Avelhadonaouviurumornoaposentodeseuhóspede:qualseráomotivo
desse rumorqueouveavelhamãedanoiva?–Elao saberá.Mansoemansovai
dirigindoospassosatéàporta,eosprimeirossonsquelheferemosouvidoséum
retinirdebeijos,eumarfardesuspirosamorosos…
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-174-
Mudaequedapermaneceavelhaalgunsinstantes,atéquedistingueasse-
guintespalavras: – “Ai! jáo galodesperta…mas tuvoltas amanhãànoite, nãoé
assim?…”Eumnovomurmúriodebeijos.
Adonajánãopôdeconter-se,eentraprecipitadamente.“-Queméaimpudi-
ca escrava que assim veio entregar-se ao estrangeiro?…” A luz da lâmpada deu
nessemomentoumclarãomaisvivo;eavelhareconhece…suaprópriafilha!
NoprimeiroinstantedesustooGregolançaraumvéusobresuaesposa:ne-
leseenvolveadonzela,elevantando-se,foicrescendoecrescendoatéaotecto.
“–Ah!minhamãe,minhamãe,dizcomvoz lúgubreepausadaomedonho
fantasma, para que vindesperturbar aminhabela noite denoivado?Para que é
despenhar-meassimdocumedaminhafelicidade?Aindaerapoucoamortalhaem
quemeenvolvesteseatumbaquemecavastes?
“MasumpoderdesconhecidomearrancoudomeuSepulcro;nemosal,nem
aáguapoderãoapagarofogodajuventude;aterranãopodeconsumiroamor.
“Prometidomehavíeisaessemancebonotempoemqueaindaestavamer-
guidososaltaresdeVénus;equebrastesessapromessasagrada,edesertastesdo
culto,etrocastestaisvotosporoutros…Enãosabiastuquenenhumdeusescuta
osvotosdeumamãe,quandoestadispõedafilhaaoutremprometida!
“Venhodatumbareclamarajóiaquemeroubastes;venhodatumbasópara
amaraquelequemeeradestinado,esugartodoosanguedoseucoração…Agora
vou-meeodeixo,bemcontraminhavontade!
“Etu,adoradomancebo,tunãoviverásjámuitotempo:nessemundotujá
agoratesentiriasmurchar,edefinhariascomoaflordodeserto:estamadeixaque
medeste,essacadeiadeouroqueaindateadorna,nosprenderamumaooutropor
todaaeternidade…Amanhãestarãobrancososteuscabelos;esóquandoamimte
reunires,quandovoltaresàtuaesposa,équeeleshão-derecobrarasuacorprimi-
tiva…atéentão,queridoesposo;atélátambém,minhamãe!…
*Oartigoseguintenosfoiremetidopedindo-se-nosasuainserçãonoJornaldo
Conservatório:nãoachamosrazãosuficienteparadeixarmosdesatisfazeressedese-
jo;masdesde jádeclaramossolenemente,quenãorespondemosdirectaou indirec-
tamentepelamatériaouformadomesmoartigo.
Eutinhaumasasasbrancas
-175-
Comunicado
DAARTE
(FRAGMENTOS)(Servindocomoderespostaaoartigoinsertononúmero4doJornaldoCon-
servatório,debaixodomesmotítulo.)
Emmeiodamultidãoatenta,estavaumoradorquepregavadoutrinasno-
vas;eamultidãoescutavaseusdiscursos,quenãoentendia,aplaudindosuaspará-
bolas,comoinspiraçõescelestes.
Eoprofetadasturbaslhesdizia,comvozdemestre,eacenodeSenhor:
“Sim! A arte consiste em trespassar fragmentos do mundo ideal para o
mundoreal.Omisterdoartistaédizeràsmultidões:VêdeasexistênciasqueDeus
lançounomeuespírito;existênciasque,ounãoháemvós,ouque,seascomparar-
descomasquevosrodeiam,sãogigantes,quernobem,quernomal;quernobelo,
quernodisforme;quernosuave,quernoterrível.–Examinaiseháaínasdaterra,
asdimensões,ouaintensidadedasqueestavamescondidasnoseiodaminhainte-
ligência…
Eonovoprofetaquevinhaanunciararegeneraçãodaarte,eraconduzido
emtriunfo,puxadopelasturbas,queseatrelavamaoseucarro;eemaltasvozes
vitoriavamomessiasdaarte.
Echegandoaocumedeumaaltamontanhadeondeseviamtodasasruínas
daterra,suascidades,seustemplos,suasestátuas,seusobeliscos,etodasquantas
maravilhastêmsaídodasoficinas;disseàsturbas:
“Agora quereis vós saber qual foi a filosofia da crítica literária, e artística
durantedoismilanos!–Dir-vo-lo-ei.
UmdiaAristóteleslembrou-sedefazerumlivrosobrealgumobjectodeque
nãoentendesse:pegounocálamo,eescreveuPeriPoihtikhs!
Umseucomentadorachouadefiniçãod’artenofundodeumodre,ounas
visagensdeumTruão:elançousobreopapiroapalavrafatalMimhsiz!
Edepoisveioumpoetaromano,eescreveuunspoucosdeversosdesorde-
nados,queaprouveaoscríticoschamarartepoética.ERoma,àvozdopoetadas
ânforas,edasprostitutas,respondeu:–Imitatio!
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-176-
EaEuropad’hojerepetiudoismilanosdepois:aarteéaimitaçãodanatu-
reza.
Além estão o Parthenon de Atenas, o Coliseu de Roma, as Pirâmides do
Egipto,osArabescosdeAlhambraedoVaticano,equetêmelesdecomumcomo
preceitodeAristóteles?equetêmelesdecomumcomasregrasdopoetadasânfo-
ras?
AítendesoscantosdeTirteu,osdeuses,osheróis,oscentauros,assereias
d’Homero, as bolgias, e o Ugolino de Dante, as fadas, os gigantes, e os grifos
d’Ariosto,oAdamastordeCamões,equetêmtodoselescomopreceitodaqueles,a
quemhádoismilanos,oscríticoschamaram–mestresd’arte?
Easturbasembaídas,derrubaramasestátuas,osmonumentosque,hádois
milanosatestavamaglóriadosmestred’arte.
Entãoonovoprofetafirmouasuadoutrina,edisse:
“Odogmadomeuculto,éeste:–Aarteéuma–trêsentidadesdistintas,que
aformamumsóserverdadeiro–oideal–éopadre–opoeta–éofilho–aformaé
o espírito vivificante, e animador. O primeiro dá-lhe a substância; o segundo as
condiçõesabsolutas;oterceiroascondiçõesrelativas,dependentesdomundoma-
terial.Oidealéomistério–opoetaéovidente–aformaéarevelaçãoescrita.Esta
aminhatrindade,aidaquelequeanãoacredita!Anátema!…
Eogritodeproscrição,emaldiçãoretumbounosquatroângulosdomundo,
semquenenhumdosvivos tomasseadefesadosmortos.Entãos’ouviuumavoz
d’entreamultidão:“Façamo-lorei!”
Etodaamultidãooaclamoucomotal.
Dasruínasdasantigasmonarquias,dosdespojosdosantigosmonarcas,lhe
ajeitaramumtrono,ondeoergueram.
Eumdossacerdotesdonovocultoiacingir-lheacoroa,quandoumasom-
braseergueudiantedosolhosde todos,eosacerdote tremeu,edeixoucairdas
mãosainsígniadamajestade,querolandonosdegrausdotrono,foicairfeitaem
pedaçosadistânciaimensa.
Onovoreitremeuvendooseumestreelhebradou:
“Quebuscastuaqui…?findouteureino…
Teuculto,tuasleis,heisuplantado…
Doismilanosreinaste…eureinoagora…
Eutinhaumasasasbrancas
-177-
Entãoasombraolhouparaodiscípulo,elhedissecomvozmeiga,esuave,
comodepaiaumfilhobemquerido,queabusoudascaríciasquena infância lhe
fezcomoaomaiscarod’entreosseus…
“Eéstuquemderribasomeutrono?
Quemprofanaoaltar,acujasombra
Teerguestesacerdotedomeuculto?
Eéstuquemmeinsultadesapiedado,
Semaomenospensar,nãotenhocultores?
Ondeachasteatrindadedoteuculto?
Ondeachasteessesmoldestãosublimes
Paranelesvazartuasideias?
Essesmoldesquaissão?anatureza
Tebradarácomvoz,quetudesprezas
Arazão,serazãoouvirquisesses.
Quepodestucriarquesejanovo,
Cujotipomaisbelonãoencontres
Nessaimensaextensãoquedesconheces,
Nessesmundossemfim,quenuncahásvisto?
Ondepodesacharumsócontraste,
Paradeleextrairumaharmonia,
CujomoldenãosejaamãodoEterno?
EssasdoEgiptomolesmajestosas
Quesãoelasaopédessasmontanhas
Queanaturezaergueuportipodelas?
Ascolunasd’umtemplotãoesguias
QuesãoaopédosbosquesdasFloridas?
EssescantosdosBardos,teusmodelos,
Quesãoelesaopédotromqueestala
NessavastacampinadoUniverso?
Quesãoelesaopédocantoameno
Doscantoresdosbosques,tãosuaves,
QuandoerguemaoCéuosseuslouvores
ParacantaroDeusqueoshácriado,
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-178-
Paracantarascenasportentosas
D’imensacriação,dequesãoelo?
Camões,Vasco,Domingues,quefizeram?
Imitarammelhor,doqueoutrosmuitos.
Etumesmoquefazes?tuimitas.–
Quepodestucriar,rivaldoEterno?
Nemaomenosonada.–Nãoblasfemes–
NãoponhasqualTitã,montesemmontes
ParaoCéuescalar;qu’ésesmagado.
Reformaoserrosteus,tuadoutrina;
Esequereserguerumtronoestável
Nãoofirmesnoar,firma-onaterra,
Ondepossaspousarteuspésdebarro,
Erguendoatuafrente,mascurvada
AnteDeus,anteassuascriaturas.
Esóquandotiveresconhecido
arazãoporqueaplantacresce,emorre
Entãopodesbradar:“eusouReid’arte,
Queosmistériosroubeiànatureza;
Nãocareçoimitar,eutenhoosmoldes
PelosquaisDeusfundiusuasfeituras.”
Easturbasaplaudiram…
UmdefensordeHorácio
___________||_____________
COMÉDIAMARAVILHOSA
RepresentadanaCidadedeTimplão,próximaaoReinodoPegu,em1549.
(EXTRACTODEFERNÃOMENDESPINTO)EntrandooEmbaixadoracompanhadodosquatroPríncipes,queolevavam,
seprostroucincovezesnochão,semousarlevantarosolhosparaoCalaminhã,por
acatamentonobrequeselhetem;atéqueoMongavarulhemandouquepassasse
adiante,echegandojuntodaprimeiragrade,semprecomorostoemterra,disse
Eutinhaumasasasbrancas
-179-
defrontedoCalaminhãemvozalta,quetodosouviram:“Asnuvensdoar,quere-
criam os frutos, de que nosmantemos, têm divulgado por toda aMonarquia do
Mundoagrandemajestadedoteupoder;peloqualcobiçandoomeuReicomopé-
rola rica a tua amizade, se temanda pormim em seu nome entregar por irmão
verdadeiro,ecomobediênciahonrosa,emrazãodeserestumaisvelho,eelemais
moço;ecomotal temandaestacarta,porsera jóiasupremadoseutesouro,em
queseusolhosmaissedeleitamporhonra,egosto,queemserSenhordosReisdo
AvácomtodaapedrariadaSerraFaléu,eJantir,ePontau.OCalaminhãcomrosto
grave,esevero,lherespondeu:“Euaceitoemmimestanovaamizadeparaemtudo
satisfazerateuRei,comoafilhonovamentenascido,deminhasentranhas.
Asmulheresentãotocaramdenovoseusinstrumentos,comoantesfaziam,
eseisdelasdançaramcomseismeninospequenosporespaçode três,ouquatro
Credos; e após estes dançaram seismeninas pequenas com seis homens velhos,
queestavamnacasaqueatodosnospareceumuitobem.Acabadoisto,houveuma
comédia representadapordozemulheresmuitobemvestidas emuito formosas,
naqualveioumafilhadeumReiatravessadanabocadeumpeixe,quedepoisali
empúblicoperante todos foi engolidadomesmopeixe; oquevendoasdoze, se
foramcommuitapressa,emuitaslágrimasfugindoparaumaErmida,queestava
aopédeumaSerra,dondetornaramcomumEremitãoconsigo;oqualfazendoa
seumodograndesorações aoQuiayPatureuDeusdomar, quemandasse lançar
aquele peixe na praia, para se dar sepultura àquela donzela conforme aos altos
quilatesdasuageraçãolhefoirespondidopelomesmoQuiayPatureuqueconver-
tessemaquelasdozedonzelasseuprantoemmúsicasuave,eagradávelaseusou-
vidos,equeelemandariaaomarquelançasselogoopeixefora,e lhoentregaria
mortoemsuasmãos.Evindoentãoseismeninoscomcoroasdeoironascabeças,e
asasdomesmo,damaneiraqueentrenóssepintamosAnjos,porémnus,semcoi-
saalgumasobresi,sepuseramdejoelhosjuntodosdoze,elhederamtrêsharpas,
etrêsviolascomalgunsinstrumentosmúsicos,emqueentravamduasdoçainhas,e
lhedisseramqueoQuiayPatureulhesmandavadoCéudaLuaaquelesCaulanges
paracomelesadormentaremospeixesdomar,eseremelaspelasuavidadedasua
músicasatisfeitasemseudesejo.
As doze tomaram com grande cerimónia de cortesia os instrumentos das
mãosdosseusmeninos,etocaram,ecantaramcomumaharmoniatãotriste,ecom
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-180-
tantas lágrimas, que alguns Senhores dos que estavam na casa as derramaram
tambémecontinuandoemsuamúsicaporespaçodequasemeioquartodehora,
viramsairdebaixodomaropeixequecomeraafilhadoRei,eassimcomoarvoado
poucoapouco,veiomortodaremseconapraia,aondeasdozedamúsicaestavam;
etudoistotãopróprioetãoaonatural,queninguémojulgouporcoisacontrafeita,
senãoporverdadeira, e fora isto, e era feito comgrandíssimo fausto, aparatode
muitariquezaeperfeição.Umadasdozearrancandoentãoumaadargadepedraria,
quetinhanacintaescaloucomelaopeixeporumailharga,elhetiroudedentroa
filhadoRei;aoqualaosomdaquelamesmamúsicafoibeijaramãoaoCalaminhã,
quecomgrandehonraasentoujuntoconsigo.Eestamoçasediziaqueerasobri-
nha, filhadeumirmão;etodasasoutras,eramfilhasdePríncipes,egrandesSe-
nhores,cujospais,eirmãosestavamalipresentes.Houvetambémoutrastrês,ou
quatrocomédiasaomododesta,representadaspormulheresmoçasmuitonobres,
comtantoaparato,primor, riqueza,e comtantaperfeiçãoemtudo,queosolhos
nãodesejavamvermais.
VERMENOS,GOZARMAISNãofaltamespectadoresqueandemacorrerosteatrosemcataunicamente
deactrizesmoçasebonitas,decómicosformososeapessoados:–quemontapara
talgenteainteligência,agraça,aexpressão,omérito,eaindaatranscendênciade
talento?–Nãoéodramanemapersonagemquemosacareia;contentam-secoma
viajeira ilusãodeumaconquistaamorosa,deumaaventuradecamarim.Éoho-
memouamulherqueelesvêemenuncaoartistadramático;eparataisamadores
foram inventados esses óculos gigantescos e pesados, que um braço vigoroso a
custopodesustentarpormaisdealgunsminutos;queseriamóptimosparalerna
facedalua,masqueproduzemsobrealgunspobresactores(paranãodizeractri-
zes)omesmoefeitoqueoaneldeAtlantenaformosíssimaAlcina!Oh!queéporcertoapuradogostoexaminarminuciosamenteumcomedian-
teamicroscópio,nemqueinsectoelefora!Estudartodasasmanchasenódoasde
umcarão!Contarumaaumatodasasimperfeiçõesdeumsemblantecujaexpres-
sãoésempreexageradapelaóptica!Finalmentesubstituirumamáscaraaumros-
tohumano:poisquesenãoumamáscaraéquenosapresentamessesnovosócu-
los?–Umatezemprestada;grandesmascarrasdevermelhãonas faces,quebem
semelhamsubcutâneaefusãodesangue;camadasdefarinhanatesta,barbaepes-
Eutinhaumasasasbrancas
-181-
coço;algunstraçosazuis,fingindoveias;sobrolhosfeitosapincel;–eisocompên-
diomonstruosoqueessesóculosvosdevassam,semelesveríeisumrostoencan-
tador aperfeiçoado pela arte, melhorado pela perspectiva; e o trocastes por um
misto,quealgumacoisatemdehorrendo!…
Equantopoderiamdispensar-seessasmáquinasdedesencanto!–Quemdá
o devido valor aos divertimentos teatrais ignora acaso que não é realidade que
nelesseprocura,masaverdade;equenãopodeestadar-seemumteatrosemilu-
sões! – Verdade convencional é esta de que falamos; e quanto dementiroso em
tudoquantoéconvencional!Agrandearteporémtodaestáemtransformarnuma
só verdadeumcomplexodementirasdelicadas. Parahaver realidadesno teatro
dever-se-iarepresentarsembastidores,nemcenas;aluzdosolnãoseriafictícia,o
marcumpririaquefosseoverdadeirooceano,osanguedeviarealmentecorrerde
profundas feridas, e amorte serumamorteverdadeira, e a todososdramas ro-
mânticos se seguiria então uma cena mais romântica (tomamos aqui a palavra
ROMÂNTICOnosentidoemqueovulgoacompreende)–oefectivoenterramento
dosprincipaisactoresmortosnodrama!–Eoofíciodecomediantenãoseriapara
desejar!…
Temcondiçõesaarte;pretenderiludi-laséassassiná-la.Éateatralocom-
plementodaartedramática.Hánestaalgumaexageraçãodesentimentos,efeitose
palavras,porquelheincumbeactuarnamultidãoacertadistância;sãoparaaquela
os acessórios, gestos, decorações, e arrebiques. Para que possa dar-se harmonia
entreestasduasartescumprequeasegundasesujeiteàprimeira,elhepresteau-
xíliocompalavras,aspecto,movimentoegraça.
--------------*---------------
CRÓNICATEATRALFoi uma semana teatral incompleta a que findou ontem: só na terça-feira
começaramos espectáculos, havendo-se estes interrompido em consequênciada
morte de um Príncipe da Igreja; tiveram pois as nossas elegantes, edandys que
recorreraalgumconhecimentoantigoparateremdequeocupar-seaomenosatéà
meia noite, porque, pelamesma razão, nem sequer umbaile houve nesse longo,
nesseinterminávelperíododetrêsdias!
Chegoupoisadesejadaelentaterça-feira,eláestavaabertooTeatroNor-
malcomoseuCAMÕESDOROSSIOparaaplateiageral,ecomo,nuncaassazlou-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-182-
vado,BOMAMIGOparaaplateia inferior;assimpodedizer-sequehouveovação
naqueleteatro,ecomohaviaiguariasparatodosospaladarestoutlemondearesté
content.–Apropósitodestecolchete–CAMÕESeBOMAMIGO–nãodeixadevira
pêlolembraraoSr.DirectordoTeatroNormalqueacombinaçãodestasduaspeças
nãoémuitofeliz;emprimeirolugar,porquesãoambascómicas(apesardascho-
radeirasdaúltima)ealémdistoporqueacabaassimoespectáculomuitocedo,eé
uma sensaboria (comoporaídizem) teremosespectadoresdese recolherantes
dasonzehoras,oquenaverdadeémuitopoucoaristocrático,inteiramenteoposto
aobomtom,eincómodoparamuitos,porcontrariarseushábitos.
Quinta-feira9docorrenterepetiu-seomesmoespectáculo;aconcorrência
deespectadores foigrandeeescolhida,masnempor isso foiapeça tãobemde-
sempenhadacomodasoutrasvezes;oscorosnãoforambemeoSr.MATTAsees-
queceudoseupapelnomonólogo.Vê-sebastasvezes,nasmeninasqueestudam
piano,saberemelasmuitobemanovasonataquelhesderamparaestudar,porém
mal começam comoutra, lá vai a primeira para detrás da porta. Não devemos
nossosactoresimitaressascaprichosasmeninas,nãosóporqueéemprejuízode
terceiros,masporqueopúbliconãoabonacaprichosdecena,comofaznassalas.–
NãomereceoSr.Mattaqueselheapliqueestacomparaçãoporquetemdeusosa-
berbemosseuspapéis,masveioelaapropósito,enãofaltaráaquemsirvaacara-
puça.–Estamossobremaneiralisonjeados,vendoquenacenafinaldo2.ºactodo
CAMÕESDOROSSIOseadoptouaalteraçãoquehavíamosexpostoemonossopas-
sadoNÚMERO:oresultadocumulouosnossosdesejos,ejustificouaboaféeacer-
todaquelanossareflexão.
TEATRODES.CARLOS–Quarta-feira8docorrente,ESMERALDA,PORTU-
GUESESEMTÂNGER:–começaaverificar-seoprognósticopornósaventuradoem
oARTIGOdonossoNÚMEROanterioracercadaEsmeralda;estapeçavaiagradan-
domais,enessanoitede4.ªfeiratevemelhoraceitação.
Sexta-feira10,PARISINA,oTriunfodeAmor.–OassuntodeParisinaestájá
rebatido,poucohápoisaacrescentar.UmdiaumBacháestandocomsuacomitiva
averdançarunsUrsos,exclamoucomoseudespotismoturco:–“Todoaqueleque
senãodivertirhojeseráempalado.”EmLisboahácertospetitsBachásquetambém
condenariam,sepudessem,aserempaladostodososquenãoachassemqueaSra.
Barilicantasempreomelhorpossível.PoismeusSrs.tenhampaciência,masaSra.
Eutinhaumasasasbrancas
-183-
Barili,cantandomuitasnoitesagradavelmente,nãofoibemnadesexta-feira,antes
desafinouemalgumascadências;oSr.Spechnãodesempenhoutãobemcomocos-
tuma,longedisso.
OnovoBailetecompostopeloSr.Jorchagradoumuito;eascenasnovassão
debomgostoeriqueza:aSignoraDEVECHIfezalgunsprogressosnoconceitodo
público. Daremos doutra vez uma análisemais circunstanciada deste bailete, e
hojesóacrescentaremosqueosSrs.JORCHeDEVECHIforamchamadosforapara
seremaplaudidos.
__________________
DECLARAÇÃOConstandoaosRR.desteJornalquealgunsdosartigosexaradosnosantece-
dentes NÚMEROS foram por alguém atribuídos a indivíduos que não tiveram a
menorpartenasuaredacção,declaramquetodososartigosquenãolevaremassi-
natura,verdadeiraoupseudónima,aelesexclusivamentepertencem.–Estadecla-
raçãodizrespeitotantoaosNúmerospassadoscomoaosfuturos.
_________________
ÁLBUMEpitáfiodeHENRIQUEVIIIdeInglaterra,feitopelocélebrepoetadramático
EspanholLOPEDEVEGA:
Másquedestalosafria
CubrióEnriquetuvalor,
Deunamugerelamor,
Ydeunerrorlaporfia.
Comocupoentugrandeza
Querer,EngañadoInglês,
Deunamugeralospies,
SerdelaIgleziacabeça?
____________________
Semelhamas produções do espírito aos delicados frutos, que asmais das
vezesencontramosmuitoverdesoumuitomaduros,sendobemdifícilcolhê-los,e
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-184-
servi-losapropósito.–Quandoaimaginaçãoestáemtodaasuaforça,apenasse-
mi-formadosemostraojuízo;equandoestechegaàsuamaiorperfeição,jáasou-
traspotênciasdaalmadeclinam,ependem.Àmedidaqueadquirimosasvantagens,
queresultamdebemjulgar,perdemosasdeinventarcomaceitação.
__________||_____________
Traduzir perfeitamente originais excelentes é tarefa sobremaneira difícil;
poisqueamaiorpartedastraduçõesparecemaquelastapeçarias,quevistaspela
parteposteriordeixamperceberasfiguras,quenelassedesenham;mastãotran-
çadasecheiasdefios,quediriamseremapenassimplesesboços.
________________________
ESPECTÁCULOSDASEMANACORRENTE
TEATRODES.CARLOSDia12–Domingo
ROBERTODODIABO.Ésuprimidooquintetodo2.ºacto,eosolodo3.ºserá
deoraemdiantedesempenhadopelosuplementoMlle.Moreno.
Dia13–2.ª-feira
Benefíciodo1.ºbailarinoJorch
Ópera – PARISINA – Bailete composto pelo beneficiado – O TRIUNFODE
AMOR.
(N.B.Éa2.ªrepresentaçãodobailete)
EmumintervaloosSrs.Spech,eMariani,porobséquioaobeneficiadocan-
tarãooDuetodo2.ºactodos–PURITANOS.
Dia15–4.ª-feira
Ópera–ESMERALDA.
Dança–OTRIUNFODEAMOR.
Dia17–6.ª-feira
Ópera–PARISINA.
Dança–OSPORTUGUESESEMTÂNGER.Debutaráonovobailarino,Mr.Ca-
sali,dançandoumpas-de-deuxcomMlle.DeYecht.
Eutinhaumasasasbrancas
-185-
GRANDEGALERIAÓPTICA
ExpostanolargodeS.Paulo,nascasasdaExma.CasadePombal,n.º11,em
4salasnoPrimeiroandar,ondeserávisíveltodososdiasdas11horasdamanhã
atéàs3datarde;edasAvéMariasatéàs9danoite.
PRIMEIRAEXPOSIÇÃO
Das SETE interessantíssimas representações, das quais três no género de
Neorama(inteiramentenovonestacapital),equatronodeCosmorama.
EstaduraráatéSegunda-feira13de Janeiro inclusive,eseguir-se-ádepois
outra nova, na qual nunca se repetirá nenhumadas sete representações antece-
dentes.
___________________
n.º7,de19deJaneirode1840
APRESIDÊNCIA
DO
CONSERVATÓRIOApropostadoSr.ConselheiroAlmeidaGarrettparaqueoConservatórioso-
licitassedeS.M.ElReiD.FernandoahonradeaceitaraPresidênciahonoráriado
Instituto,foiacolhidaemconferênciapúblicade6deDezembroúltimocomgeral
entusiasmoeadoptadaporaclamação.
FoioSr.GarrettencarregadodenomearumagrandeDeputaçãodoConser-
vatórioquecomoditoSr.fosseàPresençadeS.M.levar-lheaquelamensagem.Os
nomeados foramosSrs.CondedeLumiares,GeneralRaivoso, JervisdeAtouguia,
CondedeMello,ManoeldaSilvaPassos,Bomtempo,CondedaTaipa,GonçaloVaz
deCarvalho,AntónioFelicianodeCastilho,FilipeFolque,D.GastãoFaustodaCâ-
mara,MarquêsdeValença,AlexandreHerculano,DoutorLoureiro, JoãodeSousa
PintodeMagalhães,AntónioJosédeLimaLeitão.
TomadasasordensdeS.M.,emarcadaahoradomeiodiaparaarecepção,
aessahoraseachouaDeputaçãonoPaláciodasNecessidades,eadmitidosàpre-
sençadeS.M.,oSr.ConselheiroGarrettleuoseguintebrevediscurso:
SENHOR.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-186-
Dignou-seS.M.ARAINHA,tirar-medeminhaobscuridadeparameconfiara
execuçãodoseugrandeepatrióticopensamento,odefundaronossoteatro,rege-
nerandoasartesqueoformam.
Obedeci,Senhor,renuncieiàminhabem-aventurançanestemundo,queéo
sossegodomeugabinete,queridorefúgiodeumhomemdeletrasemtemposco-
moestes,e fuiportodasasclasses,esemdistinçãodepartido,solicitaroauxílio
dos literatosmaisdistintos,dosartistas,dequantosmostraramzeloe fervorpor
esseantigoempenhodaNação.
AssimnasceuoConservatório,ondeaMúsica,aDeclamação,aCoreografia,
todasasartesqueauxiliameconstituemadramáticasãoensinadaspelosnossos
Professores,fomentadaspelosnossosliteratos.
Começámoshápoucomaisdeumano,evinteetantosdramasoriginaistêm
aparecidojánestalínguaportuguesaqueháoitoséculossefala,háquasecincoque
tãoeleganteseescreve,quepormaisdeoitomilhõesdehomenséhoje falada,e
queaindatantonãotinhafeitodesdequenascera.
Duzentos alunos frequentam as nossas escolas; de alguns temos grandes
esperanças.
Aminhamissãoestáconcluída,adoConservatóriocomeçada.
EueelevimosaosPésdeV.M.paraquesedignefazer-noshonraemercê,
aceitandoaPresidênciahonoráriadesteInstituto;porquetrabalhaezela,porque
temumfimiminentementepatrióticoecivilizador;eporqueamparadoaquicoma
Presença de V.M., há-de fazer honra àNação, e não há-de deslustrar o Augusto
NomedeseuPresidente.
BeijamostodosaMãodeV.M.pelamercê.
Lisboaem13deJaneirode1840.
Assinado:JoãoBaptistadeAlmeidaGarrett.
S.M.Dignou-seresponderoseguinte:“AgradeçomuitoofavorqueMefazo
Conservatório,eoAceitocommuitogosto.EuHei-defazertudoquantoestiverda
MinhaparteparafomentarumEstabelecimentotãoútilequetantoprometeàLi-
teratura,eàsBelas-Artes.Podemassegurá-loassimemMeuNomeatodososseus
Colegas.
Eutinhaumasasasbrancas
-187-
S.M.Entreteve-sedepoisfamiliarmentecomalgunsdosmembrosdaDepu-
tação,quemaisconhecia,eaoSr.Castilho,queviapelaprimeiravez,dirigiualguns
cumprimentoslisonjeirossobreoseutalentoecomposições.
Retirando-seEl-Rei,aDeputaçãosolicitoudevidamenteahonradeserad-
mitidaabeijaraMãodeS.M.aRainha,queimediatamenteosRecebeu.Dignaram-
sedepoisSS.MM.daràDeputaçãoaindaoutrotestemunhodeSuaBenevolência,
apresentando-lhesojovemPríncipeRealcujaformosuraeamabilidadetodosad-
miravam.
JORNALDOCONSERVATÓRIOTencionandodaranossosLeitoresosPareceresdasComissõesdoConser-
vatórioacercadosDramasaelesubmetidos,poros julgarmosdesumointeresse
emrazãodosmotivosemquebaseiamacensuraeo louvorquelhesdistribuem,
começaremospeloseguintearespeitodoDrama–OEmparedado,–porseresteo
primeiroqueaoConservatórioconcorreu,merecendoseradmitidoàsprovaspú-
blicas.
PARECERAComissãoencarregadadeexaminaroDramaOriginalPortuguês,quetem
por título–OEmparedado,ouaConstâncianavingança –passouà sua leitura, e
por voto unânime de seusmembros, apresenta a este Conservatório o seguinte
Parecer.–AComissãoreconhecenoAutordoDramabastanteengenhoedisposi-
ção para o género em que começa a exercitar-se,mas não pode dissimular, que
nestacomposiçãoencontramososdefeitosseguintes.–1.ºOsdoisprimeirosactos
sãoabsolutamentedesprovidosde interesse.–2.ºAFábulaédesatada,sempro-
gressãoDramática,eosseusmeiossemproporçãocomosfins.Estedefeitoétal-
vez omais importante em qualquer composição Teatral. – 3.º Os caracteres são
débeis,ealgunsdelesfalsificados,porexemploosdaRainha,edoMestred’Avis.–
4.ºOscostumesdaépocaestãopintadoscompoucafidelidade.–5.ºOestiloéde-
masiadosimplesefaltodecoloridopoético.–6.ºOdiálogoéhabitualmenteprolixo,
semviveza,esemenergia.–7.ºNacenaentreaRainhaeoHebreunota-seuma
familiaridade,quepode julgar-se indecente. –8.ºA linguagempostoqueemsua
generalidadesejacorrecta,édequandoemquandomaculadadefrases,epalavras
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-188-
chulas,indignasdagravidadedacena,edodecorodaspersonagensquefalam.–A
Comissãoportanto,apesardealgumascenasbempensadas,edas intençõesDra-
máticas,quedevidamenteaprecianestaPeça,julgaquenãoestánascondiçõesde
seradmitidaàsprovaspúblicas.–LisboaemSessãodaComissão,em12deMarço
de1839.–CondedeFarrobo.–VascoPintoBalsemão.–JoséMariadaCostaeSilva.
BELASARTES
AlonsoCano,eoMuseuEspanhol.QuãonumerosassãoaspáginasdocélebreMurillo!Comoéfácil,quantoé
engraçadooseupincel!Diriasmisturar-seumpensamentodomundoaoreligioso
queressumbradaquelasfrontesdaVirgem–criaçõesdoRafaeldaEspanha;eque
umtipoamado,comooRafaeldoVaticano,desobreamansardadepintorlhere-
voava.–Easpaixõeshumanasdeenvoltasemprecoma indústria,eapoesiado
homem!
Umacortãosuave,umaexpressãotãomeiganãopodiaserocaráctercons-
tantedatelaespanhola;porqueacivilizaçãodessepaísnãosemelhaitalianas,ou
francesascivilizações;enaimaginaçãodessepovoalembrançadoinfernopredo-
mina as santas alegriasdoparaíso.O temor, enão a esperança, eis a religiãona
Espanha.
Supliciava-senatoscacelaomonge;ainquisiçãosupliciavaosheréticos;e
quandoainquisiçãocansara,eastorturasdosconventosrepousavamentrebran-
dosgozosdosossegadoretiro,entãoàimaginaçãodaquelepovosefaziammister
lembrançasdeuminfernoterrestre,cenasdesuplícioemartírio.
EquemnãoexplicarádestarteoestilodosRibera,edosZurbaran,exercen-
do-secruamenteemcabeçasdeangustiadosSacerdoteseConfessores,queexala-
vamoderradeiroanélitoemfacedorisoconvulsivodosalgozes?Acusarãoporven-
turadearidezaZurbaraneRibera,nãoselembrandoqueparadarausteridadeàs
formas,parahumilharacarneanteavivaluzdoespírito,cumpriaserdesalinhado
noscontornos,enaimpressãodabelezaterrestre.Opinceldoartistadeviaalumi-
arafrontedocenobita,oudomártirdessaluzdiáfana,quepareceestabeleceruma
Eutinhaumasasasbrancas
-189-
relaçãosimpáticaentreaterraeoCéu!Quantaexpressãoaideiapodedaraosti-
posdosofrimentoeresignaçãocristãs,ZurbaraneRiberalhaprodigaram.
DestesesuaescolaseapartouVelasquez;ou,paramelhordizer,jamaiselea
seguiu;oquemuitobemseexplicaeconcebe.–Velasquezeraovalidodoministro
Olivares,viveuentreosprazereseluxo;entreoincensodaadmiração,belíssimas
damas,edelíciasdacorte.ParaeleosoldeEspanha,eosorrisodasCastelhanas,
deviamtermaisbrilhoemaisdoçura;eisarazãoporqueseucoloridoébrilhante,
eabocadesuasfigurasaentre-abreumcontínuosorriso.
AlonsoCanoaninguémsemelha,eaomesmotempopossuialgumacoisade
todos os pintores contemporâneos, originalidade, rudeza, vigor, colorido, e algu-
masvezes,graça;emfiménassuasobrastãocaprichosocomonasuaexistência
privada.–AlonsoCanomodelava,esculpia,epintava;eraoMiguelÂngelodaEspa-
nha;masumMiguelÂngelo,queviajandocontinuamentedevilaparavila,decida-
deparacidade,edeumconventoparaooutro,sefaziacomediante,quandooburil
oupincelrepousavam,recusavadeclamarosversosdosautoresespanhóisquando
afortunalheconcediafixarsuasbelaspoesiasnasparedesdostemplos.
Ummotejopesadoeacerbocontraumdeseuscamaradas,quehaviadesas-
tradamente pintado a fronte da Virgem para o altar-mor de uma das principais
igrejasdeMadrid,determinouavidanómadaeerrantedoartista.–Muitosanos
tinhamdecorridodesdequeAlonsoCanopercorriaaEspanha,aproveitando-sedo
duplotalentodepintaredeclamar,quandounssalteadoreslheroubaramofruto
de suas economias. Afligiu-se por extremo com esta desventura, como todos os
homensdotadosde imaginaçãoardente: começouaviajar semquererutilizar-se
deseusmeios.–ChegaraporumatardeaosarrabaldesdeSevilha,cheiodefadiga,
aspernascediamaopesodocorpo,quandoumlampejodeesperançabrilhouao
descoroçoadoviandante;Alonsodescortina à esquerdado caminhoedifíciosque
formavamgrupo em tornode uma Igreja, e pela formadas janelas, pela cor das
paredes,eoestudadoalinho,quereinavanosterraços,supôsqueeraumconvento
defreiras.Nemseenganara:numinstanteaportatodaesculpidademuitosantas
históriasseabriuparaoreceber.–Masqualfoiasurpresa,aadmiraçãodopobre
pintorquandoencarouafisionomiavirginaldaquetemaincumbênciadeabrira
porta ao viajante? (Cumpre advertir quenosConventosdeEspanhahaviamuito
menosseveridade.)SeAlonsoousarapronunciarumapalavra,ouseaVirgemle-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-190-
vantasseosolhos,teriafeitoumapreciosadescoberta;maselepediuunicamentea
hospitalidadeatítulodeviajantedesgraçado,esemmeios,esquecendo-lhefalarde
seu talento. Apenas se achou só diante da lâmpada que lhe alumiava a refeição,
Alonso pensa na Freira cujo rosto e feições sossegadas, angélico sorriso, negros
sobrolhos,ecorpoesbeltoeaéreoselhehaviamapresentado,comoumaaparição
radiosa;etomandoentãoumafaca,esculpenaparedeoretratodaquelacujaspro-
porçõessuaves,selhetinhamtambémesculpidonalembrança.
NodiaseguinteAlonsoCanotinhadeixadoacelapara irembuscadasua
aparição,enãoapôdeencontrar;mascomovolvesseatomararefeiçãodatarde,
umavivaagitaçãoseapossoudele,aoconhecerqueumamãoestranhatinhaajun-
tadoalgumacoisaaoseuesboço:–eraumgrandeMtraçadoporbaixodoretrato.
Deu-lhenovacoragemadescoberta,epassouanoiteadiscriminaremmeiorelevo,
apoliroditoso trabalho.Pelamanhãestavaeleperfeito, eo artista sorriu à sua
obra.–Nodecursododia,umadmiradorestranhovisitoumisteriosamenteacria-
çãodoamor,poisque,antesdanoite,asemi-revelaçãododiaantecedentesetinha
completado,eaoartistafoiconcedidolerumnomeinteiroembaixodoretrato:o
nomeera–MANUELA.Electrizadopelaconquista,queseutalentoacabavadefazer
docoraçãovirginaldeumamulher,Canotrabalhoutodooseguintediaaesboçar
umaapoteosedeVirgemnomeiodeumamoldurabranca,quelhecoroavaacela,e
tendoacabado,pediuumaaudiênciaàAbadessa:–Soupintor,lhedisseele;vêde…!
–DesdeessemomentofoiCanoosemi-deusdaComunidade;enosegundodiajá
umandaimesealçavanoaltardacapeladaVirgem.
Canopôsimediatamentemãosàobra,envolvendo-sedepanosparatraba-
lharnessesilêncioisolado,quepreparaasinspirações.–Vinhamdetemposatem-
pos as Religiosas assentar-se atrás de algum pilar da Igreja, para seguir com os
olhosdaimaginaçãoosprogressosdomisteriosotrabalho:eaalgumasporventura
asmaisjovens,pertodanoite,equandoasformasseperdemnaobscuraunidade
dassombras,afigurou-se-lhesescutarumaconversaemvozsumida,cujasacentu-
açõesnãofaziameconaabóbadaagudadacapeladaVirgem;porémdediaoretiro
doartistaeratotalmentesilencioso.–Canodesceufinalmentedaelevadaoficina,e
o trabalhoestavaconcluído.Ofereceram-lheumarecompensa,quenãoquisacei-
tar;porémaomesmotempoimpôsàComunidadeacondiçãodenãotiraroandai-
me,nemveroretábulosenãodozehorasdepoisdasuapartida.Aceitaram,eele
Eutinhaumasasasbrancas
-191-
partiu. Mas um grande acontecimento se descobriu então: uma Religiosa tinha
abandonadooconvento,eoquadropatenteadopelaimpaciênciafeminina,revelaa
todaacomunidadeoenigma!MANUELAestavanelerepresentadavoandonosce-
lestes espaços sobreosbraçosdos anjos, que todos tinhamas feiçõesdeAlonso
Cano!Manuela havia seguido o pintor, que para indemnizar as boas das Freiras
lhesdeixavaemtrocoamaisbelaepoéticadascriaçõesdoseupincel!
EfoiditosacomAlonsoalindaFreiradoscamposdeSevilha!Tantoquanto
sepodesernomeiodasmilperipéciasdeumavidanómada,queoforçavaareci-
taraospaisanos,trechosdospoetascómicosdeEspanha,quandoAlonsoCanonão
queriatrabalhar;eaprepararascoresepaletas,quando,esquecendosuasdesgra-
ças,Canosedecidiaafazerumquadro.–Masumdiaadesventura,afelicidade,que
alternadamenteafligiam,econsolavamapobreManuela,cessaram.
CanorecitandodiálogoscómicoscomManuela,oupintandoVirgens,ees-
culpindo crucifixos, estava a algumas léguas deMadrid. Sabia que seu nome era
conhecido,equeostítulosdeglória,queporseucaminhoespalhara,tinhamsubi-
doaoexamedaadmiraçãocontemporânea.Porémosolquechamaasnuvens;eos
ódios,queseuhumorsatíricolhehaviaacareadonamocidade,começavamades-
pertarmaisenérgicos,maisviolentos,quenocomeçodesuabrilhantecarreirade
artista.Essainfelizrealidade,exageradaaindapelaimaginaçãoardentedeAlonso,
corroíasuaalmaecoração,efaziaqueselheafeiassemaosolhosostipos,queda-
vaàscalorosasinspiraçõesdoseugénio.–SobtaisinspiraçõessedeuAlonsoCano
acriarumatelaàsportasdeMadrid!…
Equalfoiaobraqueproduziu?UmadascenasmaisterríveisdoJuízoFinal;
umaimitaçãodeMiguelÂngelo;umapáginadoinfernodopoetaflorentino.–Ora,
enquantoofeldasátiraseestendiasobopincel,eque,entregueoespíritoecora-
çãoàvingança,Canomaterializavacomastintasaignóbilmáscaradeseusinimi-
gos,Manuela estavaatrásdopintor empé sobreo andaimequeporalgunsdias
tinhadeserapermanentehabitaçãodosamantes;evendoanimarem-sehorren-
damenteaquelasfiguras,aloucasepôsarir,earir,obedecendoaumdessesparo-
xismos,aquenãoháremédiosenãoceder…
MasCanonãopensavaentãonememManuela,nememsimesmo; lutava
contraseusinimigos,enãoviasenãoaguerra,quelhesdeclararacomsuascores,e
pincéis: julgououvir o insultodabocadeles; e levantando-se, arremete contrao
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-192-
géniomauquenumrisodeescárniolheacusavadeimpotência,asuaobra,asua
energiadefraqueza.Oestrondodeumcorpoquecai,seguiu,ouacompanhoueste
movimento:–eracontraoaltardemármoreocorpodeManuela!…Alonsoprecipi-
tou-sesobreocadáverdaesposa,quis tambémmorrercomamesmamorte,eo
corpo de Manuela o não consente!… Desgraçado, desgraçado!… Daí a uma hora
jaziaCanonasmasmorrasdaInquisição.
Acusavam-noemprimeirolugardetermanchadodesangueumaltar,deter
cometidoumhomicídionumaIgreja,eporúltimosereleoassassinodesuamu-
lher! ECano só respondia: Sou inocente!…Foi pois o grandepintor conduzido à
câmaradatortura,ondelheexplicarammiudamentetodososinstrumentoseseus
usos.–Eopintornãodescorava,nãotremia;porqueoseuespíritojátinhaperdido
acompreensão!Deu-seaordemdeopôratormento,eCanosuportousemumasó
queixao rijo apertodos trames;masquando lhemeteramobraçodireitonuma
torquêsdeferro,Alonsocomoqueacordadeumsonhopenível,eclama:–Quereis
destruir um braço que povoou de santos os vossos templos? Ignorais, que sou
AlonsoCano?…–Ojuiz,queignoravaseunome,suspendeuaexecução;eFilipeIII,
poramordoluxodasIgrejas,foiquasetãoclementecomoojuizdoSantoTribunal;
mandouquesecontinuasseatortura,massemtocarnobraçodireitodeAlonso!–
Maseletinhaenlouquecido;asualoucuraodeixouviver,eaforçadeseutalento
aindalheconsentiufazerumderradeiroquadro.
Manuelaocupatodoessequadro,edeseurostopálidotranspareceador;
mundanotoucado,comoodasactrizesdotempo,lheadereçaafronte,egrosseira
estamanhalherevesteosdelicadosmembros;apontandocomumadasmãospara
osornamentos,eparaoausterodovestidocomaoutra,lê-se-lhesobreocoraçãoa
assinaturadoamante,onomedeAlonsoCano!Evia-seoardenteepurocéudas
Espanhas;masporextravagânciadopintorapenasemumdesseslúcidosecurtos
momentos,queaProvidênciaconcedeaosloucos,comoparalhefazerlamentara
perdida inteligência, se vê tambémum sulco fantástico e anguloso, que semelha
perfeitamenteoraio!–Eestequadro tãoprofundamentealegóricorepresentava
Manuelaaomesmotemporeligiosa,actriznómada,amantedeAlonso,evítimado
amor!…
___________________
Eutinhaumasasasbrancas
-193-
ONovoPeriódicosemanalintituladoCOSMORAMALITERÁRIO,dequegos-
tosamenteteremosdefalarmaisdeespaço,éumdocumentoirrefragáveldequan-
toanossaliteraturavaimedrandoeprogredindo:assimnosapressamosnósadar
deleumaamostra,transcrevendoumdosseusexcelentesartigos.
OrigemeFinsdaPoesiaMuitotempoantesdehaverArte,existiramobras:–muitotempoantesde
se haverem estabelecido regras, haviam os homens composto e inventado, sem
regrasnempreceitos–apoesia, semdúvidaalgumaamaisantigade todaselas,
nasceulivreespontaneamente,porqueemtodosostemposexistirampoetas,epor
consequência as cenasdanatureza foram tambémasprimeiras a ser cantadas e
descritas,semqueparaasdescreverhouvessemoshomensmisterdeoutracoisa
maisdoquecederàsinspiraçõesquedelalhesvinham;deoutracoisamaisdoque
sentiressaprecisão(semaqualembaldequerereisserpoeta)dederramaruma
partedascomoçõesqueelavosinspira,quandoacontemplaisnamagnificênciade
suascenas.
Sentadosàsmargensdosrios,nocimodasmontanhas,ounofundodosva-
les,elesviramsempreessabelafugitiva,aquemlhesaprouvedechamarMusa;ora
simpleseingénuaamirar-senasondasfugitivasdeumarroio;–oradescorrendo
pelospradosalcatifadosdeverdura;–orafinalmente,sentadasobrerochedosal-
pestres,esempreeemtodaaparte transfigurando-seemmil formasdiversas,a
rir-lhes,eaacenar-lhesparaqueafossemseguindo.
MasquemeraestabeldadeerranteaquemlhesaprouvedechamarMusa?…
nãomaiseradoqueaimaginaçãodomesmohomem,levadadoembevecimentoe
entusiasmo,quenaturalmentelhedeviaminspirarascenasdeummundo,quede
conjuntoserenovavamaseusolhoscheiosdeadmiração.–EisaícomoaMusada
poesiaserevelouaosprimeirospoetas,ecomoaprincípiolhesapareceusimplese
formosa, unicamente vestida de sua própria graça, porque toda pudor e belezas
nãotinhaprecisãodeenfeitesnemdeataviosparaocultardesaires,quenãopos-
suía.–Eisaíigualmentecomoesteslhedeveramassuasprimeirasinspirações,e,
comoforçosamente,estasterãodesersempreasprimitivasdequalquerpovo,de
qualquernação.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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AengenhosaGrécia;que,comonós,senãopodiaprezardehaverdevidoa
crençadeseuspaisaumarevelaçãotodadivinadomesmoDeus,autordetantos
prodígios,foiaela,aquemdeveuasuaprimeiraorigem;–foidosfenómenossen-
síveisdeummundofísico,queelaseelevouatéàideiadeumpoderdesconhecido,
edeuma forçaextra-natural;mas faltadaverdadeira,queunicamente lhepodia
esclarecer o espírito, este se desvairou deixando-se ir após os caprichos de sua
belafascinadora,quetudolhecompôsdealegoriaspormilmodosdiversas,ecom-
plicadas,àsquaisos temposderamafinal,paraovulgo,ocarácterdeumaquase
revelação:–eisaíqualfoisempreasuainfluênciasobreadetodosospovos,cri-
ando-lha sempremaisoumenos cheiade terrores,maisoumenosaprazível, se-
gundoessamesmanatureza,deondetiravaorigemlhesfalavaaocoração,eàfan-
tasiacommaisoumenosamenidade,commaisoumenoshorrores.
Massemremontar tão longe,semcurarmosdecoisa tãoóbvia,comoade
provar,quesóelacriouareligiãodetodosospovosdaantiguidade,eemgeralade
todososoutrosdomodernomundo,quecomelesanãodeveramàfédeumareve-
lação,vejamoscomopoderosaseostentousempreparainfluirsobretodasasfor-
masdavidasocialdequalquerpovo.
SeaantigaGrécialhedeveuaorigemdetodososseusNumes,Júpiters,Mar-
teseNeptunos,comoelatodasasmaisnaçõesdaterralhedeveramosprogressos
sensíveisdesuailustraçãomoralepositiva; istoé,oamansamentodaferezados
seusprimitivos tempos;oamordasociedade,quea todososhomens inspirou,e
finalmentetudoquantopodiatornarohomemfeliznessestempos,emquesós,e
dispersospeloscampossóelaospoderiafazerreunir,peloamordobelocomque
continuamentelhesfalavaaocoraçãoeàfantasia.–Eraassimqueparaosvingar
daasperezadostrabalhos,aqueduranteodiasehaviamdado,eparalhesdesviar
aideiaparaobjectosmaisrisonhos,equemaislhesaprouvessemdepoisdehaver
andadodiscorrendopelaassomadadosmontes,ànoiteosentretinhacomossons
melodiosos de seus cantos e simpleza natural e encantadora de suas primitivas
harmonias:–eraassim,queinsensivelmentelhesiaamansandoanaturalrustici-
dadedoscostumes.
Alinguagemfoisempredasprimeirascoisasaquemaisseressentiudesua
influência;comodeinstrumentoqueelatinhadeapurareconcertar,paradepois
seservir:–observaicomoaprincípioincorrectaedesflorida,sefoigradualmente
Eutinhaumasasasbrancas
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aperfeiçoandoeenriquecendo,nopassoquedas flautasdeseuspoetas iasaindo
maismoduladaecomposta;paraquenelapudessemreproduzirnãosóospensa-
mentoseafectos,quaisdentrod’almalheexistiamjá,mastambémcomosonoro
dasharmoniase toadas,quandonasvozeshumanasosqueriamexpressar. –Foi
esteoprimeirotrabalhodetodoseles;odecomporeaperfeiçoaraharmoniadas
vozes,porquesemessaembaldequerereisacharpoesia:–aalmadopoetaécomo
uminstrumento,quemaissecompõeaindadesensibilidade,quedeinteligência:–
nadatãofortementeapodeabalarecomovercomoatorrentedeleitosadashar-
monias,quebebidaspelosouvidoslhesoanocoração,elherepassaosseiosmais
interiores.
Dificultosaempresa,porcerto,adecomporaharmoniadeumalinguagem
rude,eporsuaíndoleprópria,maisoumenosadoptadaarecebê-la,amoldar-seàs
suasexigências:–porissonãofoibastantequeelaporsisóohouvessedequerer
alcançar;houvederecorreraoutra,queaajudasseemsemelhanteempresa;eaí
veioaMúsica,essaprimeiralinguagemdohomem,ajudaraexpressãodaspalavras,
paraascorrigirdesuanaturalaspereza,paraque,quandoaquelanãopudesse,ou
serecusasseexprimir,láofosseestapelatoadadossonsencadeando,edealgum
modoexpressandoaoouvido,paraqueesteotransmitisseaocoração.
FoiassimqueaMúsica,ouapoesiadossons,veioservirapoesiadasvozes
oudaspalavras:–éporissoquenasprimitivascomposiçõesdequalquerpovose
reconhece sensivelmente, que só para a Música foram feitas, ou para falar com
maispropriedade,quejuntamentecomestatinhamnascido.–Cumpria,porcerto,
àmaisformosaexpressãohumanaocorrigirocarácter,ecastigaradurezadase-
gunda:comosuairmãmaisvelhacumpria-lhedoutriná-laeensinar-lheesseidio-
mamisteriosodesons,etoadasquepeloespaçoandararecolhendo.
Depoisdasformasdesordenadasesonsásperos,comqueaprincípioseha-
viaapresentadoefaladoaoouvido,suasformas,esuasharmoniasseforamgradu-
almenteaperfeiçoando;defilhademávidaevagabundadoscampos,comoaprin-
cípio foi, se tornoumais simples e reflectida: singela,mas natural, sem galas ou
enfeites,queacontrafizessemjamais,ouqueumavezsódessemaresdeaquere-
remvexaremseusmomentos.–Diz-sequeaLiradospoetasnãotinhaaindare-
montadotodasassuascordas,nemqueessasmesmasestavambemafinadas;mas
sejacomofor,apoesianarrativa,ouadanatureza,tinhanascidoassimmesmopor
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entretodaessarudeza,enelaseviamjáoscomeçosdeumaarteinteiramentedi-
vina.
Oh! quanto não são belas e naturais as canções de nossos primeiros poe-
tas!…Hánelasumtalperfumedeantiguidadeemelancolia,querepassaosseios
d’alma,equeinsensivelmenteenterneceaquemaslêcomatenção,eseaprazem
voltar comopensamentoatéaesses tempos,queasviramnascer:–umnãosei
quedeprofundamentesentido,quemostrajáoespíritocomoquerendoelevar-sea
maioresalturas,edesprender-sedasformasterrestresquerevestira:–umnãosei
quedecismadoramelancolia,comotãobemlheacertoudechamarumdosnossos
escritoresmodernos,quesempremaisaquiouali,revelaosaudososentirdaalma
dopoeta.
Masentretanto,qualhaviasidooprimeirofimdapoesia?…cantaranature-
zaemseusfenómenossensíveis;cantarafelicidadedohomemnasuacontempla-
ção;oquelhefaltavaerasomentecantá-lonasrelaçõesmaisíntimasdoseuespíri-
to comomesmoArquitecto, autor sublime de tantos prodígios. – E eis aí o que
maistardefizeramosprimeirosBardoscristãosemsuasharpascrentes, inspira-
dospelafé,epelarevelaçãodomesmoDeus.
NãoéistoporémdizerqueospoetasdaantigaGréciaeRoma,nãotivessem
tambémsaídoemsuascomposiçõesdomundomaterialparaointelectualdopen-
samento;masque,comoesseerasóodaimaginação,rarasvezesfalaramporesse
modoaocoraçãoeaosentimento,quandoporaíselhequiseraminsinuar.–Ami-
tologiaGrega, cheiadedivindades tãoviciosas, comoosmesmoshomens, e com
atributos,quemuitasvezesserepugnavam,nãopodiafalarseminfundirterroresà
imaginaçãodohomemqueostemia,masnãoosamava.–Eisporque,apósasua
poesiaprimitiva,adanatureza,aquemaislhepoderiaconvir,era,semdúvidaal-
guma, aquelaque lhe falassedas coisasemquemais crescenavida social; edaí
tomaramorigemasEpopeias,emaispoesiasnacionais,quetinhamporfimcantar
asvirtudespatrióticas,exaltaronomedosguerreiros,assuasboasqualidades,eos
seusdeveresparacomapátria.–Foiessatambémaqueadoptouumasociedade
nascente,quepelas formasdaantigase ia formando,adoptando igualmentecom
elaomaravilhosodasuareligião.–Largotempojazeuassimsujeitaaojugocapri-
choso,quelheimpuseramasleisdeumaArte,àquallhesaprouvechamardeImi-
tação.
Eutinhaumasasasbrancas
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Masaverdadeirapoesia,aquesó lhespoderiaconvir, láestavanos livros
sagrados:–nestes livros,queaohomemrevelaramaunidadeespiritual;maspor
desgraça, o que aprincípiohavia, como todas as coisas, sidoumbem, se tornou
nummal;eapoesia,essa filhadoespíritohumano,revestindo-seentãodetrajes
estranhos,secontentoucomoreflectirasformasdeoutraépoca,esquecendoque
paramaisaltosfinsDeusahaviadestinado.
Nósexaminaremosmaisdeumespaçocomoafinalumacompletamudança
nomododepensar,afezseguirosseusverdadeirosfins.
____________________
CrónicaTeatralTeatro Normal – Continuam em cena – CAMÕES DO ROSSIO, e O BOM
AMIGO.–Terça-feira14docorrenterepresentou-sepelaprimeiravezoZANGUI-
ZARRA, farsa portuguesa de insípido entrecho e toda cheia de pouco decentes
equívocos:–seoTeatroNacionalcontinuaadarquerirnopopulachoemprejuízo
dosespectadoressisudosedasfamíliashonestas,embrevesetornaráoqueeram
antigamenteosnossosteatrosportugueses.–AlgumasdécimasqueoSr.Teodorico
recitounafarsaOSDOUDOS,jáescandalizarammuitagenteecomrazão.
Parece bemmesquinho o repertório da Rua dos Condes pois se vêem aí
obrigadosarecorreraquantasfarsasantigasporaíseachamsematendermuitoà
escolha.HámuitotempoquenoTeatroNormalsenãovêarepresentaçãodeum
VaudevillechistosocomooCABRITOMONTÊSouasLUVASAMARELAS&c.–Não
faltamlindíssimasproduçõesdeScribeeoutrosautorescómicos,quetraduzidas,
melhoraceitaçãoteriamdoqueasmuitoouvidasenãomuitomodestasfarsasdo
princípiodesteSéculo:hámuitoemLisboaquemtraduza,eatésemverter jeune
personnepor jovempessoa, epourtantporportanto comoseviuna traduçãodo
mencionadoCABRITO.
TEATRODES.CARLOS–Domingo12docorrente,ROBERTODODIABO.Foi
aprimeiravezqueapartedeHelena(aAbadessa)foirepresentadaedançadapela
Sra.MORENO.Estamuijovembailarinaestavacomoafrontadaporterquedesem-
penharumpapeldetantaimportância,emaisquetudoporsubstituirneleauma
artistadetãosubidoquilatecomoMlle.Clara,equetantosaplausoscaptoudopú-
blicoportuguês.NãoseriaporcertoacolhidacomentusiasmoemLisboaqualquer
dançarinadeprimeiraordemqueaMlle.Clarahouvessedeseguir-senarepresen-
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taçãodo3.ºactodeRobertodoDiabo.Nãopodemosatingirarazãoporquesenão
deuestepapelàSra.DEVECHI,aqual,peloseumaiorusoeexperiênciadacena
estaria emmuitomelhores circunstâncias para o suprir do que a Sra.MORENO;
estacontudofoiaplaudida,certamentepelodesejodeanimaraqueletalentonas-
cente.OsCoros forammalemmuitaspartesenobrilhantíssimofinaldo4.ºacto
desarmonizaramcompletamente:rarasvezestemelesidocantadosofrivelmente,
eseograndeMeyerbeerpresumisseamaneiraporquelheestragamosmaisbelos
trechosdassuasmelhoresproduçõescorariadenojoedespeito!–Noestadoactu-
aldaóperaconstituemoscorosumadassuaspartesmaisessenciais;cumprepor-
tantoquenãopoupemelesdiligências,nemosensaiadores fadigas,a fimdeque
essa tarefa importante seja plenamente satisfeita. Tem-se notado que, não são
poucasasocasiões,emquealgunscoristas,emvezdecantar,seesquecemdeque
estãoemcena,epermanecemmudos.Étambémmuitoparaadvertir,que,arazão
porquealgunscorosproduzempéssimoefeitoprovémdenãocomeçaremtodosa
cantarcomodevem,oquesucedemuitasemuitasvezes;pois,achando-sedistraí-
dos,nãoprincipiamsenãoquandosentemavozdosseuscamaradas,eentãosaem
subitamentedoseuêxtase,eentramforadetempo.–Omisterdoscoristasébem
simples:–cantarafinadoseacompasso;delesnãoseexige,nemgrandemímica,
nemexpressão,nemvoltas,nemfloreados:oserrospoisquecometemsóacrimi-
nosanegligênciadevemseratribuídos.
Segunda-feira 13, em benefício do Sr. Jorch, PARISINA, O TRIUNFO DE
AMOR,DuetodosPURITANOS.–Parisinafoiregularmentedesempenhada.–ODu-
etodosPuritanosexecutadopelosSrs.Spech,eMarianipodedizer-sequefoimui
bemcantado:osdoisactosforambastanteaplaudidos;echamadosfora.Avozdo
Sr.Mariani,pelasuaextensãoefortalezaproduziumuitobomefeito,especialmen-
tenaStretta;éjustoporémdizerqueesteactortemporcostumeexagerar-seem
suamímica,eabusardasintonaçõestrágicaseapaixonadas,quealiás,poupando-
seesendoempregadasconvenientementedãoalmaaocanto,earrancamlágrimas
eaplausosaoespectador.OSr.Spechaindanãotemasuavozfamiliarizadacoma
capacidadedoTeatrodeS.Carlos,eporissoacontecenãoagraduarcomoconvém,
donderesultaesforçar-semuitasvezesemdemasia,comoreceandonãoserouvido.
Éparanotarqueesteartistaexauremuitasvezes todaasuavoznodecursodos
alegrosdemaneiraquenosfinaisdelesjánãopodeempregartantaforçacomose
Eutinhaumasasasbrancas
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requer;parecequepoupandomaisavoznas fioreturepoderárematarmelhoras
peçasdeexecução,quealiásoSr.Spechdesempenhamuitobem:desejáramosvê-
loemoutraópera,ondepudessealardearcommaisvantagemosdotesquejátanto
otêmexaltadonaopiniãodosentendedores.
Onovobailete–OTRIUNFODEAMOR,composiçãodoSr.Jorch,temmere-
cidobomacolhimentopostoquesejamuitodestituídodebailados,edemasiada-
menteabundantedegrupos,quenãotêmmuitanovidade:acenadeCupidocom
oscamponesesnãoperderiapormenosdemorada,poisque,nãopodendodistin-
guir-seclaramenteagesticulaçãoatravésdaredequeoenvolve,cansaempouco
tempoaatençãodosespectadores.EssepapeldeCupidoémuitobemdesempe-
nhado,ecustaaconcebercomonaidadeinfantilpodedar-setãofinainteligência.–
Acenadacavernaédemuitoefeito,efazeriçaroscabelostrazendoàlembrança
muitashistóriasdeviajantes,edeGéniosmauscomoosqueali seafiguram:–e
muitobemlhesvaiessediabólicosorriso,essahórridaalegriacomquerespondem
àsprecesdainocenteformosura.–Eeis-nostrazidosnaturalmenteafalardaSra.
DEVECHI.–Muilongedeserumadançarinadeprimeiraordem,dão-setodaviana
Sra.DeVechialgumasqualidadesque levamopúblicoarelevar-lhemuita imper-
feição,eatéaaplaudi-laassazcomofizeramnasegunda-feira.–Umafiguraagra-
dável,umrostinhobenévoloeanimado,umagradecimentorendidomuitopenhora
aspalmas:demais,certoardedesconfiançanasprópriasforças,tem-lheconcilia-
dofavor.–NasdançasapressadaséaSra.DeVechimuitomelhordoquenaspau-
sadas,naturalmenteporque lhe falta firmezaparaasatitudesedelicadospassos,
quenoadagio se requerem; enaverdadenãoé a firmezaatributoque sepossa
concederàjovemdançarina.–Finalmente;conquantoaescolafrancesasejamuito
maisconformeaogostoapurado,fazbemaSra.DeVechiemseguiraitaliana,por-
quesecompadecemelhorcomosseusmezzi.
Quarta-feira 15, ESMERALDA; – correumuitomelhor do que precedente-
mente:oduetodaSra.FerloticomoSr.Spechfoiexecutadocomprimor.
___________________
TEATROSESTRANGEIROSOsprincipaisTeatrosdaEuropa têm-seespecialmenteocupadocoma re-
presentaçãodasseguintesÓperas:–LuciadeLamermoor,Parisina,GemadeVergy,
Nina,RobertoDevereux,eNorma.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-200-
EmVARESEfoiextraordinariamenteaplaudidaumaDançatrágica,em5ac-
tos, intitulada JoannadeSicilia,composiçãodeFernandoRugali,oqualobteveos
maiorestriunfos.
EsteCoreógrafocompôs tambémumBailecómicoparaoTeatrodaScalla
emMilão,oqualseintitula:–OEnsejodeumaMascarada.-
ESPECTÁCULOSDASEMANACORRENTE
TEATRODES.CARLOS
Domingo19–ROBERTODODIABO.Adverte-senãoseraúltimarepresen-
tação doRoberto, conforme se havia anunciado, e sim passar para o dia 26, em
consequênciadenãopoder irnestedia aóperanovadeMr.Miró,pornãoestar
aindaconcluída.
Segunda-feira20–Benefícioda1.ªmímicaUrsulaCatte,Ópera–PARISINA.
Dança–OSPORTUGUESESEMTÂNGER.Depoisdo1.ºactodaÓperaoDuetodos
Puritanos,cantadopelosSrs.SpecheMariani;depoisdo2.ºactooDuetodeCaritea,
pelosSrs.ContieFerretti.
Quarta-feira22–Repete-seomesmoespectáculo.
Sexta-feira24–ÓperaESMERALDA,Dança–OTRIUNFODEAMOR.
Domingo26–ROBERTODODIABO,pelaúltimavez.
____________________
AVISOAAssociação,compostadaSociedadeRedactoradoSemanárioHarmónico,
e os Discípulos do maior mestre de música Português, o pranteado Padre JOSÉ
MARQUESDESANTARITAESILVA,nofimdestadeclarados,têmprojectadoerigir
ummausoléu,paraondesejamtransladadososrestosmortaisdomesmogrande
mestre;acompanharesteactodeumaspomposasExéquias;eofereceroseuretra-
to ao Conservatório. E como desejem osmembros desta Associação, partilhar a
glóriadeumatalempresa,comtodososDiscípulosdomesmocélebreArtista:con-
vidam,porestemeio,atodosdosmesmosSenhores,aquinãomencionados,para
tomarempartenoseustrabalhos,afimdeperpetuaremamemóriadofamosogé-
nio,ornamentodasuaarte,eglóriadaNaçãoaquepertenceu;eportalmodomos-
traraomundo,quenemsempreoesquecimentoéoprémiodoverdadeiromérito.
ParaqueaAssociaçãopossasaberquaissãoosqueanuemaoseuconvite,rogaaos
Eutinhaumasasasbrancas
-201-
mesmosSenhores,assimoparticipemporcartadirigidaaoseuSecretárioFrancis-
co Xavier da Silva, morador na Rua das Pretas N.º 4, 3.º andar; declarando na
mesmaarua,enúmerodasuamorada,paraserempreviamenteavisados,dodia,
local,ehora,emquehá-deterlugarasuaterceirasessão,naqualtêmdeserpre-
sentesosdesenhosdomausoléu,eoorçamentodetodasasdespesas,afimdeque
sepossatomarumadefinitivaresolução.Lisboa,Saladasreuniões,em6deJaneiro
de1840.=JoaquimCasimiroJunior,Presidente.=FelicianoAntóniodePassosRebel-
lo.=ManoelInnocenciodosSantos.=AntónioLuizMiró.=PolicarpoProcópioNeves.
=FranciscoXavierMigoni.= JoãoNepomucenodeMendonça.=PadreJosédosReis
Cordeiro.
OSecretário
FranciscoXavierPereiradaSilva
___________________
n.º8,de26deJaneirode1840
JORNALDOCONSERVATÓRIODissemosnoNúmeroanteriorqueiríamosdandosucessivamenteosPare-
ceresdasComissõesdoConservatórioacercadosDramasaelesubmetidos;por-
queosjulgávamosdegrandeinteressepelosmotivosemquebaseiamconcisamen-
teolouvorouacensura.=CoubeoprimeirolugaraoParecersobreoDrama=O
EMPAREDADO=porsertambémoprimeiroquemereceuseradmitidoàsprovas
públicas, por indulgente resolução do Conservatório, e apesar do muito grande
rigordoParecer.NãopresenciámosaSessãodo JúriLiterário,aqueoDramafoi
presente,esabemosagoraqueaísederamrazõesdegrandepesoafavordoEM-
PAREDADO,sendotambémfortementeimpugnadasmuitasdascensurasexaradas
nomencionadoParecer.
Depoisdolongo,poético,earrojadodiscursodoSr.A.Herculano,foiapro-
vadoapesardosseusmuitosdefeitos,parecendomerecermuiparticularatenção
teresteDramasidooprimeiroquesesujeitaraaotremendoexamedaquelaliterá-
riaAssembleia.
HojepublicamosoParecersobre=OSDOISRENEGADOS=Drama,quede-
poisdeumacientíficadiscussãoacercadocapitalanacronismo,quenelesenotava,
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foi imediata eunanimemente admitido àsprovaspúblicas coma cláusulade ser
revistoecorrectonoestilo.=Demuitahonrafoiparao Júrisemelhantedecisão;
poisque=OSDOISRENEGADOS=têmsidoaplaudidosvivamente,aindadepoisde
numerosasrepresentações.
PARECERAComissãoaquemfoipresenteoDramaOriginalportuguês=OSDOISRE-
NEGADOS=depoisdeoterexaminadoquantolhepermitiuaestreitezadotempo,
nãoseatreveadarumasentençaseguraeabsoluta.Considerando-onastrêsrela-
çõesmaisimportantes,asaber:Literária,Dramática,eHistórica,pareceu-lhesme-
recertrêsqualificaçõesdiversas.
ComoEscrito,hánasualinguagem,porentremuitasgraçaseriquezas,não
poucosdescuidosegalicismos.
ComoDrama,grandeinvenção,eàsvezessobeja,comonacenadeEl-ReiD.
Manuelque,aindaquecheiadenotíciaseinteresseportuguês,ésupérfluaeestra-
nha,eportantofria;sábiadisposição,sucessão,eprogresso;–caracteresmagnífi-
coseconstantes;–estilo,porviaderegra,convenienteeenérgico,aindaqueaqui
ouacoláretintoempoesia,eodiálogofrequentementesobejoederramado;–afec-
tosnaturais;–paixõesvivaseverdadeiras,eefeitoscénicosmuitoacertadamente
calculados;–claraexposição,belos fechosdeactos,edesenlacegeralaindamais
belo.–Moral,ReligiãoePolítica,partesessenciais,etãoamiúdedesprezadasein-
sultadasnoTeatromoderno,aparecemaquipuras,etaiscomosedevemoferecer
diantedopovoreunido.
Historicamente, hána ideia fundamental umgrave anacronismo,dando-se
por existente emdias de El-ReiD.Manuel o Tribunal da Inquisição, tal como se
introduziunoReinadoseguinte.
PareceportantoàComissão,queseoJúri julgarremissívelesteúltimode-
feito(odequesenãopersuade),ouoAutorporqualquerviaopuderemendar,o
Drama–OSDOISRENEGADOS–deveseradmitidoàsprovaspúblicas,depoisde
corrigidaepurificadaalinguagem.AComissãocomozelosadaglóriadeumgénio
pátrio,quetãograndesanúnciosdádesi,edeconcorrerporsuaparteparaares-
tauração, já tãobemestreada, da LiteraturaDramáticaportuguesa, rematandoo
seutrabalhonãopodedeixardeexprimiroardentedesejoquetemdequeoAutor,
noreverasuaPeçasedêcomparticulardesveloadecotartodosossobejosdediá-
Eutinhaumasasasbrancas
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logo,dequeaprofusãodoseutalento,eporventuraasuamuitamocidadeasobre-
carregou.
Lisboa, e em conferência no Conservatório Dramático, em 13 de Abril de
1839 =Dr. Augusto Frederico de Castilho = Sebastião Xavier Botelho = Joaquim
Larcher.
__________
EXTRACTO
DA
CONFERÊNCIA
DO
CONSERVATÓRIO
DE28DEJANEIRODE1840Navoltadomeio-dia,abriuoSr.PresidenteaSessão,elidaaactadaante-
cedentefoiaprovada.
OSr.V.PresidentedeupartedequeaDeputaçãoencarregadadeoferecera
SuaMajestadeEl-ReiDomFernandoaPresidênciahonoráriadoCONSERVATÓRIO,
satisfizeraoquelheforaincumbido,ereceberadeSS.MM.omaisbenignoedistin-
toacolhimento.
SeguidamentedeclarouS.Exa.queoobjectoespecialdaconvocaçãodapre-
senteSessão,eraanomeaçãodaComissãodecincomembros,que,naconformida-
dedosEstatutos,deveapresentaroseuparecerdefinitivamenteacercadetodasas
peçasdramáticas admitidas àsprovaspúblicas, a fimdedesignarquaisde entre
elasjulgamereceremquesejampremiadas.
Porestaocasião,eparaesclarecimentodealgunssóciosquepelaprimeira
vezcompareciam,oSr.V.Presidenteobservouque,emconformidadedasresolu-
çõesadoptadaspeloConservatório,nenhumapeçadramáticasereputavapremia-
da senão depois que a Comissão, que devia eleger-se, havido conhecimento das
razõesquemotivaramasuaadmissãoàsprovaspúblicas–edojuízoqueopúblico
fizeradamesmapeçaaceitando-a,eaplaudindo-a,oudesaprovando-a,e repelin-
do-a,ahouvessepordignadeprémio,ecomesteparecerseconformasseoCon-
servatório.–AcrescentouqueamentedoConservatório,concedendoaoAutorde
umDramapartedoprémio, logoqueasuaobraeraadmitidaàsprovaspúblicas,
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-204-
nãofora,nempodiasersenãosomenteauxiliarcommaisesseestímulooscultores
deumramodaliteraturaque,apesardetãoimportante,jaziaentrenósaodesam-
paro.–Terminoudeclarandoqueseiaprocederàleituradosnomesdosmembros
doConservatório,presentesemLisboa,afimdefacilitaraescolhadosmembrosda
Comissãoindicada.
Concluída a leitura, e verificando-se acharem-se presentes vinte e cinco
membros do Conservatório, corrido o escrutínio, ficaram eleitos os Srs.Garrett,
Herculano,FranciscodePaulaCardoso,D.GastãoFaustodaCâmaraeSousaLourei-
ro.
PropôsoSr.V.Presidente,que lheparecia convenientequeosdoismem-
brosimediatosemvotosficassemdesdelogoconsideradossuplentes,paranoim-
pedimentodealgumdoseleitos,nãosofrereminterrupçãoostrabalhosdaComis-
são,–Assimfoiresolvido,econseguintementenomeadososSrs.AntónioCastilho,e
D.JosédeLacerda.
OSr.Castilhopediuseraliviadodaqueleencargo;masoConservatórionão
anuiu.
OSr.Castilho(António)pediuserinformado–seaComissãohaviadecon-
siderarosDramastaisquaisseachavam,ecomohaviamsidoexpostosàsprovas
públicas;ouseporventuraseconsentiaqueseusautoresosmelhorassem?–De-
pois de breve discussão, resolveu-se, quase por unanimidade de votos, que os
Dramasdeviamserjulgadosnoestadoemqueseachavam,eemquehaviamsido
admitidosàsprovaspúblicas.
Ultimadaestaeleição,oSr.V.PresidentefezconstaraoConservatório,que
estavamsobreamesaospapéisrelativosàadjudicaçãodaempresadoTeatrodeS.
JoãodaCidadedoPorto.S.Exa.narrouqualhaviasidooprocessamentodestene-
gócio,eleuumaPortariadoGovernodeS.Majestade,naqualseordenavaaoCon-
servatórioqueemitisseumaopiniãodefinitivasobreapreferência,eentreasduas
propostasLombardieCarradori, aqualnãohavia sido feitaassazexplicitamente
peloConservatórionaanteriorconferênciageral.–S.Exa.depoisdeumabrevee
clara exposição do estadodo negócio, convidou osmembros doConservatório a
entraremnadiscussão.
OSr.Lacerdaabriuodebate,historiandoresumidamenteoquesepassara
em todoessenegócio, deque, naqualidadedepresidentedaComissãoquedele
Eutinhaumasasasbrancas
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tomaraconhecimento,estavabeminteirado.–S.S..ªdeclarouqueaComissãonão
só examinaramaduramente todos os documentos, emais papéis concernentes a
estenegócio,mastambémqueouviravocalmenteosproponentes;equeoresulta-
dodosseustrabalhosforapreferirapropostaCarradori,porissoqueofereciama-
nifestamentemaisvantagensdoqueapropostaLombardi.–Acrescentouque,sen-
doesteparecersujeitoaumanovaComissão,esendoeleoradoralichamadopara
dar todos os esclarecimentos necessários, a nova Comissão concordara inteira-
mentecomoparecerdaprimeira;porémquetendoaquelaouvidonovamenteos
proponentes,edeclarandoentãooproponenteLombardi,quesesujeitavaatodas
ascondiçõesoferecidaspeloproponenteCarradori,aComissão,semquebradasua
inteiraadesãoaoparecerdaprimeiraComissão,entenderacontudoquesedevia
fazercargodanovadeclaraçãodeLombardi,paraqueoConservatórioatomasse
nacontaquelhejulgassedevida.–OmesmoSr.concluiuque,emvistadoexposto,
asuaopiniãoeraquesedeviapreferirapropostaCarradori,porqueeraaprimeira,
queofereciamelhores termosparaocontrato(apoiados), termosaqueopropo-
nenteLombardisóvieraobrigadodanecessidade,eforadetempo.
OSr. JoséEstêvãoCoelhodeMagalhães pediuaoSr.V.Presidentealgumas
explicaçõesacercadaépocamarcadaparaoconcurso,edaemqueforamfeitas,ou
adicionadas,aspropostasdecadaumadassociedades,LombardieCarradori.–O
Sr.V.PresidentesatisfezaS.S.ª,quesedeclarouinstruído.
OSr.Perinifezalgumasobservaçõessobreainexactidãodeumrequerimen-
toapresentadoultimamentepeloproponenteLombardiaoGovernodeSuaMajes-
tade,emandadoinformaraoSr.V.PresidentedoConservatório;esepronunciou
pelaadopçãodapropostaCarradori.
O Sr.VicenteFerrerNetoPaiva, desenvolvendo a observação feita pelo Sr.
JoséEstêvão,mostrouembrevespalavrasqueajustiçamandavaqueapreferência,
em igualdadedecondiçõesoferecidas, fossedadaaoproponenteque tinhaaseu
favor,aprioridadetempo,eporconseguinteàpropostaCarradorifeitadentrodo
tempolegal.
O Sr.Manoel JoaquimdosSantos declarouque receavaquedapreferência
dadaàSociedadeCarradoriviessealgumprejuízoaopúblicoeaosartistasdotea-
tro do Porto, porque pertencendo o edifício do teatro à SociedadeLombardiaté
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-206-
Abril,esendoseuigualmenteoguarda-roupa,ficariamosPortuensesprivadosde
espectáculoatéentão,ebemassimprivadosdevencimentososartistas.
OSr. JoséEstêvãoexigiuexplicaçõesaesterespeito,aoquesatisfezcabal-
menteoSr.V.Presidente,mostrandooestratagemadequeseserviamalgunsindi-
víduosquepretendiamestabeleceromonopóliodosteatros,colocandooConser-
vatórionanecessidadedelhesconcederaempresadeles,bomoumaugradoseu.–
OSr.V.Presidentefoiporvezesapoiado,ratificandodiversosmembrosdoConser-
vatórioaexactidãodasobservaçõesdeS.Exa.
OSr.Lacerda,falandonomesmosentido,edeclarandoqueàComissãonão
escaparaaverdadeeimportânciadasobservaçõesfeitas,comoseviadoseuofício,
ponderou,efezverqueasconsideraçõesdoSr.Santosdenenhummodoprocedi-
am.
OSr. JoséEstêvão,reflectindomui judiciosamentequeosempresáriosdos
teatrosdesejavamsubtrair-seàtutelasalutar,queoConservatório,parautilidade
pública,dedireitoexerciasobreeles,esobreosdiferentesespectáculos,lembrou
aoSr.V.Presidente,quecumpriarepelirtaistentativas,eque,separaissoporven-
tura se carecia de medidas legislativas, rogava a S. Exa. que as solicitasse com
energia, pois que da sua parte estava disposto a prestar-lhe, comoDeputado da
Nação,todaacoadjuvação,certodequeoParlamentonãoasrecusaria.
FinalmenteoSr.V.Presidente,depoisdenovasexplicações,propôs,apedi-
dodoSr.VascoPintoBalsemão,seamatériaestavasuficientementediscutida;ese
resolveuquesim.–Propôsemseguida–seavotaçãohaviadeserporescrutínio
secreto,ouseporsentadoselevantados?decidiu-sequedesteúltimomodo.–Pro-
pôsporderradeiro–seoConservatórioadjudicavaaempresadoteatrodeS.João
doPortoparaoanode1840àprimeirapropostacabal(Carradori),ouseàsegun-
da (Lombardi)?–eporunanimidadedevotossedecidiuqueàprimeira, istoéà
propostaCarradori.
OSr.JoséA.CorreiaLeal,retirou-seantesdavotação.
OSr.V.PresidentelevantouaSessãoeramquasequatrohorasdatarde.
_____________
FERREIRAHouveumtempoemquePortugaltodoviçosodejuventude,todoanimado
de cavalheirosos brios, todo laureado de triunfos, todo opulento de conquistas,
Eutinhaumasasasbrancas
-207-
avultavaentreasnaçõesdomundo,comoseelevaapalmeirapiramidalemSouto
deSicómoros,oucomoalterosogaleãoseempavesanomeiodasbarcasdospes-
cadores.
Eoviçodajuventudelhetransbordavaemarrojadasempresaseolevavaa
expandir-seporessevastomundo,atédevassar-lheasúltimasbarreiras,eosbrios
demanceboecavalheirosóderenomeeglórialhedavamsede.–Entãolheabraça-
ramafronteoslauréisdavitória;asnaçõesdomundolheabriramosseustesou-
ros,afastandoaspagasetributosdosvencidosesubjugadosacomprar impérios
inteiros.–EntãoPortugalsobranceiroealtivo,erguiaafrontecomoaPalmeiradas
Índias,eseostentavaalterosocomoosgaleõessoberbosdoTejo.–Era também,
porconsequência,esseotempodosCAMÕES,dosSÁS,edosFERREIRAS!
HomerodaLusitânia,–CamõespelejoupelaPátriaeacantoucomvozque
aindahoje ecoa e sehá-deouvirpor toda aparte enquantohouverouvidos:Ca-
mõesescreveuodramadasuaterra,dramaquenãorequeractores,equeasipró-
prioserepresenta;Camõesesculpiunaefemeridadeonomeportuguêsaparde–
GLÓRIA–Camõesamoudocoração…efoidesgraçado!…
SÁDEMIRANDAconceituosocomoSéneca,simpleseáticonoseuviverco-
monoseuestilo,discriminouoidiomadasuaPátriadeentreocaosemquejazia
pelotratocomasgentesestranhas,eporqueentãoosPortuguesesmaiscuravam
deafiarasarmasdoquedelimarasfrases,maisvaliatinhaparaelesumalançado
queumabiblioteca.Modeladopelosgrandesmestresdaantiguidadeseguiuàrisca
osseuspreceitos,disseminandoassimpelasua terraexemplosondeos indoutos
pudessemaprender.GraveemsentençasimolouJuvenalnacrítica,dandodemão
aoamargordasátira:orasebanhavaemmelancoliadecantandoosmalesdeamor,
oraseenfeitavadegraçaurbanaelouçã,quando,rivaldeAristófanes,reproduzia
na comédiaos costumese sociais abusosda suaépoca. –Ditamesde sãmoral e
filosofiacomodehábileexperimentadapolítica,expressosnumfalarpuro,correc-
to,econciso;certaasperezanasformas;umapoesianatural,edesalinhada;eeisaí
oquenosmostramasproduçõesdocélebreSádeMiranda.
MasnãoénemdoimortalCamões,nemdeSádeMirandaquehojenospro-
pusemos falar; coevos do grandeFerreira, a quemdedicamos algumas linhas da
nossahumildeprosa, comopoderíamos remontarà épocaemqueeste floresceu
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-208-
semprestarmoshomenagemàsilustrações,quedetantorelevonelaforam,ecuja
famaotempoalongadediaemdia?
AntónioFerreira,oregeneradordodrama,desdeosseusmaisverdesanos
foicelebradoporseustalentospoéticoseporsuasproduções,emquealínguapor-
tuguesasemostravaemtodaapurezadoseuesplendor;servindocondignamente
aexprimiremseudiversoritmoováriosentirdocoração,járendidodeamores,já
pungido de saudade, ou nas contracções do furor, e no arfar do despeito. Nessa
idadedeouronasceuFerreira,eseusdiasporelasedevolveramnumapazdevida,
numpositivodeacontecimentos,bemdiversodoviveraventurosoeextraordiná-
rioquenamaiorpartedospoetastantoseconformacomoinsólitodospensamen-
tos, comesseaéreodivagardeuma imaginaçãodevate.Nãoencontrareisepisó-
diosdramáticosnahistóriadeAntónioFerreira;umferrenhoestudo,umdecidido
fervorpela literaturadasuapátria,algunsamores,oseuMondego,apráticados
poetas contemporâneos, e aí tendes a vida deste português ilustre, porventura
mais conhecido e apreciadodos estrangeiros, quedos seus compatriotas! –Abri
todasashistóriasdaliteraturaeuropeia,ejáencontrareisumapáginatributadaao
grandetrágico,aoafamadoautordaCASTRO!
Muitoantesporémqueosfastosdasletrasportuguesassehouvessemenri-
quecidocomessaadmirávelprodução, jáoutrasdeassazmerecimentoohaviam
antecedido.–AsduascomédiasintituladasBRISTOeOCIOSO,conquantonãoisen-
tasde imperfeições edefeitos, nãodesmerecemmuitodasmelhoresque a Itália
produziunessaépocaderenascimentoliterário.ParecequeFerreirasedeveriater
dadocomsumogostoàleituradascomédiasdeÂngeloPoliciano,Ariosto,eMan-
zoni,poisquenasduasqueinventouaparecemquasetodasasvirtudesedesvios
dascomédiasitalianasdaquelesautores.Portodoocorrerdessasduasproduções
nota-seumdescuidotãonaturale infantilcomoosusosdoseutempo; todaviao
quenelashámaisaprazível,éobemsustentadododiálogo,eocómicodos inci-
dentesondedeparareisparticularidadesbemcuriosasecheiasdesalsobreosan-
tigosusosdopaís: tambémnãoserá raroencontrar-lhes trechosque interessem
pelodesafogodacríticaetalentodeobservação,muitodeapreciaremtemposde
tãoapertadacircunspecção.–BRISTOéumacomédiamista,comolhechamaseu
próprio autor, consistindo numa aventura de amores, enredada por secundárias
personagens,segundooestilodotempo.Estacomédiaéprecedidadeumprólogo
Eutinhaumasasasbrancas
-209-
(conformeousodas comédias italianasdessa época) espécie de alocução cortês
dirigidaaopúblicoporumdosactores.OCIOSOéumacomédiatípica,comobemo
inculca seu título, e como tal não inferior por ventura à primeira. A comédia de
BRISTOoferecidapeloautoraoPríncipeD.João,casadocomumafilhadoImpera-
dorCarlosV,temaseufavorumgrandedocumento,qualéovotodetodaaUni-
versidadedeCoimbra,queaaprovou,ejulgoudignadeserofertadaatãoaltaper-
sonagem.
Ditosagudos,galanterianasfalas,eodecorocomseusdiversoscaracteres,
não o livram contudo de ser por nós taxado como descomedido alguma vez em
suasexpressões.Nãoéporémestaumasentençadequenãopossaapelar-se,pois
quealgumaspalavrasemododedizerqueoranossoammalaosouvidos,esenão
compadecemcoma susceptibilidadedanossa civilização,quemsabe seeramou
não interpretadoscomamalíciaquehoje lhesdamos?Quemsabesea inocência
dessa idade lhesnãocobriamelhoranudezdoquehojeo faza túnicacivilizada
nestaépocadaciênciadobemedomal?Devemoscontudolembrar-nosqueome-
recimentodeumaproduçãodramáticanuncasepode julgarabsolutamente,mas
em relação à época em que foi escrita. Exposições prolixas, pouca distinção nas
partes constitutivas da peça, falta de conexão nas cenas, são defeitos comuns à
maiorpartedosautoresseuscontemporâneos.
MasparaqueéfalarmaisdascomédiasdeAntónioFerreira,quandonoses-
táchamandoasuaobra-prima,asuagrandetragédiaACASTRO?–Quemsabeter
sidoAriostoautordecomédias;quemoconhecequenãosejapeloseupoemaOR-
LANDOFURIOSO?–QueimportamaomundoascomédiasdeFerreira,quandosó
nelevêemtodosoautordasegundatragédiaregularqueteveaEuropamoderna,e
tragédiaqueétipodebelezas,modelosurgidonasegundainfânciadaarte,eque
mereciasercolocadoapardosantigosexemplaresdeÉsquilo,Sófocles,eEurípi-
des?
AescolhadoassuntodepersisóseriabastanteparaconceituarFerreirana
opiniãodosilustrados.–AbelaInês,esbeltacomoagarça,meigaesuavecomoa
pomba,mãecarinhosa,amanteapaixonada,entregueàhediondaraivadebárbaros
ministros,esegadaemflorpelocutelodosalgozes;…D.Pedrosublime,extremoso,
cheiodeternura,edepoisfurioso,bárbaro,cruel…Afonso,oramonarcajusticeiro
esenhordescaroável,orapaiindulgenteesensível;enofundodoquadroasfigu-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-210-
rassinistrasdosconselheirosdemorte:–umavidadeamoresedereceios,porfim
umhorrendoassassínio,etudoacompanhadocomomurmúriodaságuasdoMon-
dego,debaixodeSolpuro,eentreascançõesalegresousentidasdeinocentesdon-
zelas!…
Severaemsuasformas,éaCASTROnumapuraemanaçãodatragédiagrega,
avantajando-se-lhenumcertoespíritocavalheirescotodoprópriodaidademédiae
quesenãodánasproduçõeshelénicas.Uma tristura suavíssima,umamarsóde
portugueses,umexprimiroamor sódequempossui todaa riquezadeste suave
idiomadomeio-dia, e de quem sabe envolver o próprio coraçãode sentimentos
apaixonados.–Umalágrimaacortarumsorriso;umsuspiroainterromperocanto,
edepoisopatéticoeaspaixões!
Vêdequantoaexposiçãodessatragédiavosreveladedesgraças,ecomoé
tristeaalegriadeDonaInês,quando,cheiadecanduraeinocentefolguedo,convi-
daasdonzelasacolherflores,atecercapelas,eaexultaremcomfestivalcantopela
ditaqueelaorapossui!Elogodirigindo-seàAma,lhediz:
“ÓAma,amanheceu-meumalvodia,
Diadomeudescanso…”
Atãodelicadaexposiçãocorrespondetodaatragédia;unidadedeacção,vi-
gordepincel,valentianodiálogo,verdadeepaixãonosafectos;esobretudoisto,
umasimplicidadetantoàSófocles,queinspiraumsantorespeito,econcorreainda
maisparamover-nos.
Analisarminuciosamenteestatragédiaexcederiaoslimitesdeumapeque-
nafolha,alémdequefoideFERREIRAenãoexclusivamentedequalquerdasduas
produçõesquenospropusemosfalar;nãoterminaremostodaviasemacrescentar
maisalgumaspalavrasacercadestenobreassunto.
AmortedeD.InêsdeCastrotemsidoobjectodetantosescritos,queseria
tarefaparaumlaboriosobibliógrafodarumasucintaexposiçãodetodoseles.Po-
emas,romances,dramas,tragédias,chácaras,todasasformasliteráriasepoéticas
setêmesgotadoacercadestaromânticaefunestacatástrofe.
AcrónicadeFernãoLopes,autorcontemporâneo,éaquemaiscircunstan-
ciadamente refere o fatal caso. – Duarte Nunes de Leão, Faria e Sousa, e outros
muitoshistoriadoresdele seocuparam,acordes todosno seu contar. –Ogrande
LuísdeCamões lhe consagrouas suasmaisbelasestâncias, eemnossos tempos
Eutinhaumasasasbrancas
-211-
deu assunto a umabela tragédia de JoãoBaptistaGomes, e à célebre cantata de
Bocage intitulada INÊSDECASTRO; sendo tambémsuavemente comemoradono
poemaCAMÕESdeumnossoliteratoassazconhecido.
ParecequehouveumpoemaàmortedeD. Inêsdomesmo tempoda sua
morte,masdetodoseperdeu.Oqueaindaexisteéumalindachácaraespanhola
intituladaLAGARZADEPORTUGAL,comoentãochamavamàformosaCastro.
É bem conhecida a tragédia deLaMottesobreeste assunto (emmal! tão
desfiguradopeloautorfrancês):–tambémnãooémenosatragédialíricaemItali-
ano,hápoucorepresentadanoTeatrodeS.Carlos;eoromancedeMme.deGenlis
comessetítulo.
A tragédia do nosso António Ferreira não é irrepreensível, só pelas suas
muitasqualidadesselhepodemrelevarosdefeitosqueencerra,especialmenteno
quetocaàmetrificação,quesendoemmuitaspartescheiademelodiaedoçura,é
tãomescladeasperezasquefazperderàtragédiaumapartedoefeito.–FugiuFer-
reiraàdependênciadarima,efoioprimeiroportuguêsquepoetouemversosolto,
fácillheerapois,dadooprimeiroemaisdifícilpasso,aproveitarasvantagensque
daípodiatirar;parecetodaviaquenãopôsaíoseumaiorcuidado,poisqueasua
excelentetragédiaabundaemversosfrouxos,ouduros.
Porderradeiro.–Ferreiramereceuporsuaspoesiassoltasadenominação
deHORÁCIOPORTUGUÊS;etodososportugueses lhedevemgratidão,erespeito
peloquantoexalçouos seuscompatriotasnaescalada literaturaeuropeia, epor
seropaidanossacenatrágica.
ANTÓNIOFERREIRAnasceuemLisboanoanode1528deMartimFerreira,
CavaleirodaOrdemdeSantiago,eEscrivãodaFazendadoDuquedeCoimbra,ede
MéciaFróisVarella.–Perfezaltosempregoseprivoumuitonacortedaqualfazia
as delícias; foiDoutor emDireito Civil, Desembargador da Casa da Suplicação, e
FidalgodaCasaReal.–Noaugedasuareputaçãoveiocolhê-loamortenoanode
1569.–DiogoBernardes,Pêrod’AndradeCaminha,eoutrosvatesderenome,cho-
raramemsentidíssimaselegiasessagrandeperda,eaindahoje,ninguémháaíde
coraçãoportuguêsquesenegueajuntarmaisumafloràsquelheesmaltamotú-
mulo.
Pazàssuascinzas.
_______||_______
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-212-
TEATRONORMAL
DA
RUADOSCONDES
HariadãoBarba-RoxaAindaque,geralmentefalando,nãotenhamosfrequentadoresdonossoTe-
atroNormaldadoumgrandedocumentodasuacríticaebomgosto,ouaplaudindo
peças,quesónegativasdemonstraçõesdeveriamacareardopúblico,ouvitoriando
asmaisdasvezesaqueles trechosquemenoseradeesperaro fossem; todaviaé
justo confessar que há certo tempo (pondo de parte palmas dadas ao bastardo
BOMAMIGO),aopiniãosetemumtantorectificado:oquetalvezsejadevidonão
só aos esforços de alguns literatos,mas também às literárias palestras, que vão
começando a ter voga na nossa terra, substituindo outras sociedades demenos
importância,emaiorespretensões.
Doqueacabámosdedizer,seriaporventuraboaprovaafriezacomquefoi
recebidoodramaHariadãoBarba-Roxa.–Quandohádoisanosele foià cenana
RuadosCondespelaprimeiravez,foramgrandesosaplausosqueobteve,eeraum
nuncaacabardeelogiosqueporaíseouviamaocelebradodrama!–Éverdadeque
oSr.Dias,queentãofaziadeBARBA-ROXA,davaavidaaestapeça;masaindaas-
simnãoétamanhaadiferençanaexecuçãododrama,queelesófizessemudaro
público:–outrarazãohouve,eentendemosquefoioavaliar-lhecommaiscritério
osdefeitos.
Sãoelesnaverdadebastantesalientes.Oenredoédepuraimaginação;mas,
alémdeserempoucoverdadeirososcaracteresdaspartesprincipais,poisquenos
apresentaumPirata– terrordaCristandadedaquelaépoca,comoummodelode
generosidade,tolerânciaehumanidade;eumnobreespanholcheiodosmaisbai-
xossentimentos,umpérfidoetraidor;osdoisprimeirosactossãobastantedesti-
tuídosdeinteresse,etãofalhosdemovimentos,queenfadam,eascenasgraciosas
nãotêmsalalgum.–Oterceiroacto,quefazefeito,etemlancesmuitodramáticos,
principalmentesefundanoquiproquodosdoisrivais,oqualdesaparecerialogo
queoinocenteD.Ramironãoacreditassenafingidaamizade,eprotestosdotrai-
dor;oqueeramuitomaisnaturaleverosímil,depoisdoquedisseraD.Leonorna
Eutinhaumasasasbrancas
-213-
17.ªcenado2.ºacto:–Ramirotemuminimigooculto;euoconheço,éocavaleiro
Roberto!
A tradução está também muito longe de merecer encómios; pois que os
francesismos,galicismos,editosgrosseirosselhenotamaesmo.Pedimosporesta
ocasiãoaosSrs.Censoresquesejammaisescrupulososnolicenciamentodaspeças
traduzidas.
Quantoàexecução,oSr.Vitorino,nopapeldeBarba-Roxa,édignodelouvor,
porqueprocurouservir-sedetodososseusmeiosparaodesempenharcomocon-
vinha.Épenaqueestebomactortenhaumavoztãoduraepoucoflexível,oque,
tornando-adiscordante,muitosefazsensívelnospapéisdeforça.
OSr.Lisboanãooqueríamostãoexagerado,efazendotantamacaquice,que
muitaveznãovemaocaso.OSr.Lisboabemmerecedopúblicofrequentadorda
RuadosCondes;masnemporissoeledeve,pormeiodegaratujasforadepropósi-
to,querercaptaraplausosquenoconceitodosentendedoreslhefazempoucahon-
ra.Asopiniõesdopúblicorectificam-se,eoartistaficacomosdefeitosqueadquire.
Opapel,queprincipalmentesefazsensívelporseumaudesempenho,foio
doSr.Tasso.Esteartista,aquemaindafaltaamaiorpartedasqualidadesrequeri-
dasnumcomediante,mostrouumafaltademeiosedesembaraço,quefaziacom-
paixão.–Serámelhorquesedeixederepresentarpapéisprincipaisenquantose
nãotivermaisamestradonossecundários.Quesenãodesanimeporémcomoque
lheestásucedendo,porquenãoseriaoprimeiroaquemomesmotemacontecido;
eque,comoestudo,observação,etrabalho,conseguisseentrarnaprimeiralinha
doscomediantes.–NãopodemosaesterespeitodeixardeobservaraoSr.Director
doTeatroNormal,queantesdepôremcenaumapeça,consulteaforçadosartis-
tasaquemhá-dedistribuirospapéis.
CRÓNICATEATRALTEATRONORMAL=ContinuaaseraplaudidooCAMÕESDOROSSIO:esta
comédiaemconcorrênciacomodramaHARIADÃOBARBA-ROXA,quenovamente
foichamadoàcena,têmespecialmenteconstituídoosespectáculosdasemana.Na
noitedopassadodomingonotou-sequeoSr.Epifânio,naúltimacenado2.ºacto
do Camões, falando da janela ao desconhecido, se exagerou descomedidamente,
repetindomuitoalto,ecomvozdemáscara:–“Atélogo,atélogo.”Cumprequeos
actoresnãocuidemsóemfazerriropovo,oquemuitasvezesconseguemàcusta
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-214-
doscaracteresquerepresentam:–emtodoorestantedoseupapelvaioSr.Epifâ-
niomuitobem.
TEATRODES.CARLOS.=Domingo19docorrente,ROBERTODODIABO.–
Nãofoiesta,comoseesperava,aúltimarepresentaçãodagrandeópera,emconse-
quênciadenãoterpodidoiràcenaanovapeçadoSr.MIRÓ,queportodoséespe-
radacomamaior impaciência.Enãosemrazãosemostraopúblicoansiosopor
novidadesteatrais,poisqueasóperasdoactualrepertóriodeS.Carlos,sãotodasjá
muitoouvidas, e alémdissoaEsmeraldanão temmerecidoas simpatias, oupor
nãoseremtodosospapéisbemdistribuídos,ouporqueessaóperanãoéfortemen-
te instrumentada, o que os ouvidos estranham, acostumados como estavam às
harmoniasestrepitosasesolenesdeRoberto.–Estaúltimatambémeratempoque
descansasse,nãosóporquejáécantaroladaportodoofielcristão,masporquenas
últimasvezesquesetemrepresentadolhemutilaramo2.ºacto,cerceando-se-lhe
olindíssimoquintetobailado,edemaisamaisopas-de-deux.–Vaiadesaparecer
definitivamentedanossavistaessebrilhanteplaneta.
Segunda-feira 20, em benefício da Sra. CATTE – Parisina, Portugueses em
Tânger,o dueto dos Puritanos, e o do 1.º acto de Caritéa.O Teatro esteve bem
guarnecidode espectadores, e os camarotesquase todos enfeitadosdebelasda-
mas.OsSrs.CONTIeFERRETTIfizeramquantonelescoubeporsobressaíremum
aooutro,e,comoemcertame,cantaramalternadamenteasuaparte,eenvidando
todosos seusmeios, eprodigando fioreture. Aovê-losnessa lideharmoniosavi-
nhamàlembrançaoscantosdospastores,dequetantonosfalamospoetas;eaté
semrecorrermosàpoesia,nospassavapelopensamentoocantaraodesafio dos
nossosinocentes(efelizes!)campónios…–Eopúblicoeosdoisartistasganharam
comessanobreemulação;opúblicoporquegozoumais,osactoresporqueforam
muitoaplaudidosechamadosfora.OSenhorFERRETTI,mostrouquesehaviaapli-
cadocomfrutoàsuaarteenquantodenósesteveausente;devetodaviamodificar
maisavoznaspassagensdeexecuçãoparaquese lhenãosintaasperezas.OSr.
CONTIcomasuavozargentinaesimpáticaagradougeralmente,deveporémno-
tar-sequeasuagesticulaçãoésempreamesma,equenãocuramuitodeadaptá-la
à letra.–NãoesqueceremosfalardaSra.CATTE,cujamímicaémuitoexpressiva,
especialmentenospapéisdeforça,equenuncafaltaaocompassoaindanoslances
mais embaraçados;nestaDançavai elamuitobem; contudomuitomelhor ainda
Eutinhaumasasasbrancas
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iriaseseabstivessedeumaexpressãofisionómicatãoexcessiva,queporvezeslhe
transformatotalmenteorostocomgrandemágoadosespectadores.–DoSr.CA-
SATIsódiremos,poragora,queoreputamospelaforçapoucomaisoumenosdo
Sr.Jorch,enãopodemosdeixardereflectirquemaisconvinhaactualmenteaonos-
soteatroumdançarinodediferenteescola,poisquedoisdomesmogéneroequi-
valem,paraopúblicoaumsó.
_______________
QualidadeseDeveresdo
Comediante
(2.ºARTIGO)NoN.º terceirodeste Jornal, considerandoa importânciadaartedifícildo
Comediantefizemosaesserespeitoalgumasponderosasobservações,prometendo
outrasemsucessivosartigos.–Falámosdavoz,doolhar,doouvido,erematámos
reflexionando acerca damui grande dificuldade da IMITAÇÃO; pois que até por
extremoeracustosointerpretarverdadeiramenteessapalavra,essaartedementir
comverdade!
Etodaviaotalentodaimitação,pormuitofielqueseja,nãopoderásuprira
faltadefinainteligência.–Encontrareisporventurahomenssemespírito,aquem
nãoobstantefoidadoimitaravoz,egestosdaquele,quetomaramporalvodeseu
estudo.Masnoteatroessafaculdadeéinsuficiente,etalveznocivaaoartista.Por-
que,ouselimitaàimitaçãodeumactor,queopúbliconãoconhece,oudeumactor
acreditado:–emambososcasosnãoémaisqueaimitaçãodaimitação.Overda-
deirotalentovêcomseusprópriosolhos;ogéniobuscanasuafonteanatureza.
TambémnãodeveráoComediantetersomenteemconsideraçãoaaparên-
ciaexterior;deveráespecialmentepenetrar-sedocarácterecostumesdapessoa,
querepresenta;econformarosademanes,gestos,andar,eainflexãodevozaoseu
carácterhistórico,ouaoqueéinsinuadopeloautordodrama.
Oactortantomaissedesenvolveránasuaartequantomaiorforaopinião
que tiver formadoda inteligência do público, que temde o escutar.Deverá pois
evitarosgritosetransportes,quepodemseduzirumamultidão ignorante, despre-
zandoosaplausosqueelemesmorecusariasefosseconvidadoajulgarumcompa-
nheiro.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Pareceàsvezesopúblicoreservadoeavaro:maseleestáescutando;e se
reconhecer na justeza de uma entonação a inteligência do actor não tardará em
aplaudi-lo.
Uma obra dramática não contém sempre situações, e caracteres perfeita-
mentedecididos.Oestilopormuitocorrectoeclaroqueseja,nemsempredenota
pensamentos,aquesenãopossamdar interpretaçõesdiversas.Muitaveznãose
podecolherprecisamentedaobraograudosossego,oupaixão,emquesefazmis-
terqueoactorseconserve;masaforma,oassunto,oscostumes,aespéciedediá-
logo,efisionomiatotaldodrama,deveminsinuaraintençãodoautor.Éestepen-
samentoqueoComediantedeveatingir.
Époisa inteligênciaaqualidade,quemaisdoactorseexige.Cumpreque,
antesdefalar,tenhacompreendidooquesehá-dedizer,paraqueassimpossare-
gularomodo,porquehá-deexprimir-se.Masnãobastaaventarosentidodopoeta,
émisterjuntar-lheaforça,calos,egraça,quefaltamaodesenho,declamandocom
todaaexpressão,queasensibilidadelheinspirar.
___________
ESPECTÁCULOSDASEMANACORRENTE
TEATRONORMALDomingo26deJaneiro=HariadãoBarba-Roxa=OCamõesdoRossio=
Terça-feira28=EmbenefíciodoSr.Teodorico,a1.ªrepresentaçãodoRui
Braz,em5actos=OsDoidos,em1acto.
TEATRODES.CARLOSDomingo26–pelaúltimavez–ROBERTODODIABO.
Segunda-feira27=AbenefíciodeANTÓNIOGIULIANI,1.ºmímicododito
teatro=O1.ºactodeParisina=Umasvariaçõesdeviolafrancesa,executadaspelo
Sr. VICENTE AYALA = Aria do Belisário, pelo Sr. CONTI = Aria do Atar, pelo Sr.
FERRETTI = Outras variações de viola francesa = ODueto daCaritea, pelos Srs.
Conti&Ferretti,concluindooespectáculocomaDança=OsPortuguesesemTân-
ger=
Quarta-feira29=Repete-seomesmoespectáculo.
Sexta-feira31=IráàcenaumanovaÓpera,compostapeloSr.AntónioLuís
Miró,quetemportítulo=VIRGÍNIA.
Eutinhaumasasasbrancas
-217-
_____________
PROSPECTO
DA
CRÓNICALITERÁRIA
DA
NovaAcademiaDramáticaO INSTITUTODRAMÁTICOdaN.A.D. vaipublicarumPeriódicoLiterário
comestetítulo;–nointuitodeaumentaroesplendordaAssociação,–promovero
gostodasbelas-letras, – derramarquanto em suasposses couberemos conheci-
mentosDramáticos,–eexcitarpormeiodejuízoscríticos,rigorosamenteimparci-
ais,obrio,eaemulaçãonosdiferentesramosdaliteratura,ebelas-artes.
ACrónicaserásemanal;–epublicar-se-áo1.ºN.ºportodoomêsdeFeve-
reiro.
Recebe-setodaacorrespondência francadoportesobonomedoSr.Antó-
nioJoséMarquesCorreiaCaldeira,emCoimbra.
Subscreve-separaaCrónica,–emCoimbraperanteosMembrosdaDirec-
çãodoINSTITUTODRAMÁTICO,enasLojasdeLivrosdaImprensadaUniversida-
de,edeAntónioLourençoCoelho,emLisboanaLojadeLivrosdaViúvaHenriques,
RuaAugustaN.º1,–enoPortonadeJoãoPereiraQueirósBastos,RuadosCaldei-
reiros,N.º12–Preço480reisportrimestre.
___________________
n.º9,de2deFevereirode1840
QualidadeseDeveresdo
Comediante
(3.ºARTIGO)Osegredodecomoverumauditóriosomenteodescobriráquemforverda-
deiramentesensível;porqueasensibilidade,paraquesejaaproveitada,nãoexige
doespectadornemgrandeusode teatro,nemjuízomuito finoe justo:–seelaé
real,todosacompreendem,todosasentem,eaaplaudem;contantoquenãoseja
deslocada.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-218-
Éporestaúltimarazão,queoactordeveaprenderadirigiressasensibili-
dade.Seelesemostraafectadodosentimentovulgar,queconvémàsalmasfracas,
a sua sensibilidade será deslocada;mas se ele se possuir da paixão que o poeta
quisexcitaremnós,asuasensibilidadeénatural;eoactor,sentindosóoquede-
veriasentir,conseguecomover-nos.
O carácter do grande actor é não ter nenhum, quepredomine: – a paixão
quenelefossedominantearrastariatodasasoutrasaessecarácter,e lhesimpri-
miriauniformidade.Caracterizaraverdadeira sensibilidade, e torná-launiversal,
só pertence ao peitomais flexível, e por assim dizer, completamente isolado de
todasasexclusivasafeições.–Sefossepossível,queoactorabstraíssedequalquer
singularpaixãodeComediante,equeoseucoraçãoasaproveitassetodas,entãoas
poderiaele reproduzir, comooautoras sentiu; eporventuraatingiriao idealda
perfeição.–Éporémdenotar,queapalavraSensibilidadenãoaentendemosso-
menteporumadisposiçãoàternuraepaixõesmelancólicas;maspelafaculdadede
nospossuirmosdetodaaespéciedesentimento.
Aartejamaispoderá,sódepersi,produzirotalentodoactor;eatésupri-lo
lheserádifícil:areuniãodaarteedotalentonaturalpodemlevaroartistaàper-
feição.–Aartenãosóaperfeiçoaainteligência,masdirigeasensibilidade;oraos
caracterestrágicossãosuperioresànaturezavulgar;emtudodevemelesostentar
heroísmo, em tudo, atémesmonaspaixões atrozes e furiosas; e portanto é bem
evidente,queasensibilidadedoactortrágicodeveserregradapelaarte,paraque
produzindoestaelevação,aentranhe,e se forpossível, aaumente; restringindo-
lhetambémosmenoresdesvios,paraqueasensibilidade,dividindo-se,senãoen-
fraqueça.Éalémdaardideza,eaquémdatemeridade,queoactordeverábuscara
expressãojusta,istoé,nemmuitoténue,nemmuitoexagerada,masgrandeebela.
OuviMlle.Clairon,umadasmaioresactrizesqueteveaFrança:–”Todasas
artes,todososofíciostêmprincípiosconhecidos;masparaosComediantestrági-
cosnãoexistemeles.Énahistóriadetodosospovosdomundoqueotrágicodeve-
rábuscaraluz,queoguie”:–emlê-lanadafariaele;poisquelhecumpreaprofun-
dá-la,efamiliarizar-seatécomminuciosidades,adoptandoacadapapeltudoquan-
to lhealcançaroriginalidade, reflectindocontinuamentee repetindocemvezesa
mesmacoisaparavencerasdificuldades,quehá-deencontraracadapasso.Não
basta,queoactorestudeoseupapel;émister,queestudeaobrainteira,afimde
Eutinhaumasasasbrancas
-219-
lhedisfarçaros fracos, e fazer sobressair asbelezas subordinando-seao tododa
peça; é-lhepreciso estudaro gostodopúblico, perscrutar o coraçãode todosos
queorodeiam,finalmentediscriminarasrelações,eporquêsdetudoquantovêe
escuta:eisoárduoesecretolabordoComediante!
Éalémdistonecessário,queeleaprendaapensar,eseacostumeacultivar
desentimentosgenerososaalma.Ohomemdehonrapoderepresentaruminfame;
ohomeminstruídoepensandocomdelicadezapoderepresentarumcriadovelha-
co,ouasgrosseriasdeumrústico;porquelhenãoserámistersenãobaixar-se;mas
para pintar a grandeza e virtude do herói cumprirá elevar-se além da natureza
humana; e todos os esforços serão baldados, quando o actor não concentrar no
peitoogérmenehábitodealgumavirtude.
______||______
TEATRONORMALDARUADOSCONDES
RUYBRAZ
Dramaem5Actos
PorMr.VictorHugo
Estedramatãocheiodeemoçõespungentes,comumheróidotadodosmais
nobrespensamentos,umheróigrandenadesgraça,naprosperidadetãosublime,e
interessantesempre,–estedrama,RuyBraz,odignoirmãodeHERNÂNI,foiàcena
pelavezprimeiraemLisboananoitede28deJaneiro.–Éele,pelainvençãoeesti-
lo tão notável; que tencionamos dedicar-lhe mais do que um artigo, e diremos
tambémalgumacoisadoprólogodomesmodrama;prólogoemqueMr.V.Hugo
desenvolveopensamentodasuaobra,patenteandoumapáginado livrodesuas
intençõesdramáticas.–Vamospor issotranscrevê-lonasua íntegra,parapoder-
mostratarconjuntamentedoRuyBrazedoseuprefácio.–Dessaobratãopalpi-
tantedevida,tãoesplendentedefinosevariadosmatizes,tãopoderosaemformas,
somentenosserálícitoapresentaremamortecidoedescoradotransunto!Percal-
çosdocrítico!quecomoduroeacicaladoescalpelonãotemedissecarumcorpo
queeraoenlevodosqueoviam,a feiturabeladoqueo formouàsua imageme
semelhança:aesses formososmembrosembreve tractoos fazo críticopedaços
tediososemiserandos!…
RuyBrazéumhomemdopovoquemorredeamorespelaRainhadeEspa-
nha:fez-selacaiodeumfidalgodesuacasaparapodercontemplaralgumavezo
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-220-
real objecto da sua afeição; porque unicamente a libré lhe facultará ingresso no
paço,aele(mísero!)aquemnãofoidadonascerGrandedeEspanha.Seuamo,que
temmotivosdeodiararainha, imaginaumavingança inaudita.Vestedecondea
RuyBraz; cinge-lhe riquíssimaespada;dá-lheonomedeumseuparente, sobre-
modo extravagante, aoqual fez sumir, paranãodesarranjar os seusprojectos; e
diz-lhedepois:=Vaz,correaopalácio,earainhaqueteame!…
Opobredolacaioobedeceusemlhepassarpelaideiaqueintentavamfazer
deleuminstrumentodevingança;–jáestáaoladodasoberana!–MasRuyBrazsó
a librétemde lacaio,porqueasuaalmaénobreegrande,eseupeitoumvulcão
ondelhereferveogénio:–ei-loministro,ei-loamadodarainha!Ajudado,animado
pelasuarealamantejáelemeditaaventuradeEspanha,areformadosabusos,e
seesforçaporelevar-sedealmaecoraçãoatéaquelaque lhedeuoseuamor.A
glóriaeprosperidadese lhepatenteavam;masodemónioapareceentão,etodas
assuas ilusões, todaasuaalegria, todooporvirdeglóriaseesvaecem!…–Ode-
mónioéoGrandedeEspanhaquevemgritaraosouvidosdarainha:–Amasum
lacaio! –É força renunciar ao tronoe às grandezas, ouver assoalharos seusvis
amorescomumhomemdopovo.–RuyBrazdevoraemsilêncioashumilhações
todas;masquandoouveoinfameultrajararainha,oh!entãoeletomaumaespada;
eomiserávelquenãotemeuquebrarduasexistênciasqueocoraçãotinhaprendi-
doumaàoutra,omiserávelcaimortalmenteferido.RuyBrazlança-sedepoisaos
pésdarainha,suplica-alargotempo,mas,vendo-ainflexível,seenvenenaemorre
elevaconsigooperdãoeaderradeirapalavradeamordarealamante:–“RuyBraz,
euteamo!…”
Oassuntocomosevêéextraordinário,fértilememoções;eV.Hugootrata
comumasuperioridadeincontestável.Aexposiçãoéporextremoclara,ointeresse
cresceaomesmotempoqueaacçãocaminhaesedesenvolve,eodesenlacevos
deixanocoraçãovagastristezas,emelancólicoterror.
Oterceiroe5.ºactossãodemuigrandebeleza,opulênciadeideias,epoesia.
–Peloestiloemaneiraporqueéconduzido,diriasqueo4.ºactoeraumapeçaem
separado,umacomédiaengastadanodrama;masumacomédiaperfeitamentecó-
mica, cujodiálogosesucedevivo, lampejante, fácil, e commaiororiginalidade.O
dramapoderiarigorosamenteprescindirdeste4.ºacto,masperderíamosentãoa
comédiamaisespirituosadequehámuitosetemvisto.–Dapoesianadadiremos,
Eutinhaumasasasbrancas
-221-
poisquetodosconhecemassublimesinspiraçõesdovatedasOrientais,dasFolhas
doOutono,&c.
Temos feitoumgrosseiroesboçodo célebredramadeMr.V.Hugocoma
maiorgeneralidade,semdesceranenhumadashipótesesartísticasquecita,esem
insistiremmuitospontos,que,incluindoaideiaprincipal–amoresdeumlacaioe
umarainha,sãoagredidosfortementeporcríticosdenota.Entreoutros,doismo-
tivosprincipalmenteaistonoslevaram.1.ºOentusiasmoeenlevodequeodrama
nostomou,prendendopororaanossaimparcialidade;2.ºojulgarmosqueaanáli-
secríticadeobradetantamontadeveserfeitacommaisrepousoecircunspecção;
reservamo-lapoisparaosnúmerosseguintes.
Atradução(antesimitação)que,porseremprosa,algumtantoescureceas
belezasdeestiloedicção,dequetantoéabastadaapeça,nospareceugeralmente
boa,tantonapurezadafrase,comonabemsustentadapropriedadedeestilo; le-
vandomuitavantagemaquasetodasasquedelargotemposetêmouvidonotea-
trodaRuadosCondes.Nãoéfácilempenhoaversãodequalquerobradotãopoé-
ticoearrojadoHugo;eporissoaotradutorcabemdejustiçalouvorespelamaneira
distintacomqueaexecutou.
Não afirmaremos entretanto que a versão seja isenta de defeitos: parece-
nosque as expressões –horrivelmentebêbado, e –aocontrário – não sãomuito
portuguesas; e que alémdissono segundoacto, cena2.ª, não se correspondeao
pensamento “Que c’est faible une reine et que c’est peu de chose!” como o outro
“Comoéinsignificanteumarainha!”–sendotambémpoucoelevadootermo–in-
significante.
Daexecuçãomaisdeespaçofalaremos,porqueogosto,comqueouvimoso
drama,nosnãoconsentiuanalisá-la comvagar: cumpreporémconfessarque foi
muitomelhordoqueseesperava,atentoodiminutopessoaldonossoteatro.OSr.
Mattaespecialmentefezmuitomaisdoqueseusmeiosprometiam,esedistinguiu
nodifícilpapeldeD.Salústio;porémoSr.Mattavistoquenãoduvidouencarregar-
sedele,conseguindoempartevercoroadososseusesforços,deveestudaremedi-
tarcomtodaaatençãoe fervoroqueainda lhe falta,queéalgumacoisa.No3.º
actotomaumarescarnecedoreirónicoemdemasia;quandoaliásdevemostrar-se
maismoderadoefrio;deveteroorgulhododemóniosobaaltivezdoGrandede
Espanha;–oactorquedesempenharestepapeldeve(seguindoasmesmasexpres-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-222-
sõesdeV.Hugo)mostrarumartranquilo,sinistroegrande,comduasexplosões
terríveis,umanoprincípio,outranofim.
Quantoaosoutrosactoresfalaremospausadamentedecadaum,sendojus-
to confessardesde já,que se tornaramdignosdeelogionaexecuçãodosdifíceis
papéisquelhesforamdistribuídos.
Reservámos para o último período falar do acolhimento do famigerado
dramadeMr.V.Hugo,eoxaláqueodeverdeJornalistanosnãoobrigasseafazê-lo
nunca;porqueentãonãoteríamostambémdepublicar,quefoipateadonumTea-
troportuguês.–Muitoemborahajanelecoisasquenãopossamadaptar-se;muito
embora,queumaobrataljamaiseraparaserpateada,jáquenãoaplaudida.–De-
sagrada à nossa susceptibilidade aquele beijo de uma rainha, desagradam ainda
outrospontos;– sejamreprovadosostensivamente,masnunca recaiaoanátema
sobreumapeçainteira,queéfeixedenãovulgaresbelezas;poisquedestarteda-
remosumtristedocumentodonossomaugostoefaltadecivilização.
Voltemos ao compositor original, e demos-lhe a palavra que fale pelo seu
próprio prólogo; que em verdade é uma transcendente e luminosa arte poética-
dramáticaqueassimdamosanossosleitores.
_______________
PRÓLOGODODRAMA
RUYBRAZ
PorMr.VictorHugoTrês espécies de espectadores constituemo quepor aí se chamapúblico;
emprimeirolugarasmulheres;depoisoshomenspensadores;eporúltimoastur-
bas.Acção,eisoqueasturbasquaseexclusivamenteexigemdaproduçãodramáti-
ca;paixão,depreferênciaatudoomais,eisovotofeminil;sãoparaospensadores
oscaracteres.Deumreflectidoestudoacercadastrêsclassesdeespectadores,co-
lhem-seosresultadosseguintes:detantopreçoéparaasturbasaacçãoquepor
eladariamdebaratooscaractereseaspaixões.Asmulheres,semquesejamindi-
ferentesàacção,tantoasabsorvemosdesenvolvimentosdapaixão,quepoucoas
preocupa o desenhodos caracteres; quanto aos pensadores, tanto os deleita ob-
servarnacenaavidadoscaracteres,oudoshomens,que,acolhendodebomgrado
apaixãocomo incidentenaturaldodrama,quasequesão levadosaconsiderara
Eutinhaumasasasbrancas
-223-
acçãocomoumtropeçoqueosmolesta.Istoprovémdequeovulgorequerespeci-
almente do teatro sensações; amulher, emoções; o pensador,meditações; todos
vãoporumprazer,maséoprazerdosolhos,docoração,oudoespírito,queacada
umsatisfaz.Daíresultamparaanossacenatrêsespéciesdeobrasbemdistintas,
umavulgareinferior,asoutrasduasilustresesuperiores,porémsatisfazendoto-
dastrês:omelodramaéparaasturbas;paraasmulheresatragédiaqueanalisaa
paixão;paraospensadores,acomédiaquepintaahumanidade.
Digamo-lodepassagem,nãoénossatençãocaracterizarderigorosooque
dizemos,eaoleitorpedimosquepreenchanonossopensamentoasrestriçõesque
nelepossamdar-se.Todasasgeneralidadesadmitemexcepções;muitobemsabe-
mosqueconstituemasturbasumagrandemassaondedetudoseencontra,oins-
tintodobelobemcomoogostopelomedíocre,oamordoidealcomooapetitedo
comum: também não ignoramos que um perfeito pensador deve ser mulher no
delicadodocoração,eassazconhecemosque,graçasaessaleimisteriosaqueliga
umaooutroossexospeloespíritocomopelocorpo,cemvezesemumamulherse
encontraumpensador.Dadosestesprincípios,e,rogandonovamenteaoleitorque
não tome em sentidomuito absoluto algumaspalavras que ainda temos a dizer,
continuamos.
Todoaqueleque fixarsériasvistassobreas trêsespéciesdeespectadores
dequetemosafalarsemhesitaçãoconcluiráquetodaselastêmrazão:asmulheres
emquereremsercomovidas;ospensadoresemsedesvelaremporserensinados;
asturbasemdesejaremdivertir-se.Daísededuzaleidodrama.Enaverdadealém
dessabarreiradeluzqueseparaomundorealdomundoideal,criarefazerviver,
nascondiçõescombinadasdaarteedanatureza,caracteres,istoé(aindaorepeti-
mos)homem;infundirnesseshomens,nessescaracteres,paixõesquemodifiquem
uns, e desenvolvam outros; finalmente do encontro destes caracteres e paixões
comoasgrandesleisprovidenciaisfazerbrotaravidahumana,querodizer,acon-
tecimentosgrandes,pequenos,dolorosos, cómicos, terríveis, contendoparaoco-
ração esse prazer a que chamam interesse, e para o espírito essa lição chamada
moral;taléofimaquetendeodrama.Ébemevidentequeodramatomadatragé-
diaporquepintapaixões, eda comédiaporquedesenha caracteres.Odramaé a
terceiragrandeformadearte,compreendendo,encerrando,efecundandoasduas
primeiras.CorneilleeMolièreexistiriamindependentementeumdooutroseSha-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-224-
kespearelhesnãointerpusessedandoamãodireitaaMolièreeaesquerdaaCor-
neille.Destemodoasduaselectricidadesopostasdacomédiaetragédiasecomu-
nicam,produzindoumafaísca;eessafaíscaéodrama.
Explicando,segundoasentendeejáporvezesháindicado,oprincípio,alei,
eofimdodrama,estáoautorbemalheiodeasiprópriodissimularaescassezde
suasforças,eoacanhadodeseutalento.Oqueeleaquidefine,nãohajailusão,éo
quepretendiafazer,enãooqueexecutou.Revelaopontodeondeencetouestasua
carreira;enadamais.
Poucaslinhasnoscabeescreverantesdecomeçarestelivro,efalta-noses-
paçoparanosdesenvolvermoscomoerademister.Permita-se-nospois,semmais
nosdemorarmoscomtransições,passardasideiasgeraisqueacabamosdeexpen-
der(eàsquais,guardadastodasascondiçõesdoideal,julgamossubordinadatoda
aarte)aalgumasdas ideiasparticularesqueestedrama,RuyBraz,possaexcitar
nasmentesreflectidas.
Eprimeiro,paraconsideraraquestãoporumsódosseuslados,eemrela-
çãoàfilosofiadahistória,qualéosentidodestedrama?–Expliquemo-nos.
Quandoumamonarquiavaiadesmoronar-semuitosfenómenos,podemser
observados.Éanobrezaaprimeiraquetendeadissolver-se;nãotardapoisemse
dividir;eomodoeuvo-loexplico.
Oreinovaciladeabalado,extingue-seadinastia,caemporterraasleis;sa-
cudidapelosimpulsosdaintrigaquebra-se,esmigalha-seaunidadepolítica;quan-
todeelevado temaSociedade, tudodegenerae viciadodefinha:umadebilidade
mortalseapossadetodos,nointernocomonoexterno;tudoquantoeragrandeno
estado, caiu; só permanece o que é pequeno, triste espectáculo público; polícia,
exército,fazenda,finou-setudo,ecadaqualadivinhaqueestápróximoofim.Então
nãoháaíquemsenãoenfastiedopresente,quemnão temaoporvir, quemnão
olhedesconfiadoparaosoutros,quemnãoesmoreçadesgostoso.Comoadoença
doEstadoéna cabeça, cabeànobrezapartilhá-laprimeiro,porque lheestá logo
imediata.Equeserádela?Umapartedosfidalgos,osmenosprobos,emaisdestitu-
ídos de generosidade permanecem na corte. Tudo vai a pique, urgem as horas,
avante;amontoem-seriquezas,arme-seanovashonras,aproveitem-seascircuns-
tâncias;cadaqualtratesódesipróprio.Eentãocadaqual,esquecidoquetempá-
tria,ajeitaparasiumapequenafortunaparticularnumângulorecônditodogrande
Eutinhaumasasasbrancas
-225-
infortúniopúblico.Umfaz-secortesão,outrochegaaserministro,todosseapres-
sam em ser felizes e poderosos. São espirituosos, tornam-se depravados, e têm
feita a sua fortuna. As ordens do Estado, as dignidades, os lugares, o ouro, tudo
serve, tudo se ambiciona, tudo se arrebata. Ambição e cobiça, eis os dois únicos
elementosporqueesseshomensvivem.Umexteriorgraveecompostoescondeas
íntimasdesordensedesconcertosdaenfermidadehumana.Ecomoessavidarefo-
ciladanasvaidadeseprazeresdoorgulhotemporcondiçãoprimáriaoolvidode
todosossentimentosnaturais,cadaumsetornaferoz.Quandochegaodiadades-
graça,comoquemonstruosocomeçademostrar-seojáobscurocortesão,eoho-
memsetransformaemdemónio.
Oestadodedesesperaçãoemqueseachaoreino, impeleaoutraparteda
nobreza,amelhoremaisbemnascida,porbemdiversocaminho.Estabuscaoreti-
ro,eserecolheaosseuspalácios,castelos,ousenhorios.Nadaquersaberdoque
vai,porqueanadapodedarremédio;estápróximoofimdomundo:oqueimporta,
para quê desolar-se? Omelhor é aturdir-se, fechar os olhos, viver, amar, beber,
gozar.Quemsabeseumanointeiropoderácontardeporvir?
Ditoisto,ousimplesmentesentido,ofidalgodecide-seporumavez,aumen-
taonúmerodoscriados,compracavalos,enriquecemulheres,ordenafestas,paga
orgias, desperdiça, dá, vende, compra, hipoteca, empenha, devora, entrega-se a
usurários,elançafogoaosquatroângulosdoseupatrimónio.Acordaumamanhã,
eacha-sedesgraçado.Amonarquiacaminhavaapassoslargos,maselelhepassou
adiante,echegouprimeiroàsuaruína.Tudoseacaboupois,jaztudoemcinzas:e
de toda essa donosa vida lampejante, nem já resta o fumo; voou: cinzas e nada
mais.Esquecidoeabandonadoportodos,exceptopelosseuscredores,tomaopo-
brefidalgoorumoquepode,esetornaummistodeaventureiro,arruador,evaga-
bundo,mergulha-seesome-senomeiodas turbas,grandemassa lívidaeescura,
queatéentãonãovirasenãodelongeesobranceiro:aíbuscarefúgio.Outrojánão
temele,masresta-lhealuzdoSol,essariquezadosquenadapossuem.Habitava
outroranotopodaSociedade,hojetemdecontentar-secomoseuhumildealoja-
mento;mofadoparenteambicioso,quegozadaopulênciaedopoder;faz-sefilóso-
focomparandojáos ladrõesaoscortesãos.Quantoaomaissemprebom,valente,
cheiodelealdadeeinteligência;éopoeta,omendigo,eopríncipemisturados;rin-
do de tudo, fazendo espancar as patrulhas pelos seus camaradas, como noutro
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-226-
tempopelosseuscriados;aliandoaoseumodo,ecomalgumchiste,aimprudência
demarquêsaodescaramentodeboémio:manchadonoexterior,limponointerior;
enãoconservandodefidalgosenãoahonraqueguarda,onomequeesconde,ea
espadaquemostra. (continua)
___________
CURSOLITERÁRIODE
Mr.Magnin
(Artigo2.º)Quetristenãoéparaumpobreescritorentrarnaanáliseáridaedescorada
deumassuntoartístico!–etodaviaempreendemosessatarefa:porqueanãojul-
gámosdestituídademérito;eporquehouvemospordebastanteinteresseoperío-
do,quepassamosaexaminar:éaépoca,queligandoo1.ºao6.ºséculo,espelhaa
coexistênciadopoliteísmoedocristianismo,eofereceumasingulardualidadeda
arteepoesia.
A ideia, que devia operar uma revolução na arte dramática, assim como
noutrosmuitoimportantesobjectos,acabaradenascer.SotopostaaessaRomados
Imperadores,outraRoma,adoscristãos,vaiassomando:–ocristianismoaparece!
Entãoaparecemtambémasrepresentaçõeslitúrgicasnascatacumbas,nosagapes,
enacelebraçãodosnatalícios;eeisaíaorigemdoteatrohieráticocristão,quede-
viadepoisimperarsobreaarte,assimcomoareligiãosobreassociedades.
No2.ºe3.ºséculosogéniodramáticopagão,inquietopelodesenvolvimento,
quetodososdiastomavaodramadoscristãos,feztodososesforçosparaosobre-
pujar,mantendooseupoder.–Ei-loqueinvocandorealidades,serodeiadepompa
e decorações; e, retocando-as talvez, representa as peças de Terêncio. Todavia
(coisa singular!) o inventopagão, que então se deveria ligar commais fé à pagã
crença,entregaosseusdeuses,sobreacena,aosbaldõesdasturbas.–Otestamen-
todeJúpiter,Dianaaçoitada,eOstrêsHérculesesfomeados,sãotítulosdealgumas
peçasdaquelaépoca:–aomesmotempoacomédiatomatodaasuapersonalidade,
eaparódiaobtémomaiorfavor.
Odramapagãonãose limitoucontudoaressuscitarasantigaspeças;mas
compôsalgumas:–existedessaépocaumdramadeEzequiel-o-Trágico,cujoassun-
Eutinhaumasasasbrancas
-227-
toéavidadeMoisés.Eporventuraqueinfluiuestapeçasobreodramacristão;ea
esse génerode literaturadevemosoutrodrama escrito domesmomodo, que se
atribuiaS.JoãoCrisóstomo:–intitula-seOSofrimentodeCristo.
No4.ºséculooteatropagão,longedeserabolidopelocristianismo,teveum
momento de exaltação: – osMimos e Saltimbancos gozamde valimento; o circo
atraiamultidão;algunsvestígiosdatragédiaseoferecem;eacomédiaproduzdu-
asobras,umadeAusónio,intitulada=Ludussepetemsapientium=,eoutradeau-
tordesconhecido,cujotítuloé=Querolus=comédiatãocompridacomoasdeTe-
rêncio,eondesetornaporextremonotávelainfusãodasideiascristãs.
NapeçadeAusóniovêmossetesábios,cadaumporsuavezrecitarummo-
nólogo;desortequeseossábiosfossemoitooumais,maisextensaseriaaindaa
peça.–OQuerolus(títuloquetalvezpudéssemosverterpelodeRabujento)éuma
peçadeintriga,umacomédiadecarácter.Oheróiéumhomemquesequeixada
sorte,eaquemelatorna,aseudespeito,cadavezmaisfeliz:pensamentobemchis-
tosoeantitético,comosevê.–Aspersonagenssão:umdosdeusesLARES,QUE-
ROLUSfilhodeEUCLIÃO;MANDROGEROmágicoeparasita;SARDANÁPALOsico-
fanta;PANTOMALOescravo;&c.–UmafaladePantomaloanadasepoderiacom-
pararmelhordoqueaofamosomonólogodeFígaro.Éelarelativaàliberdadedos
escravos,ecaracterizaasociedadedo4.ºséculo,comoomonólogodoBarbeiroa
doséculo18.
No5.ºséculoquandojásehaviaestabelecidoumcompromissoentreaideia
cristã e a do paganismo; aparece um terceiro elemento que, separando as duas
ideias,seligaàmaisnovaparadestruiraoutra.Eestapersonagemterrívelquevai
entraremcena,esteactorquetemderepresentartãocruentoedramáticopapel,
queméele?–SãoosBárbaros!
Aoprincípioos selvagens conquistadoresda Itálianão sónãodestroemo
teatro,quantoaomaterial;masorestauram.Conhece-se,queaglóriaarquitectural
dopovo-reilhefazimpressão;desortequesódepoisdaconquistasetornarirre-
vogável, é que o teatropagãodesapareceu.Aindamuitodepois se notaram seus
vestígios;porqueumgrandemovimentonãoacabadesalto;grandeestrondosu-
cedeagrandequeda.
No6.ºe7.º séculosseencontrammonumentosdramáticosbastantenotá-
veis:noJuízodeVulcano,emquefalamtrêspessoas–Vulcano,umcozinheiro,eum
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-228-
padeiro,hágalantesditos,aindaquemuitomitológicos.–Eraporventuraumver-
dadeiroentremezparaosfestins.
O segundo destesmonumentos é oOccipus; e finalmente, amesma época
nosapresentaaindaoutro,perdidopormuito tempo,equesó foidescobertono
princípiodoséculoXIX.ÉumfragmentodeumaCLITEMNESTRAqueentãoprodu-
ziumuivivacontrovérsiaentreoseruditos.Escritaemgrego,éprovávelqueesta
peça fosse composta no Ocidente por algum grego refugiado. O fragmento é de
grandevalorhistórico;edelesepodeconcluirquenofimdo6.ºséculohaviadois
génerosdedrama:anovacomédiaearestauraçãodoteatroantigo;poisqueCli-
temnestraéemmuitoslugaresaimitaçãodoAgamemnondeSéneca.
Mr.MagninfazaquiaprimeiradivisãodoseuCurso.Enaverdadeo8.ºsé-
culoofereceumperíodoartísticodiferentedoqueatéagoraconsiderámos.Otea-
troantigotendiaanacionalpopular;aidademédia,quecomeçanoséculo8.ºincli-
naaseraristocráticaehieráticaunicamente.
Opovojánãoexiste;nenhumvestígiodenacionalidadesedescortina;eeste
períodohumanitáriocifra-seemduaspalavras:IgrejaeCastelo!
Emoutroartigoanalisaremosogéniodramáticoquantoàsuainfluência,e
produçõesnaépocadaunidadecatólica,edomaiorpodersacerdotal,desdeofim
do7.ºaoséculo12.
_________
SOCIEDADE
PRAZERINSTRUTIVONanoitede25dopassadoassistimosaumarepresentaçãoqueteve lugar
noteatrodaSociedadePrazerInstrutivo,existentenaRuadoArco.
Uma reuniãodemancebos,pelamaiorparte artistas, constitui essaSocie-
dadeteatral,emcujofimprofícuo,inocente,eagradável,seempenhamquantopo-
demparalevaraefeitodomelhormodo.Alheiosàsdevassidõesedesconcertosde
vida; aindamais estranhos às intrigas emanejos políticos, tanto em voga nesta
nossa época; empregamo tempoque lhes restadas suasobrigaçõesquotidianas
emseexercitarem,porgostoquenãoporinteresse,nabelaartedarepresentação,
proporcionandoalémdissoasuas famíliasasproveitosas liçõesdemoralquede
ordináriooteatrooferece;efazendopordesenvolverogérmendacivilização,cuja
utilidadejátodostantovãoconhecendo.
Eutinhaumasasasbrancas
-229-
Folgámosdevercomoesses jovensdesempenharamospapéisquerepre-
sentavam:nãoseriacustosodepararaítalentosdramáticosequejámuitoprome-
tem.
AmoreVingança,dramadonossoAntónioXavier,eumapequenafarsaanti-
ga,perfizeramoespectáculodessanoite,sendoosintervalospreenchidoscompe-
quenaspeçasdemúsica,executadasporumaorquestraproporcionadaàgrandeza
dasala:havendoalémdissoumconcertodeCorneInglêstocadocomtodooesme-
ro.
CRÓNICATEATRALOnossoTeatroNormaldeu-nosestasemanaumapeçanova,erecebeuem
troco um triste desengano: quem poderia adivinhar que o belo dramaRuyBraz
arranhariaacútisdelicada,feririaasusceptibilidadedonossocivilizadopúblico!–
AltosjuízosdeDeus!EessesaquemescandalizouomuidelicadoRuyBraz,foram
osmesmosqueaplaudiramcomentusiasmoasobscenidadesdaTorredeNesle,e
ashediondasabominaçõesdeLucréciaBorgia,dignasporcertodosteatrosdeNe-
roeHeliogabalo!…OCamõesdoRossiotemcontinuadocomfortuna.–Terça-feira
28dopassadofoiobenefíciodoSr.Teodorico,sendoparanotarquenãohouvesse
emtodaasemanaumarécitaextraordináriaemcompensaçãodaquela.
NoTeatrodeS.Carlosnãohouvenovidade.Domingo26foiaúltimarepre-
sentaçãodoRobertodoDiabo,epordespedidacantaramoscoristasquasepessi-
mamente;oSr.Contiparecequeestavaassazincomodado,poisqueavozlhefaltou
umaspoucasdevezese todosrepararamquesimplificoumuitooseucanto,não
usandodemuitasdascostumadascadências;esperava-senotransparentealguma
desculpa,masnão apareceu.A Sra.Moreno foi chamadafora para ser aplaudida
depoisdoseusolodo3.ºacto,oqualdesempenhoucommuitadagraçadeseudifi-
cultosamenteimitadomodeloMlle.Clara.
Segunda-feira27,embenefíciodoSr.Giuliani,houveumespectáculomisto,
quenãodesagradou,exceptoasvariaçõesdoSr.Ayala,asquaisopúblicopateou.
Quarta-feiranãoserepetiuoespectáculodobenefício,econcorreramaS.
Carlosumameiadúziadepessoas.
NaSexta-feiraderam-seduasdançasemvezdaprometidaVirgínia,quede-
cididamenteiránoDomingo.Estamosansiososporverestaproduçãooriginalde
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-230-
umcompositornosso,aquemdesdejápodemosdizerqueodesejávamosinspira-
doporum libretobemescrito–qualnosconstanãoseroqueescolheu,vulgare
bárbaro recosidodepalavras, ouvimosdizer, cheiode solecismos, e em italiano-
galego.
TeatrodoPorto–Nanoitede21docorrentesubiupelaprimeiravezàcena
umnovodramaoriginalportuguêsintitulado=AfonsoIII,ouoValidodeEl-Rei=o
qual foiacolhidocomgrandesaplausospelopúblicoportuense:–assimtem jáo
EmpresáriodoTeatroNormaldeS.Joãocumpridooseucontratorelativamenteàs
peçasqueéobrigadoaapresentar,poisqueéjáestaaquarta.–Outrodramaorigi-
nalportuguês=Atraiçãopunida,ouosPortuguesesemMalaca,havendosidopro-
postopararepresentar-se,foidepoisretiradoporseuautor.
TEATROSESTRANGEIROSEm BOLONHA está actualmente o primeiro bassoCartagenova, o qual se
achamuibemconceituado,etemmerecidograndesaplausosnaÓpera=Elenade
Feltre.
EmARGELtinha-seescrituradoumaCompanhiaItalianaporsetemeses,a
contardo1.ºdeOutubro.
EmBRESCIAtem-serepresentadoaÓperaitaliana=LuigiadeLigneroles:=
ignoramosseuautor.
NoTeatrodeCREMONAéactualmenteCoreógrafoJoãoScannavino.
EmVENEZAestavaultimamenteescrevendoomaestroFerrari,comoDou-
tor-PoetaZennaro,umanovaÓpera,intitulada:MariaTudor.
OprimeirotenorJ.Paganiniacha-seactualmentenoTeatrodeValença.
REALTEATRODES.CARLOSDomingo 2 = Ópera nova do Mestre Miró, intitulada Virgínia. = Dança
OTriunfod’Amor.
Segunda-feira 3 = Benefício de António LuísMiró, a 2.ª representação da
óperaescritapeloBeneficiado.=Virgínia.=Dança=OTriunfod’Amor.
Quarta-feira5=Repete-seomesmoespectáculo.
Sexta-feira7=ÓperaVirgínia.=Dança=OsPortuguesesemTânger.
Eutinhaumasasasbrancas
-231-
__________________________
n.º10,de9deFevereirode1840
JORNALDOCONSERVATÓRIO.Continuando a dar, segundo prometemos, os Pareceres das Comissões do
Conservatórioacercadosdramasaelesubmetidos, transcrevemosemseguida,e
na sua íntegra, o que sobreodramaD.Sisnando foi apresentadopela respectiva
Comissão,sendoestaaterceiraproduçãodramáticaqueaoConservatórioconcor-
reu,merecendoseradmitidaàsprovaspúblicasdepoisdeconvenientementemo-
dificadaporseuautor.
PARECERAComissãoencarregadadedaroseuparecersobreoDrama=D.Sisnando
eaditamentos(sobnúmeros1,23),cujoautor JoséFreiredeSerpaPimentel, re-
nunciandoobenefício,quelhefacultavaoEditalde26deFevereiroúltimo,artigo
9.º,o submeteuaoConservatório, semocultaro seunome;– respeitandoo rele-
vantemerecimentodoSr.Freire,nãopodecontudodeixardeaventuraralgumas
observaçõesacercadascircunstânciasdofeitoprincipal,queconstituiaAcçãodo
Drama;edenotaralgunsversosquelheparecerammenosprópriosouconvenien-
tes.
AComissãoatreveu-seatanto,confiada,emqueestejovemliteratofolgará
de que alguémo advirta quando,nosvôosd’águia,vaicorrendo, deslembradoda
terra,emêxtasearrebatadopelaregiãosublimedosastros…
AComissãoesperaigualmentedoConservatórioaquelabenevolência,quea
suagenerosidadeejustiçanãodeixarãodeprestarajulgadores,aquemsomentea
sorteimpuseraodifícilencargodeavaliaredecidirdeprontooqueumengenho
raromediaraecompuseramuideespaço.
UmadesgraçadaintrigaamorosaentreD.SisnandoeaVirgemdeCórdova,
constitui a Acção deste Drama. O feito é puramente extra-histórico. Não sucede
todaviaomesmocomosdiversosacontecimentospolíticos,queaísenarram;com
diferentesnomesde localidadesque se citam, commuitas daspersonagens, que
figuramna cena; e comseusnomes,usose caracteres;pois tudo colhi (assimse
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-232-
exprimeoautor)dasCrónicasNacionaiseCastelhanas,quesereferemàquelaépo-
ca.
AComissão,cingindo-seaestadeclaraçãodopróprioautor,leueexaminou
oDrama: – neste exame, para o qual se reconhece destituída de cabais conheci-
mentos,queabundamnoutrosmuidignosMembrosdesteJúri,–malpodiaregu-
lar-sepelomontãodeleisvariáveis,queosdiferentesgéniosoferecem,comotipo
dobomgosto,comomodelosdestaespéciedecomposições:–eporissolimitou-se
aconsideraraunidadedaAcçãoprincipal;eaverosimilhança,ouverdadedramá-
tica,desuascompanheiras.
Comefeito,amanifestaçãodosamoresdeD.SisnandoedaVirgemdeCór-
dova, é como um grito de alarme, que se levanta entre D. Sisnando, os Ricos-
homensdeCoimbra–eosdaReligiãodeMafoma.Estesamoresdescobertosno1.º
Acto; – são contrariados fortementeno2.º, eno3.ºActovãoacabar inutilizados
comamortedeambososamantes;semquedeixemdeconcorrerparatodaesta
acçãomuienredada,comoparaumcentro,osempenhosvariadosdaspersonagens,
quefiguramnaPeça.
AAcçãoduraporespaçodedoisdias,nomeadodoséculoundécimoefins
do reinado de D. FernandoMagno, de Castela. E, porque D. Sisnando deixou de
existirem1091,jáquandodeveraestaradiantadoemidade;–oPoetafá-lomorrer
muitoantes,paraquepossamterlugarnaépocadasuamorte,aspaixõesenérgi-
caseviolentas,quequeriadescreverentão,semdeslocarosfeitosmaismemorá-
veisdasuavida.
AssimtrouxeafigurarantecipadamentenoBispadodeCoimbra,oBispoD.
Paterno; – o qual só depois do ano de 1064 é que veio efectivamente governar
aquelaDiocese,reinandoD.AfonsoVI.
Ora,seesteanacronismopodedizer-sedentrodaalçadadaPoesiaDramáti-
ca,tendoestaaliberdadederecuaraépoca,emqueteveoupodiaterlugaraexis-
tênciasimultâneadoCondeD.SisnandoedoBispoD.Paterno:aComissãonãoou-
sapronunciarcomamesmaindulgênciaarespeitodasimultaneidadedeD.Pater-
nocomoBispodeCoimbraedeD.FernandoMagno;porquenoseureinadonão
conseguiuavindadeD.PaternoparaCoimbra.
Eutinhaumasasasbrancas
-233-
OBSERVAÇÕES?Pág.20.Acto1.ºCena3.ªnofim.(D.Egas)
Muitosazos
Deconsentiremtalnãolheheieuvisto,
NãocombinaistocomoquesetempassadoanteriormentecomD.Sisnan-
do; inculcandoomesmoD.Egasumaperfeita ignorânciados amores, quandoD.
Sisnandolhosdeclarara.
Pág.21.Cena4.ª(D.Sisnando)
D.RuiDias,
DizaoBispo….
Estaordemmaisconviriadá-laaoutremquenãoaD.Rui;–etalvezconce-
bê-lanoutrostermos?…(D.Ruinãodisseaquealiviera?!…)
Pág.22.Cena5.ª
Aentrevista logoaoprincípiodeviasercheiadesurpresadapartedaVir-
gem,apenasconheceemD.SisnandooPajemdaFloresta.
Pág.23.(VirgemdeCórdova)
Seuamortransmudounumódioeterno.
Nãosecompadececom
Pág.24.
Ficoumeucoraçãosurpresoequedo,
(Eseguintes)
Pág.29.(D.Sisnando)
EseoMundodesejas,comesteferro,
Punhaléoferro,dequeestáarmadooConde:comtalarmanãoéqueum
heróidevepretender conquistas.Deverá reassumira suaespadavencedora,que
haviadeposto.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-234-
Cena6.ª
UmpajemanunciandooBispoéimpróprio;emaisimpróprioparece,fazer
asuaintrodução.Seriamaisconveniente,queoBispoviesseàcenaacompanhado,
ouintroduzidoàCondessa,porD.Sisnando,quenaCena6.ªdisse:
Ireiàgelosiadopalácio
Fazersubi-lo(oBispo)presto;
MasdepoisapareceoBisposóintroduzidoporumpajem.
Pág.33.Cena10(D.Sisnando)
DomPaterno,
Ésmuitodescortês.
Parecemenos cortês esta repreensão emui injusta. Comohavia de adivi-
nhar oBispo, que ali estava aquela categoria, que a ocasionava? =UmaCondes-
sa?!…
Pág.36.(OBispo)
Revela-seosigilo…
Emvistadoqueselê,apág.20,jánãohásigilo…
Pág.42.(D.Sisnando)
Ismar,serásdosnossosnestedia,&c.
Nãopareceverosímil,queSisnando,depoisdosameaçosdeIsmar,oconvi-
dasseparaassistiràsFestas;emenos,que,aceitandoele,edeixando-lheSisnando
livresosPaços,nãoreceassebastanteparaprecaver-secontrasuasmuiprováveis
intrigaseoposições?!…
Cena13,nofim.
Vamos,Condessa.
Estaretiradadeambos;suaausênciadacenaporumanoite,edebaixodo
mesmotecto,gerasuspeitas,dequeosEspectadorescostumammurmurar,equea
Eutinhaumasasasbrancas
-235-
maiorparte,emboamoraldehoje,condena.TalvezquenosPaláciosentãosenão
exigissetantoedeumaEscrava?!…
Pág.49.Acto2.ºCena1.ª(OSacristão-mor)
Juro.
Neste juramento(pela leideCristo)extorquidoopunhal,nemoSacristão
estácomprometido,–nemIsmardeveconfiar.Eadmiraqueausentede Ismar,o
Sacristãoaindatemaoseupunhal;–eemnadatenhaatraiçãoquecomete,ouas
vingançasdeD.Sisnando?!…
Cena3.ª(Ismar)
Vê-la?(abolsa)
(AEscrava)
Basta.(Vai-se)
QuecertezatemIsmardequeaEscravacumpraseumandado?Entrega-lhe
elaacasooretratodeD.Sisnando?Esteretratoé,comefeito,apresentadonape-
núltimacenado3.ºActopeloMoiroOsman,paraodesenlacedaAcção.–Logoé
necessárioimaginar,queIsmar,quandosaidaSé–pág.55-;vaiencontrar-secom
OsmanecomaEscravaparacertificar-sedaexecuçãodaincumbência,quelhede-
ra,equedetudodêtambémconhecimentoaoAbadedeLorvão;–semoqueeste
nãopoderiaproduzircontraainocênciadaVirgem,oquedizdopunhal(pág.75,
verso15.º)edoretrato(p.76,verso1.º)
Porém,supostaestaentrevistaforadaCena,comoéforçosoquetenhaha-
vido,–paraquefoiobrigarviolentamenteoSacristãoairlevarumaCartaaomes-
moAbade;etantomaisquantoeradetemerqueelelánãofosse?…–(pag.50)
Pág.64(D.Sisnando)
PaternoBispo,eia.
Nãopodeverificar-sea convençãodepag.37.Logooprimeiromovimento
doCondeparacomoBispo,deveserdamaioradmiração,pornãoachá-lorevesti-
doeconformeodeterminadonodiaanterior?…
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-236-
Pag.75,Cena13(Idem)
(OAbadedeLorvão)
D.Sisnando,seumferrodeAgarenos,
Lheencontraresnoseiocomestedístico:&c.&c.
Nadamais inverosímil!…AVirgem forçadadanecessidade,nodiaantece-
dente ocultara em seu seio o punhal (queOsman lhe entregara) para que o não
visseD.Sisnando,quenessemomentoentrara;masdepoisqueseretiroudacena,
quedormiu,edenovosevestiuricamenteparaasBênçãos,enãotinhaintençãode
se servirdele contraD. Sisnando, como sehá-de acreditar, que aindao tragano
seio?…
ÀSé?…Eparaquê?…
Nãoémenosdignadeadmiraçãoatemeridade,comqueoAbadeasseverou
nãosóaexistênciadopunhal,masadoretratonumseio,quelheeradefeso,quan-
doestesobjectosalinãoforamguardadosàsuavista;e,mesmoquandolhodisse-
ram,nãodeverialevementeacreditá-lo!…Erainverosímileimprováveltudo!…
Pág.119.Acto3.º.Cena8.ª(Osman)
Essepunhal,quetensequeporforça
ÀVirgementreguei,esteretrato,&c.&c.
Já se disse, quanto basta, a respeito deste punhal. Quanto ao retrato; não
deixa de haver alguma dureza nesta substituição, feita impunemente. Quando se
põeaopeito,quandoseguardanoseio,detodoescapaàsvistasumretratojánão
imberbe;masdeumMoiro?!!!…
Pág.120.(OBispo)
Encostai-vos,Senhora,nosmeusbraços.
Nãoforamelhor,queaVirgemcaíssenosbraçosdeoutrem?DealgumaCri-
ada,Dama,ou&c.?
Eutinhaumasasasbrancas
-237-
Este3.ºActoestáqualificadopelopróprioautornoseuPrólogo.Sealguém
há, que o não ache excessivamente pesado; que possa sofrer, sem violentíssima
impressão, tamanhasériedecenascruentas,melancólicase terríveis;sea imagi-
naçãodoautor todaembebidano fogodasmaisexaltadaspaixões,paraas fazer
representarpelasdiferentespersonagens,crê,queeleéumaconsequêncianeces-
sáriadoquesetempassadonosdoisprimeirosActos;–émisterconvir,queeste
estadoextraordinárioseprotraiporumespaçodemasiadolongo;equesuainten-
sidade incomodará necessariamente amaior parte dos Espectadores a ponto de
banir-lhesapersuasão;eviolentaráosActoresamaioresesforçosdoqueépossí-
velcomportaraforçahumana!?…
AComissão,enfim,notoualgunsversos,quelheparecerammenospróprios
ouconvenientes.E,conquantodigaoAutor,queumDramadeveserprofusamente
abundantedestavariedadedePoesia,–ásperaerudeàsvezes;muitasdescuidadae
nemsemprefluidaemelodiosa;noqueaComissãodecertomodoconvém;todavia,
comoaPoesiadevepintaropensamentopormaneiraqueeleseinsinuefacilmente
nocoração;eoouvidoéquemprimeirooavalia;–ondeestainsinuaçãonãofoitão
pronta ou agradável ou persuasiva, como parece, que convinha, osMembros da
Comissãoaacusaram;enotaramnaPeçacomN.B.–Aopassoqueistodizemdo
seupróprioconceito;talvezqueaoutrosomesmonãopareça;enestecasooCon-
servatóriopodefixá-lo;poisabundaemJuízesilustradosnamatéria.
CONCLUSÃO
Comotodasestasobservaçõesenotasexijamapenasmuifáceiscorrecções,
queoAutorporcertofarásemcusto,aComissãoédeparecerqueodramaD.Sis-
nandoreconsideradoeretocadomereceráserexpostoàsprovaspráticas;eespera,
que muito contribuirá para acrescentar mais fama ao nome distinto do Senhor
Freire;eaonossoTeatrodarámaisumaexcelenteproduçãodoseugénio.
Lisboa:SecretariadoConservatório:8deJunhode1839.
AgostinhoAlbanodaSilveiraPinto.
CondedeMello.
JoséFerreiraPestana.
___________________
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-238-
PRÓLOGODODRAMA
RUYBRAZPorMr.VictorHugo
(CONCLUSÃO)
Seoduplicadoquadroqueacabamosdedesenharseoferecenahistóriade
todasasmonarquiasnumdadomomento,éespecialmenteemEspanhaqueelese
deixaveremtodaasualuzpelosfinsdosétimoséculo.Seoautorhouvessepois
chegadoa executar essaporçãoda sua ideiano seguintedrama, oque estábem
longedesupor,aprimeirametadedanobrezaespanholadessaépocaseresumiria
emD.Salústio,asegundaemD.César,parentesamboscomoconvém.
Nesteesboçoquetraçamosdanobrezacastelhanaem1695,deveentender-
sequenãoincluímosasraraserespeitáveisexcepções.–Prossigamos.
Continuando a examinar essamonarquia e essa época, abaixodanobreza
assimdividida–equepoderiaatécertopontoserpersonalizadanosdoishomens
quenomeámos–vê-senofundopulularalgumacoisa,porémsombria,grandedes-
conhecida.Éopovo.Opovo,quepossuiofuturosempossuiropresente;opovo,
órfão,pobre,inteligenteeforte;colocadomuitobaixo,easpirandoaquantoháde
maiselevado;marcadonascostascomoferretedeescravo,etendonocoraçãoas
premeditaçõesdogénio;opovo, servodosgrandes, eamando,emsuamisériae
objecção,aúnicafigura,que,nomeiodessaaluídasociedade, lherepresentacom
divinoesplendoraautoridade,afecundezaeaclaridade.OpovoseriaRuyBraz.
Agora,acimadessestrêshomens,que,destamaneiraconsiderados,dariam
vidaemovimentoanteosolhosdoespectador,atrêsfactos,enessestrêsfactosa
todaamonarquiaespanholanoséculodécimo-sétimo,acimadestes trêshomens
háumapuraeluminosacriatura,umamulher,umarainha.Mulherdesventurada,
porqueexistecomosenãotivessemarido;rainhainfeliz,porquevivecomosenão
tivesserei;debruçadaparaosquelheestãoinferioresporbenevolênciarealepor-
venturatambémporfeminilinstinto;olhandoparabaixo,emqueRuyBraz,opovo,
olhaparacima.
Naopiniãodoautor,esemprejuízodomaiscomqueaspersonagensaces-
sórias podem concorrer para a verdade do todo, essas quatro figuras assim em
Eutinhaumasasasbrancas
-239-
gruposresumiriamosprincipaisrelevosqueaosolhosdohistoriadorfilósofoofe-
receamonarquiaespanholadehácentoequarentaanos.PareceriaqueoreiCar-
losIIsepoderiaaindajuntaraogrupo.Mas,nahistória,bemcomonodrama,Car-
losIIdeEspanhanãoémaisqueumasombra.
CumpreagoraadvertirqueoqueseacabadelernãoéaexplicaçãodeRuy
Braz. É simplesmente um dos seus aspectos. É a impressão particular que este
drama, se valesse a pena ser estudado, deixaria namente grave e conscienciosa
queoexaminasse,porexemplo,emrelaçãoàfilosofiadahistória.
Este drama todavia, por pouco que seja, tem, como todas as coisas deste
mundo,mui variados aspectos, e pode encarar-se demuitos outrosmodos.Uma
ideiapodeapresentardiversasaparências,bemcomoumamontanha;dependem
elasdolugaremqueseestácolocado.Releve-se-nosumacomparaçãoinfinitamen-
teambiciosa,quefazemossóparadarmaiorclarezaaessenossopensamento:O
Monte-brancovistodaCruz-de-FlecheranãoseparececomoMonte-branco visto
deSallenches;enãodeixaporissodeseromesmo.
Semelhantemente (descendo do grande ao mesquinho) este drama, cujo
sentidohistóricoacabamosde indicar,seostentariabemdiversoconsiderando-o
demaioraltura,deumpontodevistapuramentehumano.EntãoD.Salústioseriao
egoísmoabsoluto,oroedorcuidado;D.César,seucontrário,representariaodesin-
teresse, e emRuyBraz ver-se-ia o génio e apaixão comprimidaspela sociedade
elevando-se tantomais alto quantomais violenta é a compressão; finalmente, a
rainhaseriaavirtudemurchadapelodesgosto.
Consideradosó literariamente,oaspectodessepensamento,quehánome
RuyBraz,aindamuda.Aípoderiampersonalizar-seeresumir-seasformassobera-
nasdaarte.D.Salústioseriaodrama,D.CésaraComédia,RuyBrazaTragédia.O
dramaenlaça,acomédiaenreda,atragédiadesfechaaacção.
Sãojustoseverdadeirostodosestesaspectos,nenhumdelestodaviaécom-
pleto.Sónoseutodoéqueaobraapresentaaverdadeabsoluta.Contantoqueto-
dosneladeparemoquebuscam,teráopoeta(enãoousaesperá-lo)conseguidoo
seu fim.Oassunto filosóficodeRuyBraz, éopovoaspirandoaelevar-seàsaltas
regiões;oassuntohumano,éumhomemqueamaumamulher;éoassuntodramá-
tico,umlacaioqueadoraumarainha.Asturbasquetodasasnoitesconcorremem
chusmaanteestaprodução,porquenuncaemFrançaaatençãopúblicasenegaàs
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-240-
tentativas do espírito, quaisquer que elas sejam, as turbas, repetimos, não vêem
emRuyBrazsenãoesteúltimoassunto,ebemdramático,–olacaio;enãoésem
razão.
EoqueacabamosdedizeracercadeRuyBraznosparecedeevidênciacon-
sideradonoutraqualquerprodução.Asobrasvenerandasdosmestresapresenta-
ramasingularidadedeofereceremàestudiosainvestigaçãomaisfacesdoqueou-
trasquaisquer.Tartufo,enquantofazrirauns,faztremeraoutros.Tartufoéaser-
pentedoméstica;oujáohipócrita;ouantesahipocrisia:homemouideiaalternati-
vamente.Otelo,parauns,éonegroqueamaumabranca;paraoutrosumhomem
de fortuna que chegou a casar com uma Patrícia; para estes é um zeloso; para
aqueles, o ciúme. Esta váriamaneirade vernada tira à unidade fundamental da
composição.Jánoutrolugardissemos:“Milramosnumsótronco”.
SeoautorinsistiuparticularmentenasignificaçãohistóricadoRuyBraz,a
razão é que, pelo sentido histórico (e unicamente por ele)RuyBrazse aparenta
comHernâni.Ograndefactodanobrezaseostenta,numeoutrodrama,apardo
grandefactodarealeza.EmHernânicomoarealezaabsolutaestáemser,anobre-
za,meiafeudal,meiarebelde,lutaaindacontraoreiarmadadeorgulho,oucoma
espada.Em1519, viveo senhornasmontanhas longeda corte, jábandido como
Hernâni,jápatriarcacomoRuiGomes.Duzentosanosdepoisvê-seocontrário.Eis
osvassalos já feitoscortesãos.EntãosealgumavezurgeaoSenhoresconderseu
nome,épelo receiodoscredores,quenãopormedodorei.Outrora tornar-se-ia
bandido, hoje faz-se vagabundo. –Conhece-seque a realeza absolutapassoudu-
rante largos anos por sobre essas nobres fontes, curvando umas, despedaçando
outras.
E demais disso, permita-se-nos esta última palavra, entre Hernâni e Ruy
Brazdois séculosdeEspanhaestãoengastados;doisgrandes séculosdentrodos
quais coube à descendência deCarlosV dominar omundo; dois séculos a que a
Providência,–coisapasmosa,–nãoquisdarnemmaisumahora,poisquenasceu
CarlosVem1500,eCarlosIImorreuem1700.–Em1700herdavaLuísXIVdeCar-
losV,bemcomoem1800NapoleãoherdavadeLuísXIV.Estasgrandesaparições
dedinastiasque iluminampormomentos ahistória, sãoparao autorumbelo e
melancólicoespectáculoemquebemvezesseusolhosserepousam;edele tenta
reproduziralgumaparteemsuasobras.ÉportalartequeescolheuparaHernânio
Eutinhaumasasasbrancas
-241-
esplendentefulgordeumaaurora,eparaRuyBrazastrevasdeumcrepúsculo.Em
Hernânivê-se o sol da casa deÁustria despontar noOriente; emRuyBraz vê-se
afundarnoocaso.
Paris,15deNovembrode1838.
________||________
RUYBRAZ
E
OSEUPRÓLOGODesdequeapareceuobeloprefáciodeCromwell, causando tãoprofundas
emoções,elevantandotempestadestãoviolentas,ninguémháqueignore,quanto
osprólogosdramáticosdeMr.V.Hugo sãopáginas admiráveis emqueopensa-
mentoeaimaginaçãodiscorriamhorizontesimensosemagníficos,largasperspec-
tivas, pontos de vista soberbos, e donde se aprofunda ousadamente a arte e o
mundointelectual.–Etodavianemsemprecorrespondeaobraàsbrilhantesteo-
riasdoprefácio.Cuidaras(paranosservirmosdeumaimagemdomesmoV.Hugo
noseuprefácio)verasaltivascumeadasdoMonte-Branco,quedelonge,pelane-
blinaeindecisoalvorecer,aparecemflutuantesegigantescas;equesemelhambai-
xar-seàmedidaqueodiaradiante,afugentandoasnévoas,alumiacommaiorful-
gorasvoltasdamontanha,ocôncavodosvales,oprofundodosabismos,eesses
negrosbosquesdepinheirosqueparecemquererelevar-seatéaocéu.Esepara
elas vamos caminhandoentãovemosdiminuíremas alturas, fechar-se comdesi-
gual estreitezaohorizonte, os espaços seremmenos largos e luminosos, asque-
bradaseprecipíciosmaisfrequentes;massempreemtornoumanaturezapotente,
rica,variadaecomumvigordecoresdesconhecidonoutraspartes!
EmgeraltaissãoosdramasdeV.Hugovistosaoclarãomágicodeseuspre-
fácios(etaléRuyBraz);falaremosdele:consideramo-loaquimenoscomopeçade
teatro, que como um livro, uma obra literária quemerece estudar-se profunda-
mente.
RuyBrazéoirmãomaisnovodeHernâni:–oferecera-nosesteaaurorada
casadeÁustrianaEspanha,eosnascentesfulgoresdamonarquiaespanhola,cujo
focoeraCarlosV:–RuyBrazpretendemostrar-nosocrepúsculodestamesmacasa,
enosapresentaoquadrodaagoniaedesfalecimentodaquelamonarquia.–Conce-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-242-
demosqueoprimeirorepresenteopensamentodeV.Hugo,masnosegundonão
podemos acharumapintura larga e fiel dosprincípios e interessesdiversosque
lutamaodesmoronarem-seasmonarquias.Parece,queV.Hugoestendeutãodes-
mesuradamente ohorizontequeporventura amuitopoucos serádado enxergar
maisdoqueperspectivasfantásticasouenganadoras,comoamiragem.
Críticos franceses de grande vulto, mas não, pela nossa opinião, de mui
grandeimparcialidade,entreoutrascensuras,negamqueRuyBraztenhaalcança-
doofimhistorico-filosóficoquesealardeianoprólogo.–Éverdadequenãoéfácil
achar no drama tão visivelmente escrita, comomuitos requeriam, e o seu autor
indica, a história de todas asmonarquias no seu ocaso; – é verdade que os três
princípios – anobrezaque sedivide, opovoque concebeesperanças e encarao
poder,eestequeaindadominaopovoeanobreza,nãosepodemvermuitodistin-
tamentepersonificadosemD.SalústioeD.César,emRuyBraz,eemD.Mariade
Neubourg:masdevemoslembrar-nosque,conquantosejamlongínquasenebulo-
sasperspectivas,avistad’águiadopoetaasabrangeueaprofundoutalvez,tendo
sóaculpa,–dignaporcertodeindulgência,–demedirpeloaéreodeseuespíritoo
espíritodosespectadoresecríticos.Éestaporventuraarazãoporqueaideiasoci-
alefilosóficadoRuyBraznãoaparecetãoclaraedistintamente,comomuitospre-
tendiam.
Entretanto(confessamo-lohumildemente)somosnósdessesaquemnãoé
dado descortinar suficientemente o alto e profundo pensamento moral que, se-
gundoV.Hugo,dominaodrama.Encerrar-se-áeleporventura,emqueaambição
noamor(RuyBraz)cega,edeitaaperderohomem,comoofariaaambiçãointe-
resseira?–Emqueoegoísmo frioecruel,animadopeloespíritodavingança(D.
Salústio)caimuitaveznoslaçosinfernais,queelemesmoarmou?–Emqueavir-
tudedamulhermurchadadedesgostosucumbeinfalivelmenteaoprimeiroataque,
aoprimeiroamorososacrifício?–Destasquestõesasduasprimeirassãoverdades
tão sentidas e comuns, que talvez não fosse necessário levá-las a uma aplicação
dramática; e a última é simplesmente falsa, e tanto, que até seria proclamar um
errofunestoeimoral.
OqueninguémpoderánegaraV.Hugo,aindaadespeitodaRevistadosDois
Mundos,équeoseudramaéumbelíssimodramaliterário.–Repugnam-vosesses
amoresdeumarainhacomum lacaio?–masatentai,queD.MariadeNeubourg
Eutinhaumasasasbrancas
-243-
nãoamaolacaio,masonobreDuqued’Olmêdo,oprimeiro-ministro,queelaquis
elevaratéfazê-losenhordoseucoraçãoedoseuconselho!Opoetabemconheceu
queseriamonstruoso,disforme,e ignóbiloamordeumarainhaporumlacaio.–
Masnessecasoqueédaoriginalidade?dizeisvós:–vedeporémqueessadesco-
munaleatrevidaideianãodeve,nãopodeperderaoriginalidadeporserapresen-
tadacomtantadecência,etãoconvenientementerevestida.
Tambémnosnãoconformamoscomaopiniãodosquejulgamocarácterda
rainhapoucosustentado;poisquedesejavamqueelajamaisperdoasseaofalsário
etraidorignóbil.Quantaforçaeamplitudenãotêmaquelaspalavrasdoprefácio:–
MariadeNeubourgérainha,masétambémmulher!…ERuyBrazestáamorrer,e
sóaquelesouvidosdemoribundotêmdeescutaroperdãodequemtantoamou!…
CabetalveznestelugardesculparapobreRainhapeloseuamortãoinocen-
te,etãoplatónico.Amesquinhaeracasada,éverdade;porémestavaconsumidade
desgosto,presaaoseupaláciocomonumclaustro,eviaqueseusverdesanostão
cheiosdeilusõesiammurchandotristemente:entãolheapareceumnobremance-
bo,generosoesublime;eeladeixaarrebatarocoração,eama,eseembevecedes-
se sentimento, que transportando-a a ummundo novo, a rodeia de brilhantes e
róseossonhos:–pobreRainha!–Eoteuesposo!…Eleaabandona,elecaçaferozes
alimárias;enquantojovem,abelaMariadeNeubourgchoraepenaemsaudade!…
Masé-lheinfiel,jáamaoutrohomem,eocastigonãotarda…Vêde-o!–essehomem
aquemtantoamaste,éumvillacaio!–horríveldecepção!–Amaldiçoaste-o?Mor-
rerá…–sedisseresqueoamas,morrerátambém;etupresenciarásassuasagoni-
as,eascontracçõesdaquelamortedevenenote ficarãoesculpidasna lembrança
paratodoosempre!…–Eaindahaveráquemjulgueminguadaapuniçãododelito,
deseuamor?…Sim!porquehouvenonossoteatroquem,talvezporfalsaouhipó-
critamodéstia,desaprovassealtamenteoRuyBraz!Quemsabeseporventurase-
riaalgumdaquelesquenoutro tempotantoaplaudiramasdecênciasdaTorrede
Nesle,edaLucréciaBorgia?
JásevêquemuitasdascensurasqueporaísefazemaoRuyBraz, inteira-
mentedesaparecemàvistadoquetemosexposto:passemosafalardo4.ºactodo
célebredrama,desseactoprodigiosoquetantohácomovidotodososespíritos.–
DisseMr.V.Hugonoprólogo,quenosdariaemD.CésardeBazanacomédiaque
enreda,assimcomoemD.Salústioodramaqueenlaça,eemRuyBrazatragédia
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-244-
que desfecha. – Admitindo sem discussão esta construção dramática quanto ao
dramaetragédia,custar-nos-áaconsiderarD.César,comoacomédiaqueenreda;
poisquenãoéeleacomédiadeRuyBraz,masumacomédiano–RuyBraz.–Che-
gávamosaofimdo3.ºacto;aRainhaacabavadefazeraoministroaconfissãode
seussentimentoscomumardoralgumtantoinconsiderado,eeletocaraoapogeu
dasuaglória,doseupoder,dasuafelicidade.Masentãoafatalidade,afatalidade
deHernâni,se lheapresentacomas feiçõesdeD.Salústio,deixa-lhecairpesada-
mentesobreoombroumamãode ferro,e lheamachucaoesplêndidomantode
duque,queescondeadesprezívellibrédelacaio?MasdeixemosRuyBraz,esque-
çamosessacenatãocheiademovimento,naqualoorgulhodosenhoreahumilha-
çãodocriadotãodrasticamenteserepresentam…
Umhomemcaidasnuvens!Ei-loacontarsuasextravagânciasincríveis,su-
as inauditas e chistosas aventuras. Estehomemeraperseguido, comooquenão
temleiranemgeira,comoumcriminosovagabundo;eumpalácioéasuapresente
habitação:estavaesfomeadocomoumlobo,eachalogoumabibliotecaqueencerra
osmelhoreslivrosemaischeiosdeespírito–empadasegarrafasdeXerez:–este
homemépobrecomoJob,temodiabonaalgibeira,eeisquelhechoveoouro,co-
monumcontodasMileumaNoites: amantes,misteriososduelos,nada lhe falta;
nemmudosedueñasàssuasordens,nemsacosdedinheiroecartasdeamores:–
enfiméumsonhomaravilhosoeencantado,demaravilhaparamaravilhaatéque
acorde…numaprisão!… –Cai o pano, a comédia findou: comédia viva, animada,
espirituosa, palpitante, e por extremo graciosa e divertida; mas que se poderia
muito bemdispensar; – é umbrilhante intermédio, e o drama vai continuar: de
novoeleseerguealtivono5.ºacto,ouantes4.ºeúltimoactodapeça,queunica-
menteencerraamorevingança!
Denenhummodo entranonossopensamento amais leve censura a essa
criaçãofantástica,essafiguraoriginalepitoresca,aesseincrívelD.CésardeBazan.
Éelesemdúvidaapersonificaçãodacomédia;masnuncadacomédiaqueenreda;
porquesuspendernãoéenredar;eD.Césarselançaporentreodrama,comouma
gargalhadaestrondosa,ouchocarreirosarcasmonomeiodeconversaçãogravee
séria.NãoéportantoD.Césaracomédiadodrama,masacomédianodrama.–E
entretanto, forados limitesda arte, nãopodemosdeixarde ficar agradecidos ao
poetaadmirávelqueextremouemD.Césarbelezasegraçasdeespíritoeimagina-
Eutinhaumasasasbrancas
-245-
ção,queescurecemosPanurgosdeRabelais,eFalstaffdeShakespeare;enosre-
cordamodeliciosoWaddrakdeWalterScott.
Finalmenteesteartigo, advertindoque, senodramadeV.Hugosenotam
defeitosde algumpeso, é justo lembrar-nosdahorrível eprofunda letargia, em
quetinhacaídoacena francesaquandoapareceucheiodeesplendoressedrama
aventureiro,esseHernâni,quegalopavapelahistóriaepoesiacomopelasmonta-
nhasondehaviarespiradolivre,ebebidoaspurasbafagensdeumanoitelímpida
dasEspanhas.Odrama,quedormiaumsonode ferro,acordouàvozdeHugo!–
ressuscitou de súbito à evocação do poeta o dramade Shakespeare, esse drama
quesecomprazemmisturarorisoeaironianogruposeverodosvícios,dasvirtu-
des,doscrimesedaspaixões.–Infelizmenteodrama,bemdespertodoprofundo
letargo,tornou-sevagabundo,audaz,imprudente,descocado,esemremorso;ser-
viu-sedaespadaedopunhal,enamorou-sedaprimeiraprostituta,violoumulheres,
ematourivaisdeamoroudeadultério!–NãosederaemHernâni tão licencioso
sistema ; não se encontra ele em Ruy Braz; e todavia dramas indecentes foram
aplaudidosnonossoteatro;eRuyBrazpateado!!!…
______________
CRÓNICATEATRALTeatroNormal=Quinta-feira6docorrente,foipelaprimeiravezàcenaum
drama intituladoOPeregrinoBrancoouosMeninosdaAldeia: foi aplaudido com
entusiasmo, e regularmente representado. – Todos conhecem a antiga novela –
VictorouoMeninodaSelva,porDumenil;masnãosetemvulgarizadotantoentre
nós(postoquetraduzidatambémemportuguês)outraproduçãodomesmogéne-
roeautor, intituladaOsÓrfãosdaAldeia;essaéquedeuoassuntoàpeçadeque
oratratamos.Faltadenexoeobscuridade,sãodosseusmenoresdefeitos,pecando
muitasvezescontraosensocomum.Quemnãotiverlidoanovela(suamãe)terá
de cansar a atençãoeo raciocínioparabemcolher-lheo enredo:quemvirduas
criançassaltarsobreumsoldadoarmadodeespingardacarregada,etirar-lhadas
mãos,semmaisnemmenos,há-deacharqueécoisaprodigiosa!
OPeregrinoéprodigioso,eonossopúblicoaindamais,queestádoidopor
estasandice,enãopodesofreroRuyBrazdeVictorHugo.Ouvistesorouxinoleo
pardal;–vistesarosaeomalmequer;–provastesomeleoabsinto:qualpreferis-
tes?
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-246-
O papel da Sra. Emília, posto que bem desempenhado, não produz efeito
agradável;pormaisquefaçaotraje,nuncaétantoquepossatransformarcomple-
tamenteosexo.Acenado2.ºactoemqueaSra.Emílialutacomomordomo,em-
pregandopésemãosedentes, faz lembraroGaiatodeLisboa; ea reminiscência
nãoéagradável.
TeatrodeS.Carlos =Quarta-feira5do corrente subiupelaprimeira vez à
cenaanovaóperaemdoisactos,intituladaVirgínia,composiçãodoSr.Miró.Nãoé
fácil,ouantesseriaarriscado,aventurarumadecididaeminuciosaopiniãoacerca
deumapeça,cujarepresentaçãopoucasvezessetempresenciado;anovidadedo
espectáculo,oenredodoassunto,acuriosidade,efinalmenteaestranhezaquenos
causaumamúsicaaqueosouvidosaindanãoestãoafeitos, todosestesmotivos
dividem a atenção, e pouco ou nada deixam livre para a crítica judiciosa, a qual
requermeditaçãoplácida,eabstracçãodetudoaquiloemquenãotenhaespecial-
menteamira.–AóperadoSr.Miró,agradougeralmente,efoiassazaplaudida;o
compositorfoichamadoaoproscénioecumuladodesaudaçõesporumnumeroso
concursodeespectadores.–Abalançamo-nosadizerqueoprimeiroactonospare-
ceumuitosuperioraosegundo:aintroduçãodaóperaéumtrechodemúsicaexce-
lente,notando-se-lhebelasenãovulgaresharmonias,eóptimainstrumentação.–
Nodesempenhodistinguiu-se especialmenteo Sr.Conti, o qual vaimedrandode
diaemdianoconceitodopúblico;ocorodaintroduçãonãofoibemexecutado,o
quenão éde admirar, poisqueumaprimeira representaçãodevequase sempre
considerar-seumderradeiroensaio.
Não podemos ainda ajuizar do libreto de Virgínia, esperamos ter alguns
momentosparaoler,ereformar–comconhecimentodecausaoquedissemospor
informaçãonoNúmeropassado.NãosabíamostampoucoserestaproduçãodoSr.
Prefumo,comoporsuareclamaçãovemosagora,aliásnãoseriadefácilquedaría-
mos crédito a tais informações, e houvéramos evitado o emprego de frases, que
(bemoantevemos)nãoeramdeboaaplicação.Esperamospois,edesejamos, ter
sido enganados, e mais desejaríamos ainda aceitar o certame literário que nos
propõe,seemnóshouvessemtalentodramático,eliçãodalínguaitaliana,bastan-
tesparaempreendertãoárduoempenho.
TeatrodoPorto.=OsDoisRenegadosforammalrecebidosnaheróicacidade.
Discordampoisosjuízosdaquelepúblico,edonosso.Umaplateiaéoconcíliome-
Eutinhaumasasasbrancas
-247-
nos infalívelquehá;hojeaplaudeoqueamanhãassobia, – aqui seentusiasmam
peloquealémfazdormir.–Dessefacto,aliásindiferente,sedevetirarargumento
contraosquedetodoojuízodogabineteapelamparaodopúblicocomoparasu-
periortribunal.OEmparedadonãoagradounoteatrodeLisboa:daíquiseramar-
guir o Conservatório que o aprovara: com que triste fundamento! Dizemos isto,
tantodeumacomodeoutrapeça,sememitirjuízo,ecomosimpleshistoriadores
relatamososfactosquevamosconsignandonestaCrónica.Se,quandofalámosno
N.º 7noEmparedado, aludimos a defeitosdaquelapeça, não foi aosquenós lhe
achássemos, ou podemos achar,mas aos que notaramos seus impugnadores no
Conservatório. Omesmo dizemos dos outros dramas sobre que o Conservatório
pronunciouformalmenteoseujuízo,oqualnãoglosaremosnunca.
_______________
TEATROSESTRANGEIROSPARIS.TemdadomuitoqueentenderaosParisiensesagrandeSinfoniade
JulietaeRomeu,compostaporBerlioz:estasinfonialevamaisdeduashorasaexe-
cutar,econstademúsicavocaleinstrumental;éumaespéciedeÓperasemregu-
laridadedeacção,mascujasharmoniasestãoportalarteconcertadas,queamúsi-
cafalaaocoração,eabredilatadohorizonteàimaginação.OmétododeBerliozéo
seuestromúsico,asleisquesegueemsuascomposiçõessãoasqueestelhedita.É
oVictorHugodaÓpera, pois que é ele o primeiroque se atreve a dardemão a
exemplosepreceitosclássicos.–Nãofaltaramtodaviarisadas,nemódios,paraa
sinfoniadenova invenção!Um italianoqueaouviudissequeeraumaporcheria
francese.Umfrancês,seguindoasuanaturalinclinaçãoaoscalembours,exclamou
muicontentedesi:–Cen’estpasduShakespeare,maisunchantquiexpire!
________________
Mlle.Rachelcontinuaaobterosmaiorestriunfosnaregeneraçãodoteatro
clássico;natragédiaCinnadeCorneilleatédosprópriosromânticosfoiaplaudida.
REALTEATRODES.CARLOSDomingo9=Ópera=Virgínia=Dança=OsPortuguesesemTânger.
Segunda-feira10=BenefíciodeRosinaPicco,o1.ºactode=Virgínia.ODu-
etodeRobertoDevereux,cantadopelabeneficiadaeMr.Ferretti.ODuetodo1.º
actodoBelisário,pelosSrs.Regoli,eSpech.ODueto,eTercetodoZampa,pelabe-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-248-
neficiada,eSrs.Eckerlin,eRamonda.ODuetojocoso,osLoucosporProjecto,pela
beneficiadaeMr.Ramonda.DançaOsPortuguesesemTânger.
Quarta-feira12=Repete-seomesmoespectáculo.
Sexta-feira14=ÓperaVirgínia,eumnovobaile jocoso,compostoporMr.
Astolfi,quetemportítulo=AsNoveRecrutas=debutaráa1.ªdançarinaMlle.Ra-
bel,queveiosubstituirMlle.Clara.
____||____
GRANDEGALERIAÓPTICAExpostanoLargodeS.Paulo,nascasasdaex.ªcasadePombal,n.º11,em4
salasdeprimeiroandar,estápatenteaTERCEIRAEXPOSIÇÃOtodososdiasdas11
horasdamanhãatéàs3datarde;edasAve-Mariasatéàs9danoite.___________________
n.º11,de16deFevereirode1840
JORNALdoConservatórioTemosdadopelaordemcronológicaospareceresacercadaspeçasapresen-
tadasaoConservatório;nonossoúltimoNúmerocoube-nostranscreverodoDra-
maD.Sisnando,ehojeoqueaComissãoespecialencarregadadoexamedaFarsa–
ODoidoporforça,emitiuporessaocasião.Comoseveránessedocumento,aCo-
missãoonãojulgoudignodeseradmitidoàsprovaspúblicas,eumagrandemaio-
riadoJúriconcordoucomessejuízo,nãonosconstandoquehouvesseumsójura-
doqueo combatesseabertamente.Nemoseuautordeve ter como inteiramente
frustrada sua tentativa, pois que a própria Comissãonãopoupa louvores ao seu
talento, e atéhouvequem,depoisdehaver concordadoemgeral comoparecer,
dissesse, que oDoidopor força poderiamerecer aprovação para representar-se,
nãotodavianumteatronormal,nemcomdireitoaprémio.
PARECERAComissãoencarregadadedaroseupareceracercadaFarsaquetempor
título=ODoidoporforça=depoisdeaterexaminadocomatenção,temopesarde
Eutinhaumasasasbrancas
-249-
serunânimeemreputarestapeçaincapazdeiràsprovaspúblicas,comoproposta
paraprémio;poisqueanãojulgadignaderepresentar-senumteatronormal,que
deveseraescoladosbonscostumes,daboamoral,ecomoomestrevivodapureza
danossapátrialinguagem,cujasqualidadesjulgafaltaremàditaFarsa.
Édeesperarcontudoqueoautornãodesanimedassuastarefas,equetra-
tandodeasfazermaiscorrectas,dêlugaraqueoutrasproduçõessuas,mereçama
glóriadaadmissãoàsprovaspúblicas,ealcancemarecompensahonrosadesuas
semprelouváveisfadigas.
ConservatóriodaArteDramática,eSaladaComissão,aos25deOutubrode
1839.
JoaquimLarcher
InácioPizarrodeMoraesSarmento
AntónioJoséMariaCampelo.
_____________CURSOLITERÁRIO
DE
Mr.Magnin
(3.ºARTIGO)Pela volta do sexto século o oceano de bárbaros, que havia subitamente
inundadooimpérioromano,eporconsequênciaamáximapartedoUniverso,qua-
sequedepersimesmosefoiacalmando;porémogolpeterrívelqueessaspopula-
çõestinhamdadoàartepagãquandoadoptaramasbandeirasdocristianismo,lhe
fezumgolpedequeelanuncapôdecurar-se.–Tínhamosatéaquipresenciadoo
duplo antagonismoda ideia antiga atacada pela ideiamoderna;mas desde o 6.º
séculosomenteestaúltimasubsiste,triunfaeconseguesuplantardetodoapode-
rosa rival.Umobstáculocontudoseopõeàarte cristã–éanascençadolorosae
difícildosidiomasmodernos;masaindaqueoinstrumentotenhasenões,nãore-
trogradaráopensar:há-dehaverprogresso,progressoantesemextensão,queem
profundidade,muitoembora,masnãodeixarádeserincontestávelmelhoramento:
–umdosbenefíciosdocristianismotemsidoadifusãodasluzes.
Nosextoséculonovoelementoseintroduziunodomíniopoético;foialite-
ratura legendária, a qual tornou possível a literatura dramática na idademédia.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-250-
Participandoa legendaigualmentedaode,daepopeia,dodrama,edoapólogo,e
enfimdequasetodososgéneros;foiumaminanovaquesedescobriu.
Osegundoelementododramanestaépocaforamascrençasdosbárbaros,
quea espaçosbruxuleavamde trásdoverniz cristãoqueo clero lhe tinhadado.
Quantoaomais,osdivertimentoserampelamaiorparteeclesiásticosouaristocrá-
ticos.Usava-seentãoporextremoodiálogo.NasobrasdeIsidorodeSevilhaencon-
trareisumconflictusvitiorumetvirtutum,quelheéatribuído,ecujaspersonagens
sãotodasmetafísicas:fazlembrarestediálogoasmoralidadesdoséculoXV.
Oferece-nos a arte católica o desenvolvimentodoprogresso emovimento
intelectual:formando-seescolaseclesiásticas,levantam-sebasílicas,aarquitectura
bizantinase introduzemRavena, cultivam-seasobrasdecinzeledeburil, final-
menteatapeçaria–decoraçãoinata,(comolhechamaMr.Magnin)setornaentão
demuitoapreço.Comoaomesmotempoanecessidadedasfestassefazsentirao
povo,dá-lheoclerorepetidasprocissões;eacatedralsubstituiacenaantiga.No
6.ºeaindano7.ºséculoasliturgiasnãotinhamumcaráctercómico,comodepois;
detodoessetemposóumexemplonosrestadocontrário,eéapartidadaaleluia,
cujosversosformamumaespéciedediálogo.Eeisaquitudoquantoarespeitodo
dramaseencontraentãonoOcidente;–bempouconaverdade.
O génio dramático, tendonoOriente sofridomenos que noOcidente pela
invasãodosbárbaros,tinhaconservadoemConstantinoplaumfocoprincipal.Con-
taTheophiclatesPimocataquenocasamentodoimperadorMaurícioserepresen-
tarammuitaspeças,eaproibiçãoaoscristãosdeassistiremàsmesmasseencontra
emFócio.Quantoaodramahierático,foieleretardadopelaheresiadosIconoclas-
tas;masaindaassimnos restaumdocumentobastantecurioso,qualéodiálogo
entreAdãoeEvaquevemnasobrasdeInácioGramático(Spicilegiumpatrum,t.II,
p.729).Compõe-seestediálogode143versosprecedidosdeumargumento,eo
seuautorpareceterideiascosmogónicasmaisdesenvolvidasqueasdeMoisés.Foi
porconsequênciamaisricooOrientequeoOcidente.
Mr.Magnin,passandoao8.º século, faz ver comooOcidente se aproveita
dasperseguiçõesdos IconoclastasnoOriente, acolhendoosartistasqueabando-
namConstantinopla;evoltandoàsliturgiasmostraasuatransformaçãoemdiálo-
gosfúnebres.–Foitambémnestaépocaqueseestabeleceuocostumedecantaro
Eutinhaumasasasbrancas
-251-
Natal, e representaraadoraçãodosMagos.Tiveramorigemnomesmotempoas
festasdodeposuit,eoschocarreirosgranjearammuitaaceitação.
Odécimoséculoparecetersidocompletamentedesconhecidoatéagora.Os
monumentosdoteatrosãonesteperíodomuitonumerosos;eoshomenseosfac-
tosnãosãodetãopequenaconsideração,nemtãopoucoacumulados,quenãoseja
lícito contraditar fundadamente a opinião que chamou de ferro este século que
disseram sem literatura, nem progresso. Entre osmonumentos que desta época
nosficaram,cumprenãoesquecerumaÉclogadeTeodulo,queMr.Magninsupõe
destinadaasercantadanosfestins.EstedramadeumItalianoquetinhaestudado
emAtenas,eveioaserBispo,éesquisitoecurioso.ÉumcolloquiumentreAlithia
quedefendeocristianismo,eTseustifquedefendeopaganismo;esecompõede77
coplasde4versoscadauma,cujotodosefazmuitonotável.
Nestaépocacomeçouaarteainspirar-sedeseusprópriospensamentos:e
aslegendasjánãosãounicamentetradiçõesbiográficas,masvãotomandoumca-
rácterfantástico:–asdançashieráticastambémseespalhamgeralmente;porémo
monumentoprincipaldoséculoX,oqueatodososoutrosdomina,é-nosdadope-
losconventos:–éoteatrodeRoswita.
FoinoconventodeGandearsaenqueviveuestamulhercélebrecujonome
querdizerRosabranca:são6assuascomédias,etodasversamsobreosobstácu-
losdequedevetriunfaravirtudedasmulheres.–Roswitadeixoutambémumpo-
emaépicoarespeitodosOtões.
NãofaremosaanálisedesteteatrodoqualMr.Magninprometeumatradu-
çãocompleta;diremossomentequeapeçaGallicanusofereceumcarácterhistóri-
co;adeDulcitiuséumapuracomédiagraciosa,ouumafarsa;emCalimacusacha-
remospaixãodoséculoX;Pafuncionosmostracomoeramentãoasdissertações
escolásticas;Adrahamoferececenasrealmentedramáticas;aFé,EsperançaeCari-
dadeéumacomédiaalegórica.
Esteteatrotãosingularnosmostraevidentementeatéondechegouodéci-
moséculo:obrasdestejaeznãoseproduzemisoladas;eoespíritohumanonãose
desenvolve tanto num dos ramos da humana actividade, para ficar estacionário
nosoutrostodos.
Noséculoonzeaparecemliturgiaschocarreiras,quesenãodevemconfun-
dircomassatíricas,cujodesenvolvimentoécemanosposterior.Dançassobreos
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-252-
túmulosenos cemitériosencontramosnós tambémneste tempo; legendas terrí-
veis,pavorososcontos,quenossão transmitidosporalgunscronistas, têmentão
muitavogaevãoferiraimaginaçãodospecadores.UmalegendatrazOrdericoVi-
talnosseusescritos,quebemprovaqueDantedesdeoséculoonzetiveraprecur-
sores.
Quantoàs liturgias,mostra-no-lasestaépocamisturadasde latime língua
vulgar:destarteseescreveramofíciosinteiros.–Umantigomanuscritodaabadia
deS.MarcialdeLimogesnosapresentacoisaaindamaiscuriosa:–éummistério
dasvirgensloucasedasvirgensprudentes,escritoemtrêsdiferentesidiomas–la-
tim,francês,eprovençal:JesusCristofalaaprimeiradestaslínguas;mercadorese
asvirgensprudentesasegunda;empregamaterceiraasvirgensloucas.–Acham-
senofimdestepequenodramaalgumaspalavrasqueprovamnãoserelesomente
recitado,mas representadona Igreja; os trajes usados em tais solenidades eram
provavelmente os mesmos de que ainda hoje vemos revestidas as personagens
colocadasnosbaixos-relevosdoséculoonze:poissequisermossaberoquesepas-
savanointeriordascatedrais,devemosiraoseuexteriorperscrutar-lhesosvestí-
gios.
NoséculodozeoprimeirofactoquenoOcidentedeviainfluirmaissobrea
arte,masosefeitostêmsidomuitoexagerados,foiacruzada.OssoldadosdeCristo
nãoacharamemConstantinoplaodramahieráticomaisdesenvolvidoquenasua
pátria.NaÁsiaopodersacerdotal,dequedependeaartehierática,estavasujeito
aopoderimperial;faltava-lhepoisaplenaliberdadedecrençaeinvasão.NaTerra
Santamesma– lugarondeseconsumouaPaixão,as liturgiasnãosedesenvolve-
rammaisquenoOcidente;eascruzadasapenascontribuíramparaodramaaris-
tocráticoinsinuandonopeitodosbarõesodesejodeimitaracortedeConstanti-
nopla: – o drama hierático e popular nenhumnovo elemento ganhou com estas
expedições.Restam-nosdoprimeironoOrientedoismonumentosbastantecurio-
sos,devidosumaTeodoricoRodromo,queseintitulaaamizadebanidadomundo;
outroaMiguelPlochyro,aoqualnãoéfácildarnome.DeambosnosprometeMr.
Magninatradução.
Eeis-noschegadosàépocaemquesobtodasasformassevaioperarasecu-
larizaçãodaarte,marchandotambémacivilizaçãocompassosdegigantenocami-
nho das isenções. Ameaçada na sua influência, redobrará esforços a Igreja para
Eutinhaumasasasbrancas
-253-
conservá-la,eeleslhafarãoperdermaisdepressa.Enaverdadepodiaelacometer
maiorfalta,queadeadmitiraoseuseio,àssuascerimónias,emboraparadarmai-
orpompaasuasfestas,queadeadmitiraelasfarsistasecomediantes?…
Pesandotudo,quasequeseviuaigrejaforçadaaistomesmo.Olatimjánão
era compreendidopelopovodo século12, o clero se viupois constrangidomau
gradoseuafazerusodaslínguasvulgares.Umpoetaanglo-normão–GervásiodeS.
Maxencio,queescreviaem1174,nosdizqueeraentãocostumelerecantarsobre
os túmulosvidasde santos em línguavulgar.Nasprocissõesusavam-se cânticos
graciosos (nugaces cantilenas), e se fazia o que se chamava umamistura, isto é,
recitavam-seosofíciosemlatim,francês,eatéeminglêsconjuntamente.
Desta primeira concessão, até chegar ao drama secular apenas havia um
passo,quebemdepressasedeu.Oprimeiromonumentodestegénero,quechegou
aos nossos tempos, foi ummistério da Redenção composto por Guilherme Her-
mann,poetaanglo-normãoqueviviaem1127.Osegundoésobreomesmoassun-
toetemporautorEstêvãoLangtow,bispodeCanterburyem1207.Oterceiroéum
mistériodaPaixão.
Finalmente,comosenãofossebastanteparaaruínadoclerochamaremos
secularesàsrepresentaçõesnasigrejas,aindademaisamaisaplicaramaartehie-
ráticaaosassuntosseculares.UmmistériosobreavindadoAnti-Cristo,composto
notempodoimperadorBarba-roxa,erepresentadonapresençadestepríncipe,é
umacontínuaalusãoàsdesavençasdopapaAlexandre3.ºedoimperador.–Pouco
depoisodramahieráticofoirepresentadoforadaigrejapelosseculares;eaprova
distoexistenaobradeMateusParissobreos24abadesdeS.Albano.–Contaeste
escritorquede1141a1149opriorGodofredocompôsemDunstapleumJogode
SantaCatarina;equeparavestirosactorespediraemprestadoaocapelãoascapas
d’Asperges.
ResumindoestecursodeMr.Magnin,vemosquedo1.ºatéao9.ºséculoa
sociedadefoigovernadapelasleisuniformesdaconquista:–osbárbarosmodifica-
ram depois, sem a destruírem, a legislação imperial; e sobre novos costumes, e
usosdepovostambémnovos,depôsotempooutracamadadeleiseprescrições:
foramosactosemanadosdosconcíliosedosbispos;aciênciaestácomopoder,a
literaturacomambos,oteatronelessó.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-254-
Nosséculos10e11ofeudalismoreúne,ecerranapotentedestratodoses-
teselementosdiversosesucessivos;guardadepoistudoquantopertenceàforça,e
entreganoclerotudoquantodizrespeitoà inteligência:eoteatroaindaéseu.–
Masnoséculo12estesistemasofreabalo.Umnovopoder,queeraatéentãoim-
perceptível,selevantaralentamente,eeraele–opovo!….Eempoucotempoesta
novaforçasetornaconquistadora,comotodososelementosnascentes,eseapossa
nãosódopodertemporal,masdointeligente;eneste,dapartemaisvital,doteatro.
No próximo artigo analisaremos este terceiro aspecto da história teatral,
queseestendeatéaofimdoséculo16.
--------*--------
TEATROEHISTÓRIANumaposentoornadodericastapeçarias,eemcujotectoeparedesseen-
gastavam vistosos quadros, mostrando o relevo de torneadas molduras onde o
ourobrilhavaporentreacordepérola,formandonosângulosengraçadasecapri-
chosasvolutas,umadamaeleganteestásentada:nãoseriafácil,vendo-a,acertar-
lhebemcomaidade,queestáadamanessaquadraemqueumamulherépreci-
samenteoquedesejaser;emqueotempolhehároubadoassazdeencantosem
trocoda experiência, deixando-lhe todavia bastantemocidadeparadisporhabil-
mentedaformosuraquelheresta;emque,finalmente,amulhermenosseenfeita
doquedecora;–e,pormaisquedigam,éessaumadasmelhoresépocasdavida.
Entãocompletouamulherasuadocenatureza:muitoantesqueesteprazochegue,
falta-lheaindasaberalgumacoisa;muitoalém, jánãoconvidaaquedelaapren-
damosoutros.–Taléadamadoricoaposento:nãoémuiformosa,nãopodereis
chamar-lhelinda,masseríeiscativosportantavivezadefisionomia,portãogran-
detransparênciaderosto,quetodasaspaixõesasmaisvariadasneleserevelam
sucessivamente,apesardeempanadaumalevecamadadearrebique.
Emqueestáelacravandoosolhoscomtamanhaatenção?Porquesemos-
tramessesolhos,orairritados,oratriunfantes?Dondevemessaalegria?Essearé
bemorgulhoso!Leráporventuraaconfissãodeumamorquepormuitolheresis-
tiu?não;amãodireitafirma-secomforçanumalargaestampaoudesenhocolori-
do, parece afogar um inimigo já derribado, obrigando-o a pedirmisericórdia; na
esquerda,quelevantaebaixacomprecipitadosmovimentos,temumrolodepapel
queelaempunhapoucomaisoumenoscomo,natapeçariaquelheestáfronteira,
Eutinhaumasasasbrancas
-255-
umJúpiterameaçadorempunhaoraio.–Lê-senaparteexteriordopapelotítulo
seguinte:RequesitoriadeM.deLaChalotaisacercadaCompanhiadeJesus.
Eisaquioquerepresentaaestampa:
Umvastíssimonavio,dentrodoqualsevêtodaaespéciedepessoas,espe-
cialmenteumgrandenúmerodefrades,eosdiferentesgeraisdassuasrespectivas
ordens.Ainscriçãoé:TypusReligionis.UmJesuítaquepareceSantoInácio,équem
governao timão;outro Jesuítavainaproaparecendoobservara rotaque levao
navio:estefaz-sedevelaparaoportodasalvação,edeixaapóssiomundo,queaí
édesignadocomtodososatributosprópriosaindicaraspompas,asvaidades,eos
escândalos.Cardeais,reis,imperadores,embarcadosemdiferenteslanchasprocu-
ramabicaragrandenau,dondeparece lançarem-seamarrasparaos receber,ao
mesmo tempo que se faz por afastar certas lanchas, cheias de hereges, e para o
conseguir empregam os da nau todos os seus esforços, chegando até a disparar
contraelesflechas:nota-seaíHenriqueIVcaindotrespassadoporumasetadispa-
radapormãooculta.
–Talvezistovádar-lhealgumaenergia,disseadamacomimpulso.
–Energia!todan’eleseapagou.Nunca!
Quemprofereestasúltimaspalavraséumbrilhantecavalheiro,guapo,es-
belto, e cosidode ouropor todas as costuras. Parece que tem aí entrada franca,
porquenoaposentoprivilegiadoninguémentrasemqueprimeirootenhamduas
vezesanunciado;éverdadequeocavalheironãoentroupelaportaprincipal,etal-
vezsejaprivilégiodaescadaocultadarentradasemsepedirlicença.
Essehomemtodavia,bemapessoado,nobresemafectação,elhanocomdo-
naire,nãoéoamantedabeladama;porqueentãoseriamtrêsosseusamantes,e,
comoelaquerdarbonsexemplosatodaaFrança,jánãoconsentiriaemtermais
que dois simultaneamente. Por agora quem subjuga esta altiva formosura éDu-
bellay outroracomediante favorecidopelaCzarina Isabel,hojeactordacorteem
quereinaasoberbad’Etioles,eondeémonarcaLuísXV.
AdamadequeacabamosdefalarépoisMadamedePompadour,eoqueen-
trarapelaportaocultaéoduquedeLaVallière,íntimoconfidentedetodososse-
gredosdafavorita,encarregadoporeladeproveraosdivertimentosefestasdasua
casa.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-256-
– Afirmais que oQuerido nuncamais terá energia, caro duque? diz como
sentidaMadamedePompadour.
–Assimo creio.O atentadodeDamiendeu-lheoúltimogolpe.Umseme-
lhanteassassínio,queaumentariaaforçadequalqueroutro,aeleenfraquece-lhe
aindamaisoânimo.
–MasapesardissohavemosdeexpulsarosJesuítas!
– Expulsá-los-emos pois que assim o quereis; e porqueM. de Beaumont,
nossodignoarcebispo,éafavordelesepregacontranós.
–Hão-deexpulsar-se,interrompeuvivamenteamarquesa,porqueFrederi-
co IIosprotege;porqueMariaTeresa,minhaaliada (acrescentousorrindo) lheé
avessa;finalmentehão-deexpulsar-se,continuouelaerguendoocorpoepassando
dosorrisoàcólera,porquemeénecessáriaaaliançadaimperatriz-rainhaparadar
umaliçãoaessePrussoqueselhemeteunacabeçaglosarosamoresdeSuaMajes-
tade.Sim,CotillonII,asultanavalida,lançaráporterraosJesuítasamigosdeFre-
dericoIlofilósofotartufo.
E,aodizeristo,batiacomamãodenevesobreodesenhoquedescrevemos.
–Mas,dizoduque,paraconseguiressefimnãocaireisporcertoemapre-
sentaraoReiessamátabuletadecasadepasto,HenriqueIVferido!Seria irdes-
pertarosseustemores.CumprequeLuísXVexpulseosbonsdospadressemque
dêmuito isso,semqueoconsiderecomoumactodevigorqueexecuta,semque
saibaseestábemcertodequeassimoquer;oqueS.M.maisreceiaéterumavon-
tadeprópria:seelepensamuitonisso,dizeiadeusaosvossosprojectos.
–Nessecasodistracções,distracções!exclamouamarquesa,cujosolhosse
animaramdeumfulgornadadiplomático.
–Distracçõesemaisdistracções!Agrandeartedegovernarnossoamo,toda
consistenosaberproporcionar-lheosmelhoresmeiosdelhematarasvinteequa-
trohorasdodia.
–Estátudojátãousado!dizcomumsuspiroMadamedePompadour;temo
queonossoteatrojánãosejaummeio.
–Aindaoé,quetemsótrêssemanasdedata.
–Melhoroseria,se,emvezderepresentareu,fizesseaparecernacenatodo
olindorebanhodonossocélebreparque.
–Oh!aparódiadeSão-Cyropareceriaalgumtantoexagerada.
Eutinhaumasasasbrancas
-257-
–Ora!…quemsabe?
–Nãofaçaistal,Senhora.
–Poramordoscostumes,cavalheiro?
–Poramordevós,eporvóssomente.Nãocedaisaoutremosmilagresda
cena. Issoseriacomoumafadaquelançasseforaavaradecondão.Guardaipara
vósoencantamentodoteatro.Fizestes-vosmulherestadista,muitobem;poupais
aoReiotédiodotrabalho,aindamelhor;soisdonadopositivodasuavida;tornai-
vos tambémsenhoradas ilusões,oupelomenosdai-lhasa saborear tãováriase
donosas,quenenhumaoutralhaspossareproduzir.Certasgraçasdequealiásnão
cuidaríeis servir-vos, a cena as permite; que digo? a cena as exige: um volver
d’olhos brando e piedoso, certo ar de melancolia, um sorriso expirando amores,
umaatitudesoberba,suspiros,anelitos,desejos,hesitações…Elevosamaráninfa,
vosadorarápastora,ecairáavossospésCastelão;sempregraciosa,sempreamá-
vel,masnuncaamávelegraciosadomesmomodo.Luísestancaráemvóstodoo
seugostopelavariedade.
–Olhemcomofalaoduque!quefogo!queciência!Pregaismuitobem,não
hádúvida.
–Falocomoquemvaiaosteatros.Oravêde;Mlle.Arnauldseriaduasvezes
menosbelaemenosespirituosasemoteatro.
–Oquê!poishavíeisdeatrever-vosapensarque,euprecisasse,comoela,
de?…
Aodizer isto,subiu-lheaorostoumvivíssimoruboreporelasedifundiu,
apesardoarrebique,commuitomais forçadoqueantesquandofalaracontraos
Jesuítas; certoque a cólerada coqueteria temoutras coresquenão a cólerados
interesses.
–Oh!não,Senhora,não!acudiuM.deLaVallièrecomsúpliceprotestação;
não!oqueeudigoé,quequemébelacáfora,éincentivanoteatro.Aítendes;oque
ArnauldmaisreceiaparaoseuqueridoLaurajuais…
–QueéparaelaoseuLuísXV…Porestagracinhadamarquesa,viuocava-
lheiroqueestavaperdoado;eatreveu-seapôrumdedonoslábios,deixandopas-
sarsuavementeosibilantesom:–Chiu!
–Estábom,estábom!acoisaqueArnauldmaisreceiaé,dizeisvós?
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-258-
–Ver-se reduzida a ser considerada comooutra qualquermulher.Diz ela
quemaisdoqueumadassuascompanheirasfoidetodosesquecidasóporterdei-
xadoalgunsmesesderepresentar,equeoseumaiorreceioprovémdoefeitoque
produzirãoosquinzediasdaPáscoa.
–Duque,vósmeesclareceis!…–Nistoficouaconversação,porémMadame
dePompadourtornou-seinabalávelemsuasresoluções;e,nointervaloquesepa-
rouarequisitoriadeM.deLaChalotaisdojulgamentodefinitivodosJesuítas,me-
draramempompaebrilhantismoasfestaserepresentaçõesquedeuàcorte.Che-
gouacompreendercabalmentequãopoucopropensaeraaíndoledeLuísXVpara
asmedidasvigorosas:umactodesoberania,umousado impulso,qualeraatacar
defrenteumacorporaçãoinfatigáveleameaçadora,excediaasforçasdoRei.Cum-
priafazê-loesquecernosobscurosprazeresdeCompiègneeChoisyaacçãodecisi-
vaquealémsepassava;cumpriapelomenosdeixá-loacreditarqueeraumaconte-
cimento,paraassimdizer,espontâneo,eparaoqualnãoconcorriadirectamentea
autoridade real; finalmente, paranos servirmosdeuma comparaçãoclássica, di-
remosqueMadamedePompadour, semelhantea Juno ládovelhoOlimpo,ador-
meciaoseuJúpiter,elhevendavaosolhoscomespessasnuvens,paraqueelenão
visseoscombatesquesetravavamnocampoentreosGregoseosTroianosdePa-
ris.
(Continuará)
------*------
QualidadeseDeveresdo
Comediante
(4.ºARTIGO)SãodenecessidadeindispensávelparaoComedianteanobrezaeadignida-
de.Bastantespessoasdeagradávelpresençatêmoportecomumetrivial,aomes-
motempoqueasháfeiasepoucoavantajadasemsuafigura,quereúnemaumar
cheiodenobreza, umaspectoque infunde respeito.Quandoa alma sepossuide
sentimentosgrandeseelevados,osolhos,osgestoseasinflexõesdavoz,quedela
sãoclarosintérpretes,dãoatodoocorpoumaspectoderespeitoeadmiração,que
cativaoespectador.
Eutinhaumasasasbrancas
-259-
Finalizámoso3.ºartigo,observandoqueoactorquepretendesserepresen-
tardeherói,deveriaencerrarnoíntimodopeitoogérmendavirtude;eagoradi-
remostambémqueseelequiseradquirirnobrezaedignidade,somenteoalcança-
ráelevandosuaalmaaoníveldaspersonagens,quetemdenosfazerver.
Poderátodaviaacontecerqueoartistareunindotantasqualidades,comoa
nobreza,asensibilidade,ainteligência,&c.,lhefalteaquelavivacidadedeespírito,
eexpressãoquesechamafogo.Algunsactores,apesardeestaremvivamentepene-
tradosdoquedizem,jamaisconseguemdarexpressãoàsensibilidadeporcausade
umainfelizquedaparaafrieza:émister,queocomedianteserecordequenunca
serápossívelespelhargrandescaracteres,senãopossuireostentarcalorbrilhante
ouconcentrado.Oautorqueobservou,econheceoshomens,nãopode imaginar
personagens isentasdepaixões;easqueparecemtranquilasquandohámotivos
parasecomoverem,dãoaocomedianteomaisbeloensejodefazerbrilharsuaarte
egénio.
Oolharperturbado,eavozatroadoraexprimemtãobemocalorverdadeiro,
comoafriaestupidezprovaatranquilidadedealma;éporqueainteligênciaesen-
sibilidadedoactorlhedevemregrarofogonatural.–Larizenotaquemuitasvezes
osaplausosfazemqueaalmadocomedianteseexalteatalponto,quelhefazachar
essesímpetosfelizes,queporventuranuncadescobririaaindacomomaiorestudo.
Seosoutrosactoresqueorodeiamsãosusceptíveisdasmesmasimpressões,sen-
doverdadeirosnassuasintonaçõesedicção,entãoocomediante,tãobeminspira-
do, torna-se sublime. O talento de escutar, interrogar-se, e responder reciproca-
mente,acrescentaporextremoailusãocénica.
Ocaloropera,reage,esecomunicadoactoraoespectador,ealternadamen-
te.–Milpessoasestranhasumasàsoutrasreuniram-senomesmolugar;começaa
peça, e todas estas pessoas tornam-se aomesmo tempo um único ser colectivo,
tomamasmesmasdisposições,eascomunicamaosactoresdequemasreceberam.
__________
CRÓNICATEATRALOs nossos teatros foram assaz frequentados durante a passada semana,
apesardosbailesquehouve,eque tantocomaquelescostumamrivalizar.Quem
diria, vendoonumerosíssimoconcursoquequinta-feiraacudiuàAssembleiaes-
trangeira; quem diria, ter essamesma noite havido enchenteno Teatro Normal!
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-260-
Comrazão sedizque emLisboahá genteque chegapara tudo; – atéparaver e
aplaudirofantasmabranco!Estapeçapoistemcontinuadoaserrecebidacomes-
pecialagrado;enós,reflectindo,einvestigandoasrazõesquelevaramonossoen-
tendidopúblicoadecidir-setãopronunciadamenteporaquelemixtiforio,concluí-
mosquenãoéapeçaemsimesmaqueaplaudem,masosactoresquenelaentram;
nãoépor lhesparecerumbomdrama,éporteremocasiãodevernelereunidos
quasetodososmelhoresactoreseactrizesdoTeatroNormal.Devemos lembrar-
nosque,semfalarnoshomens,entramnapeçaasSras.Talassi,Emília,eJosefina.
OTeatrodeS.Carlosdeu-nosnaSexta-feiraumadançanova,eumdebute.A
dançaébastanteengraçada, eprópriadeste tempode carnaval; fazhonraaoSr.
Astolfiseucompositor,edáocasiãoaquefiguremmuitobemosprincipaisbailari-
noebailarinas.Enquantonãofalamosmaismiudamentedestadança,eanãoob-
servamosnumasegundae terceirarepresentação,diremosquenospareceubem
desempenhada,especialmentepelaSra.DeVechi,quemostra tão felizpropensão
paraasarmascomoparaadança;écomefeitoumgalantíssimosargento;asbaila-
rinasestavambemensaiadasnadifícilexecuçãodomanejoeevoluçõesqueexecu-
tam.Osboleros forammuitobem,distinguindo-senelescomespecialidadeaSra.
SolereoSr.Ramos.–DaSra.Rabelpoucodiremosainda,pornãosertaxadosde
pouco circunspectos; pareceu-nos que é uma dançarina de bastante força, mos-
trandomuitafirmeza,elegância,evolubilidade;pareceu-nostambémqueopúblico
nãofeztodaajustiçaaoseumerecimento,oquenãodeveadmirar,poisquenessa
mesmanoitehouvequempateasseanovadança;devemoslembrar-nosqueaSra.
DeVechinãoagradounoseudebute,e contaactualmentemuitospartidistas;–a
SraRabelfoicontudoaplaudidaprogressivamente,havendosidoaoprincípioaco-
lhidacomfrieza.
Esquecia-nosfalardoespectáculoquetevelugarsegunda-feiraporocasião
dobenefíciodaSra.RosinaPico.Aplateiaecamarotesestavamcheiosdeespecta-
dores,eabeneficiadafezquantoseusmeioslhepermitiampormerecerdelesbom
acolhimento.OduetodeRobertoDevereuxcantadopeloSr.FerrettieSra.Pico foi
melhordoqueeradeesperar,e,paraelogiodestaartista,bastadizerqueagradou
eleaopúblico,apesardeaindaesteselembrar(ebemsaudoso!)dapurezadecan-
to,delicadaexpressão,esentimentoprofundocomqueodesempenhououtroraa
Sra.CláudiaFerloti.Sementrarmosemcomparaçõesqueparanadaserviriam, li-
Eutinhaumasasasbrancas
-261-
mitamo-nosadizerquenãoproduziumauefeito,equeStrettafoibemcantadapor
ambasaspartesemuitoaplaudida;osdoisactoresforamchamadosfora.Odueto
jocosoosloucosporprojectonãonospareceuserobra-prima,nemencerrar lem-
brançaalgumanova;foimediocrementeaplaudido.
OduetodeBelisário cantadopelosSrs.RegolieSpech tambémnãocaptou
muitoosespectadores:oSr.Spechtemdesmerecido(forçaédizê-lo)doconceito
emqueeratidonoPorto;nósqueoouvimosnoTeatrodeS. João,podemosafir-
marqueosbonscréditosemqueaíestavaesteartistaeramassazmerecidos,não
podendotodaviadeixardeconvircomosLisbonenses,queoSr.Spechestámuito
longeactualmentedecorresponderàfamaqueprecedeuasuachegadaaestacapi-
tal:–serápelagrandecapacidadedoTeatrodeS.Carlos;seráporseachardiminu-
ídaavozdoartista?Éoquenãopodemosdizeraocerto.–Tantooduetocomoo
tercetodeZampa,forammuitobemexecutados:noduetooSr.Eckerlindesempe-
nhaasuaparteconvenientemente,eaSraPicoacantademodoquerivalizacoma
lindacançãodoDesertorporamor,onde tanto foiaplaudida.OSr.Ramandaaco-
moda-se quanto pode a todo o género de papéis, e nunca vaimuitomal: vem a
propósito lembrarquantonoTeatrodeS.Carlosserequerumprimeirobassoco-
mico,coisadequeestamosprivadosdesdequeMaggiorotipartiu.
Álbum
TeatrosEstrangeirosObasso-comicoCampagnolidistinguiu-senarepresentaçãodoBarbeirode
Sevilha.
------------------
NoteatrodaOpera-Comiquetem-serepresentadoaNinadeCoppola,altera-
daemodificadaaogostofrancêsporMr.Girard.Issotemescandalizadosobrema-
neiraosItalianos,custando-lhesmuitoverquesenãoguardarespeitonemàsme-
lhorescomposiçõesdosmais insignesmaestros:Seosacreditarmosvemosquea
Ninanãoganhoucomosseusenfeitesfranceses.NestaÓperasedistinguiumuitoa
Sra.EugeniaGarcia;destacantoradizumjornalistafrancêsoseguinte:–Avozda
Sra.EugeniaGarciaéum instrumentodegrandequalidade líricaedealtoestilo,
reunindooduplicadoatractivodecontraltoesoprano.Ocontraltoéamplo,firme,
eenérgico;osopranoébrilhante,ousado,echeiodesonoridadeevigor.Essebelo
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-262-
instrumento é além disto animado pela inteligência e paixão dramáticas, duas
prestantesqualidades,queaSra.Garciapossuiemsupremograu.
___________________
OSr.FranciscoSchiraacha-seactualmenteemPariscompondoumaÓpera
paraoteatrodelaRenaissance.
___________________
PARMA–NãoagradouaíaÓperaLucreciaBorgia;todaviaaSra.Boccabada-
tifoinelamuiaplaudida,nãodesmerecendodobomconceitoquehágranjeadono
teatrodaquelaCidade.
___________________
FERRARA–FoiestrepitosamentepateadaaÓperaHugoCondedeParis.
___________________
DoisteatrositalianoscontahojeaGRÉCIA,umemATENAS,outroemCEFA-
LONIA, contando o primeiro três primeiras damas, dois primeiros tenores, dois
primeirosbassossérioseumcómico,umasegundadamaeumsegundobasso,do-
zecoristashomens,eseismulheres.OTeatrodeCefalonianãolheéinferior.
___________________
Numjornalfrancêsde1835lê-seoseguinte:–Umteatroclandestinoacaba
deestabelecer-senapraçadobanco;foipublicadopeloseguinteanúncio:–Grande
CafédoRenascimento,praçadobanco,12.Oproprietáriodesteestabelecimentopre-
vineopúblicodaaquisiçãoqueacabade fazerdeMlle.Nina de Lassavepara sua
caixeira(demoiselledecomptoir).Cadapessoapagaráumfrancodeentradaforaa
importânciadoconsumoquefizer. –Custaadistinguiroqueémais ignóbilneste
espectáculo,seaspessoasquetirampartidodessainfelizcriatura,seelaprópria,
que,trêsdiasdepoisdamortedoseuamante,trêsdiasdepoisdamortedeoutros
doishomens,queoseudepoimentolevouaocadafalso,nãosenteanecessidadede
escondersuavida,eassimseestávendendoàcuriosidadeestúpidadovulgo.Pare-
ceincrívelquesejatoleradaumatalindústria.–NinaLassaveeraamásiadeFieschi.
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Cadaciênciatemsuaquimeraqueemvãosebuscarárealizar,mascujain-
dagaçãoésempreutilíssima;asmaioresdescobertasdaquímica,dageometria,da
mecânica, são devidas àqueles que gastaram infrutuosamente a sua vida, procu-
randoapedra filosofal, ou aquadraturado círculo, ouomovimento contínuo.O
Eutinhaumasasasbrancas
-263-
coração tem também suas quimeras; um amor constante, uma amizade perfeita,
umdesinteresseabsoluto;equandoserealizaráesseperpétuosonhodocoração?
talvez nunca;mas é infeliz, e não pode ser virtuoso, quem chega a perder essas
docesilusões.–Domesmomodooartistaquenãotomarparamodeloumtipode
perfeição,nuncapassarádesermedíocre.
ROMANCEDO2.ºACTODODRAMA
RUYBRAZ
MúsicadoSr.Osternhold
1
Paraquequeroeuouvir,
Ospássarosatrinar?
Semaissuaveharmonia,
Eugozonoteucantar.
2
PodeDeuscobrirosastros,
Podemostrá-losnoscéus,
Queoutrosastrosmaisbrilhantes
Divisonosolhosteus.
3
Encha-seojardimdeflores,
NacriadoraEstação,
Quedasfloresamaisbela,
Tenho-anoteucoração.
4
Essaavequetrinaecanta,
Esseastroquedáfulgor,
Essaflorquenascen’alma
Tudoquerdizer:–amor!–
(E.F.)
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-264-
REALTEATRODES.CARLOSDomingo16deFevereiro=Ópera=Parisina=Dança=AsNoveRecrutas.
Segunda-feira17=BenefíciodeLuísAnglois,ProfessordecontrabaixodeS.
M.oReidaSardenha,edaCâmaradeS.M.aSenhoraD.MariaII.=Ópera=Parisina
=Depoisdo1.ºactoobeneficiadoexecutaráumsolodecontrabaixo.Seguir-se-áa
Dançajocosa=AsNoveRecrutas,depoisdaqualobeneficiadoeseudiscípuloJoão
AlbertoRodriguesCosta,executarão,umDuetodecontrabaixos=escritoexpres-
samente,eseráacompanhadoapiano-fortepeloSr.JoséFranciscodosSantos,mú-
sicodaRealCâmara.Concluiráoespectáculocomo2.ºactodamencionadaópera.
Quarta-feira=Repete-seomesmoespectáculo.
Sexta-feira21=O1.ºactodaVirgínia=Dança=AsNoveRecrutas=eo2.º
actodaParisina.
___________________
n.º12,de23deFevereirode1840
PARECER
DA
COMISSÃODOCONSERVATÓRIO
ACERCADODRAMA
O
CAMÕESDOROSSIOOsabaixo-assinados,reunidosemcomissão,examinaramacomédiaemtrês
actos–OCamõesdoRossio–sobreaqualdãooseguinteparecer.
O assunto é felizmente achado, português e tradicionalmente histórico. A
acçãoéuma,bemdirigida,etodasassuaspartesconcorremharmonicamentepara
ofim.Oscostumesdotempoestãoguardadoscomfidelidade,eoscaracteres,que
sãotodosprópriosdacomédia,têmdiversidadeecoerência.Od’El-ReiD.JoãoV,
extravagante cavalheiro e generosomisto de Haroun Alraschid, Luís XIV, e Sar-
danápalo,temformosurasefealdades,sente-sequeénecessariamenteumretrato
bem tirado, e não um ente de fantasia: vendo-o noDrama, reconhecemo-lo pelo
Eutinhaumasasasbrancas
-265-
mesmoquedesdeainfânciatemosvindoencontrandonasnarraçõespopulares:é
oReicujapúrpuratranspareceporbaixodasrupturasdocapotedoplebeu,acata-
nadoespadachimporbaixodomantoreal,enquantoosprópriosvíciosrealçama
rectidão,eoesplendordasvirtudes,nãopodendoencobrir-lheasextravagâncias,
pelomenos lhasenfeita, e, porqueassimodigamos, aspoetiza.OCamõeséoD.
JoãoVempontopequeno,tendodemaisafacécia,queéumadassuasfeiçõesca-
racterísticas: esta parte contudo parece que podia e devia ser algum tantomais
engenhosa,maisviva,emaisengraçada.SobretudosendoeleoheróidaPeça,cha-
mando-seCamões,esendogeralmenteconhecidoporpoetaefuriosoconceptista,
daescoladaFénix, conviriadar-lheumestiloanálogo,epôr-lhemuitasvezesna
bocaversosàlaiadosdeJerónimoBaía.Umaboaemendanestesentidotriplicaria
àPeçaoseuvalorliterário.OEstudantedisfarçadoemcriadodeservirparalograr
umaraparigaéinteiramenteportuguês,édecertamaneirahistóricoenquantoci-
fraasideiasquegeralmentesetemdosEstudantesdaCoimbravelha;entretantoo
autorcomahabilidadequese lhepodepresumir,deveriaadubarosseusditose
feitoscommaisalgunspunhadosdesal.Abeatademálíngua,emaugénio,eosa-
pateiroespreitadorefaladorsãocompletamentecómicos:oJuizdavintena,oCa-
pitãodabicha,eoProcuradordaIrmandadedeNossaSenhoradoAmparo,como
trêsrepresentantesdoscostumesvelhos,deveriamserpartesumpoucomaises-
meradas e cómicas. A amante não tem cor alguma dramática, é puramente uma
escoradecomédia:seriaparadesejarqueoautorlhedesseumcaráctermaisindi-
vidual,equeatraísseaatençãoporalgumacoisa.
Alinguagemétodalimpaeapropriada;oestiloéalgumasvezesdifuso,eem
geral uma boa poda de frases fortificariamuito toda a composição.Da poesia, o
corodoprimeiroacto,seforcantado,esfriarágrandementeaacçãoporserlongo
demais.Osversosdofinaldomesmoactosãoinsignificantes.Acantigadosapatei-
ronoactosegundoéemdemasiaextensa.–Asvozesecorosdofinaldosegundo
actoparecedeveremsersuprimidos.–QuandonosDramasemprosa,ocantovem
comocanto,éexcelente;quandoporémfazpartedaacção,eécontraaverdade,
arrepiaoespectador,cujogostoaindanãoestivercorrompidocomaabsurdíssima
modafrancesadomelodrama.QueD.JoãoVeoCorregedor,nãonomundofantás-
ticodeumaópera,masnomundopositivodeumacomédia,dêemcantandoordens
aumaronda,equearondalhesrespondacantando,etudoistonumlancedeaper-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-266-
to,depressa,edesegredo,éumdesatinoquesóemParisseriaaprovado.–Acan-
tigadabeatanoactoterceiroéexcelente;oxaláqueocompositor,quemquerque
seja,saibaserportuguês,enãooconfeiteemnojentascaldasitalianas.Asquadras
últimaspoderiamteremgeralmaisalgumchiste.
Peloladomoral,seaPeçanãoéumaprelecção,tambémnãoteminconveni-
entealgum;seriasóparadesejarqueosdoisdenunciantesdoJuizdavintenafos-
semafinalcastigados,eemtodoocasoexpostosàvergonha.
Háalgunsdefeitoslevesqueoautordecertoemendará,revendocommais
atençãoasuaobra.Anarraçãodosapateiroquandodizoquepassoucomodesco-
nhecidonalojadeseumestreBarbeiro,éumpoucoinverosímil,tantopelolongo
silêncioqueguardaram,comopelomurrosemcausa:seriaconvenientealterá-la.–
AanedotadoReide telhasacima,oude telhasabaixoébela, e tradicionalmente
histórica,masvemforçada.NãoénaturalqueEl-Rei,agitadodepaixõestivessea
lembrançadefazerperguntasereflexõessóprópriasdeumamigosossegado.Se-
riabomdisporestapassagemdemodoquecaíssemaisnatural.Emsumaomenos
bomqueaComissãoachanoCamõesdoRossio,nãocontrapesanemlevemente,o
grandeméritoque lhereconhece:entendequepodedesde jáserapresentadoàs
provaspúblicas,particularmenteporserclássicoeportuguês,oqueéparaonosso
temporeunirduasraridades.Masseoautorquiserprimeiroreformá-lo,nissofará
obramuitolouvável,equeoConservatórioetodososamantesdanossaboalitera-
turalheagradecerão.AComissãonãodissimulatodavia,queestando,comoestão
hoje,ospaladaresmoraisdasnossasplateiasqueimadoserequeimadospelases-
peciariaseexageraçõesestrangeiraseromânticas,émuitopossívelqueumacom-
posição como esta inteiramente portuguesa e do género temperado, seja desde-
nhadacomoumcopodeáguapura,porumpaladarrecosidoemvinhodoDouro.
SaladaComissãonoConservatórioDramático,em26deNovembrode1839.
DoutorAugustoFredericodeCastilho.
JoséFredericoMarecos.
ManueldeSousaRaivoso.
_________
CÓPIASendopresentesaSuaMajestadeARainhaaspropostasdosdiversoscon-
correntesaoSubsídiodoTeatrodeSãoJoãodaCidadedoPorto,oferecidasàIns-
Eutinhaumasasasbrancas
-267-
pecçãoGeraldosTeatrosduranteoconcursopúblico,abertoporEditalde27de
Setembrode1839naconformidadedoDecretode12deOutubrode1838–eten-
do-sereconhecidoqueapropostadaSociedade–Carradori–émaisvantajosaas-
simpara a regularidade emelhoramentodos espectáculos teatrais, comopara o
progressodaArteDramática.–AmesmaAugustaSenhora,conformando-secoma
opiniãodoConservatórioGeralDramáticoemvistadaLei,Háporbemqueapro-
postadamencionadaSociedade–Carradori–sejapreferida,concedendo-se-lhea
empresadoTeatrodeSãoJoãodaCidadedoPortoparaoanode1840,mediante
as seguranças e instruções que forem convenientes. E assim oManda participar
pela SecretariadeEstadodosNegóciosdoReino ao InspectorGeral dosTeatros
parasua inteligênciaedevidaexecução.PaçodasNecessidadesem27deJaneiro
de1840=Assinatura=RodrigodaFonsecaMagalhães.
____________
TEATROEHISTÓRIA
(ContinuaçãodoNúmeroprecedente)Alardeandocadavezmaisformosuraevariadasgraças,MadamedePompa-
dournãocessaraderepresentardiplomaticamentedesde1762;amúsica,adecla-
mação, a dança erampor ela sucessivamente empregadas entretendo o seu real
amantenoentantoquesenãodescarregavaogolpesobreosJesuítas;assimeraela
reputadacomoamaisbelaactrizdoteatrodacorte.
LaVallièreacabavadedarumforteimpulsonosdivertimentoscénicos;as
intrigasdebastidorabundavam;aatençãodoreinãodeixavauminstantedeestar
ocupada;–tinha-seconseguidoodesejadofim.Quantomaisdiligênciaempregava
oparlamentoparaterminarolongoprocessodosJesuítas,maisfértilsemostrava
MadamedePompadourempassatempos,maisoreiseengolfavanosprazerestea-
trais:velandoemtodasascoisas,consultadoaindanasdemenorimportânciaera
supremoreguladorogostodomonarca;depoisdacaça,repetiçãodopoemadiante
de SuaMajestade; depois damissa, ensaio damúsica diante de S.M.; acabado o
conselho,dançanapresençadeS.M.: –opintor,omaquinista,odecoradordele
recebiam directamente as instruções; nunca empresário de província se viu tão
ocupado,mastambémnenhumempresárioteve jamaistãocondescendentecom-
panhia.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-268-
Vinha-se aproximandoo grandedia, odiadecisivo;maugradoa todosos
subterfúgios;ia-setornandosombriaafrontedorei,eacortecomeçavaamostrar
insólita agitação, consequência das secretasmaquinações dos Jesuítas e de seus
amigos.Cautelososavisos,ameaçasmisteriosas,assaltavamLuísdetodasaspartes.
Nopasseiocaíam-lheaospéscartasanónimas,evozes longínquasproferiammal
distintas ameaças; no palácio tudo erampresságios assustadores. Turbava-se ao
monarcaaconsciência,eerasuaalmaumcampoondeseguerreavamcruapelejao
orgulhodeSoberanoeosterroresdehomem.
Poroutrapartevia-seMadamedePompadournascircunstânciasdeperder
umdosmaispoderososinstrumentosdosseusprojectos.Apesardetodasaspre-
cauções,apesarde todososseusdóceiscomediantessehaveremcomprometido,
emfavordosseusinteresses,aumacompletaabnegaçãodetodaavaidadeteatral,
todaviaas invejas,companheiras inseparáveisdacena,nãotardaramemvirper-
turbaressasociedadedecuriosos,suscitandoassimvivasdiscussões.Umarixade
bastanteimportânciasetravouentreMM.deCourtenvauxedeLangeronporcausa
deumpassodedança.Oprimeiro,queeradiscípulodograndeDupré,pretendia
serprimeirobailarino;Langerondiziaqueelesnãodançavamamesmaespéciede
dança,sendoumparaadançanobre,eoutroparaademeiocarácter;–eusouo
homemdominuete,bemcomoCourtenvauxéohomemdagiga;jánoutradiscus-
sãoque tivemoscedieudagiga,masdeclaroquenãocedereidominuete; souo
minueteiro-mor, enemopróprio rei seria capazdeme fazerdesistirdasminhas
pretensões.
Cadaqualdosdoiscavalheirostinhaseuspartidistas;dividiram-seasopini-
ões,eoriginou-seumcisma;unsqueriamodagiga,outrosclamavamqueeraodo
minuetequemtinharazão;finalmenteia-seafeiandoocaso,ejásenãocomeçava
conversaquenãofosseprecedidadainterrogação:–Soispelagiga?soispelomi-
nuete?
MadamadePompadourinterveionacontenda,eimaginouoseguintemeio
deconciliação:–
–Ominuetenãopodeserdançadoporambosaomesmotempo;apraz-mea
nobredançadeCourtenvaux,nãomeaprazmenosadançaengraçadadeLangeron,
nãopossotodaviapronunciarafavordeumemprejuízodooutro;porissotomai
sentido no que vou dizer-vos. Achai-vos amanhã na ante-sala do conselho, onde
Eutinhaumasasasbrancas
-269-
devevirapropósitoaquestãodesseseternosJesuítas;aqueledevósquemelhor
souberacharosegredodedesfranzirafrontedoreiemnegócioquetantoopreo-
cupa, seráquemhá-dedançarominuete. –Tal é aminha sentença.Dito isto, os
doiscandidatospartiramaassestarsuasbaterias.
O conselhodeque falara amarquesa, foimuito tempestuoso.Oduquede
Choiseuldissetudoquantopôdesugerir-lheahabilidadeapródasuapolítica;Ma-
damedePompadouroapoioucomtodasasforças;oreiexpôsosseusreceios:ora
queria,orarecusava,eemtalvacilaçãoiadarordemparaqueoparlamentoadias-
se todo esse processo, e logo retraía essa ordem querendo que o acelerassem
quantofossepossível.Amarquesa,vendo-otãoembaraçado,começouadizer:-
–NãodecidaaindahojeVossaMajestade;consultemosalgumtantoaopini-
ãopública.–Porteiro,vedeseestãoláforaalgunsSenhores.
Oporteiroobedeceu.
–Entãodizeisqueéconsultaraopiniãopúblicaouviroquedizemoscava-
lheirosdasminhassalasdeespera?
–Queimportaisso,respondeuamarquesa.
–Éverdadequeanadaobrigaoquedisserem,acrescentouM.deChoiseul,
quemfazcasodaopiniãodosoutros?–ForamanunciadosCourtenvauxeLangeron
peloporteiro.
Travou-seodiálogoseguinte:
Rei–Entrai,Senhores,esedebemvindos.ChegaisdeParis?quetrazeisde
novo?
Courtenvaux–SaberáV.M.quese falamuitoemParisnacerimóniadeS.
JoãodeLatrão.
Rei–QueéacapeladosmeuscavaleirosdeMalta…
Court.–Essamesma;ontemoscomediantesfrancesesfizeramcelebrarnela
umsoleneofícioporalmadeM.Crebillon.
Langeron–Eofizeramadespeitodoarcebispocujajurisdiçãonãocompre-
endeocuradeS.João.
Rei–Poisosmeusexcomungadosordináriosrezampelorepousodaalma
dosseuspoetasdepoisqueestesmorrem!Fazemoquedevem;queassazlhoper-
turbaramenquantoeramvivos.
(Todosaplaudiram,comoconvinha,aspalavrasdorei,eestecontinuou.)
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-270-
Rei–MascoitadodopobreBeaumont,quehá-deestarfurioso!
Court.–Nãocessadebradaranátemascontraessepecadocanónico,ecom
todooimpulsodeseubraçoeclesiástico,fulminouocondescendenteCuraeosde-
votos comediantes; quer eledizerque tudo isto vemdemais alto, enão éoutra
coisasenãoummeiodeprepararosespíritosparaogolpequeameaçaaCompa-
nhiadeJesus.
(Tinhaassimaconvençãochegadoatocaroseufimreal;MadamedePom-
padoursorriu-se,efezumleveacenodeaplauso.)
Rei–OtalBeaumontéincorrigível;pensaquemehei-deservirdeHércules,
oudeAgamemnonparameauxiliarem.EosnossosParisienses,quedizemelesdo
estadoactualdosbonspadres?
Lang.–Esperam,riem,ecantam.
Rei–Oradissoéqueeugosto.Obomdopovousaascantigasdesdetempo
imemorial:bemvejoqueaindaéamantedamonarquia.Entãoqueéquecantao
povo?
Aestapergunta,MadamedePompadourlançouosolhossobreosdoiscava-
lheiros,comoanimando-os.
Courtenvauxfoioprimeiroafalar.
–Seiumacantigaquetemestadomuitoemvogahá largotempo:no livro
dosdestinos,capítulodosgrandesreis,lêem-seestaspalavras:
“InêsdaránosIngleses;
Pompadour,nosJesuítas.”
Oreinãoseriu,antessetornoumaiscarrancudo.
Rei–NãopossogostardetalInês,depoisqueVoltaireacantou;ealémdisto
nãojulgoquefiquebemàqueridamarquesasercomparadaaumamulheraventu-
reira.
Langeronseapressouemrecorreraoutracantigademaischiste,masorei
permaneceu impassível. Courtenvaux disse então que ia recitar umas coplas em
louvordeM.deChoiseul,erelativasàgrandequestãododia:começandoaentoá-
las Madame de Pompadour disse que as desejava acompanhar; o primeiro-
ministroobservou, que, sendo amúsicamui semelhante àdominueted’axaudet,
todosganhariammuitoemqueascoplas fossemcantadasedançadasaomesmo
tempo.Luísconsentiu;eCourtenvauxnãodesgostoudeacharessaocasiãodedan-
Eutinhaumasasasbrancas
-271-
çaroseutãoquestionadominuete.Nãoforamporémosresultadostãofavoráveis
comoesperavaCourtenvaux;poisqueomonarcaficoucabisbaixo,eapenasdisse
comocontrafeito:–Apoesianãoédasmelhores,porémcanta-sequeéumamara-
vilha.
–Eaindaseacompanhamelhor,acrescentouoministro.
–Paraadançaéqueelaéespecialmenteprópria,acudiuLangeronmuisa-
tisfeitodahumilhaçãodoseurival.Agoravoueuseguiraordemnaturaldoespec-
táculo;acabou-seadança,e,emseguidavoueudar-vosumapequenapeçamímica;
todavianãoseriatãopresunçosoquemeatrevessearepresentardepoisdeM.de
Courtenvaux:cáosmeusactoresestãoaquinaminhaalgibeira,edelaosvoutirar.
–Navossaalgibeira?exclamaramtodos.
–Naminha algibeira, sim senhores. –E entãoLangeron, vendoquehavia
excitado a curiosidade sacou de uma caixinha, e abrindo-a, tirou dela umameia
dúziadecaracóis,eosdispôssimetricamentesobreumapequenabancaqueesta-
va próxima aos ilustres espectadores: estes olhavamuns para os outros não sa-
bendooquehaviamconjecturar,conquantoaventassemofimaquetendiatalexi-
bição.CuriosoeraserumreideFrança,umacélebrefavorita,umgrandeministro,
edoisgravescavalheiros,considerandotodosatentamenteseiscaracóisdispostos
emduasfileirassobreumamesa.
LogoqueLangeronpercebeuemtodososolhosumainterrogaçãodeimpa-
ciência,chegou-separaocravoecomeçouatocarcomamãodireitaamodapopu-
lar –Allez-vous-engensde lanoce; puxou depois por um fio que correspondia a
cadaumadasconchasdoscaracóis,edelasentraramasairumasfigurinhasdece-
ravestidasdejesuítas,mãoscruzadassobreopeito,ecomumardehipocrisiabas-
tante cómico.Àmedidaque se apressava a cadênciadamúsica, aumentavamde
velocidade em seus movimentos os fradinhos de cera, de maneira que Luís XV
prorrompeuemgargalhadasdesfeitas,exclamando:–Excelente:nãohánadame-
lhor!Sãoosmeuspobresjesuítasqueentramnassuasconchas!
Eeisaíoreicontentíssimo,puxandoetornandoapuxarpelofio,erepetin-
do: –Entrana tua conchameu jesuíta. –E tambémMadamedePompadourmui
satisfeita,correndocomosróseosdedostodooteclado,evariandoamodaAllez-
vous-en&c.Eoscavalheirosaplaudindo;eosjesuítasentrandoesaindodascon-
chasaostrambolhões.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-272-
–VossaMajestade,disseLangerontriunfante,deucomoverdadeirosentido
dapantomima:nafeiradeSantoOvídiofoiinventadaestaengenhosamáquina,ejá
nãoháquemnãotenhafeitooseuprovimentodecaracóis;nãohácasanenhuma
quenãotenhaoseujesuitazinho,easdamasdamodaatécomelesseentretêmnos
entre-actosquandovãoaoteatro;oquetodaviaémaissingularemtudoisto,oque
provaquantoS.M.simpatizacomoseupovo,éque,aofazerestegalanteexercício
ninguémháquenãoexclame:–Vai,entranatuaconcha,meujesuíta.
–BemdiziaeuaVossaMajestade,queerabomconsultaraopiniãopública,
volveuMadamedePompadour!
IstosepassavanosfinsdeJulhode1762;numdosprimeirosdiasdeAgosto
foidadooúltimogolpeaosjesuítas,enessemesmodiadançouM.deLangerono
seuminueteempresençadetodaacorte.
--------*--------
QualidadeseDeveresdo
Comediante
(5.ºARTIGO)Nosartigosprecedentestratámosresumidamentedasprincipaisqualidades,
quedevemadornaroartistapossuídodonobredesejodeseilustrarnadifícilcar-
reiradoteatro:ainteligência,asensibilidade,anobreza&c.Trataremosagorada
Declamaçãoteatral,dessaartedepronunciarnacenaopapeldequalquerperso-
nagemcomaverdadee justezade intonação,queasdiversas situações compor-
tam;contribuindoafisionomia,ogesto,eavozàilusão,queoactordesejaprodu-
zir.Muitosetemquestionadosobreanecessidadedadeclamação,especialmen-
tenatragédia,querendounsqueestafossefalada,outrosdeclamada:–oquenos
pareceforadedúvidaéqueumpoetanuncadebomgradoescreveráversos,para
queoactorlhosreduzaaprosa;todooencantoqueelesoferecemaoouvidosensí-
vel àharmoniapoética seráperdido, seo tom familiar lheapagarasbelezas.Há
todaviaummeiotermoquesenãodeveperderdevista:alémdadeclamaçãoépica,
ou lírica, existe a declamação cénica, que deve aproximar-se da natureza tanto
maisquantoaspersonagensdacenaprocuramimitá-la.
Eutinhaumasasasbrancas
-273-
A declamação dos antigos era notada, e acompanhada por instrumentos:
parasubstituirestaespéciedecanto,actoresinexpertosderamaoversoumame-
didatãocortadaeenfáticaqueerainsuportávelpelasuamonotoniauniforme;até
quenosfinsdoséculoXVIIsecomeçougradualmenteadardemãoaummodode
recitartãodestituídodeverdade.
Eloquênciaexteriorchamavamàartededeclamarosantigosretóricos.Ena
verdade,apresentaiomelhorargumentosobreopapel,exprimiosentimentocom
amaiorveemência;quejamaisganharãoelespela leituravisualaquelaforçaque
lhesreconheceríeis, seavozporumadeclamaçãonaturalevariada,osanimasse
compropriedade.
Quem não tem sofrido grandíssimamassada ao escutar a leitura de um
dramamalpronunciado,ouporfaltanasintonaçõespróprias,ouportrivialidade,
ouporexageradaênfase?Quantasvezesdiscursosfamiliares,esímplicesconver-
sações,apresentaminflexõesdevozetonsvariados,queproduzemoefeito,quese
deseja?Qualserápoisomotivoporqueo indivíduo,aquemistonaconversação
aconteceu, é, quando lê, constantemente falso, ridículo, ouguindado?Será talvez
quetodososhomens,todososautoresmaisoumenossecomovem,quandofalam
ou escrevem;mas quando recitam lhes falta a arte de se excitarem de novo ao
mesmograu?–Aartedadeclamaçãoconsisteespecialmentenacompletaadopção
dossentimentosdasdiversaspersonagensqueserepresentam.
Quantoàmaioroumenorexpressãoqueconstituiotomfamiliarouaênfa-
se,nãoéosentimento,masainteligência,quedeveguiaroactor;elatambémlhe
deveinsinuarqueanaturezadossujeitostrágicossendoidealemparte,alingua-
gemodeveráigualmenteser…Éevidenteque,nestecaso,aimitaçãodanatureza
comumdestruiráoideal;aomesmotempoqueumadicçãotrivialenãoacentuada
desorganizaalínguapoética,quehásidooalvodelaboriosaseconstantesinvesti-
gações.O tomempoladoedeclamatório de alguns actoresnão sedeve confundir
comumadicçãonobre,altiva,econformeaoassunto.
Omotivoporqueasopiniõestêmdiscordadoacercadadeclamação,éafal-
sa ideia que dela se há formado, confundindo-a com essa recitação afectada, ou
cantilenamonótonaedesagradávelqueatordoaosouvidos,semfalaraoespírito,e
coração.Emverdadequeestapretendidadeclamaçãodeveserbanidado teatro;
masporsermosnaturais,cumprepornãoproscreveranobrezaemajestadeque
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-274-
muitasvezesseexigem.Porventuraquenenhumaoutranormapoderemosaeste
respeito apresentarmaisqueado simplesbomsenso;poisqueelenos indicará
comoforadepropósitoumadeclamaçãofaustosa,todasasvezesquetivermosde
pintarumapaixão,ouexprimirumsentimento;é tambémnecessáriopronunciar
semênfaseoqueésimplesedepuroraciocínio.Quandolemosqualquerobra,gra-
duamospelasuapompaousimplicidadeotomdanossaleitura;etomamosotom
oratóriotodasasvezesqueassimopedeagravidadeeimportânciadoassunto:–a
majestadedemuitostrechosdepeçastrágicasexigequesepronunciemmajesto-
samente.
__________
CrónicaTeatralNonossoTeatroNormaltêmsidoobjectodosespectáculosdapassadase-
manaasseguintespeças:OFantasmabranco,oCamõesdoRossio,M.Botte,eafarsa
Quem temmazela tudo lhedánela. Continua a ser aplaudido o Fantasma, e com
justa causa,porquenaverdadeéa fénixdosdramas, paranos servirmosdeuma
frasemuitoenfáticaquehápoucovimosnãonoslembraonde–OCamõesdoRos-
sio não tem desmerecido pormuito representado; é sempre visto com prazer e
agoraqueopúblicoovaimelhorcompreendendomaisaplausosvaielequinhoan-
do.Cumpreaquireflectirqueamuitosespectadoresagradamcomparticularidade
aquelaspeçasque jásãomuitosuasconhecidas,enãoaplaudemsenãoasque já
sabem quase de cor, semelhantes àquelas devotas que só sabem rezar pelo seu
livro,eseentretêmasoletrarasmesmaspalavrasquetodosdiasrepetem.Daqui
provemofavorávelacolhimentoquerecebemasnossaspeçasantigasquandoso-
bem à cena, muito embora não sejam elas boas: as reminiscências são sempre
agradáveis,eétãodoceparaoespectadorpoderemendarocomedianteseelese
enganacomamínimapalavradoseupapel!–Advertimosquenãodizemosistoem
referênciaaoCamõesdoRossio,masporqueveioapelo, e terá cabidaaplicadoa
outraspeças.
FalemosdeM.Botte.Ninguémháaí,quenãoconheçaasproduçõesdocéle-
brePigaulLebruncujapena,quasesempremolhadaemfelsatíricoemordaz,al-
gumavezseembebeudebranduraesuavidadeparadesenharcaracteresgenero-
sos; todosconhecemodesencantadoescritorcujocepticismocáustico tantocap-
touoshomensdoséculopassado,séculoaquebempodedizer-sepertencerPigaul
Eutinhaumasasasbrancas
-275-
Lebrun,fechandocomseunomealistadetodososespíritosfortesdessaquadra;
todostêmlidoerelidooslivrosespirituososeengraçadosdesseautor,eporisso
ocioso seria dizer que a comédia de que falamos é um transunto da novela do
mesmotítulo.Aindaseriamaisociosonotarquãopoucooautordacomédiasoube
aproveitarodadoassunto,poisqueproduziuumacoisa aque rigorosamente se
nãopodedarnome:éumimbróglioondequasetudosucedesemrazãosuficiente,
ondeosacontecimentosvêmtrazidosforçadamente,efinalmenteondeseconhe-
cemlacunas,–consequênciaquaseinfalíveldestanovamaniaqueemFrançatanto
sevê,de resumirasnovelasantigasemdramasnovos.–AComédia todavianão
temdesagradado,eneméelaparadesagradarabsolutamente;consideradanasua
especialidade tem coisas excelentes, tais são por exemplo todas as que foram
transcritasfielmentedeP.Lebrunequeoautordacomédianãomodificou.Oca-
rácterdeM.Botteéperfeitamentesustentado,etemoriginalidade,eéparanotar-
sequetaiscaracterescostumamdeordinárioagradarpelosentimentalqueenvol-
vem;fazeiqueoheróidavossapeçatenhamaugénioebomcoração,e,sehouver-
destalentoearte,certasserãoaslágrimaseorisodoespectador;alémdequeos
afectospatéticos,taiscomooamor,ociúme&c.estãodetalmodousadosnacena,
queocoração,queestranhanosoutros,comestessemovemaisestimuladoonde
querquedeimprovisodêcomeles.
Estapeçafoibemdesempenhada,epodedizer-sedesapaixonadamenteque
oSr.Vitorinocompreendeumuitobemoseupapeleorepresentoucomoquemo
compreendia;essegénerodecaracteresvemosqueestáemrelaçãocomosmeios
doSr.Vitorino, e lembramosque jánoGaiatodeLisboaaqueleactor foidevida-
menteaplaudidonumpapelsemelhante.
Afarsa–Quemtemumamazela,tudolhedánela–éimitadadeumapeque-
napeçafrancesaintituladaMalnotédanslequartier,produçãodeHipólitoLeroux,
aqualfoipelaprimeiravezàcenaemParisem2deDezembrode1837noTeatro
deVaudeville.Égeralmentechistosa,mastemalgumaschufasquesópodempassar
emtempodeentrudo,etantosequívocosetãocalvosquefazemsubiracoraoros-
to.Naexecuçãodistinguiu-seoSr.Sargedascomasuamuitagraçanãoafectada:a
cantigaébonitaefoicantadacomoconvinha;oSr.Sargedasfoimuitoaplaudido.
TeatrodeS.Carlos=Apesardeteremsidomuitofrequentesosbailesneste
carnaval,quasequenãodandorespiroàsbelasdamas,eelegantesquetêmdeuso
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-276-
esmaltarosnossossalões;nemporissoosteatroshãosofridomínguadeespecta-
dores.EmS.Carloshouvenasegunda-feiraumvariadoespectáculoemBenefício
doSr.Anglois,eesteinsigneartistaaindaoutravezquisalardeartodososprimo-
res do seu raro engenho músico ao perfeito desempenho das peças executadas
numinstrumentotãoingrato,comooContrabaixo.–SS.MM.quehonraramcoma
suapresençaoteatronaquelanoite,enviaramaoilustreartistaacondecoraçãoda
OrdemdeCristo.–OSr. J.A.RodriguesCosta,discípulodoSr.Anglois,partilhou
comseudignomestreosimensoseestrepitososaplausosquetãojustamentelhes
prodigaramosespectadores.–AParisinafoimuitobemessanoite,eaSra.Barili
cantoumelhor do que costuma. – A dança = As Nove Recrutas = vai agradando
mais,eaSraRabelnumpas-de-deuxcomoSr.Jorch,mostroumuitafirmeza,artee
correcção no seu dançar; assim ela alardeassemais graça emoleza, comobusca
ostentarforça!…–OSr.Jorchdançanestepas-de-deuxcomumaforçaegarbo,que
poucodeixaadesejar.NãohádúvidaqueoSr.Jorchsemostraumdançarinocons-
ciencioso.
AsNoveRecrutassãogentisdonzelas,queparafavoreceremumaamiga,fi-
lhadeumcoronelespanhol,lhesugeremaqueledisfarce,ecomumaordemfingida
seintroduzemnoforteondeestápresoFernando,oamantedaengraçadaCatalan.
–Masqualéocrimedoafortunadomancebo,aquemprendemtãodonososlaços?
–Fernando, lembrando-seporventuradosAnfitriões,quisver sepoderia levaro
talentodaimitaçãoatéaopontodecontrafazerumvelhoecorcovadomajor,com
quemIsabeltinhadedesposar-se,adespeitodesuaostensivarepugnância,escu-
sas,erogos.NãofoieleporémtãofelizcomoJúpiterohaviasidocomAlcmena:no
melhordafestachegaovelho,eaodesapontamentodeleedopaisegue-sefuriosa
ira,edepoisocastigo:–Fernando jazpresonumforte, cujocomandanteeraum
sargentoinválido!…
Masjáasnovebelasrecrutasorodeiam;ejátinhamcaçoadocomosargen-
to,investidoevoluçõesemanejo;ejátambémotinhamenchidodeufania,mano-
brandocomtodaaperfeiçãoasuavozeensino…–Eosamantessecongratulavam,
eeramtodosjúbilo,–masoterrorlhesucede!…UmchavecodeArgelinosseapro-
ximara,eei-losjádepossedafortaleza;easdonzelasadarem-seaconheceraos
corsários,eosfingidosargelinosarirearir,porqueeramosseusamantes,eopai,
cedendo a reiteradas instâncias, a perdoar e abraçar os dois militares, um dos
Eutinhaumasasasbrancas
-277-
quais temo rostinho tãomimosoeengraçado,queencanta, e tão lindamadeixa,
queprende.–Umdostaiscorsáriosqueeraumoficialespirituoso,equetinhaper-
cebidoatrama,foraoinventordestedesenlace,convidandoocoronelemajorpara
ogracejo,semdizeranenhumdelesquesóparaIsabel,eporcausadeIsabeltudo
istoseurdira.
ASra.DeVechi,quemuitovaiganhandonaopiniãodopúblico,nãosepode
negarqueéumengraçadíssimocomandantedefemininasedelicadasrecrutas;as
segundasbailarinasdesempenhammuitobemos seuspapéis; e o Sr. Giuliani se
tornadignodeaplausonopapeldesargentoinválido.
_____________________
REALTEATRODES.CARLOSDomingo23deFevereiro–Ópera=Virgínia=Dança=Asnoverecrutas=
Segunda-feira24–Benefíciodo1.ºtenorFranciscoRegoli.Iránovamenteà
cenaaÓpera=OsPuritanos=Dança=AsNoveRecrutas=
Terça-feira25,eQuarta26–Omesmoespectáculo.
__________________________
n.º13,de1deMarçode1840
JORNALDOCONSERVATÓRIO
PARECER
SOBREODRAMAORENEGADOODrama=ORenegado=quesediz–OriginalPortuguês–temtãopoucode
originalcomodeportuguês.OautorretalhouoRomancedoVisconded’Arlincourt,
quecorrecomestemesmotítulo,e,cerzindoosretalhosquelheaprouverafazer,
organizouissoquedenominaDramaoriginal,porémquefaltodevida,eporcon-
seguinte de acção e demovimento, não é verdadeiramente senão uma narração
posta em diálogo. Onde está pois a originalidade? –Mas tão pouco é português,
porquenemoassuntoéportuguês,nemportuguesaéalinguagem.
Umabrevereflexãoevidenciaráaproposiçãoenunciada.Oautorcopiouse-
guidamenteos trechosdoRomanced’Arlincourt,que julgouconvirem-lheparao
seu intento; eque, se algumavez alterou,não foi paramelhorá-los; e, aindanão
contente, copiou-os, não do original,mas textualmente da tradução que daquele
Romance fez epublicouAntónioVicentedeC. e Sousa. Ehá aí quem ignoreque
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-278-
estetradutor,tãofértilquãopoucoaprimorado,éumdesseschamadosliteratosa
quemcabedeummodo todoparticular a fundada imputaçãodeviciadorda lin-
guagemportuguesa?–poistodososdefeitos,tantosetãograves,dequevãoinça-
dasastraduçõesdeAntónioVicente,acham-setransplantadosparaesteDrama.
Porém,àparteobservaçõesgerais, importaconsideraroDrama–ORene-
gado–maisdeperto.
EstáoDramadivididoem3Actos,e9Quadros.–No1.ºActo,quecompre-
ende3Quadros,nadaseencontradignodeespecializar-secomlouvor.Adisposi-
çãoésomenos,eaintroduçãodeGondair,no2.ºQuadro,pormalpreparada,não
sónãosurpreendeoespectador,masantesomortificaporquevêestedesdelogo
queoA.ounãoquis,ounãosoubeprender-lheaatenção,eexcitar-lheacuriosida-
de.Gondairéumprofetadetrivialidades,eoA.deixoudetirardestapersonagem,
quealiásseprestavaparamuito,ovantajosoresultado,queelalheproporcionava.
–Odiálogoéconstantemente frouxoepenoso.Oestilocarecedepropriedade.A
linguagemquasesempreéfrancesa,enãoéraroogalicismointolerávelemquese
tropeça.–Comoosespectadores,porassimdizer,nadavêem,eapenasouvemlar-
gashistóriasqueinsipidamentelhessãocontadasnãopodesenãotomá-losoenfa-
do.Adormecerãosemfalta,porquenãoháaguilhãoqueosestimule.–Enfimquan-
tohádenotávelno1.ºActoacha-se,namáximapartepelasmesmaspalavras,na
citadatraduçãodoRomanced’Arlincourt.depág.15–19,depág.25–26,depág.
32–33,depág.36–46,depág.123–132.
Oqueficaobservadoacercado1.ºActo,podeaplicar-seacadaumdosdois
queoseguem,semreceiodeinjúria.
No2.ºActo(Quadros4.º,5.º,e6.º)háparanotarqueasCenas2.ªe5.ªdo
Quadro4.º,queoferecemalgum interesse, são fielmente, comosevêdoreferido
Romanceapág.103–104,epág.106–117.–SãoigualmentecopiadasasCenas
1.ª,3.ª,4.ª,e6.ªdoQuadro5.º, sendoaliásparasentirqueaCena3.ªnãoesteja
assazcalculada,porquedecontráriodeveriaproduziralgumefeitodramático.As
pág.datraduçãodoRomancedondeoA.trasladoucorremde172–174,de176–
177,de178–189,ede195–196.–AsCenas1.ªe2.ªdoQuadro6.ºsãopuramen-
tedeencher,e,seacasohouvessemdeseraproveitadas,nãoseriaassazreduzi-las
aumasó:essamesmaprecisariadeseralterada.–ACena3.ª,dignadeatençãoem
Arlincourtdepág.169–171,aquiporsoltae inconexa,nadavale.–ACena5.ªé
cópiadepág.208–210.
Eutinhaumasasasbrancas
-279-
TerceiroActo.NoQuadro7.º sobejaobservarque tudoé comum,sendoa
Cena6.ªdevidaaoqueselênomemoradoRomanceTomo2.ºdepág.7–13.–O
Quadro8.ºprecipitaaacçãomonstruosamente.Agobaraparecederribadodasua
fortuna,assassinado,foragido,enãosevê,nemsabe,senãoquaseadivinhando-a,
qualacausaqueproduziuestacatástrofe.AssimmesmoaCena2.ªacha-seemAr-
lincourtdepág.148–149.TodaviaécuriosovercomoumSoldadoSarraceno,que
salvaoseugeneral,eotransportanosbraçosatéomontarsobreocavalo,secom-
paraaEneias,salvandoporentreashostesgregasovelhoAnquises!–Tambémjá
naCena3.ªdoQuadro6.ºédignodenotaocumprimentoqueoPríncipedasAver-
nasfazprostradoaospésdeEgilda:ei-lo!–“Princesa,permitequeoteumaishu-
mildeservotebeijeamão.–”!!!–NasantigasComédiastaisexpressõeseramfre-
quentes:hojemovemriso.OQuadro3.ºpodeseravaliadoemgrandepartecomoo
trechodeumSermãosemsabor,quegelaosentimento.Egildaéopregador,eo
carácterdestaprincesa,nuncabemdefinido,setornaquasetãocontraditórioco-
moodeAgobar,quevaria,nãocomosecompadececomanaturezadascoisas,po-
rémàmedidado capricho, oudanecessidadeemqueoA.presumiuachar-se.O
Romanceded’Arlincourt,depág.185–191,edepág.259–266deuaindamatéria
para o todo deste Quadro;mas é certo que, assim como o exemplo de César (!)
propostoporEgildaaotemerosoAgobar,ealiçãodahistória,queamesmaprince-
salherecomendanadalheaproveitou,tambémaoautordoDramanada,oupouco
aproveitouumassuntotãofértil,etambémtratadopeloVisconded’Arlincourt.
AComissãoemvistadoexpostoentendequeoDrama–ORenegado–não
devemereceraaprovaçãodoConservatórioparaseradmitidoàsprovaspúblicas.
Lisboano1.ºdeAgostode1839.
GonçaloJoséVazdeCarvalho
D.JoséMariaC.deLacerda
JoséVitorinoBarretoFeio
ADANÇAMÍMICA
I.
OMONGEBENEDITINOHaverá coisa de três séculos, numa amena veiga toda bordada de frescas
romeirasecortadadepálidosolivedosseassentavaumricomosteirobeneditino.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-280-
Viandantequeaoromperd’albafossepercorrendoacostaorientaldaromanesca
Espanhaouviria jubilosoosomlongínquodos ledossinosdomosteirotocandoa
matinas, e, dirigindo os passos na direcçãodesses hospitaleiros sons, pararia de
assombradoaovernaencostadeumacolinaasopulentasconstruções,dominadas
pelasgrimpasesguiasdatorre,brilhandoaosprimeirosraiosdesol,eoferecendo
nointeriorcómodavivendaaseuspacíficoshabitadores.Dasalvaserasgadasjane-
las a vista se espraiava pelas relvosas ondulações dos outeiros vizinhos, e pelas
contornadascimasdosbosquesmaisdistantes,que,emcaprichososrelevos, iam
pararnaestradadeGranada,faixapolvorosaealvacentaqueatravessavatãoriso-
nhaseverdesparagensindo-seadelgaçandoatédetodoaperderemosolhos.Gru-
posdefigueiras,canteirosdeplantações,vergéisdeflores,orlavamcabanasepo-
voadosportodaaextensãodesseformosoterrenoqueeralimitadoàdireitapela
Alhambra,àesquerdapelasruínasdeumafortalezadotempodocalifaAlmançor,
ena frentepelo grandemar, onde as velas latinasdasbarcasdospescadores se
debuxavamcomoricaspérolasemmantoazulderégianoiva.
Demanhãpelahoradematinas,eàtardedepoisdevésperasumajanelase
abrianotopodoedifícioprincipal,eumfradeencostadoemprofundameditação,
ou lendonumgrande livro,aomesmotempoquerespiravaasarrobadasemana-
ções que lhe trazia a brisa domar. Todos os campónios das vizinhanças haviam
reparadonesse fradequenemumsódiadoano faltavaaaparecernasua janela
favorita;nãopodiamtodaviaconjecturarqualasua figura,poisqueosmurosda
cercaosnãodeixavamassazaproximar.Equemoconhecessenãopoderia julgar
que tão grande uniformidade em hábitos fosse obra do tempo, que era jovem o
monge,eformoso,ajeitando-senoseuburelcomtodaagraçaedonairedeumno-
brecastelhano.Àsvezesse lheanimavaa fisionomia,mas logo lhemurchavaem
melancólicalanguidez;umadesgraça,ouantesduasdesgraças,ohaviamassaltado
quandoapenastinhadezoitoanos;amãe,aamantelheforamarrebatadasnumsó
dia:eranumcombatedetourosnacapitaldoreinodeLeão;oanfiteatroemque
estavamaluiu,eamãeeaamanteforamvítimas…
PedroPoncedeLeão,taleraonomedofrade,cuidouaoprincípiosucumbir
atãograndegolpe,masroboradoocoraçãocomumaeducaçãoreligiosaresolveu
retirar-separaoconventodeEspanhaque,depoisdoEscorial,maisrecursosofe-
reciaaoespíritoqueemferrenhaaplicaçãoquisesseafundirsaudadesetormentos.
Eutinhaumasasasbrancas
-281-
HaviaumanoquePoncedeLeãohabitavaasuanovaesilenciosahabitação,quan-
do lhe deram o emprego de Bibliotecário do convento por morte de um velho
mongeacujavastaerudiçãodeviaachar-seaoalcancedosgrandestrabalhosdos
Árabes,edasantigascrónicasdaterradoCid.–Nãohaviacanto,pormaisrecôndi-
toque fosse,nas compridasgaleriasdabiblioteca, oqualPoncenãohouvesse já
esquadrinhado,haurindoquantasriquezas literáriasecientíficasseamontoavam
nosantigosarmários,corrigindoerrosnoscatálogos,preenchendolacunas,edan-
doatudoumaaparênciadeordemeasseio,sinalsemprecertodasvisitasfrequen-
tesde leitores assíduos, edo zelo solícitodobibliotecário.A imensa colecçãode
livrosquepossuíaoconventodosbeneditinosocupavaoprimeiroesegundoan-
dardoedifício;umaescadademadeiraformadaemcaracol,eondeumfradeperi-
tonaartedeescultorabriramuitasfigurasdesantasesantos,comunicavaentresi
osdoisandares,econduziaàsgaleriassuperiores;poroutraescadasemelhanteà
primeirasubia-seaumpequenoaposento,ondemoraraoutroraoantigobibliote-
cário,sendoagoraaceladePoncedeLeão.
Nãoseriacustoso fazerumaenumeraçãodasalfaiasqueadornavamahu-
mildeestância–oqueéprecisoparaumhomemrezar,dormir,sentar-se,escrever,
eisaítodaaopulênciadapequenacela,cujosquatromurosalvejavamemsuanu-
dez,esónumdelesseviaumCristodeébanosobranceiroao leitodomonge;as
vistasdalargajanelaeramaúnicaalegriadoaposentoondePedrorezava,donde
contemplavaacampina,onde finalmente folheavaos livrosemanuscritosdeou-
traseras.Ashorasemqueofradeabriaasuajanelaeramaquelasemque,termi-
nadososdeveresdoseucargo, jásenãodeviaàcomunidademasasipróprio,e
taismomentosdefelicidadeeramesperadoscomamaior impaciência.Seriamos
poucos anosdePedroquem lhe fazia desejar com tal ardor essepassatempoda
janela?Alguminteressemaisrelevantequeodeumavagacontemplaçãooafasta-
riadaspráticasdosoutrosmonges,movendo-lhesempreospassosparaoseurico
observatório?–Masqueinteresse?…Eraumapaixão?
Sim,umapaixãosingular!DepoisquePonceentraranoconventodosbene-
ditinosoúnicoalívioparaseusmuitospesareseraaembevecidacontemplaçãodo
mar e das campinas, misturada com estudiosas reflexões; pouco a pouco a dor
acerbasefoimudandoemtristurasuave,ouemarrobadamelancolia;ejáomonge
semantinhadesaudade,porquelheeradocerecordarasgraçasdaamante,osca-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-282-
rinhosdamãe.Oh!comoaquelaeraformosa,quantoprendiaosolhoseocoração!
Quevoluptuososmeneios,queengraçadasatitudes,queligeireza,quandodançava!
Edançavaelacomoumaninfa,melhordoquequantasviramasmisteriosasgaleri-
asdaAlhambra!Estepensamento,aqueos livrosárabesdavamcorpoevestiam
corespelasnarrações tãopoeticamenteexageradasdas festasdeAlmançoreou-
troscalifas,estepensamentoeraoviverdePedro;chegoueleafazerumacolecção
de todosessescuriososmanuscritosqueosdecretoshaviamcondenadoao fogo,
masquesemprehaviamsobrevividoataisdecretos,eàforçadesaturar-sedetan-
tamoleza,misturando-lhesempreafiguradeumamulheradorada,chegouacriar-
seumenteimaginárioquesempretinhadiantedosolhos,quelheapareciaemso-
nhos,emsuasmeditações,nosáureosfrontispíciosdoslivros,enacampinaentre
aschoreiasquetrançavamoszagaisaopôr-do-sol.Àsvezeseratãoforteailusão
dePedro,quejulgavareconhecerosangueárabenessesgruposfantásticos;final-
menteonossomongetinhachegadoapersuadir-sequeamulhercomasuabeleza,
graças,e feminilagrado,estava todacompendiadanadança,equeeraadançaa
maiscondignamolduraparaengastar, realçando-os, todososméritoseencantos
dacompanheiradohomem.Ora,destepensamentoaoamordadançapoucadis-
tânciavai;eo frademelancólico, silencioso,graveemseusprazeres,austeronas
suasdevoções, estava, nadamenosque, doidopeladança: para ele era esta arte
superioratodasasoutras,edebomgradodariaeletodaabibliotecadoconvento,
à excepção contudo dos livros árabes que tratavamdo assunto favorito, por ver
representarumbailemímiconumdosteatrosdeCastela.
------*------II.
OBAILEMÍMICOMaisqueabastadoeraoconventodosbeneditinos,jápelosdireitosqueti-
nhasobreasterrascircunvizinhas,jápelasconfiscaçõesqueexerciasobreoshabi-
tantesdasaldeiasquelheeramsujeitasumavezquefossemconvencidosdehere-
sia;aambiçãodossantospadresnãoseachava todaviasatisfeita,e tinha-se-lhes
metidoemcabeçaintrigarparaqueoseuabadefossenomeadoarcebispodeGra-
nada.Oreiacabavademorrer;asantigascortesiamreunir-senacapitaldosdois
ReinosdeCastelaeAragão;eocondestávelgovernavaenquantoonovomonarca
nãoerainvestidopelosnobresmandatáriosdopovo.Oabaderesolveupartircom
Eutinhaumasasasbrancas
-283-
pompa e celeridade, a fimde apressar, alardeando zelo, a nomeação comque já
contava;masumacontecimento imprevistoveiooporgraveestorvoaosseusde-
sígnios;umafebreviolentaselhemanifestousubitamente,ejáseachavamascor-
tesreunidasaindaopobreabadegemianacama.
Forçoso foiremediara tão funestocaso,emandara todaapressaumho-
memactivo,hábil,edeconfiança;oabadeescolheuPedroPoncedeLeão,deu-lhe
asinstruçõesnecessárias,elheofereceucriadosparaoacompanharem,masPedro
nãoquislevarséquito;correuàsuabibliotecaafecharosmaispreciososarmários,
vestiuoshábitosdosdiasdúplices,etomandoummanuscritodeAlbufarage,que
tratava dosprazerescoreográficosdosÁrabesdeEspanha,montou umbelo pala-
frém todo coberto de telizes e campainhas de cobre dourado, e se partiu a bom
troteatédesaparecerentreasúltimascolinas.
Nunca o nosso contemplativomonge se vira porventuramais feliz, podia
considerardepertooquetantasvezeshaviaadmirado,eagoralheerafácilreco-
nhecer semerroo sangueárabenumrostodemulheroununsolhos infantis; já
podia ver dançar os camponeses, que, por desgraça, suspendiam o exercício da
queridaartelogoqueseapercebiamdomongequelhesvinhacontra.Oh!queen-
tãoPedrofranziaassobrancelhasdeimpaciênciaecólera;porfim,paradarcabo
de tantas emoções, ou antes, para gozardelas semmesclade receios, tomouem
suamenteumadeterminaçãoterrível…paraumfradequedesejapermanecerfielà
suaregra,eaDeus.–“Ireiverumbailenacidadevizinha,disseeleconsigo,anão
faltaremartistas,ouanãoperdereudaquiatéláestemeudesejo.”
Chegouomongeàpróximacidade,aqual,sebemnoslembra,eraAndujar,e
aindaconservavaasuaúltimadeterminação,bemcomoomanuscritodeAlbufara-
gequeelevinhajáconsultandoaespaços,comoparareforçarsuascoreográficas
intenções.Logoqueseapeounamelhorestalagementrousubitamenteainformar-
sedoquedesejavasaberafimdepôremexecuçãooseugrandeprojecto,etratou
deprover-sedevestidossecularesedeumchapéudeplumasparaque lhefosse
possívelpenetrarpelomeiodamultidãosemqueotomassemporoutracoisaque
umsimplesCavalheiro.Tudo lhe saiuàmedidados seusdesejos, emaisdeuma
gentildamadesviouamantaparamelhorconsiderarobizarroademaneebrilhan-
tesolhosdopseudo-cavalheiro.Éverdadequetodosseadmiravamdasuaindife-
rença,bemcomodaprofundaatençãocomqueolhavaparaasdançarinasedança-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-284-
rinos,sorrindoaqualquergestoamorosodeumadançarinacomtantasatisfação,
tantafelicidadecomoseescutasseoprimeirosimdeumamulheradorada.Muitos
eramdeopiniãoqueestavadoido,mas logoconheciamoseuenganoeentãoex-
clamavam:–“Ésemdúvidaoamantedeumadestasdançarinas”-
Tinhalugaroespectáculonumaantigamesquitadotempodosmouros;ri-
castapeçariasdeescarlatependiamnosintervalosdaselegantescolunasquesus-
tentavamosesculpidostectos,enofundoviam-seumasdonzelasdetantaformo-
sura,queenleavam,pelariquezaeformadeseusvestidos;pareciamasqueoutro-
radivagavamnosencantados jardinsdaAlhambra;essasdonosassílfidespanto-
mimavamumacenadramáticadoserralhodeBoabdil,emcujo funesto fimtanto
sanguejorroujuntoàFontedosLeões.
ParaquenadafaltasseàrealizaçãodospoéticossonhosdePedro,afigurou-
se-lhe reconhecer numa das dançarinas a fisionomia daquela que tanto amara
quandomais jovem;…entãoesqueceuabade, convento,missão, e condestávelde
Castela. Não já frade austero,mas elegante cavalheiro, em vez de continuar seu
caminho iavisitaropessoaldobaile, alardear suaerudiçãocoreográfica, assistir
aosensaios,eocuparemtodasasrepresentaçõesolugardondemelhorpodiavera
sua dança querida. Ora, os habitantes de Andujar tinham já reparado na grande
paixãodePedropelobaileoupelamaislindadançarina,eunsaosoutrossediziam,
quetalvezogentilcavalheiroseriaalgumaaltapersonagemdisfarçada,porventura
umnovopretendente ao tronode Castela. Omaior número adoptou esta última
suposição,nãosóporqueasdecoraçõesevestuáriosdacenaerammaisbrilhantes
e apropriados do que antes da chegada do desconhecido,mas pelomaravilhoso
que esta opinião vinha prestar a tão inexplicável procedimento. Tomaram final-
menteapeitoemAndujarasoluçãodointrincadoproblema,porqueestavaclaro
queosupostopretendentedoquemenoscuravaeradeorganizarumaexpedição
contraseussupostosrivais:etantofizeramoscuriososquechegaramasaberpar-
te da verdade. Começaram a espalhar-se rumores vagos, e se eles traziam a sua
origemdealgumindiscretomensageiro,oudequalqueroutracausa,nãosabemos
nós,ocertoéqueobomfradenãocaiuemsisenãoquandoviuo fundo,àbolsa
queoabadelhederabemcheiadeOuro.Entãoéqueselembradecontinuarseu
caminhoecumpriramissãodeque foraencarregado;mas,pensandoumpouco,
viu quemais valia voltar ao convento, confessar sua culpa, expiá-la, se pudesse.
Eutinhaumasasasbrancas
-285-
Decidiu-se,poisomongebeneditinoadespirasluzidasvestesdeCavalheiro,etor-
nandoaenfiarohábitoecapuz,montounoseupalafrém,eei-loaí jádeixandoa
cidadedeAndujarcomgrandedescontentamentodeseusmaliciososhabitantes.
(AconclusãonopróximoNúmero)
TOHU-BOHU.
SONHOABFOMÉTICO,LÍRICO,
FANTÁSTICO&.
PELODOUTORINUTROQUEICHHEIT(LEIPZIG
EFLACHSENFINGEN)EstamosemPortugalnumaposiçãopoucovantajosaparaanossaliteratura:
nemtãoisoladosdosoutrosque,todosentradosemnósmesmosenasnossascoi-
sas,sejamosoriginaisàforçadenacionalidade;nemtantoemcontactocomomo-
vimento artístico e científico daEuropa, que a tempo e compasso, entremosnas
grandesharmoniasdocorogeraldecivilizaçãoquedetodaapartesealevanta.
Ouvimosfalardelongenoquevaipelomundo,ecomotafulosdeprovíncia
imitamosàscegas,exageramosquantonosdizemqueémodanacapital,semver-
mosprimeirosenosficabemamoda.Daquiasinceradevoçãocomque,primeiro,
copiámososItalianos,depoisosCastelhanos,eporfimosFranceses.
Hámaisdeumséculoqueesteúltimopredomínioreinaabsoluto.Reagiua
literaturadoNortesobreadoMeio-dia,oidealsobreoimitativo,ou,comovulgar-
mente sediz, o romântico sobreo clássico, – enós ficámos impassíveisnomeio
dessarevoluçãogeralliteráriaquecorriaomundo:AInglaterra,aAlemanha,todo
oNorteestavaeminsurreiçãocontraoimpériodoséculodeLuísXIV;enós,fiéis
aliados,permanecíamosfirmesemnossasubmissão.FinalmenteaprópriaFrança
foiinvadida,Racinedestituído,Boileaudestronado,jánãoexistianemofantasma
do império;enós, comoessascolónias longínquasdosRomanos,queobedeciam
aindaaoscésaresdeRomaquandojáAlaricoreinavaemRoma,nósreligiosamente
noscurvávamosaindadiantedasombradeumaautoridadequejánãoexistia.Para
quenoschegassearevoluçãofoinecessárioqueaprópriaFrançaserevolucionas-
secompletamente.Acadeiaélonga,nóstardoseremissosemreceberochoque;e
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-286-
jáeleestavaportantofrio,quebrado,ecomeçadaadesandaraimpulsãoromântica
emParis,quandoassuasprimeirasvibraçõesapenastocavamemLisboa.
Daíatéridículopareceàsvezesonossoentusiasmoporcertasinovaçõesa
quemjáviunasceremorrermuitasdessascoisasquetãonovasseafiguramaos
outros.
Andámosatrasados,essaéaverdade;andámosatrasadosemtudo.Conhe-
cemosLordByronporumadescoradatraduçãofrancesa;–Scottvem-nosaguado
emversõesparisienses;–deGoëthesabemosonome;deSchillertalveznemisso;
Herder é como se fosse um autor sânscrito; e desses Polacos, desses Húngaros,
dessesRussostãooriginais,cujapoesialírica,cujoteatro,cujosromanceshistóri-
cos são a feiçãomais característica da literatura contemporânea, desses nem os
nomessabemos.
Énecessáriotiraresteexclusivoàliteraturafrancesa,abrirasalfândegasli-
terárias ao comércio de todos os povos, entrar em relações directas com eles, e
representar,denossochefeedireitopróprio,nagrandefederaçãodarepúblicadas
Letras,enãocomovassalosdeoutrapotência,nãocomofeudatáriosdoSenhorio
estrangeiro,semexistênciaprópriaereconhecida.
Aliteraturaalemã,oseuestudo,étalvezagoraomelhoreomaisindicado
remédioparaomaldequeadoecemos.Asuaoriginalidadeexcêntricaserácontra-
venenoparaestaexcrescênciadeformaque,sejamclássicosouromânticossegun-
dootempo,todaanossapoesiaabsorvem,enãodeixamlugarparaaideia:éose-
nãofrancês,exageradopornós,comosempre,comoportodososprosélitossefaz.
Desafioqueemseisobras,edosmestres,publicadashávinteanosdoReno
paracámeapontemumaideia.Masforma,fórmula,panejado,bordaduras,enfeites,
dourados, tapeçarias, filigranas, passamanarias, bordados abertos, em seda, em
oiro,embrocado,empérolas,emfiló,emgomaelástica,emmissanga,emfioco,–
euseicáemquemais–oh!issoéabundanteecomum.
FábricadeParis,tafulariasdeParis–comoosbonitosdascrianças,eossa-
patosdasmulheresqueduramumdia, – comoas luvasdeParisqueduramum
baile!
ODoutoralemãoinutroquejurelaureado,cujonomeestáàfrentedestear-
tigo, levantouum trono, edeclarou reisdomundo intelectual, aos autoresdessa
grandecoisa,dessegérmendotalento,desseprimeirocentrododiamantedeen-
Eutinhaumasasasbrancas
-287-
genho,umaideia!GaloseCeltas,FrancesesePortugueses,nósandamospelames-
ma,temosmuitaspalavras;Gallicausidici;disseMarcial:osmaisfecundospalrei-
rosdomundo;dizSidoninoApolinário;faladoresagradáveis,dizofilósofoLocke;
mestresdaeloquêncialímpidaecorrente;dizS.Jerónimo,gallicisermonisnitoret
ubertas.Mas ideias!queédelas?Seacharemmaisde seisemDaguesseau, trinta
emBuffon,dezoudozeemAmadorArrais,mostrem-nasaoDoutorIchheitquelhe
ficamuitoobrigado.Ideias!Montesquieu,oPadreVieira,Descartes,eoPadreTeo-
doro,PedroNunesePascal,GilVicenteeCorneillerebuscaramquantohaviaentre
PariseLisboa.Depoisvieramosfaladoresquefalaramsó,masnãopensarampor
suaconta.Enãocuidemquefaçopoucocasodosfaladoresagradáveisebelos.De
talmelivreDeus!VoltaireeFontenelle,eBocageeFilintoeramdeliciosos instru-
mentosdemúsicaparaainteligência.
Pois estemeuDoutoralemão, este temsuas ideias; tem,nãohádúvida.O
seuespíritoécheiodebicoserecôncavosquecustaaentender,mashámuitaideia
pelomeio.Nãoéfáciloqueeuquisfazer,desembrulhá-las:masteimei,nãoseise
consegui.ODoutoréafortuna,gostadeasembuçaremvéusespessosecapricho-
sos,deascorar,assuasideias,detantacorfantástica;açoita-asnoarcomovapo-
resimpalpáveisquetodaaformatomamenenhumaperceptível…ohomeméos
meuspecados!Deumacoisaestáele,sobretodas,convencido:“Queaespéciehu-
manacaminhasempre,masquenassuasviagensoraencontraboashospedarias
ora infames baiucas de estalagens; que o progresso da civilização é eterno,mas
comooprogressodeumcavaloqueoracainoatoleiro,patinha,chafurda,chegaà
borda,saltaparaaareia,galopaaosol,depoisparanomeiodeumpradoepõe-sea
pastar,depoisvadeianumrio,sobeummonte,edefadigaemprazer,deprazerem
fadiga,masnuncaporcaminhodireito,tantoanda,tantoanda,queporfimchega!!”
“Nóssomosotalcavalinho,dizoDr.,epassamosnossosmausbocadosde
estradaquando,porexemplo,chegamosaofimdeumacivilização,aocabodeuma
época,equeremoscontinuaraviagem…agoraoverás:nãoháestrada,guiasnão
aparecem,aterraestátodaincultaebravia!Eagora?Tudoéconfusão;éoactual
TOHU-BOHU,ograndesonhodomeuDoutor, sobreoqualescreveudoisgordos
volumesembomalemãobemquadrado.Osegundotomoédesteano,vemcomas
folhinhashúmidasaindadaprensa;senocaminhooleuumoudoisrevisteiros,de
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-288-
Paris,seguroaoleitorportuguêsquedeláparacásomosnós,eueomeuamável
leitor,osprimeiros.
ODr.Joheitfundaoseusistemasobretodaacastadecoisa.Afirmaele,por
exemplo,queoespiritualismo,apoesiadaescolacristãtemporsímboloumagrave
personagembemconhecida,D.Quixote;equeomaterialismoprosaicodoséculo
18,oEnciclopedismotemporcontráriosímbolo,ofielescudeirodofidalgodaMan-
cha,SanchoPançadeproverbialmemória.DizoDr.queparaestabelecerapotên-
ciacavaleirescadeS.MajestadeD.Quixote,foramnecessáriosquinzeséculos;que
D.Quixotedestronadonodécimo-sextoséculo, temidodescaindoedegenerando
atéaoséculodécimo-nonoemqueestamos,equehoje finalmentesobeaotrono
SanchoPança I. PretendequeRabelais foi oprecursorde Sancho, e queonosso
amigoMiguelCervantes, cronista-mordosdoisheróis, previueprofetizouoque
hojesucede;istoé,aentronizaçãodefinitivadocorpocomonomedeSanchoI,ea
degradação excessivada alma sobo tipodeD.Quixote. Ideia extraordinária sem
dúvida,masquetemporventuramaisprofundezeverdadedoquepensarãolevia-
nos,equeoDr.desenvolveunumesquisitíssimoeinclassificáveldrama,cujotítulo
éoseguinte:
D.QUIXOTEFEITOPAJEM;ESANCHO-PANÇASEUAMO
Cenas aristofânicas quenão serão representadas nunca, senãopelaCompa-
nhiageraldeDeusNossoSenhor,nograndeTeatrodomundo;–comumprólogo.
N.B.–Valha-meDeusN.Senhor,meuDr.alemão,comohei-deeuintroduzir
oquetupõesnabocadosactoresdaCompanhiageralde?…Masenfimhei-defazê-
losejacomofor.Oraaquivaioprólogoqueéemversoshexâmetros,equevertio
melhorquepudenosnossoshendecassílabos.
Sejamindulgentescomopobretradutordeumapoesiairónicaeexaltada,e
portantodifícilenova.
PRÓLOGO
SaiAristófanesdecalçaspretas, luvasamarelas,chapéuredondo, lunetafin-
cadanoolhoesquerdo;olhaatentamenteparaaassembleiaqueécompostadeEu-
ropeusdetodasasidadesedetodasasespécies.
ARISTÓFANES
Bonsdias,meusSenhores.–Quantagente!
Eutinhaumasasasbrancas
-289-
VieramdasQuatropartesdouniverso!
AlemãesqueparecemquaseFrancos,
EosFranceses,Tudescos;sãomestiços
DeNormandoosIngleses;GaloeCelta.
FrancêsePortuguês,Espanhol,tudo,
Tudoésemi-Romano.Queembrulhada!
Deengenhosmilconfusomistifório,
Fracçõesinfindasdefragmentospodres!
Pó,cinzahumanaqueantemimrevolves
Teusremoinhosobscuros,indigestos,
Semcor,semfé,semvida,…euvossaúdo!
Compondesumsenadorespeitável!
Euquevosfalosou,…fuiumgrandehomem,
Grego,…Aristófanes–velhoAteniense
Quedetudozombou,nãopoupounada,
Eachorar,ria.–ObompovodeAtenas
Co’asuaLiberdade,emletrasgrandes,
Emsuasmóveiscadeiasesculpida,
Velhomanceboparvocomespírito,
Divertia-memuitoquandoovia
Coroardumcorreeiroocrâniovelho,
Avirtudepremiardumarameira,
Edestascaturrices,mil.–
SENHORES
Vóssoismelhoresvinte,trintavezes,
Soisdeusestodos,digo-oeu:oengenho
Entrevósécomum:queméqueonega?
Chovemiúdoemvóscomoasaraiva;
Nasce-vosaostrêsanos,nemprecisa
Desmamado,quelogovaicorrendo
Poressescampos.EemLisboa,ohisso!
Lisboaéumberçod’Hércules,umninho-
CheiodeMinistretes,Doutoretes,
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-290-
Dehomúnculoscapazesparatudo.
Aquipoisvenho,porprazereestima
(Tenhovagaragoraqueestoumorto)
Admirar-vos–talveztambémzurzir-vos,
QuemecriouparaissoopapáJove;
E,meusamigos,euhei-decumpri-lo:
Oofíciodátrabalhomasnãoseca.
Sevosdersono(eseassimforépena)
Euproverei;minhacoragemvelha
Aessasalmascaídasdaráânimo.
Ouvi,filhosdoséculodezanove
Acoragemnãoéovossoforte,
Gostaismaisdeempalhar,depôrremendos,
Eassimasconcessõesquepedeotempo,
Eoscompromissos–pérfidaciência!
Fraquezas,transacções,arranjos,voltas,
Meiozinhospequenosqueseescondem,
Atudoissochamaistalentosdaépoca!
Emtudo,tudo,meuscriançalhosvelhos
Aluzvosfere,aaudáciavosfazmedo,
Queaindaháseuprazernessearrepio?
Quantosei,voudizer-vo-lo,meuscaros.
Nãohei-depoupartolos,nemmarotos,
Nemsequerosquevóschamaisvirtuosos,
Bemsemsaboresmuitavez,–eoscaros
Mercadoresmaisreisquemuitosreis.
Hei-devernumespelhoDaguerreótipo
Osvãostalentosdequepondesloja
Osdramasd’embutidoseessesver-
Sosdetruz,suclopé,tris-tráscambados
Quemeparecemfeitosporaposta.
Talentotendesvós,coragemnada,
Eeuqueroestimular-vospelaraiva;
Eutinhaumasasasbrancas
-291-
Meiocruel,dizeis!–Soisguapasgentes!…
Fracalhões!–Eapassarporindulgentes!…
Neste tomde sarcasmovai continuando sempiedadenenhumaobomdo
Aristófanes;caiopanodofundoquerepresentaacidadedeAtenas,eapareceuma
vistadeestrada.OPúblico,aquemoDoutorconservouamáscaraburlescadoDe-
mosdeAristófanes,surdepeloburacodoponto,evemperguntaraoPrólogoqualé
porfimdecontasoassuntodapeça.Aristófanesresponde-lhe:-
(Conclui-senoseguinteNúmero)
__________
CrónicaTeatralEstetempodocarnavaléumtempotãoencantado,quechegandoele,ainda
as frontesmaissombrias,maischeiasdeausteraseveridade folgamde tomaral-
gumapartenaalegriaquedetodososrostosressumbra.Massetalacontececom
osqueadescuidadosaevolúvelmocidadealcunhadegebos,oqueserácomessa
mesmamocidade,queétodaesperanças.
Vereiso regozijoe alegriapassarematéà embriaguez,quandochegaeste
períododoCarnaval;todososdivertimentosparecempoucoseminguados;asfoli-
as,osbailes,asmáscaras,osteatros&.recebemàporfiaestrepitosassaudaçõesde
uminfinitoevariadonúmerodeconcorrentes;e todaestadiversidadedepassa-
temposéacolhidaedisfrutadaporgentetantaquepareceincrívelchegarparato-
dos;epormuitagentequeparecedeveriaestarcansadadosgracejos,dasburlas,e
daspeçasdetodoogénerocomquesecostumafestejaraapariçãodobemvindo
Entrudo;equeaindaestácomboasintençõesdeascontinuarporessanoitevelha.
TodaviaestaúltimaespécienãosetemdadononossoTeatroNormal,pois
queosseusfrequentadoreslhestêmguardadoumrespeitoreligioso,etêmaplau-
didocomodecostumeoPeregrino,Mr.Botte,amazela&.
Não deixa de nos parecer exemplar o procedimento dos espectadores do
TeatrodaRuadosCondes;confessaremosporémcomanossacostumadasinceri-
dade,queporventuranãoseriaforadopropósitoalgumapeçad’entrudooualgum
concertodecochichosparaversedavaalgumagraçaaumacomédia,quesubindoa
cenanasemanadoCarnavalnenhumagraça,nenhumchistepossuía,epareciaen-
fastiaratéosmesmosactoresquenelafiguravam:–taléacomédia=OPaudeCa-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-292-
beleira=queserepresentoupelaprimeiravezna5.ª-feira27deFevereiro.–Serí-
amosinjustossenãodisséssemosqueoSr.Sargedasfezquantopôdeporsetornar
engraçado;equeoSr.Vitorinocontinuaadistinguir-senopapeldeMr.Botte.A
LuísadeLignerolesfoimuitoaplaudida.
NoTeatrodeS.Carlospode-sedizerquesucedeuestasemanaocontrário
doquenotámosnoTeatroNormal,conquantosenãodessealirazãoalgumaplau-
sívelparaisso.Referimo-nos,comoédever,aosassobios,pateadas,cochichos&.,
comquesetornouaqueleteatronumcirco,ecomquesefizeramtantasdoresde
cabeçaadelicadasdamas,everdadeirosdilettanti,aquemamúsicadeBellinifana-
tiza,equereligiosamentequeriamvenerarnosPuritanos,ocopod’opera,doMaes-
tro,nadadistoaconteceu;eosassobioseoscochichoseasrepetidaspateadasfize-
ram,umacompanhamentodeironiainfernalàssublimesinspiraçõesdomúsicodo
coração.Todavia sejamos imparciais comodevemose costumamos;osPuritanos
foram assassinados, e seria justo que o público o desaprovasse ostensivamente;
porémnãonosaprazemessaspateadasatodoopropósito,queporinjustasmuitas
vezes,fazemqueassimsejamconsideradasasquesãodadascomjustiça.Também
nãosãomuitoprópriosdoTeatrodeS.Carlososassobiosecochichos,queainda
quenoCarnaval,muitopoucolugarpodemterquandoserepresentaumaobrade
méritotãorelevantecomoosPuritanos.–Delafalaremosproximamente.
--------------------
CURSOLITERÁRIO
DE
Mr.Magnin
(4.ºARTIGO)Vimos que no século 12 a emancipação intelectual e social era prestes a
operar-seao ladoeadespeitodoclero, cuja influência seperdiapor suas faltas,
por seusmesmosesforços emconservá-la.Omonopóliodas ciências edas artes
passavadasmãosdosacerdócioparaasdosseculares;e–coisasingular!–assim
comoaconteceracomospagãos,asdiligênciasdocleroderamnovoimpulsoàarte
rival,eapressaramparaosConfradesdapaixãoapossedoteatro.
Dasfestasburlescasoenterro,apartidaoudeposiçãodaaleluia,edasfestas
dosloucospassaraaIgrejaouteatrohieráticoparaosofíciosmisturados–mescla
Eutinhaumasasasbrancas
-293-
delatimelínguavulgar:destainovaçãoapenashaviaumpassoaodramahierático
emlínguamoderna,eelefoidado;eabreamarchaummistériodeSantaCatarina,
que representam seculares num mosteiro, e os confrades aparecem finalmente.
Estes actores singulares, cujaousadia e importância tãopoucoaté aquihão sido
apreciados,estesactoreseramimpelidoscontraainfluênciasacerdotalquedo6.º
ao12.ºséculodominavaomundopolíticoeaarte,porumaforçanovainesperada
invasora,quevisandoà conquistaedirecçãodomundo, se chamava–o terceiro
estado,povo!
Asprimeirasconfrariasforamestabelecidascomumfimpiedosoecaritati-
vo;reuniam-sesobainvocaçãodealgumsanto;eumadasmaisnotáveisporsua
imensainfluênciafoiadosfranc-maçons,oupedreiros-livres.Foiestasociedadea
quepropagouoestiloogívico tãodistintodaarquitecturadosistemabizantino:a
estaconfrariaédevidaatorreprodigiosadacatedraldeStrasbourg.
___________________
n.º14,de8deMarçode1840
JORNALDOCONSERVATÓRIOHavendo concluído a série dospareceresdas comissõesdoConservatório
acercadosdramasqueatéhojeporeletêmsidojulgados,ouqueforamretirados
por seusautores, começaremosa transcreverem diaospareceres sobreaqueles
dramasqueaoConservatório foremconcorrendo, logoqueasrespectivascomis-
sõesosapresentem,oquenosparecedegeralutilidade.Odramaqueultimamente
foiapresentadoéaqueledequepublicamosodocumentoquesesegue,equeainda
terádesersujeitoàdiscussãodojúriliterário.______________
PARECER
SOBREODRAMAOSCONJURADOS
OUPATRIOTISMOPORTUGUÊSAComissão,aquemfoiremetidaapeçadramáticaem5Actos,intitulada,Os
ConjuradosouoPatriotismoPortuguês,paradaroseuparecer,sobre,setemou
nãoméritosuficienteparaseradmitidaàsprovaspúblicas;ansiosapordescobrira
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-294-
desejadasuficiênciaqueoConservatório,querendoanimarosgéniosportugueses,
algumasvezesmenossevero,porventuratempermitidoatribuiràssuasprimeiras
produções;bemqueconsiderassenestaumprimeiroensaiodegéniocurioso;to-
daviazelandoocréditodoConservatório,eprocurandoautilidadeeprogressodo
nossoTeatro;achoudoseudever,exporsingelamenteojuízo,quedelafaz,reduzi-
do aos seguintes termos. Os Conjurados não oferecem interesse propriamente
dramático:suaacçãoéinteiramentedestituídadetodooenredo,nadaseencontra,
queembaraceoseuandamentooufaçaduvidardodesenlace.Oestiloéimpróprio;
alinguagempoucocorrectaefrouxaabundadegalicismos,eimpertinências–tem
facéciasinsulsaseridículas;quenãodevementrarnumassuntoemsimesmogra-
ve,nobreeheróico!aquenadaprendeaatençãodoleitor!…APeçaéumasinopse
nuaesimplesdomaissublimefeito;damaisfecundamatéria!!!!TemumActode
mais,o5.º.–No4.ºCena5.ª,háumgrosseiroinsultofeitoporD.CarlosàDuquesa
deMântuaquefereoscostumesdotempoeacortesaniaecavalheirismodaépoca:
–háuma fanfarronadadoArcebispodeBraga,quesóprovocaoriso.Nestascir-
cunstâncias apreendidas à simples leitura, a Comissão entende que a Peça –Os
ConjuradosouoPatriotismoPortuguês,comoestá,nãomereceseradmitidaàspro-
vaspúblicas: –que seuAutor, reconsiderando-a, cheiodas ideiasde tão sublime
empresa,aRestauraçãodePortugaldojugoestrangeiro,aindapoderádaràCena
umadignaprodução,queoacredite.
Lisboa,15deJaneirode1840.
IsacFerreiraPestana.AntónioAluizãoJervisd’Atouguia.JoséMariaGrande.
ADANÇAMÍMICA
III.
OCONDESTÁVELDECASTELA(ContinuandodoN.ºprecedente)
Quando o nosso bibliotecário chegou cerca dosmuros do convento, ficou
tomadodeadmiraçãoouvindooinsólitoruídoquepelosátriosegaleriasecoava.
Esse clamorosomurmúrio o furtou às preocupações emque vinha absorvido, as
quaiseramcertamentedegrandeinteresse,poisquedetodolhehaviamfeitoes-
queceroacolhimentopoucosatisfatórioquedeviaesperardoabade.Atépareceria
Eutinhaumasasasbrancas
-295-
quesenãodespertaramseusreceioscomaproximidadedolugarterrível,porque
omongedeud’esporasaocorcelsalvandoarápidogalopeasportadasdomosteiro.
Não tardoumuito que não tivesse a explicação desse rumor tumultuoso,
que tantodesarmonizava comoviverpacíficodosbeneditinos.Ograndepátio e
todasascavalariçasestavamtomadoscomsoberboscavalosricamenteajaezados;
pajensecriadoscorriamapressuradosdeumaeoutrapartedemandandoprovi-
sões e forragens; e nomeio um grupo de cavaleiros conversando comos frades
acercadapazdevidaquegozavamnoseuconvento,dascampinasdeliciosasqueo
circundavam, e dos brilhantes festejos que as cortes haviam feito ao novo rei. –
LogoquePoncedeLeãoapareceudeixaramosfradesacompanhiadoscavaleiros,
e vieramao seuencontro interrogando-o sobrea suaausênciaaomesmo tempo
quelhescorriapeloslábiosumsorrisodessesqueparecemdizerqueseestápre-
venido contra qualquer pretexto ou desculpa; mas Pedro tanto respondeu ao
amargor do sorriso, como à viveza das questões, e só disse arrebatadamente: –
Querofalaraopadreabade.
– Falar ao padre abade, agora que ele está com o condestável de Castela
nossosenhor?Óptimoensejoparaumajustificação…!
–Está como condestável? tantomelhor. Issodisseobibliotecário comar
tãopausadoefrioqueosmaisintrépidosseconfundiram;então,apeandodoseu
palafrém,seendereçouparaumgrupodemongesecavaleirosemcujocentroes-
tavaoabadeeonobrecondestável.
Oabadedosbeneditinos,aindaconvalescentedasuagravemoléstia,ecujo
rosto conservava ainda grandepalidez, oferecia o tipoomaisperfeitode severa
inflexibilidade, e cólera concentrada; quanto ao condestável, parecia ele esperar
comumacuriosidademisturadadecertoprazeremqueiriapararajustificaçãodo
infielmonge.Orestantedoauditóriodariacuriosoassuntoevariadoestudoaes-
tremadopintor:muitasdessaspaixõesquesenutremsobossantoshábitos,eque
apertaocordãomístico, sehaviamdesúbitodespertadocomomaior ímpetona
esperançadeumasentençaqueiapunirdesviosdeumsuperior.
–Ah!EisaíovossodeputadoaosestadosdeCastela,reverendoabade;disse
ocondestávelquandoumfradeanunciouachegadadePoncedeLeão.
–Éverdade,Senhor…esede testemunhadocastigo, jáquenão ignoraisa
culpa…Quantoavós,meufielmensageiro,acrescentouoabadelançandoumolhar
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-296-
terrívelaobibliotecárioquepermaneciacomsemblantesereno,quantoavós,não
tendesmaisdoqueacusar-vosdospróprioscrimes…dando-nospartedasaventu-
ras…
–Reverendíssimo…
–Jáseitudo…EstivestesemAndujar…Dispendestesonossoourocommu-
lheresperdidasdealmaecorpo…Trocastesossantoshábitospelasprofanasves-
tesdeCavaleiro…Ébriodeilícitosprazeresesquecestesnossamissãoparaogran-
decondestável…!Alémdisto…
–Reverendíssimoabade…Souculpadoporhaveresquecidoosmeusdeve-
res,porhaverpascidomeusolhoscomdefesosespectáculos…masjulgoteracha-
doummeiodecompraromeuperdão.Permiti-medepositaravossospésomeu
resgate.
Jáoabadeestendiaamãoparaimporsilêncioaoréu,eisqueocondestável
tomouapalavraintercedendoporele:
–Nãocondeneissemouvir,padreabade.
–Poisbem;podeisfalar.
Entãocomeçouobibliotecárioacontarasdesventurasdesuaexistência,a
vidaquenoconventovivia,asalucinaçõespoéticasepurasqueotinhamembalado,
finalmenteoquenóssabemosdosprazerescoreográficosdeAndujar;etudocon-
fessado com aquele sentimento de compunção que abona o arrependimento de
cometidoserros:quandoporémchegouarelataroseuregressoaoconvento,er-
gueua frontecomaltivez,deumaisvigoràs falas,osolhosse lheanimaramcom
desusadofulgor,epareceutomar-sedenobreorgulhoporlheserdadoexprimir,
peranteocondestávelenapresençadetodaacomunidade,coisas,queporventura
teriamvirtudebastanteparaqueopurificassemdesuasculpas.
–…EstavaaindaemAndujar,continuouofrade,quandoaomeuespíritose
afigurouumaestranhavisão.Parecia-me irpassandoporumaregiãocujoshabi-
tantesnão tinham língua comque articulassem, nem sons comque se exprimis-
sem;etodososdessapopulaçãosecompreendiam,eospensamentosdeunsaou-
tros se transmitiampormeiode gestos, atitudes,movimentos, finalmente coma
mímicadosdançarinos.Acordeipensativodestesonhosingular,esóquandoiana
estradaqueconduzdeAndujaraoconventoéquedenovoamesmavisãoseapo-
deroudetodoomeuser,epredominouemminhaalma,aomesmotempoqueuma
Eutinhaumasasasbrancas
-297-
vozinterior,poderosacomoadainspiração,ouantescomoavozdeDeus,mebra-
dava:–Ergue-tePedroPonce,queahumanidadeteestáchamando;ergue-te,evê
quetecercaumpovoquenãotempalavrasquefale,nemouvidosqueouçam,mas
dotadodeexpressiva fisionomia, edemãosebraçosemovimento; lembra-teda
mímica, e vê se acaso não poderia esta fazê-los compreender! – São os Surdos-
mudos,exclameieutodoalheado;graças,ómeuDeus,pormehaverdestransviado
lançando-me numa vereda de abrolhos para entre eles colher a flor cujo celeste
aromapodechamaràexistênciatantosdesgraçados!
Todooauditórioestavacomovido;ocondestáveleoabadeolhavamumpa-
raooutrocomoabsortos;os cavaleirospareciamadmirados;os frades, aindaos
maisrígidosesqueciamaseveridade;ePedroPoncederramavaumolharsatisfeito
eafortunadoem tornode todaaassembleia.Foioabadeoprimeiroa rompero
silêncio:
–Senãofosseumsonho,certo,meufilho,quemereceríeisovossoperdão.
–Masénossaopiniãoquepodesermaisqueummerosonho.
Animadopelaspalavrasdocondestáveledoabade,ummancebovestidode
preto, com uma cadeia de ouro ao pescoço donde pendia uma escrivaninha do
mesmometal,etrazendoàcinturaumaricabolsadeEsmoler,finalmenteosecre-
táriodocondestável,JuanPabloBonet,exclamouolvidandoinclinar-se,porémnão
seesquecendodetirardacabeçaabordadagorradeveludoquetrazia inclinada
sobreoombrodireito:
–Senhorcondestável,evósreverendoabade,ficaicertosdequeestadesco-
bertavemdeDeus, tantoelaé importanteebela:asseguro-vosquedaráhonraa
PedroPoncedeLeãoeaoreinodeCastela.
–Podeisacreditaromeusecretárioqueéhomemdoutocomohápoucos,
volveuocondestávelsorrindodesatisfação;apostoeuqueeraelecapazdeescre-
verumlivroaesserespeito.
–Hei-deescrevê-lo,Senhor…SePoncedeLeãoopermitir.
–MasPoncedeLeãoaindanão foiperdoado,acudiuobibliotecário triun-
fantee…
– Estais perdoado,meu filho; vosso génio vos absolve, respondeu solene-
menteoabadeerguendo-sedamarchetadaebemesculpidacadeira.
–Absolvido,absolvido!repetiramtodosaumavoz.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-298-
NamanhãseguinteerajáprestesapartirocondestáveldeCastela,quando
todaacomunidadeteveordemdeachar-sereunidanocorodaigreja.Todaapopu-
laçãodoconventosedeupressaemobedecer,esucessivamenteseviamgruposde
mongesdirigindo-separaoindicadolocal.OSecretárioPablocaminhavaaparde
PedroPonce,eambosiampraticandoacercadoproveitosolivroquetantodeseja-
vamcomeçar:avozdocondestávellhescortouaconversação.
–El-Reinossosenhormedisse:Condestável,paraalémdeGranadaháini-
migosqueousamerguera fronte,correiahumilhá-losevencê-los.Comopassar-
despeloconventodosbeneditinos,aípedireishospitalidade,julgareisdadisciplina,
esabereisseoabade,cujaadesãomeéconhecida,esqueceuosseusdeveresdei-
xandodecompareceremnossacapital,ousecontinuaamereceranossaestima.
Condestável,seachardesquenãomeenganei,mostrai-vosregiamentecortêspara
comvossovenerávelhóspede…Eeisaqui,senhorabade,evóstodosquemeouvis,
comoonossoreientendeacortesia…Padreabade,porvossasvirtudesvosécon-
feridootítulodearcebispodeGranada…Evós,PedroPoncedeLeão,El-Reivosdá,
comoaomaisdigno,adignidadeetítulodeabadedestemosteiro.
Curvaram-se todasas cabeças,dobraram-se todosos joelhos, eumsolene
TeDeumdeacçãodegraçasfoilogocantado.Passadasalgumashoras,ocondestá-
veleseubrilhanteséquitoatravessavamacidadedeGranada.
--------*--------
OANODE1839.
BOSQUEJOLITERARIO-DRAMÁTICOLápassouoanode1839!…–seja-lheleveaamarguradacensuradonunca
satisfeitocinismo;sejam-lhegratasasrecordaçõesdohomemfilantropo!–Quando
novaledeJosaphattroaroúltimorebôodessapesadacampadeumséculo,olhos
desaudadeeagradecimentosealongarãoatéesseanode39,eumporvirilustrado
ehumanitáriodiráapontandoparaele:–Ei-lo,umdosLutadorespoderososque
opôsoespíritoàmatéria,a féaocepticismo,oamorà indiferençaegoísta,àpre-
sunçosaignorânciaedesconfiadaciência!…
Somosnósosfilhosdestaterradeprodígiosemfé,eamor,ehumanidade,e
ciência,nósquetantonoselevámos,equetãobaixohavemoscaído;somosnósa
quemprincipalmentecumpresaudarcomgratidãoesseanode39.–Cânticosde
ardenteféedulcíssimaesperançaescutouoTejocomestremecimentoegozo,re-
Eutinhaumasasasbrancas
-299-
petiu oDouro comprazer e assombro: – eram inspiraçõesdeumCRENTE!E os
hinos celestes dos dois bardos daBretanha e do Sena acharam emPortugal eco
melodioso,acordescondignos,etambémcorações,queseembeberamdasrevela-
dasharmonias,comoaterraseembebedoorvalhorefrigerantequeocéulheenvia.
Há homens tão generosamente fadados pela sorte, que lhes foi concedido
paraquasetodasasciênciasouliteraturasumtalentocéreoeflexível,umaabun-
danteevigorosaseiva;comoaquelasárvoresquenos jardinssevêemelevaraos
céus amajestosa cúpula, enquanto com seus bastos ramos laterais sobremusgo
formamdeliciosassombrasemqueserecreiaodeleite.–Masessaárvore,quese
prestaatãodesvairadosusosambicionandoaomesmotempocampearnoéter,e
sombrearaterra,correeminenteriscodeamareleceredefinhar,quando,seunida
buscasseocéu,vê-la-iasirsubindoesubindo!…
Houveumhomem,quenãoreceoumisturarinspiraçõescelestes,queDeus
lheprodigalizoucomamor,aosterrenosemudáveisafanosdapolítica;masDeus
foimisericordioso,aárvoreaindanãoamareleceu,nemdefinhou;eessehomem,
sentadonacuruledoslegisladores,disse:–Osevangelistasdailustração,osfrutos
doespíritoedopensamentodevemobtervossaparticularsolicitude…!–Masdis-
se-o comumentusiasmo, ciência, epoesia,que sãodele; e acrescentou commui
nobrefranqueza:Tomaiparamodeloessanação–invejadepovos,eliçãodereis,
que, reformando,constituindoeorganizandoquerchegarà liberdadepolíticapela
civil,caminhandoaograndedesiderandumdasnaçõespelaanálisetranquilaecerta,
emvezdasíntesedogmática,ruidosa,etãoenganadora!…–Edepoisdistoumvasto
projectodeleidaPropriedadeLiteráriafoipropostopelovatelegislador;eelefoi
vitoriadopor aqueles a quemDeus disparou o verdadeiro conhecimento do que
convémaospovos,pelosqueamamacivilizaçãobaseadanaciência;esteiadaesta
nos santos deveres, que ligamos homens entre si, e comDeus; – e enquanto se
franziamsorrisosdeincredulidadeoumofa,aquelesseolharamcomprazereas-
sentimento;porquefundavamviçosasesperançasnosengenhos,queseviamdes-
pontarnosololiterário;porquealgunsdeles,aindanãohaviamuitotempo,tinham
erguidonaquelerecintoumavoz forteeconscienciosapara lembrarumhomem,
quepartilharaadesventuraegéniodopoetadeEsmirna.
Essehomemfoilaureado,foicobertodemerecidosencómioselouvores!–
afortunados louvores,quesemelhamaosperfumes,queseelevamemcultoàdi-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-300-
vindade!E essehomemeradignodeles;porquea literaturaportuguesa se tinha
esmaltadodesuasobrasexcelentes;eoanode39viucadaumdeseusmeseses-
treladoporumaproduçãodondecintilavaoestro,aopulênciadasideiasedoesti-
lo,osraptosdeentusiasmoeamordapátria!Eessasproduçõestêmumcarácter
dramático,queaindamaisasanima,elhesdárealce:–grandiososesoberbosqua-
drosdatãograndiosaealtivahistóriadosportugueses!
Eporqueacenaadesprezaovate?Porquelhenegavivoseemactividade
esses heróis, que já tão possuído descreveu, esses heróis enérgicos, indomáveis,
aspérrimos,echeiosdeamor,dereligião,epatriotismo?…–Volveuesseanode39,
evolveramsobreeleoesquecimentooutrospoetas,quejátinhamcolhidobastos
loirosnaarenadramática;eoscélebresautoresdoAUTOedoFRONTEIROfecha-
ram as avaras portas no ano de 39; fecharam-nas sobre as inspirações que sem
cessarosrodeiam!
Énaverdadeparalamentarodescaroávelolvidoemquetêmdeixadoace-
nanossospoetas!–Seráindiferentíssimo?Seráqueremontadaaimaginaçãopara
os céus, eafeito seupensamentoamistériosdepoesiaquemal cabe revelaraos
profanos,julguemquederrogamdetantaalteza,dandoparaoteatro–essemundo
emminiatura,quadrosdemoralpatriotismoevirtudeadereçadosdealgumadessa
poesiaqueDeus lheoutorgoucomograçae comoparaembelezaras lições, com
queopovosedeleita,instrui,moraliza,eengradece?
Nenhumaproduçãoteatralfrutodospoetasaquealudimos,viuoanode39,
apesardejáterem,doisdeentreeles,enriquecidoanteriormenteanossacena–e
oinsignepoeta,umdoscorifeusdenossaliteratura,oilustreautordosuavíssimo
Passeio,dacavalheirosaeternaBradamentedoAragão,doinfaustociúmeeterrí-
veisvingançasdoEspectro,dos lhanosegenerososcostumesdosSuevos,oautor
detantaspoesiasdesubidomérito,porquetemeleabandonadooteatro,porque
depreciaráaCena?…
Etodaviahouvequemousasseencetaradifícilcarreiradramática,eomun-
doliterárioviucomalegriadespontaremnovosengenhosatéentãodesconhecidos
equaseaomesmotempoflorescerem,bemcomoaplantaacaulequeescondidana
terraerguederepenteamuitoesbeltahastealardeandoembreveas lustrosase
coradaspétalas:–essesengenhosparecequeforamcomorepreensãodeesqueci-
mento,ou comosinaldequeaprovidêncianãoolvidavaa civilizaçãodosportu-
Eutinhaumasasasbrancas
-301-
gueses.–Oanode39vêsucederem-secompequenasinterrupçõesproduçõesori-
ginais demérito indisputável, conquanto sejam quase todos primeiros frutos de
aindaverdesanos. –FoioEmparedadooprimeirodrama,queousoudenodada-
menteafrontardoistribunaisterríveis,oseruditoseopúblico,oConservatórioeo
teatro; a suaardidez foivitoriada, e seguiu-seodramaosDoisRenegados, cujos
aplausosaindareboamnoTeatroNormal,ecujoautor,pormuitojovemeprecoce,
dáejárealizagrandesesperanças.
D.SisnandoCondedeCoimbraéumdramaqueencerramuitasbelezas:–O
CamõesdoRossioéumaComédiaanedóticatodacheiadejovialidadeebemsus-
tentado interesse. –Muitasmaisproduçõesdramáticas seostentaramnoanode
39:–OCondeAndeiro,AlmançorAben-Afan,Afonso3.º&.foramaplaudidasnou-
trosteatros;ealémdetodasestasacrescemoutrasmuitas,queapesardenãote-
remsidotãoafortunadas,comoasprecedentes,nemporissodeixamdetermere-
cimento.
Vede pois qual tem sido omovimento dramático do ano de 1839: vede e
admirai!porqueemverdadecomparadocomosdoisantecedentesanos,comode
séculos,éelepasmoso.–Lembrem-seporémosquepossuemumaalmagenerosae
grata,lembrem-sequeàssociedadesdramáticas,àsescolas,aosprémios,finalmen-
teatantaanimaçãoàsletraseaosartistassedeveemgrandeparteodesenvolvi-
mentoliterario-dramático,quedistingueoanode39;equandohouveremdelhe
tributarsaudações,nãoasqueiramnegartambémàqueleshomensquesuperando
trabalhosedificuldadesincalculáveis,têmformadoeprocuramfazermedraressas
profícuasSociedades.
Tributodemodificaçõesoumudançaslevacadaanoatodasasliteraturas,a
todososconhecimentoshumanos:ergue-seaesperançaparaumquandojáoutro
feneceemorre;desenrola-se-lhehorizonte,largoepurooucontrai-oocéuemre-
acçãonebulosa:etodososconhecimentos,cujogérmenexistenopensamentodo
homem,seguemaleiuniversal–primavera,estio,outono,inverno!–Masvoltaráa
primavera,easoutrasestaçõesirãoprogredindonarotaçãoincansável!
A literaturadramáticachamouShakespeareespelhodacivilização,porque
essalhereflectetodasasformas,todososcaprichos.Reagindo,ouobedecendo;vê-
la-ásformularumaeducação,formarumensino;–ouservirdeelementoàhistória
conservando,ostiposcontemporâneos,assimcomoapinturaconservafisionomi-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-302-
as. –Foramessesos temposdeFerreiraeGilVicente,deCorneilleeMolière,de
Calderón e Shakespeare! E quantas coisas se têm passado desde então no vasto
território da literatura dramática! – As bandeiras dos criadores do teatro foram
quaseabandonadas,renegaram-seantigospreceitos,fizeram-serepetidosensaios,
esabeDeuscomqueêxito!…MasseosShakespeareeCalderónaindanãotêmsido
igualados,seCorneilleeMolièrenãotêmsofridodesvalimento;nemporissonos
serápermitidodizerqueacarreiradramáticanãotenhasidoinfatigavelmentese-
guida, e que a difícil e escabrosíssima vereda, que conduz à perfeição não tinha
sidotrilhadacompersistência,eatécomtenacidade:–istoporémsomentesucedia
fora de Portugal; porque a pátria de Ferreira e Gil Vicente vestiu com o escuro
mantodoesquecimentoesseslumesdanossaartedramática,eporespaçodedois
séculosnadalegouaosvindourosnadaproduziuquefossebom,durável,outípico:
–osautoresestrangeirosdesregraram-se,porquemaisconsultaramaimaginação,
queoscostumeseoshomens;osnossosnãoconsultaramnemcostumes,nemho-
mens,nemimaginação!
Inverno tempestuoso foi para nós esse longoperíodode dois séculos! In-
vernoaçoitadodecontrapostoseurosassoladores;horridamentealumiadopelos
coriscos,abaladopelorebombodostrovões…eaprimaveraquealgumavezselhe
seguiueradébil e comocansadade combatesedepoisduravabempouco, e era
mágoaverodesfolhardosfrondososbosques,eaesterilidadedeumsolocujosos-
sego imitava o dos túmulos. – Durante esses dois séculos puderam-se bastante-
mente,deceparam-sedinastias, rojaramcadeiasosportugueses;eparamantera
independênciadapátriaforamsemnúmeroossangrentoscombates,eosestragos
daguerraseprolongaramporquaseseislustros.Eogermendacorrupção,queo
cativeiro nunca deixa de insinuar, fez que brotassem as discórdias civis, e foi-se
perdendooesperançosoimpulso,quetinhadadoaosânimosarestauraçãodapá-
tria,eaindependênciaeforçaeoriginalidadeemtodasascoisasfoidesaparecen-
dopoucoapoucodentrenós:daquiveioemgrandeparteaincúria,esquecimento,
edesamorcomquenessalongaépocaforamtratadosemPortugaltodososobjec-
tosliterários.Vivaserecentesnamemóriadetodosestãoaindaaslembrançasdo
quesetempassado,desdequeumsegundojugonosesteveapique,desdequeas
violentas comoções políticas abalaram e quase submergiram o nosso remanso e
prosperidade.Ociososeriacomemorá-las,selhenãouníssemosaconsoladorare-
Eutinhaumasasasbrancas
-303-
flexãodequeassimcomodeespantososetremendosfenómenosmeteorológicos
resultamuitavezafertilidade,esalubrepurezadosares,assimtambémdeentre
oshorroresedesgraçasdascomoçõespolíticassurgemuitasvezesumarecompo-
siçãosocialquetrazconsigoaprosperidade,eventura.Asrevoluções.
Malheureuxquilesfait,heureuxquilesherite!…
Nãoéporémestaépocasomentedereconstruçãosocial,masdereconstru-
ção literária;eporventuraapoderemosconsiderarcomoumaépocadesegundo
renascimentomaugradoaessesespíritoscépticosedesencantados,quedetudo,
quantotendeamelhorarahumanidade,parecemduvidar:Nãosomosnósporcer-
todessenúmero,econtamosfiadoresparaasnossasesperanças,todosessesho-
mensquetêmpostopeitoànossaregeneraçãoliterária;oujávalentescampeões,
experimentados e afeitos aos lauréis e vitórias nas lides científicas; ou também
soldadosnóveis,mascheiosdeardimentosecoragem,quetomandopormodeloos
primeiros,prometemjágrandestriunfosnoporvir.
Foioanode39,umdosprimeiroselosdessacadeiaderegeneração;enele
se foram já começandoa colher frutosdenossasbem fundadas esperanças.Não
afundou entre nós grandes raízes a exageração romântica; porém há um certo
tempoéquesevainotandoumaverdadeirareacçãocontraosistemaexagerado;
reacçãoquejácomeçaraemFrançahámaisdetrêsanos,epelonossocostumado
atrasoaindaagoraprincipiaamanifestar-seemPortugal:–oxaláquedomesmo
modoosnossosartistascomecemareconhecerqueosgritosrigorosos,eascon-
torçõesdevemtambémirdeixandodeseravozdodrama,oudatragédia.
Quantoàmúsicanãotemsidotãoditosaanossacolheita;todavianoanode
39 vimos uma ópera original, que, ainda que não isenta de defeitos, nemmuito
cheiad’estro,temmuitacoisaboa;tendo,paranós,oméritoparticulardesedesvi-
ardatãoseguidaemacaqueadaescolaRossiniana:–taléaInêsdeCastro.–Artis-
tasconhecemosnósdemuitoméritonesseramotãointeressanteeesperamos,que
nãoquererãoparaofuturosertaxadosdeárvoresinfrutíferasdetãopreciosofru-
to.Lembrem-secontudoqueamúsicaéumpoderosíssimoauxiliardacena,eque
portanto deve ser dramática; que amúsica deve deixar-se desses caprichos que
divertemum instante, desses fósforos que brilham, e logo desaparecem; e final-
mentequeamúsicadeveprocuraressaaliançadamelodiaeharmonia,queconsti-
tuiasábiaunidade,cujosegredoosAlemãespossuem.Édifícilchegaratanto;os
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-304-
francesesapesardeseusesforçosaindalánãochegaram;todaviaassublimespar-
ticipaçõesdeBeethovensãoaliouvidascomamaisfervorosareligião,sãoestuda-
dascomamaiorconstância;eultimamenteMr.Berliozsetemtornadomuidistinto,
ecélebreporsuasmusicaisproduções.Estudaipoisemeditaiprofundamenteos
Alemães,eentãoamelodiaemvezdeserumacombinaçãodoespíritoseráuma
emanaçãodocoraçãoeaharmoniaanimarácomsuavitalidadeestabelasucessão
desonscujotodoformaalgumasvezesomaisbelodetodosospoemas.
Eseoteatroàvistadistomereceaatençãodoshomenssérios,doshomens
detrabalho,detodosfinalmente;seoteatropodeinteressartodaagente,poisque
sevaledetodasasartes,enãosomentetememvistaodivertimento,masainstru-
ção,invadindoahistóriaeaactualidade,seoteatroétãoútileinteressante;vitori-
ai,ebendizeioanode39,porqueesseanofoigrandeparaonossoteatro.
______________
QualidadeseDeveresdo
Comediante
(6.ºARTIGO)TratámosultimamentedaDeclamaçãoteatraleofizemoscomtodaagene-
ralidade,porqueconsiderámosqueseriaimensaavariedadedeinflexõesdequea
voz,humanaésusceptível,poisquetambémsãoinumeráveisossentimentosque
lhecumpreproduzircomverdadeejustiça;assimcomoQuintilianoapropósitodo
Oradordizquenemsóaospreceitosdeveráeleatender,aconselhando-setambém
comoseunatural;pensámosigualmentequeseriaprejudicialdaraocomediante
preceitosincertosouenganadores;oartistadeverádiversificarasinflexõesacon-
selhando-secomoseuprópriosentimento.
Overdadeirotomachá-lo-emosseaprofundarmosnanossaalma;maspara
lheexprimirossentimentosnãoésóapalavraomeiodequeadeclamaçãoseser-
ve:anaturezadeuaosolhosexpressões,quefossemintérpretesverdadeiros,con-
cedeu-nosogestoquetãoimportanteéparaumaboadeclamação.
Muitosprincípiosdeixavamdeaprofundar-se talvezporumaúnica razão,
qualasdeosconsideraremgeralmenteconhecidosouobservados.Estánestecaso
a teoriadogesto,por issomesmoque julgamtodospossuiraprática: talvezseja
estaa razãoporquealguns tratados sobreaartedocomedianteedodançarino
Eutinhaumasasasbrancas
-305-
apenas indicamalgumas atitudes. Entretanto os preceitos não têm feitomais do
queconsagrarumsistema,umamaneiraadoptadaporunscertos,enquantoqueo
gestopropriamentedito,éaverdadeiraexpressãodanatureza:enãosótemdeser
compreendidopelosiniciadosnosmistériosdaarte,mastambémporessaimensa
classedeignorantes,quenãojulgamsenãopelosolhoseimpressõesqueosmes-
moslhescomunicam.
___________________
CURSOLITERÁRIO
DE
Mr.Magnin
(5.ºARTIGO)Passaraoteatrodopoderfeudalparaomunicipal;oudocleroedosnobres
para as corporações ou confrarias: – vê a igreja estas congregações seculares, e
supondocomrazão,queseriasuplantada,tentadefender-se,masnãotêmefeitos
interditos. As representações dos confrades tendo consistido primeiramente em
jogosmilitaresnaAlemanha,e festasnacionaisna Itália, foramdepoisnaFrança
espectáculosverdadeiramentedramáticos;doque restamcuriososmonumentos.
O primeiro é um mistério da ressurreição do salvador escrito em verso anglo-
normãodoséculo12,ecujoprólogooferece,comoseverá,importantesadvertên-
ciassobreadecoração,emaisacessóriosdapeça.“Antesde recitara santa ressurreição (ditooprólogo)devemosdisporos
lugareseestânciasconvenientes.–Haveráumacadeiaparaospresos,umcrucifixo,
umtúmulo.Dumladodeveestaroinferno,eascasasdooutro;eocéueestrelas
estarãodesobre.PrimeiramenteviráPilatosacompanhadodeseisousetecavalei-
ros,edosseusvassalos.Caifásaparecerádooutrolado,ecomeleanaçãojudia,e
depoisseguir-se-áJosédeArimateia.EmquartolugarviráNicodemos,eosdiscí-
pulos,easMarias.OmeiodoteatrorepresentaráGalileiaeacidadedeEmaús,on-
deCristo recebeuhospitalidade; e logoque reinarumsilêncio completo, Joséde
ArimateiairáaPilatoselhedirá…&.”
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-306-
--------*--------
CrónicaTeatralPoucotemosadizerdosdivertimentosteatraisdapassadasemana:noTea-
trodeS.Carlosvieramosbailesdemáscarasusurpar-nosacríticadetrêsrepre-
sentações,enoTeatroNormalderam-sepeçasquejánãopodemoferecerassunto
para novas Crónicas achando-se todasmui suficientemente discutidas; demais a
maisveioaQuaresmasem transiçãoalguma trocar-nosemcinzas os folgaresdo
entrudoefecharcomseveramãoasportasdosnossosteatros;aindabemquenão
foipormuitotempoejáontemnoTeatroNormaltivemosrepresentação,edeum
dramaqueopúblicoesperavacomavidez,equenosdarámatériaparaumartigo
especialquandod’espaçoohouvermosmeditado.
Aosbailesmascaradosconcorreram,comodecostumemilharesdepessoas;
oscamarotesalugaram-setodoscomgrandeantecedência,edizem-nosqueonú-
merodosbilhetesvendidosemcadanoitesubiua1800.
AoTeatroNormal tambémconcorreugrandenúmerodeespectadoresem
cadaumadasnoitesdeCarnaval,especialmentenaúltima,emquevoltouàcenao
CabritoMontês,eserepetiramasduascomédiasMr.BotteeCamõesdoRossio;em
todassemostraramosactoresmuitochistosos,animadoscomoestavamdoespíri-
tofoliãoquetantoseapossadetodosnessabrevequadrade jocososmisteres.O
mesmonãoaconteceunanoitedeSegunda-feira,equemteveaculpafoionosso
amigoHariadãoBarba-roxa,queveiofazerchorarquemsóqueriarir,assassinan-
doobomhumordosartistasedosespectadores;esteschoraram,aquelescomove-
ram-se,eporfimnarepresentaçãodafarsaOsDoidospormaisesforçosqueem-
pregarampormostrar-seengraçados,poucoounadaconseguiram.Cadacoisatem
seutempo,etãodeslocadaforaarepresentaçãodeumdramasérioemdiadeen-
trudo,comoadeumentremêsnaSemanaSanta.
Ontemfoipelaprimeiravezàcenaodramaoriginalportuguês,em5actos,
emprosa, intituladoOhomemdamáscaranegra.Nãoseriadecircunspectosemi-
tirmoscircunstanciadojuízoacercadeumapeçaqueapenasanossaatençãopode
abrangernestaprimeirarepresentação.Pareceu-nosqueodramanãochegaatero
merecimentodeseuirmãomaisvelho–OsDoisRenegados,conquantoselheno-
temmuitos lancesverdadeiramentedramáticos,edegrandeefeitocénico:– tem
suasimperfeiçõeseexabundâncias,talvezabusodotalentoquerevelamasprodu-
Eutinhaumasasasbrancas
-307-
çõescomqueoA.temenriquecidoacenaportuguesa.Foiodramaacolhidocom
grandeseclamorososaplausos,oautorfoichamadoaopalcocéniconofimdos3.º
e5.ºactos. –MereceuashonrasdodesempenhoaSenhoraEmília, queespecial-
mentenascenasmudas,ena final,mostrounatureza,sensibilidade,ecompreen-
sãodoseudifícilpapel.Obeneficiado(oSr.Epifânio)representoubem,emereceu
osaplausosquelheprodigalizaramnomonólogodo5.ºacto,ondesoubeprovocar
aslágrimas;oSr.Rosadistinguiu-senopapeldeAntónioBaracho,osdemaisacto-
res harmonizaram comos primeiros. A Senhora Emília deverá tratar de corrigir
maisapronunciação.–Voltaremosaesteassunto.–Esquecia-nosmencionaraóp-
tima cena do 3.º acto, pintada pelos SenhoresRambois e Cinatti; produz grande
efeitoenãodesmerecedasmelhoresquesetêmvistonoTeatrodeS.Carlos.
Concluiremos,dandoasseguintesnotíciasdramáticasextraídasdo1.ºNú-
merodaCRÓNICALITERÁRIA,jornaldaNovaAcademiaDramáticadeCoimbra:
AsPeças,quetêmsidorepresentadasnoTeatrodaN.A.D.desdeasuadefi-
nitivainstalação,sãoasseguintes:
1.ºEspectáculo,em24de Junhode1839.–ANÓDOADESANGUE,drama
em3actos,eemprosa,vertidodofrancês.–ABODAEMTRAJESDEFRASQUEIRA,
comédiaoriginal,emdoisactos,eemprosaporumSócio.
II.EmNovembro.–ZULMIRA,dramaoriginalem3actos,eemversoporA.
Xavier.–OBERNARDONALUA,farsa,vertidadofrancês.
III.EmNovembro.–ALEITORA,drama,em3actos,eemprosa,vertidodo
francês.–ManoelMendes,farsaoriginal,porA.Xavier.
IV.EmDezembro.–SegundarepresentaçãodaLEITORA.–ASLUVASAMA-
RELAS,dramaemumacto,eemprosa,vertidodofrancês.
V.EmDezembro.–SegundarepresentaçãodaNÓDOADESANGUE.–OAVI-
SOÀGAZETA,farsa.
VI.EmJaneiro.–ASONÂMBULA,dramaem2actos,eemprosa,vertidodo
francês.–OINCÓGNITO,dramaemumacto,eemprosa.
VII.EmJaneiro–TerceirarepresentaçãodaLEITORA.–OSDESAFIOS,dra-
maem2actos,eemprosa,vertidodofrancês.
VIII.Em12deFevereirode1840.–UMDUELONOTEMPODERICHELIEU,
dramaem3actos,eemprosadeM.M.Lockroy,eEdmondBadon,vertidodofran-
cêspelodignomembrodoInstitutoDramático,oSr.JoãoDuarteLisboaSerra.–OS
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-308-
PRIMEIROSAMORES,dramaemumacto,eemprosa,deScribe,vertidodofrancês
porumsócio.
__________
TeatrodeS.CarlosMarço8=Domingo=IránovamenteàCenaaópera=Fausta=Dança=O
Triunfod’Amor.
Segunda-feira9=Benefíciodo1.ºTenorDomingosConti=Ópera=Fausta=
Dança=OTriunfod’Amor.
Terça-feira10=Ópera=Fausta=Dança=OsPortuguesesemTânger.
Quinta-feira12=Omesmoespectáculo.
N.B.DuranteaQuaresmaserãoosdiasderepresentaçãoDomingos,Terças
eQuintas-feiras.
AVISOOsSenhoresAssinantesquetiveremdeixadodereceberalgumNúmeroper-
tencenteao1.ºtrimestredoJornaldoConservatórioqueiramparticipá-loaoEdi-
tordomesmo,oudeixarseusnomesnaLojadaViúvaHenriquesRuaAugustaN.º1
comadeclaraçãodosexemplaresquelhesfaltam,osquaisserãologoentregues.
__________________________
n.º15,de15deMarçode1840.
BIOGRAFIA
JúliaGrisiEssaterratãoabundosadearteseciências,abelaItália,nãotemcessadohá
largosanosdeproduzirosmaisricosfrutos.Aindabemsenãodepreendedohori-
zonteaesteiradeluzqueapóssideixaramfulgurantesastros,jáoutrosplanetasse
vêemsurgirnohorizontedispartindoraiosdepuraclaridade.Umdosquemaishá
brilhadonestesúltimostempos,fazendoasdelíciasdosqueassazafortunadostêm
sido para o contemplar, é Giulietta Grisi! – Esbocemos a carreira artística dessa
admirávelcantora.
JúliaGrisinasceuemMilão,a28deJulhode1811,deumoficialengenheiro
do reinod’Itália.Desdemui tenros anosmostrou feliz disposiçãopara amúsica,
Eutinhaumasasasbrancas
-309-
contribuindo o decidido gosto comque toda a sua família cultivava esta donosa
arteaentretê-laemsuainclinação,eadesenvolver-lheotalentomúsico.Decom-
pleiçãodébiledelicada,alterava-se-lheasaúdecomamínimaaplicação;demanei-
raquejácontavaonzeanosquandoJúliacomeçouaaprenderatocarpiano;estava
entãono convento dasMantelette emFlorença ondepermaneceu até à idadede
catorze.Osprogressosque feznopianoduranteos trêsanosqueestevenocon-
vento,avozquejáentãomostrava,eostriunfosdesuairmãmaisvelha,Giudita,
queacabavadedebutarnoteatro,decidiramseuspaisafazer-lhetomarliçõesde
canto;eparaquepudesseentregar-seregularmenteaesseestudo,mandaram-na
paraBolonhaondedeviaficaremcompanhiadeseutioocoronelRagani,casado
comasignoraGrassini,belaenobrecantoradasfestasdograndeimpério,aqual
NapoleãoconquistaraemsuascampanhasdeItália,equetantoaformoseouosse-
rõesdeSaint-Cloud e dasTulherias.O coronelRagani lhedeu logopormestreo
doutoGuglielmi, filho do célebre compositor, o qual todo se dedicou à educação
musicaldeJúlia.Finalmentedepoisdetrêsanosdelavoreestudo,em1828,apare-
ceuadonzelana cenapelaprimeira vezdebutandoemBolonha comopapelde
EmmadaóperaZelmira.Asfelizesdisposiçõesquemostrounarepresentaçãodes-
sepequenopapel,aformosuraegraçasdesuapessoa,easuaextremajuventude
produziram no público a maior impressão; o seu debute obteve incontestável
triunfo,eadirecçãodoteatroaescriturouimediatamenteparaocarnavaldoano
seguinte.
Em14deJulhode1829cantoupoisajovemGrisicomoprimadonna,apar
dos cantarinosSpada,MoncadaeRegoli emmuitasóperas tais comoLosposodi
provinciadomestreMililotti,IlBarbieri,TrovaldoeDorliska,&.PortodaaItáliase
espalhoulogoafamadosobtidossucessos,eosempresáriossedisputaramaqual
possuiriatãoricaprenda.Odirectorflorentinofoiquemvenceunalide,eJúliaapa-
receuemPergolarepresentandona JulietaeRomeudeVaccai,naEziadomestre
Celli&.
Em1830cantounoTancredifazendoopapeldeAmenaide,naVestaldePic-
cini,eemRicardoeZuraidaapardocélebretenorDavid.Nomesmoanocantou
emPisa,contribuindoeficazmenteparaosucessodaLuminara.
Tantostriunfos,etãojustamentecolhidos,atornaramdignadesubircomo
primadonnaaoteatrodaScalaemMilão,elogoPiccinisedeucomtodaadiligên-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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ciaàcomposiçãodeumaóperaexpressamenteparaasuavoz, foi IlCorsaro.De-
poiscriouJúliaopapeldeAdalgisaemaNormadeBellini.
FoinessemesmoanoqueGiuliettatravourelaçõescomMadamePasta,re-
presentando ambas naAnaBolena; Pasta lhe deumui salutares conselhos, e lhe
disse umdia: –Queropagar-vos tudoquanto vossa tia fez pormim, porque vos
julgodignadesuceder-nos.–Oqueprovaquantoestasexpressõeseramsincerase
ditadasporumcoraçãonobreé,que,naúltimarepresentaçãodeOtelonoKing’s
TheatredeLondres em 1837,Madame Pasta aplaudiumui repetidas vezes Júlia
Grisi,aqualterminadaapeçafoiaoseucamaroteagradecer-lhetãogloriosossu-
frágios.
Osacontecimentosdesastrosos,que, em1831,puseramemconfusãouma
parteda Itália, apartaramGiuliettadacena;de improvisodeixouaScala eMilão
umdiaemquedeviacantarnaAnaBolenafazendoopapeldeladySeymour.
Em1832tornoudenovoaapareceresseastroquemisteriosasnuvensha-
viamencobrido,efoiemParisqueelaespalhouosseusluzeiros.
Ligeirezaefacilidadeaténospontosmaiselevados,ardidezefecundíssima
imaginaçãonoimprovisardasfioreture,singularconhecimentodacena,formosura
de rosto, graça de meneios e movimentos, eis o que justifica o entusiasmo que
mostraramosParisiensesquandopelaprimeiravezaviramnoTeatroFavart.
OsrápidosprogressosqueJúliafezdesdeessaépoca,edequePariseLon-
dresforamtestemunhas,sãodevidosemparteaotalentodeimitaçãoqueelapos-
suiemsumograu.Asprópriaspalavrasdagrandeartistanosconvencemdeque,é
aimitaçãodobellooseucarácterdistintivo:–Preciosassãotaisdescobertas,por-
quenosensinamadirigiraatençãoparaaquelepontoondetodasasfaculdadesda
cantoraseconcentraram;edisseela,apropósitodeMadamePasta:–“Jolarubava
ascoltando-a”.EmBolonhaeFlorençaGrisivisitavatodasasmanhãsMadameBoc-
cabadati,nãosóparamelhorcolherossegredosdaarte,mastambémparaconvi-
dá-la a ensinar-lhe quanto esta sabia. Madame Boccabadati satisfazia os nobres
desejosdadonzela,semnadareservar,ecomamaiscordialsinceridade.
Em1833Grisidesempenhoucomigualesmero,ospapéisdeSemiramis,Ana
Bolena,Desdemona,&.Tocou então o seu talento omais alto cume da perfeição
comocantoraecomotrágica;etodasasgrandesqualidadesdeartistaqueaenfei-
Eutinhaumasasasbrancas
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tam,aindamaislheavultampelodesinteresse,urbanacortesia,egenerosidadede
suasacções.Delascitaremosalgunsexemplos:
Em1834Grisicantougratuitamenteemcincodiferentesconcertos,etodos
namesmanoite.NograndefestejodeYorkcantoucatorzetrechosdevariadasmú-
sicas,ecujasletraseramparteemlatim,parteeminglês.
Quando Júlia comprou o palácio de Vaucresson, onde actualmente habita
seupai, assinalou a posse comum ricopresente que fez à Igreja da freguesia: –
umamesasanta,ebalaustradasdeferroparaascapelaslaterais.
Por ocasião do incêndio do Teatro Italiano em Paris, em testemunho do
apreço em que tinha omuito que fizeram os bombeiros, a generosa cantora fez
entregar-lhesasomade500francos.
Contaumjornal,queemLondresJúliaGrisicostumavareceber,haviamuito
tempo,umcertonúmerodeguinéusporcadarepresentação.ChegaMadameMali-
brane se ajustaporquarenta guinéusdemais cadanoite.Noano seguinte, com
muinobreorgulhodegrandeartista,recusaJúliairaLondrespormenosdoquese
haviadadoàsua ilustrerival;obstina-see tudoconsegue: todaviaparaprovade
queodesinteresselheigualavaaconsciênciadoprópriomérito,mandavatodosos
diasdistribuirpelospobresosquarentaguinéusquerecebiademais.
Todossabemqueem1838foiJúliaGrisinomeadaDirectorahonoráriavita-
líciadohospitaldeWestminster,emreconhecimentodosvaliososserviçosqueseu
talentoprestouàqueleestabelecimentodecaridade.
JúliaGrisi éuma formosamulher, em todaa extensãodapalavra, e ainda
maisgraciosa.PossuiamaisprofundainteligênciadaCena,esabesujeitarocanto
amilinflexõesdelicadíssimasevariadas.Suavoz,dotadadeincrívelfacilidadede
vocalização, executaquantodemaisárduoedifícil imaginouaarte,mas com tal
perfeição,talencanto,etãosemcustoouesforço,queadivatodosentusiasma,e
todosexclamamquesóelaécapazdetanto.
ConquantootalentodeJúliaespecialmenteconsistaemabalarcomforçao
coraçãoeexcitaraspaixões,contudosabemodelar-sepeloqueexigeasituação,e
comdulcíssimavoz,ecomagraçaqueésódeladerramaportodaavossaalmaum
arrobodeprazer,quevoslevaaoêxtase.Cessoudecantar,ejulgaisaindaouvi-la:
Eladolcezzaancordentrotisuona.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Quandoporém,dominadapelasituaçãodeixalevar-sedesuasenérgicasfa-
culdades,quandoocoraçãoselheexalaemacentosapaixonados,quandoobedece
ao impulsodassuas inspirações,quandoessadramáticapotênciaqueportodoo
serlhecirculachegaaexpandir-seemtorrentedecanto;finalmentequandoelase
mostragrandecantora,econsumadatrágica;oh!entãoéqueelaéadmirávelesub-
lime,entãoéquetodaaexpressãode louvordesmerecedoseutalento;então fi-
nalmenteéqueselhedeveaplicaroversodeAlighieri:
Grisisul’attrecomeaquilavola.
D.Mondo.
___________
TEATROPORTUGUÊSNestaépocadetransição,emqueatéaciência,eliteraturasofreramtama-
nhoabalo,nãoerapossível,quesomenteaartedramáticapermanecesseestacio-
nária,queresistisseaodesejodemudançaemelhoria,espíritodoséculopresente.
A revoluçãoeprogressouniversalmentedevia tocar-nos, força eraque seguísse-
mosoexemplo,quenos foradado,equeda luzdonossoaperfeiçoamentosocial
reflectissealgumclarãosobreoteatroportuguês.EnaverdadesenorestodaEu-
ropaaartedramáticasempreacompanhouoandamentodacivilização,sendotal-
vez difícil de determinar qual delas abre caminho à outra, não é certamente em
Portugal,queaexperiênciafalece.
Enquantojazíamosnaignorânciaebarbaridade,nenhunspassatemposco-
nheciam nossos avós; se pouco a pouco se foram introduzindo alguns recreios,
nestesseespelhavaaovivooespíritodaquelestemposcavalheirescos,easjustase
torneiosnãoerammaisdoqueumasemelhançadoscombatesedasbatalhas,tão
frequentesnodécimoterceiro,equartoséculo.Comosprogressosdacivilização
tiverambomacolhimentonovosdivertimentos,quenostrouxeramosmouroseos
judeus,ecomadançaecanto,commomos,entremezes,touras,eguinolas,D.Afon-
soVeD.JoãoIIabrilhantaramossarausdasuacorte.Porestetempocomeçaram-
seacomporalgumascomédias;oespíritoreligiosohaviasucedidoaogénioguer-
reiro, easescriturasderamoassuntoaosprimeirosautores; farsas ridículasem
quenãoduvidavampôremcenaosmistériosmaissagradosdareligião,foramos
primeirospassosdaarteaindasemforça.
Eutinhaumasasasbrancas
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FoiGilVicentenossoprimeiropoetadramático,e foraoconhecimentodo
latim,espanhol,francêseitaliano,era-lheestranhaaliteratura;nemrastosapare-
cemnosseusdramasdasobrasdosantigosdramáticos,edaquivemafaltadeac-
tosedeunidadecomquedeparamosemseusautos;aBíbliaeraoseulivro,osen-
tesmaissagradososseusActores.Eseacasodeclamassemhojeemalgumteatro
essesDramas,poucoshaveriaqueentendessemalinguagem,misturadecastelha-
noedeportuguês,ouestimassememmuitoascenassoltasesemnexo,quetanto
promoveramorisodenossosavós.Mudámos,etalvezparapior;poisqueeunão
seiqualsejapreferível,seaquelesantigosautosextravagantesnoenredo,masri-
cosdeadmiráveislancescómicos,ecujalinguagemeraverdadeiramentenacional,
seestesmodernosentremezesescritosemfraseincorrectaechula,recheadosde
chocarrices,quenãopodemagradaraouvidosdelicados.
EcomacertodizoSr.Trigosonumamemóriasobreoteatroportuguês,fa-
landodasObrasdeGilVicente: “Quando julgamososantigosDramáticos, apesar
dasliçõesdossábiosedofrutodaexperiênciademuitasidades,nãosomostalvez
de todo isentos de prevenções; conhecemos mais a inverosimilhança daqueles
dramas,queeramdestituídosdastrêsunidades,doqueconhecemosoquequase
sempreseseguedaescrupulosaobservaçãodasmesmasunidades,esabemosme-
lhorvestirosnossosactorescomostrajesprópriosdoseupaísedoseuséculo,do
querepresentá-loscomosseusverdadeiroscostumes,ecomasuaprópriamanei-
radevida”.Parecequeo ilustreacadémicoanteviaanecessidadedanovaescola
dramática.
Na arte dramática nunca Portugal pôde ombrear com osmais países; tal
sempre temsidoseu triste fado!Seenumerarmos insignespoetasnosoutrosra-
mos da poesia, neste é-nos forçoso abater bandeiras. Assim como descobrimos
novarotaparaganharaquelespaísesdaÁsia,edesteachadosomenteseaprovei-
taramos estrangeiros, assim em tempos remotos apareceu umFerreira, que fez
surgirnaEuropacivilizadaogéniodatragédia;enóssatisfeitoscomabrirmosno-
vocaminhoaospoetasdasmaisnações,parámosnoquedeveraseroincentivoda
culturaeaperfeiçoamentodanossaliteraturadramática.SeumGomes,umXavier
aindaenriqueceramnosso teatro,sãoquaiscintilantesestrelasemcéunebuloso;
nãotemosumasériedeautoresdramáticos,comopossuiaFrança,aAlemanha,ea
Inglaterra.Ficámospormuitotemposepultadosemnoiteescura,saciandonosso
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-314-
maugostocomentremezesridículos,ecomédias,emqueeramdesprezadostodos
ospreceitosdogosto.
Ondeasarmasimperam,asletrasnãodãosaborososfrutos,eestatalvezse-
jaa causadaprincipaldecadênciadonosso teatrode1820atéagora.Entregues
todosaosnegóciospúblicos,nãohaviaquemcultivasseasartes;tudoquantonão
tinharelaçãocomapolíticaeravotadoaoesquecimento,edestarte foi-seempo-
brecendoonosso teatro,aopassoqueosestranhosseaperfeiçoavam.Nãohavia
bons actores porque ninguém queria seguir uma profissão envilecida pelas pre-
vençõesdaquelaépoca;amuitocustoaindapisavamopalcocénicohomensque
passavamodiatrabalhandocomomartelo,ousentadosnatripeça.Equemhave-
riaquecompusessedramasparataisactores?quemsesujeitariaaverrecitadapor
elesalgumaobrafilhademuitasnoitesdetrabalho,edeestudo?Ninguém.Algu-
mastraduçõestoscas,emalfeitaseramasúnicascomposiçõesdequeviviaonosso
teatro;ecujasfunestasconsequênciasforamaintroduçãodeumalinguagembas-
tarda,emescladadeportuguêsefrancês.
Enestemíseroestadojaziaonossoteatroquandotevelugararestauração;
nestespoucosanosqueaseguiram,váriasforamastentativaspararestituí-loaseu
antigoesplendor,masforambaldadostodososesforços;foicontinuandoaincor-
recçãonofalar,eamáescolhadosdramas.Ospoucos,queeramoriginaisportu-
gueses,melhor foraquenuncaos tirassemapúblico,poisquenãoerammaisdo
queum triste reflexodosmedonhos sucessosdanossa guerra civil.OTeatrodo
SalitreeraoúnicoregulardeLisboa,eestemesmoquemaisseassemelhavaauma
baiuca,doqueaumlugarderecreiopúblico,sóerafrequentadopelaclasseínfima
da sociedade; ali as graçasmais obscenas eramunicamente aplaudidas, os ditos
maisdesonestososquemelhorsoavamàquelaplateia.NobeloTeatrodeS.Joãoda
CidadedoPortonãoeramaisfelizaartedramática.Aselecçãodosdramasestavaa
cargodehomensindoutos;aexecuçãodessasmesmaspeçaseraconfinadaauma
companhia quemais do que uma vez apresentou em cena actores embriagados.
Pareciaqueonossoteatrojáestavaarquejandonosúltimosarrancos,equepara
finar-se omísero só esperava pelamorte daquele que ainda o presenteara com
umaobra-prima,qualúltimocantodocisne.Masaestenossograndepoetatam-
bémestavareservadaaglóriaderessuscitá-lo,elevantaraqueleantigoejáarrui-
nadoedifíciodasnossasglóriasliterárias.
Eutinhaumasasasbrancas
-315-
Entre a aluvião de leis, que desde o começo da nossa revolução inundou
Portugal, umapassoudespercebida, talvez taxadaaindade injustaedespótica, e
todaviaelasalvouaartedramáticadasuacompletaruína:falodaleiqueestabele-
ceuainspecçãodosteatros.EstecargosópodiasercometidoaoautordeCatão,e
grandeslouvoresdevemosdarnós,osamadoresdestaarte,aquemfeztãoacerta-
daescolha.
OSr.Garrettentendeuomandadocomvistasmaislargas;sólhehaviamen-
carregadoinspeccionarosteatros,eleresolveudar-lhesvida;haviasidonomeado
paraconservarrestos,queaindaexistiam,eledeterminouformarcomestesmes-
quinhos cabedais umnovo edifício, começar nova era teatral. E não foi somente
compreceitos,quetrabalhouparatalreforma;massimdeitoumãosàobraabrin-
docaminho,quehámuitoninguémseatreviaatrilhar,poisqueaogéniomaduro,e
confiadoemsuasforças,cumpresacudirojugoinveteradodaspreocupações.Lan-
çoumãodealgunsactoresaindamalensaiados,queumestrangeirohaviaames-
tradoarecitarmalpéssimastraduções,elheentregou,comovítimaparaosacrifí-
cio,umdramacompostoporele.Aimpaciência,egéniodopoetadobrouocantor
doCamõesaensaiarpessoalmentealindacomédia,UmAutodeGilVicente;adeli-
cadezadohomemcortêsforçoueleasofrersubmissaasintrigasdebastidores,que
sóavaliaquemdepertoasconhece.Mastantostrabalhosteveporbememprega-
dos quando universais aplausosmostraram ao autor de Catão o apreço, em que
todostinhamaquelanovaobra,eoscuidadosquelhedeveraasuaexecução.
Seja-me perdoado querer eu, mesquinho engenho, juntarmais uma folha
aos louros,quehámuitocingema frontedestenossopoeta;masestesaindasão
poucosparaquemfoidetantavaliaàcenaportuguesa.DarepresentaçãodoAuto
deGilVicentedataumanovaépocateatral;éametaqueseparanossoteatroanti-
godocomeçodasuarestauração.Aspalmasdadasaestacomédiarepercutidasem
muitoscoraçõesforamumafaísca,quedespertounopeitodajuventudeportugue-
saoestrodramático;muitosexclamarão:
Anch’iosonpictor
elevantandoaluva,quelhesforalançada,aceitaramodesafio,equiseramterseu
quinhãonagloriosajusta,quelhesabriraocantordeD.Branca.
QuemescrupulosamenteanalisasseoAutodeGilVicente,talvezencontraria
algunsdefeitos,deparariacomalgumascenasmenosdramáticas,comfaltadenexo
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-316-
eligaçãoentreestas;masquantoacimadestespequenosdescuidostraduzapure-
zado estilo, e a linguagem tão limada eportuguesa;melodiosamúsica soandoa
nossosouvidosquaseesquecidosdela.Quantonãosãoparaadmirarospensamen-
tosfinosedelicados,osditosjocosos,queesmaltamestacomédia!Nãotemaforça
dosconceitos,oesplendordasideiasdeVictorHugo;carecetalvezdoenredoforte,
earrebatadordeAlexandreDumas,porémenxergamosnestedramaaperfeiçãoe
interesse deCasimirDelavigne, a agudeza e engenhosa crítica deMolière.Não é
raio lançandoumclarão,quecegaedesaparece,massimmimosobrilho,plácida
luz,emqueosolhosdescansamgostosos.
A.B. (C.L.deCoimbra)
________________
MADEMOISELLERACHELVindefilhasdeMelpomene,vindeparanós,falangeintrépida,sagradocoro;
sublimeAtália,belaHermione,apaixonadaetristeAndrómaca,iradaFedra,terna
Amenaíde; vinde todas vós, ó virgens dos antigos tempos, mulheres inspiradas,
heróicasamantes,formosíssimasrainhas;deixaiflutuarasalvastúnicaseoscom-
pridosvéus,obedeceisemreservaaosimpulsosdocoração,àsinspiraçõesdopoe-
ta; deixai cair algumas dessas lágrimas que escaldam e fazem que outros olhos
choremeoutroscoraçõessuspirem;deixaiarfaroníveoseioàmercêdaspaixões,
comoavagaembatidadosventos!Cinjaavossapurafronteorutilantediademade
rainha,ouovirgíneofestãoseenastreemvossoscabelos;brilhemosvossosolhos
comdivino fulgor; namão se vos veja luzir o trágicopunhal; e o fogodapaixão
alumietodasasnobresfalasemajestososversos.Dailivresaídadevossopeitoa
todososafectos,atodasessastãovariadasimpressões,deamor,ciúme,vingança,
irónicoorgulho,ódiovivazeprofundo.Finalmente,restituí-nosatragédiaantiga,a
nósquetãofatigadosjáestamosdomodernodrama.Ressusciteporvósatragédia,
e sealevantemisteriosamentedo túmulocomoa sombrade Julieta.Oh! restituí-
nosabelaepuratragédia,exprimidacomverdade,comalma,calor,energia,pai-
xão,eaomesmotempocomarsimpleseverdadeiro,sempomposasdeclamações,
semgritosegestosridículos!-
Rachel!–Nomedoce,nomebíblico,quenosfazremontaropensamentoaos
tempospatriarcais,quenosfazcismaremNoemiseRebecas!FelizRachel,tufoste
Eutinhaumasasasbrancas
-317-
certopredestinadaqualoutraEster,paralibertaresoteupovodojugodochamado
Romantismo!–Glóriaati,Rachel.
MademoiselleRachel,ajovemactrizdoteatroclássico,nãoéprecisamente
uma lindamulher, é coisademaiorvalia. –Uma florqueapenasdesabrochaéa
admirável donzela, ardente, animada, cheia de expressão e puro fogo, dotadade
inteligênciaquerevela,etraduzcomenergiaprofundaeapaixonadatodosossen-
timentosdapersonagemquerepresenta,mascomtalconcerto,enaturalidade,que
oespectadorpermanecearrebatado,eadmiratodaessaverdadetrágica.Alémdis-
soMademoiselleRachel: possuioutraqualidadequeébemraraepreciosa,uma
qualidadenegativa,umaqualidadequeelanãotem;–Rachelnãopossuiodomdas
lágrimas,porqueonãoconhece,porquenãosabeexprimir,comverdadeprática,
asváriasimpressõesdoamor,porqueaindaanaturezalhenãorevelouessedoce
sentimento.Éumvirgemcoraçãoqueespera;éalâmpadadeVesta.FelizRachel!–
maisfelizmilvezesofuturorevelador!
MademoiselleRacheldebutouem1838noTeatroFrancês,etemsempreco-
lhidoosmaioresaplausosnarepresentaçãodasobras-primasdeCorneilleeRaci-
ne.
___________
CrónicaTeatralTeatroNormal–HistoriardoquesepassounonossoTeatroNormalduran-
te a passada semana, é coisa que, segundo à primeira vista se afigura, nenhuma
dificuldadeenvolve;tudosereduzafalardeumsóobjecto–Ohomemdamáscara
negra.–Conviremosqueessenovodramaencheutodooteatro,eprendeutodasas
atenções;masnãoestamospelafacilidadedoassunto,eprovamosanossaasser-
çãocomosilêncioqueguardamos,nãoousandoainda,ouantesnãonosjulgando
pororatantoaoalcancedoobjecto,quedelepossamostratarcomsisudamadure-
zaeperfeitoconhecimentodecausa,comoelepróprioreclama.
Digamoquequiseremosquedetudoralhamenadaachamaseusabor;di-
gamoquequiserem,quenósnãoreceamosvotarpelobomdesempenhodonovo
drama.Sim;relativamenteaosmeiosdonosso teatro,eatésemquesejapreciso
recorreracomparaçõesdetempos,podedizer-sequeosactoresdoTeatroNormal
compreenderamosseuspapéis,epelamaiorparteosdesempenharambem.NoSr.
Epifâniotalveznãohajaanotarsenãohaver-semostradoalgumacoisafriona1.ª
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-318-
cenado2.ºacto,conversandocomsuaamante,quehápoucorecuperara,comtão
pausadoânimocomosecomelahouveravividotrêsanosemboapazmatrimonial.
Esteactortemcontudomuitoporquesejalouvadoportodoocorrerdapeça,ena
cenadaprisãomostra-semaisquebomactor.–OpapeldaSra.Talassiéoqueos
franceseschamamunrôleingrat;masaSra.Talassideletiraopartidoquepode.–
QuantoàSra.Emília,jáemnossonúmeropassadodissemosoquepensávamosdo
seurepresentar:estaartistasubiuumaltodegrau,emuitotemqueagradecerao
Máscaranegrapeloquantoaexaltou;naúltimacenaemqueaSra.Emíliasepreci-
pita na prisão toda banhada em alegria, toda cheia de alvoroço, e como enfiada,
nestaúltimacenasemostraaSra.Emíliagrandeactriz!–Quemtantadisposição
mostraparaoteatrodeveesmerar-seporquenãotropeceempequenosobstácu-
los,quemuitasvezesbastamparadeslustrarbrilhantesqualidades.ASra.Emília
devepôrtodooseucuidadonarectapronúncia;emtodasasrepresentaçõesdesta
peça tem-se-lhenotadoalgumaspalavrasquenão sãopronunciadas comose re-
quer,comoporexemplo–desisperação,dereito,golpis&.–OSr.Epifânioemvezde
lavasdeumvulcão, tempronunciado larvas: julgámosaoprincípioqueera lapso
de língua,masoerro temcontinuadoa repetir-se. –OSr.Vanezvaibemnoseu
pequenopapel,bemcomooSr.Vitorino.
TemcontinuadoairàcenaafarsaQuemtemmazela,tudolhedánela;oSr.
Sargedastemaídesenvolvidomuitoemuitochiste.
TeatrodeS.Carlos=Commuitaimpaciênciaeraesperadopelosfrequenta-
doresdesteteatroodomingo8deMarço;poisqueosdiasquedecorreramdesdea
últimarepresentação,conquantonãotivessemsidomuitos,houveramdeparecer
séculosàqueles,cujopeitoasdilataeenobrece,ecujaimaginaçãoseelevaesubli-
maaoescutarasinspiraçõesdeMeyerbeer,Bellini,eDonizetti.DesteúltimoMaes-
trofoiaóperaqueprimeiroveioaoencontrodosnossosdilletanti;poisqueteve
lugarnodia8arepetiçãodaFausta,quejátinhasidocantadaemS.Carlospelos
doisStortieMagioroti.Estaóperaestálonge,segundoanossaopinião,deserdas
melhoresdeDonizetti;enoprimeiroactoespecialmentenotámosmuita frieza,e
faltademovimentoevida,parecendo-nosqueamaiorpartedasmelodiastinham
pouca novidade, sabendo a Rossini por extremo: exceptuaremos o final que faz
bomefeito,etemalgumanovidade.O2.ºactoojulgamosmuitomelhorsendopara
especializaroduetodeFaustaeCrispo,eaariadeConstantino.
Eutinhaumasasasbrancas
-319-
Quantoà execuçãopoderemosafirmar semmedode sermosdesmentidos
quenãofoielanessediamuitoparacontentar,ebastantementeinferioràqueda
mesmapeçasetinhaouvidonoutrotempo.–Melhorfoinosdiasimediatos;porém
assimmesmonãoéaFaustaóperaqueassimrepresentada,seconservepormuito
tempo.
Naquinta-feiraderam-seemvezdelaosPuritanos;esegundoanossaopi-
niãomuitoganhouopúbliconatroca;poisqueestaóptimapeçadeBellininunca
podedeixardeenlevaraquemapreciaumatãodonosacombinaçãodosentimental,
sublime,eapaixonado.Eemverdadeencontra-senosPuritanososentimentalismo
dasoutrasóperasdeBellinireunidoamuitaciênciamusical;eàsinimitáveisme-
lodiasdomaestroseligamnestasuaúltimapeçaasharmonias,quefazemolustre
dosMestresalemães.
--------*--------
TeatrosEstrangeirosMilão–R.TeatrodaScala–Nanoitede15deFevereirodepoisde tantos
ensaios,tantasalterações,etantasprofeciastristesealegresapareceufinalmente
=OsCorsários=óperadoSignorMazzucato(autordaEsmeralda);asorte lhe foi
adversa.–Mascomoeraamúsica?perguntaráalguém…Amúsicaéumcapricho
óptimotalvezparaPiano,equeLizthaveriaexecutadoadmiravelmente.Bompara
nós(Italianos)queaindaestavezpoderemosdizercomopoeta.
Purvinselavirtúdell’armonia!…
Bomparanósaquemopúblicocomasuadesaprovaçãosolenesalvoudo
perigoemquenosconsiderávamosdequeinexpertosintroduzissemnaItáliamú-
sicatãobárbara,equereúnetudoquantodemaisdurousamosmestresfranceses
etudescos,semquepossuaoinspirado,grandioso,edouto,quedistingueamúsica
deles.–Adesarmoniadeumaduplaorquestra(cantantes,etangedores),umcon-
fusofragordetrompas,trombões,violinos,econtrabaixos,quediversamentegri-
tam, retumbam, sibilam… tentaria em vão pugnar contra amelodia italiana que
Paesiello,RossinieBellinivestiramdesimplesdivinoeimaculadomanto.–Dirias
queeramosdemóniosdeMiltonassaltandoocéu…Omaestrosemdúvidacairá
emsi,poisquenosdiminutíssimospontosemquehaviaalgumcanto,ondeosou-
vidosnãoeramrebatidos,desapiedadamenteporsonsingratosedilacerantes,on-
definalmentenãoseeraforçadoanegarqueseestavanaItália,equeportalarte
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-320-
seescrevessenaterraconsagradaàharmonia,osinteligenteseimparciaisaplaudi-
ramsinceramente.
(IlPirata)
ROMA–FoiultimamenteàCenaumanovaóperadomaestroRicciintitulada
–Chiduravinse–obtevemuitosaplausos,agradouatodossemexcepção.
ARGEL–Nanoitede14deJaneirorepresentou-seaóperaBelisário,foiaco-
lhidacomomaiorentusiasmo.NelerepresentaramassenhorasIreneeLeva,eos
SenhoresGerlieZoni.
ATENAS–FoiàcenaaóperaLucia:daremosumarelaçãocircunstanciada
desteespectáculo.
--------*--------
TeatrodeS.CarlosMarço15–Domingo– Iránovamenteàcenaaópera–Otelo–Dança–O
Triunfod’amor.
Segunda-feira16–Benefíciodo1.ºBaixoLucioMariani–ópera–Otelo–
Dança–OsPortuguesesemTânger–Numdosintervalos,obeneficiadoeMr.Fer-
retticantarãoumDuetodeElisaeCláudio.
Terça-feira17–ópera–Otelo–Dança–OTriunfod’amor–Repete-seoDu-
etodeElisaeCláudio.
Quinta-feira 19 – Grande Gala, festejo do aniversário da Constituição de
1838.–ópera
–Otelo,eumanovaDançadeMr.Astolfiintitulada–OsMineirosdeSalerno.
___________________
n.º16,de22deMarçode1840
OHOMEMDAMÁSCARANEGRAComestetítulosubiuàCenanonossoTeatroNormalumnovodramaorigi-
nal português, produção do autor dos Dois Renegados; o seu entrecho é, pouco
maisoumenososeguinte:
D. BrancadeCórdova filha de um fidalgo castelhano era extremosamente
amadaporD.ÁlvaroCondePortuguês,oqual tinhasabido inspirar-lhe igualpai-
xão;masopaideBrancaeracontrárioaessesamores,eparasubtrairsuafilhaàs
Eutinhaumasasasbrancas
-321-
visitasdeD.Álvaro,etambémporventuraparaapagar-lhenocoraçãotodaaespe-
rança,resolveuencerrá-lanummosteirodereligiosas,e,surdoàvozdanatureza,
pôslogoemexecuçãooseubárbaroprojecto.
Haviaumamulher,que,mau-gradoacorrer-lhenasveiassangueplebeu,fo-
raparaD.Álvaro a luzdos seusolhos, o arfardo seupeito, o viverda suavida;
chamara-lheocavaleirobastasvezesasuaqueridaLeonor,oseuúnicobem,asó
possuidoradetodoseuamor;aseuladosorria-lhemaisledaanatureza,osraios
do sol erammais tépidos e brilhantes, os campos se engastavam demais puras
esmeraldas,asestrelastremiamcommaiorestremecimentoederramavammaior
suavidade;aoseuladotudoeraamorefelicidade:–masesseamortornou-seno
geloda indiferença;masessa felicidadetransformou-seemtédio.Umnovoamor
fezesvaecertodooamorantigo;ardentesdesejosdeoutrafelicidadequeatéentão
nãosonhara lheenegreceramoseurosadohorizonte,horizontequenãoeraani-
madopelaangélicafiguradeBrancadeCórdova.–Eporqueonãoserá?Brancaé
muijovem,eDeus,queemformá-lanãosepoupouaperfeições,porquelhenega-
riaumsensívelcoração?!Eo fogoemqueardeocavaleiroétãovivo,eéeletão
nobreesforçado,eformoso!–BrancadeCórdovapartilhoutodooamordocava-
leiro:eei-laaíjazemsoledadecortandoosarescomsuspiros,eenviando-osatra-
vésdeférreasgradesaoseuÁlvarotãosaudoso!
Sãotentadostodososmeiosparalivraraamantedosferros,eÁlvarocon-
segue finalmente dispor tudo para uma fuga com a lindaBranca, porémnomo-
mento em que se começa a executar o grande projecto, chega o pai de Branca
acompanhadodenumerososéquito,earrebataa filhadosbraçosdo imprudente
roubador, julgai qual ficariaD.Álvaro!…Masumhomem,ou antesumanjo vem
oferecer-lheauxílio,eprometerestituir-lheaamada:quemsejaessehomemnin-
guémosabe;trajanegrasvestesdecavaleiro,eumamáscaranegralheenvolveo
rosto;osorrirmaudosdemónioslhealvejaporentreamáscara,eosolhoslhelu-
zemcomodoiscarbúnculosemdecoraçãofunerária:diriasantesseranjodastre-
vas,doquebenévolocustódio.Essehomem,anjo,oudemónio,cumpreoquepro-
metera,ejáosdoisamantesgozamempazdetodasasdelíciasdeumpuroamor.
Masquemotivolevouessehomemdamáscaranegraaentregarassimnas
mãosdocavaleiroummundodefelicidades?–Quemotivo?–Eraumavingança.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-322-
António Baracho presenciara os amores do Conde com sua irmã Leonor;
AntónioBaracho jurou tomardessaafrontaumavingançaespantosa.Havidopor
mortonumaviagemqueàÍndiafizera,voltavaincólumeasaciar-seemsangue,e
para levara cabo seusnefandosdesígnios cobriao rosto comumamáscara,que
nãodeviatirarsenãosobreocadáverdeD.Álvaro.
Conversamdeamoresosdoisamantes,eseentregamsemreservaàsuafe-
licidade;sucedem-seasdocesconfidências,eBrancaprincipiaarecitarumacháca-
raquepareciatersidofeitaparaoseucaso.–Começa,econtinuaráarecitar…mas
umavozfúnebreesinistraseouvenoTejo,quepróximovaicorrendo,essavozlhe
terminaachácara,elhetransmudaorefrãoporteorquehorroriza!
CorrecorreD.Rodrigo
Queopassamentotealcança
Tuasorteestáescrita
Nopunhalenavingança!
Masoamornãotardaadesvanecer-lhevãosterrores:Álvarodespede-see
prometevoltarsemdemora.Brancaficasó.
Entãolheentranoaposentoumamulherfuriosaqueaacusa,aameaça,cu-
jaspalavrassãoecodedesgraças,horrores,emortes;amíserajánãosabequem
lhevaleráemtantaaflição;eisqueomáscaranegrachega;aeleseacolheadonze-
laimplorandosocorro,eestecomoseudiabólicosorrisolhemostraopunhalque
há-detrespassarocoraçãodoConde;entãoseouveosinalqueestecostumafazer
àsuachegada;sailogoAntónioBaracho;Brancaéarrastadaparaoutroaposento,e
D.Álvarorevolvendo-seemsangue,vacilante,moribundoentraereconhece…An-
tónioBaracho,oirmãodeLeonor,queselhemostracomacaradescoberta.Uma
imprecaçãosegueo reconhecimento:–Oinfernoseapossedetuaalma–EoTejo
recebaoteucorpo.ÁlvaroélançadoaoTejopelajanela.
Ora,nessetempo,estavaoreinosemrei,eoLeãodeCastelasepreparavaa
cravar-nosasgarras.D.AntónioPriordoCratovacilavaemtomarsobreosombros
opesodasruínasdamonarquia;osnobrespendiamparadiversaspartes,opovo
pareciaestenderjáocoloparaumjugocerto.
Eutinhaumasasasbrancas
-323-
D. António conferenciava com os seus cavaleiros sobre o que mais lhes
cumpriafazer.Eranoclaustrodeummosteiro.Umpajemanunciaumadamaque
pretendefalaraopríncipe;temgravenegócioacomunicar-lhe.
Entãovedesentrarnoclaustroumalindadamatodaenvoltaemlutos;tré-
mula,desolada,derramandolágrimas,exalandoangustiadossuspiros…Prostra-se
aos pés do príncipe implorando justiça, e, com a eloquência que lhe presta uma
pungentíssimador,moveosânimosdetodososcavaleirosedopríncipe,quepro-
metequeplenajustiçalheseráfeita:BrancadeCórdova(queeraessaaaflitada-
ma)narraentãoohorrendoassassínioperpetradoemseuqueridoesposo, e ser
esseoCondeD.Álvaro!AindignaçãoadorasaudadequeexperimentaD.António,
ao ouvir que fora traiçoeiramente imolado tão nobre, e leal cavaleiro, sobem ao
maiorauge;ejurapelaalmadesuamãe,quetodoosanguedovilassassinocorrerá
atéàúltimagotamuitoemboragirenasveiasdoseumelhoramigo!…Mascomoo
reconheceráBranca?Entãoserecordaqueeleprópriodisseraserumdoscavalei-
rosdopríncipe,epoisquetodossãopresentesécertoqueoinfameosestáescu-
tando,enãoreceiaelaenganar-seexaminando-osatodos.–D.Antónioordenalo-
goqueoscavaleirosumporumseapresentemànobredama;todosobedecem,e
sóAntónioBarachosevaideixandoficarparaúltimo:restasomenteoassassinoa
apresentar-se,eisquetocaumatrombeta,eumpajemanunciaumembaixadorque
de Castela traz importantemensagem. D. Antóniomanda que o exame se inter-
rompa;oembaixadoréintroduzido,eàsaviltantespropostasdeD.FelipedeCaste-
larespondeopríncipecomtodaaaudáciaenobreorgulhodeportuguês;guerrae
liberdade,emtrocodevergonhosapazeservidão!–Retira-seopríncipeeoscava-
leiros;sóBrancaeoembaixadorpermanecemnoclaustro.
OembaixadorerairmãodeBranca;abraçam-secordialmenteosdois,eela
lhecontaasuadesgraça:promete-lheocavaleirovingá-la,elhepedequeoaguar-
dealgunsmomentosenquantoqueelevaidaralgumasordens.
Brancaficaentregueàsuador;masnãotardaemvirdespertá-laumaapari-
çãomaismedonhaqueadeumespectro.–AntónioBaracho,comorostodesco-
bertoselheapresenta,ecomoseueternosorriso,ecomoseuolhardeserpente
fascina adamahorrorizada: intima-lhequeo acompanhe, intima-lhe a resolução
emqueestádenuncamaisaseparardeseulado,anecessidadeemqueseachade
aguardarconsigo,poisqueela jáoreconhece…Adamasuplica,ajoelha, implora
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-324-
piedade, e cai desmaiada. António Baracho tenta assimmesmo arrebatá-la;mas
ouvepassos…largaapresa,tomaopunhal,voaaencontraroimportuno,e,passa-
dospoucos instantes,umcavaleirovemcairmortalmente ferido juntodeBranca
aindadesmaiada.Acordaatriste,etropeçanumpunhal;lançamãodele,eovêgo-
tejandosangue;dádoispassoseaodarcomoirmãoestendidoaseuspés,semvi-
da, assassinado permanece imóvel:mas já guardas a cercam, e AntónioBaracho
lhesdirigeasseguintespalavras:–eumesmoaviretiraropunhaldopeitodoinfeliz
embaixador;ainsensataaindaoconservanamão;quemaisprovasquereis?
BrancadeCórdovaéconduzidaaocárcere;Barachotriunfa:quemousaria
chamarincompletasuavingança?…quemoousará,exclamaBaracho,olhandopara
ocadáver!-”Eu!”–respondeumavozmedonha.–EssavozeraadeD.Álvaro.
Congrega-seotribunalquehá-dejulgaraacusada.CompareceuBrancaante
osseus juízes; seuprópriopaiépartecontraela, contraoassassinodeseu filho
querido.Aprincípionãosabesenãoqueéumamulhercriminosa,umvéulheen-
cobriaorosto;mas,asóscomela,pelavozreconhecea filhaquetantoamava,e
comquemjátãotiranofora.Ador,avergonha,oespantolherecrescemcomessa
novadesgraça,nãosabeseatenderámaisàvingançadofilho,queaoamorpater-
no…Maschegamosjuízes;ointerrogatóriocomeça,easnegativasdaacusadana-
da podem contra o depoimento de testemunhas todas presenciais: = eis que se
apresentanotribunalumcavaleiro;temrevelaçõesimportantesafazer…Entra,e
Branca reconhece o amante, e já os dois a abraçar-se ledos e descuidosos, mas
BrancarelataocrimedequeéacusadaeÁlvaroprorrompeemfurorescontrao
assassino: Baracho permanece impassível, e insiste na acusação; então vendo o
cavaleiroquesãobaldadostodososseusesforços,acusa-seasiprópriodoassas-
síniocometido,Brancadizserelaaculpada,edepoisdeumalutadegenerosidade
entreosdoisamantes,decidemosjuízesque,pelasconfissõesquefizeram,estão
ambosconvencidosdocrimedehomicídio,ecomotaissãocondenadosàmorte:
São condenados àmorte, e odiada execuçãoé chegado, e ahora fatal se
aproxima.D.Álvarosubornouocarcereiro,eei-lojánaprisãodeBrancadando-lhe
esperanças demelhor sorte; o carcereiro lheprometeu facilitar-lhes a fuga, e os
doisamantesaindaserãofelizes!–Ouvem-sepassos,Álvaroaplicaoouvido…–é
semdúvidaoseulibertador.Abre-seaporta,éocarrasco.Soouahoradaexecução,
eocuteloosespera,masocutelonasmãosdeAntónioBaracho!
Eutinhaumasasasbrancas
-325-
Imprecações,ameaças,fúriasdapartedeD.Álvaro;–risoesatisfaçãonoal-
goz-;horroreconformidadenainocenteBranca.Éconduzidaaopatíbulo,eÁlvaro,
só,desesperado,aguardaasuahora,submergidonotorpordeafliçãoprofunda.
Masvemdespertá-loumavozquepronunciaseunome…éumavozdemu-
lher,eessamulheréLeonor!Álvaroaacolhecarinhoso;começaarecordar-lheos
temposdeseusamores,esses temposemqueLeonortudodariaporcomprazer-
lheemumasódassuasvontades;entãolherogacomextremoquelhedêsalvaa
amante,a infelizBrancadeCórdova;suplica, implora…masLeonorsenãomove,
antesexultacomosuplíciodarival.–D.Álvaroentãolhebrada:–Poismorrerás,e
àsminhasmãos!Desenrolaafaixa,ajeitaumlaçoeestáprestesacumpriraamea-
ça…masaportaseabrecomforça,eBranca,jubilosa,alvoroçada,epálidadeale-
griaselhelançanosbraços!
Umacarta fora interceptadaao traidor,porumescudeiro fieldoConde;a
inocênciadosamanteséreconhecida,eAntónioBarachoexpirounocadafalso.
_____
Talé,poucomaisoumenosoentrechodonovodrama:repetimosaspala-
vras–poucomaisoumenos–por issomesmoquenão tendo lidoapeça,apenas
nosvalemosdasrepresentações,àsquaispormuitaatençãoqueseprestesempre
é fácil escapar alguma coisa. –Da leituradoqueacimadeixamos relatado, assaz
podever-sequanto interesseofereceráestedramaajudadode todososrecursos
queacenaoferece;assim foielerecebidocomentusiasmo,eseuautorvitoriado
comestrepitososaplausos.Écheiodemovimento;retraçadocomvivíssimascores,
fecundoemlancesdramáticos.Todososactosrematammuitofelizmente,edeixam
presoeanelanteoânimodosespectadores.
Permita-se-nostodaviaaventuraralgumasreflexõescomocríticosdesinte-
ressados,equecertonãofazemospormenoscabarodrama,porémsomentepelo
muitoemquetemosabelaarteem(que)jáavultaoautordoMÁSCARANEGRA.
Oseuprópriotalentoofezcairbastasvezesemabusosdefrasesexagera-
das,ecomdemasiadafrequênciarepetidas:pululam-lhenocérebroasideiaspoé-
ticas,eapenaobedecealgumavezaoespíritosemquemuitoseconsulteasitua-
ção;oautoréoqueosgregoschamavam–eufaniaoton–homemdegrandefanta-
sia.Falaacasoemciúme,ouemvingança,ouemqualqueroutrapaixão;–todosos
seusatributosselheapresentamlogoemtropel;essesatributostomammultimo-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-326-
dos corpos, vestem variegadas cores, transfiguram-se em alimárias, em metais
fundidos,emchamas,emfogos;eeisqueprorrompemasmetáforas,asarrojadas
comparações,osatrevidospensamentos.Daquitambémasobejidãonodiálogo,ea
falta de sombras em todo esse quadro onde tudo são cores. Daqui porventura a
desigualdade de frase: esta porém parece dever-se à muita leitura dos dramas
franceses.
A frase é efectivamente assaz desigual: os francesismos são a cada passo
d’envoltacomasconstruçõesquinhentistas,eàsvezesumgalicismovemtropeçar
comum arcaísmo. As hipérboles são demasiadamente repetidas; e em situações
quemuitasvezesasnãocomportam;finalmenteasfrasesromânticasàVictorHugo
eàd’Arlincourt,oshorrores,asmaldiçõessãoprodigadasquaseaesmo.Apreme-
ditadaeatrocíssimavingançadeAntónioBarachoparececarecerdemotivosque
cheguemparajustificá-la.Erairmãodeumamulheraquemumcavaleiroamara,e
queporoutraabandonou;essecavaleirolhenãofizeramaiorafronta,pelomenos
nodramasenãomencionaqualfosse,eBarachoaparelhafriamenteosmaiscrus
tormentosparaflagelaraqueledequenãoreceberamaisdoqueumleveinsulto,e
esseindirecto!Demais,consultem-sefilosoficamenteashistóriasdotempo,ever-
se-á,queumhomemdesnobrenãolevavaaessegrauopontodehonra.Seoautor
quisvaler-sedoexemplodoPresbostedeParis,deverialembrar-sequealioirmão
deSara procurapor todososmodosvingar-sedo sedutor,porqueesteviolaraa
hospitalidade,porquedelereceberaumgrandeinsultopessoal,porqueforaelea
causadirectadaalienaçãoemortedeseuvenerandopai,porquetendo-lheofere-
cidoamãodeSaraouopunhal,elepreferiuopunhal.
É casualidade que toca na inverosimilhança continuar-se no Tejo uma
chácaraqueseestava recitandoameiavoz (porquenãoeranaturalqueadama
estivesse falando doutromodo) num aposento; e continuar-se logo que a dama
respirouparaterminaroquelherestavadascoplas.Étodaviabemdeserelevar
esseinconvenientepoisqueachácaraélinda,econcertadacomprimor.
Nãoparecenatural,nacenadoclaustrodizerprimeiroadama,queelaco-
nheceriaomatadorpelavoz,edepoisexaminartodososcavaleirossemqueestes
falem,edecidirquenenhuméoassassino;–nemeladessemodoopoderiareco-
nhecerpoisqueAntónioBarachosó tirouamáscaradepoisdehaverdadoapu-
nhalada em D. Álvaro, quando já Branca fora conduzida para outro aposento. –
Eutinhaumasasasbrancas
-327-
Tambémmelhorseriaquearevistaseinterrompessequandoaindafaltassemmais
algunscavaleiros,porquenãohavendojásenãoAntónioBarachopareceestranho
nãoseconcluirporumsóquerestava.
No4.ºactonãoproduzbomefeitoaprolixidadedafaladopaideBranca,e
enquantoestapadecenamaisangustiadaaflição,estar-lhecontandooqueelaeos
espectadoresjásabem:porventuramelhorforaqueopainãopresenciassetodoo
julgamentoda filha,eentrasseno fimdele,paraevitaraposição falsaemquese
achaportodoodecursodessalongacena.
Vaio5.ºactomuitobemlevado,eporteorsumamentedramático;masvem
D.Leonorcortarointeressedoespectador,ecansá-locomessadiatribequenada
temdegenerosa.Estacenapodiatalvezdispensar-se,continuandoomonólogode
D.Álvaro(parapreencherotemponecessário)interrompidoaespaçospelomorno
silênciodadesesperação.
Fazer-secarrascoAntónioBarachoaseubel-prazer,nãoéverosímil:naPe-
nínsulanuncahouveolivreofíciodealgozcomonaSuécia,ealgunsoutrospaíses;
se nodramaCatherinaHoward Ethelwood se faz carrasco, é porque o algoz que
havia, foipeitadopara fugir;éporqueobárbaroHenriqueVIII, faltando-lheesse
instrumentoaoseu furor,mandou lançarpregões,oferecendoavultadassomasa
quemseoferecesseparaaexecução,permitindoousodamáscaraparaqueaver-
gonhanãopesassemaisqueointeresse.
Acenafinalédegrandeefeito.
Concluiremos,observandoqueoofíciodecríticonãoémaisagradávelqueo
dealgoz;adiferençaentreumeoutro,sóetodaconsisteemque,oalgozdáamor-
teàsuavítima;ocrítico,quandoseempregaemanalisarobrasdeméritocomoo
dramadequetemosfalado,nãosólhesnãodámorte,antesmaislhesanimaavida,
propagandopelasgentesoconhecimentodassuasbelezas.
Voltaremosaoassunto,queéeleporextremovastoparaqueopossaabar-
carumsóartigo,emborasejaextensocomoeste,quejáonãoétãopoucoquenão
receemoscansaraatençãodosnossosleitores.
_____________
TeatroCastelhanoHátemposqueentrenóssecomeçouaestudar,ouantesseprincipiouafa-
larnanecessidadedeestudaroteatroCastelhano.Aliteraturaquehaviainspirado
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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todooséculo17,a filhadeGilVicente,nãodeveriaporcertoser tãodesprezível
comoatinhaousadoconsideraroséculodezoito,escarnecedorsistemáticoe frio
detudoquantolhenãoeradadocompreender:–CorneilleeShakespeareláestão
paradesmentiroqueda literaturadeumgrandepovodisseVoltaire tãode leve
comodemuitosoutrossubjeitos:–queosespanhóisnãotinhammaisqueumlivro
bom,eeraoqueescarneciadetodososoutros.
O teatrocastelhanoéverdadeiramente filhodosolo,poisquedesdeoseu
princípiooabandonaramtodos.Isabeleasuacortetinhamanimadoosprimeiros
esforçosdeJuandelEncina,GonçalodeCórdova,eTorresNaharro;masFernando
deAragãoerademasiadamenteseveroparaamarosprazeres literários,CarlosV
eraestrangeiroecomasuacorteestevequasesempreforadoReino;seussuces-
soresnãoselembraramdoteatrosenãoparaocarregardetributoseproibições;
finalmenteacasadeBourbontrouxeogostofrancês,–eodesprezoacabouoquea
perseguiçãocomeçara.
Nomeado do século 16, Lopo de Rueda insignificante ourives de Sevilha
compôsalgunsesboçosinformaiseosfezrepresentarporseuscompanheiros;mas
animadopelosucessofavorável,queobtiveram,ei-loacorreropaís,avisitartodas
asgrandescidadesdeEspanha,eagranjearportodaapartedinheiroeaplausos.
Empoucotempoforammuitososseusimitadores,eembrevesanosfoicobertade
teatrosaEspanha.–Ouvioquenoscontaumpoetacontemporâneo.
“A comédia foi descoberta aomesmo tempo que a América, enquanto se
conquistavaGranadaeoreinodeNápoles;masfoiLopedeRuedaqueprimeiroa
fezflorescer.–Dividindo-aemactos,einventandoasloas;misturou-lhedepoisos
milagres,osamores,easchocarrices.Aorquestraeraumcegocomasuaguitarra,
eopúblicoseretiravamuitocontente,depoisqueoPalhaçoostinhabemdivertido.
Poucodepoisaintrigasecomplicou;houvezelozosparaperturbarosamo-
res;paisparaosimpedirevizinhasparaosajudar;Berriointroduziuoscristãose
osmourosnacena;JuandeCuevaosreis.–ArliedadáosEncantosdeMerlin,Cris-
tovãodeViruésaSemíramis;opúblicoquismilagresearmadilhas,etudolhefoi
dado;enãohouveparvoemSevilhaquenãopusesseoseupatrãonacena.”
EisaquioestadoemqueLopedeVegaeseuscontemporâneosacharamo
teatro; e longe de diminuírem omal porventura o aumentaram; pois que sendo
malapreciadospelacortesedirigiramaopovoparaquemtudoerabom,contanto
Eutinhaumasasasbrancas
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queencontrasseemoções;tudoeraverdadeiroquesepassassenasuapresença;e
éporissoquetodasaspersonagensdascomédiasespanholas:–romanos,gregos,
hebreus,chins,têmtodosardesairdoPrado,oudaPortadosol,todostêmlidoo
Amadis;etratamoamorcomoteólogos,eateologiacomoheróisderomance.
CoriolanoéumcavaleirodeAlcântara,JezabelumadueñadeSevilha,Ápio
CláudioumoydornoConcelhodas Índias.Àprimeiravistaseriadifícilnãoachar
estamascaradaverdadeiramenteridícula,maschamaiaCoriolanoD.Pedro,a Je-
zabelElvira,epasmareisdaverdadedoscaracteresedamaneiraporquesãotra-
çados.Nãoexijaisdoautorbomplano,direcçãonemverosimilhança,nem…–oque
oautorquisfoidar-nosumabelacena;ecomonaverdadeébela!…–Ahistóriae
geografiaaprendeu-aoautornoslivrosdecavalarias;desortequepossuiele,co-
modizSancho,overdadeirotipodopúblicoparaquemescreve,e“oreinodeDi-
namarcaoudeSobradisalheservemtambémcomoumanelnodedo.”–OImpera-
dordeConstantinoplaouoreidaPérsiasãodestronadoscomumafacilidade in-
crível;emaisvezessecortaonódaintriga,doquesedesata.–Deus,ossantos,os
diabos,osanjos,osreis,osestalajadeiros,asmeretrizes,eoscavaleirosdeS.Tiago,
tudotudolhepertence.ACenaousepassanocéu,ounoinferno,numpalácio,nu-
mailhaencantada,ounumlugarsuspeito;enostrajesháamesmaliberdade:Se-
miramisaparececomtouca,Tamerlãodecalções,e JúlioCésardecapaeespada.
DarãoalgumaideiadestamisturadaostítulosdealgumaspeçasdeLopedeVega
quesobemamaisdeoitocentasnãocontandoasqueseperderam;sãoeles:Arman
eMardochèo,AdóniseVénus,oAnti-Cristo,oassaltodeMaastricht,oAmorbando-
leiro,AngelicanoCathay,Araucodomado,&…–numadassuascomédiasintitulada
ObaptismodopríncipedeMarrocos não aparecemmenos de sessenta pessoas, e
comosenãoforasuficiente,terminaapeçaporumaprocissão.–Etudoistosefa-
ziapordevoçãoe amaiorpartedos autoresdramáticos erampadresou religio-
sos!…
_____________
TeatrosEstrangeirosParis=Primeirarepresentaçãodel’Ouvrier,dramadeMr.FredericSoulié.
Lombardomestremarceneirotemdoisfilhos–VictoreAugusto;aqueleto-
doambição, e esteamandoenergicamenteo trabalho.Oambiciosonão receouo
nomedeseupaiparapartilharoamordeEugéniadeMouneray,aquemtinhasal-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-330-
vadodumeminenteperigoassimcomoàcondessadeGévres,suaavó;masdesco-
briram-lheaorigem,eoexpelemignominiosamentedoCastelo.–Ei-loqueapare-
ceoutravezsobotectopaternal,eopobrevelhoLombardoestánamaioraflição;
porqueroubadoseviranaterrívelnecessidadedefazerbancarrota.Elecontaen-
tão a sua pupila Juliana, que o seu nome apenas compete a umdos que sempre
chamarafilhos:Augustoprocuraanimarseupai,eVictorprotestaconsagrarseus
diasarestabelecerafortunadobenfeitor.
PorestetemporeinavatambémnoCastelodeMounerayaagitaçãoeosus-
to:certospapéisqueforamroubadoscomjóiasdepreçodavamgravíssimocuida-
doaoBarãodeMouneray.Estesdocumentospreciosospodiamcontestar a exis-
tênciadoherdeirodeGévrescujafortunaeraentãodeEugénia,noivadofilhodo
Barão.Mascomoaprovidênciadispõesempredascoisasdestemundoomelhor
possível, Augusto consegue poder comprar ao ladrão os papéis e os diamantes,
provaqueéoMarquêsdeGévres,fazdesposarEugéniaaVictor,casacomJuliana,
erestituiocréditoaovelhopai.
Estedramafoirecebidocomomaiorentusiasmo,eprometenumerosasre-
presentações.
--------*--------
BIOGRAFIA
MáriodeCandiaQuandoAdolfoNouritdeixouaAcademiadeMúsica,aadministraçãoesco-
lheudoistenoresparasuprirestaimensafalta:umdelesfoiDuprez,cujavozforte
e dramática devia traduzir com superioridade as obras de energia e paixão; e o
outro eraMário de Candia, cuja voz igual emelodiosa, e porventura demasiado
tímida,pareciadestinadadepropósitoparaasobras,emqueodramadeslizaese
esvaecesobamorosa intriga.TodaviaDuprezsubiaaopalcodaÓperapoucode-
poisdo falecimentodeNourit; porémMário tardou tanto tempoa aparecer, que
todostodos,públicoeartistas,dandiesefolhetinistasjácomeçavamaduvidarda
realidadedesuaexistência.
Finalmenteaocabodeumanodeestudos,deensaios,delutascontraasua
timidezinvencível,econtrasuapronúnciaitaliana,otenorseapresentounopapel
deRobertoaoentendidoareópagodaÓpera.–Asprovasforamsucessos,eofidal-
gopiemontêsfoiadmitidoàbrilhantefamíliadosartistas.
Eutinhaumasasasbrancas
-331-
DoismesesapenastinhampassadoejáoSr.deCandiatinhadesenvolvidoo
seutalentodecantor,easuatimidezcomeçavaasersubstituídaporessaconfian-
ça,quealgumasvezesésódepersiumbompresságiodeventurosoporvir.Entre-
tantoestaconfiançadeMárionãoéunicamentefilhadohábitodaCena,oudasua
adopçãopelopúblicodaAcademia.Garfodeumnobretronco,perseguidoporinfi-
nitasoposições,logoqueoseuprojectofoiconhecidodanobrefamília;afrontado
porelaapenassouberadainjúriaqueaoseubrasãointentavaofilho,oSr.deCan-
diaseviacombatidoeatormentadoporhesitaçõesinterioresbempoderosassem
dúvida;porissomesmoque,seoseudebutetivesseumêxitofunesto,seusnobres
paisteriamoprejuízoaseufavor;eainsuficiênciadofilholhesrelevariaasinjus-
tiças.
Felizmentearazãosecolocoudapartedo filho.–Mascomosedecidiram
essastendênciasdeartistanomeiodacortedaSardenha,enomeiodemancebos,
nosquaisexistiacomtodooseuvigoroprejuízonobiliário?–Como?seriaárduo
dizê-lo.ÉporventuraàinfluênciadobelosoldaItália,queMáriodeCandiadevea
paixãodaarte,eprincipalmenteafortevontadecomquesoubedestruirtodosos
obstáculos:–ascircunstânciasoajudaram.OpaicomofossemilitareGovernador
deNiçaedeGénova,ofilhodeveriaseguirasarmas;elefoipoiscolocadoentreos
nobrespajensdaAcademiadeTurim,dondesaiumuitoforteemestratégia,emui-
tofracoemmúsica;mascomapatentedealferes.Oranãohácoisamaisfastidiosa,
especialmenteparaumalferes, doqueo estarde guarnição; epor consequência
Mário,aomesmotempoquefumavaeconversavacomoscamaradas, iacantaro-
landocomessavozjánotávelporseufrescoresuavidadeostrechosdeóperade
queadereçaraamemória.Oauditóriodeuniformeescutavacomumsilêncioreli-
gioso, e admirava, e seguiam-se-lhemuitos cumprimentos e gabos, e lisonjeiros
horóscopos.FoinumadestasocasiõesemqueMáriopreludiavaseufuturo,foien-
tãoqueseusardentesadmiradoreslhefalaramdoteatro,edaelevadacategoriaa
que,aindamesmonumacenadeprimeiraordem,poderiafazê-losubiroencantoe
superioridadedasuavoz;entãoCandiaacreditandonosamigos,deixaoregimento,
parteparaParis,conseguefazerescutar-se,eanimadopelosvotosesufrágiosde
artistasemúsicos,Máriodissecomofervordeumaalmanova,econvencida:Serei
artista!…–Edepois ei-loque sedemitedeoficial, resiste tenazmente aospais e
parentesquehaviamoapoiodaCortedeSardenha,etomandoparaodirigirnos
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-332-
estudosmusicais a Bardogni e Ponchard, para aprender de umomecanismo da
arte,edooutroasuapoesia,CandiapedeaMichelotquelheensineaacentuaçãoe
maneira de falar dos verdadeiros franceses, para que destemodo não tenha de
apresentar-seartistaincompletonaelevadaCenadaÓpera.
Asliçõesdosmestresproduzirambelosfrutos,Máriotrabalhandoinfatiga-
velmentefezrápidosprogressos;mascontudonãoousavaelearrostaraprovatão
difícildeumdebute.–EentãodequemeiosevaleriamparaconquistarparaaAca-
demiaessemancebo tão cheiode seivaede talento, esse frutoque sóprecisava
amadurecido?Fizeram-nopassarporgraus intermediáriosdesdeasaudições ín-
timasatéàsaudiçõesquepelamultidãodeconvidadospodiamquasedara ideia
de uma representação solene. Depois de semelhantes provasMário tomoumais
confiança,easociedadeparisienseconfirmouplenamenteo juízodosartistasde
Paris, e os horóscopos dos oficiais sardos. PresentementeMário de Candia, cuja
vozétãosuaveetãodocementepenetrante,tãoigualetãofresca,Máriosóprecisa
deperseverançapararealizaraquiloparaqueestádestinado,paraser–umgrande
artista!
__________
CURSOLITERÁRIO
DE
Mr.Magnin
(ÚLTIMOARTIGO)Nemtodososdramasdosconfradesforamfalados;poisquetambémexisti-
rammudosdramas,queespecialmentetinhamlugarempresençadosreis.–Godo-
fredodeParisrimadordoséculo14nosdeixounasuacrónicaemversoumades-
criçãomuitocuriosadasfestas,quetiveramlugarem1313porordemdePhilippe
oBeloempresençadeDuarte2.ºdeInglaterraparacelebrararecepçãodeCava-
leirodeLuísreideNavarra,edepoisreideFrançasobonomedeLouis-le-Hutin.
Colhe-sedessaCrónicadeGodofredo,queos tais regozijos foram festasmímicas
incontestáveis,executadasporcorporaçõesleigas.
Masvoltandoaoséculo13,osdramasfaladosforamentãomuitonumero-
sos: alémdo JogodeRobineMariou queMr.Magnin considera como a primeira
óperacómica,existemaindaoJogodeS.Nicolau,odocasamento,eumafábulade
Eutinhaumasasasbrancas
-333-
AucassinoeNicoletta,entremeadadecantoprosaeverso;porémoqueestaépoca
nosdeixou,semcontradição,maiscurioso foramdoismonumentos:–umquese
intitulaJogodePedrodelaBroce,espéciedeéclogaparatrêspersonagens,equese
podeconjecturartersidorepresentadodepoisdaquedaesuplíciodoministrode
PhilippeoBelo:–osegundoéomilagredeTeófilopelotrovadorRutebenf,–fantás-
ticalegenda,cujaorigemseencontraemgrego,equeseachacinzeladanafachada
deNossaSenhoradeParis.
Oséculo14 foiaindamais fértilqueoqueoprecedeu:–ganhandomaior
desenvolvimento as confrarias, tornaram-semuitomais numerosas as composi-
ções;edoismanuscritos,queseachamnaRealBibliotecadeParis,contêmmaisde
40mistériosdestaépoca.Nistosenãolimitaporémtodoolavorteatraldoséculo
14:sucederamàsescolasepiscopaisasescolasuniversitárias,efoicriadaumalite-
raturaerudita,cujosmonumentossãoemgeralporextremocuriosos.
Osséculos15e16nãoforammenosfecundosqueosprecedentes,eentão
seestabeleceramdefinitivamenteumgrandenúmerodeconfrarias.EmFrançaa
maiorpartedasrepresentaçõesdadaspelosConfrades tinha lugarsubdioouem
rasacampanha;naItáliaeranospórticosdospalácios;–de1402pordiantefize-
ram-sealgumasemsalascobertas,comoohospitaldaTrindade,eospaláciosde
Cluny edeBorgonha.Os trajes forammuito tempoemprestadospela igreja; aos
ofíciosseguiam-seosespectáculos;esóem1550équeseestabeleceramteatros
regulares.
Noséculo16asescolaseuniversidadesproduziramapardasconfrariasum
teatroerudito,comojáaconteceranoséculo14;eresta-nosparamodeloumdiálo-
go entreDeus e o homem, algumasmoralidades, e peças satíricas. As academias
tambémnãoestiveramociosas,etraduziramaantiguidade.NaAlemanha,Melan-
chtonpresidiuempessoaaosensaioserepresentaçãodasComédiasdeTerêncioe
Plauto,easfezprecederdeprólogosporsimesmocompostos.NaItália,Ariostoe
Machiavel, emFrançaBaifeRonsard traduziramo teatro latino:–LeãoXeLou-
rençodeMédicis favorecerame protegeramo teatro em língua vulgar; Jodelle e
LarivéecomeçaramemFrançaasuailustração.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-334-
--------*--------
ASOMBRA
DANÇAEM3ACTOSPORM.TAGLIONI:
MÚSICADEM.MAURER,DECORAÇÕES
DEM.ROLLERFoiestadançapostaemcenanoteatrodeS.PetersburgoparaoBenefício
deMademoiselleTaglionicomumluxotamanhoquepareciaencantamento.Todos
os trajes foram de circunstância; e o oiro, veludo, brocados&. eram prodigados
comamaiorprofusão.Asdecoraçõessãodeumabelezaeopulênciaextraordiná-
rias,eamúsicaédignadaobra:eisaquiempoucaspalavrasasuaanálise.
Umacastadonzelaaparece;alvamasempalecida,cheioocoraçãodeamore
deróseasesperanças;eadornandocomaníveadestraumformosíssimoramalhete.
Eladançaadescuidadosaegentilmenina;eladança,ebeijaoperfumedasflores,e
pensarespiraroamordoternoamante,quelhasofertara;maséumvenenooque
vaid’envoltacomoperfume,éumvenenoqueumazelosaepérfidaaíesparzira.–
Aimísera!quejáeleemtuasveiascircula,anuviam-seteusolhos,teupétãoleve
comooZéfiroresvala,ecais…morta!…Ohchorai-a!…–Masnãoavedesaindadi-
vagandonestemundo?Sim!éumapobresombraamorosadeumvivente;edesliza
no ar como flutuante neblina procurando por toda a parte aquele cujamemória
levou consigoparao túmulo, buscando-opor entre a cintilante folhagemdo sal-
gueiro, nas silenciosas planícies, sobre a prateada superfície dos lagos. A branca
sombraoencontraenfimdepoisdebastanteondularentreaterraeocéu:encon-
tra-o,masparaquê,seumasombranãopodeabraçarumhomemdestemundo?–
Felizmente a providência intervém; e a união dos dois amantes se realiza num
mundomelhor.
Pensava-sequedepoisdasílfideedafilhadoDanúbioseriaimpossívelque
Mademoiselle Taglioni fosse igualada por criatura humana: – figurai-vos porém
umadessasíncolasdocéu,umserideal,umasombraquetoqueomenospossívela
realidade;eassimmesmonãopodereisporventuraformarumaideiadetamanha
maravilha:–éumavaporosacriaturaquedesviando-selentamentedaCena,onde
pormuitotemposehaviabalançadosemtocaraterra,seesvaececomoumaapari-
çãoceleste.–Játendesvistoalgumavezporumanoiteclaraesossegadaessesfios
Eutinhaumasasasbrancas
-335-
deoiro,quevãoevêmsobreos toposdasárvores,oubrincamcaprichosamente
rápidoseimpalpáveissobreafronteescuradealgumaigreja?Talseriaaimagem
dadançaimaterialinventadanestaocasiãoporMademoiselleTaglioni.
NãoépoisdeadmirarqueosucessodaSombra tenhasido imenso,sendo
chamadaforaMademoiselleTaglionidezvezesparaescutarunânimesaplausos,e
recebertodososramalhetesdasdamas.NodiaseguinteoImperadormandouaMr.
Taglioni em testemunho da sua satisfação ummagnífico anel; e aMademoiselle
Taglioniummuitoricoadereçodebrilhanteseturquesas.
OMÁSCARANEGRA
(POST-SCRIPTUM)Esquecia-nosdizerjánesteNúmeroalgumacoisaacercadomodoporque
foipostoemcenaonovodramanonossoTeatroNormal.
No4.ºactoapareceopresidentedotribunalvestidodevermelho,etodosos
juízescombarretesdamesmacor.–AdvertiremosquenuncaemPortugalouEs-
panhausaramos juízesas roupasvermelhas,emuitomenos foiusoestaremco-
bertos,nostribunais.
No5.ºactovê-seocarrascoaparecervestidocomoseacenasepassaraem
Inglaterra.Entrenósnuncaosalgozes tiveramvestuárioquea lei lhesmarcasse,
porquenuncativemosCarrascosassalariados,nemeraumofíciomatargentecomo
noutrospaísesacontece.–Nessemesmoactotrazoalgozocuteloensanguentado,
oquepassaalémdetodaaverosimilhança,ealémdissodáideiadequeseacabou
defazerumaexecução,porquealiás,ouocuteloestariabemasseado,ouosangue
teriaoxidadooferroproduzindoumanódoadenegrida.
Ospapéisforamtodosmuitobemdistribuídos.
____________________
TeatrodeS.CarlosMarço22–Domingo–Ópera–Fausta–Dança–OsMineirosdeSalerno.
Segunda-feira23–Benefíciodo1.ºmímicoNicolauMolinari–Ópera–Os
Puritanos–Depoisdo1.ºactooBeneficiadoexecutaráumaCenamímicaintitulada
OParricida.O2.ºe3.ºactosdaditaÓpera,eaDançaOsMineirosdeSalernocon-
cluiráoespectáculo.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-336-
Terça-feira24–Ópera–Otelo–Dança–OsMineirosdeSalerno.Repete-se
acenadoParricida.
Quarta-feira25eQuinta-feira26–Ópera–Otelo–Dança–OsMineirosde
Salerno.
___________________
n.º17,de29deMarçode1840
TEATROFRANCÊSOmuito que em Paris se tem falado de um drama intitulado aEscola do
Mundo,oqual,segundodizeméproduçãodeumaaltapersonagemassazconheci-
da,noslevouadarideiadeleanossosleitorestranscrevendooseguinteartigoex-
traídodeumdosmais acreditados jornais de França, e cuja doutrina é abonada
pelaassinaturadoseuautor.
AESCOLADOMUNDO
COMÉDIAEMPROSANÃORIMADAAEscoladoMundo!–Éumtítulobemestranhoeatrevido.Qualéacomédia
quesenãopresumedeserescoladomundo?éesteumapelidoanónimodequal-
queractodecomédia.Masdequeespéciedemundoéqueaísetrata?édomundo
político,domundoelegante,oudomundoartístico?OsNostradamus,encarregados
deandarempredizendopelossalõesoêxitodapeça,respondendoaestasquestões,
encolhendoosombros,edizendoquenãoconheciamduasespéciesdemundo.O
mundoeraaboacompanhia,aaltasociedade,cujoscostumesatéhojepermanece-
ram ocultos a todos! O próprio Scribe nada pôde pescar dessemui altomundo,
nemporumcantinhodasuaboaluneta;assuaslindasviúvasmilionáriassuspei-
tavam-nasdehaveremjávendidofazendasnomostradoremtemposdodefunto;
osseusamorososeramdemasiadopançudosnãose lembrandoqueumamagreza
decente é qualidade essencial para se poder ser admitido em gabinetes de bom
tom!osseus…Porémbasta;convenhamosqueeratempoqueumhomemdomun-
doensinasseomundoatodosessesescritoresquedelefalamaesmo.Segundoo
dizerdessesleõesdosbastidoresesalões,oshomensdeofícioliterárionuncapu-
deramestudarnempintaresseÉden,esseEldoradomaravilhoso,ograndemundo!
Eutinhaumasasasbrancas
-337-
Ondeo teriamelesvisto,pobresdesgraçados, vadios envoltosna fumaçadas ta-
vernas, encostados ao ângulo já rombo de umamesa de pedra toda a pingar de
cerveja; cismadores de cotovelos rotos, e meias esburacadas; pedantes de olhos
empanados com a poeira dos alfarrábios; larápios extravagantes e tagarelas de
todasasoficinasdeartistas;miseráveisvagabundosquenãopoderiamentrarnu-
masalasemescorregarnaalcatifa;quelogoaoprimeiropassoquedessempisari-
amacadelinhaderegaço,eaoprimeiromovimentoexecutariamumasinfoniacom
oaparelhodeporcelanasdoJapão?–Umhomemeleganteapareceu,oqualsedig-
noudevassar-nososmistériosdessemundo, cuja existência tinha sidoaté agora
pornósignorada;dessemundoquesenãovestecomonósnosvestimos,quenun-
caencontramosnemnospasseios,nemnos teatros,equedemaisamais (como
admiravelmenteoprovaapeça)nãoseservenemdamesmalíngua,nemdomes-
moespíritoquenós.Por issoasequipagensafluíramnaprimeiranoiteàsportas
do teatro, e os camarotes se povoaram dessasmulheres que davam sorrisos de
piedadeaosversosdeMarionDelorme,edessesleõesaquemtodaequalquerobra
superiorfazsalmodiaremlongosbocejos.
EquereisagorasaberqualéessaEscoladoMundoondenosarrastamcom
tantoaparato,eàcustadetantasinjúriascontratodoaquelequeéobreirodepe-
çasrimadasounãorimadas?Essetalmundoéummundoodioso,inverosímil,im-
possível,ondeumadonzelavirtuosaérodeadasódegentecorrompidaegrosseira,
comquemomaisrefinadobrejeiraçodemelodramanãoquereria ligar-se.Acaso
temelaumprimo,eesseprimoéumperalvilho,umaçucarado,umimaginário,um
furioso,umquebra-esquinas,umsedutor, finalmenteumleão;chama-seM.Dam-
pré.Nãoconseguindofazer-seamardesuaprimapassaunspoucosdeactosaen-
treter-seemcomprometê-la.Adonzelatemumaamiga,queéaduquesadeSaran;
essaduquesalhepropõeumpactodedevassidõeseintrigas,comacondiçãodese
defenderem mutuamente contra as maledicências do mundo; um cavalheiro de
Miremont entra depois da duquesa para fazer uma brutal declaração de amor à
virtuosaAmélia:finalmenteapobremulhernãopodedarumpassosemqueseja
assaltadadetodasaspartespelasmaioresgrosserias;afalaraverdade,eisaíum
mundodequenãoformavamideiaatéhojeosescritoresdeofício.
Empagadetudoistoéapeçaescritanumvasconçodequeafraseseguinte
podedarumafelizamostra:–Madame,vousavezduesouventmetrouvereteinten
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-338-
votrepresence!–Ocasoéqueumapeçanãoseescrevedecarreira,comojulgam
essesmeninosbonitos.Nãoéaarteumapedradaestradaqueaqualquerélícito
apanhardochão:éumaveiadeouroqueà forçadetrabalhosseextraidamina.
Maisdeuma frontese temenrugadocomoengastarumtermonuma frase.Seo
escultorvêqueasrugosasmãosselheendurecemsobocinzel,seopintorsente
cansarassuassobreatela,podeisestarcertosdequenoescritortambémhámão
deobrae lavoresdeartista.Para fazerumaboapeça,nãobasta,meussenhores,
arregaçarospunhosderenda,mascarmaislentamenteocigarro,erabiscaralgu-
masfolhasdepapelduranteumentre-acto.
Oêxitonãofoiduvidoso.AEscoladoMundoobteveumaquedadeestima.Os
panegiristasdapeça acusaramdessadesgraça a estupidezdaplateia. Pobrepla-
teia! grosseira plateia! faltou-te um fino talento para poderes compreender esse
espíritoperfumado,etéreo,delicado,tuquetãobemcompreendesteobomsenso
deMolière.AEscoladoMundo,representadapordetrásdeumacortina,nofundo
deumasala,teriaporventuraodireitodeagradar;certasfrasesquesãodemasia-
damente incompreensíveis por não terem um valor local e alegórico teriam por
certofeitoriràsgargalhadasalgumastiasvelhas.Estapeçaécomocertasmulhe-
resquenãosãobelassenãocomcertascondições,porexemplo,comumvestidode
talcor,umarosanacabeça,umdiamantenatesta,umsinalpretonoarrebiqueda
face,assobrancelhaspintadas;–etudoistodispostonumagradávelclaro-escuro
degabinete.Masseovestidoéverde,searosacaidamarrafa,seoarrebiquese
transtorna, seas cortinasdogabinetesãodedamascoamareloemvezdeserem
escarlates,adeussenhorabeleza.
É também grande loucura, inaudita presunção querer-nos persuadir que
existeummundoàpartenasociedadeparisiense,mundoqueévedadoaprofanos,
onde não poderiam ter entrado nem Lamartines, nemHugos, nemBalzacs, nem
outrosmuitosdomesmo teor. –Poisque!o escritorque temandadopor todaa
parte, que temprovado alguma coisa de todos osmodosde vida, que já dormiu
numaágua-furtada,epassouváriasnoitesanãoserintrigadoporpessoaalguma
nosbailes daOpera, que foi aMont-faucon aprender comodas entranhasdeum
cavalosefazemmilcoisas,comoporexemplo,ascordasdasviolasquetãomelodi-
osamente vibramnas salas de companhia; – o escritor que, ora foi bomguarda-
nacional,oraguarda-nacionalrefractário,algumavezgrumete,enãopoucasescre-
Eutinhaumasasasbrancas
-339-
ventedeadvogado;essehomemquetudoconhece,nãoconheceriaomundo!sóaí
équenãoseriarecebido!Quedigo,acasonãoseriaeleadmitidoaescutaràsportas,
a espreitar pela fechadura ou pelas fisgas!Mas, ainda o repito, qual é pois esse
mundo!ondeestáele!emqueseocupa!porquerazãotemtantoreceiodeserco-
nhecido?–Oraénecessárioconfessarquetalmundonãohá,ou,paramelhordizer,
jánãoexiste.
Noutrotempohaviaumgrandemundoquesechamavaacorte.Parafazer
partedeleeraprecisoternascimentoouespírito.Essemundoeraconhecido,clas-
sificado,definido;enasespirituosascartasdeMadamedeSevignéselêaverdadei-
rahistóriadessemundoqueagoranãotemos.
E.Gonsales
_____§_____
BIOGRAFIA
MademoiselleTaglioniNão é tão fácil, como parece, escrever a biografia de uma pessoa como
MademoiselleTaglioni.Quemháaíquepossafalarconvenientementedasacçõese
vidapositivadeumserqueétodoaéreoemisterioso?Ealémdissoporquemodo
evitaresseselogiosexageradosdequeaimprensanostemsaturadodesdeaapari-
çãodaSílfida?–NãoseráaSílfidaumdessestermosusados,umadessasbanalida-
deslaudativas,quejádetantorepetidasvosfazemdordecabeça?…Nóspois,em-
boracorrendooriscodenãoagradaratodos,guardaremosummeiotermoentrea
aridezbiográfica,eopanegirismofanático.
MariaTaglioninasceuemStokholmnoanode1807deumafamíliaeminen-
tementeartística:KarsteinseuavômaternoeraoTalmadaSuécia,eàqualidade
deactortrágicoreuniaadecantormuidistinto;GustavoIIIqueoestimavamuito
lhedeuocargodeSecretárioáulico.–Afilhadesteartistaquasefidalgodesposan-
doocoreógrafosicilianoTaglioni,ofrutodestauniãofoiMariaaquemTerpsicore
embalounosjoelhosimortais.
OSignorTaglionisendochamadoaVienaem1822naqualidadedecoreó-
grafoedançarinocompôsentãoparadebutedeMariaumadançaintitulada–Re-
cepçãodeumaninfanotemplodeTerpsicore–eosucessodajovemelindaninfa
foicompletoe fezecoemtodaaAlemanha.Stuttgardaquispossuir;acapitalda
Bavieraenviouumembaixadoràbeladançarinadonorte,játãocélebre,eosbons
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-340-
habitantesdeMunichareceberamcomomaiorentusiasmo.Foidestaúltimacida-
dequeelapartiuparaFrança,ondedebutounoteatrodaRealAcademiadeMúsica
deParisa23deJulhode1827.OteatrodeMunich,quecederaporummêsMade-
moiselleTaglioni,areclamou;eelafoiterminarasuaescritura,despedindo-sena
dança–OCarnavaldeVeneza;porémnoanode1828aÓperaapossuiudenovo,
aparecendoMariaTaglioninadança–AsBaiadeirasdaÍndia.
Debaldese invocamlembrançasdeMademoiselleGosselin,eda inimitável
MadameGardel;emvãoosinvocam;Taglionitudoescurece,sobrepujatudo.Aim-
prensaacodeaajudarestetalentocheiodedelíciasegraças:apregoa-o,exalta-o;e
oslouvores,madrigais,ecoroaschovemdetodasaspartes:nuncaseviraentusi-
asmosemelhante.
TaglionicriouospapéisdeBelleauboisdormant,deFlora,Sílfida,Natália,
Brezila&etodasestascriaçõesfizeramcresceraindaaadmiração,osaplausos,eo
fanatismo.Eentretantoaquepertencemaisaoardoqueàterra,aquevosembe-
vecedepoesia,aqueécomoumasombraossiânica,flormeneadadozéfiro;vapor,
idealidade, indefinível encanto… sofre as tristes e cruéis realidades da vida!… –
MademoiselleTaglioniviutodaasuafortunaarruinada!Masembreveosparisien-
sesprocuramaindaquenãototalmente,repararaomenossuavizarquantopossí-
veltamanhodesastre,eumarepresentaçãofoidestinadaparaseubenefício,aque
tudoconcorreu;epagaram-lheporesteteoradívidaqueparacomelatinhamcon-
traído,quandoem1829TaglionidesempenhouopapeldePeychis,nadançadeste
nome,abenefíciodoantigocoreógrafoGardel.
Tal é a vida dessamímica excelente, dessa dançarina excepcional, que há
classificado,comocumpria,aslinhastelegráficas,egeométricasdasposiçõeseati-
tudes forçadasouafectadasdaantigaescola;equereuniunumasóasdançasde
teatroedesalão.–Comojásetemrepetido,–adançanãoéumofício,nemmesmo
éumaarte,éumdomdanatureza.Taglioninãotem,comocertasdançarinascien-
tíficas,piruetas,oupontinhasdepésqueparecempoisarsobreumpavimentode
fogo,oucontorçõesderinsedebraçosaqueoutrorasechamavagraça;–Made-
moiselleTaglioniencanta;enadamaissepodedizer.
Eentretantoquemháaísobreaterraquenãotenhasidoalgummomento
alvodecríticas?ÉmisterconfessarqueogénerodedançaetalentodeMademoise-
lleTaglioni,oseuexemplo,einfluênciadestruíramaqueletodocoreográficoquese
Eutinhaumasasasbrancas
-341-
notava naOpera de Paris. Já se não podemver passos compostos de grupos, de
massas,jánãohácontrastes;ecadaum,ouantescadauma,querafectarummolle
abandono.OsdefensoresdeTaglionirespondemquenãoéjustotorná-larespon-
sáveldasimitações,quesefazemdoseuestilodedançar;poisqueBeranger,Ros-
sini, e V.Hugo levam tambémapós si o servumpecus deHorácio. Encantem-nos
poisessesmesmosdefeitosdeMademoiselleTaglioni,porquedefeitosdeumana-
turezatãoescolhidatãoparticularcomoasuadecertopodemtornar-seemgran-
desqualidadesnaquelasartesquetantovivemdacriação.
_____§_____
QualidadeseDeveresdo
ComedianteÉ evidente que a gesticulação se empregou em todo o tempo tanto mais
quantoalinguagemdaspalavraseraimperfeita;parecenaturalqueelasetivesse
aperfeiçoadoantesdapalavra;masparasubstituirestedomqueoCriadorreser-
varaaohomem,cumpriaqueogestohouvesseadquiridoumagrandeverdadede
expressão,poisqueàreproduçãodessaverdadeéquedevemtendertodososes-
forçosdoactor,muitomaisseoseugéneroéadançamímica:veremosadianteque
aestaprimeiracondiçãodevemtambémjuntar-seasdagraçaebeleza.
“Asregrasdagesticulação,dizQuintiliano,tiveramasuaorigemnostempos
heróicos;mereceramaaprovaçãodosmaioreshomensdaGrécia,nãoexceptuando
opróprioSócrates.Platãoasconsiderouapardasgrandesqualidadeseúteisvir-
tudes,eCrisiponãoasesqueceunoseulivrodaeducaçãodosmeninos.
Agraça,acandidez,eatéanobreza,sãoqualidadesdetodosostempos;se
osdotes corporaispodemcorromper-seoualienar-se; se chegapor fimo tempo
emqueogestopodeseralteradosemverdade,ésóquandooscostumesseabas-
tardam,easnaçõesperdemasuanaturalsimplicidade;finalmentequandocertos
gestosdeconvençãosubstituemosquesãoditadospelanatureza,efilhosdeuma
felizconformação.
Osmonumentosepinturasetruscas,queaindahojeseconservam,provam
atéquepontoaartedogestoeraapreciadadesdeamaisremotaantiguidade,por-
queessaspinturas,conquantonãoofereçamavistaspoucoexperimentadasmais
doqueinformescontornos,enenhumaexpressãoderosto,indicamtodaviacoma
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-342-
maiorexactidão,esópormeiodogesto,a intençãotoda inteiraqueoautorquis
daràssuaspersonagens.
SabemosqueAristóteleshaviaterminadoasuaartepoéticacomdiferentes
livrosemversoquetratavamdamímica;esseslivrosperderam-se,masnãoassim
oconhecimentoquetemosdeque jáantesdeletrataraGlaucoomesmoassunto.
Comotodasessasobrasnossãodesconhecidas,ésomenteporumainduçãotirada
dosmonumentosgregosquepodemosdescobriralgunsdossegredosquefizeram
nascertantasobras-primas.
Ogestonãoésenãoummeiodeindicaraexpressão:nãoéumfim.Nãobas-
tapoisagradaraosolhospormeiodeumaposiçãograciosaounobre;cumprees-
sencialmente que se fale ao pensamento. Assim vemos que os escultores gregos
tendonotadoqueomovimentogeraldeumaestátuaproduzmaiorefeitodoquea
expressãoparticulardorosto,muitomaissederamaretraçaratitudesexpressivas
doque a concertar fisionomiaspara o rostodas suas estátuas. É tambémessa a
razão por que preferiram representar nus os seus heróis, parecendo-lhes que a
amplidãodasvestesencobriaumapartedossinaiscaracterísticosquedevemcon-
correrparaaunidadedaexpressão.
É pelomovimento geral do actor que nós julgamos do sentimento que o
domina,muitomaisdoquepelasfeiçõesdorostoqueadistâncianospodeocultar.
Anecessidadedegesticularcomjustezaépoismanifesta;edeveráseresseopri-
meiroestudoaqueoactordeveráentregar-se.Nisto,bemcomoemtudoomais,a
naturezapõeàsuadisposiçãotodaaespéciedemodelos.
Osgestosqueesteouaquele indivíduopodeoferecernumadadacircuns-
tâncianãodevemsempreserconsideradospelomimocomoumtipoapresentado
pelanaturezaconsideradageralecolectivamente.Podemsersomenteoresultado
deumhábito,ouosinalindividualdeumtemperamento,deusosecostumespar-
ticulares.Oquesetratadereconhecerecomunicaréocaráctergeraldaspaixões
exterioresdetodososhomens,contantoquesenãoqueirarepresentar,emcerto
modo,oretratodeumapersonagemhistóricaeconhecida.Amáeducação,opouco
usodomundo,qualquerdefeitodeconformaçãofísica,produzemnoindivíduoum
gestopessoal,umbordão(comodizem)quelheépróprio,equesedeveevitarcom
omaiorcuidado,porqueoartistadeve,antesdetudo,conformar-seaospreceitos
geraisdobelo.Ainfluêncianacional,conquantodevaserestudada,produzgestos
Eutinhaumasasasbrancas
-343-
quepodemsemelhantementesercontráriosaocarácteressencialdaarte,queéa
decênciaeabeleza.Demais,nãohaveriaporventuraoriscodenãopoderoactor
sercompreendido,reproduzindonapresençadoespectadorosgestosdeumaper-
sonagemque inteiramente lhe fossedesconhecida?Oactorquehouverderepre-
sentar,porexemplo,umitaliano,acasocumprirácomaverdade,gesticulandodes-
comedidamente,comousaaquelepovo,comoriscodepassarporumextravagan-
te?
Hátambémalgunsgestosdeinstituiçãoosquaisoactordeveconhecer;tais
sãoasdiversasmaneirasdesaudarqueusamosdiferentespovos,seusgestosde
protecção,debênção,dedesprezo, ódio,& c.ª.Oactor adoptando-ospodeassim
transportaroespectadoratemposremotos,ecativá-loporumaaparênciaantiga
ouestrangeira.
______________
UMACENA
DOCASAMENTO
DeFigaroAlgunsanostinhamdecorridodesdeamortedeLuísXV,eretiradaaCon-
dessaDubarrynoseucastelodeLuciennesvivianaintimidadedemuitaspessoas
distintas por sua amabilidade, que de tempos a tempos a visitavam, e entre as
quaisencontraríeisasmaiorescelebridadesdaépoca.–Umanoite,eeranofimdo
Outono, uma noite estava ela sozinha no seu Gabinete, e, recostada molemente
numsofá,consideravadistraídaamonótonarotaçãodosponteirosdeumapêndu-
la; a chuva, que se quebrava sobre os tectos, acrescentava sua melancolia, e as
lembrançasdopassadolheerampresentesnessahora!…
Genovevasuaaiaatiradessaespéciedetorpor…
–Acasochameieu?–lhedisseaCondessacontrariada…
– Tinha que dizer à Senhora Condessa, e sabendo que estava só julguei
oportuno ensejo… – EGenoveva se retirava já, quandoMadameDubarry lhe fez
compreendercomumgestoqueestavadispostaaescutá-la;eentãoelaseexpri-
miudestarte:
–ApobreRogeracabademorrer,eporherançaacoitadadeixoucatorzefi-
lhos de tenros anos: pessoas caritativas da Freguesia se encarregaram de treze;
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-344-
restaomaisvelho,eescrevetambém!…–Acondessaabanouacabeça,masGeno-
vevanemporissodeixoudecontinuar.
–Opobremeninotemdezasseisanos,émeigo,ingénuo,esemapoiocorre
riscodecairnalibertinagem…eMadame…
–Aminhainfluência,replicouaCondessa,aminhainfluênciajáacabouhá
muito;seriaembaladocomesperançasbemloucas.
Masabondadedeseucoraçãoéquempredomina,eGenovevaéautorizada
arecebê-loporalgumassemanas.–JúlioRogerfoiinstaladoemLuciennes.
A sua conversação, belíssimos olhos negros, e perfeição de seu composto
advogavampor ele. Passados algunsdiasRoger foi condecorado como títulode
Secretário.
Comprazia-seMadameDubarryemfalar-lhedosirmãoseirmãs;eavistada
Condessanuncadeixavadelheabalarfortementeopeito;enfimjánãoeraparao
pobrerapazseparar-sedela;amava-aloucamente!…
IaaCondessapassearaojardim,apequenadistânciaeraseguida;encerra-
va-seouseisolavaela,nãolongeencontrariasRoger;equandodiantedeleconver-
savaaCondessacomMr.deCossé,omesquinhojovemseperturbavaatéàsíncope.
MadameDubarryhaviaatéentãotratadodecrianciceasdemonstraçõesde
Júlio,asquaisconsideravacomoprovasdesimplesafeição;masumacontecimento
aveiodesenganar,eelaseenfadou,oufingiuenfadar-se,porqueumamulhercomo
Dubarrysemprefolgacomumamantedemaisencadeadoaoseucarro.
Tinhachovidograndepartedamanhã,eMadameDubarryparasedistrair
foidarumpasseiopeloparque.Devoltaparacasa,comotemesseahumidade,mu-
doudemeias,mandouchamarJúlioparaospreparativosdeumafunçãoqueque-
riadaraMr.deCossé,eentrounoGabineteondeaesperavaobarãodeSugére.
NooutrodiaGenovevaforadesientranoquartodaCondessa,eclamaque
háumladrãoemcasa;poisquelhefaltaumameiadeseda:assuassuspeitassobre
um,sobreoutroalternativamentepoisam;eatéafidelidadedeZamôrésuspeita-
da;mandaram-no chamar, e Júlio que nestemomento estava junto da Condessa
mostravaumarcadavezmaisembaraçado.–Quandoo inculpadochegou,Roger
comoparadesviaraatenção,oexcitouabrincarsegundocostumava:–uma luta
tevelugarentreosdois,eentãoviuaCondessanumamanga,queporcasualidade
Eutinhaumasasasbrancas
-345-
selevantouaJúlio,aperdidameiadesedaenroladasentimentalmenteàguisade
pulseiraemtornoaobraçodoamorosomancebo.
ComumgestoMadameDubarrydespedeGenovevaeZamôraquemtinha
escapadotudoisto;eficandosócomJúlio,elalhedirigeestaspalavrascomarse-
veroeenfadado:
–Então!…Nãotemestedeixarrecairsuspeitassobreinocentes,nãoreceaste
expor-meadespedirfiéisservidores?…
–Oh!Senhora,respondeJúliocomumarmuitocontrito,oh!nãomeopri-
maiscomessaspalavras,comtaisrepreensões!–estavadoente…tinhanestebraço
umainflamação…continuabalbuciando;edisseram-mequeeraremédioeminente
qualquercorpodesedaquetocouapeledeumapessoaqueseama…
MadameDubarrynãopôdeaestadeclaraçãoconteroriso;–Júliocontinu-
ou:
–Estamedeuavida,emeconsolarádenãopodergozardeumbemque
jamaispossuirei,ecujaprivaçãotalvezsejaaindaacausadaminhamorte.
OrisodaCondessaredobrouàconfissãodesteamortãoplatónico…eisque
GenovevaanunciaMr.deBeaumarchais.–Pareciaeletristeepensativo,oferecen-
domuigrandecontrastecomafisionomiarisonhaeanimadadaCondessa;eépor
issoqueseouviramestaspalavras:
–Comohojevosapresentaistriste!
–Comqueloucaalegriaestaishoje!
OPoetaestavapreocupadocomoCasamentodeFigaro.–MadameDubarry
lhecontouaaventura.
BeaumarchaisqueaoprincípiomuitopoucaatençãoprestavaàCondessa,é
agoratodoouvidos,elhaprestaamaisviva…
Poucoapoucoasuafrontesedesenrugaseurostoseasserena,eaodeixar
Laciennesbrilhaneleamaioralegria.
Júlio,possuidordapreciosameia,partiunooutrodiaparaaHolandaalevar
umacartadeMadameDubarryaoConde João;eBeaumarchaisescrevendoose-
gundoactodoCasamentodeFigaro,criaraaencantadorasituação,emqueafita,
tiradanoprimeiroactoporQuerubimàCondessad’Almaviva,éencontradanoseu
braçopelamuitobelamadrinha.
___________________
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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CrónicaTeatralTeatroNormal–TemcontinuadoairàcenaseminterrupçãoalgumaOho-
memdamáscaranegra, acompanhadocomalgumasdas jámuitovistas farsasOs
Doidos,ManoelMendes,&.DestasúltimasjáassaztemosfaladonospassadosNú-
meros.
NodesempenhodoMáscaranegrasetemcontinuadoacometerosmesmos
errosdepronúnciaquehavíamos censuradoemnossoN.º15.O Sr. Epifâniodiz
sempreLARVASemvezdelavas;aSra.Emíliapronunciasempredesisperação,ter-
turas,golpis, &. sem tratar de emendar-se. Persuadam-se os nossos actores, que
nuncapoderãochegarà celebridadeaqueaspiramenquantose lhenotaremtão
indesculpáveisfaltas,equelhesseráabsolutamenteimpossívelmereceremotítulo
de actoresmais quemedíocres enquanto se obstinarem nos seus defeitos,mos-
trando indocilidade,oupresunçosa indiferençaaos salutares conselhos,quepela
imprensa,lhesforemdados.
Vem a propósito observar ao Sr. Vanez que no seumonólogo do 3.º acto
pronuncia sucessivamente, fosteis,viesteis,educasteis, emvezde– fostes, viestes,
educastes:esteerromaisalgumadesculpamerece,porqueémuifrequente.
T.deS.Carlos–4.ª-feirafoioOtelocomaSra.Ferloti,eSrs.Conti,Regoli&.
–ÉbemconhecidaestaóperadeRossinipelosnossosdilettanti,poisquejámais
deumaveztemidoàcenanoteatrodeS.Carlos;contudoémuitonaturalquefosse
recebidacomagradoeprazer,porquesemdúvidaéestaóperaumadasexcelentes
dogranmaestro,ondeelequisebuscoualardearmúsicadramática,eondefezvi-
brarcomgrandetalentotodasascordasdoamoredosciúmes.Quantoaoseude-
sempenhonãotemossenãoaaplaudir,e,segundonosparece,aplaudircommuita
justiça;porqueaóperafoibemnoseutodo,eemalgumaspartesexcelentemente.
OSr.Conti(Otelo)tornou-sedistintonoseupapel;nãopodemosdeixardejuntar
nossopequenobradoaodopúblicoqueoaplaudiu,elhepedimosquecontinuea
estudarcomconstânciaeamorabelíssimaartequeprofessa;porissomesmoque
lhe reconhecemosbastantesprogressosdesdequedebutounesteTeatro. –OSr.
FerrettitambémfoibemnoseupequenopapelenoduetocomoSr.Conti foram
muitasaspalmasebravos,queosvitoriaram;tendonaprimeiranoiteoallegrodo
mencionadoduetomerecidoahonradobis. –ASra. Santini aindamaisumavez
Eutinhaumasasasbrancas
-347-
deuprovasdoseu talentomúsico;eapesarde lhe teravozbastanteescasseado
nestesúltimostempos,mostrouqueaindapossuíanãovulgaresmeiosnasuaarte;
e que sabia combinar as dificuldades e fiorituras comomavioso e delicado, que
especialmente no papel de Desdemona, tanto se requerem. O S’il padre
m’abandona…dofinaldosegundoacto;eoromancedoterceiroforamnaquarta-
feiracantadosexcelentemente,ecomotalaplaudidos.–Namesmanoitevimosa
dança osMineiros de Salerno, acçãomímica do coreógrafoAstolfi, que tem sido
muitobemrecebida;oseuenredoéoseguinte:–Raimundo,príncipedeSalerno,
militandonasCruzadasficouferidoeprisioneiro;masosseusojulgarammorto;e
umparente –Gastão era o seunome– usurpouo principado. Para cohonestar a
usurpação,oumaisassegurar-senotrono,poisquerestavaumfilhodeBoemundo,
Gastãotentacompreceseameaçascasar-lhecomaviúva,oquenãoconseguiriase
Elviraporesteterrívelmeionãojulgassesalvarofilho,porcujaexistênciamuito
receava;masno entanto chegaBoemundodepois de infinitos trabalhos e até de
umnaufrágiodequeeleúnicopôdesalvar-se.Imagine-sequalseriaasuadesespe-
ração e raiva quando, sem o conhecer, lhe contam o acontecido: Boemundo se
apresenta,disfarçado,nomeiodacerimónianupcial,clamaqueoverdadeiroprín-
cipedeSalernovive,semeiaaconfusãoeotemornosassistentes,eemGastão,que
cheioderaivaoinsulta,lhechamaimpostoreocondenaatrabalharnasminas.–O
encarregadodaexecuçãoéumantigoefielservidordeBoemundo:esteselhedáa
conhecer,conseguedeleumaentrevistacomaesposa,edepoisdeteremconcerta-
doosmeiosdealibertar,eoreino,detãoinfameusurpador,Boemundoàfrente
dosmineirosaindahábempoucosóciosdeinfortúnioconseguedebelarotirano,
queéapunhalado,eprecipitadodeumaaltatorredondepoucosmomentosantes
queriaprecipitaroinocentefilhodoverdadeiropríncipedeSalerno.
TaléoenredodadançamímicaquehápoucosubiuàcenanoTeatrodeS.
Carlos. As decorações sãomagníficas, os vestuários de bastante riqueza alémde
muitovariados;asCenasnovascorrespondemàbemmerecidareputaçãodosSe-
nhoresRamboiseCinatti:emnossoentendersobrelevaàsoutrasacenadacâmara
particulardaprincesadeSalerno;apinturadoguerreirodespedindo-sedaesposa
foi calculada felizmente para produzir, como produz, umbelo efeito. A cena das
minasémuitoboa,e,senãocausougrandesensaçãonosespectadores,foiporque
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-348-
provavelmenteaindase lembravammuitodacenadasCovasnosPortuguesesem
Tânger,eaanalogiaquesedáentreumaeoutra,extenuouoprazerdanovidade.
Estáanovadançabempostaemcena;oassuntoédebastanteinteresse,e
fértilemlances,que,conquantojámuitousados–comosãoosreconhecimentos–
nãodeixamdeproduzirmuitoefeito:étalvezdemasiadamenterepetidoestemeio,
porém,pelobemqueéexecutadoemtodasastrêsvezes,sepoderelevaressede-
feito.Muitosnãorelevamtãofacilmenteaescassezdebailados,eporventuralhes
nãofalecerazão,poisquesãomuidiminutos,quasequesóconsentindoematitu-
des,egruposdepoucaounenhumanovidade.Somatotal–adançaagradou,ede-
viaagradar,porqueoqueselhenotadebomémuito,eoquelhecriticampouco
diminuiaquelevalor.
No desempenho distinguiu-se especialmente o SenhorMolinari (Boemun-
do)oqual,postoquealgumasvezesseexagereumpouco,ostentagrandeforçae
verdademímica reunidas amuita insinuação fisionómica: seria injustiça não lhe
darlouvores.
------§§------
TeatrosEstrangeirosParis–AOperatemfeitodespesasimensasparaadançaintitulada–Odia-
boamoroso–avaliam-seemmaisdecemmil francos; tantaéasumptuosidadee
riquezadostrajesedecorações!…OsucessodoDrapiertemimpedidoarepresen-
taçãodosMartyresdeDonizetti,óperaquedeveassomarnohorizontetãobrilhan-
tedaAcademiaRealdeMúsica.
AÓperaCómicacontinuavaafazernumerosasreceitascomoDominónoir;
masoquetemfeitoumverdadeirofanatismoéaÓperadeDonizetticujotítuloé–
LafilleduRegiment –Donizetti, dizemos jornais franceses, pareceum jovemde
vinteanos;taléofrescordassuasideias,abelezaenovidadedosmotivos.Muito
seesperavadomaestro;masaexpectaçãofoiaindaexcedida.Nomesmoteatrose
estão ensaiando também duas grandes óperas de espectáculo: – Zíngaro – para
debutedeMr.Perrot,célebredançarino;eoAnjodeNisidacujamúsicaédoinesgo-
távelDonizetti.
Eutinhaumasasasbrancas
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OLAGODASFADASUmabaladaalemãdeuaM.M.ScribeeMelesvilleaprimeiraideiadestanova
ópera.Énofrescordeumlagocristalinoqueasfilhasdosaresvêmdistrair-seda
suaimortalecelesteinsipidez.Amaislindadessasvirgensdocéu,possui,comoas
outras suas irmãs, um véu de tecido preciosíssimo, maravilhoso talismã, sem o
qualasaéreasdonzelasnãoseriammaisdoquesimplesmortais.Zeila(queassim
sechamaamuiformosa)antesdeentrarnolago,depõenamargemoricovéu,ig-
norando,coitadinha,quepróximoseachavaocultoumestudantequeaespreitava,
elheroubaoseutesouro.Quedesesperação,quelágrimas,quandoaosairdovo-
luptuosobanhoapobreZeilanãoachaoencantadorvéu!Depoderosafadaqueera,
ei-laagoratransformadaemmesquinhamortal;dehabitadoradosaresedoscéus,
ei-laforçadaarojar-sepelasuperfíciedesteimpuromundo,asujeitar-seàsmisé-
riasdasuanovacondição,abuscarsatisfazeràvida;finalmenteadelicadaebran-
cadivindadevê-seconstrangidaafazer-secriadadeestalagemàesperademelhor
fortuna.Quedafatal!etudoporcausadeumvéu!FelizmenteZeilaencontraojo-
vemAlberto,essemesmoestudantequelhehaviaroubadoavestedaimortalidade,
Albertoqueseperdedeamorespeladonzela,aqualnãotardaemcorresponder-
lhealgumtanto;masumasériedecircunstânciasvemestorvarosdoisamantes.
Alberto nomomento em que dirigia rijo golpe contra um tal conde Rodolfo seu
rival, feriu, não sei como, a linda Zeila, e julgando havê-la assassinado perdeu o
juízo;porémavistadaamanteaindavivalherestituiarazãonoinstanteemqueo
Condesepreparavaaarrebatar-lheoobjectodoseuamor;entãoAlberto,nãoten-
dooutromeiodeopor-seaosdesígniosdorivallembra-sedeentregaraZeilaovéu
quelheroubara;eaívedesvósabrancafadair-seelevandonosaresatédesapare-
cernomais longínquoazuldo espaço. – LargouZeila o seumortal despojo,mas
nãopôdeassimsacudirdocoraçãooamorquelhoconsumia!Vai-setercomarai-
nhadasfadasesuplica-lhequeadeixerenunciaràtediosaimortalidade;arainha
deferesemcustoàsuasúplica.Entãodesceabelaemdireituraaoalbergueondeo
seuAlbertoestavaprestesasuicidar-seporamoredespeito;easgraçaseoscari-
nhosdeZeilao tornamomais feliz…dosestudantes.Eassimocreioeu;que ter
poresposaumafadanãoécoisaquesevejatodososdias!–TaléoLagodasFadas,
elongedenósédizerquesejaobra-primadeestiloeinvenção;oqueagradanesta
peçamimo-líricaéessamisturade fantásticoe realque transportaoespíritodo
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nossomundopositivo para ummundodemistérios, e encantados pensamentos.
Assazdissemosdolibreto;vamosàpartituradeM.Aubert.
NãopodeoLagodasFadasentraremcompetênciacomaMuette,belíssima
composiçãodomesmoautor;masnãosepodenegarqueelesoubeelevar-seaum
altograunaestimadosadmiradoresdamúsicafrancesa.Nemsempreencontrou
grandes inspirações,masdeuacertaspartesdasuaobraumacor localdignade
louvores.Assimporexemploemtodoo5.ºactosuaharmoniaeacompanhamentos
aspiramumvagoedeliciosoperfumedeembevecimentoemisticismo,queenleva.
Quantoaorestodapartiturafaz-senotarquasetodapelogostocomqueéescrita.
TeatrodeS.CarlosMarço29–Domingo–Ópera–Otelo–Dança–OsMineirosdeSalerno.–
Repete-seacena–OParricida.
Segunda-feira30–Benefíciodoescriturário–Ópera–Parisina–Dança–Os
Mineiros.–Depoisdo1.ºactodaÓpera–DuetodaCariteia.Depoisdadança–Due-
todeOtelo.
Terça-feira31–ComautorizaçãodaInspecçãoGeraldosTeatrosnãohave-
ráespectáculo.
Abril2–Quinta-feira–Ópera–Fausta–Dança–OsMineiros.
Sábado4–GrandeGalaAniversárioNatalíciodeS.M.aSENHORAD.MARIA
II.–Óperanova–ElenadeFeltre–Dança–OsMineiros.
__________________________
n.º18,de5deAbrilde1840
TeatroCastelhano
(ContinuadodoNúmeroXVI)OSéculodeLopedeVega,essaépocatodaprimitiva,naqualareligiãoeo
teatro caminhavam demãos dadas, viumais de um comediante de reputação ir
acabarseusdiasnumconvento;edevenotar-sequeosactoresdesse tempo for-
mavamumaconfrariasobadenominaçãodeNossaSenhoradaNovena.Umacéle-
breactriz,quehavianomeBaltaraza, tendo-seretiradoparaumermo,aímorreu
depoisdegrandespenitênciasqueasiprópriaseinfligiu,enomesmoanodasua
Eutinhaumasasasbrancas
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morterepresentou-seemMadridaComédiafamosadelaBaltaraza,compostapor
Guevara,Rojas,eCoelho,naqualsevêaditaactrizassistircomGodofredodeBoui-
llonà tomadade Jerusalém,edepoisaparecerdançandoasarabandaemhábitos
deeremita.ACalderona,quefoiamantedeD.FelipeIVemãedeD.JoãodeÁustria;
essadequemumpoetasatíricodizia:
Unfrayleeunacorona,
Unduqueeuncartelista,
Anduvieronenlalista
DelabellaCalderona.
retirou-seno fimdosseusdiasparaomosteirodasRecolettasdeS.Pascoal,que
elahaviafundado,elámorreuemcheirodesantidade.
MasvoltemosàépocadeLopodeRueda,quejábemlongeíamosdeixando.
Eis–aí tendesumaaventuraquenos contaumactor seucontemporâneo, eque
assazmostraoqueentãoeraoteatro:éAgostinhodeRojasquemfala.
“Chegámosumdia,eueomeucolegaSolano,aumaaldeia,eíamosnóstão
carregadosdedinheiro,comocarregadodepenasvaiosapo.Entrámosnaestala-
gem,pedimosquenosdessemcama,porémfoidebalde,porqueeradiadefeira,e
todasestavamocupadas.Estanovafeznasceremmimumaesperança.Conteiuma
patranhaàestalajadeiraquemeperguntavaquemeuera, e, tendo-lheencomen-
dadoumaboa ceia, corri a casadoalcaideapedir-lhe certa licençaque logome
concedeu.Tomeidepoisomeutamborefuiandandoportodasasruasatocarea
bradar,anunciandoaosabsortosaldeões,queprestes iamrepresentaracomédia
daRessurreiçãodeLázaro.Voltandoàpousada,acheiocasiãodeintroduzir-meno
quartodapatroa,elançandomãodoslençóisecortinasdoleito,asatireipelajane-
laaomeuamigoSolano,eimediatamentefomosvestir-nosparaopalheiro.
Eis-meemcena,embrulhadonumlençol,efazendoopapeldeLázaro;reci-
togalhardamenteomeumonólogo,eosaplausoschovemdetodasaspartes;mas
quandoSolano,quefaziaopapeldePadreeterno,entraemcenacomumacandeia
namãofingindooraio,etodoenvoltonoscortinadosdoestalajadeiro,começaeste
emaltosgritos:–Pegaqueéladrão,aqui-d’el-reiladrões–ecaindosobreopobre
domeucompanheirocomeçaadesancá-locomumpau,noqueécoadjuvadopor
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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umamultidãodelabregos.Porfelicidadeestavajáabertaacovaonde,comoLáza-
ro,haviaeudeserenterrado,aímeencaixeicomopude,enãomejulgueiressusci-
tadosenãoquandomeacheiemraso-campo.Omilagreestavafeito,porque,quan-
domeforamprocurarparadar-meomeuquinhão,jálámenãoencontraram.”
É foradedúvidaqueLopodeRuedadeu representaçõesemMadrid.Cer-
vantes, no prefácio das suas Comédias, diz positivamente que o viu sendo ainda
criança;oquepareceéquenuncateveestabelecimentofixo.Comojádissemos,era
autor e actor aomesmo tempo; e os seus sucessores seguirameste exemplo; de
maneiraqueautor significa, emespanhol, nãoopoeta,masodirectorde teatro,
porquenosprimeirostemposeramospoetasquereuniamumacompanhiacapaz
derepresentarassuasobras.Navarro,Villegas,Cisneros,Claramonte&.eramsi-
multaneamenteautoresedirectores.
Eis-noschegadosàépocaemqueosteatroscomeçaramasersedentários;
antes porém de tratar do seu estabelecimento emMadrid, ainda daremos mais
umacitaçãodeRojasacercadosdiversosbandosdecomediantesquenoseutem-
poexistiam.
“Sabereis,dizele,quetemosemEspanhaoutrosnomesdiferentesparade-
signarasváriasespéciesdebandosdecomediantes,asaber:Bululu,Naque,Ganga-
rilla,Cambaleo,Garnacha,Mogiganga,Farandula,eCompanhia.–Bululuéumco-
mediante que viaja só, a pé. Quando chega a uma aldeia vai procurar o cura, e
anuncia-lhequesabedecorumacomédiaealgunsprólogos,equesequerchamar
obarbeiroeosacristão,lhesrecitaráaspeçasquesabe,contantoquedêemalguma
coisaparacontinuarasuajornada.Quandotodosestãoreunidos,sobeaumbanco,
e começa a representação, tendo sempre o cuidado de ir dizendo: – entra o rei;
agoraentraadama;&.=etudoacompanhadodeapropriadosgestos:Quandotem
concluído,passaocuraafazeraderramanacopadeumchapéu,ejuntaunsquatro
oucincoquartos;adiciona-lhes,porcaridadecristã,umaescudeladecaldoealguns
pedaçosdepão,eocómicopõe-seacaminhoparaseguirasuaboaoumáestrela.–
Compõe-seoNaquededoishomensquepodemrepresentarumintermédio,eaté
umactosacramental;tambémrecitamalgumasoitavas,epossuemumabarbade
lãeumtambor:fazempagarumchavoporcadalugar,vivemcontentes,dormem
vestidos,caminhamdescalços,elevantam-sedamesaesfaimados.–Gangarilhaéjá
umacompanhiamaisconsiderável;constadetrêsouquatroactores,dosquaisum
Eutinhaumasasasbrancas
-353-
sabefazerdegracioso,etemtambémumrapazparaexecutarospapéisdemulher;
representamahistóriadobomPastor,têmbarbasecabeleiras,epedemempresta-
dastoucaseroupagens,quemuitasvezesseesquecemderestituir;fazempagaros
lugares aquarto cada um, e no local da representação recebemovos, sardinhas,
pão,&.Estespodemdevezemquandobeberasuapingadevinhoecomeroseu
bocadodecarne;vãorepresentaràsgranjasecasais,dormemnaterra,e,àfaltade
capotes,têmavantagemdepodercaminhartodoodiacomosbraçosencruzados.
Para formar um Cambaleo é necessário uma mulher que cante, e quatro
homensqueberrem.Orepertóriocompõe-sedeumacomédia,doisautos,etrêsou
quatrointermédios.Comooquepossuemosnãocarregamuito,levamadamaàs
costasnosmauscaminhos.Narepresentaçãorecebemporcadalugarseismarave-
dis,umpedaçodecarne,eumcabazdefruta,permanecemcincoouseisdiasem
cadaaldeia,alugamumacamaparaamulher,enamoramaestalajadeiraparaver
sechegamaconseguirummolhodepalha,umamanta,eapermissãodedormirna
cozinha.–Cincoouseisactores,umamulherparaosprimeirospapéis,umrapaze-
teparaos segundos, eisoque constitui aGarnacha:umcapote,doisvestidosde
mulher,trêsvestuáriosdehomem,barbas,cabeleiras,&.talépoucomaisoume-
nosasuaguarda-roupa.Vai tudocarregadonumaazêmola,quenagarupa levaa
dama.Estestêmovinhoàsgarrafas,acarneàsonças,opãoaosarráteis,eoapetite
aosquintais.Dãorepresentaçõesparticularesporumfrangão,doispichéisdevi-
nho,equatroreais.–NumaMogigangaháduasmulheres,umrapaz,cincoouseis
comediantes, outras tantas comédias, e dois caixões de vestuários. Alugam duas
cavalgadurasparairemmontandoaospoucos.–AFarandulaéaindamelhor;mas
paramereceronomedeCompanhiasãonecessáriospelomenosdezasseisactores,
bonsvestuários,ebelasreceitas,queéoquemaiscustaaachar,tantoopúblicose
temtornadodifícil!”
Foiem1567queseestabeleceuemMadridum localespecialmentedesti-
nadoàsrepresentaçõesdramáticas.Duaspiedosasconfrariassehaviamformado,
umacomonomedaPaixão,outracomonomedeNossaSenhoradaSoledade;eram
destinadasa tratardospobresdoentes,earecolherosexpostosrecém-nascidos.
EstasconfrariasalcançaramdocardealSpinosa,presidentedoconselhodeCastela,
oprivilégioexclusivodefornecerolugardasrepresentaçõesàscompanhiasquea
Madridconcorressem.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Designaramparaesteefeitoospátiosdetrêscasas,duasnaruadoPríncipe,
ondeéactualmenteumdosprincipais teatrosdeMadrid, eo terceiropróximoà
portadoSol.Nosprimeiros temposdava-lhesodirectordo teatro seis reaispor
cadarepresentação,mas,antesdofimdoséculo,jásubiaasomaaduzentos,epelo
tempoadiantesefoiaindaaumentando.Daquisevêqueaideiadodireitodospo-
bresnoprodutodosteatrosestábemlongedeserumaideianova.
Nessaépoca,eaindamaisdeumséculodepois,faziam-seasrepresentações
àluzdosol,eaoarlivre.Opúblicoocupavaopátio,nomequeaindahojeemEspa-
nhaconservaaplateia;estendia-seuma lonademaneiraqueosespectadores ti-
vessem sombra, e se chovia não tinha lugar a representação.Mais tardeusaram
fazeremvoltadopalcoumaespéciedetelheiro,eorestoeradestinadoparaopo-
pulacho,quepelasuaturbulência impunhaleisaosactores.Chamavam-lhesmos-
queteros,porque,dizumautordessetempo,oruídoquefaziamrivalizavamuitas
vezescomoqueproduzemasdescargasdemosquetaria;ospoetasnãopoupavam
meioalgumdelhescaptarafeiçãoebenevolência,elhesdirigiamlouvoresecum-
primentosemseusprólogos.ReferePellicerqueem1650umremendãochamado
NicolauSanches,eraocabeçadessestaismosqueteros,equenuncaserepresenta-
vapeçanovasemqueprimeirooautoreodirector lhehouvessempedidoasua
protecção,quenemsempreeleconcedia.
Asjanelasdascasasvizinhasserviamdecamarotes,eodirectorpagavacer-
taquantiaaosproprietáriosparaquedeixassementraropúblico.OduquedeLer-
ma,eseufavoritoD.RodrigoCalderónforamosprimeirosquetiveramcamarote
alugadoporumano.Algumasdessas janelaseramguarnecidasdegelosias,epor
issomelhorsepagavam.Depoisestabeleceu-seumaporçãointeiramenteseparada
dasoutras,esomentedestinadaparaasmulheres;deram-lheonomedeCazuela.
AntónioVelasquez,directordoteatro,oucorral,comoentãolhechamavam,darua
doPríncipe,tevealembrançademandarpublicar,quenodia10deFevereirode
1586pelamanhãdariaumacomédiasóparaasmulheres;edevenotar-sequenão
concorreramaesseespectáculomenosquesetecentasesessenta:masocorrege-
dorproibiuarepresentaçãonomomentoemqueosactoresiamentraremcena,e
confiscouareceitaafavordohospitalgeral.
NãofoisóemMadridquesemanifestoutantogostopeloteatro;emtodaa
Espanhaeraomesmo:nãohaviaaldeia,pormaisinsignificantequefosse,ondese
Eutinhaumasasasbrancas
-355-
nãodessemrepresentações, eatémuitasvezesumsóbandodecomediantes re-
presentavamemmuitos lugaresnomesmodia.NaobradeCervantes,oheróiD.
Quixoteencontraumbandodeactoresqueandavamdeterraemterrarepresen-
tando asCortesdaMorte sem sedaremao incómododemudarde vestuários.O
mesmoCervantesnosfazsaberqueoscativosespanhóisrepresentavamemArgel
ascomédiasdeLopodeRueda,eatérefereque,escravosemourosrepresentaram
noserralhododeyacomédiadaqueleautorintituladaLaFuera-Lastimon.Maisde
quarentabandosdeComediantescorriamasEspanhas,eeramorefúgiodosdeser-
tores,dosfradesapóstatas,edetodoogénerodevagabundos;aterradoogoverno
comtantosdistúrbios,eperseguidopelasreclamaçõesdoclero,quealegavaestar
emperigoareligião,convocouem1586umajuntadeteólogosparadecidiremse
eramounãolícitasascomédias.
Averdadeéqueadecisão foiafirmativa,apesardequeerareconhecidaa
necessidadedeimporfreioàlicençadoteatro,emuitascomédiasqueatéentãose
haviamrepresentado,apesardasobscenidadesemqueabundavam,figuramdesde
essaépocanoscatálogosdaInquisição.
Nãofoibastanteessareformaparafazercalarasreclamaçõesdosdevotos.
Queixavam-seespecialmentedeserememdemasialicenciosasasdançasqueter-
minavamdeordinárioosespectáculos.Océlebre jesuítaMariananoseu livrode
spectaculisqueixa-semaisquedetodasasoutrasdasarabanda,edizterelasido
causademaioresmalesdoqueapeste.Ocasoéqueestadançafoiproibida,eque
os seus admiradores, para consolar-se, publicaram a vidaemortedaSarabanda,
mulherd’AntónioPintado,onde severãoos legadosqueeladeixoua todosos seus
amigos,ecomoexpiroudedesgostoportersidodesterradadacorte,Cuenca1604.=
Éesteumdoslivrosmaisrarosecuriososdetodaaliteraturaespanhola.Em1597
o partido devoto venceu completamente, e as representações dramáticas foram
proibidas.Duroutrêsanosessaproibição.
DOISEPISÓDIOSDAVIDA
DEUMGRANDEACTORTrêshomens,umamulheraindamoça,ealgunsrapazesceavamnumaesta-
lagemnosarrabaldesdeManchester.–Osademanesextravagantesoudesenvoltos,
seufalarpesadoouespirituoso,ostrajessemharmonia,eanaturezadasuabaga-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-356-
gem,quesecompunhadealgunsinstrumentosebempoucaroupa,vo-losdenun-
ciaria:eramcomediantes.Nãoeramelesporémdessescomediantes,queenvolvido
ocorpoemfartasericasvestes,easmãosemdelicadapelica,sealardeiampelos
sumptuososeespelhadosaposentos,esperandocomimpaciênciapelahorafixado
jantar;masdaquelescujamoradaperpétuasãoastavernaspróximasaolocalonde
seconstróioambulanteteatro,ecujavidaéumalongacomédia:emFrança lhes
chamambaladinos,emInglaterrastrollingplayers.Artistassemventuraquevivem
sem lhes importar o dia de amanhã; filósofos, atrevidos, pacientes;mudando de
habitação,devestido, ede fortuna todososdias; e cujamaiorparteaindaassim
não trocariaavida incertae laboriosapelaexistênciamonótonae fácildealgum
sedentárioenédiotoleirão.
Fazbomtempo;vereisodespedaçadoteatrosairdacarreta,aquemmalar-
rastacavalotãomagro,comoocondutor.Entãooprimeirogalãenterraasestacas,
a primeira amorosa cose um pedaço do pano, o director da companhia procura
comumaesponjaeáguadopoçodaràsdecoraçõesumardenovas;otiranopetis-
calume,eosfilhosdoamor,quesempreacompanhamestagentetãoapaixonada
ainda nomeio das tribulações, se vestem de romanos – soldados obrigados nos
dramasde todosos tempos.Umadaspartes secundárias rufa àporta, opalhaço
pulaefazmilviagens;opúblicochegaalfim,oclarimeozabumbaochamampara
ointerior;entra,ergue-seopano,eacompanhiaantesdecearrepresentasobreo
trémulotabladoodramaouacomédia.
Massetodoodiachove,seopúblicofechouasjanelasparaselivrardahu-
midade,entãoficanocarroomíseroteatro,cobertoapenasporumtoscorepostei-
ro;eostrajesdepapeldoiradoedepaninho,vestidospelosdesapontadosactores,
serevelamsobacapa,ouverdecarrick.–Odiasepassaamaldizeressachuva,que
matando todaa esperançade receitanão fazomesmoà terrívelnecessidadede
encherestômagosinexoráveisqueporbomoumautemposempredigerem.Reina
aimpaciênciatodoodia,masànoiteémistercearaconteçaoqueacontecer,émis-
ter cear; vemopuddingqueépedidoaltivamente, equando sãohorasdepagar
começaodramaouacomédia.–Quandoocéuéserenoepurocomeçaelaàs5ho-
raseaceiaàs10;masquandoenubladoeescuroacomédiamudacomooponteiro
dobarómetro,ahoradaceiajamaisvaria.
Eutinhaumasasasbrancas
-357-
Tinhanestaocasião começadodepoisdomeio-diaomau tempo, edurara
ainda,masjádezhorasseouviram,ceavaacompanhia,eodramaiacomeçar.
Jack Bob, velho, director, administrador, bilheteiro, decorador, e clarinete
dacompanhia,tinhalevantadoagoladocarrickpordesobreasorelhas,carregara
sobreosolhosochapéupardo,erodandotristementeemtornodamesa,soltava
suspiros,comonãocostumava;queeraelealtivocomoumdirector,descuidadoso
comoummarinheiro,borrachãocomoummúsico:–eBob,opobrevelhosuspira-
va!…
–PorDeus!lhedizTomCoveoclown,ougracioso:–porDeus!masterBob
quenosdaisaresdeumenterro;eandaisaíagastarinutilmentecomovossopas-
seioasminhasbotasvermelhas,easuspirarcomoumadessas tolas impertinen-
tes…
–Então!Bob,diz Jackson–o centro: – então,meuantigo companheiro! o
puddingaliestá,eTomCoveengolecadapedaço,queatuaraçãocorreperigo;co-
mopoucasvezesnosacontecealmoçar,serialoucuradeitarmo-nossemcomer;–
acabacomatuapantomima,evemcear.
Não tenho fome, respondeu amargamente Jack Bob;mas estendendoma-
quinalmenteamãoparatomaropicheldeestanho,aretiroucomoseforambrasas,
econtinuou:Tambémnãotenhosede!…
Olá!meussenhores,dizcomvozagridoceoprimeirogalã,quetinhacarade
escocês; aposto que Bob estaria sequioso, se em vez de água o pichel estivesse
cheiodeporter…
Bobfingiuquenãoouvira,eTomCoveexclamou:–Oqueéverdade,meus
amigos,équesomosuns loucosemnos inundarmosdeágua,quando,comoesta
noite,noscustariaigualmentecaraacerveja.
–Prudência,replicouJackson,prudência,Cove;amanhãteremosbomtem-
poeboareceita,aceiahá-desermelhor; lembra-tequeotaberneirofiaalgumas
vezes,quandosecontentamcomopuddingdasemanapassada,equesó lhepe-
demágua;masqueéintratáveltodasasvezesquelhepedemacerveja,oulhefa-
zemmatarospombos.
–Jacksontemrazãodizoamoroso,queaoprincípiopareciaaprovarCove;
Jacksontemrazão;amanhãhaverágrandereceita,pombosassados,porter,ostras,
epunchàfrancesa.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Nãopuderamaestaspalavrasconterumgritodealegriaosrapazes:–po-
bresgaiatoscommetadedacaraescondidadentrodechapéusdehomem,equede
dezanosacabavamdeusarascalçasdospais;pobresgaiatos,quelhesfoiaalegria
debempoucaduração;JackBob,quetinhacontinuadoapassearàcustadasbotas
vermelhasdeCove,Jackparou,ecomvozsentenciosadiz:–Amanhã!…–Amanhã
heigrandemedoquenosnãovejamosobrigadosameterfenoemnossoscachim-
bos,eaintroduzirnoestômagomaisardoquepombosassados.
–Eporque?clamaramtodosaomesmotempo.
–Porque!…Enãoatentaisvósquenosfaltaumconviva?Equeconviva,meu
Deus!…
–David!David!… exclamou a jovemBetty, a loira e graciosaBetty, a qual
acabavadecastigarumdosrapazes,quedepoisdetercomidoasuaporção,ataca-
vavigorosamenteadoseuvizinho.–ÉDavid!…
Sim, David, replicou Bob, David que nos havia prometido de se demorar
poucotempoemcasadoduquedeBedford,equehádoisdiasquenãoaparece!e
seelenãovoltaquemdesempenharáamanhãospapéisdeShylock,edearlequim?
QuemcantaráoRuleBritanniacomestroeentusiasmocapazesdefazerentoara
todososespectadoresessehinopatriótico?–Vósosabeis,meusamigos,Davidéa
almadaCompanhia.
–Éverdade,éverdade,clamaramtodos;masDavidhá-devoltar,estames-
manoite.
–Não,não!continuouBob:Davidéummancebojovial,espirituoso,ebelo;o
duqueencantadodoseurepresentaroacolheu favoravelmente,eporventura lhe
teráoferecidobomempregonoseuserviço.Ora,Daviddeveestarcansadodese
nutrirdebatatas,edormirsobreapalha;Davidousapreferirànossaacozinhado
duque,eumbomleitoàsnossaspalhas:Davidéumingrato!…
EaodizeristoJackBobfezumgestodoloroso,enterrouonariznagravata,
quejálheencobriatodaabarba,esoltouumsuspiro;quepormuitocomprimido,
soouaindamaislúgubre.
–Estásdoido,MasterBob?dizTomCove.
– Estás doido semdúvida, exclamou comvivacidade a engraçadaBetty. É
mister ser loucopara suporqueDavid seja capazde abandonar os seus amigos,
fazendo-se servo de um duque; e se David é jovem, espirituoso, jovial, e belo, é
Eutinhaumasasasbrancas
-359-
tambémumcamaradabomealtivo:–Davidhá-devoltar.Edemaisseelenãovier
estanoiteeumesmaireiaoromperdodiabuscá-loaoquartodoDuque,daduque-
sa,oudequemquerquefor;eprometoqueelehá-devir.–Aoacabaraúltimafra-
seameigaeboaBettysetinhalevantadocomviolência;mascaindoemsi,eaten-
dendoquehaviapatenteadoasuapaixãoporDavid,sesentoucheiadepejo;ebai-
xandotimidamenteosolhosbalbucioualgumaspalavrassemnexo,enquantoaca-
riciavacomdistracçãoopequeno,emcujafaceestavamimpressosseuslindoscin-
codedos.
Oescocêsamorosoegracejador,oescocês,queeraalgumtantozeloso,se
preparavaachasquearaesterespeitocommalíciaedelicadeza,quandoveiooes-
talajadeirocomorolnamãopedirdoisshillingsemeio;eoprudenteescocêsjul-
gouapropósitocalar-separanãointerromperJackBob,quedepoisdeoterconsi-
deradoatentamentecomalunetaiacomeçarumlongodiscursoaoimpacienteco-
zinheiro;masDavid entroude repente, clamando:Bravo, bravo! camaradas, que
estaisaindaàmesa;estavatremendodecearsozinho.
–David,David!exclamouapobreBetty,juraria,queelevoltavaestanoite…
–Eeutambém,disseramtodoselesaomesmotempo.
–Eatéeu,dissecomvozaçucaradaJackBob.
– Sim,meus amigos, eis-me aqui! Estava para vir estamanhã;mas como
mudasseotempo,penseiquearepresentaçãoseriaforçosamenteespaçada,een-
tãoresolvi-meaficarcomoduqueparadivertirasuasociedade.Acaboderepre-
sentartodoomeurepertório; fizrir,estremecer,echorar;masestoucansadode
verduques,econdes,enfastiadodocheirodealmíscardasduquesasecondessas;
tenhooestômago tãovaziocomotodosestespratos,equerocear:–Olá, senhor
estalajadeiro; venha carne assada, pão branco, e porter! E depois atirando com
uma coroa sobre a mesa David acrescentou: Porter, percebeis bem; porter para
toda a sociedade! – Tornou-semais cortês o estalajadeiro quando viu a coroa, e
JackBobguardouodiscursoparamelhorocasião,baixouagoladocarrick,ecomo
rostomuitoprazenteirotomouenfimlugaràmesacomgrandesatisfaçãodeTom
Cove,quesenãoesqueceraqueBobtinhaaindanospésassuasbotasvermelhas.
Combastanterazãosediz,queéaféquenossalva.Ospobrescomediantes,
exceptoBob,julgavamterceado;masocheirodorosbifeparaDavidostiroucru-
elmentedetãodoceerro,eessecheirolhestinhacausadotalembriaguez,queha-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-360-
viamperdidoapalavra:unicamenteseusolhostrabalhavam,seguindocadaboca-
doquepassavaalternativamentedopratoparaogarfo,edogarfoparaabocade-
voradoradofelizDavid.
Davidoconheceualfim,eparandoimediatamente:Sr.estalajadeiro,dizele
tirandodaalgibeiraoutracoroa,nãomeaprazcomersó,eportantotrazei-nosum
patoqueviatravessadonoespetoquandopasseipelacozinha;eosmeusamigos
terãoabondade,porminhacausa,decearsegundavez.–Entreamigosnãosedá
cerimónia,eporissoninguémdissequenão.
Oh!quefestim,quebródiofamoso!…Porter,cerveja,grog,punch…edepois
milditosgalantes,milequívocos,risos,gargalhadas…Eoscomediantes,convenci-
dosenfim,quetinhamceadoverdadeiramente,queriamdormir;quandoDavidque
nãotinhaaindasono,David,electrizadopelovapordovinho,pediuchampagne…
Aestaspalavrasclamamtodoscontra;eBoblhediz:–EstásloucoDavid?Já
estanoitehavemosgastomaisdoquenosdaráareceitadeamanhã,eaindaqueres
champagne?
–QueroChampagne,clamaDavidjámeioembriagado;venhaChampagne!…
–Osdiaboslevemobêbedo,queaindaquerbeberchampagnedepoisdeter
bebido tantopunch,diz Jack…Masbeba-oepague-oquem lheaprouver,queeu
pormimnãoquero.
–Nemeu,acodeoprudenteJackson.
–Vamos,Cove,lhedizDavid,deixaláessesestúpidosvelhos:pedechampa-
gneetocaabeber.
–Nãocuidesqueéodesejodebeberquenosfalta,respondejudiciosamente
TomCove;masseránecessáriodaraoestalajadeirodezshillingspelagarrafade
vinhodeFrança…
Aqui está dinheiro, aqui está dinheiro! dizDavid, voltandoumdos bolsos
sobreamesa,edeixandocairalgumasmoedasdeprata.
Seisshillingsparapagardez,exclamouocalculadorBob,bom,bom!…Obri-
gadoquenãotenhosede:boanoite…BoanoiteDavid,dizJackson,boanoite.
Condenados sejam esses tolos! exclamou David furioso; se estes shillings
não chegam, aqui estão outros quepesammenos…e tirandodo outro bolso um
papeltodoamarrotadogritou:Sr.estalajadeiroeisaquiumanotadobancodecin-
coguinéus,quepagaráovinho,ecoposquebrados…Querobeberàprosperidade
Eutinhaumasasasbrancas
-361-
deInglaterraedomeubomdirector,ecomoantesquerogastarestepapelemvi-
nhodoqueemremédios,venhamcincoguinéusdechampagne!…EDavidcomeçou
acantarcomtodaaforça.
À vistadanotadobanco todosos camaradas ficaramassombrados: olha-
vam-secomumespantomisturadodetemor; finalmente,depoisdealgunssinais
deinteligência,JackBobcomeçouaretirar-selentamenteparaaporta,esefoisem
ruído.Osoutroscomoguiadospeladesconfiançadodirectorjulgaramapropósito
fazeromesmo,desortequequandoDavidcantandosempreacaboudeencherto-
dososcopos,achou-sesozinho.
O diabo lhes venha perturbar o sono,murmurouDavid commau humor;
masnãoimporta,quenãoficareieuenvergonhadoeoscoposcheioshão-deficar
vazios:ditoistobebeutodoovinho,deitouporterraagarrafaaoestenderosbra-
ços,eadormeceu.
ErajáaltodiaquandoDavid,abrindometadedosolhos,julgouverJackBob:
masbemdepressaostornouafechar.
–Vamos,David,apé!quesenãotrataagoradedormir,lhedissecomgravi-
dadeJackBob.
–Eparaque? respondeuele forcejandoporabrirosolhos;masdestavez
claramenteviuseudirectorempédefrontedesi…–Levanta-te,David,lhedizafli-
toopobre Jack, levanta-te! eis aquio teuvestidodearlequim, e a tua trombeta;
tomaatuaroupa,vai;eDeusteperdoeeajude!…
Davidnadapercebeudestediscursoaquenãorespondia,eBobcontinuou.
–Tu,…tuésmoço,activoeinteligenteeganharásatuavidaemtodaaparteonde
osoficiaisdejustiçanãotiveremosteussinais;masnós,nós,semDavid,comopo-
deremosviver?…Desgraçadodemim,continuouBob,desgraçadoqueperdionze
filhossemqueoschorasse;echorohoje?…EBobenxugandoosolhoscomamanga
seretiroumurmurandoalgumaspalavrasqueDavidnãopôdecompreender.
–Certamenteovelhobebeugenebraestamanhã!–estupefactoiaabrindoa
trouxaque lhe trouxeraBob; quandoviu entrar a loiraBetty coma sua capade
encerado,eumcestopendentedobraço.
–BonsdiasBetty.–MuitobonsdiasminhalindaBetty:tãocedojádecapae
bagagem?
–Éparapartircontigo,lherespondeuelatristemente.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Masaonde?dizDavidlevantando-se:aondetemosdeirjuntos?
–Aondemuitoteaprouver,respondeBetty;porqueeudissecomigo:Como
Davidtemdeabandonaracompanhia,sereieusuacompanheira;eentãotomeia
minhacapa,eroupa;evoutambémpôroquetepertencenomeucesto…–Ede-
poisBettycolocounocestoovestidodearlequim,emaisefeitosdeDavid.
–Pelo infernoquenãoseisesonho,ouvelo,clamouDavid;nãopossoen-
tenderoquesepassaemtornodemim…Ondeestãomeuscamaradas?
–Nagranjadondemefizeramsairporqueeumeopusàtuadespedidada
companhia…
–Eporquemequeremelesdespedir?
–Paranãoseremenforcadoscontigo.
–Eporqueseriaeuenforcado?tornaDavid,rindocomoumperdido.
–Porcausadeumroubo…
–Porumroubo!dizDavidjásério:equemeacusamdeterroubado?conti-
nuoueleaproximando-secominquietação.
–Uma…bank…note.respondeuBettycomhesitação.
–Eaquem?dizDavidmordendoobeiço,efranzindoossobrolhos…
–AoduquedeBedford…–Eseguiu-selongosilêncio!…
Depoisdeterpasseadocomgrandespassos,enamaioragitação,Davidpa-
rouderepenteedisseaBettycomumtomdecidido:–Vem,boaBetty,queeuque-
rofalar-lhes.
–Mastuvaisbulhar,dizelaprocurandodetê-lo…
–Não,nãorespondeuDavidcomvivacidade;eatravessandonummomento
opátioempurrouumapesadaporta,cujosgonzosgemeram.–Eraadagranja.
RecuaramtodososcomediantesàvistadeDavidcomoseeleforaumfan-
tasma.
–Porquemefugis? lhesgritou;–aproximou,eninguémousouresponder-
lhe.
–Oque!continuoueledolorosamente,oqueéisto?seráporquetendoven-
dido o suor domeu rosto venha repartir o oiro que ganhei, pondo-medois dias
inteirosàdiscriçãodumacompanhiadeociosos,quedemimhãofeitoumboboou
ummacaco?Seráporisso,quemeacusaisderoubo,equechamaisladrãoaogene-
rosoefácilcamarada?…
Eutinhaumasasasbrancas
-363-
Mestre Bob, continuou ele levantando mais a voz, Mestre Bob haveis de
acompanhar-meimediatamenteacasadoduquedeBedford…assimoentendo,e
quero…EDavidprincipiouacomporovestuário,tremendodecólera.
–Esperai,vejamosprimeiro…disseoamigoBobcomvozconciliadora;mas
algumtantoperturbado…
–Haveisde seguir-me já, já!diz imperiosamenteDavid, e tomando-opela
goladocarrick,oarrastouparaaportadaruasemquerermaisouvi-lo.
–Perdão, senhor,dizentãooestalajadeiroagarrando-se tambémaDavid;
parece-mequeesqueceisalgumacoisa…
–Nadameesqueceu respondeeste asperamente, dando-lheumapancada
namãoquelhafezdespegardesi…
–Juro-vosquevosesqueceudeixaranotaquemedeveafiançaropagamen-
todosvossosgastosdestanoite,retrucoucomvivacidadeoestalajadeiro,e…
–Essepapeltrocá-lo-eiporoiro,respondeuDavidcomimpaciência;segui-
nos…earrastandoBob,partiu
Oscompanheirososvirampartircominquietação,echegadosaopaláciodo
duque,apesardaimpertinênciaeoposiçãodoscriados,Davidatravessouassump-
tuosassalas,echegandoaoquartododuque,queaindaestavanacama,lhedisse
entrando:–Perdãomylordseousointerromperovossosono;masquandosetrata
dasuahonra,umpobrediabotemdireitoabateratodaahoraàportadeumdu-
que:–demais,sereibreveeeisaquiofactoemduaspalavras:
OduquedeBedfordbastanteadmiradosesentounoleito,eDavidcontinu-
ou:
–Ontemànoitequandodeixeiovossopaláciovósmedestes,mylord,uma
notade cinco guinéus; e osmeus companheiros duvidando aomesmo tempoda
minhaprobidade,edavossagenerosidademeacusaramdevo-laterroubado.
– Eu não vos dei uma nota de cinco guinéus, disse o duque, desejoso de
complicaraaventura.
Perdoe-lhe,mylordduque,dizBobsuplicando…amocidade…
Calai-vos,mestreBob,clamouDavidinterrompendo-o;evósmylord,conti-
nuouelecomenergia,vósmentis–ei-laaquianotaquemedestes.
O duque estendeu o braço, sem se enfadar, e se pôs a considerar a nota
atentamente.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-364-
Davidestavasossegado,oestalajadeirocheiodeimpaciência,eBobpálido
demedo.
–Seéesteobilhetequevosdei,dizoduque,porcertoquemeheiengana-
do:estanotanãotemdúvidaqueédecincomoedas,mascuidavaeuter-vosdado
umadedez;eesteerropodefacilmentereparar-se:–Aquitendes,continuouele
dirigindo-seaDavid,depoisdeterprocuradonasuacarteiraqueestavaàcabecei-
ra;aquitendesestaquevostinhadestinado,equeédedezguinéus;presentemen-
te julgoqueestamospagos;equevossoscamaradas fizerammal:eagoraadeus,
queheiporcostumedormiramanhãnacamaatéaomeio-dia;eoduquerepousou
acabeçanotravesseiro.
–Océuvosenviefelizessonhos!…exclamouDavidencantadodasuasegun-
davisita;efazendosinalaosdoissaiuprimeiro.
Bobcomovidoquisfalar,masavozlhefaleceu,quissaudaredeixoucairo
chapéupardo,retirou-se finalmente,masaoatravessaroquartoencontrooumó-
veiseportasdeixandoopalácio,contente,deslumbrado,comumacólicaimprovi-
sada,emuitaalegrianocoração.
Conversou-semuitopelocaminho,eoestalajadeiro,quehaviaacompanha-
doDavidcomgrosseriaedesconfiança,lheofereceuafectuosamenteobraçoatéà
hospedaria onde os tinham ficado esperando em cruel agonia os outros compa-
nheiros.–Foi-lhes longamentecontadaahistória,quetodosacharaminteressan-
tíssima,eDavidqueaindatinhadinheiropararepartir,esqueceuasuaingratidão.
Bettydeixouacapa,largouocesto,etodossepuseramaalmoçarcommui-
tomaisapetite,porissomesmoqueossustosdamanhãhaviamapressadoadiges-
tão.
Oh!queóptimoalmoço!byGod,durouatéànoite!…–Bettyesteveencanta-
dora;Bobviupassartodaamanhã,queestavabelíssima,sempensarnoteatro,e
osrapazes,fartosaprimeiravezdasuavida,adormeceramnomeiodofestim;li-
beralmentesepagouaoestalajadeiro,edeu-seesmolaatodosospobresqueapa-
receramàportadataverna:àsoitohorasfoi-setudodeitar,eaoromperd’alvaa
companhiadovelhoBobsepôsacaminhocomasalgibeirasvazias,coraçãocon-
tente,epedindoaDeusbomtempo!…
Eutinhaumasasasbrancas
-365-
Evinteanosdepois,DavidtrocaraoseuvestidodearlequimpelosdeOtelo,
Hamlet,Macbeth,eRicardoIIIetinhajuntadoaoseunomedeDavidoscelebérri-
mosdeEdmundKean.
(NopróximoN.ºo2.ºEpisódio)
BIOGRAFIA
DumersanMarionDumersan é o decano dos escritores que trabalhampara o teatro
francês; nãoque seja decanopor suamuita idade,masporque é o primeiro, em
data,comoautordramático.Asuaprimeirapeçasubiuàcenaem1798.Aindahojeexistemmaisdeoitentaescritorescujaspeçasforamrepresen-
tadasantesdessaépoca,masjátodosdeixaramdeasfornecerparaoteatro.
Dumersannasceuem4deJaneirode1780nocastelodeCastelnaupertode
Burges;ashistóriasdaBretanhamencionamosseusascendentesdesde1425,mui-
tos dos quais tiveram assento nos estados daquela província. Contando apenas
dezoito anos Dumersan publicou e fez subir à cena uma comédia intitulada Les
têtesálaTitus,epoucodepoisumdramaemcincoactosintituladoOanjoeodiabo.
Aprimeiraeraumquadrodecostumes,géneroaquesemprecontinuouadar-se,e
que lhe fezadquirirumareputação,queninguémousariacontrariar.Observador
constantedanatureza,edasdiversasclassesdasociedade,foramsempreseusgui-
asaverdadeeaverosimilhança,queoconduziramaosucessoeaostriunfos;epor
modotãocómicoefrancoretraçavaosusospopulares,quenesteparteenriqueceu
oteatrodasVariedadescomumagaleriadequadros,todosconhecidosdequantos
Franceses existem, todos aplaudidospor sábios e indoutos. Citaremos apenasos
seguintes como sendo osmais notáveis: –asCozinheiras,osCocheiros,oSoldado
lavrador,aesquina,aMulherdopovo,aEscolad’aldeia,osSaltimbancos&.nãoes-
quecendo mencionar o último que este autor compôs, dando-lhe um título tão
atrevido que o próprio Beaumarchais não ousaria empregá-lo; o título é pois A
CANALHA!produçãoestaderelevantemoralidade,eondeoautorseguiuàriscao
preceito deMercier quando no seuQuadrodeParis dizia: “Il fautpeindre la rue
avecunpinceautrempédanslaboue.”
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-366-
EmtodososteatrosdeParisrepresentaramaspeçasdeDumersan:notea-
trodoVaudevilletêmsubidoàcenacinquentaequatro;noOdeon,doze;naGaité,
outras tantas; na Porte-Saint-Martin, oito; nas Varietés, cento e vinte; no Palais-
Royal,três;noGymnase,três;naOpera-Comique,quatro;seriaprolixocitarosno-
mes de todas as obras desse fecundíssimo autor, alémde que os curiosos dessa
nomenclaturaapoderãoacharemdiversasobrasdebibliografia,eespecificamen-
te na FrançaLiterária. Basta lembrar-nos que fez representar em Parismais de
duzentasesessentapeças.
Quempoderiaimaginar,àvistadoquetemoscontadodeDumersan,seres-
teautorumdosprincipaisnumismáticosdaEuropa;trabalharháquarentaecinco
anosnogabinetedemedalhasdaBibliotecaReal,cujahistóriapublicou;serautor
de sete ou oito obras de arqueologia, entre outras a Numismática das Viagens
d’Anacharsis,osElementosdeNumismáticadoZodíacoDendéra&.&?eter,alémde
tudoisto,escritomaisdecemartigosparajornaiscientíficos,eprodigiosaquanti-
dadedefolhetins!
Taléafecundidadedesteautor,dizumacreditadolivrodebibliografia,que
geralmenteseacreditaexistiremdoishomensdistintossobotãoconhecidonome
deDumersan.
Em1833 foi condecoradocomacruzdaLegiãodeHonra;nãopertencea
nenhumaacademiadeFrança;masacabadereceberasuanomeaçãoparaaSocie-
dadeNumismáticadeLondres.
SabemosqueDumersanestáconcluindoumacomédiaem5actoseemver-
so;quevaipublicaraNumismáticaHomérica,equeescrevecuriosíssimasmemó-
riasqueseintitularãoCenasdaminhavida.
AVISOSOsSrs.AssinantesdoPortoterãoabondadedemandaroimportedassuas
assinaturasaoSr.Manueld’AlmeidaCardoso,assistentenaruadeCedofeita.
TeatroNormal,2.ª-feira6docorrente,BenefíciodoConservatórioGeralde
ArteDramáticaeMúsica–UMAUTODEGILVICENTE–AMazela.
___________________
Eutinhaumasasasbrancas
-367-
n.º19,de12deAbrilde1840
JORNALDOCONSERVATÓRIO.
PARECERAComissãoencarregadadedaroseuparecersobreaTragédiaintituladaOs
amoresdeD.PedroeD.InêsdeCastroeMortedesta,leucomtodaaatençãoepa-
ciênciaaditatragédia,eunanimementeassentouqueestacomposiçãoéumada-
quelas que estão fora do alcance da crítica, visto que para se haver de censurar
qualquerescritocumprequenelesedêbomemau,méritoedemérito,comosedá
geralmente nas obras humanas, ainda as mais acabadas. Desgraçadamente não
estánessecasoesta,doquequalquerdosdignosMembrosdoConservatóriopode
certificar-se, examinando-a: é por isso que a Comissão se abstémde fazer sobre
estesupostodrama,umaanáliseescusada,eporventuraimpossível,contentando-
secomdeclararsimplesmentequejulganãodeverserpostaàsprovaspúblicas,e
entendendoque,apesardisso,oautormereceoslouvoresdoConservatório,porse
haverabalançadoatratarumgénerodeliteraturatãodifícil,comointentodecon-
tribuirparaaglóriaeesplendorliteráriodaPátria.
Lisboa8deMarçode1840.
FranciscodeBorjadeCarvalhoeMello.
FranciscodeSousaLoureiro.
A.Herculano.
TeatroCastelhanoAsvexações,dequeforamalvoemEspanhaosteatros,principiaramaces-
sarpelosanosde1621emquesubiuao tronoD.Felipe IV.Contavaapenaseste
príncipe dezassete anos, e já eramui decidida a sua paixão pelos divertimentos
teatrais,demaneiraqueoshistoriadores lheatribuemacomposiçãodealgumas
comédias que nesse tempo se publicaram sem autor certo, e dizendo apenas no
frontispício=poruningeniod’estacorte:–taléOConded’Essex&.Oqueéforade
dúvidaéqueummagníficoteatrofoiporelemandadoconstruirnopaláciodoBu-
en-Retiro,equeaí seentretinhaoreicomospoetasdacorterepresentando im-
provisadascomédias.NosintermédiosdeLuísdeBenaventeacha-seumapequena
peça,obradopríncipe,naqualsevêogracioso figurarnacenaaomesmotempo
queumatalJulianarepresentanacazuela,PedroRealnaplateia,eoutrosactores
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-368-
dispersos pelo teatro. É para notar haverem-se representado ultimamente em
FrançaalgumaspeçasdestegéneronoteatrodoVaudeville.
Davam-senestaépocaemEspanhafestejosqueconstavamdecomédias,ca-
valhadas,fogos-de-artifício,elautosbanquetes:segundoarelaçãodosautorescon-
temporâneos, vê-se que esses festejos eram semelhantes, não emmagnificência,
aosqueseachamdescritosnasobrasdeMolièresobotítulodeFestasdeVersailles.
Umviajantefrancês,quevisitouaEspanhanessetempo,dáosseguintespormeno-
resacercadeumacomédiaqueviurepresentaremSanSebastian.
“Depoisquealgumtantodescanseidasfadigasdajornada,trateilogodeir
veracomédia.Nãoésumptuosaadecoraçãodoteatro,eotabladoseelevasobre
tonéisondeassentammalunidaspranchas;janelasmuirasgadasdãoluzaorecin-
to,eessaluznaturalmuitofazperderdebelezaeilusãoatodoomecanismo.Re-
presentava-seavidadeSantoAntónio,equandooscomediantesdiziamcoisaque
aopúblicoagradava,prorrompiamtodososespectadoresgritando–Vitória,vitó-
ria!–Taléocostumedopaís.Nessacomédiaapareciaodiabovestidotalequal
comoosoutrosactores,sócomadiferençadetrazermeiasvermelhas,eumparde
pontasnatesta.Nofimdecadaumdosactosdacomédiaprincipiavaumaespécie
demuijocosafarsa,ondeograciosodesenvolviatodoochistedequeerasusceptí-
vel,eentremuitababoseiradavaquerirporseusditoscheiosdosal.Nosentre-
actosexecutavam-seengraçadasdançasaosomdeharpaseguitarras.
Hánoteatroumcertolocalchamadolacazuela(espéciedevarandas)aon-
deconcorremquasetodasasdamasdemedíocrevirtude;osmaiores fidalgos,se
nãopejavamdeasiremvisitar,etantomotimfaziamemsuasconversas,quehavia
ocasiõesemquenadasepercebiadarepresentação.Engraçadíssimaseramamai-
orpartedessasdamas,emuitomaischistosassetornavampelaliberdadedesuas
falas,quenemasmaisponderosascircunstânciasseriamcapazesdesopear:sabi-
amasanedotasescandalosasdetodaagente,ese lhesocorresseaopensamento
umbomgracejoàcustadaspessoasdeSS.Majestadesnãodeixariamdeoproferir,
aindaquandotivessemdecertezaseremenforcadasumquartodehoradepois.–
Podedizer-sequeascomediantessãoadoradasnessacorte,enãohácortesãoque
não tenhapor amante algumadessasdivindades, porquem já se têmdadoboas
estocadas,eaquemdecontínuosedãoemsacrifíciosangueevidas.”
Eutinhaumasasasbrancas
-369-
Taléarelaçãodoviajante,ouparamelhordizer,umbreveextractodoque
eleconta,equeresumimosquantonosfoipossívelparaevitarrepetições.–Épois
evidentequesobaprotecçãodeD.Felipeosteatrosprosperavam,eessaprosperi-
dadeseestendiaàItália,ePaíses-Baixos.OcasamentodaInfantasuafilhacomLu-
ísXIVdisseminouemFrançaogostopelaliteraturaespanhola,quejáprincipiaraa
conhecer-seemrazãodauniãodeLuísXIIIcomAnadeÁustria.MariaTeresalevou
consigoaParisumacompanhiadecomediantesespanhóissobadirecçãodeSebas-
tiãoPrado.RepresentouessacompanhianoteatrodePetit-Bourbon,epareceque
foi diuturna a suademora, segundo se colheda vidade FranciscaBeson famosa
comedianteespanholaquedizterpassadoonzeanosemFrança.SebastiãoPrado
nãopôdeperdercontudooscostumesemododepensardoseupaís,porquemal
voltouàsuapátriafez-sefrade.
EisaquioestadodoteatroquandoamortedaRainhaD.IsabeledoInfante
D.BaltazarpríncipedasAstúriasfizeramcomquesefechassemporumcertopra-
zo.Ocleroaproveitoulogoessaocasiãoparadenovosolicitarquepermanecessem
fechados;etaisforamsuasdiligênciasqueosteatrosnãotornaramaabrirsenão
passadomuitotempo,esócommuipesadasrestriçõeséqueaInquisiçãoconsen-
tiuemtal.
Entreoutrascoisasfoiproibidoaoscomediantesdarrepresentaçõesnasca-
sasparticulares,enosconventosdefradesefreiras,comoatéentãoeracostume;
só o conselho de Castela podia dispensar excepcionalmente em qualquer desses
casos.Detemposmuiremotosdataesseusodeirrepresentaraosconventos;até
GaspardeVillaróe,arcebispodeLima,escreveuumlivroemquepretendiaprovar,
queumreligiosonãopode,sempecar,assistiraumarepresentaçãopública,mas
queélivreaumsuperiorautorizarasrepresentaçõesnointeriordeumconvento.
AinfluênciaqueteveocleroduranteoreinadodeCarlosIIfoiassazperni-
ciosaparaosteatrosdeEspanha;eosdesastresdaguerradasucessãonãopermi-
tiramqueelesprosperassem, apesardomuitoqueFelipeVosprotegia.O gosto
francêsquenelesintroduziuestemonarcafoitambémumadascausasdasuade-
cadência,poisqueopovo,eaclassemédia,quehaviamsidoosgrandessustentá-
culosdoteatro,começaramaolhá-locomindiferença,eaafastar-sedele.Seguiu-se
tambéma introduçãodaópera italianaqueumcélebreFarinelli levouaMadrid,
fazendoqueo teatronacional ficasse emquase inteiro olvido, até ao reinadode
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-370-
CarlosIII,príncipequemaisdoquenenhumdeseusantepassadossedeuaprote-
gereanimaraliteraturadoseupaís.Masnãoeratãoesclarecidoquantosolícitose
mostrava,eosseuscuidadosseaplicaramespecialmenteaoaperfeiçoamentodas
decorações.
ConcluiremosfazendomençãodosdoispartidosqueemMadridseforma-
ramnessaépocaequesedistinguiampelosnomesde–Polacos,eChorisos;cada
um dos partidos tinha debaixo da sua protecção uma das duas companhias que
representavamnaCapital.SemelhantesaosazuiseverdesdocircodeConstantino-
pla,tinhamadoptadoparadistintivofitasdediferentescoresquetraziamnoscha-
péus:asdosChorisoseramamarelas,asdosPolacosazuis.Começavampordispu-
tar, e acabavamemdesordensde consequência, demaneiraqueo governopara
evitaressesdistúrbiosviu-seobrigadoafundirnumasóasduascompanhias.
Todasestascircunstânciasproduziramnoteatrotaldecadênciaqueduran-
teoreinadodeCarlosIVnãohouveemtodaaEspanhateatrosedentário,senãoem
Madrid,Sevilha,eValencia, tendoexistidomaisdecemnoreinadodeFilipeV.A
invasãodosFranceses,easrevoluçõesqueselheseguiram,acabaramdearruinar
oteatronaEspanha.
LEONELDACOSTA
ILentoetaciturnoseaíparaosportuguesesoanode1595!–vagarosoetris-
te,comooquesevolvepelasmasmorrasaoinocentesemesperança,comooque
seantolhaaodoenteincurável,queesperadamorteumremédio;porqueospor-
tuguesesnãoachavamentãonemremédionemesperançasaseuspesares,epara
maislheseracerboomal,recebiam-noinsofridos;queeraeleaescravidão,eesta
palavranuncapuderaachareconogenerosoPortugal!…–Osforoseisençõesdo
reino,queD.FilipeIIjuraranasCortesdeTomar,haviamsidoinfamementeviola-
dos;umjugodeferropesavanoaltivocolodosportugueses,equaselhefaziapen-
deracerviz indomada:ouviam-se,a largosespaços,gritosprofundosde indigna-
çãoedesespero,porémasmordaçasdosalgozescastelhanos,ouascavernassub-
terrâneasabafavam-nosbemdepressa,edepoisseguia-seumsossegotriste,longo,
e funeráriocomoodos túmulos,eosanos iamdestarteunsaosoutrossuceden-
do!…
Eutinhaumasasasbrancas
-371-
Corriapoisoanode1595;umjovemeguapocavaleiroatravessavaostor-
readosmurosdaantigaScalabis,danobrevilaquepresenciaraosheróicosfeitos
dos fundadores damonarquia: – os raros habitantes, que então se encontravam
nas ruasmudos e cabisbaixos, estremeceram ao vê-lo; não que o confundissem
com algum odiado castelhano,mas porque se lhes afigurou ele um dos valentes
quetinhamcomoPriordoCratodadotestemunhodasualealdadeinsubornável,e
queaindaagora…!–decepçãocruel!…
OCavaleiro,quevelozatravessavaanobreviladeSantarém,nãopodiaser
dessenúmero,poisquenaqueletempoapenasestarianainfância;masressumbra-
va-lhedo rosto tãonobre franqueza, tantagenerosidadee suave tristura,queos
bons dos burgueses não puderamdeixar de simpatizar com ele, e de lhe dar no
íntimodaalmaumcordial–embora!…
Mas já vacila o pavimento da casa paterna ao tropear pesado e firme do
guerreiro;eembrevetractoporentresuspiroselágrimassoaramosnomesde=
MeuFilho!MeuPai!=nomesdeincomparáveldoçura!…
Masfoiummomento,ummomentodeefusão!–Orostodovelho,aindato-
doorvalhadodoprantodelicioso,setornoucarregadoaopronunciarcomvozaus-
teraegraveestaspalavras:
–Porquedesamparasteoteuposto,Leonel?–Quandomepedistelicença?…
Prefeririasacasoaolivreepuroambientedoscamposimortalizadosporsoldados
portugueses,emboranelesvejasagoradeenvoltacastelhanoscobardes,preferir-
lhes-iasessearcorrompidodeescravidãoquepordesobrenósgrassa,enospesti-
feraháquasetrintaanos?…
–Meupai!…
–Soldado,porquedeixasteasbatalhaseosloiros…eamorteatrocodaser-
vidão? Aprazem-temais porventura os saraus e palestras dos tiranos como um
servo,doqueosilvodospeloiros,oretinirdosferrosevozesdoscaboscomopor-
tuguêselivre!…Eamorte…
–Ohmeupai!–amorte,antesamortedoqueessaspalavrasdevergonhae
horror!clamouomancebo,cujorostocambiavacoresacadaumadaspalavrasdo
velho;emcujoseioguerreavamaindignaçãoeorespeitofilial:–ejá,desenlaçada
a coura, Leonel apresenta as cicatrizes que lhe esmaltavamo nobre peito, e das
quais,verdesalgumas,sãopenhorcertodenuncadesmentidacoragem;eopobre
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-372-
velhoasbeijacomenternecimentoepedeperdão,eouvecomalegriaosfeitosdo
mancebo,eassuasdesculpas.–Leonel,maugradoaoseureconhecidovalorparti-
lhavacomotantosportuguesesosfunestosefeitosdausurpaçãodeCastela,e,por
issoquevalente,eraemdobroodiadopeloscobardestiranos:tinhamelesquerido
apartá-lodoteatrodeseusloiros,eomandavamcombaternessasprovíncias,que
com ardimento tão grande e generoso sacudiram o nefando e aborrecido jugo.
CombatercontraessesaquemPortugaldeveraimitar,ohissonunca!…Leoneldei-
xaaquelescamposondehonraraonomeportuguêseosportuguesestãoenvileci-
dos, tãoescravizados;e fogeparaoninhopaternoaabafarno ferrenhoestudoe
indefesaculturadasletrasassaudadesdaliberdade,eosaispelaservidãodapá-
tria.
IIPassadostrintaanoseraLeoneldaCostahavidocomoumdosmaiseruditos
econsumadosfilólogosdoseutempo.Nãotinhaeleentreasarmasmenosprezado
asletras,eosautoresgregoselatinoslhedeleitavamoócio;desorteque,quando
em1624sepublicouasuatraduçãodaséclogasegeórgicasdeVirgílio,maravilha-
ramasanotaçõesaestaobrapelavastidãodeconhecimentosnosidiomasdaGré-
ciaeRoma.AtraduçãodaEneidaseguiudepertoasGeórgicas;eoutrasobrasde
méritopreencheramointervaloatéàmuitocelebradaversãodascomédiasdeTe-
rêncioemversosoltohendecassílabo.–LeoneldaCostacompreendeubemtodos
osgrandesresultados,quedoteatropodiamvirparaacivilizaçãoeilustraçãoda
suapátria, verdadeira fonteda felicidadepública; e julgouqueapresentando tão
bemespelhadonabelalinguagemportuguesaummodelotãoexcelentedoantigo
teatro,umautorque, comoTerêncio, seextremara tantoentreoscoevos, fariaa
Portugalumserviçoquelhehaviamdeagradecernopresenteenoporvir.–Como
todososjuízosdoshomens,temsidoestebemfalível;poisque,oteatroportuguês,
queentãocomeçavaacairemolvido,assimtemcontinuadoatéaosnossosdias;e
asesperançasdeLeoneldaCosta foramtãomentidas, comoexíguosos testemu-
nhosdegratidãoaseuscansadoseporfiososlavoresparaaditarapátria!
IIIDenenhummodoécontroversoentreossábios tersidoTerêncioopoeta
cómicoromãoquemelhorecommaisgostoeexactidãocumprisseospreceitosda
poesiadramática. –Emboranos recordemPlauto;quenós comHorácioe como
Eutinhaumasasasbrancas
-373-
seumesmocomentadorLambinoconcluiremos,quepelamádisposiçãoeordem
deseusdramas,eporsuaobscenidade,petulanteedesaforadasátiraéelemuito
inferioraTerêncio.
Tornou-se estemuito digno de louvor, não só pela elegância e pureza de
dicção,mas pela propriedade comque exprimeo carácter das personagens, que
introduzemseusdramas;finalmenteaboaordemedisposiçãodafábula,eaurba-
nidadeecomedimentodogracejoofazemporextremorecomendável.–Terêncio
eraporistotidoemgrandepreçoportodososeruditos,algunsdosquaisoilustra-
ramcommuitrabalhadoscomentários.
Leonel da Costa, como verdadeiro apreciador das boas letras, não podia
desconhecer omérito daquele poeta; e então resolve oferecê-lo aosportugueses
dumamaneiracondigna,eoconsegue.–Apropriedadedaexpressão,apurezade
dicção,eafrasecómicasãoemverdadedemuitopreçonaversãodascomédiasde
Terêncio.NaversificaçãofoiLeoneldaCostagrandeimitadordopoetalatino;pois
queseeste (naopiniãodeErasmo)usoudealgumas liberdadesparadisfarçaro
verso, e chegar-se quanto possível à prosa; Leonel deixando o verso rimado se
aproveitoudosolto,tomandoalgumasliberdadesparaconseguirofimdeTerêncio.
Talvezsejaestaarazãoporqueosseusversosparecemasmaisdasvezesfrouxos
ouduros;masétambémaversãotãoexacta,que,dirias,nadaoterprendidoadifi-
culdadedoverso,porvezesexcelente,equedáumclarodocumentodoméritoe
valiadooriginaleversãoportuguesa.–Ouvioquenacomédia–OEunuco–dizum
adulador.
“Háumgénerodehomensqueprimeiros,
Esuperioresqueremseremtudo,
Enãonosãoporcerto;aestessigo,
Aestesmedisponhodemaneira
Queseriamdemim;maseuporeles
Meriopormeugosto,ejuntamente
Louvotodoespantadoseusengenhos:
Tudooquedizemlouvo;esedenovo
Issoquedizem,negam;tambémlouvo.
Negosenegaalguém;seafirma,afirmo!”
………………………………………………………………..
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-374-
IVCatorze lustros tinhampassadodesobrea fronteencanecidaepensadora
dopobreLeoneldaCosta;eaocansadovelhonemjáeramdelenitivoesseslavores
literários,queoutroralhedistraíamopensamentodasdesgraças,queassoberban-
doapátria,lhedilaceravamocoração!Masumdiaouviu-seumgritoqueecoouem
todooPortugal;eoslusosclamaramuníssonos–LiberdadeeIndependência!…–O
bom velho quase desfaleceu de júbilo; ergueu-se trémulo e descompassado, os
olhoslhecintilaramolhandoparaaadagaelançaquedosmurospendiam;masos
membrosdecrépitosefrouxos,nãoresponderamaoreclamodoseupeito;eentão
Leonelcaindode joelhos levantouasmãosparaocéu,eexclamoucomSimeão–
Nuncdennitteservumtuuminpace…MasDeuslheoutorgouaindamaisseteanos
depiedosavida;esóem1647foiqueLeoneldaCostaentregouaalmaaocriador.
-----------§----------
QualidadeseDeveresdo
ComedianteJánumdospassadosNúmerosdissemosalgumacoisaacercadagesticula-
çãoteatral;muitorestacontudoaacrescentaracercadessaimportantequalidade
doactor,tãoapreciadadosantigos,enãomenosreclamadapelosmodernos.
Possuíamosgregosumaespéciedemúsicaquechamavamhipocritica,istoé,
imitativa;eraanotada,ecostumavamosautorestrágicosindicar,pormeiodessas
notas,osgestosquedeviafazeroactor;eratalousoquedessamúsicatinhamos
Atenienses,edosgestosquedeviamterrelaçãocomcadaumdossons,quedavam
imediatamentenomaispequenoerroqueo comediante cometesse, emanifesta-
vamseveramenteasuadesaprovação.Esteexemplo,eodosmestresdeesgrima
chamadoslaristaequeensinavamemRomaaosgladiadoresaartedecairemorrer
comgraçaenaturalidade,aomesmotempoquelhesdavampreceitossobreoma-
nejodesuasarmas,provamatéqueponto levavamosantigososeuapreçopela
gesticulaçãodosseusactores.
Ocomediantedevesujeitaroseugestoaograupoéticoedramáticodapeça
querepresenta:devepoiselevar-seacimadanaturezademaneiraqueharmonize
comaexageraçãodosentimentoquepinta,ecomamaisforteintonaçãoquedeu
aoseuorgão.Émanifestaaimpossibilidadedeexprimirfrasespomposasouenér-
Eutinhaumasasasbrancas
-375-
gicas,palavrascanoraseescolhidasmuidepropósitopeloautor,comtodaainten-
sidade de voz que elas reclamam, sem acompanhar estes esforços do peito com
gestosanálogos,esemfazerqueasuamímicaparticipedosmesmosesforços.
Outra razãovemaindacorroborarestaverdade.Precisaocomedianteco-
municarvivamenteaoespectadoropensamentocomqueoautorescreveuoseu
papel;seocompreendeemtodaasuaforça,devecomigualforçaexprimi-lo,efa-
zer-secompreenderaindaquandonãopudesseserouvido:porémomeioquese
temaguardarentreestaexageraçãoobrigadaeogestoimoderadoeviciosodeve
seroobjectodocontínuoestudodoactor:cumprequenãosejaguindadoparapo-
dersernobre;quenãosejafrenéticoemvezdeapaixonado,trivialemvezdenatu-
ral. Sóamais sériaeporfiadaobservaçãoéquepode indicaraoactoros limites
entreosquaislherelevaproceder.
Nãohácomediantequeignore,excitarembastasvezesosaplausoseadmi-
raçãodopúblicogestosimoderados,viciosos,edemaugosto;masoactorquever-
dadeiramentesabeapreciarasuaarte,antesprefereosufrágiodoshomensinstru-
ídosqueparaelesãodemuitomaiorvalia,doqueostransportesdasturbasaluci-
nadas,enãoraroprevenidaspelohábitodeaplaudiremdefeituosíssimosmodelos:
otalentosimples,verdadeiro,belo,maiscedooumaistardetriunfa.
Osantigosretratosdosactores,queagravuranostransmitiu,no-losapre-
sentam,apesardagrandeideiadeseustalentos,comounsfanfarrões,empavesa-
dos,comohomensafectados.Talmanosprovouqueerapossívelobtermuitomais
bemmerecidoslouvores,adoptandooutrosistemaaquechegouporfimaacostu-
maropúblico.Porseugestoe trajes fezelerecordarantigos temposecostumes
queprofundamenteestudavanosmonumentos.–Écomsemelhanteestudoqueo
actoraprenderáaconhecerossinaiscomqueosgregosescultorescaracterizavam
aspaixões,eadistinguiranobrezaedignidade, inseparáveisdocoturno,dasim-
plicidadedanatureza:eentãooactorseelevarápelogestoatéaopoetainspirado
tambémporobras-primasdomesmotempo,concebidaspelosmesmosprincípios.
Devetodaviaosimplesbomsensofazer-nosverqueogestoestatuáriodeve
diferirdogestoteatral.Oprimeiroqueémonumentaltemumagravidadeeimobi-
lidadequemuitocumprequeoactordeixe,quandotiverdeexprimirafectosapai-
xonados:–aópticadacenaexigeaquelaespéciedeexageração,dequejáfalámos.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-376-
Dasprecedentesobservaçõesseráfácilconcluir,queogestoteatraldeveser
o símbolodeum idiomauniversal e comuma todososhomens,nunca seguindo
esteouaqueleindivíduo,ouimitandogestosemodosdequalqueractor,pormuito
talentosoeacreditadoqueseja.
Asqualidadesdogestoteatralsereduzemaduasprincipaisquevêmaser:
–Verdadeebeleza.–Aforçasignificativadogestodependedasuaverdade;eoque
constitui a força significativa, émenos a violênciaqueexigemalgumas situações
veementes,doqueessaluminosaeloquênciaquetiraaoespectadortodaadúvida
acercadosentimentoquesejulgadeversentiroactor.–Asingelezadogestocon-
sisteemnãocontrafazeroactoraquiloquelheincumbefazernaturalmente.Asin-
gelezaporéméapenasdepareceroactormaisverdadeiro,tornandomaispatética
aexpressão;masnuncaumfimaqueeleseproponha:se,mostrando-seingénuo
nãoformaisverdadeiroeverosímil,entãoserácomumtrivialounéscio.Nãoserá
poisasimplicidadeesingelezadeumheróiamesmaquedevemostrarumescra-
vo:poderáportantooactorseringénuonopapeldeste,masnuncaseráverdadeiro
sedessemodorepresentarumapersonagemheróica.
CrónicaTeatralNãodemosnopassadoNúmeroaCrónicasemanaldosnossosteatros,por
falta de assunto que oferecesse algumanovidade ou interesse: a estagnação dos
negócioscénicosproduziupoisonossosilêncio;eagorafundiremosnumsóartigo
oquedasduassemanasquepassarammaisrelevareferir.
NoTeatroNormalsubiuàcenaumnovodramatraduzidodofrancês,eque
seintitula–Oamordemãe–Certoindivíduo,quehaviacasadocomumaricaher-
deira,enviuvouquandoaesposadavaàluzoseuprimeirofilho;oinocenteacom-
panhouamãeparaooutromundo,eeisonossoviúvoobrigadoaentregarodote;
lembra-se ele então que umamulher sua conhecida acabava de sermãe;manda
logochamá-la,epropõe-lhetrocarovivopelodefuntoinfante;–amulheraceita!O
intrusoficaherdandoafortunadadama,esofrendoosmaustratosdosupostopai,
etc.etc.–Taléofactoemquesebaseiaodrama,quejávedesmerecerantesotítu-
lodedesamordoquedeamordemãe;mãequevendeofilho,querenunciaaono-
meedireitosdemãe,àscaríciasdofrutodeseupeito!–Poistalonome,talodra-
ma;recosidoindigestodelancesnãopreparados,demeiosinsuficientesouabsur-
Eutinhaumasasasbrancas
-377-
dos, e de fins inverosímeis ou ridículos: –plauditepopuli!aplaudi espectadores,
queoamordemãemereceovossoamor!…Eosespectadoresaplaudiram!Pobres
aplausos,pobrepeça!–Odesempenhofoiregular,apesardequeoSr.Lisboaestá
inteiramentedeslocadonoseupapel:jánãoassimaSra.Talassi,cujosmeiosestão
emperfeitaharmoniacomapartequetemarepresentar,equedesempenhacom
bastantenatural.–Sim,odesempenhofoiregular;melhordoqueomereciaatal
peça,decujosdefeitosnãotêmculpaosactores:atéelesprópriossobejamenteos
conhecem;ebemomostraramnanoitedesábado4deAbril,naqualfoipelapri-
meiravezrepresentada.Acabadooterceiroactoprorrompeuopovoemaplausos
chamandoforaosactores;eestesnãopuderamsusterumarisadaqueecooupor
todooteatro:–risadadecomiseração!
Segunda-feira 6 do corrente, Benefício do Conservatório, foi novamente à
cenaodramaoriginalportuguês–UmautodeGilVicente.CertoqueemLisboanão
háindivíduodebomgosto,quenãotenhaassistidoamaisdoqueumarepresenta-
çãodestelindodrama;ondetodaumaépocasevêretraçadacomfiníssimasever-
dadeirascores;ondeotractodacortedomuifelizD.Manuelsecolhe,expressoem
espirituoso diálogo, ou representado em engraçados quanto inocentes festejos;
ondeoencolhidoousardaInfantedePortugalrevelaamormaisprofundoemais
puro,doqueonãofariamsonoraseextravagantesdeclamações;ondeacismadora
sensibilidade de poeta português se vê encarnada no terno Bernardim Ribeiro;
ondereis,egrandes,epoetas,ecomediantesdizemoquedevemdizer,esemos-
tramcomorealmentesão.–Nãoqueremosnósaventuraraideiadequesejaeste
umdramadegrandeforça;umdramaquearmeapoderososefeitos,sacudindoo
coração, arrepiando as carnes, encontrando a alma com fortíssimos lances; não:
estedramaéporventuramenosdramadoquecomédia;aórbitaemquesemoveé
pequena e compreensível;mas, consideradodentrodos limites que o fecham , é
grande o seumerecimento dramático, e inquestionável o literário. – A execução
estevemuito longedemerecer,comonoutraépoca,particulareselogios:amaior
partedosactoressabiammuitomalosseuspapéis,eporissonãopodiamdarforça
eexpressãoconvenienteaoquediziam,esperandoquedabocadoPontofiltrassem
aspalavrasumaauma.Nãohácoisaquemaisenfastieoespectador,emaiormal
façaaocómico,doqueestaremcenasemsaberoquehá-dedizer!OSr.Vanezno
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-378-
papeldecavaleiroitaliano,quepelaprimeiravezdesempenhou,fezporsubstituir
condignamenteobomactorqueoutroraorepresentava.
Nessemesmodiarepetiu-seafarsaQuemtemmazelaetc.OSr.Sargedasob-
teveosmaioresaplausos,erepresentouecantouedançoucommuitagraça.OSr.
Teodorico Junior temos notado já por vezes ser cómico de grandes esperanças,
especialmentenogénerojocoso:nestafarsaestáelebememcena,mostrandomui-
tanaturalidadeemtodososseusgestos,e fazendovisagensverdadeiramentecó-
micas:–OSr.Lisboatemahabilidadedeaparecercomosolhosvesgosportodoo
decursodapeça,nãosedesmentindonemumsóinstante:–finalmente,todossem
exceptuaraSra.JoanaCarlota,vãomuitobemnafarsa,eassimtêmpoderosamen-
teconcorridoparaquehajaagradadotanto.Éverdadequeestáelamuibemreves-
tidaàportuguesa;aosgracejosdooriginal francês foramsubstituídososequiva-
lentesqueemPortugalseusam,eafraseésuficientementepura,eapropriada.
NoTeatrodeS.Carlosfoipelaprimeiravezàcenananoitede4deAbrila
nova ópera domaestro Mercadante intitulada Elena de Feltre: a reunião esteve
brilhantíssima,etalcomohámuitosanossenãoviranaqueleteatro;eraoaniver-
sáriodoNatalíciodeS.M.Rainha.Estavapresentetodaacorte;tantoestacomoa
maiorpartedosespectadores,damasecavalheiros,estavamadornadosdesump-
tuosasgalas,enorostodecadaumressumbravaojúbiloqueportãofaustomotivo
sentiamoscorações:cantou-seohinode1838,entoaram-sevivas,quepormuito
tempo ecoaram como expressão do entusiasmo geral, e até nuvens de frescas e
desfolhadas rosas envolveramOsAugustosEspososdeumaatmosferadevernal
aroma.–Opúbliconãopôdenessanoitedaradevidaatençãoàmúsica;asdistrac-
ções erammuitas, os ânimos estavammui enlevados para se poderemdobrar à
análise friaeplácidadeumtrechodemúsica,paraapreciarobemharmonizado
dos coros,oua congruênciadosacompanhamentos; acabouaópera, eno fimda
noitenãohaviaquemousassedecidirdoseumerecimento,etodosperguntavama
opiniãoaoseuvizinho:notou-secontudoqueamaiorparteantestendiamacon-
cluircontradoqueafavordapeça.
SinaisostensivosdedesaprovaçãoseescutaramnofimdaÓpera,queforam
aindacontinuadosnasrepetições;masconquantoanãotenhamosemmuito,ean-
tespelocontrárionãosimpatizemoscomamúsicadeElenadeFeltre,nãopodemos
levarabemqueelestivessemlugarnaquelediaeporaquelemodo;nãoporserum
Eutinhaumasasasbrancas
-379-
aniversário tão fausto, e em que por consequência muito devia relevar-se, mas
tambémporqueaóperanãoétãoabsolutamentemá,queexigissepateadanopri-
meirodia.Éverdadequeamúsicaéfriaemonótona–defeitodequeamesmaor-
questra senãopode, apesarda sua força, eximir; éverdadequeasmelodias são
poucasouduras,etempelamaiorpartepequenanovidadeefrescura;desorteque
até em nós entrou desconfiança, que o autor tinha pretendido pouco felizmente
imitaroestiloromânticodaescolaalemã;nãosendo,nestecaso,maisfelizcomas
harmoniassublimesdaquelaescola:–éverdadetudoisto,masaindaassimaópera
tempeçasdemuitomérito,oscorossãobemescritosedeefeito,enoterceiroacto
notam-setrechosquerevelamomestre:–ocoroacompanhadoaórgão,eapregui-
eradeElenasãopeçasmusicaisdeefeitoegratointeresse.–Resumindo,conclui-
remosobservando,queapeçanãoagradou,nemeramuitoparaisso;assimcomoo
nãoeraparaserlogopateada.
REUNIÕESLITERÁRIASDOCONSERVATÓRIO
Oimpériodasletrasedasbelas-artesvaiavultandoentrenós:cadadiaque
passaofereceumanovaconquistaànossa jovemliteratura,cadahoramaisavai
estribandonoseunovopoder.–Aospartidospolíticos,sucedem-separtidosliterá-
rios; àsambiçõesdemandoe riquezas, anobreemulaçãodo talento;àsassocia-
çõesambiciosaspalestrascientíficasouartísticas.
Vão-se tornando as letras como um estandarte de reunião para todos os
homenseclasses;semelhantesàabóbadacelesteaondedirigemolhosansiadose
suplicantesospovosdetodasascrenças,detodasasreligiões:oliteratoabraçao
literato,queéseuirmãosegundoasletras;oartistaapertacordialmenteamãoao
artista, que é seu irmão segundo as artes! – Feliz república literária, se o tempo
chegaemquesehão-deconsumarosacontecimentoscomooshemosretraçado;
comono-lo dão a esperar os prognósticos e faustos presságios que se nos anto-
lham.
AtendênciavisíveldosânimoséestaemPortugal;segue,porinstinto,oim-
pulsodadonospaísesdacivilizaçãomaisadiantada.Masosnossoshomensdele-
trasantigosaindaseenvolvememseuspreconceitosquasearistocráticos,osnos-
sosartistasdesconsiderados,emalafeitosàsociedade,acanham-sedela.Eramis-
terquealguém,emcircunstânciasdeodizer,dissesseauns:–“Nãocuideisdescer”;
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-380-
aoutros“Nãoreceeissubiraonívelsocialemquevoscolocadedireitoanobrepro-
fissãodaarteoudaciênciaquecultivais.”
Asreuniõesliteráriasedeartistasdequevosdãoexemplotodasasgrandes
cidadesdaEuropatêmestefimprincipal.
Devemos agradecer ao Sr. Conselheiro ALMEIDA GARRETT zeloso Vice-
PresidentedoConservatóriootertomadoa iniciativa,porhonradomesmoCon-
servatório.OmauestadodoEdifíciodosCaetanosemqueoseuinstitutofoicolo-
cadonãoprometeparatãocedoreunirali(comosabemosquemaisquetudodese-
java)emamigávelesocialcompanhiaosamigosdasnossasartesedasnossasle-
tras:convidou-osparasuacasa;equarta-feirapassadativemosogostodeassistir
àsegundadestasreuniões,queverdadeiramentefoidasmaisagradáveisebrilhan-
tesquesetêmvisto.
Aspessoas,queaelaconcorreram,eramsócios,professores,oualunosdo
Conservatório,comalgunsoutrosartistasderepresentação;estavamtambémpre-
sentesoschefesdetodasasinstituiçõesartísticasouliteráriasdaCapital,taisco-
moAcademiadeBelas-artes,EscolaPolitécnica,SociedadeFilarmónicaeEscolasti-
co-Filomáticae todasasoutrasacademias, sociedades,e institutos, tantooficiais,
comoparticulares.OMinistrodoReinoaíestavatambémcomoMinistrodaInstru-
çãoPública.Nestasegundareuniãoexecutaram-seváriosconcertosepeçasdemú-
sicavocaleinstrumental,ediscutiram-seobjectosliterários.Aprimeiraforacomo
umaespéciedeintrodução,econsta-nosquenasseguinteshaverátambémleituras
sobreobjectosdearte.–Erabelovercomoaspessoasdemaisopostospartidos
políticosaísemisturavampraticandocordialmentedasletrasedasartes;erabelo
ver, como homens de elevadas hierarquias procuravam amoldar-se até lhes ser
dado entrar no talãodas artes, buscando a conversaçãodos artistas, e familiari-
zando-secomestaagradávelemuiprofícuaclassedasociedade!
Fazerconhecidososalunosdistintos,habituá-losàsociedade,reunirosin-
teressesesimpatiasdasletraseartes,isolaressesinteressesdasquestõeseanti-
patiasdospartidospolíticos,–talé,esemostra,ofimdestasreuniões.Eédeespe-
rarquedesseselementos,queacustosevãoreunindo,chegueporfimaformar-se
umAteneusemelhanteaosqueadornamasoutrasCapitaisdaEuropa:instituições
derelevantíssimo interesse,eque,sechegamosaveremPortugal,comoespera-
Eutinhaumasasasbrancas
-381-
mos, teremos de chamar ingratos aos nossos concidadãos, se não saldarem com
maisumagradecimentoohomemqueéesteiodanossaliteratura.
___________________
n.º20,de19deAbrilde1840
OSTABATNUMTEATROACortedeCarlosX,que se rebuçavanumexterior tãobrilhante, comose
houveraporobjectoimporcomoextremodoluxoaoantagonismorevolucionário
dasideias:acortedeCarlosXtinhaumaintimidadetristeemonótona.Únicaadu-
quesa de Berry desparzia nesse fundo invariável flores da aldeã jovialidade, ou
antesvivacidadeinfantinaquetantoacaracterizavam:–orespeitoguindado,ea
insipidezdisfarçadanumdiplomáticosorrisoeraaexpressãodasfisionomias,que
todososdiasseapresentavamnossalõesdeCarlosedaduquesadeAngoulême.
Sujeitoàetiquetaeraoriso,osdeveresdecadahora,ospassoseatéasatitudes
dosfidalgosevisitasaristocráticas;eeratudoistodisposto,calculado,ecompas-
sadodemaneiraquenuncaamenornovidadeviesseperturbarauniformeatmos-
feradassalasíntimasdopalácio:masànoiteCarlosXouestavafatigadodacaça,
outinhaalgumasrecordaçõesdacortedeLuísXVIqueaindalheapraziacontarao
seu amigo duque de Damas, ou finalmente alguns segredos damocidade para o
confessor;eentãovinhaahoradecadaqualseretirar,eeraelaparaosfidalgos,
pajens,emaispessoadacorte,comoumahoradelivramento.
Infelizmentenemsempre istoassimacontecia; eradodeveredaetiqueta
dosoficiais-moresirsaudaradelfina,cujoagradávelcírculoseentretinhaabordar
tapeçariaatécansar;ecomodesafogoedescansotomavaolotoparecendoseguir
comomaiorinteresseasmonótonascombinaçõesdestejogopopular.–Umanoite
ousoucertadamaaventurar, adespeitoda rigidezdaetiqueta, queo lotoestava
muito vulgarizado…; a delfina compreendeu perfeitamente, e para se não baixar
atéaoníveldeste jogo,tomouaresoluçãodeelevá-lo:o lotorecebeupoisobap-
tismo aristocrático acordando-se que seria daí em diante cada cartão a moeda.
Desdeentão tornou-seo jogomais interessante,ealgumasbolsasmuitomais le-
ves;masaduquesaqueerafelizbempoucolheimportavaesteúltimoacidente,eo
lotoreinavanocírculoaristocrático.Todaviaumanoitedesandouarodadafortu-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-382-
naàduquesa,ecomtalperseverança,queela,depoisdeterperdidomuito,excla-
moucommauhumor:Malditosejatãoinsípidojogo!…
EntravamentãonasalaoscamaristasdeCarlosX,eadelfinapareceuaovê-
losesquecera sua indignação;pouco tempoporémdurou isto,eo loto foinova-
menteatacado,condenado,eestigmatizado.Prendiaorespeitoaspalavrasàsda-
maserecém-chegados,desortequeadelfinaseviunanecessidadedeinterrogar
umdosquelhepareciamaisadversoaotaljogo:eraoduquedeCh…,enãodeixou
eledeseconstituiroecofieldasuaopinião;mascomonãoédegenerosoperse-
guirovencido,oduquedeCh…soubefazerpassaraconversaçãodosdivertimen-
tosinsípidosparaosagradáveis,echegadoaestepediulicençadeperguntarquais
eramosjogosconhecidosquemereciammaisofavorreal.
Todosospresentesquiseramdara suaopinião:unsvotarampeloxadrez,
porqueselembravamaindadacortedeLuísXVIII;aoutrosapraziamaisosjogos
deespírito,oscalembourgs,osdeprendas;eadelfinatinhaosolhosfitosnoduque
deCh…,eelenadarespondia.Enfimquandoalistadetodososjogosqueentram
nosusosecostumesdogénerohumano,edetodasasclassesqueodividemesub-
dividem, foi corrida toda;quandomaisdeumavez tinham feito franzira testaà
devotaprincesa;oduquedeCh…,comoentusiasmoorgulhosodematemáticoque
únicopodedecifrarumproblema,exclamou:Osjogosquemaisdignossetornam
dofavorrealsãoosjogoscénicos!…–Eporcertoqueerabemfácilasolução,mas
bastaquequalquercoisasejamuitofácilparanosparecerindecifrável:–Emtudo
aconteceomesmo!…
As palavras do duque fizeram estremecer a sociedade; porque a delfina
quaseselevantararespondendoaoatrevidocomaqueletomsecoquesabemtão
bemospríncipes tomarquandose julgamqualquercoisadesconsiderados:–Se-
nhorduque?…Eousais aventurar semelhantespalavrasnaminhapresença? Jul-
gaisestarcomminhairmãdeBerry?
–Fuiinfeliz;Senhora;porqueaspalavrasmenãoajudaramopensamento…
–Masoquedissestesnenhumaambiguidadeapresenta,redarguiuaduque-
sa:–edepoisfitandonovamenteofidalgoquefaziatodososesforçosparasimular
aparênciadeconfusão, lhefezcomamãoumsinal imperioso,queprovavaquea
princesasabiatomaralgumasvezesotomemaneirasdeumhomem.Estegestofoi
Eutinhaumasasasbrancas
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acompanhadodeum–explicai-vos–aqualfrasepodiatraduzir-sedestemodo:–
Tomaicontaconvosco,Sr.duque,senãonosapresentaisboasrazões…
–S.Altezajulgousemdúvidaqueentendiaeuporjogoscénicosodramaea
tragédiaqueserepresentamemnossosteatros;ovaudevillequenoGinásioétão
aplaudido;eaóperaqueseesmaltadedançarinas,cujasgraçasnenhumaafinidade
têmcomopudor…–porcertoquenuncatalcoisamepermitiriaeunavossapre-
sença,Senhora;enestetempoemqueasobrigaçõespiassãoumanecessidadere-
ligiosa…
Afrontedaduquesaseserenoualgumtanto,emuitasdamasmorderamo
lábiocomimpaciência;oshomenspermaneceramimpassíveis.
–…Acena,segundoaminhaopinião,queeutomoaliberdadedesubmeter
aV.A.,acenanãodeveconfundir-secomanaturezaecarácterdoassuntoquese
põeemacção.Acenaécomoopedestaldeumaestátua,amolduraouofundode
umquadro;eporissoéquetudoquantoéarte,tudooqueébelomereceashonras
da cena; porque é ela umacessório que tempor alvo engrandecer, embelezar, e
poetizar;econsideradadestamaneira,atéareligião…
–Quedizeis,duque?acasomisturaríeisnocatolicismoascomédias…
Não,Senhora,respondeuCh…comexpressãodevisívelcontentamento,pois
quejáquaseestavacertodeserbemacolhidaateoriaatrásdequemseentrinchei-
ravaodefensordosdivertimentoscénicos…–Não,Senhora;eantespensoquea
cena não é, nempode ser umaprofanação: tudo depende do que houvermos de
colocarsobreopedestal,ouquisermosorlarcomamoldura.
–Semprequiseraeuver,comosefariaisto,respondeuaprincesacominte-
resseecuriosidade…
–V.Altezaoverá,dissecomconfiançaoduque;esemefossepermitidoes-
colherodia,asexta-feirasanta…
–Poissim,nasexta-feirasanta!…
EvósSenhorasesenhorescontoconvosco…
–Mas tomai cuidado, Sr.duque; lembrai-vosqueodiaescolhidoédosda
quaresmaomaissanto!…
Nanoitedaquinta-feirasantaemnenhumaoutracoisase falousenãonas
surpresas cénicas do seguinte dia.Mas todavia era comuma sorte de hesitação,
comumaespéciedetemorqueseanelavaassistiraopoéticoempenhodofidalgo.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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AdevoçãodafracçãofemininadacortedeCarlosXtinhaaindacrescidoemexage-
raçãoaoaproximar-seaPáscoa;masadelfinahaviadadoasuapromessa,eafalar
averdadenãolheeradesagradávelcumpri-la.
Chegaraasexta-feirasanta,e,depoisdosolposto,aduquesa,asdamasda
sua intimidade e uma companhia escolhida entre a flor da aristocracia devota,
ocupavatodososlugaresdeumhemiciclonagaleriadeumvastopaláciodaruade
Grenelle.Almofadasdeveludopreto,agaloadasdeprata,cobriamosassentosto-
dos;elongospanosdamesmafazendaeramatristeeuniformedecoraçãodaspa-
redesedotectoquepareciadecapelagótica;lâmpadasdepratanãopolidaesprai-
avamluzincertaelúgubrequeapenasconsentiaenxergarsimbólicosbordadosde
umpanoemquetodosfixavamavista.Eemverdadeeraoveludoqueescondiao
mistério, pois que era ele que separava o espectáculo dos espectadores: – mas
eramtambémosbordadosaprimeirapalavradoenigma,aconfidênciapreliminar
da iniciação; retraçandonopanomortuárioalguns instrumentosda torturaedo
suplícioqueoJustohouvedesofrerperanteosjudeus.–Oaspectodacapela im-
pressionou vivamente a delfina; mas a lembrança do passado desapareceu pela
surpresaqueocasionouavistadacena:–opanodeveludohaviadesaparecido!
Etodavianinguémsedescortinavanomeiodavastasolidãodoteatro,mas
omagníficodioramadeuma igrejagótica seostentava comomaioresplendore
riqueza; e lá no fundo uma cruz luminosa estendia os longos braços, comopara
penetrarcomseusraiososlugaresmaisrecônditosdabasílica.–Apenascadaqual
começouaexplicarasipróprioesteprestígio fenomenaldapinturacontemporâ-
nea,quandooprestígiopoéticodamúsicaselhereuniu:–elevam-sesons,combi-
nam-sevozesemharmoniatãodeliciosa,quedisserasqueumatribunaintercep-
tadaporumfeixedecolunasescondiamisteriososserafinsdestetemplodepintu-
raedeilusão;finalmenteoquesecantavanestacena,oquesecantavaeraaobra
maisbeladequeasensibilidadedoartistaháfeitohomenagemàreligião;–erao
STABATdePergolesi!
Masémisterconfessá-lo;osdevotoscircunstantesconquantoseentusias-
massemcomatãobelamúsica,nãosentiramaoprincípioquantoeraelaprofun-
damentereligiosa;éverdadequeafugaquelheservedeprelúdioécomoumtími-
doensaiocheiodehumildades;ediriasquePergolesiignoravaopoderdoseugé-
nio,ouquelhenãovieraaindaemsocorroainspiraçãodivina;masestetestemu-
Eutinhaumasasasbrancas
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nhodafraquezahumanaaoencetarumgrandeempenho,estetestemunhoelevan-
do-secomoumincensoaospésdeDeus,nãoseráporventuraumlampejodogé-
nio?
Tinhaafugadeixadoexpirarosderradeirossons,ejáamúsicainterpretava
asestrofesondesecontamcomtãodolorosaedramáticaingenuidadeossofrimen-
tosdohomem-deus:foiaíquePergolesiderramoutodosostesoirosdetername-
lodia,edossolenesetristesefeitosquefendemoterrestreinvólucroparabuscaro
íntimod’alma,oudãoàscriaçõesdoespíritoosatributosmateriaisdarealidade!E
entãooauditóriotodoseidentificoucomosraptossublimes,queformam,atéao
fim,aobraharmoniosadograndemestre.Aemoçãoganhavatodososcorações,e
crescia,eseiadesenvolvendo,eopoderdamúsicaobtinhaomaisbelotriunfo.–O
mistérioqueenvolviaosexecutantes,oprestígiodacena,afúnebredecoraçãodas
paredes,tudocompletaailusão,desenterrandovivoepalpitanteessegrandeepi-
sódiodopassado!…Eporestavezquasequeserepresentaranabasílicaogrande
drama,porquemaisqueumadessasimaginaçõesdemulherjulgouverpassageiras
formasnomóbilirradiamentodagrandecruz,quecomprestigiosoclarãoalumia-
vaacena!
Existiaaindaaemoçãoemtodaaplenitude,ejáoduquedeCh…estavaem
pédefrontedadelfina;opanodeveludoacabavadeeclipsaraigrejagótica.–Nem
dapresençadoduque,nemdofimdooratóriotinhaaprincesadadofé;masacor-
dandodasabstracções,emquetudoquantotinhavistoamergulhara;comosolhos
todosnadandoemlágrimas…
–SenhordelaCh…lhedisse,quantoerabeloovossopedestal,epatéticaa
surpresaquemehaveisdado!Porcertoquetínheisrazãoparaafirmarqueosjo-
goscénicos,comoosentendíveis,sãobemdignosdorealfavor.
EdesdeentãoquisaDuquesad’Angoulèmeouvirtodososanosnamesma
épocaasublimeproduçãodePergolesi.
--------§--------
BIOGRAFIA
MademoiselleGeorgesMarguerida GeorgesWeimer nasceu emBayeux a 20 de janeiro de 1788;
seupai,M.Weimer,eradirectordeumacompanhiaambulante,enestaqualidade
andoudiscorrendopordiversascidadesevilas.EmAmienspersistiumaisalgum
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-386-
tempoquenasoutras terras, e foi essaa cidadequeviudebutarnoseu teatroa
muitenraMademoiselleGeorges.RepresentounoJuízodePáris,emPauloeVirgí-
nia, ealgumasoutraspeças,e, conquantoaindaquasena infância, todosadmira-
ramapurezadesuavoz,eoprimorcomquecantava.Pelodizerdopúblico,ede
seuprópriopai, prometia a donzela ser umadasprimeiras cantarinas de toda a
França.–Edesdelogofoieladestinadaparaaópera.MademoiselleRaucourt, essa tão celebrada actriz doTeatroFrancês, dava
nessetempoumavoltapelasprovíncias,etendochegadoaAmiens,aísedemorou
como fimderepresentaralgumasnoitesno teatrodaquelacidade.Numadessas
representaçõesacertoueladeverMademoiselleGeorges,queempé,entreosbas-
tidores,seguiatodososseusmovimentos,reflectiatodasasimpressõesdaactriz,e,
comosemoquerer, imitava seusgestos, eos reproduzia comvigord’alma.Rau-
court ficou atónita com tal ver, e, considerando atentamente a linda entusiasta,
cujasformasapenas,ecomoamedo,começavamamostrá-lamaisdoquemenina,
etendoumsingularpressentimentodofuturoqueaesperava,exclamouarrebata-
da: –QuebelaSemiramis!…Endereçou-se logoaM.Weimer, e lhedisse,que sua
filhaeradestinadaasergrandeactrizemvezdecélebrecantora;nãochegaracon-
tudo ainda o tempodeWeimerpersuadir-se.Uma circunstância assaz curiosa, e
quepassamosareferir,decidiuinteiramentedaveredaqueajovemdeviatrilhar.
EstavaMademoiselleRaucourthospedadaemcasadeM.Weimer:umanoi-
te,acabadaumarepresentaçãoemqueagrandeactrizhaviaobradomaravilhas,e
fizeraecoarcomaplausosoteatrodeAmiens,recolheram-setodosacasa,ecome-
çaramacearmuiregaladamente,conversandoacercadoocorrido,eassimse fo-
ramdilatandoàmesapormaistempodoqueocostumado.Erajáaltanoite,etra-
tavamosconvivasderetirar-se,quandoouviramgritosealaridosnoaposentovi-
zinho; correram todos a saber o que era, e, aproximando-se ouviram a voz de
Mademoiselle Georges, e distinguiram que declamava apaixonadamente grandes
tiradasdeversosdatragédiaqueessamesmanoitevirarepresentar;todasasin-
flexõeseramasdeRaucourt,osanelitoseramosdela,eopapelquesozinharepre-
sentavaeraomesmoqueaquelaartistaexecutara.Raucourtfoiaprimeiraapreci-
pitar-senoaposentoeaaplaudiraneófitadatragédia,eabraçando-acomternura
lheprognosticougloriosoporvir;enãosecontentandocomisso,tantoinsistiucom
seupai,queesteconsentiuemqueelafosseaPariseseguissenovodestino.Rau-
Eutinhaumasasasbrancas
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courtfoiseuguia,esuamestra,etaleraadiscípula,quelogodebutounoteatroda
Comedie-Françaisecontandoapenascatorzeanosde idade.Opapelqueescolheu
foiodeClitemnestranaIfigéniaemAulida.
Quandoadonzelaapareceuemcenafoiparatodosportentosoespanto;era
o ideal da formosuraunido aomais natural e apaixonado talento.A apariçãode
MademoiselleGeorgesfoiumacontecimentodeestrondo:umamultidãodeespec-
tadoresconcorriamaver,admirar,eaplaudiranovaactrizquenãotardouemser
consideradacomotrágicadeprimeiraordem.Haviacontudonamesmaépocaeno
mesmoteatroumamulherquecaptaraoprivilégioquaseexclusivodosaplausos,e
seconsideravacomorainhadatragédia:eraMademoiselleDuchesnoisqueàforça
deestudosetalentochegaraafazeresqueceraopúblicooseufísicodefeituosoe
quasedisforme.Nãofoisemcusto,eatésemaflição,queelaviuumarivalpodero-
sa ameaçando destroná-la; dobrou esforços, e fadigas, por evitar o de que tanto
receava,masviutambémquearivalcadavezmaisseesmerava.Umalutademéri-
tosetravouentreasduasactrizesperanteopúblico,afortunado juizemtalcon-
tenda.Masoqueeraaoprincípiofrancoelealcertame,equetantosúteisoferecia
aosprogressosdaarte,sefoitornandopoucoapoucodeslealpeleja,eacaboupe-
las intrigas de bastidor. Nada se dá pior nomundo que essas intrigas: ninguém
pensaquaisequantossejamos recursosqueoespíritosugereaumcomediante
quandoestequerprejudicaraalgumseucamarada,entãoseempregamnoiteedia
asperfídias,ashumilhaçõesdetodaaespécie:–todossabemque,seoamorpró-
prioseperdesse,énoteatroqueseiriadarcomele.–MademoiselleGeorges,mui-
to,maisnova,ealémdissorecentementeaceitenoTeatroFrancêstevemuitoque
sofreràfeiaDuchesnois;todavianãoarredoupédoseulugar,eperanteopúblico
secompensavaamplamentedosmexericosdebastidorcomosfrenéticosaplausos
quesempreavitoriaram.
M.deRemusat,queeraintendentedosteatrosimperiais,davadecididapre-
ferênciaaMademoiselleDuchesnois.Umdia,depoisdeumarepresentaçãodeAr-
taxerxes, peça em que Georges fazia o papel principal, teve esta actriz umamui
vivadisputacomRemusat.Cansadajádasperseguiçõesquedesuascompanheiras
lheprovinham,nãoquisdemaisamaissofrê-las,aparelhadasporumaautoridade.
ARússialhehaviafeitobrilhantíssimaspropostas;foiessaaocasiãodeaceitá-las,
rompendoasuaescrituracomoteatroemqueseachava.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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PartiuefectivamenteparaaRússia,onderepresentounos teatrosreaisde
San-PetersburgoeMoscovo,desde1811até1813efoiacolhidanaquelascidades
domodoquemereciamseus talentosegrandereputação.O Imperador lhemos-
trou amaior benevolência, e a este respeito citam-se várias anedotas, das quais
algumasdamosemseguida.
MademoiselleGeorgesdebutoufazendoopapeldeSemiramis,noqualnun-
cahouvequempudesseigualá-la.OImperadorassistiaàrepresentaçãocomtodaa
suacorte:acabadaapeça,foiAlexandreempessoaaocamarotedeMademoiselle
Georgesparafelicitá-la,eapresentando-seafável,lhedirigiuasseguintespalavras:
–Senhora,melhorsabeistrazeracoroa,doqueanossagrandeCatarina.–“Ami-
nhacoroadeteatro,respondeuaactriz,nãoétãopesadacomoadetodasasRús-
sias”–Passadosalgunsdias,recebeuMademoiselleGeorgesdapartedoImpera-
dor,umacoroamagnífica,feitapelomodelodadeCatarina.
Acabaraumanoitederepresentar-seaMerope,eAlexandresehaviaporex-
tremocomovidocomopatéticoeapaixonadodagrandetrágica:recolheu-seesta
aoseucamarote;oimperadornãotardouemirtercomela,eentrandoapressura-
do,eenxugandoosolhos,lhedisse:–Venhotrazer-vosasprimeiraslágrimasque
derrameidepoisquevouateatros.
QuandorebentouaguerraentreFrançaeRússia,MademoiselleGeorgesin-
sistiaemquerervoltarparaasuapátria.Oimperadornãoquisdemodonenhum
consentir em tal, antes lhe disse com galanteria: – Prosseguirei a guerra contra
NapoleãosóparavosconservarnaRússia.–“Porém,Senhor,diziaaactriz,nãoé
aquiomeulugar,massimemFrança,emParis”–“Deixaiadiantaromeuexército,
volve o Czar, que eu próprio vos conduzirei” – “Nesse caso, saberáV.Majestade
queantesprefiroesperarqueosFrancesescheguemaMoscovo,oqueporcerto
levarámenostempo.”
TalfoiasoberbarespostadeMademoiselleGeorges.Qualdosdoiserapro-
feta, eraaactrizouo imperador?Certoqueoeramambos,porqueosFranceses
chegaramaMoscovo,eosRussosacabaramporentraremParis!…Mas jáMade-
moiselleGeorgesoshaviadeixado.Pelos finsdoanode1813entrouemFrança,
ondeachamavamaprotecçãoeternointeressedeNapoleão.Tornouaaparecerno
TeatroFrancês, e a representar comosmaiores sucessos, e colhendo cada noite
maisbrilhantestriunfos.
Eutinhaumasasasbrancas
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Em1820passouGeorgesarepresentarnoteatrodoOdeon,eaípermaneceu
até1831,emquefoiparaodaPorte-Saint-Martin,ondeumanovacarreiraseabria
paraagrandeartista.AtéessaépocanãohaviamademoiselleGeorgesrepresenta-
dosenãoorepertórioclássico;começouentãocomomodernodrama,eigualfor-
tunaabafejounessegénerotãoopostoàqueleaqueestavahabituada.Oprimeiro
dramaemqueentroufoiCristinaemFontainebleau,produçãodeAlexandreDumas.
Noprefáciodessedramaseaprazoautor,emdaraobelotalentodeMademoiselle
Georgeseàmaneiraporquedesempenhouoseupapel,osmaioreselogios,eagra-
decimentos. Seguiram-se as representações dos dramas Lucrécia Borgia, Maria
Tudor, Margarida de Borgonha, a Veneziana, Isabel de Baviera, a marquesa de
Brinvilliers,JoanadeNápoles,&c.&c.Todoaquelequesoubealgumacoisaoqueé
teatrofacilmenteconheceráquantasforamasdificuldadesqueteveasuperaresta
artista,paraquepudessepassar,dastragédiasclássicaseregulares,aodramamo-
derno e apaixonado com seu tanto de extravagante; daqueles versos piedosos e
sonoros,aestaprosasofreadaedura.Certoqueéesseomaisbelotriunfoqueja-
maisseobtevenaartedramática.
Osperiódicosfrancesesdestesúltimosanosassazesobejamentemostram
qualsejanomodernodramaaactrizdequefalamos:sãolouvoressobrelouvores,
queinútilseriaestaratranscrever;todaviaparadarumacabalideiadoqueelaera
nogéneroclássico,bastaveralgumacoisadoqueaessepropósitoescreveuGeof-
froi,essearistarco temeroso,paidacríticadramática,edo folhetim.–ÉGeoffroi
quemfala.
(frimario10,ano2)“Precedidadeextraordináriareputaçãodeformosura,
apareceuemcenaMademoiselleGeorgesexcedendosuapróprianomeada.Emseu
rostoestãocasadasasgraçasdefrancesaàregularidadenobredasfilhasdaGrécia;
nocorpodiriasserumairmãdeApolopasseandopelasribasdoEurotas,rodeada
desuasninfasaquemvaisobranceira;todaelaparecefeitaparaoferecerummo-
deloaospincéisdeGuérin.Avozénaturalmente flexível,extensa,esonora.Seus
própriosdefeitostêmumanobreorigem,sendoprovenientesdeumardor,deum
arrojadoímpetoqueaindabemnãosaberegrar,equelheprecipitaosmovimentos
easpalavras,porquenessebelocorpoexisteumaalmaimpacienteporexpandir-
se.NãoéumaestátuadeParos,éaGalateiadePigmalião,cheiadecaloredevida,
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-390-
mascomoafrontadacomamultidãodesentimentosnovosquenoseiolherefer-
vem.”
(frimario19)“Seriabeminjustoaquelequepretendessereduzirtodoomé-
ritodeMademoiselleGeorgesàsbelasformasdequeédotada.Agoraacabaelade
dar no papel deAmenaide, uma nova prova da sua inteligência, e sensibilidade,
qualidade,queestamosacostumadosanegaràsbelas,equeasmaisdasvezes,co-
moporcompensação,reparteanaturezapelasfeiasedesastradas.
NopapeldeClitemnestraeraacópiadeummodelomuiconhecido;node
Amenaide,viramtodosumtipo;nadamaisconsultouadebutantequeanaturezae
suaprópriaalma,depoisdenoshavermostradoMademoiselleRaucourt,nos fez
verMademoiselleGeorgesquenãopodesenãoganharaparecendotalqualé.Posto
queAmenaidenãosejapapelderainha, teverazãoadebutante emrepresentá-lo
paramostrar que sabia fazermais do que copiarMademoiselle Raucourt; e que
outros sentimentos podia pintar além dos da soberba e cólera, e outras paixões
alémda ternuramaternal.TambéméopapeldeAmenaidemais adaptadoà sua
idade,eninguémselembradeotervistodesempenharcomtantointeresseeca-
lor; sendo todavia bastante difícil, porque é cheio de declamações. A querida de
Tancredo não é uma amante vulgar, daquelas que não sabem senão de amores;
esta sabe fazer exercício à bizantina, é uma espécie de amazona de sentimentos
exageradosegigantescos;paraqueestedefeitopossaressalvar-seéprecisoquea
actrizseexprimacomtantaenergiacomonaturalidade.Nessarepresentaçãodeu
MademoiselleGeorgesmaisdoqueesperanças;nuncaofavordopúblicoostentou
commaisdecisão, nuncaos aplausos forammais vivos eunânimes; a aliançada
belezaedasensibilidadeétãoraraquedeveproduziroentusiasmo.”
MuitomaispudéramostranscreverdoquedizGeoffroiacercadestagrande
artista,masoquedeixamosexpostoassazmostraquantoelesoubecompreendero
glorioso porvir que a esperava; porvir queMademoiselle Georges abonou desde
tenrosanoscomtãopreciosospenhores.
--------§--------
TEATRODAPORTESAINT-MARTIN
BiancaContariniOnovodrama–BiancaContarini–éumaobracompleta,seatendermosàs
emoções,esperanças,temores,lágrimas,terrores,eperipéciasqueodistinguem.–
Eutinhaumasasasbrancas
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Veneza no século dezassete era infestada por piratas que faziam à suamarinha
terríveldano;achava-seentreelesumgregochamadoAndréquesedeclararaini-
migodosdogesdepoisdetersidoumdosmaisfirmesesteiosdarepública;porque
seusgrandesserviçostinhamsidoremuneradoscomingratidão,ecomexílio.An-
dré traziamáscaranoscombatese lhechamavamoKlephte;massedesejavare-
pousardasrefregasguerreirasentravaemVeneza,ondesetornavaoreidasfestas
eprazeres.
Numdosataquesda frotavenezianao intrépidocaudilhoaoabordaruma
galera inimigaordenarepentinamentearetirada,oquemuito levaamalumdos
pirataschamadoJorge.Masqualeraomotivodestainconsequência?–Andrévira
nanauinimigaumagentildonzelaeumpobrevelhoqueéseupai;eAndréjápor
elamorredeamores,porelaqueéasobrinhadodogePisani.
Passados tempos desposam-se clandestinamente, e Bianca quer por força
partilharasortedobanido,dequemseconfessaesposa.
AomeiodestaintrigadeitouoautorumajovemAlbanesacheiadedevoção
paraumsenhor,queatratara,comoirmã;eaquallevaoentusiasmodafidelidade
egratidãoatéimolar-separalhecumprirapalavraquetinhadado,quandomenina.
EstesenhoréBeppo,rivaldeAndré,emuitomaisparatemerporissomesmoque
nãoéamado: jurou-lheelepoisumódiodemorte.–Haviade ter lugarentreos
doisadversáriosumlealduelo,masumdosoficiaisdeAndré,esemqueesteosai-
ba,segueaBeppoeoassassina;Andréficadesesperadoportalacontecimento,ese
preparaanovoscombates;eaesposa,queoseguiu,chegaaocasteloocupadope-
lospiratas.ÉsomenteláqueamíserasabequeAndrééoKlephteterrívelquehá
feitotremerVeneza!…
TodaviaBepponãomorreu,esaltandoalgumascenas,chegaremosaodes-
fechomuito dramático. – Bianca e Zoé, que assim se chamava a Albanesa, estão
encerradas nomesmo quarto onde devemorrer a esposa doKlephte segundo o
votodospiratas,quequeremporestemodoromperoúnicolaçoquepodeprendê-
lo aVeneza.Naquele transe cruel Bianca desmaia, e a generosa Zoé cobrindo-se
comumcompridovéu,apagaasluzes,recosta-senumleito,emorreapunhalada!…
FoiJorgequeamatou,Jorgequeéseupai!…–Masjáumincêndiodevoraocastelo:
éBeppoquevemroubarBianca;porémoKlephtequejulgavammorto,ressuscita,
aparecedesúbito,eJorgeperecenaschamasjuntoaocadáverdafilha!
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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--------#--------
TeatrosEstrangeirosLONDRES–DojornalitalianoIlPiratade17deMarço,extraímososeguinte.
–“ObassocantanteColettiquefoiobjectodetantoselogiosquandoestavaemLis-
boa,nãosócorrespondeuàexpectaçãopública,masaindasuperouasuagrande
nomeada. Nisto semostra não ser verdade que os jornalistas, só para favorecer
interesses particulares, e adularem alguns indiscretos emui exigentes cantores,
exageram sempre, encobrem a verdade, e só patranhas vendem. Se alguma vez
tivesselugaroqueacabamosdedizer,certoqueseaplicariaàquelesvirtuosique
tudoqueremser,sendobempouco,enuncaaosquerealmentepossuemrelevan-
tesqualidades.
Pondodeparteexórdios,concluiremos,queoexcelentebassoColetti (por
certoumdosmelhoresdaItália)captounoTorquatodeDonizettiosaplausosdo
muidifícilpúblicodeLondres;arrebatouosespectadorescomasuavidadedoseu
cantoeprofundamenteoscomoveucomumrepresentartodopaixão.Foiumarara
aquisiçãoparaoreal teatro italianodagrandeCapital!Coletti foicondignamente
coadjuvadopelasignoraVarny,eporLablachefilho,queébassocómico.
ATENAS – Na noite de 22 de Fevereiro representou-se uma das obras-
primasdomundomusical:OBarbeirodeSevilha.SS.MM.oreiearainha,honra-
ram com a sua presença essa representação, e não foram daqueles que menos
aplaudiram.Oêxitofoibrilhante:asignoraLugli,jovemdebelasesperanças,dota-
dademuita inteligênciae finíssimosentir, faziaopapeldeRosina,eseostentou
educadasegundoaúltimaescolamúsica;asuavozéhomogéneaesuave;foicol-
madadeaplausos.NãomenosoforamosartistasTomásAntónio(Figaro),DeZuc-
cato(Almaviva),Pollani(D.Basílio),Rota(D.Bartolo).
Nápoles,29deMarço–FoiàcenaumanovaóperadeMercadanteintitulada
AVestal:pelomodocomquefoiaceitepelopúbliconapolitanoseconclui,queessa
produçãoéumnovo triunfoparao grandemaestro; coros, arias, duetos,&c.&c.
tudofoiaplaudidocomentusiasmo;eacabadaapeçaforamosactoreschamados
foracincovezesconsecutivamente.
Bruxelas–ComanovaempresaNegri,foiescrituradaparaprimadonnaab-
solutaasignoraLuisaMattey.
Eutinhaumasasasbrancas
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Milão,13deMarço–NoteatrodaScalasubiuàcenaumanovaóperaintitu-
lada Joana II rainha deNápoles, música domaestro Coccia, palavras de Caetano
Rossi.Nãoagradoudemasiadamente.
PartiuparaLisboaoprimeirobailarinoNeri,jovemdegrandesesperanças.
OeditorJoãoRicordiprevineopúblicodeque,mediantelegalcontrato,ad-
quiriuapropriedadedaóperaLaMaresciallad’Ancre,doegrégiocompositorAle-
xandreNini,quetãobrilhantessucessosobtevenosteatrosdePáduaeGénova.Os
empresáriosoudirectoresde teatros, quedesejarem fazê-la representar, terãoa
bondadedesedirigiraomesmoRicordi,noseuestabelecimentonoteatrodaScala,
ondetambémseencontraráaditaóperaparapianoecanto,epianosó.
Paris–TeatrodaÓperaCómica–AnovapeçadosignorDonizettiintitulada
–LafilleduRegiment–temmerecidodoentendidopúblicoparisiensemuitolison-
jeiroacolhimentoecontinuadosaplausos.Aaria–SalutálaFrance-,otrio–Tous
lestroisréunis–,eofinaldoprimeiroacto,merecemmuitoespecialdistinção.
_____________________
OSHORÁCIOSAssublimesproduçõesdograndeCorneilletãoestimadasoutrora,eainda
hoje tão saboreadas, graças à nobre actriz da tragédia – a belaRachel, tornama
excitarasatençõesdetodososcuriosos;edenovosediscuteacercadoCidoudos
Horácios,comohápoucosequestionavaarespeitodeHernanioudeAngelo;vai-se
manifestandoa fusãoentreos libertinoseosacanhadosda literatura francesa,e
desses dois elementos igualmente defeituosos resultará semdúvida umproduto
neutro,evirtuoso:–asdemaisnaçõesimitarãoaFrança.
AtragédiaOsHoráciosfoirepresentadapelaprimeiravezem1639,masjá
quarentaetrêsanosanteshaviaaparecidonacenaoutracomomesmotítulo:por-
venturaateriavistoCorneille,étodaviabemcertoquenadalheaproveitou;por-
quesemfalardadesgraçadaversificaçãodessapeça,nenhumasemelhançaseacha
entreumaeoutra:essataltragédiaéhojemuirara;intitula-seolivro–Poesiesde
PierreLaudund’Aigaliers.Paris1596–in12.
Tullo Hostilio rei dos Romanos trata com o seu confidente dosmeios de
acabar a guerra queRoma sustenta contra Alba; e nisto é informado queMucio
SuffecioditadordeAlbaquerproporocombatedostrêsCoriáceoscontratrêsRo-
manos;aomesmotempoopaidostrêsHoráciosvemoferecer-lhosparacombater
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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osdefensoresdeAlba.Oreiaceita,elogoapareceoditadorcomosseusCoriáceos
prestesacombaterem;osHoráciostambémsenãodemoram.Trava-secruapeleja
na cenaentreos seisguerreiros,dosquais caemcincomortos;omaisvelhodos
Horácioséoúnicoqueescapasemumasóarranhadura;Romaévitoriosa.Então
apareceHorácia,irmãdovencedor,esposadeumdosdefuntosCoriáceos,arroja-
se ao irmão invectivando-o asperamente, proferindo contra ele asmais duras e
injuriosasexpressões,eesteparasedesagravaramata.
Tinhaelaumaconfidente,aqualvailogocontaraoreiocrimequeHorácio
cometera;oreiocondenaàmorte.Contudohavendoreflectidoalgumtanto,pare-
ceu-lhenimiamenterigorosaasentença,edecidiuqueopovoojulgasse;eopovo
longe de o condenar, lhe decreta as honras do triunfo.Mucio Suffecio, obrigado,
segundootratado,aentregar-secomAlbaaosRomanos,comparecenapresença
deTulloHostilio,queofazmorrer.Océupunetãonefandoatentado,fulminandoo
reieoseuconfidente:apeçaterminacomtrovõeseumraio.
TaléapeçadePedroLaudun,quesemterostalentosdeCorneille,sentiu
todaviaabelezatrágicadesteassunto,etalvezconcorreuparaquedepoissurgisse
abelíssimatragédiacomomesmotítulo,quetantaglóriadeuàcenafrancesa.
____________
TeatrodeS.Carlos2.ª-feira20deAbril
Ópera–Otelo.
Dança–OsMineiros.
3.ª-feira21
Ópera–Fausta.
Dança–OTriunfod’amor.
4.ª-feira22
Ópera–Otelo.
Dança–OsMineiros.
6.ª-feira24
Ópera–Parisina.
Eutinhaumasasasbrancas
-395-
EumnovobailetecompostoporMr.Casati,quetemportítulo–Orfeu.
Osespectáculosprincipiamàs8horas.
________________
AVISOSNãohavendoaindaamaiorpartedosSenhoresAssinantesdoPortosatisfei-
toaindaoimportedoprimeirotrimestredassuasassinaturas,denovoselhesroga
queiram dirigir-se para esse efeito ao Sr. Manuel d’Almeida Cardoso, rua de
Cedofeita.–AosmesmosSenhoresseparticipa,quedopróximoNúmeroemdiante,
lhesseráentregueoJornalpordistribuidoresajustadosparaessefim,evitando-se
dessemodoosdescaminhosdosCorreios&c.ª.
OsSenhoresAssinantesdeCoimbraterãoabondadedeentregaroimporte
dosegundotrimestredassuasassinaturasaoSr.Rodrigo JosédeMoraesSoares,
Estudantedo4.ºanodeMedicina.
___________________
n.º21,de26deAbrilde1840
JORNALDOCONSERVATÓRIO
PARECERAComissãoencarregadadedaroseupareceracercadaComédiaintitulada
–AModa ouumaCenadosnossosdias – que concorreu aos prémios destinados
paraasseispeçasoriginaisportuguesas,quenocorrenteanodevemserrepresen-
tadasnoTeatroNormaldeLisboa,entendequeaditaComédianãoestánocasode
seradmitidaàsprovaspúblicas,porqueasuainvençãodramáticaétrivialíssima,o
seuestilosemverdade,eaté,àsvezesabsurdo,asualinguagemiscadadegalicis-
mosegramaticalmenteincorrecta,echeiadesolecismosintoleráveis.
Seentreascenassemsabor,dequesecompõeestaprodução,houvesseal-
guma–houvesseumasó,quedenunciasseengenhodramáticoemseuautor,aCo-
missãonãoduvidariadeencomendaraobraàbenevolênciadoJúri;mas(commá-
goaodiz)nãoháemtodaelaumúnicopasso,emquepossaestribaraindulgência
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-396-
dosjuízes.Parece,portanto,àComissãoqueapeçasejarestituídaaquemquerque
aapresentounãosedevendosubmeteràsprovasdarepresentação.Lisboa21de
Abrilde1839.–Assinados–VicentePedroNolascodaCunha–A.Herculano–Ro-
drigodaFonsecaMagalhães.
--------§--------
DOISEPISÓDIOSDAVIDA
DEUMGRANDEACTOR
(ContinuadodoN.º18)Vinteanostinhamdecorrido,ejáDavidKeaneraodirectordosteatrosre-
aisdeDrury-LaneedeCovent-Garden;edepoisdemilrepresentaçõesdelirantes,
tostado e negro como oMoiro de Veneza, nobre e grave comoHamlet, curvado,
disformeehediondo comoRicardo III, o actor famosoborbotando furores, solu-
çandopesares,emlutacomavidaecomamorte,EdmundoKeanalquebradode
fadigaeentusiasmoquasequedesmaiavasucumbindoafrenéticosaplausos;ede-
poisdetersidoasdelíciasdeManchester,Londres,eNew-Yorkoreidacenaingle-
saseentregaraporumpoucoaM.LaurentdirectordoteatroitalianodeParisna
épocaemqueosactoresinglesesaírepresentavamalternadamentecomositalia-
nos.SeànoiteDavidKeaneradopúblico,demanhãseocupavaaexaminarmiu-
damenteasbelezasdeParis.–NoprimeirodeOutubrode1828S.W.Reynolds,o
gravadordosnaufrágiosdaMedusaeMazepa,oartistaquase tãograndenoseu
género comoopróprioKean, o conduzira comigoaomuseu; edepoisde termos
admiradoRubens,Vandik,Rembrandt, ePauloVeroneso, a carruagemdo trágico
noslevouàhospedaria–Favart,paraondenosconvidaraocómicoChippendale:–
e jáopúblicoseaglomeravaàsportasdoteatro,poisqueanunciavaocartazo–
MercadordeVeneza–eKeandeviafazeropapeldeShylock.
Estava já bastante avançado o jantar, quando um rapazinho nédio e loiro
vemtrazeralgumasmassasparacompletarofestim.Examinou-oKeancomcurio-
sidade, edepoisdando-lheumamoedade cinco francos, lhedisse: –yei,myboy,
pour legarçon; this isborn français,n’est-cepas? –O rapaz ao aceitar o dinheiro
olhouparatodossucessivamente,comoparalheslernosrostos,setantodinheiro
eranaverdadeparaele;ecomonadaencontrasseestaideia,guardoulentamentea
Eutinhaumasasasbrancas
-397-
peça,fezumacortesiaprofundaaopronunciaro–Mercim’sieur–esaiucomhesi-
tação;masapenasnaescadadeitouacorrertãovelozmente,comoseoperseguis-
sem.–Orapaz,disseChippendale,vaitãocontente,queparecelouco!…
–Seosaprendizesseuscompanheiros lhevêemtantodinheiro,atalheieu,
maldele;queoacusarãodeoterroubado.
–Talvez, talvez!…continuouKean:–Ospobres têmtalcostumedeverem
pobresoscompanheiros,quedãoemchamaremladrõesatodososquecessamde
oser.–Eeumesmofuidissoumexemplohávinteetantosanos!–EKeannoscon-
touoquelhetinhaacontecidocomabank-notedoduquedeBedford;econtou,por
assimdizer,comamor;tãodoceslheeramasrecordaçõesdeBob,TomCove,e…
Betty!Eaoacabar,avozse lhe tornavagrave,egrossas lágrimas lhedeslizavam
pela face: – Oh! perdoai-me, nos disse ele com emoção, perdoai esta lágrima; –
amigos,queeunamisériatinha,ébemlícitopranteá-los:aCompanhiadeBobfoia
minhafamília,aminhaúnicafamília;etodosmorreramnamiséria!…–Oh!volveu
elecomamargura,dai-medebeber;queheimisterdeafogarnovinhoaslembran-
ças,comooutroafogariaosremorsos!…
EntravaentãoadonadahospedariaeKeantomandoumabank-notecomo
nasuamocidade,lhedisse:–Vamos,senhora;trazei-mecincoguinéusdechampa-
gne,quero-mealegrarhoje…
Chippendaleinclinando-separaReynoldslhedisseemvozbaixa:–Cuidado
emKean!Evitemosqueseembriague,poisquedeveestaremcenadentrodeuma
hora…
–Sim,sim,respondeuReynoldscomumsinaldeinteligência.
–Queéisso?perguntouKean,reparandonossegredinhos.
–Estávamo-nospreparandoparaumtoastaKean.
–Aceito-oparaopagarvolveuKeanjáalegre;eNewman?continuouele;e
dirigindo-seaseuantigocriado:Newman,vamos,fazesaltaressarolha.
Ostoastssesucedem,asgarrafasvaziasseamontoamsobreamesa,eKean
járecuperaratodaasuaalegria;veio-lheporémcomoesquecimentodopassadoo
olvidodofuturo,eporconseguinteenterrando-senafofapoltrona,tirandoagra-
vataecruzandoaspernas,Keansócuidavadopresente.
Masjáoteatroseabrira,eopúblicoimpacienteoenchiatodo:erajámais
quetempodefazeroúltimotoast.Reynolds,dobrandooguardanapo,selevantava
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-398-
assobiando,eeupegandonochapéulhedavacomobraço,comoparalhedarlus-
tre;masKeannãosemexia!
–My friend, lhe diz Reynolds tomando o copo, e tocando o de Kean; be-
bamosaoteusucessodestanoite;edepoisdá-meobraço,epartamos.
–Paraonde?respondeuKeantodoadmirado.
–Paraoteatro,clamouChippendale;jásãosetehorasmenosumquarto…
Setehorasmenosumquarto?volveuKeancommauhumor,odiaboleveo
teatroquesemprechegaquandoomeucopoestácheio;malditosejaoteatro!…
–É tão agradável abrisaquemevempor aquela janela, e este sofá é tão
cómodo,numapalavraestouaquitãobem,queestoucapazdeescreveraM.Lau-
rentdizendo-lhequeumagraveindisposição…
–Seriagrandeloucura,meucaroamigo,atalhouChippendale;olha,chegaa
estajanela,everásumaequipagem…–Keanviuummagníficocochequepararaà
portadoteatro.
–Edequeméacarruagem?
–ÉdaduquesadeBerry,queveioexpressamenteparatever…
–AduquesadeBerry!volveuKean,depoisdeterdespejadoocopodeum
trago:comqueaduquesadeBerrypensaqueoactorKeanveiodepropósitode
Londresparaadivertir;–eporqueaprazàduquesadistrair-seumahora,hei-deeu
deixaromeuchampanhe,aminhacadeiratãomole,eomeio-sonotãoagradável?–
Juroquetalnãoacontecerá!Edemaisnãoestouparaascríticasdosociososdacor-
te: se a duquesa não tivesse vindo, representava;mas como isto não se dá, vou
imediatamenteescreveraodirectorqueestoudoente!
Oraciocínioeraabsurdo,maseranecessáriaaKeanumarazão;ecuidouele
terachadoumaexcelente.–Oshomenscheiosdesensosãomuitasvezesosmais
insensatoscomovinho;eKeaneradistoumaprova.
TodaviaReynoldsquelheconheciaofraco,ReynoldsquetinhasobreKean
extremainfluência,entrousubtilmentenumadiscussãonaqualfezdaquestãode
representarounãorepresentarumaquestãode lealdadeparaKean,quenãosa-
bendo jáquerespondesseconcordouemquedevia representar;porémquesóo
fariaquandotivessembebidoas trêsgarrafasqueaindarestavamcheiassobrea
mesa.
Eutinhaumasasasbrancas
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–Vamosa issodizReynolds,aproveitando-se;vamos,Senhores,osvossos
copos!–Eei-loadeitarChampagnecontandoaomesmotempoumahistóriacómi-
ca com uma volubilidade admirável; Chippendale dava grandes gargalhadas, e
aplaudia como um frenético; e Kean encantado não viu que Newman, colocado
atrásdele,davacabocomrapidezecomplacênciadecadaumadasgarrafasapenas
abertas:ecantandoerindoediscutindocomNewmanqueiabebendosemtomar
fôlego,astrêsgarrafasestavamvazias,eKeannãohaviabebidoaindaoprimeiro
copo.
–PartamosdizReynoldscheiodecansaço,partamos;queas trêsgarrafas
estãovazias.
– Como assim? como é isso possível, se nada ainda bebemos? respondeu
Kean.
–Quererásdizerquetunãobebeste,doquenãoduvido;mas,quantoanós,
bebemoscadaumsuagarrafamaisdepressadoquetuoteucopo!…
Keannãoqueriaacreditarsemelhantecaso,masvoltandotodasasgarrafas,
econvencendo-sedequeestavamvazias:Bravo,bravo!clamou,vejoquesoisbons,
everdadeirosbebedores; e euquevosdei aminhapalavra, cumpro-a, comoho-
memdehonra.
Tomámo-lonóspelapalavra,saímosmuitodepressaeatravessámosolargo
dositalianoscosteandoascasasparaqueelenãovisseacarruagemdaduquesade
Berryqueestavaàportadoteatro,receandoque,apoiadoemraciocíniotãológico
comoaprimeiravez,recusasserepresentar;masfelizmentechegámosaoseuca-
marim.
Keanestavamaisquemeio-bêbedo,Reynolds suavaembica,Chippendale
nãoestavamuitocorrente,eNewmanaoencostar-sepor todasasparedesbran-
quearatodaaroupa,efinalmenteperdeu-senoscorredores.–Eramsetehorase
umquarto;opanodeviaerguer-seàsseteemeia.
JáKeansecomeçaraavestir, enósaplaudíamo-nosbaixinhodeover tão
razoável,quandodepoisde tervoltadoa chavena fechaduraporvintemaneiras
diferentesNewmanconseguiuabriraportaentrandocompassomalfirmeecabe-
çadescobertade sortequenãopôdeKeandeixardedizer-lhe: –Well,Newman,
estásaindamaispálidoqueumactorpateado;masoteunarizestámaisvermelho
queummorango.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Ai!master,respondeudolorosamenteNewman,foiumdemóniodeumbas-
tidorquemeveiodeencontroaonariztãorijamentequeochapéumesaltounão
seiparaonde,eaindaestoutãoperturbado…
–Bebeumagotadeaguardentepara te calmares, lhedizKean rindo com
vontade;edepoisprepara-meumcopodegrogquenãoestoucomoorgãosonoro,
edemaistenhosede.
HaviamaisdequinzeanosqueNewmanestavaaoserviçodeKean,enãose
passavaumasónoiteemquenãodesseaobomdoamoumcopodegrogenquanto
este se vestia no camarim; deixamos-lhe pois naturalmente este cuidado. Mas
Newmanpensavanainchaçãodonariz,enaperdadochapéu;preocupado,esque-
ceu-sededeitarnocopodoisterçosdeáguaeumdeaguardente;edeuaoamoum
grogdeaguardentepura,queKeanbebeudeumtrago.
Sentiueleimediatamenteumaturbaçãonavista,eosanguequelhesubiaà
cabeça;paratomararaproximou-sedajanela,epelamaistristecasualidadeviua
fatalcarruagemquevoltavaparaopalácio.Nãofoinecessáriomaisnada,poisque
voltando-sederepenteatirouparaomeiodacasacomavestedeShylockecome-
çouadizer comcalor e convicção: –Nãoquero representardiantededuquesas,
quenãovimeuaParis,paradivertiraSuaAltezaReal!
EchegavaentãoM.LaurentquevinhacumprimentaraKeansegundoocos-
tume.Quandoentrounocamarimoviuestiradonosofá,erespondendoatodasas
questões;–Nãoquerorepresentardiantededuquesas,aborreçoasduquesas!…–
Eramsetehorasevintecincominutos.
O camarim estava cheio de gente que toda falava aomesmo tempo: Chi-
ppendalediscutia,M.Laurentsuplicava,ReynoldsbatiaemNewmanquechorava
comoumacriança,Keanofereciaa todosvinho, eopúblicogritavapor todosos
lados:Panoacima!panoacima!
NoentantoReynoldsaconselhouaM.Laurentquenãooferecesseaindao
dinheiro ao público; mas que o deixassem sozinho com Kean. Chippendale que
muitoconfiavaemReynolds,feztodaadiligênciaparaqueocamarimfosseevacu-
ado;ecomoficasseeuparaofim,Reynolds,tomando-meamão,mepediuquefi-
casse;oquemuitoestimei,porquedecertomepareciacuriosaaaventura.Fechada
quefoiaportaReynoldsdisseprazenteiramenteaKean:–Oragraças,quesomos
senhoresdenós!–opúblicojátornouareceberodinheiro;aduquesadesapontada
Eutinhaumasasasbrancas
-401-
jálávainacarruagem;eportantoanoiteestápornossaconta:–veste-te,vamosao
cafédeParis,ondeacharemoschampagneepunch.
– Boa lembrança! – que tenho eu vontade punch esta noite; e depois um
passeioaFrascati.
–AFrascati!volveuReynolds,valeu,epartamos!…Mas,dizele,fazendo-me
umsinalde inteligênciaqueeunãocompreendi, seriaprudentedizeraNewman
que fizesse ir a carruagem à porta pequena, para não sairmos pela habitual dos
actores.
–Eporque?bradaKeancomanimação:–seriafraquezaevadirmo-nos,por
assimdizer,porumaportasecreta.Acasotemeríeisquenosinsultassemnapassa-
gem?–Aidoquemeinsultar!…Osfrancesestomam,segundodizem,aespadapor
qualquercoisa;mastambémeuseijogarasarmas;etenhoandadocomumdesejo
demebatercomumfrancês!…óptimaocasião!…
–Nãosetrataagoradeespada,nemdeinjúria,nemdebravatas,retorquiu
Reynolds;trata-sedeiratéFrascati,teracabeçaeocoraçãolivres,edeestarale-
gre;porissoparece-mebomevitarumespectáculoquenosviriaentristecerbem
poucoapropósito…
–Equeháhojequesejamaistristedoqueontemaopassarporessaporta?
perguntouKean.
–ÉhojeSábado…
–Equetemosábadodetãoparticular?
–Éodiadepagarosalárioaosobreiros,maquinistas, figurinistas,ecom-
parsasdoteatro;respondeuReynolds.Contava-secomareceitadestanoitepara
lhedarotristesalário;ecomonãohouvereceita,nãohásalárioparaapobregente,
que estámiseravelmente aglomerada a esta porta: uns trazem os filhinhos, que
pedemumpedaçodepão;outrosvêmcomospaisenfermos,queesperam,para
substituir, uma parte do ganho de seus filhos. Lembrara-me, que estimarias não
passar pelomeio deles, porque sei que nunca pudeste ouvir com indiferença as
queixasdeumdesgraçado,equeoestranhosofrimentoteroubamuifacilmentea
alegria;masenfimporquesenãohá-derirebeberenquantooutroschoram?As-
simvaiavida!…–paraunsalegria,eparaoutrosfomeemiséria!…Serianaverda-
degrandefraqueza,comodisseste,irmo-nosporumaportasecreta:vamospelado
costume.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Keanestavapensativo,eorostolhemudoumuitasvezesdeexpressãoecor
empoucosminutos;finalmentecomumgestoderesignaçãotomouavestequehá
poucodeitaraporterra,esecomeçouavestirsemdizerpalavra.–Enóslheseguí-
amosopensamentocomindizívelprazer;masReynoldsrompeuosilêncio:–Queé
issoqueestásafazer?Olhaquetrocasovestuário!
–Vourepresentar!
–Diantedequem?–opúblicojásefoi!
–Foi-seopúblico?repetiuKean.
–Assimoquiseste!…
–Morteesangue!gritouKean,batendoviolentamentenatesta,souumbê-
bedoeumdoido!…ecaiunosofácomofulminado.
–Sentespoisterofendidoaduquesa,lhedizReynolds?
Ah!queporcemmillibras,volveugravementeKean,porcemmillibrasnão
venderiaeuumahoraderepousoaorei;masdar-me-iaumdiainteiroseistobas-
tasseaenxugarumasólágrima,ediminuir-lheapenaaoinfelizquesofre!Quero,
que todosessesdesgraçadosmeacompanhem jáaminhacasa;quero-lhespagar
eumesmo,e…
–Escutai,escutai! interrompieu;nãoéaquiloumruídosemelhanteaodo
públicoimpaciente?
–Parecequesim!dizKean.
–Esperai,quevouinformar-me…esaí.–Ocorredorestavaatulhadodegen-
tequeseiaaproximandodemimcomoesperandoumamánova.
–Fazeiergueropano,Keanestápronto!
Aexpressãodetodososrostosmudousubitamente;eaumlampejodeale-
gria seuniuumsinaldeespanto, comose fosseummilagrequeeuanunciava. –
Eramoitohoras, reinavacompleto silênciono teatro;masKean foi acolhidomui
friamente.
Nosegundoactoalgunsbravoslhederamcoragem;masquando,noterceiro,
Keanchegaà frase: IfajewwrongaChristian,Whatishishumility?revenge!…fo-
ramextraordináriososaplausos,eosgritosdeadmiraçãotãograndesecontinua-
dos,queapenascessaramcomapeça!
Nodiaseguinteestavaeleemjejum,falou-meporduaslargashorasdasua
veneraçãoporShakespeare,easuaconversapoética,esensatameelectrizavaco-
Eutinhaumasasasbrancas
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moqualquer leiturabelíssima: – ànoite faziadó vê-lo!E assimpassou a vida! –
Lealegenerosobastasvezes,muitassublime,emaisvezesaindaembrutecidopela
paixão fatal, que lhe devia dar cabo da existência, David Keanmorreu emRich-
monda13deMarçode1833deidadedequarentaecincoanos.
Quando lhe fizeram a autópsia do corpo acharam-no de uma construção
hercúlea,masoestômagoestavatãomaceradocomosehouveramorridodevene-
noviolento.
Afortunaquedeixoueramedíocreemcomparaçãodoquepodiaterjunta-
do.M.LaurentlhedavaemParisporcadarepresentaçãosessentaguinéus,esóo
desejodeviraFrançalhepoderiaterfeitoadmitirtãopequenaescritura;poisque
no inverno precedente se tinha ajustado Kean para o teatro de Drury-Lane por
cinquenta noites durante as quais era para elemetade da receita, e a gente que
concorriaparaovereratanta,queestapartecorrespondiaatrêsmilsetecentose
cinquentamilfrancospornoite.
Acusam-nodetertudodissipadonoluxoedevassidão;maséumgrandeer-
ro.Divididaasuafortunaemtrêspartes,aprimeirapertenceuaosprocuradores
decausas, e falsosamigosquesempreabusaramemseuproveitoda índoledes-
cuidada,epoucointeresseiradeKean.Asegundapartefoigastaemesmolas,dádi-
vas,esocorros;poisquetodooactorouautorjávelhos,onegociantefalido,aviú-
va,oórfão,omendigosedirigiamparaasuaporta,enuncadebalde.Aterceira,é
certoqueantesfoidissipadaquegasta,masconquantoassimseja;fosseelemais
desconfiadooumenosgeneroso,queentãoaindaassimmorreriamilionário.
Euqueviviporvezescomessehomemquetinhafeitopalpitartantoscora-
ções ederramar tantas lágrimas, comohomemque gozou tanto, e tanto sofreu,
queteveosmaiorestriunfos,emaispungentesdesgostos,amaisricaopulênciaea
maisfriamiséria,aprouve-meestudá-loconscienciosamente;ecadavezqueasua
lembrançameocupa,nãopossodeixardeexclamar:
QualseriaarazãoporqueessesqueconheceramShakespeareeCorneille,e
com eles viveram familiarmente, nos não transmitiram algumas linhas que nos
retracem as acções privadas, e nos façam conhecer o homem moral com suas
prendasedesvios;ecomalgumesboçodesuavidaíntimanosnãoantolhamoho-
memcomquemnossaimaginação,porassimdizer,poderiaconversar?…
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Porcertoqueeraistocemvezesmaisinteressantequesaberonomedarua
quehabitavam,acordovestido,eaformadapedratumularqueoscobre.
I.Bowchardy.
--------§--------
BIOGRAFIA
LigierMuitasvezessetemrepetido,quenadaapóssideixaoactor;milcompara-
çõesquetêmfeitodasuaartecomadospoetas,pintores,emúsicos,todasconclu-
ememmenosprezodocomediante.Éefémeraaartedocomediante,dizemporaí;
fenececomaquelesqueaexercem,eporcertoqueéparalamentarasortedeRo-
cio?–Insensatos,quenemaomenosconsideramquãoperduráveléa lembrança
que deixa o actor distinto; insensatos, que não atendem a que tantas vezes lhes
feremosouvidososgrandesnomesdeTalma,Kean,&c.ª.comoodasmaioresilus-
traçõesliterárias,ouguerreiras;comonomesdeprincipaisfilantroposouconquis-
tadores. Transmitiu-se a admiração dos do seu tempo à absorta posteridade,
transmitiu-se inteira e semmescla; enquantoque sehão tornado assuntode re-
nhida controvérsia os merecimentos daqueles, cuja fama librava sobre objectos
que seapreciamsegundoos costumeseasépocas.Houvequemabalasseno seu
eterno pedestal a estátua do grande Racine; até houve loucos que pretenderam
torceralgumasdasimarcescíveisfolhasdacoroadoimortalCamões!–Éverdade
queosdoporvirlheschamaramsacrílegosoumentecaptos,masnemporissofo-
rammenores os sacrilégios, nem por isso nessemesmo porvir deixou de haver
outrosmentecaptosque lhesdessemcrédito.Longedenós,compararosmereci-
mentos de uns e outros, comparem-se porémos destinos, e ver-se-á qual houve
melhor estrela.Quemse atreveu jamais aduvidardoquenos contamdeTalma;
quemháaíquenãoestremeçaouvindoonomedeKean?Detodososhomenssão
oscomediantesosquemaissequeixamdequeéingratasuaarte;enãoháquem
menos justificados tenha seus queixumes! São reis embalsamados para séculos,
comoo eramantigosmonarcasdoEgiptopelasmãosde seusmui fiéis vassalos.
Nãoépoisparadoxosustentarqueoscomediantessãodosmaisfelizesentretodos
osartistas,elesquesãoosfilhospredilectosdapublicidade.Eistoésemfalarmos
dosaplausos,dosbravos,dascoroas,quetantaembriaguezdealegriafazemsentir!
Eutinhaumasasasbrancas
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Essacuriosidadedequeéalvoocomediantelheinvestigaabiografiadesde
asprimeiraspáginas.Éumraiodessefocodesensibilidade,éolampejodessaima-
ginação turbulenta e arrojada, o alvo a que tendemas indagações.Nãoháquem
nãoanseieremontaratéànascentedesseriocaudalosoouespreguiçado;nãohá
quemnãodeseje fenderoentrecascodaárvore,paraobservaro correrda seiva
quedepoistemdecoalhar-seemsaborosíssimosfrutos.–Houvequeminterrogas-
se Ligier acerca dessas nativas disposições a que chamam vocação, sonhos que
dormemnocoraçãoeaoacordardespregamasas, epartema realizar-se. “Quais
foramvossasprimeiras inspirações teatrais?” –Assim foi interrogadoLigier; e o
actorficoucomohesitante,masalfimrecordando-sedequeaexperiênciadosanos
o tornara já sobranceiro a paixões, respondeu franco e sincero: – “Oqueme fez
comediante,foioamor!”–Condignacausadetãobelosefeitos;felizesosactoresa
quemsemelhantemotivolevouàcena;maisfelizaindaopúblicoqueosgoza!
HaviaemBordéus,cidadeondeLigiernasceraaos11deNovembrode1797,
umalindíssimadonzelaqueemcompanhiadesuamãemuitasvezesaparecianas
galeriasdeumteatroparticular.
Eraumadonzeladotadade sempar formosura, e tambémdeumcoração
porextremosensível,comobemomostravamseurostoegestos;poisnasrepre-
sentações a que assistia, toda se deixava levar das vivíssimas impressões que a
senhoreavam,eentrelágrimasesoluçosprorrompiaemaplausosbatendoaspal-
mas,eacenandocomentusiasmoquaseconvulsivo.Deentreaquelesingénuoslá-
biosouviamuitasvezesLigierpalavraslisonjeiras,louvoressinceros,quedirigiam
ao actorquemelhorhavia representado, ouquemais a tinhamsabido comover:
Ligiersuspiravadeimpaciência,emordiaosbeiçosdespeitoso.Seraplaudidopor
mãostãolindas, louvadoportãograciosaboca,ecompreendidoporaquelecora-
ção; fazerderramartãodoces lágrimas;–tal foidaíemdianteoseupensamento
favorito;oseuúnicosonho,queporfimsetransformouemresoluçãoimutável.
Deudemãoatodaatimidez,equisquetodososafectos,todaapaixãoda
donzelanelesóseconcentrassem;sónasrepresentaçõespodiavê-la;foiarepre-
sentaçãoseuúnicofito.Começoulogopelospapéisdemaiorforçaedificuldade,eo
êxitocoroouseusesforços:opúblico,eadonzelaovitoriavam…Opúblicolhetem
sidoconstante,ecadavezmaisoestima:masadonzela…essa,deitaram-napara
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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aí;casaram-nacomumindiferente,elásefoi,depoisdeterdeixadoocoraçãode
umpobreartistacruelmenteeivado!–Oh!quantosexemplosdestes?
UmvéusobreoqueentãosentiuLigier;respeitoàspaixões;equeinocentes
paixões!–AconteceuporessestemposapareceremBordéusograndeTalma;Li-
gierlhefoilogoapresentado,comoquemjádesifaziaconcebergrandesesperan-
ças;Talmaoacolheubenignoeaconselhando-lhequesedesseaumporfiadoestu-
do,lhefezesperarseradmitidoaoTeatroFrancêsdeParis.Passaram-seseisme-
seseLigiersemprefirmenaresoluçãoquetomarasepartiuparaacapitalafimde
abraçarporumavezaprofissão teatral;masumaconsideração lhepunhagrave
estorvo.Suamãenãopodiapreverasprevençõesquesempretiveracontraavida
deactor,aqual tantocontrastavacomosseussentimentosreligiosos:Ligiernão
queriacausar-lhepena,edediaparadiaespaçavaocumprimentodoseudesejo.
Foinesseespaçoqueeleseaplicoucomomaiordesveloàliteraturadramática,a
qual,segundoTalmalhedizia,eraafonteondecommaiorproveitopoderiabeber.
Deu-setambémaoestudodetodoorepertóriotrágicodoteatro;eobteveumem-
pregonumadasSecretariasdeEstado:maseranoConservatórioqueeledesejava
empregar-se.
Nessaépocalhemorreuamãe,eentãonadaopôdesuster:apresentou-se
logoàcomissãoencarregadadeadmitirosdiscípulosdeMelpomeneeTália,como
sedizianessetempo,efoiimediatamenteaceite.Obteveumdosprimeirosprémios
enãotardouquenãodebutasse,oquefezemDezembrode1819representandode
NeroemBritanicus,edeOrestesnaAndrómaca;oTeatroFrancêsoaceitou,edes-
delogolheconfiouosprincipaispapéis.ForamsuascriaçõesoCatilinadatragédia
ScylladeM.Jouy,oFilipeIIdaIsabeldeFrançadeM.Soumet;oClodericodapeça
Clovis deM. Viennet; e o Leicester deMaria Stuart deM. Lebrun. Passados três
anosfoiLigiercorrerasprovíncias,erepresentandoemLeão,aílhelançaramasua
primeiracoroa;comelasecingiuafrontecomoseforaimperadorromano,emui-
tasnoitesafionãopôdedormirumsóinstante.Depoisacostumou-seLigierare-
pousarsobreosseusloiros.VoltouaPariseescriturou-se,noteatrodoOdeonem
1825.Daípassouparaoutrosteatros,esedistinguiusobremaneiranospapéisde
MarinoFaliero, Nero, Shylock noMercador de Veneza,Kernox, Henrique III, e fi-
nalmentenopapeldeLuísXInapeçadessenomedeM.Delavigne:esteúltimoau-
mentouconsideravelmenteasuareputação.Ligierédotadodeumavozenérgicae
Eutinhaumasasasbrancas
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penetrante,querepassaaepiderme,evaipercutirasfibrasmaisíntimasdocora-
ção;quandoaassembleiaédominadapeloterrorquehácausadoumafortesitua-
çãodramáticaavozdeLigierfazcorrerestremeções,eeriçarcabelos:porvolumo-
saqueé,lhecompensaapequenezdocorpo,eofazcresceraosolhosdoespecta-
dor.Ligierpossuiqualidadespoderosas,eoúnicodefeitoquelhenotam,édeixar-
seàsvezesdominardemasiadamentedapaixão:excitadasuanervosasensibilida-
de,nemsequerlhepodeconterosefeitos,eélevadocomodesenfreadocorcel,que
nãopára,esbarra-se;todaviadestedefeitomuitosetemelecorrigido,mostrando-
sesempredócilaosconselhoseadvertênciasquepelaimprensalhesãofeitas.No
papel de Nicomedes que ultimamente representou, e que bem pode chamar-se
umacriaçãosua,mereceuestedistintoactorossufrágiosdetodososespectadores
aindaosmaisdifíceis.
CrónicaTeatralTeatroNormal–Depoisdeoitodiasdereligiosolutoabriu-sefinalmenteo
nossoTeatroNormalnoDomingodePáscoa,eseostentouarreadodenovasgalas:
umpanodeboca,nãomuito ricoéverdade,masconvenientementepintado;um
aumentonopessoaldaorquestra,comotambémnonúmerodecomparsas;riqueza
devestuários,eprofusãodeboascenasnovas,eisoqueofereceuaqueleteatrona
suareabertura;acrescendoaisto,quenosdeuduaspeçasnovas:–1.ªAmazampo,
ouadescobertadequina;2.ªOgéniodanoite.
Amazampoéumdramaem4actose7quadros;nemasimplicidadenema
unidadesãovirtudesqueoadornem,esemestesdoisquesitos,queoutroracom-
pendiavamemsioméritodetodoumdrama,interessatodaviaodequeagoratra-
tamos.Sim,Amazampotemumaqualidaderelevante;prendeasatenções,eàsve-
zessurpreendeoespectador,comseuslancesbemcombinados.Interessaoespec-
tador,mascomocostumainteressaraleituradeviagensarriscadas,oudeaventu-
raspassadasentrepovosestranhoseselvagens;–históriasquesãoparahomensjá
maduros,oquesãoparaascriançasoscontosdefadas.Observaioliterato,ocríti-
co,assistindoàrepresentaçãodeAmazampo:vê-lo-eisseguindosempestanejaro
desenvolvimentodascenas,ocorrerdaacção,vê-lo-eiscomaatençãointeiramen-
tecativa;eno fimperguntai-lheseodramaébom?–Certoquenão ficamospor
quearespostasejaafirmativa.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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AmazampoéoesforçadoegenerosochefedeumatribodosIncas;amaex-
tremosamenteuma linda selvagemaquemespera chamarembreve suaesposa;
Maída,taleraonomedadonzela,lhederaessaesperançadistinguindo-odeentre
todososoutrosguerreiros,eentreosdoissetravaraumaternaafeiçãodeinfância,
queotempoconverteuemmaisfortesentimento.EraaépocaemqueEspanhóis
descaroáveis devassavam osmais recônditos bosques e cavernas dessas regiões
porversedavamcommaisalguns inocentesselvagensque imolassemàsedede
ouroesanguequeosdevorava.–Fernandofilhodovice-reidoPeruacertaradeir
teràsparagensondeseacoitavaatribodeAmazampo;eaoverabelaMaída,fre-
néticapaixãolheardeunopeito.Conseguiufalar-lhe,easelvagem,nemquefora
damadecidadescivilizadas,sacrificouoamorde infânciaaosagradosdeumes-
tranho;nãoduvidoutrocaroamigoedefensordasuaterra,porumdosseusprin-
cipaisopressores.Esqueceamigos,pai,religião,eoternoAmazampo,eprepara-se
para seguirFernando.MasAmazampo já conhecera friezana suaMaída; funesta
suspeitalheescureceocoração,eotornavigilante.Oselvagemsurpreendeosdois,
porémnomomentoemque ia sacrificaroEspanholaoseu justo furor,Maídase
aproximaàbordadeumprecipício,eameaçadespenhar-se;ochefeconheceentão
todooamorqueelavotaaoestrangeiro,ecastigaaousadiadeum,eaingratidão
daoutra,comumrasgodegenerosidade;–Fugi,bradaoguerreiro,etuMaída,na
horadaangústialembra-tedeAmazampoquevelasobreti!–Eosdoissepartem.
Masabreviemosnósestanarração,que, tãominuciosa,seestenderiaalém
dos limitesdeuma simples crónica teatral. –Osdois amantes chegama casado
vice-rei;Maídaébemacolhidaportodosesabecaptaraamizadedavice-rainha,
que ignoraseusamorescomFernando.Grassavanessasregiõesumaepidemia,a
quehojedãoonomedesezões,quartãs,ouoquequerqueovalha:todasasfamí-
liasde indígenasouEspanhóis eramdizimadospela fatalmoléstia, a que senão
conheciaremédioalgum;sóAmazampodescobrira,pelomaioracaso,queoentre-
cascodecertaárvoreofereciaumantídotomilagrosocontraomal.Eleemaiscinco
chefesoconheciametambémMaída,mastodoshaviamfeitoosmaioresjuramen-
tosde jamaisorevelaraqualquerEspanhol.Adoeceavice-rainha,echegadaaos
últimosmomentosde sua vida, expressa ao filho, estandoMaídapresente, a sua
última vontade – partir Fernando paraMadrid logo que ela tenha expirado, e lá
casar-secomcertafidalgadacortedeEspanha.Fernandoinstadoporsuamãetu-
Eutinhaumasasasbrancas
-409-
dopromete.EntãoMaídaselembradesalvarasuaprotectora,poisquedessemo-
dooamantenãopartirá;mascomohaveràmãooremédio?
ReceosoAmazampodequeMaídasucumbaàmoléstia,sedelaforatacada,
consegueintroduzir-seàsescondidasnopalácio,elheentregaumaporçãodopor-
tentosoelixir;masumdomésticoavirapraticandocomoselvagem,dandoparte
aosamos,estesseprecatam;e,nomomentoemqueiaministraràdoenteasalutar
bebida,surpreendem-na,acusam-nadevenefício,eécondenadaàmortesemque
lhevalhaopróprioFernandoquetambémareputacriminosa.Amazamposabedo
queacontecera,e,paradesmentirtalacusação,esalvaraingrata,denovoseintro-
duznopalácio,eobrigaviolentamenteavice-rainhaatomarumaboadosedequi-
na,queesseeraocélebreremédio:corredepoisasalvarMaída,eaencontracami-
nhandojáparaafogueiraqueembreveadeviaconsumir.Oscincochefes,deque
acimafalámosaíseachavamtambémparaomesmofim,porémFernandochega,
proclamaainocênciadeMaída,enarracomoAmazampolhederasalvaamãe;ao
ouvir tais palavras os chefes se arrojaram sobre Amazampo, e omataram como
traidoraoseujuramento.
Talé,emesqueletoodramaAmazampo,noqualomaiordefeitoqueacha-
moséafaltadeumobjectomoralaquetenda;háneleingratidões,generosidade,
amorpuroedesinteressado;evê-sequemaissofreogenerosodoqueovil:ainte-
resseirapiedadedapérfidaégalardoada,eosnobressacrifíciosdoguerreirosão
pagoscomamorte.Muitomaistodaviahouveraparanotar,quemtivessedefazer
desse drama uma análise rigorosa; por exemplo, as falas dos selvagens são tão
concertadas,eseusraciocíniostãojustos,comoseeleshouvessemtidoumaedu-
caçãoliterária;cumpria,eeradegrandeefeitoparaodrama,queofalardosespa-
nhóisseextremassemuidistintamentedoexpressardosselvagens.=Oguerreiro
Amazampoéumtipodegenerosidade;selhevestissemumacotademalha,elhe
embraçassemumbroquel, e lhe trocassem as plumas de selvagempor um elmo
brilhante,seriaumcavaleirodotempodeRoldãoeOliveiros;aessescabedaisvai
bemtantodesinteresseemcoisasdeamor,masumselvagemnãopodemosconce-
bercomotolerasse,comofavorecesseosprojectosamorososdeumrival.Oleãoé
generosoemtudoexceptonoamor;ocarácterdeAmazampo,leãodasflorestasdo
Peru,époisforçado,outalvezfalso.Aamizadetãosolícitadavice-rainhaparacom
Maídatambémnãoédemasiadamentenatural;finalmente,consentirumorgulho-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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so fidalgo espanhol em casar seu único herdeiro comuma selvagem; ceder uma
mãe,semamenordificuldade,doseuprojectoquerido,faltandoàpalavraqueha-
via dado à família Sandoval, são coisas impróprias de todos os tempos, emuito
maisdaqueleemquesesupõeterempassadoaquelesacontecimentos.=
Émuitoparalouvaromodoporqueestámetidoemcenaestedrama:não
menos as cenas novas que produzemmuito bom efeito, apesar da pequenez do
teatro.OSr.Epifâniovaimuitobem,esedistinguedosoutrosselvagenscomoum
verdadeirochefe,belasatitudesapresenta.ASra.Emíliaseriabomqueseanimas-
semaisumpouco,paraquelhehouvéssemosdedarlouvores.OSr.TeodoricoJu-
nioréumabelafiguradevelhoantiste,erepresentabemasuapequenaparte.OSr.
Sargedas, sempre engraçado, e natural. Por último confessaremos ingenuamente
quemuitonosagradouatraduçãododrama,aqualédevidaaoSr.J.A.CorreiaLeal.
QuediremosdapequenacomédiaOgéniodanoite?Chiste,ninguémlhopo-
denegar.Éumacomédiaemcamisa,eestamuitocurtaedecotada…Éumaalcova
devassadacomtochasearchotes…
DoTeatrodeS.C.poucoháadizer.OOtelocontinuaaserbemrecebido,e
nele sedistinguiu extraordinariamenteo Sr.Conti nanoitedequarta-feira.Tive-
mossexta-feiraumnovobailecompostopeloSr.Casati;delefalaremosoportuna-
mente.
Nodia4docorrenteAbril,subiuàCenanoTeatrodeS.JoãodaCidadedo
PortooDramaOriginalPortuguêsintitulado–ATraiçãopunida,ouosPortugueses
emMalaca–últimapeçaapresentadapelaEmpresa–Lombardi&c.ª ,emvirtude
de suas obrigaçõespela prorrogaçãode seuContratopormais 3meses: foi este
Dramafriamenterecebidodopúblico.
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TeatrodeS.CarlosDomingo26deAbrilde1840–Ópera–Otelo–Dança–OsMineiros.
2.ª-feira 27 – em benefício do 1.º Bailarino, João Casati. Ópera – Otelo –
Dança–Orfeu,eoDuetodeElixircantadoporMr.FerrettieoBeneficiado.
4.ª-feira29–Ópera–Fausta–Dança–Orfeu.Repete-seoDuetodoElixir.
6.ª-feira1.ºdeMaio–O1.ºactodaFausta–Dança–Orfeu–eo3.ºactode
Otelo.
___________________
Eutinhaumasasasbrancas
-411-
n.º22,de3deMaiode1840
JORNALDOCONSERVATÓRIO
PARECERODramaintitulado–aActriz temporargumentoumapornomeCarolina,
dotada de encantos encarecidos por virtuoso proceder. Em seu aplauso, recebe,
numpaláciodeSintra,umbailedeelevadaspessoasdacorte,ondeD.Álvarode
Portugalseuenamoradoremeteaumjogodexadrezasdúvidasquelhefazempela
honestidadedeCarolina.Palmeirim,cómico,delatambémenamorado,noexcesso
dociúme,vendo-sepreterido, toma-secomD.Álvaro,queoespanca, fere,epela
sua condição lhenega adesafrontadeumduelo, pisando-lhe aospés amedalha
quePalmeirimhaviaganhadopelejando,edefendendoaslinhasdeLisboa,rasgan-
do-lhetambémnacaraacartadeprivilégioparatrazerarmasproibidas;eamea-
çando-odeofazercarregardeferros,porfimoentregaporaquelecrimepresoaos
soldadosdaguarda,que,paraacomodaradesordem,umdos fidalgoshaviacha-
mado da janela. No dia seguinte, em Lisboa, D. Álvaro, adiantando suas práticas
amorosas,sujeita-sealigar-seporcasamentoaCarolina,eemmaisfinaprovada
suapaixão, sujeita-sea ir fazercomelavidaerrantedecómico fugindoaopai, e
comela imediatamenteparteparaoRiode Janeiro:Palmeirimquepordinheiro
temsaídodacadeianãochegaatempodeosembaraçarcomsuavingança.Noter-
ceiroacto,noRiodeJaneiro,temosD.ÁlvarodePortugaldesgostosojádoseues-
tadonomomentodeentrarnarepresentaçãodatragédiaD.InêsdeCastro,emque
afaltainopinadadeumdosactoresvaisersupridaporumcómicodesconhecido
tambémdesúbitoaparecido,eéPalmeirim.D.Álvaronessemesmomomentore-
cebetambémumacartadePortugalcomanotíciadamortedopai,edelhehaver
este compradooMarquesadodeFerrarana Itália, ede lhe terdeixadoopalácio
que possuía na Alemanha, recomendando-lhe fosse para ali, e não voltasse para
Portugal,pelodesairequehaviacausadoasuafamília.Eletambémhaviacompra-
do um brasão de nobreza para Carolina. Esta compele D. Álvaro a partir nessa
mesmamadrugadadoRiodeJaneiroparaaEuropa,numbarcoinglêsparalheim-
pediroduelocomPalmeirim.NoquartoactoD.Álvaro,comotítulodeDuquede
Plainden, emVienad’Áustria, dáumbrilhante bailemascarado ao imperadorda
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-412-
Alemanha, pormotivode ser recebidono grémiodanobreza alemã, e quandoo
imperador,nofimdofestim,oagraciacomaordemdoTosãodeOuro,exigindo-lhe
nesseactojuramentodanobrezadesuafamília,edenuncaseterligadocompes-
soa infame,D. Álvaro é convencido de falsário pelo testemunho de Palmeirim, e
confirmadopelaprovaqueosfidalgosalemãesconvidadosaobaile,haviamdesco-
bertonacarteiradeCarolinaporeleaberta,peloqueaímesmoD.Álvaroé logo
desautorado;eprocurandonafugacomCarolinasuamulher,salvar-sedocastigoe
vergonhaqueoameaça,paraisso,oportunamenteosocorreumeremitãoquede
súbitoaparece,elheindicaoasilodasuacavernanosAlpes,paraondelogoseme-
teuacaminho.
Àsuachegadaàcavernanoquartoacto,aíseachamprevenidosporPalmei-
rim,que tendo-seapoderadodapessoadeCarolina, surpreendeD.Álvarodesar-
mado, porquepara dar lugar ao dinheiro deixou as armas.Depois de grandes, e
extensasrecriminações,Palmeirimoobrigaaqueemjoelhoslheimploreagraça
deumduelo,comoque,dando-sepordesafrontadoesatisfeito,osdeixaempaz,
obrigandoD.ÁlvaroaquejureprimeiroquefariaafelicidadedeCarolina.
Destaideiadoargumentosedepreendequeodramaintituladoa–Actriz–
se subtrai à ordem clássica, e que poderia ser admitido à romântica, quando se
adopteaamplitudequelhedáSchlegel.Porém,sejacomoforédogénerodeou-
trosqueporaí aparecem, conformeaogostopitorescodo tempo,equepor isso
nosofereceasuarepresentaçãodivididaemquadros,todaviaentresidependentes
atéaoqueservedetermofinal.
Nãodistingueestedramaosseusquadros,masnempor isso ficadesobri-
gadodasleisdaverdadedosfactos,suaverosimilhança,propriedade,conveniência,
eajustamentocomosditamesdarazão,leisinvariáveis,eimperiosasparatodasas
obrasdegosto,equeaspeçasdramáticasdesemelhantegéneronãopodeminfrin-
girsemcomprometersuaprópriaessência.Arelaçãoemqueodramadequese
trataestejacomtais leis,aexposiçãodoseumesmoargumentooestáindicando,
independentedetodaaparticularcomparaçãoeanálise,oquealémdissodeman-
dariaumprolixo,eescusadocomentário.AComissãoporémainda juntaráaeste
respeitobrevíssimasreflexõesparaevitarataxadeomissa.
Oprimeiro acto:Umbailedadopor fidalgosportuguesesnumpalácio em
Sintra,emaplausodeumaactriz,emqueasuareputaçãologoaíseentregaàsorte
Eutinhaumasasasbrancas
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do jogo, emqueo companheirodessaactriz évilipendiadopela sua condiçãode
cómico,espancado,ferido;emqueamedalhadehonra,ganhaporele,pelejandoe
defendendoaslinhasdeLisboaépisadaaospésporumfidalgooficialmilitar,eem
quecomonessascasasdoBairroAlto,sechamapelaguardaparaacudiràdesor-
dem; findando comaprepotênciade ser conduzido à cadeia sóo ferido, ficando
impuneseuagressor;isto,nãonopassadotempo,simnoactual,éparódiatãore-
pugnante quemal pode sustentar-se, e menos decentemente permitir-se; sendo
todososquadrosdesteactodesproporcionados,inexactos,econtraoquearazãoe
apropriedadedosobjectosinsinuaepersuade.
Desobejoseriaoexemplodesteactoparaadecisãodequalquerjuízo,mas
aComissãoaindaosustentarácomalgunsreparossobreosactossubsequentes.
Nosegundo,porexemplo,avirtuosaCarolinaentrega-seaD.Álvaroeparte
comelecomasimplespromessadecasamento,porquenemesteentãoseverifica,
nemotempopermitequeassimsuceda;éverdadequenoterceiroactoseindica
ter-se efectuado,mas no entanto prevalece a opinião sinistra: neste acto vemos
quePalmeirimabriu a cadeiapara sair comumabolsadedinheiro! –O terceiro
actonoRiodeJaneirolaboranaimpossibilidadedepoderefectuar-senoestreito
espaçoquese lhemarca:nesteD.Álvarotemoseucaráctermudadoemhomem
devasso,estragado;semmutaçãoaacçãodasaladadirecçãodoTeatroNacional
doRiodeJaneiropassaparaacasadeCarolina.AísedeclaraD.Álvaroédeserdado
pelopai,quelhenegaopãodefilho,sendoporeleproscrito;semqueparaisto,se
dênenhumindício,oumenorsuposição,quandoele,sendoórfãodemãe,nãopo-
diaserespoliadodesuaherança,quandoaurgentíssimabrevidadedotemponão
permitiaosactosparaissonecessários,emenosquefossemconhecidosaoRiode
Janeiro,ondeaindanãoconstaachegadadenotíciasdepoisdapartidadeD.Álvaro.
FinalmenteaídeclaraPalmeirimqueestavaparacasarcomCarolina,oqueéuma
contradiçãocomoqueaprópriaCarolinatinhaafirmadonosegundoacto!Oquar-
toactoporémestápedindoespecialcontemplação,quetantoaovivodeveagastar
aindaosmaismedianosnoconhecimentodoqueéacorted’Áustria;–oexamea
esterespeitoéquaseocioso:quefidalgossãoosAustríacos,queabrem,lêem,oque
secontémnacarteiradasenhoradacasa,equeseservemdeumatãorepreensível
acção para transmudaremo festim em triste e cruel desgraça de quemos obse-
queia?QueimperadordaAlemanha,aindaqueestetítuloacabassehámaisdetrin-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-414-
taecincoanos,tãofácilempremiarcomoempunir?Queacatamentodecortesão
quedizao imperadorà saídaquevai chamar suamulherpara sedespedirdela?
Fiqueisto,etudoomaisqueaíseachadepartecomasmilagrosasdificuldadesdo
quintoacto;avaliem-secomoboasalgumascenasemqueodiálogoébelo,ealguns
monólogossãoexcelentes,equilibre-secomistoafriezadeoutros,eaexageração
desmedida de alguns; não se cure da impropriedade da linguagem em parte de
suaspersonagens,enãoseatendaàfaltadepurezaemgeral,porqueoestadode
borrãoemqueodramaseapresentafazpresumirquenasuacópiaaissoseaten-
deria.AComissãopois,emconclusãodoexpendido,quemuitoaojustoserádevi-
damenteavaliadopelossábioseilustresmembrosdoConservatórioDramático,é
deparecerunânimequeodramaintitulado–AActriz–nãoestánostermosparao
quesepropõe.–Lisboa23deOutubrode1839–ManoelJoséMariadaCostaeSá–
D.GastãoFaustodaCâmaraCoutinho–FranciscoFreiredeCarvalho.
_____________
ÉSQUILONasceraTéspisnaIcaria–essaterraqueviuSusariãoeaimpudentesátira
desuascomédias:comoasdesteforamasprimeirasobrasdeTéspis,eumcarro
lhepasseavatambémosactores;masporúltimotratavaassuntosmaisnobres,e
tirados da história. – Frínico que ao princípio imitara omestre, o sobrepuja em
breve;eatragédiatomamaisregularaspecto.–Foielequemprimeirointroduziu
ospapéisdemulher;easuatragédiaintitulada–AtomadadeMileto–obtevetão
prodigioso triunfo, quedesatou a chorar todoopovodeAtenas, coroando-apor
aclamação;edepois,paracastigaropoetaquehaviainsultadoarepública,pintan-
docommuivivascoresdesgraçasqueelanãopuderaobviar,condenou-oemmil
dracmasdemulta!
Pratinas,contemporâneoerivaldeFrínico,étotalmenteignorado;equase
omesmoaconteceaChérilo,poetadequemnadasesabesenãoquefoimuitofe-
cundo:supõe-sesereleoinventordostrajesparaosactores;eporcertoquenão
deixoudebemmerecer, vestindo-osdecentementenum tempo, emqueainda se
nãosabiafazê-losfalar.
Apareceu finalmenteohomemquedevia tirara tragédiadoestadodeab-
jecçãoedeignorância:Ésquiloapareceu,eaposteridadereconhecidalhedáotítu-
lode–PAIDATRAGÉDIA.Conquantograndessejamosdefeitosdestepoeta,con-
Eutinhaumasasasbrancas
-415-
quanto se lhe tenham avantajado bastante os sucessores, a honra de ter sido o
primeiro lhegranjeouadeserconsideradocomoomaior.–Ésquiloreceberada
naturezaumaalmaardentee forte;sérioegraveeraoseucarácter;easuavida
austera:ogénioimpetuosoqueodevoravaconcentradonoíntimopeito,lheespa-
lhavadesobrearesdeprofundaesilenciosamelancolia;eaépocaqueoviunascer,
admiravelmenteseadaptavaaessescaracteres,queaosacontecimentosdominam:
–eraoprincípiodalongaeterrívellutaentreaEuropaeaÁsia,quandoofamoso
império que fundara Cyro, alevantado, transbordando diques, e ameaçando sub-
mergirtudo,foideencontroàGréciaesequebrounessecachopo!
Ésquilo,filhodeEuforião,nasceuemEleusis,aldeiadaÁtica,225anosantes
danossaera.Guerreiroilustreprimeiroquegrandepoeta,nessetempoemqueos
Ateniensescontavamquasetantosheróiscomoguerreiros,soubeelefazer-seno-
távelporseuvalor:acharam-nosemprenafrenteosinimigosnasbatalhasdeMa-
ratonia,Salamina,ePlateia;porqueadevoçãoecoragemlheeramvirtudesdefa-
mília.EsseCinégiro,queprivadodasmãospeloferrodosPersasemSalaminase-
guraracomosdentesasnaus inimigas,eraseu irmão;e tinhaoutroperdidoum
braço a seu lado, chamava-seAmínias. –Ésquilodeu àpoesia a enérgica força e
vigorselvagemdoguerreiro:nogéneroqueabraçarafazia-se-lhemistercriaracto-
res,teatro,poesia;eoscriouelecomoselodeforçaegrandeza,quesópodedar-
lheogénio.
E todavia essaestradaque franqueara, eondeoutroso tinhamcom tanta
venturaseguido,nãolhefoidetriunfossomente:descoroçoamento,injustiças,bal-
dões sofreuÉsquilo; coroou-o,para logooabandonarovolúvel favordopovo;e
quandodaaltezadeseugénioolhoucomdesprezoparaaignorânciapopular, le-
vantaram-secontraeleódiosterríveis;acusaram-nodeimpiedadeeprofanação;e
os falsos devotos bradaram que havia revelado nas tragédias os mistérios de
Eleusis:ergueram-seasturbasfanáticascontraopoeta;epoucofaltouqueopaida
tragédia não pagasse com a vida o crime da sua superioridade; foi preciso que
Amínias,gloriosamentemutilado,detivesseamultidãodesvairadamostrando-lhe
asferidas,epedindo-lheumirmãoque,comoelepróprio,souberaoutroradefen-
deraliberdadedapátria,epresentementelheafiançavaaglória.
BastasvezesÉsquiloarrostaraamortenoscampos,paranãodesprezaro
que apenas lhe ameaçava a vida;mas o pouco sucessodas suas obras lhedoera
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-416-
n’almaporextremo.Pormuitotempoafectoueleindiferençaàsinjustiçasdeseus
concidadãosdizendo,queàposteridadeconsagravaasobras,porquecertolhefa-
riajustiça–desamparouafingidaindiferençaquandoviuautoresnóveis,queseu
exemplo formara,aproveitarem-sedesuas liçõesparaoatacarevencer;quando
viuSimonides,eSófoclesaindaadolescentetirarem-lheacoroa.Entãoabandonou
ÉsquiloapátriaingrataesepartiuparaaSicíliaecortedoreiHieron:aíviveuele
trêsanos,rodeadodapúblicaveneração,morrendodaidadedesetenta.Desgosta-
dodetodaaglórialiteráriahaviacompostoumepitáfio,quelhegravaramnotú-
mulo,equeapenasdeseuscombatesfalava.
Depois de suamorte reconheceram os Atenienses a grande perda que ti-
nhamfeito;cumularam-nodehonras,e lheprodigalizaramestátuasecoroasque
lhehaviamnavidarecusado:outorgaram-lheotítulodepaidatragédia;emaisde
umavezseviramautores,quevenerando-ocomoumdeustutelar,lheiamaotú-
mulodeclamarseusversos.
Espelha-se nas suas obras o homem: – nunca, como para Ésquilo, foi tão
verdadeiroesteaxiomadecrítica.Ledeassuasobras,quesemlheconheceravida
ecostumes,porcertoquelhosadivinhareis.Cadacenaquetraça,cadacarácterque
desenvolve, cada palavra que pronuncia, vos patenteará o cunho de uma alma
enérgicaesombria,deumavidaaustera,deumesforço indomável:pressente-se
emcadaversooguerreirodeMaratoniaeSalamina.
JamaisteveÉsquiloemvistaoenternecimentoeaslágrimas:oterroreso-
menteoterrorprofundoeinvoluntáriofoiparaeleoalvodatragédia.
Sequisermosfazerdistinçãoediferençaentretempos,costumes,ecaracte-
res;seconsiderarmosquantamodificaçãotrariamapósnovascivilizaçõesereligi-
ãonova;edepoisdistoatentarmosasemelhançasextraordinárias, semcustore-
conheceremosqueÉsquilofoiparaatragédiagrega,oqueéessanovaescolaque
nestestempos,mormente,entreos franceses, temcampeado.–Defeitos,qualida-
des,fisionomiageral,estilo,tudoseconforma.QueéoqueseencontraemÉsquilo?
Para personagens, heróis fabulosos, comoos havia idealizado,mas não comona
terraexistiam;almassobre-humanastantopelovíciocomopelavirtude.Oferece-
lheahistóriaumcarácterodioso; longedesuavizar-lheas feições, torna-oainda
maisodiosoemaisferoz;porqueasuamiraéoterror,enãoapiedade!Olhaipara
Eutinhaumasasasbrancas
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Clitemnestra:cruentaeensanguentadadoassassíniodoesposoei-laquevemga-
bar-se,ealardeá-lonacenacomderrisãoamarga!…
Nocrimeenavirtudeintrépidos,osheróisdeÉsquilosãodeumatêmpera
indomável;econtudorepresenta-ossemprecomoinstrumentosdeinvencívelfata-
lidade.Pintandonohomemoscrimesdequeéautor,asdesgraçasdequeévítima,
e,pordesobre,odestinocegodequeéalvomiserando,vedecomquantodesprezo
injuriaafortunahumana;ouviasdeclamaçõeseloquentescontraessafalsapros-
peridade,queémentirosovernizdonossonada!–Edepoisquandoohomemse
lherefusaàfogosaimaginação,quandoasraiasdanossaespécieedanossaestrei-
ta esfera não podem conter a sua poesia gigantesca, vai ele buscar os heróis no
mundoidealefantástico;põeemmovimentoefazfalarooceano,aforça,eavio-
lência,ecompõeessamisteriosaesombriatrilogiadePrometeu,alegoriaprofunda
eextravagante,obrainexplicável,ridículaesublime,queachoueconaescolamo-
derna:–CuidariasverCaimvogandocomLúcifernosabismosdonadaedoinfinito
sobreaspoéticasasasdeLordByron.
--------------------
APANTOMIMA
ENTREOSCHINSQuantosejamousadaseaparatosasasconcepçõesmímicasdosChins,nin-
guémpoderá imaginar, especialmente se souber que lhes faltam, ou pelomenos
sãomuitomesquinhos,osmeiosque têmparaas levara efeito:porexemplo, as
máquinasquedevemserportáteis,eterfacilidadedeadaptar-seaosdiversoslo-
cais onde as companhias sucessivamente são chamadas a representar, pois que
nãohácompanhiaquenãosejavolante.NãosóhánaChinapantomimascómicas,
mastambémoutrasgravesemaravilhosas,nasquais fazementraroselementos,
osfenómenos,eosastros;eparaquepossampôremcenaessesactorestãodifí-
ceis,recorremaumaextraordináriaciênciadeprestígioefantasmagoria,subsidia-
dacomopróprioalentonosfogosartificiais.Comtaismeiosnãoreceiamapresen-
tara luacomoaprincipalactrizdeumapantomima,que intitulamOcombateda
luacontraosdragões.
Majestosasevaierguendoaluanohorizonte,esobelentamenteatéchegar
aomeiodacena;gruposdeestrelaslhecintilamemtorno,e,misturando-seumas
comoutras,oujáafastando-se,oureunindo-se,formamvariadíssimoseluminosos
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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desenhosnoescuroazuldocéu.Entãopelosopostos ladosdo teatroentramem
cenadoisactores trazendocadaumseudragãodeenormegrandeza, cujasesca-
masargentadasreluzemsobreatransparentesedaazuldequesãoformados.Os
dragõesserpeiamassanhados,eemseusvôosparecemquereratacaralua:ases-
trelastimoratasfascinam-se,paramemsuasevoluçõesepermanecemfixas;então
alua,comrazãoindignada,começaacresceracrescer,eosdragõesatremer,até
queporfimseincendeiamnoestupendoluzeiro,edesfazendo-seemmilraiosde
fogodetodasascoresvêmcairextintassobreacena.Aluatornapoucoapoucoà
suaprimitiva grandeza, e se retira vitoriosaparadetrás dasmontanhas, sempre
acompanhadadoseucorodeestrelas,quedenovoavãorodeandodeseusgracio-
sosemultiplicadosfestões.
Nãonosdemoraremosem fazer comentáriosacercadessapantomima tão
singular,etãodiferentedasqueseusamnanossaEuropa;antesrelataremosoutra,
cujotítuloaindaémaisambicioso,eparecehaverproduzidoomaiorentusiasmo
emPequimeoutrascidadesdoimpériodaChina:intitula-se–Ocasamentodater-
racomooceano.
Emgrandeembaraçonosveríamossenosincumbisseindicarolugardace-
na;podemostodaviadizeraépocaemquesesupõeterpassadoaacção;foiantes
dodilúvio,antesdeLamecheMathusalem,aindaantesdopecadodeAdão:Deus
fecitcoelumetterramintrasexdies.AacçãosepassanumdosseisdiasqueoPadre
Eternolevouacriaromundo.
Duasfigurasalegóricasabremapeça;atempestadeporpartedooceano,eo
vulcãoporpartedaterra.Atempestade,sobaformadeummonstrocerúleo,vem
acompanhadadosventos,seussatélites;ovulcão,monstrovermelho,traznumero-
soséquitodesalamandras;atempestadepretendeapagarofogodovulcão;ovul-
cão quer fazer que osmares sequem: osmonstros enfurecem-se e vão já travar
medonha,enormepeleja;masoanjodapazdescedocéu,ereconciliaosinimigos
queseretiramcadaqualparaoseureino,eoanjoremontaàsmoradascelestes.
Eis que o oceano, representado pela baleia, chega acompanhado das suas
riquezaseproduções:delfins,leviatães,tartarugas,rochedos,esponjas,corais,pé-
rolas–taléasuacomitiva.
Eutinhaumasasasbrancas
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Nãotardaemviraoseuencontroaterra,representadaporummonstruoso
elefante,etambémtrazconsigoleões,tigres,águias,avestruzes,pinheiros,carva-
lhos,frutos,flores,mármores,emetais.
Asalimáriassãorepresentadasporactorescobertosdepelosdeferas,oujá
de ricas penas, se representamaves.Ospapéis de tartarugas, árvores, rochedos,
metais&c.ª.desempenham-nosactoresmetidosemcertascaixasdepanopintado
convenientemente, e que semovem à vontade do coreógrafo. O ofício de frutos,
flores,corais&c.ªéconfiadoamulheresemeninos,quevêmtodoscobertosdesses
objectosenuncadeixamverrosto,nemmãos,nemqualquerpartedocorpo,afim
dequesejacompletaailusão.
Estandoassimaterraeooceanoempresençaumdooutro,compreendem
queasuarecíprocaamizadedeveresultarembenefíciodeambasaspartes,eque,
longedesemoveremguerra,devemfirmarasuaaliançapormeiodeumlaçoin-
dissolúvel:aterraoferecepraiasaooceano;esteprometefertilizá-lacortando-ade
formososrios,e,paraprovarasuaabundânciaepoder,lançarepentinamentepe-
lasventasdoisjorrosdeágua,queseelevamaprodigiosaaltura:osdoisexércitos
começamentãodetravardanças,ecommilevoluçõesegregotinsfestejamofeliz
consórciodosseussoberanos.
Conclusão.–Oanjodapazdescedocéunasuanuvem,eanunciaaosdois
esposos,quetendoauniãodaterracomaáguaformadooglobo,Deusvaicriaro
homem para seu habitador: Nova explosão de folgares, danças, e saltos: o anjo
permanecegravenomeiodaauréoladefogoqueorodeia;leões,leopardos,metais,
palmeiras,aves,esponjas,tudoficatomadodeadmiração;ecaiopanoantesdeser
criadoAdão!–Osespectadoresmaravilhadosgritam:=Hao!hao!–Excelente,deli-
cioso!
AVISONãohavendoamaiorpartedosSenhoresAssinantesdoPortosatisfeitoainda
oimportedoprimeirotrimestredassuasassinaturas,denovoselhesrogaqueiram
dirigir-separaesseefeitoaoSr.Manoeld’AlmeidaCardoso,ruadeCedofeita.–Aos
mesmosSenhoresseparticipa,quedopróximoNúmeroemdiante,lhesseráentregue
oJornalpordistribuidoresdestinadosparaesse fimevitando-sedessemodoosdes-
caminhosdosCorreios&c.ª
___________________
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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n.º23,de10deMaiode1840
TeatroAlemão
WERNEREmprofundaadmiraçãonosabsorvemostodasasvezes,que,ao lançaros
olhos sobre a vida de umhomem célebre, achamos que ele semostra sempre o
mesmo,noprincípio,nomeio,enofimdasuacarreira.Abalam-nosessescaracte-
resquenenhumainfluênciadomundoexteriorpodealterar,enuncaétãoexcitada
anossasimpatia,comoquandoosvemosabraçoscomasdoresdaalmaedocorpo.
Quemsenão recordarádeHoffmanno seu leitodedor edemorte, entregue ao
maishorroroso sofrer?Pobre infeliz;osmédicosacabavamdeatormentá-lo:por
quepudessemreanimar-lheaquaseextintavida,tinhamrecorridoaumremédio
horridamente enérgico. Um ferro em brasa lhe tinha sido aplicado sobre toda a
extensãodacolunavertebral.Acabadaaoperaçãoumamigolheentranoaposento,
eomoribundolhepergunta:–“Queteparece,amigo:nãotecheirajáporaíacarne
assada?”–Horrendamofa,desprezodasmaisatrozesdores,ânimodeferro,gosto
sustentadopara tudoquantoeradehorror,não já imaginário,mas real, sentido,
compradoàcustadetorturas infernais!Queoutroscomentáriosparapintaressa
índoleestranha,queemtodaumavida,nãovivesenãonomundo fantástico?…–
Carácter forte e enérgico, de tal vigor era sua têmpera, quenuncapermitiunem
aosanos,nemàs enfermidadesoutrodomínioqueodo seu corpo, aquea alma
jamaissedobrou.Atéaoúltimoalentoosarcasmo lheadejounos lábios; remate
condignoparaessavidaquenãoforamaisdoqueumalongaexaltação,umafebre
contínua:–últimacena,quefechadeumamaneirabemlógicaessedramasingular
beloetriste,queéchamadovidadeHoffmanopoeta,opintor,omúsico!
QuediferençaachareisemWerner,opoetadramáticodeKoenigsberg,oau-
tordeLutero!–Procelosa lheéa juventude;só–criticaa todososprazeres;éo
amigoparticulardeHoffman,eseucolegaemnobreslavores;estecompõeamúsi-
caparaumdosseusprimeirosdramas–AcruznoBáltico;Werneracompanhao
amigonas suasviagenspelas regiões fantásticas, e sevoltaaocultodospoderes
Eutinhaumasasasbrancas
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secretosemisteriosos.DeixadepoisareligiãoprotestanteparaseguiraCatólica.
Umdiaabraçaosistemadeprovidênciaepredestinação;outrodiareconheceuma
potênciafatalqueimperaabsolutasobreavidadohomem;porfimabsorve-sena
graçadivina,naresignação,noarrependimento,enapenitência:entãosedesdizdo
queescrevera,quandojovem;calcaaospésseusprimeiroslouros,eprotestasole-
nementecontraoseugrandedramaLutero!
FredericoLuísZacariasWernernasceuemKoenigsbergnoanode1768on-
decursouosestudosdejurisprudênciaeeconomiapolítica,seguindodepoisocur-
sodofilósofoKant.–TendodeidadevinteecincoanosfoinomeadoSecretáriode
legação, emprego que exerceu em diferentes países. Estando em Varsóvia nesta
qualidade,aípublicou,em1800,oseudramaOsfilhosdovale,ecomeçouatravar
relaçõescomHoffman:em1804compôsaCruzdoBáltico.Tendosidochamadoa
Berlim,epromovidoa lugarmaiselevado,entregou-sea todaaextravagânciade
umavidalicenciosaedissipada;istoé,tornouaoseuantigoviverdeestudanteda
universidade, acrescentandosomenteaessa reminiscênciaumreligiosomisticis-
mointeiramentenovoparaele.Trêsvezessecasou;trêsvezesseseparoudecada
esposa.OúltimodivórciotevelugaremBerlim,econtrasuavontade.Moçaebela
eraaPolacasuamulher,aqualeletinhadesposadoemVarsóvia,semqueelesou-
besseumapalavradoidiomadaPolónia,nemelaentendessecoisaalgumadoale-
mão: asdevassidõesdeWerner concorreramparaquequebrasseessa terceirae
últimaunião,queo amor soubera tornarpossível, conquanto lhe faltasseomais
poderosomeiodeinteligência.FoiemBerlimquepublicou,em1806,oseuLutero,
quetãoprofundaeperdurávelsensaçãoháfeitonaAlemanha.
AspessoasqueparecehaveremproduzidoemWernermaisforteimpressão,
foramprimeiramenteGoëthe,sobcujosauspíciosviupelaprimeiravezrepresen-
tada,em1809,asuacélebretragédia–24deFevereiro;depoisfoiMadamedeStaël
queeleencontrouemInterlachennaSuíça,eàqualfezpassadoalgumtempouma
visita de muitos meses em Coppet. Aí encontrou também M. Wilhelm Schlegel.
Quando Werner dá a Madame de Staël os nomes de – moderna Aspasia, co-
libertadora da Alemanha e da Europa, confessamos que nada temos a observar;
antes nos assoma aos lábios um sorriso por tão hiperbólicos encómios. Quando
chamaaGoëthe, luminosoguianas trevasdeseuespíritoatribulado,quando lhe
chamaoseusol–helios-,fácilnoséexplicaressetãograndeentusiasmoparacom
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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omaisbrilhanteeidolatradogéniodanossaépoca.Maseisquenosvamosnósse-
parandojámuitodeWerner,quandoestefazaGoëtheahonrainsignedeatribuir-
lhe a ressurreição da Alemanha oprimida; quando não duvida declará-lo atalaia
que indica à pátria o caminho da liberdade. Assim se desconhece a natureza de
Goëthe;assimseofendeaverdade,esefalsificaahistória;assimseorladeauréola
divinaa frontedeumpoetacujoegoísmoera tãograndecomoogénio,apóstolo
fervorosodocultoanti-nacionaldaarteparacomaarte.
Apátria,eanacionalidadeeramparaGoëthe,segundoelepróprioconfessa,
terrenopoucodignodapoesia.Maislheaprazqueimarincensossobrealtaresquea
sipróprioerguera,doquesacrificaradeusestãoprosaicos.Goëthefoigrandear-
tista,grandeescritor,grandepoeta,porémnuncaapóstoloda liberdade,nemho-
memnacional.
Em 1810, estandoWerner emRoma,mudou de religião. Em 1816 tomou
ordens,efoiinstalar-secomopregador,emViena,naépocadocongresso.Aípre-
gouperantenumerosíssimasassembleias,apesardainexperiênciaqueaindatinha
dasuanovaprofissão:ardorapostólico,exaltadadevoçãosupriramneleousoea
prática.
Aíndoledohomemnãosemudacomavontade:porentretodosossimula-
crosdequearodeiamlásurgeaverdade,esemostrasobranceira.Poetapornatu-
reza,homemfantásticoecaprichosoemsuaspreocupações,pareciaWernermui-
tasvezesnãoterdeixadoasuaprimeiracenasenãoparasubstituí-laporoutra,e
havê-latransportadodoteatroparaaigreja.
Otalentoquemostracomoorador,eoefeitoqueproduziusobreoseuaudi-
tório,forammuitodesiguais,ebemassimasmanifestaçõesdoseuespírito.Osten-
tavaàsvezesvigorosaeloquência,luzeirosquedeslumbravam,egrandesagacida-
de; quandoporém se confundia emarrependimentos amaldiçoando a quadrada
suamocidade,quandoacusavaospecadosdasuaanteriorvida,esediziaomais
indignodosservosdeDeus,sóconseguiaexcitarlegítimadesconfiançadesinceri-
dade, exageradapenitência, e arrebatadahumildade.Todavia ainda as turbas al-
gumtantosecomoveram;equando,em1823,expiroucontando55anosdeidade,
opovoentrouemchusmana igrejaaondesedepositaraseucorpo;adoraram-no
comosanto,elhearrancaramosdedosdasmãosepés,parasefazeremrelíquias.
Eutinhaumasasasbrancas
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Efémeraapoteose!–Nãoraraajustiçadopovosedeixatransviar,cedendo
amomentâneos impulsos;mais com ingenuidadee lisura revoga suas sentenças,
porquepossui o sentimentodaprópria força, e não resiste à da verdade.Veio o
públicoamostrar-seaindamaisjustodoqueoforaparaconsigooprópriopoeta.
Dividindo-lheavidaemdoisperíodos,odamocidadeeconcepçõesenérgicas,eo
da curta velhice e pretendida conversão, reconheceu, e com seu sufrágio recom-
pensou,oprimeirocomograndeebelo,esquecendoedesculpandooúltimo,como
umtristeemiserandotestemunhodasfraquezashumanas.SantoWernerdesapa-
receudocalendáriopopular;masoinspiradoautordeLutero,ode24deFevereiro,
eternoviveránalembrançaeadmiraçãodospovos.
Apósosjácitadosdramas,entreosquaismerecemumdosprimeirosluga-
resO filhodovale, quadro descritivo da ordemdos Franc-Maçons e Templários,
aindamencionaremosÁtilareidosHunos,WandarainhadosSarmatas,Cunegunda,
eaMãedosMacabeus,suaúltimaproduçãoquepublicouemVienanoanode1820.
Estas diferentes obras são fiel transunto do carácter irregular, fantástico,
pensativo,e–avezesselvagem,dopoeta.
A par das muitas belezas de primeira ordem, grande perfeição de estilo,
ideiassublimeseinspiradaspelomaispurofogopoético,dão-se-lhecomalgumas
exuberânciasquedenotamdesmesuradavaidade,nota-se-lheparticulartendência
paraamística,negligênciasdeexpressão, e frequentes trivialidades.Nosegundo
períododasuavidapretendeuWernerjuntarprólogosaosseusdramas,mascom
elesnãofoifeliz.
O triunfodeWerneréa sua tragédia,24deFevereiro.Útil foraparaa sua
glória quenenhumaoutrahouvesse escrito, pois qualquerdas outrasproduções
nãochegaa igualaradeque falamos.Obrasingular, filhadeuma imaginaçãose-
nhoreadaporumgénioterrívelesombrio,resumindoembrevíssimoquadrotudo
quantopodeencheraalmadehorrorprofundo:nemdeveessatragédiaserconsi-
derada como qualquer dosmuitos dramas que devem sua origem ao dogma da
fatalidade,equenãosãomaisdoqueimitaçõesdadeWerner.Aelesópertencea
ideia primária, original, dramática em sua concepção, trágica no seu desenvolvi-
mento,edeumefeitoespantoso.
SobreumdosmaiselevadospíncarosdosAlpesnaSuíçaumatristeemise-
rável cabana está situada entreKandersteg e Lëuk, entremontanhas e rochedos
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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queaseparamdorestodomundo.Aímoramdoisvelhos,KunzKuruth,esuamu-
lherTrude: foramricosoutrora,ehojeemhediondapenúriagastamavida.Dois
aposentoscompletamtodaamíserahabitação,edofrontalqueosseparavêem-se
penderumafouceeumagrandefaca:nofundo,umfeixedepalhaestápróximoa
umbancoarruinado.KunzdesposaraTrudecontravontadedeseupai:desdeen-
tãoeramparaestaasinvectivas,eparaumfilhoquetinhaasexprobrações.Uma
noite,depoisdetercuspidoosmaisdurosbaldõesnafacedaesposa,Kunzenfure-
cidoarrojouumafacaaopeitodoanciãoseupai.Oinstrumentodemortelheres-
valoupelaencanecidafrontesemporelapenetrar,masovelhoabafandodefuror
expiraamaldiçoandoofilho,etodaasuageração.Eraodia24deFevereiro.
TiveraKunzumfilhoeuma filha:orapazquis imitaramaneirapelaqual
suamãetinhamatadoumaave,lançoumãodafunestafaca,edegolouainocenti-
nhadairmã.Opaioamaldiçoou;eelefugiuespavorido;nuncamaissesoubedele.
Foinodia24deFevereiro!
Daíavante,foramtudodesgraçasparaacasadeKunz:sempreamaldiçãoo
persegue.
UmanoiteentrouKunznasuacabanajáforadehoras:vinhaextenuadode
fomeefrio;–nemlenhaparaseaquecer;nempãocomquematasseafome!Falta-
riaumahoraparaquefossemeia-noite;acabanaestavaalumiadacomaluzmorti-
çadeumapobrelâmpada,aneveeoventobatiamnasdesconjuntadasjanelas;e
Kunzseentretinhacomsuamulherdeumanovadesgraçaqueosameaçava:um
desapiedadocredorlhedisse,queseamanhãnãopagaremoquedevem,acabana
lhesserátirada,eaprisãoseabriráparaele!–Kunznãovacilanopartidoqueto-
mará:resolveprecipitar-senolago.
Apartedescritivadestacena,oquadrodanaturezaásperae selvagemda
Suíça,sãomodelosdebelezatraçadospormãodemestre.Só lidosnooriginalse
lhespoderáapreciareadmirartodaaperfeição.
Enquantoduraodiálogo,noqualoautordámostrasdeprofundoconheci-
mentodocoraçãohumano,batemàportadacabana.Éumhomemquepedehospi-
talidade: Kunz abre a porta e se lhe apresenta ummancebo bem trajado, e cujo
fardelébemprovidodevíveresedinheiro.Eraofilhoquejulgavammorto,eque
vemimplorarabênçãodeseuspais,edepositaraseuspéstodaariquezaquepos-
sui;porémomanceboquercausar-lheumasurpresa,epor issodeixaparaodia
Eutinhaumasasasbrancas
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seguinteodeclarar-se:conversatodaviacomoshóspedes,eaespaçosvaideixan-
docair algumaspalavrasque lhesdeixamverqueeleestá instruídode todosos
seussegredos.Kunzcomeçaasuspeitarqueporventuraesseestrangeiro,deoutro
modoquenãopelotrabalhoeprobidade,adquiriraasriquezas:umaideiainfernal
lheassomaàmenteatribulada.– “Ésemdúvidaumsalteador;eunãosousenão
desgraçado; o ouro deste homem pode salvar-me da ignomínia que amanhãme
espera…”Amãolhetreme,oscabelosselheeriçamnaenrugadafronte;hórridas
visõesoperseguem,eatordoam:masaprisão?eTrudemorrendoàfome?Então
dámeia-noite.–Omancebojádormeasonosolto:Kunztomaafacadasmaldições,
arroja-sesobreofilho,elhetrespassaocoração.–Omanceboexalaoúltimosus-
piropedindoaopaiabênção,eperdoando-lhe,comoDeusperdoaatodasascria-
turas.Quediaeraesse?–Eraofatal24deFevereiro!…Omíserovelhoespedaçao
ferromaldito,abraçaospésdofilhoassassinado,eporfimseergue,efirmepro-
nunciaestaspalavras:–“Eia,emnomedocéu,quesemumasóqueixasofrereio
castigoquemereceomeufeito!vouentregar-meàjustiçaeconfessarmeucrime;e
quandoocutelodoalgozmehouverdecepadoacabeça,entãojulgue-meDeus,que
sabetudo!…ÉhojevinteequatrodeFevereiro–ésóumdia,eagraçadeDeusé
eterna.Amen.”
ÉimpossívelleratragédiadeWernersemqueocoraçãosesintaconfrangi-
doporemoçõesprofundas,eindizívelhorrorparacomocrimecometido,aomes-
motempoquesentecomiseraçãoedolorosapiedadeparacomoinfeliz,que,impe-
lidopor funestodestino,quasesemoquerer foi, tãocriminoso.Énessecarácter
quebemseconheceomerecimentotrágico,eaperfeiçãodaobra.Éverdadeque
MadamedeStaël,numlivroquemelhorforaesquecerdoquecitarseacasosequer
falarcomconhecimentodecausadaliteraturaalemã,duvidadessemerecimento,
fundando-se emqueo verdadeiro trágiconão cabe às rasteiras regiõesdopovo,
nas quaisWerner estava colocado. Decerto Madame de Staël tinha jantado mal
nessedia,edeslumbrava-sedequeerarepublicana.Omaiscertoporéméquea
autora ainda então não havia lido a brilhante invocação queWerner convertido
endereçaraàmodernaAspasia;aliástantascoroaslhehouveralançado,quetalvez
teriaouvidorepetiraspalavrasdeRichter:–Vossascoroas,senhora,sãotãolargas
paraaminhacabeça,quemecaempelascostasabaixo.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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ALITERATURADRAMÁTICA
SOBOSIMPERADORESROMANOSAliteraturadramática,queémuitavezaexpressãodoestadodecivilização
deumséculo,oferece-nosdelaumreflexosempre;eparavos convencerdesque
estaasserçãonãoégratuita,lançaiosolhosàscrónicasdaidademédia,àhistória
desteséculo,àdosquepassaramhámuito.–Todavia,háépocasemqueestaver-
dade fulgecomluzmaisvivaporqueosacontecimentos,eobulíciodosespíritos
lhe deram realces que impõem constante, e profunda convicção. – E nem, para
exemplo,lançareieumãodeumaépocavizinha;quetantosetemfaladodoséculo
dezoito,quejánãotemmistériosasuahistória;masdeumperíodohistóricome-
nospopular,menosdadoaoventodapublicidade:–odalongaagoniadoromano
mundo.Assimcomoparaocrime,anaisparaoteatroencerraoimpériodosCésa-
res;ebemcalcadotêmelesoselodoscostumesecarácterdotempo.
Na época em que Augusto trocara a curule consular pelo trono imperial,
conquantoemdecadênciaestivesseasociedade,não lheestavaainda iminentea
decomposição: entre os grandesda capital domundohaviadignidade ainda, e o
amordoluxoedasartestinhadadomovimentoàculturadasartes,eobrasliterá-
riasdetodaacasta.Roscio,oactorfamoso,queCíceroamavaeprotegia,eraadmi-
rado sobre a cena; e as peças do teatro grego acabavam de ser traduzidas para
quotidiano divertimento do povo-rei. É verdade que, quando Augusto subiu ao
trono imperial, aplaudiaRomaos gladiadores e combates de feras;mas buscava
também com solicitude as obras-primas dramáticas, e sabia outorgar coroas de
oiro aos actores que lhe mereciam aclamações. Naquele tempo escrevia Marco
ScauroatragédiadeAgamemnon,edisfrutavaaprotecçãoebenévolaamizadede
Augusto.Bastasvezesochamavaosoberanoparaquelhelessealgumascenasda-
quelaobra,interrompendo-oaespaçosparalhedizerasuaopiniãoacercadosde-
feitos e brilhantes qualidades da mesma. Foi porventura numa destas palestras
artísticas,queScaurodeuao imperadora ideiadecomporumatragédia.Hámo-
mentosemqueaimaginaçãoestádetalarte,queaindaquenuncasehajacompos-
toprosa,verso,poemaouoquequerqueseja,cadaqualsejulgafeitoparagrande
escritor;sóporquesentiunopeitoaquiloaquechamamveia,estro,inspiraçãoou
qualqueroutronome.–Augustoestavatalvezemsemelhantedisposiçãodealmae
deespírito,poisqueaceitandoaproposta,prometeulevá-laacaboaindaquefosse
Eutinhaumasasasbrancas
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àcustadoseurepouso.Nãotardoumuitoqueachassemassuntoconvinhável,eo
imperadoreoactor-poetaderamàfuturatragédiaotítuloaltissonantede–Ajax
furioso!–Oimperadorgostavamuitodoestilocujasimplicidadeeraadornadapor
umacertaelegância:oescreverdeTitoLíviolheagradava;tinhacomeçadoapô-lo
emprática;edepoisdealgumtempodeestudoeexercícioconseguiraoestiloque
lheaprouverativessemtodos;poisquediziamuitasvezesaAgripina,suaneta,que
procurassecomespecialidadefalareescrevernaturalmente.OhábitoqueAugusto
haviacontratadodenãoprocedersenãoporfrasessímpliceseseveras, lhesusci-
tounasuatragédiapoderososobstáculos;nãolheerapossívelotraçarquadrosde
paixãoviolenta,queseuheróitantoexigia:nãodescoroçoandoporém,malquelho
consentiamosnegóciosdoestado,voltavaaotrabalhocomumaalmanova.–Pelas
horas que o imperador consagrara a sua tragédia, não lhe devia faltarmuito: –
Scaurotomouumdiaaliberdadedeperguntaraopoeta,selheseriapossívelad-
mirar algumas estrofes do seu Ajax. Augusto abanou a cabeça, e respondeu que
paraoutravez;masScaurocomaajudadovoluptuosoHorácio,edohistoriador
TitoLíviotãoamadoporCésar,queatélheerapermitidolembrar-sedePompeia,–
Scauroeosdoisamigostantoapertaramcomele,queporfimAugustolhesdisse:–
SabeisoqueéfeitodomeuAjax?–Morreu!–TitoLívio,Horácio,Scauro,olharam
unsparaosoutros,enemumasópalavralhesfugiudoslábios:–Estámorto!repe-
tiuoescritorcoroado,estámorto,equemomatoufoiomeuraspador.–Enaver-
dadeoCésartinhavoltadotantasvezescomoestilodemarfimeraspadordeoiro
aopapiro,ondetraçavaascenasdoseuAjax,queaténueedelicadasuperfíciequa-
sequehaviaperdidotodaaespessura,eospobresversostinhamexaladoaalma.
DesdeentãonuncamaisAugustoCésarsemeteuacomportragédias;oquetodavia
onãoinibiudeprotegertodaasuavidaosactoreseautoresdramáticos.
Foinoseutempoqueocircoacaboudesofrerasmodificaçõesexigidaspela
representação das peças de teatro. Haviam-se já construído monumentos que
eraminteiramentesemelhantesàscenasatenienses.MasnãoapraziamnaGrécia
os cruentos jogos do gladiador; nemos ferozes combates de feras roubadas aos
bosquesvirgensdaNumídiaparaosbrutaisprazeresdoanfiteatro;aopassoqueé
istoumapaixãodopovo-rei.Paracorresponderpoisaestaduplanecessidade–o
espectáculodaslutasdehomensedealimárias,earepresentaçãodecomédiase
tragédias–eparaqueopovosoberanonãodescoroçoassenoseguimentodosva-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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riadosprazeres, tornou-se o circouma arena e um teatro aomesmo tempo. Por
meiodeengenhosasmáquinas,cujosegredoseperdeu,metamorfoseava-seoanfi-
teatro;desapareciaaarena;largascortinasdepúrpurapendiamdegrossosvarais
deoiro;epinturasatraço,comoasqueseacharamnasruínasdeHerculano,perfi-
lavam e contornavam vastos edifícios, ou altivos bosques, que deviam formar o
assuntodadecoração.
Masnãoeraaindao tempodeAugustoaépocadogrande luxodosroma-
nos:aliteraturadramáticaseostentavanobreeseveranatragédia,easátiranão
tinhanacomédiadescidoaosequívocosegracejoslicenciosos.Osautores,julgan-
do-se felizespor seremcompanheirosdosVirgílios,Horácios, eLívios,davamàs
produçõesocaráctersublimequeahistóriaepoesiahaviamtomado.–Achegada
da famíliade Séneca aRoma,dessa família, cuja índole espanhola apresentavao
tipo combinadodosGusmãosd’Alfarache edosheróisde Sagunto, deuorigema
uma nova escola cuja originalidade de ideias semisturava com o empolado dos
termos,eluxoexuberantedosepítetos;Lucano,Stácio,eFloroforamossectários
donovogénero,cujosdefeitosmuitomaisqueasqualidades,nãotardaramaestar
namoda: dele fez adopção a literaturadramática, como as outras;mas antes de
cairnoexcessofoi-lhepostaumamordaçapelosucessordeAugusto.
Asliteraturasdetodoogéneroquenãotinhamnaqueletempoasdistinções
daacademia,porissomesmoquetalcoisasenãoconheciaentão,eramrecompen-
sadas pela admissãode suas obras nas galerias do templo que coroava omonte
palatino:–erapoisestetemploaacademiadosactores,opanteãodoshomensque
seextremavamnasociedaderomana.–Aosquelhenãoincensavamoscrimesfe-
chou-lhesTibérioaentrada,enãoparouaqui;umaespéciedecensuraorganizada
estabeleceuumtribunalinquisitórionorecintodotemplo;asproduçõesdramáti-
casdoreinadodeAugustoforamcompulsadas,analisadas,einterpretadas;efoia
menor alusão sinal demorte. –M. Scauro autor da tragédia deAgamemnon não
pôdeescaparàproscrição;algunsversosdestapeça,quetinhamsidonotadosde-
poisqueo tiranosubiraao trono, serviramde textoaumaacusaçãocujo funda-
mentosóexistianavontadedeperderoinfelizautordramático:–umdiaemque
Scauro saudava com Falerno alguns amigos coroados de flores, e recostados na
relva,apareceramderepentesoldadospretorianos,enãoderamaScaurosenãoo
Eutinhaumasasasbrancas
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temponecessárioparacobriracabeça,eacentuarumamaldiçãocontraoinfame
assassino…nummomentofoioseusanguemancharasalvastogasdosconvivas.
MortoTibério,pareceuquererrenascerapoesiasobCláudio,Calígula,eNe-
ro;mas tinhaperdido inteiramenteanobreza,gravidade,epureza;e seapoesia
dramáticafezabrirosteatros,seovencedornosjogosquinquenaistinhaoprivilé-
giodesentar-seàmesados imperadores,eracomoacondiçãodomaisaviltante
servilismo.–Eàvistadistoquedeveriaacontecer?–Assupostasobras-primasde
StácioeCélioAureliano,eseusmuitosimitadores,nãoforammaisqueummontão
defrasesembaraçadas,sinónimosrepetidos,epítetosfaustosos,metáforasatrevi-
das, e comparações exageradas. Procurava a poesia dramática dar interesse aos
assuntosdeimaginação,queaindalheeralícitotratar;mascomoafrasemaisino-
cente,a invençãomaisdesviadadecríticadirecta,podiamser interpretadascom
maldadepelasdóceiscriaturasdoimperador,osautoresdramáticosfizeramdra-
masecomédiastãocheiasdefrasesempoladasesesquipedais,quetudoomaisà
sua vista desaparecia: a comédia e a tragédia só nos apresentaram desde então
histórias ou tradições populares. Já se não faziampeças heróicas, porque só era
lícitoàpoesiadramáticaocupar-sedospequenos,ehumildes:parasepôraonível
dessas inteligências inferiores, tornou-se em farsa a comédia, fazendo alarde de
indecências,queteriamnoutrostemposomerecidocastigodoscensores;eatra-
gédia,quandoousoucalçarocoturno,pediuà linguagemdosmimasaexpressão
vaga,atrásdaqualpodiamaisfacilmenteesconderavida.
Aruínadaartesobainfluênciamalignadodespotismoafugentoudostea-
trosospatríciosdebomgosto,eascadeirasdemármoreforamcedidasaopovo.
Masopovoépobre,eporconseguinteparaatrairosricos,todasassurpresasdo
maquinista,etodososprestígiosdopintoredecoradorforamchamadosemsocor-
rodaartequeperecia.Durantearepresentaçãodaspeçasmaisinsignificantes,ao
erguer-seopano,viam-secompasmopaláciosdemármorecomcapitéisdeoiro;
cortinasdasmaisricasefinascoresadereçavamtodososladosdacena,eemtodos
osactosserenovavam;aespaçosaromatizavamosaresrepuxosdeáguaperfuma-
da:oqueeraporémmaisparaadmiraréquetudoconsistianarealidade.Omár-
moreeraverdadeiromármore,asestátuashaviamsidocinzeladaspeloestatuário,
apúrpuraflutuanteeradasmesmasfábricasqueaqueservianossantuários,eao
imperador; os bosques quando a cena exigia tal decoração eram figurados com
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-430-
árvoresarrancadasdoscamposdeRoma;asprópriasfloresearbustosnãopude-
ramsalvarabreveedelicadaexistênciapormeiodoprestigiosoebelíssimocolo-
ridodospintores;–balanceandono teatroasesbeltashástias,alardeavamabri-
lhanteeodoríferacorolacomonosterrenosinclinadosdosjardins.
Comoauxíliodestapartetotalmentematerialdaartedramáticaforamain-
dabastante frequentados os teatros até aos reinadosdeHeliogabalo, e Comodo;
conquantosóláfossemparaveroluxodoespectáculo,enãoparaescutarversos
empolados,oucontemplarpantomimasindecentes,quemesmoopovonemsem-
preaplaudia.Opequenonúmerodehomensqueserecordavaportradiçãodaépo-
ca gloriosadeAugusto, serviu-se entãoda sua fortunaparapoder ter emcasao
que lhenegavamos teatros públicos. Construíram-nos eles no interior dospalá-
cios;eosescravoselibertosquemostravamalgumadisposiçãoparaaartedramá-
ticaeramconvidadosarepresentaraspeçasdePlauto,Scauro,Terêncio,eoutros
autorescujosnomesnãoalcançámos.–Ànoitedepoisdasfadigasáulicas,dasorgi-
asquotidianasdospasseiosaoladodasdamasromanasemdoiradasliteiras,ono-
brepatrícioencerrava-senopalácioecomafamília,osparticularesamigos,ecli-
entesseendereçavaparaagaleriaondesealçavaoseuteatroíntimoparapoder
admirarreligiosamenteosautoresqueas turbasnãocompreendiam.Porémeste
mesmomisteriosocultodaartenãooconsentiuacruelinquisiçãodosimperado-
resNero,Calígula,eComodo.Atiraniaacusouestasinocentespalestrasdeconspi-
raçõescontraosdiassagradosdoimperador,eocutelodocarrascolhespôstermo.
NosreinadosdeNero,deMarcoAurélioedeTrajanotalvezqueaartedra-
máticapudesseterrevivido;masospoderososocupavam-sedeteoriasfilosóficas,
eaprosafoipreferidaaoverso:–eraaépocadoshistoriadoresedosgramáticos.
QuandoopoderpassouàsmãosdeConstâncioeConstantinooutrascausasfecha-
ramaopovoromanoasportasdoanfiteatro:apareceraocristianismo,easideias
puritanas,queespalhavanasaltasclassesdestasociedadeperdidaecorrupta,pu-
seramtermoàsprodigalidadesquealimentavamosbandosdegladiadores,come-
diantes, autores, e sobretudo as avultadíssimas despesas dos trajes, decorações,
estátuas&.Alémdistoapaixãodohorrívelenerva-seeafrouxa,porqueosobjectos
horríveisdepressaenfastiam;eosdramaturgosdaqueletemposerviram-sedeles,
porquejánãohaviaarte;tendendosempreopoucoquedelarestaaequilibrar-se
comocarácterdaépoca.
Eutinhaumasasasbrancas
-431-
Já não existia pois a arte dramática aomudar-se a sede do império para
Constantinopla:expiraraporqueacomédiahaviacaídonosignóbeislazzidafarsa,
eatragédianashorríveisperipéciasdecrimeedesangue.Foimisterqueaidade
médiaviesseabrirospórticosdasigrejascatólicasàartedramática;paraque,co-
moafénix,seelevassedafogueira,aqueaarremessaraadepravaçãoromana.
--------§--------
CrónicaTeatralTeatroNormal –Terça-feira5do corrente subiupelaprimeiravez à cena
umdramatraduzidodofrancês,equeseintitulaRitaEspanhola.
ServiudetextoaessedramaumromancedeEugénioSueintituladoLavigie
decoatven,doqualtrêsautores(Desnoyers,Boulé,eChabot)extraíramoprincipal
doseuassunto,aproveitando-lheosbonslancesdramáticos,emudando-lheodes-
fecho,afimdenãodeixarosespectadoressobadesagradávelinfluênciadoshor-
roresquesemfaltarematamtodasasnovelasdeM.Sue.
AheroínadodramaéRitaEspanhola,comonolivrodoromanceiro.Ritaé
adorada, perseguida, instadapelos incansáveisperaltasque constituema florda
nobrezadeFrançanaépocadaregência.Ritadádemãoaessasadoraçõesquea
enfastiam; nem julga merecer-lhe mais favorável acolhimento o excessivo amor
quelhevotaonobreepoderosocondedeVaudroy.Estenãosepoupaameioal-
gumdeseramado,mas,repelidosempre,desengana-sealfim,eei-loaíjaznomais
miserandoestadodedesesperação.Suamãecorrealançar-seaospésdaduquesa
(Rita)conjurando-adeapiedar-sedeseufilho.Ritaresistesempre:devesuafortu-
na a umvelhodoqual enviuvara; e só contrairá novasnúpcias quando amarde
coração:abelaespanholaéromanesca;sejaplebeu,sejadesvalidoohomemque
elaamar,deleserásuamão.Amãedocondenarraentão,comoofilhojáporvezes
atentaracontraaprópriaexistência…aduquesacede.Masocondelhepediraco-
moúltimofavorvê-laaindaumavezantesdeexpatriar-se:deveapareceràmeia-
noitedebaixodas janelas;ahoraseaproximaequeventuraoespera?–Émeia-
noite,ouve-seumtironarua;foiocondequesematoupelaamantequeaindajul-
gavainsensível!–Ritavaiconfinar-senoseusolardaBretanha.–Umeremitãoque
ninguémconhecialhesalvaavidapondoemfugaumbandodesalteadoresquea
haviamacometido:oeremitãoeraumbelomancebo,e ficaraferidonarefrega;é
conduzidoaindadesmaiadoaopaláciodaduquesa;apertavanamãoumamedalha;
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-432-
abre-aRitaereconheceoseuretrato!–Osantãoficanocasteloacurar-se;Ritase
inflamadomaisviolentoamor,etudodispõeemsegredoparaseuniraoextremo-
síssimo amante com laço indissolúvel. Reina o amor e a felicidadenopalácioda
Bretanha;amorosaspráticas,suavíssimasconfidências,eaesperançadeumcerto
eventurosofuturo!Chegaodiaemqueumsacerdotehá-deunirosdoisamantes:
Ritaalvoroçada lhedeclaraoquehápreparado…masoeremitapermanece frio,
pensativo,ecomsemblantesevero:eporfimdiz-lhequenãoaama;queaenga-
nou;queadespreza;quenãoéeremitão,massimoconded’Auvray,irmãodaquele
queseusrigoresassassinaram,filhodaquelaquenãosobreviveuàhorrendacatás-
trofe. Rita protesta que é inocente, roga, implora; mas tudo em balde: invoca o
amorqueaconsome,eatéselheoferece,quandonãoparaesposa,aomenospara
amante…Maspararequintedeignomínia,cortesãosdevassosemulheresperdidas
osescutavamporintervençãoded’Auvray!–Entram,eaçoitamamíseracombal-
dõeseinsolências:entãoseerguesoberbaaduquesaeproclamaasuainocência,
mostrandoumacartadamãedoconde;sóumapartedessacartalêd’Auvray,que
ofimdelaencerraumsegredoquehá-dedesatarodrama.Ocondeenfurecido,e
cheio de remorsos, desafia o falso amigo que maliciosamente o há induzido na
atrozvingança.Estemorreàsmãosdoconde,queoraseabrasanomaisviolento
amor;amorquehápoucofingira!Masétarde:aafrontaqueRitasofreu,reclama
vingança.
E sódevingar-securaabeladuquesa.CorreaVersailles, solicitaeobtém
honras, postos, condecorações, para aquele que tão vil a ultrajou: quer elevá-lo,
paraquemaissintaaquedaquelheaparelha;querqueopendordoseuressenti-
mentooesmague.EmsuasmãosparamtítulosquemostramnãoserHenriquefi-
lhodocondeVaudray,masdeumservidordaquelanobrecasa.Énumbrilhante
bailedadopeladuquesa,queelarevelaaHenriqueosegredodoseunascimentoe
isto quando tem acabado de enfeitá-lo com a ordemdoEspíritoSanto. Rita está
mascarada, e amáscara que a cobre é por tal arte preparada que o rosto que a
trouxer,uminstantequesejaficarádisforme,horrendo;Ritalançoumãodofunes-
tomeio; não sópara subtrair-se às exigências doministroque elevouHenrique,
mas tambémpara que lhe fosse impossível ceder ao amorque ainda sentia.Um
criadofielsubstituíraamáscarapreparada,poroutrainocente,eiludindoaspre-
visõesdaduquesa,foicausadasuafelicidade.Ahórridametamorfosenãotemlu-
Eutinhaumasasasbrancas
-433-
gar,oamanteéperdoado,todoopassadosecobrecomvéuimpenetrável,eporfim
casam-seosdois,acontentodoclero,nobreza,epovo.
Eisodramaemesboço!esboçada foi tambémacrítica;edeoutravezen-
cheremosapintura.Aexposiçãonãoé feliznemengenhosa,nemnova,o fimdo
primeiroactonãoestácalculadoparaproduzirgrandeefeito:esteeo2.º,sãomui-
toinferioresaosoutros,nãosóquantoaointeresse,maspeloquerespeitaaodiá-
logo,quenaqueleséfrouxoedesatado.Acenadoeremitãocomaduquesaquando
estalhetiraoretrato&,éporventuraalgumtantovivademais;estranha-secomoa
duquesanãosóseamoldaimediatamenteaoamordosantão,masatéelaprópriao
animasemrebuço,nemcomedimento:note-sequeRitasenãorecordavadeoter
vistojamais.–Avingançadocondeétambémdemasiadamenteromântica, istoé,
nãotemcausasuficiente:aindaquandoforaverdadeoqueelepensava,reduzia-se
tudoasuicidar-seumhomemporqueumamulhernãopodiaamá-lo;–eemamor
nãohávontadelivre.AvingançaqueRitasepropõeexecutarcareceigualmentede
motivojusto:–pormaiorquetivessesidoaafronta,oarrependimentoalavou;e
alémdisso note-se que o conde humilhou-se, confessou a culpa, expiou-a como
sangue de seu pérfido conselheiro, e, sobre estas compensações, mostrou amor
profundo.
Seriamtodaviaporventurafalíveisoscoroláriosquedasreflexõesquefize-
mossehouvessemdetiraracercadomerecimentododrama!Pessoasouvimosnós,
deassazbomvoto,àsquaisapeçanãodesagradou;enósmesmosnãopodemos
negarinteresseaosdoisúltimosactos.
ÀsenhoraTalassisedevemasprincipaishonrasdessarepresentação:deve
lembrar-seestaartista,quenemtodosospapéislheestãoigualmenteapropriados,
equeéesteogéneroemqueespecialmentecostumasobressair.–DebutouoSr.
Dias,actorbemconhecidojáentrenós:infelizmenteeradepoucaforçaoseupapel,
quealiásdesempenhoucomoseesperava;foichamadoaopalconofimdodrama
parareceberaplausos.
Osactoresaparecemricamentevestidos;masnota-sequeumjovemeape-
raltadocortesãodo tempodaregência (OSr.Vitorino)apresenta-senaBretanha
exactamentecomosmesmosvestidos,que,umanoantes,selheviramnobaileda
duquesa.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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TeatrodeS.Carlos –OOteloalgumavezcompleto,emuitasmaisdividido
temsidoaúnicaópera,queháquinzediassetemoferecidoaoansiosodiletantismo
daCapital;nãofalandonaElenadeFeltre,queressurgindoumdia,tornouadesa-
parecersemnosdeixarsaudades:felizmenteoOtelonãoéóperaparadesdenhar,e
o Sr. Conti se tem havido com tanta distinção que há sido ela e ele talvezmais
aplaudidosquenoprincípio. Seria injustiçanãomencionaro Sr. Ferretti, queno
duetodo2.ºactodesempenhaasuapartecommuitoesmeroratificandooquedi-
zemdoseuadiantamento–NestaúltimasemanafoiaCompanhiadoTeatroNor-
malaodeS.Carlosrepresentarnaquarta-feiraacomédia–OGéniodaNoite–ena
sextaodrama–RitaEspanhola=edeambasasvezescaptaramaplausosaosauto-
res,que,nãosepodenegar, fizeramtodasasdiligênciaspordesempenhar,como
convinha,vencendoasdificuldadesquelhesapresentariaadiferençadecapacida-
de,emaiscircunstânciasinerentesaograndeteatrodeS.Carlos.–Adança–Orfeu
–compostapeloSr.Casatinãodeixadeagradar,conquantohouvesseprognósticos
paraocontrário:–aindaqueselhenotemdefeitos,comoporexemplooinferno,
ondenãoparecetersidomuiconsultadaamitologia,decujostemposéaacção,e
paraoquesóbastassetalvezlerosextocantodoVirgílio;–aindaquenosenfadem
algumasprolixidades,parece-nosqueadança temoutraspartes,quemuitobem
compensam estes desaires. Grande parte dos bailados é agradável amúsica e é
muitoadaptadaaosubjeito,eascenasnovastêmmerecimentofazendo-sedignade
mençãoespecialaúltima,porexcelenteedemuitoefeito.
AVISOSNãohavendoamaiorpartedosSenhoresAssinantesdoPortosatisfeitoainda
oimportedoprimeirotrimestredassuasassinaturas,denovoselhesrogaqueiram
dirigir-separaesseefeitoaoSr.Manueld’AlmeidaCardozo,ruadeCedofeita.
OsSenhoresAssinantesdeCoimbraterãoabondadedeentregaroimportedo
segundotrimestredassuasassinaturasaoSr.RodrigoJosédeMoraesSoares,Estu-
dantedo4.ºanodeMedicina.
TEATRODES.CARLOSDomingo10deMaio–O1.ºe3.ºactosdeOtelo.DançaOrfeu–2.ª-feira11–
BenefíciodeFanyRabel–1.ªBailarina.Ópera–Otelo.DançaOsMineiros.Made-
Eutinhaumasasasbrancas
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moiselleDeVecchi,abeneficiada,eMr.Casati,dançarãoumTerceto.Mr.Mansoni
tocaráumconcertoderebeca.–4.ª-feira13deMaioO1.ºactod’Otelo.–ODrama
Português–OCamõesdoRossio.Dança–OsMineiros–6.ª-feira15–ÓperaNova–
CatarinadeClevis.Debutaráo1.ºBaixoVaresi–Dança–Orfeu.
___________________
n.º24,de17deMaiode1840
JORNALDOCONSERVATÓRIOJoãoBaptistadeAlmeidaGarrett,InspectorGeraldosTeatroseEspectácu-
losNacionais,porSuaMajestadeFidelíssima,queDeusGuarde,&.&.&.
FaçosaberqueemvirtudedoRealDecretode12deOutubrode1838,que
regulouaadjudicaçãodossubsídiosaoTeatroNacionalNormaldeLisboa,epela
EscrituracelebradacomoEmpresáriodomesmoteatro,ficoueleobrigadoaterà
disposiçãodoConservatórioDramáticoasomanecessáriaparaserempremiados,
nesteanode1840,seisdramasoriginaisportugueses,aquepeloditoConservató-
riosejamadjudicadososprémios.Trêsprémiossãodestinadosàspeçasgrandes
detrês,oumaisactos,sejamtragédias,comédias,oudramashistóricos.
Apeçaquenestaclasseforcoroada,ouaprovadaemprimeirograuobteráo
prémiode96$réis.Apeçaquenestaclasseobtiveroaccessit,receberáoprémiode
50$réis.Osoutrostrêsprémiossãodestinadosàspeçaspequenasdeumoudois
actos.Apeçaquenestaclasseforcoroada,ouaprovadaemprimeirograu,obteráo
prémiode64$réis.Apeçaquenestaclasseobtiveroaccessit,receberáoprémiode
36$réis.
OconcursoaestesprémiosfoireguladoemConferênciaGeraldoConserva-
tórioDramáticode24domêsdeFevereirode1839,pelamaneiraseguinte:
Artigo1.º.Todaacomposiçãodramáticaquehouverdeconcorreraospré-
mios,seráremetidaemsobrescritoaoInspectorGeraldosTeatros,eacompanhada
de uma cédula fechada e lacrada separadamente, a qual deve conter o título da
obra,eonomedoAutor.
§.1.º.Osobrescritodacomposiçãodramática,trarátambémporforaotítu-
lodaobra,eonúmerodasfolhasdomanuscrito.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-436-
§.2.º.Umnúmero,ouqualqueroutrosinal,escritoexactamentedomesmo
modo,assimnosobrescritodapeçadramáticacomonosobrescritodacédula fe-
chada,servirádeidentificarumacomoutra.
§.3.º.OsobrescritodapeçadramáticadepoisdeassinadopeloSecretário
doConservatório,serádevolvidoaoportadorparaservirdetítulodereclamação.
Art.2.ºApenasrecebidaapeçadramáticaoInspectorGeralreuniráoCon-
servatório,epublicamentefarátiraràsorteosnomesdostrêsJuradosdasecção
deBelas-Letras,osquaisemcomissãoprocederãoaoexameecensuradaobra.
Art.3.ºAComissãoapresentarádentrodeoitodiasoseuparecer,declaran-
doseachaounão,napeçacensurada,motivosuficienteparaseradmitidaàspro-
vaspúblicas.
Art. 4.º Entregue o parecer ao Inspector Geral serão convidados todos os
MembrosdoJúriaexaminaroditoparecer,bemcomoacomposiçãoaqueserefe-
re;eparaesteefeitoestarãoambospatentesporespaçodequinzediasnaSecreta-
ria.
Art. 5.º Se durante este prazo oAutor quiser fazer algumas alterações no
seu drama, deverá remetê-las em carta fechada ao Inspector Geral, pelomesmo
modoprescritonoArtigo1.º.
Art.6.ºNodécimo-sextodiadepoisdaemissãodoparecersereuniráoJúri,
eemconferênciapúblicaseprocederáàleituraediscussãodele.
§.único.Fechadaadiscussãosedecidiráporescrutíniosecreto,àpluralida-
dedevotos,seoparecerdeveounãoseraprovado.
Art.7.ºASecçãodeBelas-ArtesdoConservatóriopodetomarpartenadis-
cussão,masnãoéconvidadaavotarsobreobjectosexclusivamentedramáticos.
Art.8.ºDecidindo-sequeodramadeveseradmitidoàsprovaspúblicas,ou
queoficarámerecendoseoAutorsesujeitaraalgumasalteraçõesquesepropo-
nham,lançar-se-áestadeclaraçãonofimdomanuscrito,eesteserárubricadoem
todasassuasfolhaspeloSecretário.
§.1.ºApeçaassimlegitimadaseráremetidaaoEmpresáriodoTeatroNor-
malparaserrepresentada.
§.2.ºOInspectorGeral,apenaslheforapresentadoosobrescrito,queserve
de título de reclamação, lavrará nele ordem ao portador para lhe ser paga pelo
Eutinhaumasasasbrancas
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Empresárioaquantiade50$réis,seapeçaforde3oumaisactos,ouaquantiade
36$réis,seapeçafordeumoumaisactos.
Art.9.ºSeaobraforrejeitada,tantoomanuscrito,comoacartafechadase-
rãoentreguesàpessoaqueapresentarotítulodereclamação.
§.único.SeoAutordeumapeçarejeitadaaquiseremendarecorrigir,pode
voltarcomelaaoconcurso,esobreamesmaseprocederácomoseforaumanova
composição.
Art.10.ºOEmpresáriodoTeatroNormaléobrigadoafazerrepresentaras
peçasassimadmitidas,pelomenos,3vezes.
§.1.ºOautorouproprietáriodapeçanãopoderetirá-ladacena,sobpretex-
toalgum,durantetodooanocorrente.
§.2.ºOAutorouproprietáriodapeçanãotemdireitoaexigirdoEmpresá-
rio,pelas3primeirasrécitas,retribuiçãoalguma.
§.3.ºEmtodasasoutrasrécitas,seashouver,sópoderáexigirosdireitos
deAutor,queordinariamentesepagamemcadanoite,seguindo-seoqueporuso
geralestáestabelecido,enquantoporleinãoforemreguladososreferidosdireitos
deAutor.
Art.11.ºDepoisda3.ªrepresentação,oAutor,farádepositarnoConserva-
tórioumacópiafieldoseudrama;enãoocumprindoficaráexcluídodoconcursoa
quenofimdoanosetemdeproceder.
Art.12.ºSeduranteosensaiosoautorjulgarindispensávelalgumamodifi-
caçãonadistribuiçãodaspartesdoseudrama,expô-la-áporescritoà Inspecção
Geral, para que, sendopossível, e não contrariando as conveniências teatrais, se
satisfaçaaoseupedido.
Art.13.ºNofimdoanocorrente,emconferênciageraldoConservatório,se
procederáàeleição,porescrutíniosecreto,deumaComissãodecincoJuradosda
secçãodeBelas-Letras,aqualseráencarregadadeexaminaraspeçasrepresenta-
das,epropordeentreelasasquejulgardignasdatotalidadedoprémio.
§. 1.º A Comissão reconsiderará escrupulosamente o mérito das peças, e
formaráumrelatórioemqueexponhaoefeitoquefizeramnacena,eoacolhimen-
toquehouveramdopúblico,asemendasoucorrecçõesqueoAutorlhestinhafeito,
eoconceitobemoumalfundadoquedelasfizeramosliteratos,ouaimprensa.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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§.2.ºTantoorelatório,comoaspeçasaqueelesereferir,estarãopatentes
naSecretariadoConservatório,porespaçodequinzedias,paraseremexaminados
porqualquerMembrodoJúri.
Art.14.ºSenodecursodoanocorrenteaparecernoTeatroNormalalgum
dramaoriginal,dequalquergénero,semtersidopreviamentesubmetidoaojuízo
doConservatório,oInspectorGeralfarásobreissoRelatóriocircunstanciado,que,
comareferidapeça,oupeças,seráentregueàComissãodoscinco,dequetratao
Art.13.º,parahaveremdeserporelaconsideradaseexaminadas,comosetives-
sempassadopelojuízopréviodaComissãodostrês.
§.único.EnãohavendojáàdisposiçãodoConservatórioasomanecessária
parasatisfazeraoprémioqueestapeça,oupeças,sejulguemerecerem,seráodito
prémiosatisfeitopeloprimeirodinheirodoanoseguinte.
Art. 15.ºNo décimo-sexto dia depois da emissão do parecer da Comissão
doscinco,seconvocaráoJúri,paraserlidoediscutidooditoparecer,eseaprovar
oualterar,segundofordecididopelamaioriadosvotos.
§.1.ºConcluídaestaúltimavotaçãoseprocederáemactocontínuoàaber-
tura das cédulas, e serão proclamados os nomes dosAutores, cujas peças foram
coroadas,ouobtiveramoaccessit.
§.2.ºAosAutoresdepeçascoroadas,ouàspessoasaquemelesporqual-
quermodo,tenhamtransferidoseusdireitos,seentregaráordemparareceberem
doEmpresárioasomacomplementardoprimeiroprémio.
Portanto,douporabertooconcursoaosreferidosprémios.Eparaqueche-
guemestasdisposições ao conhecimentodequemconvier, se afixaráopresente
nasportasdoConservatório,eserá inseridonoDiáriodoGoverno.Lisboa,e Ins-
pecçãoGeraldosTeatroseEspectáculosNacionais,em29deAbrilde1840.=(As-
sinado)JoãoBaptistadeAlmeidaGarrett.
Estáconforme.–OSecretário,AntónioGomesLima.
_____________
TeatroInglês
KEAN.–MACREADY.–KEMBLE.Tão intimamenteestão ligadasentresiaarteepoesiadramática,quepor
certonãoéparamaravilharvê-lasirdemãosdadas,ouemdirecçãoparalela.Por
vezes caemgrandes poetas no poder demedíocres actores; por vezes procuram
Eutinhaumasasasbrancas
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estestambém,masemvão,paraassuasfaculdadesumempregocondigno;desor-
teque, tomandoapenasomeio termohistóricodo teatro, facilmente reconhece-
remosque os grandes actores, e insignes poetas se nos apresentamapar quase
sempre; e aparecendoparaos elevadospensamentos intérpretes famosos, não é
raroqueescritoresamortecidosseergamebrilheminspiradospeloespectáculode
admirávelpantomima.
Explicaesta lei oque sepassano teatrodeLondres: –nãodescortinareis
grandespoetas;eosactoresdistintosousãomuitopoucosouabandonamacena.
DesdeamortedeKeannãohánaInglaterraumactortrágicodignodeSha-
kespeare. Era completa a simpatia entre Kean e Shakespeare; entre o poeta e o
comediantehaviaamesmainspiração,amesmaespontaneidadedegénio.–Habi-
tuadoacomporosdiversospapéiscommuigrandeprevidência,ocriadordomo-
dernodramaeximiu-sedomelhorgradoàsmorasepreparaçõesoficiais.Nãoim-
provisaele, comoo julgamerepetemporaídoutores ignorantes,nãoseentrega
Shakespeareàimpetuosaabundânciadopensamento;mascompaciênciaevonta-
deintervémnasmenorespartesdasuaobra.Revelarde improvisoocarácterde
umapersonagemlheégostomuitoparticular;envidaporémtodaadiligênciapor
esconderaartesobanatureza;oquenoseuentenderéaartesuprema.Afeitopela
práticadoteatroatodososrecursosmecânicosdacena,atodososprocessosda
poesiadramática, por certoque lhenãoeradifícil dar aodiálogomais simétrica
regularidade:Shakespeareoptoupelométodocontrário;masfoipenetraçãoenão
liberdade. Erapara ele a poesia dramáticamais doqueum lavor literário, era o
activodesenvolvimentodetodasasfaculdadeshumanas;ecomoavida,cujapintu-
ratinhaemvista,malobedeceriaàslinhasharmoniosasedeconvençãodatragé-
diagrega,recusouosistemadramáticopreconizadoporBen-Johnson.Oqueporde
sobretudopreferiuShakespeare foiavivarealidade;realidadeque iaelevando,e
faziasubiratéaoideal;eesteidealnãoeraparaeleasimplicidade,masaenergia.
Adaptava-se maravilhosamente o génio de Kean a esta teoria da poesia
dramática:amava, comoShakespeare,aenergia; sabiaatingi-la;e também,como
Shakespeare,sabiapatenteardesúbitooquemuitodevagarpreparara:–nãoque-
remosnóscontestaraoactorfamosoainspiraçãoquetantasvezesoanimou;mas
estamos certos, que se não fiava ele nos imprevistosmovimentos para traduzir
dignamenteumapersonagem;tinhadasuaartemuielevadaideiaparapensarque
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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areflexãoderrogava,quandoseempregassenaexpressãodeumpapel.Nãoespe-
randoqueopúblico tivesse sobre si todososolhos fixospara então inventaros
meiosdeomover,apresentava-sesobreacenaarmadodeumpoderprevidente,
resolvido a determinados gestos, a estudadas intonações; e a acção magnética
exercidasobreoactorpordoismil rostosdeespectadoresonão fascinava.Mas,
comonosgrandesoradores,comoemDemósteneseMirabeau,asuavontadese-
melhavaodestino:imperava,obedecendo,aumaforçasuperior.Inteiramenteda-
doaquantosepropunha,mostravaumadevoçãoeabnegaçãosobrenaturais;jáse
nãopertencia,parecendoantesobedeceraumgéniofamiliar.Julgavamosfrívolos
ouvintesestarKeanentregueatodasasvicissitudesdainspiração,nãolheconce-
diamaresponsabilidadedopoder;masenganavam-se:aespontaneidadeaparente
deseusmovimentosnuncachegouacompletoabandono.Todaviaeratãoprofun-
daaidentificaçãodoactoredapersonagem,queoactoracabavaporiludir-seasi
mesmo;epartilhandoaemoçãodoauditório,eraoprimeiroquesucumbiasobo
seumesmopoder.–OmesmodeveriaaconteceraShakespeare.Figurai-vosoau-
tor do reiLear, sozinho no seu quarto pobremente decorado: junto do fogo que
empalidece,encostandonadestraafronte,lêcommelancólicorostoatragédiaque
rematara,enternecem-noasdesgraçasdorégioancião,eei-lofinalmenteaderra-
marlágrimascomoseelemesmohouverasofridoodesamparo.Enquantoperscru-
tavaanatureza,conservou-lheoespíritoaforçaealiberdade;evê-lo-íeisbuscare
escolhernassuaslembrançasafeiçãocaracterísticadapaternidadeinconsolável,e
daingratidãofilial:masapenasachoueleapalavrapredestinada,diantedopoeta
seajoelhaohomem,ecomoummeninosoluça,echora.
É sem dúvida um dos elementos da verdadeira grandeza este privilégio
concedidoaKeaneShakespeare:encerraeleosegredodasacçõesmaisadmiráveis,
cujas notícias haja guardado a história; coisa semelhante encontrareis emquase
todososdestinosbrilhantes.Omútuogovernodavontadepelascoisas,edascoi-
sas pela vontadepodem servir de fórmula àmaior parte dos homens ilustres. A
linhaimpalpável,emqueavontadeseaniquilaanteosacontecimentos,ouemque
osacontecimentosparamanteaambiçãoexageradadavontade,separaoshomens
emduasbemdistintasclasses,osquevolvemnamentegrandescoisas,eosqueas
executam:–ShakespeareeKeaneramdestenúmero.
Eutinhaumasasasbrancas
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NinguémpresentementenosteatrosdeLondresfazlembrarogéniodaque-
leactorilustre;ninguémpelosraptoseespontaneidadedapantomimatraduzSha-
kespeare,comoKean.Consigolevouosegredoograndeactor;eosmeiosqueem-
pregavaparadominarasturbasnãosãonestahoramaisqueumatradiçãofabulo-
sa,cujoruídocontinua,mascujosentido todosdiasseescurece.Estánabocade
todosonomedeKean,porémoseugénioaindanãoiluminouafrontedenenhum
actor!
PassaremosafalardeMacready.
_____________
ÉSQUILO
PROMETEUEAGAMEMNONTodos conhecema fábula dePrometeu, que Júpiter fez prender aomonte
Cáucaso, onde um abutre lhe devorava o fígado. Ésquilo tirou desta fábula uma
tragédia.–PrometeuestácondenadoporJúpiter;aforçaeaviolênciapersonaliza-
dasexecutamasentença,eoagrilhoamaorochedocomadamantinascadeias;Vul-
cano que acompanhava estas deusas murmura da severidade do soberano do
Olimpo;masocoroclamaerepetequenenhumdosdeusesélivre,quesãotodos
escravosdeJúpiter.–Desamparadosobreorochedo,Prometeunumainvocaçãono
gostodaantiguidade, tomapor testemunhada injustiçadoseucastigooéter,os
ventos,omar,eosol;aseusqueixumesacodemasninfas, filhasdoOceanoede
Thetis,vêmconsolá-lo,eexalarmurmúrioscontraatiraniadeJúpiter;finalmente
exprimemodesejodeverembreveofimagovernotãodetestável:chegatambém
ooceano,eainfelizJo,apiedam-sedePrometeu,elhedizemqueesperamqueseus
acerbosmales tenhampróximo termo.Prometeu só temesperançanodestino, a
quemopróprioJúpiterestásujeito:tímidoperguntaocoro,seasortedeJúpiteré
dereinarsempre,masPrometeunãoousarevelaroquelheháfeitoaventaraciên-
cia,e juradeesconderosegredoenquantoestivernascadeiasdeJúpiter.–Toda
estapassageméadmirável,epintacomtalentorarootemoremedo,queinspiraa
tirania,aosqueamaldizem.
TodaviaosdurossofrimentosdePrometeulhefazemalfimromperosilên-
cio:exclamaqueosoberanodosdeusesserádestronadoporumfilho,quehá-de
terdeumamortal.MercúriodescedoOlimpo,elheordenaquedeclarequemserá
osucessordoreidoshomensedosdeuses;masPrometeutrata-odevilescravo,e
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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recusasubmeter-seàsordensdeJúpiter.Mercúriooameaçadeeternosuplício;o
padecentepersiste;eentãoumraioofulmina!
Dizumcríticocélebre,quenãoachaqueistosejaumatragédia;masbemse
vêquenãoquiseleounãopôdecolocar-senaposiçãodeumpovo,paraquemtão
absurdasfábulaseramverdadesreligiosas;deumpovo,queporseuódioàtirania
devia ser sensível aos sofrimentos de Prometeu, e que por conseguinte deveria
encontrar naquele sentimentomilmotivos de entusiasmo para com as impreca-
çõesdotrágicocontraatirania.–émuitoparaadmirarqueMr.deLaHarpe,por
entreosdefeitosdaobradeÉsquilo,nãohajanotadoostrechosdegrandezaeele-
vação,dequetantoabunda;assimcomoaunidadequereinaportodooplano.
Agamemnondizrespeitoaumacontecimentocujo interessedevesobrevi-
ver aos tempos, e agradar a todosospovos.Oprincípiodesta tragédia édemui
profundaoriginalidade:–ficavamlogotodosemexpectaçãoporqueoassunto,de
todosquantosocupavamas lembrançasdosgregos,eraomaispopulare impor-
tante.–Estánacenaumúnicohomem;esperaeprocuradescortinaroclarãolon-
gínquo da fogueira, que Agamemnon prometera a Clitemnestra, mandar colocar
emmontanhaelevada;paraquereproduzidadecidadeemcidadetrouxesseaAr-
gosanotíciadatomadadeTróia.Gruposdevelhossevãojuntando,econversam
acerca de Agamemnon, e Ifigénia, e das desgraças, que Calchas profetizara aos
Atridas.Hánestatãosimplesexposiçãocertacoisaqueapavoraoespírito.–Apre-
senta-seClitemnestracercadadosministros,eanunciaaopovoatomadadeTróia,
eapróximavindadosargivosguerreirosdepoisdetãolongosesanguentoscom-
bates. Coroadode oliveira vemumarauto confirmar a feliz nova; enfim aparece
Agamemnon,etrazconsigoumacativa;éCassandra.–Enche-odecaríciasaesposa,
e o coro se entrega a involuntária e inexplicável tristeza, como se pressentira o
cumprimentodaspredicçõesdeCalchas.–Énoquintoacto,queÉsquiloacumula
asmaioresbelezas;sucedem-seseminterrupçãocenasadmiráveis.Ouvireisumas
vezes Clitemnestra prometer a Cassandra de lhe suavizar o cativeiro,mal enco-
brindoastençõesdanadasdoquelhereserva;outrasvezeséaprópriaCassandra,
queemproféticosfurorespredizosnovoscrimesdequevêmanchadaaprogénie
deAtreu;eolhandoparaasparedesdopalácio,clama:–Deuses?quenovoatenta-
doéesse?Eisoquereservaisavossoesposo,desgraçada!…Oquevejoseráuma
rederoubadaaoinferno,ouovéuquecobreoleitonupcial,ovéucúmplicedeum
Eutinhaumasasasbrancas
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assassínio?…–Ocoroperguntacheiodepasmoaexplicaçãodetaispalavras;mas
elacontinua:Himeneu,himeneudePárisfatalàminhacasa!ÓondasdoScaman-
dro!aindahápoucodivagavanastuasribas,eagorajánasmargensdoCocytoedo
Aqueronte!… – Em todo este trecho de poesia, que é considerado como um dos
maisbelosdaantiguidade,ocorointerrompeaespaçosCassandra,paralhefazer
questões:cadaumadasrespostasdelamaisclaramentedáaentenderoassassínio
deAgamemnon,aopassoqueClitemnestrafazparaissoospreparativosatrásda
cena.FinalmenteCassandradeitaporterraascoroaseceptro–atributosdospro-
fetas,eclama:–Sereivingada;porqueviráumfilhovingaraafrontadeumpaie
minhanosanguedesuamãe!…
Cheiosdeinquietaçãointerrogam-seosvelhosacercadeprofeciastãohor-
ríveis;masouvem-sederepenteosgritosdeAgamemnonqueassassinam,equese
queixadeamiudaremaspunhaladas.Procura-seforçaropalácio,masentãoapre-
senta-seClitemnestra,etodamanchadadosanguedomarido,gaba-seeseglorifica
detervingadoamortedafilha!
Ésquilo concebera profundamente o carácter de Clitemnestra: é umamãe
queviu,porassimdizer,asuafilhamortaàsmãosdeumpai,queaviusemexalar
inúteis queixas esperando omomento favorável de castigar com segurança esse
homemimbecilefanático.Umacentodecólera,umsómurmúriolhenãoescapa;
porquecontapagarestecrimecomoutrocrime;eatéaouvireisjuntaràcrueldade
a irrisão e mofa: Imolei-o! responde Clitemnestra ao coro, que lhe perguntava,
quempranteariaAgamemnon,ecuidariadasuasepultura:–imolei-o,cuidareida
suasepultura,eselhenãoconcederotributoordinário,aomenosir-lhe-áaoen-
controsuafilhaIfigénia,eoabraçaráternamentejuntoàsabasdoriodosPesares.
FoicoroadaestapeçaentreasaclamaçõesdetodaaGrécia,quejulgoucom
razãoqueeradifícilinspirarmaisterrorepiedadeaomesmotempo.NosCoéforos
enasEumenidesaindamaislongetalvezlevouÉsquilooefeitotrágicoeanovidade
deconcepção.Coéforoséonomecorrespondenteacertaspersonagensquefaziam
aslibações,ecompõemelesocorodapeçaaquemderamonome:sãoestrangeiras
escravasdeClitemnestra,eafeiçoadasaElectraevêmaotúmulodeAgamemnon
trazeroferendas.Electrainvocaasombradopai,elherogadepunirosassassinos;
ocoroselhereúne.–EnquantoElectrafaziaaslibaçõesaosmanesdeAgamemnon,
descobriucabelosespalhadosnaterra:–eramdeOrestes,quesegundooscostu-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-444-
mesdetodaaGrécia,vieradeporestetributodasuadoresaudadesobreotúmulo
deseupai.Aoverestessinaisdepiedadelembra-seElectradoirmão,eelevaar-
dentes votos ao céu para que venha Orestes vingar o assassínio nefando. Então
Orestessemostra,exclamando:–SouOrestes!…Eàvistadaslágrimasdairmã,e
dotúmulodeAgamemnon,Orestesesquecendoooráculoqueocondenaaserave-
xadodasfúrias,executaemsuamãeumacruentavingança.
No acto seguinte apresenta-seOrestes a Clitemnestra e lhe anuncia a sua
própriamorte:cenafeliz,econstantementeimitadapelosmodernos.Apressa-sea
rainhaemdartãoalegrenovaaEgisto,porémaamaficanacena,echoralágrimas
sincerasepungentes;eocoro,cujoempregotalvezpareçapoucoconducenteaos
modernos,procuramitigar-lheadorfazendo-lheanteverqueOrestesaindarespi-
ra.Étambémocoro,quemnoactoseguintepreparaosespectadoresparaoquese
vaiseguir;pronuncia imprecaçõescontraEgisto;epassadosalguns instantesou-
vem-seosgemidosdeEgisto,sucumbindoaosrepetidosgolpesdeOrestes,quena
exaltaçãodofurorimolaaprópriamãe.
------------------
QualidadeseDeveresdo
ComedianteQuantosejadeinteresseaartedocomediante,ébemóbvioatodasasinte-
ligências;nemlidaremospordemonstrá-lo.–Quebastasvezesumexcelentedra-
masevêmorreràsmãosdeimpéritosactores!–Quantaspeças,dequasenenhum
mérito real, aplaude o espectador, transportado pela magia de um representar
animado,verosímil,finalmente,conformecomasregrasqueaartecolheudaexpe-
riênciaedarectarazão?–Nãoésóaíndole,nãoéotalentodequalquerindivíduo,
quebastaráparaotornarbom,ouaindasofrívelactor:eseassimfosse,emtodos
ostempos,emtodosospaíses,sobrariamosTalmaseosGarricks.–Aarteresume
em poucos preceitosmuitos séculos de elaborada experiência; dos vícios deduz
virtudes,aoserrosacodecomregras:–aarte,filhadanatureza,encarrega-sedea
polir e esmaltar; bem como o pó do diamante, que lhe castiga as asperezas, e o
transformaemrutilanteprisma!–
Eutinhaumasasasbrancas
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Cheiosdestasverdades,jáporvezestemosescritodadifícilartedocomedi-
ante,eaindahojelhededicaremosalgumascolunasparacomplementodoquediz
respeitoaogestoteatral;quesitodequecomeçámosatrataremnossoNúmero19.
Incumbequesejaogestonaturaleingénuo,nuncaafectadooucontrafeito.
Anaturalidadenãoé senãoummeiodequeo actor lançamãoa fimdeparecer
maisverdadeiro;nãoéumfimaquetendamosseusúltimosesforços:se,tornan-
do-semaisnatural e ingénuoemseugesto,oactornãomostrarmaisverdade, é
porsereleinepto,outrivial.Assim,aingenuidade,asimplicidadedeumherói,não
éamesmaqueadeumescravo,masnãoseráverdadeiroseusardamesmaespé-
ciedesimplicidaderepresentandoumherói.
Oqueemtantoapreçonosfazterasimplicidade,sãoasafectaçõesdevidas
àcivilizaçãoehábitossociais.Pormaioresquesejamasdiligênciasqueempregue
oactor,custosolheserásacudirdetodosessespreceitos.Averdadeiraingenuida-
denuncasedáquandoéestudada,massóquandoespontaneamenteseofereceao
actorsemquenissotenhaparteasuavontade.Aingenuidadenogestoéumapro-
vadaconfiançaquetemoactornasprópriasforças,edequantoopenetraeabsor-
veasituação.Grandeerroseriapensar,queaingenuidadesomenteseaplicaàex-
pressão dos efeitos suaves e brandos: asmais enérgicas paixões, osmais fortes
movimentos por ela sãomuitas vezesmelhor expressos, do que por afectados e
violentosesforços.
O decoro é também um quesito essencial ao gosto. Pode-se dar no gesto
verdadesemdecoro,bemcomosedáingenuidadesemverdade.Vejamosoquediz
Luciano, falandodapantomima.“Cumprequeseguarderigorosamenteodecoro;
seriaumvíciodeafectação,napantomimacomonaeloquência,ultrapassarame-
didadoquesequerrepresentar,fazendomuitopequenooumuitogrande,oquesó
devesergrandeoupequeno:conservaioscaracteresemodelai-ospelaspersona-
gensquerepresentardes.”
Parasergrandeactoréprecisopossuirsão juízo,expansivasensibilidade.
Sóumagrandejustezadediscernimentolhepoderáfazerdistinguiroqueacada
personagem convém: essa qualidade, e a observação da natureza, é que poderá
servirdenormaaoactor.Peloscostumesdoindivíduosejulgarádoseucarácter;e
comosepintarão semodecoroesses costumes?Éanatureza,na sua totalidade,
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-446-
querelevaconsultar,surpreendendo-lheosegredo;enuncaesteouaqueleindiví-
duo,quenasuaprópriaclassepodeoferecerexcepçãoouanomalia.
Ogestoteatraldeveserbelo.Abeleza,tantonaacepçãofísicacomonamo-
ral,éofimaquetendeaarte.–Comopoderáapantomimadarideiadeumherói
magnânimo,deumnobre,esforçado,eformosocavaleiro?–Sópelaváriadisposi-
çãodaslinhasdasuafigura,edosmembrosquelhaconstituem.
Reconhece-seabelezafísicaemtodososgestosrepresentadosnosgrandes
monumentosdaantiguidade,bemcomoabelezamoralquebrilhaemtantasobras
quedelaaindahavemos.
Debaldesepretenderiaalegarquesãoimagináriosestesprincípios,dizendo
tercadapovoumgestoquelheépróprio,eserdeenfadoparaumoqueaoutro
agradaria;finalmenteseremvariáveisasleisdobelo.Nãoélícitoduvidardoprin-
cípiouniversalquetinhamosGregos,peloqualosartistasimitavamabeleza.Foi
poresteprincípio,quenamaiorpartedassuasproduçõessouberamelesimprimir
umcarácterqueemgeralsóàbelezapertence.Buscaramseusmodelosnanature-
za;estudaram-lheasvariedadesemodificações,comoosmodernos;masdeonde
procedequeasobrasdosgregosseestremamdetodasasoutrasporumaspecto
comumdebeleza?Éinquestionavelmente,porqueelesreconheciamumtipogeral,
eaeleobedeciam.
Aobservaçãodosmonumentoseescritosdaantiguidademostraqueosan-
tigospossuíamcertosprincípiosparaapráticadasartes,eseremelesindependen-
tesdaobservaçãodanaturezareal.Éporintervençãodessesprincípios,quesuas
obrasemtodososgénerosadquiriramcertocarácterdegrandezaeordem;quali-
dadesque,segundoAristóteles,constituemabeleza.
Oraessegrandeprincípiodosgregos,peloqualaformoseiamadisposição
deumtodoesuaspartes,aindanãoeraoprincípiodaunidade,leiquetãofamiliar
depoissetornounasescolas,equeseobservahaverdirigidooestudodaliteratura,
moral, e filosofia, desdePlatão até SantoAgostinho. – Se a ordem, a simetria, as
proporções,emtudoagradam,pela faculdadequedãoaoespíritoeaosolhosde
abraçar,comumasóvista,umtodocomplicado;é istoumefeitodaunidade.Em
todasascoisasseprefereosimples,porqueéum.
Devepoisoactorfazerquantopossaporconservarnogestoessaindispen-
sávelunidadesemaqualénegadaaocorpohumanoagraça,eportantoabeleza.
Eutinhaumasasasbrancas
-447-
Talunidadeéfundadaprincipalmentenas leisdagravidade,asquaisexigemque
ummovimentoseexecutesimultaneamentecomoutro;porexemplo,todosterão
notadoque,noandar; sebalanceiamosbraçosalternativamenteemoposiçãoàs
pernas;seumbraçolevantaverticalmenteumpeso,ooutrobraço,porespontâneo
movimento,seeleva.Aobservaçãoindicaráoutrosinúmerosgestosqueigualmen-
teexigemoconcursodasoutraspartesdocorpo;equealiásparecerãoforçados,e
serãodopiorefeito.
Terminaremos,dandoumsalutarconselho.Aqueleactorquepornatureza
tiveragesticulaçãocontrafeita, acanhada,oudefeituosa,emvezdeprocurarpor
teorfactíciodaracçãoaosseusmovimentos,devepelocontrárioreprimi-los.Todo
sedevedaràdeclamação,procurandolevá-laaomaissubidograudeaperfeiçoa-
mento. Se chega a declamar com verdadeiro entusiasmo, se chega a vibrar sons
que partamdirectamente do coração; gestos involuntários lhe acompanharão as
palavras,eessesgestosserãoverdadeiros,naturais,expressivos,ebelos.–
HAYDN.
Homononperiit,sedperiitartifex.
CARTA1.ªHaydn,(nomesagradoeresplandecentequalsolnotemplodaharmonia!)
Haydn,quetantoamasaindavive,masah!quammutatusabillo!
Ao sair de Viena, da parte da cidade imperial de Schönbrun, encontra-se
próximoàportadeMariaHulfumatalhoàesquerda,–oqualconduzaoarrabalde
deGumpendorf.Emmeioseergueumadesertahumilde,edecentecasarodeada
de silêncio. Ali, e não como se acredita no palácio Esterházy, habita o autor dos
maisagradáveiseharmónicosconcertos.Aliviveodeusdamúsica instrumental,
umdospoucoseverdadeirosgéniosdoséculoXVIII.
Seentrardesaquelapacíficamansão,depoisdehaversubidoabreveepe-
quena escada, e saudardes a velha e risonha criadamaisnão vereis emmeioda
segundacâmaraqueumplácidoancião,sentadoemfrentedeumamesaengolfado
numpensamentoúnico,odasuacaducaexistência.Émisterquealguémovisite
paraserecordardoquehásido;entãopareceacordardeumprofundoletargo;um
docesorrisolheapontaaoslábios,umalágrimabrilhaemseusolhos.Anima-se-lhe
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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orosto,avozrecobraforça,conhece-vos,evosfaladesi,dassuasprimeirascom-
posições,edasúltimasquemaislhelembram,paratornararecairnoseumelancó-
licoehabitualtorpor.
EsteHaydntodoengenho,todoimaginação,queaosacordesdoseucímbalo
criavaportentosdemúsicaque lhevibravamemtodasas fibrasdocoração,esse
Haydndesapareceudomundo!…
Eistudooquepossodizer-vosdohomemcélebredequemcomtantodes-
velomepedistesnotícias,masconhecedorqualsoisdamúsica,eseutãoapaixona-
doamante,quepreferiscomoeu,Haydnatodososfamososcompositores,nãovos
satisfareiscomapequenarelaçãodasualânguidaexistência.
MereceisquevosfaleporumpoucodeHaydn,dequemacultaEuropahá
faladoporespaçode50anos,daquelecujamúsicaseouvedesdeoMéxicoatéCal-
cutá,deNápolesaLondres,edaPérsiaaParis.
Euvosrelatareinumasériedecartasquantoheipodidocolhersobreavida
destegrandesacerdotedaharmonia,nãosópormim,maspelaspessoasquemais
o frequentaramemdiversasépocas comosãooBarãodeVan-Swieten, omestre
Fribert,adiscípula,aamigadeHaydnMademoiselledeKutzbeck,omestrePichl,o
rabequistaBertoja,oConselheiroGriesinger,omestreWeigall,osenhorMartinez
seucopistafiel,emuitosoutros.
Quanto diz respeito a um dos poucos génios que com o desenvolvimento
dassuasfaculdades intelectuaissónoshãodadoconsolaçãoeprazer;etudonos
interessa: génio verdadeiramente grande, e dignomais que nenhumoutro deste
títulotãodesejado.
Muitosegrandescompositorescontava jáoParnasomusical,quandoveio
aomundonumaaldeiad’ÁustriaJoséHaydn,paidamúsicainstrumental.Seusan-
tecessoreshaviamamúsicavocal,comoabasedahumanadeleitaçãoauricular.A
instrumental naquele temponão eramuito cultivada, considerava-se geralmente
comoumaparteacessória,qualosornatosnaarquitectura,enumquadrodehistó-
riaaspaisagens.
Amúsicaeraumamonarquia,osoberanoeraocanto,eoacompanhamento
os vassalos: o génerodemúsicapuramente instrumental, esta repúblicadedife-
rentessonsunidostodosnaqual,cadainstrumentotemdireitoafigurar,apenasse
conhecianofimdoséculoXVIIporumaÓperadeLully,primeiroinventordasin-
Eutinhaumasasasbrancas
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fonia,chamadaouverture;mesmonestadominavaamonarquia,porqueenquanto
arabeca,aquemsomentepertenciaexecutaropensamentodoautor,tocavaapar-
te cantante os outros instrumentos a acompanhavam, como namúsica vocal ao
tenor,aosoprano&.Asinfoniaeraamaisdasvezesumaariatocadaemlugarde
sercantada.
_____________
TeatrosEstrangeirosMadrid–TeatrodoPríncipe–Aredomaencantada–comédiamágicaem4
actos,prosaeverso,porD.JoãoEugénioHartzenbusch.=Eisaquiumaprodução
emquenãotevepartealgumaainfluênciafrancesa,quetantohádominado,nestes
últimostempos,nosteatrosdetodaaPenínsula. Julgariaquemsónotítuloaten-
tasse–redomaencantada,–serestanovacomédiafilhaprimogénitadequalquer
daspeçasfrancesasasPílulasdodiabo,ouoSilfodeouro;poisnãoéassim,quea
comédiadeque falamosabundaemmérito literário, emcor local, emcenasque
nãodesmerecemdasmelhoresdosantigosdramáticoscastelhanos.
EmFrança,emesmoentrenós,parecequeseignoraopartidoquenacena
sepodetirardofantástico,quersejaencaradoemrelaçãoàfilosofia,aodrama,à
comédia,querseapliqueàsobrasdesimplescapricho.MolinaeGoëthesouberam
assazcompreenderquantosrecursosdaípodetirarotalentodoautor,eemduas
obrassedeparamcenasquepodempassarpormodelosnessegénero;emPortugal,
sealgunsfelizesresultadosseobtiveramporessemeio,foramquasequesomente
devidosaomaquinistaedecorador:nemaindadesseshájáquemselembre;vol-
temosnósàcomédiaespanhola.
Deveestapeçaasuaorigemaumatradiçãomaravilhosa:D.HenriquedeVi-
lhena,célebremarquês,quepassavaporbruxoporqueeradadoaoestudodasci-
ênciasnaturais,talreputaçãoadquiriucomseusprestígios,queocélebrehistoria-
dorMariananãoduvidaafirmar,que“tantoemD.Henriquepredominavaodesejo
desaber,queparasatisfazerseuantojoseentregouàmalditaartedabruxaria.”
NadadizMarianaacercadacrençapopular,quedáomágicometidonuma
redomacomo fimdetornaraosseusdiasda juventude.Historiadoresdemenos
notaconfirmamtodavia,e,quantoaovulgo,acreditamosque,aindahoje,hámuito
quemsenãoatrevaaduvidardoprodígio:sejamosnós,porumpouco,destaopi-
nião,eassistamoscomHartzenbuschàressurreiçãodonossomarquêsendiabrado.
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Todaapeçalibrasobreessesdados:D.Henriquedepoisdeterestadometi-
donasuaredomadesdeoséculodeFilipeV,acha-sederepentetransportado,com
todasasideiasecrençasdoseutempo,aomeiodobulíciodanossamodernacivili-
zação;enãocessade tropeçarnoserrose inovaçõesquedecontínuose lhevão
apresentando.Destaprimária ideiaprocedeumasériedesituaçõesnovase ines-
peradas,óptimoscontrastes,delicadasobservaçõesemuitascenasdeverdadeira
comédia. Aí semostra amoderna Espanha tão despida de seu antigo esplendor,
quefazdó.Aíavultaigualmenteadecadênciadaliteraturacastelhana,poisqueo
autor,oraempregandoofalardaantiga,oradamodernaliteratura,fazcompreen-
derpormeiodefelizesimitaçõesquãograndehásidoaqueda.–Actoresdramáti-
cos,dai-noscomédiascomoesta!
Paris–Continuamaserbemrecebidasnodiversosteatrosasseguintespe-
ças–L’Ouvrier,LechevalierdeS.Georges,LaChasteSuzannenoteatrodoRenasci-
mento,eCarlineoulafilleduregiment.
_____________
TEATRODES.CARLOSDomingo 17 de Maio – Ópera Catherine de Clèves – Dança Os Mineiros.
Segunda-feira18–ABenefíciodeJoãoCiríacoLenze.Ópera–CatherinedeClèves.
Dança–Orfeu.Depoisdo1.ºactodaóperahaveráumaaberturaaduasorquestras,
compostapeloSr.FranciscoAntónioNorbertodosSantosPinto.
Quarta-feira20–Omesmoespectáculo.
Sexta-feira22–OsegundoactodaGemmadeVergy–ObailadofinaldeOr-
feu.Ea2.ªrepresentaçãododramaportuguês–Tudoounada.
___________________
n.º25,de24deMaiode1840
LITERATURADRAMÁTICAEmqualquerrelaçãoqueseconsiderea literaturadramática, tantosúteis,
talimportânciaselhedistinguem,tãofecundaseprofícuasdiscussõesofereceaos
verdadeirosobservadores,que,semreceiodeexageração,podeafirmar-se,consti-
tuirestaliteraturaumdosprincipaisramosdosconhecimentoshumanos.–Abar-
Eutinhaumasasasbrancas
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cá-la em seu cosmopolitismo, possuí-la desde a sua remotíssima origem, seguir
passoapassooseudesenvolvimento,oravagaroso,oraousadoerápido,jáconsi-
derando,atragédia,jáanalisandoasátiraouacomédia…quelaboriosatarefa;mas
tambémquemina fecundíssima de não falível ciência! Quem alcançasse a tanto,
houveracertodevassadoosmistérioshistóricosdetodasasidades;leria,comoem
livro fácil, nas índolesde todosospovos; eosdramase comédiasdo seu tempo
seriamparaele–estranhoarúspice–asentranhasdavítimaque lhedessemco-
nhecidosos fados futuros.–Prescindamos,porhoje,doqueéehásidoodrama
paraamoral,paraa civilização,paraoprazer:nãocuremosaindadomérito,da
severasimplicidadedaantigatragédia;libertinagemouconcentradacríticadaco-
médiagrega;doautosacramentaloudacomédiafamosadosEspanhóis;dasguino-
las,autos,emourariasdovelhoPortugal,oudasrevoluçõesdramáticasdestenos-
sorevolucionárioséculo;não:–olhemosdemaisaltoparaoteatro,e,porquede
umasóvistanãopodemoscompreendertodasasespéciesdedramaconsideremos
primeiroacomédia;nãoabsolutamente,masemrelaçãoàhistória.
UmdosprimeirosautoresdramáticosdeFrançanãoreceoudeafirmarpe-
ranteaAcademiaque,seporalgumagrandecatástrofechegassemadesaparecer
dasuperfíciedoglobotodososdocumentoshistóricos,esóincólumeficasseuma
colecçãodetodasascomédiasfrancesas,essabastariaparasuprirafaltadetodos
osanais.Conquanto senãodeva tomaraopéda letraessahiperbólica sentença,
nempor issodeixa elade terporbase a experiência e a sã razão.Ninguémdirá
comverdadequeacomédiaconstituitodaahistóriadeumanação;masnãohave-
ráquemneguesuprirelaaoquenahistóriafalece;erepresentá-la,postoquemui
geralmente.
Começando pelas comédias de Aristófanes, vemos que até hoje nenhuma
temcuradodosgrandeseventospolíticos;mastodassãotestemunhasdoespíritoe
costumes públicos que foram causa desses eventos: calou a comédia os nomes,
porémnãodeixoudeescreverasmemóriasecontaravidadecadaum.
Quem,semqueleiaMolière,poderácompreendercabalmenteoqueforao
séculodeLuísXIV?Nenhumapeçadaqueleautor,semexceptuarmosofabulosoD.
João,selerá,semquesedescubraalgumacuriosaamostradoespíritohumanono
séculoXVII.Qualquerdessascomédiasvosrevelarámovimentodecostumes, fer-
mentação de opiniões sob a placidez aparente dessamemorável época. Que nos
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-452-
mostramascomédiasfrancesasdoséculodezoito?Abusosdetalento,descomedi-
dapretensão,ociosidadeefaustonasaltasclassesdasociedade,emolezadecos-
tumes…Eassiméacomédiaemsimesma,efeminada,presunçosa,eafectada,nu-
ma palavra, tal como a sociedade que representa. O teatro francês da revolução
pareceoferecer,àprimeiravista,umaanomalia;nota-sequenaescolado terror,
quandosenãodeixavasecarnoferrodaguilhotinaosanguequeotingia,eraotea-
trootemplodavirtude;tudoeramexemplosdeamormaterno,piedadefilial,edos
maissuaveseingénuossentimentosquepodemgerminaremcoraçõesvirtuosos:
lá se representavam,em Janeirode93, asmuidoces comédiasdeDemoustier; e
durante o processo de Luís XVI estava em cena uma comédia agrícola! – Como
combinartãodisparatadascoisas?…Porémdevereflectir-sequeessaênfasesen-
timentalqueostentavaoteatro,emmeiodosfurorespolíticos,eraareproduçãoda
mentirasocialqueafectavamosdiscursosdatribuna,eosprogramasdosfestejos;
humanidadeemfalas,atrocidadeemobras,hipocrisiaincrível?
Umaanomaliadeoutrogéneroparecemofereceraspeçasdosautoreses-
panhóis;ledeascomédiaseosautosdeCalderóneLopedeVega,ficareismaravi-
lhadosdacontradiçãoquedeparareis;nasprimeiraséahonraestimadacomojóia
domaiorpreço,devendoaelasacrificar-se,bens,felicidade,eaindaossentimentos
maisdocoração;ahonraémaisqueoamor,queaamizade,emuitomaisqueo
parentesco.LádeixaD.Guterresaesposaexangueporumasimplessuspeitadelhe
haverelamanchadooseubemmaisprecioso!Elmedicodesuhonra,pobreespa-
nhol,queemteuorgulhosopundonorsacrificasteumafrívolamasinocenteefor-
mosíssimacriatura.Eelpintordesudeshonra?Etodasasoutrasproduçõesdeste
génerohojetãoapreciadas,eaindahápoucotãodesconhecidasouolvidadas?Em
todashonra,emtodasbrio,timbre,costumesromanescos.Masarmai-vosdepaci-
ência, aguçai avista, e entretei-vospormaisumpoucocomaspéssimasedições
espanholasdoséculodezassete,abriumlivrodeautossacramentais,erecaiavos-
saescolhasobrealgumdosdoisautoresdequeacimafalámos;–qualserávossa
surpresa!–LopedeVegavosclamará:–Maldita,malditasejaparasempreahonra;
infestainvençãodoshomens,quesómiraemtranstornarasleisdanatureza;des-
graçaspesemsobrequemteinventou,honramaldita!!!etambémCalderónaacon-
selhar-nosquedemosdemãoàhonra,queadesprezemos?–Taisproduçõespode-
rãoacasoter-seporespelhosdecostumes;representarãoelasomododepensar
Eutinhaumasasasbrancas
-453-
castelhanodessa época; não envolvemelas antesmanifesta contradição, resulta-
dosambíguos,edondenadasepodeconcluir?–Não:essasproduções,comédias,e
autos,mostramoqueeramosespanhóisnotempoemqueseusautoresasescre-
veram:nãosedácontradição,masquerência;nãosecolheabsurdo,masverdade.
AscomédiasdeCalderóneVegamostramoespanholcavaleiro;osautosdosmes-
mos grandes autoresmanifestam o espanhol religioso, ou antes supersticioso, o
espanholdosSan-benitos,daspromessas,dasperegrinaçõesaSantiago:ascomé-
diasmostramocastelhanonasimplicidadee franquezadoseucoração,osautos
ostentam-noqualelehaviadeusoaparentar-se;emsuma,comédiaseautosperfa-
zemporsuacombinaçãoomaisperfeitoecompletoquadrodocaráctercastelhano
decertaépoca.–M.PhilarèteChasles,nasbrilhantesprelecçõesquedeuaouvirno
AteneudeParisexprimiu-se falandodeCalderón,pelo teorseguinte:– “Sesupu-
serdesoutroscostumesquenãoosespanhóis,osdramasdeCalderón ficarão in-
compreensíveis.Paraqualqueroutranacionalidadehaver-se-iapor ferozessa tal
forçadehonra:condená-la-iaaFrança,comoopostaàsleisdobomsenso;Inglater-
raareprovariapormotivosdeinteresse;emseuspoemasherói-cómicosahouvera
idealizado amui faustosa Itália. Só àEspanha cavalheirosa e católicapodecaber
semelhantedesenvolvimentodepaixões,ideias,esentimentos…&c.”
Nãoprosseguimosporhojeneste assunto, deixandoparaoutra vezoque
acercadestamatériatemosaacrescentar,encarando-aemrelaçãoàliteraturados
outrospaíses:concluímosapontandoumargumentoquenosocorreemabonoda
opiniãoqueemitimos;acomédiagregano-lasubministra.EmtemposdeAristófa-
nes,emtemposdopaganismorepresentavam-seemAtenascomédiasqueridicu-
larizavamosheróiseosdeuses,comédiassatíricasparodiavamasmaisbelastra-
gédiasdeEurípides;outrascomédiasdavammofaàrepúblicadeProtágorasede
Platão.Quegrandecoroláriohistóricoadeduzirdessasmuiaplaudidascomédias?
–Incredulidade,perdiçãodemoral,profundadecepçãonoânimodopovodeAte-
nas.
__________________
TeatroInglêsÉsemdúvidaMacreadydossucessoresdeKeanomaisilustre;masquanta
diferença,quãograndeintervaloentreKeaneMacready!Nuncaviraacenaespíri-
tosmaisopostos,ediversosumdooutro;háentreelestodaadistânciaquesepara
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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ainspiraçãodahabilidade:conviriamaisàtragédiaqueaodramaotalentodeMa-
cready.–Porextremodesdenhosoeseveroparaseamoldaràsmiúdascircunstân-
ciasdarealidade,certoquedeviaderepresentarcondignamenteosheróisdeSófo-
cles. Distinguindo-se em realçar pela pureza das atitudes os sentimentos de ex-
pressão simples, sabe ele dar, pormeio de apropriado gesto, inesperado calor a
palavras,queporventurasemistopassariamdespercebidas:compraz-senamajes-
tadedasuapantomima,erepudia,comoindignos,osmovimentosvivoseapressa-
dosdequenãopodeprescindirodrama.Macreadyrepresentariaadmiravelmente
orepertóriodeAtenas,especialmenteoteatrodeSófocles;porqueÉsquiloéáspe-
ro,eEurípides lacrimosodesobejoparaoseurostoescultural.Devivacidade ir-
landesanadatemele;eaoreparar-lhenasatitudesegestos,custacrerquepassas-
seosprimeirosanosentreoscompatriotasdeO’Connell:nota-se-lheumaespécie
dereprimidaaltivezquerarasvezesencontrareisnosfilhosdaIrlanda.Osorado-
resdoparlamento,oscantospopularescoligidospormissBrookes,nosdesacos-
tumaram inteiramente de achar no génio irlandês a simples majestade que das
feiçõesdeMacreadytransparece.Cuidariasterelemedodeperturbarabelezapor
indiscretosmovimentos;eadorar,contemplando-a,asuaimagem;tãograndelheé
orespeitopelasimplicidadeharmoniosadasatitudes.
Porcertoqueerabemprópriadatragédiagregasemelhantenatureza;com
amesmadignidadetratamSófocleseFídiasapalavrahumanaeomármoredePa-
ros:adivinabelezasepropuseramporalvoSófocleseFídias,eparaseremgrandes,
tudoenvidaramempareceremsímplices.Repeliramambos,comoindignosdasua
arte,ossentimentos,que,pormuitoenérgicos,fizessemdesconcertosaorosto.–É
absolutamentedamesmaopiniãoMacready, e com inflexível severidade se veda
tudooquepossa lembrara comumrealidade;elevando-se constantementealém
davidaordináriapeloandargraveecompassado,pelassossegadasalteraçõesda
fisionomia,vagarososmovimentos,emajestosocompordoslábios:parece,segun-
doalegendadesuapátria,girar-lhenasveiasmilésiosangue.–Estudadocomse-
veridadeeconfrontadocomosoutroscontemporâneos,diriasserMacreadysingu-
larexcepção;denenhumdepende.Paraocompreenderbem,eapreciá-locomjus-
tiça,devíamoscompará-locomaantiguidade;ésónaantiguidadequeseencontra-
riaotipo,cujomodeloescolheraMacready.
Eutinhaumasasasbrancas
-455-
Mas será conciliável como dramade Shakespeare semelhante tipo? Seria
possívelnaturalizarasimplicidadedapantomimaantiganoteatroinglêscujoreié
Shakespeare? – Reduzir às linhas harmoniosas da estatuária osmovimentos de-
sordenados da paixão, não é irrealizável tentativa? – Não julgamos conveniente
paraacenainglesaotalentodeMacready.Oteatrofrancêsdetodososteatroseu-
ropeusoúnicoquelutouseriamentecomoteatrogrego,seriaparaeleocasiãode
brilhante triunfo, podendo encontrar emCorneille eRacine a tragédia tal qual a
concebera;maisesculpidaqueescrita,eencerradanos limitesdobaixo-relevo;o
engenhocastelhanoefrancêssujeitosàsleisdagregasimplicidadehãoproduzido
fábulastrágicasdignasporcertodeprofundoestudo,condenáveisseasencaramos
como imitaçõesdosantigos temposmascapazesde lutargloriosamentecontraa
discussão, senelas sóquisermosencontraraexpressãodos sentimentoseternos
dequesecompõeanaturezahumana.Nãofaltamsentimentostaisnosdramasde
Shakespeare,mastomamelessobapenadopoetainglêsformadiferente:nãoéa
estatuáriacomsimétricasdobras, traduzindoanudezsemamostrar;éapintura
comtodaasuavariedadedecores,ardidacomoRubens,radiantecomoVeroneso.
Nãopoderiaconviramesmapantomimaaestesdoissistemasdramáticos:despre-
zaocinzelmuitascoisasquenapinturafacilmenteseadoptam;porqueatelacon-
servamaisdisfarcequeomármore.MaisavantenanaturezahumanavaiShakes-
pearequeSófocleseRacine;nãotem,comoestesabelezaantiga;porémmaisdo
queelespossuiabelezadaenergia.
Não é para admirar que tenhaMacready para Sheridan Knowles especial
predilecção:nãolhesendopossívelobteratragédiagrega,ouafrancesa,énatural
queprefiraasobrasdramáticas,que,conquantosenãoaproximemdaquelesanti-
gostipos,seapartamdecididamentedeShakespeare.Tomandoocenáriocomoum
bastidor,ondepodiabordaroquelheaprouvesse,nenhumaleiimperiosacontra-
riaoseuamordaslinhassímpliceseharmoniosamenteordenadas.Comotêmpou-
caimportânciaossentimentos,quelhecaberepresentar,eodesenvolvimentoda
acçãoéasmaisdasvezessubordinadoaoefeitocénico,Macreadyseadaptaauma
tragédiadeSheridancomoummantoflutuanteeamplo,quearrastaouapanhaa
bel-prazer.ApreferênciadeMacreadyporSheridanKnowles longedeserhome-
nagemaopoeta,apenaséprovadasagacidadedoactor;nãosevotaaopoetapara
otraduzir,mas,comodócilpalafrém,otomaaseuserviço.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Depoisdeterpercorridoasgrandescidadesdostrêsreinos,dizem,quevai
Macreadyabraçaroestadoeclesiástico,consagrando-seespecialmenteàprédica;e
porventuraobteráelenestanovacarreiramaisglóriaepopularidade,quenaou-
tra; porque não tem a prédica asmesmas exigências que a cena; o evangelho é
maissimplesqueShakespeare.
CarlosKembleregressandodaAméricadoNorte,deuaoteatrodeHaymar-
ketumasériederepresentações,ondenãominguavagente,masquefizerampou-
co ruído na imprensa e nos salões. Diz-se que não ajudavam a Kemble trágicos
condignos;masoquesucedeaosactoresdeprimeiraordem,quevãoàsprovíncias,
provabemquenãoésatisfatóriaestaexplicação.Averdadeéqueopúblicoinglês
já não tem por Carlos Kemblemais que lânguidas simpatias. Representa ele ex-
pressamenteastradiçõesdamelopeiatrágica;etêmhojebempoucaimportância
ascoisasliteráriasnaInglaterraparaquedevagrandementeinteressar-seopúbli-
coinglêsemtradiçõesdesemelhantenatureza.
HaveriaporémsensívelenganoemconfundirKemblecomostrágicosque
emFrançarepresentamamelopeia.CarlosKembleédotadodenotávelinteligên-
cia; compreende todaadignidade, extensão, edificuldadesdaartequeprofessa:
estudaseriamenteecomrarasagacidadetodosospapéisquetemderepresentar;
mas o seumodo de conceber a tragédia concilia-se tão pouco com Shakespeare
comoapantomimaesculturaldeMacready.–Kemblequerporforçadeterminaro
carácterprosódicoemusicaldeHamleteRomeu;econquantosejaimpossíveldes-
conheceragraçaemelodiademuitaspáginasdeShakespearepode-seafirmarsem
receiodeimpiedade,quenãodavaelemaisquesecundáriaatençãoàparteprosó-
dicadapoesia;eapreciandocomfiníssimadelicadezaovalordeumaimagemou
semelhança,davaapenasaomusicaldaspalavrasmínimapartedotempo.Nãolhe
permitiamosdeveresdecomedianteedirectortrabalharcomopoetacortesão.
Vaiumpassodamelopeiatrágicaàcopla;econtudoempregaKembleome-
lhordesuasforçasadesenhartodososcontornosdeumperíodo.Insistindosobre
asmenoressílabasdeumafrase,negauminstantederepousoàcansadaatenção
do auditório; e articulando commuita clareza todas as palavras como se todas
houvessemomesmovalor,querquetodooteatrosaibadecortodasaslinhasque
há pronunciado: e então que acontece? Por nada querer sacrificar no seu papel,
sacrifica-o inteiramente.Comonãoépossívelconservarosespíritosdosespecta-
Eutinhaumasasasbrancas
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doressempreatentos,havendoemtodaumanoitedistracçõesinevitáveis;aspar-
tes culminantes do papel corremperigo de não ser notadas; enquanto as partes
secundárias,solicitandoincessantementeosaplausos,cansam,semomover,opú-
blico.Porcertoquenãoéconvenienteapresentarporconfusasmassasotodode
umpapeltrágico;assimcomoéumdeverdoactoriniciaroauditórionasdelicade-
zasdosversosquerecita;porémestedevertemlimites:emHamletporexemplo,
quandoCarlosKembledizomonólogo:Tobeornottobe.–multiplicaaspausasa
cadaversodetalsortequediriastemerdedeixarocultaumasóbelezadeestilo.A
maneiraporquerecitafazlembrarumaliçãodedeclamação;parecequeestálen-
do Shakespeare numa reunião de mancebos estudiosos, ensinando-lhe todas as
belezas retóricas do ilustre trágico; prepara-se cada qual a escutar engenhosos
comentáriosacercadostroposempregadospelopoeta:–oprofessoréhábil,maso
actordesapareceu.
Entre todas as peças de Shakespeare, presta-se Hamlet excelentemente a
semelhantetentativa;comosevãoamiudandodecenaparacenaospensamentos
filosóficos,pareceàprimeiravistaqueaprimeiraleidocomediantedevesercha-
mar a atenção sobre cada um destes pensamentos: a reflexão e perspicácia têm
ondeseexercitaramplamentenestatragédia,queétodasubjectiva,comodizemos
alemães;masondeShakespeareporventuranãopôsmetadedas ideiasnelades-
cortinadasporGoëtheeTilke.
CarlosKemblemostranaexecuçãodetodosospapéisabsolutaprevidência:
aseismesesdedistância,enumdadopapel,ématematicamentecomparávelasi
mesmo.Não sedesviauma só linhado texto inflexívelque se lhehá gravadona
memória:determinando,omelhorquepode,oquejulgaverdadeirainteligênciado
poeta,vê-lo-eisescolheraoitavadavoz,circunscreveraextensãodosmovimentos;
poréma letrada sua resoluçãoé invariável e sagrada:–aderradeirapalavrade
seusestudostorna-se-lheimperiosavulgataquenãopoderiaviolarsemimpiedade.
Nãoacreditamosqueabsolutaprevidênciapossaregerimpunementeaarte
dramática.Énavidaordináriaporventuramuitoboasorteocomplementodeuma
vontadeúnica:–aabdicaçãodavontadeéoquechamamfelicidadeasalmasbran-
das e pacíficas;mas não correm as coisas domesmomodo no exercício da arte
dramática:aperpétuarepetiçãodosmesmosgestose inflexõesacabaporgelaro
papelmaisperfeitamenteconcebido.Nãoaconselharemosaninguémoimproviso;
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-458-
queéeleapostainsensata,eorgulhosocapricho;masfolgáramosdeveremqual-
querpapelduaspartesdistintas;umaparaasrecordações,outraparaainvenção.
Emboraa tramageraldeumpapelsejadeantemãodeterminada;eseja também
permitidoaoactorinventar,aomenosparaalgumapartedotecido,novasfiguras;
podendo,semcoimadeaventureiro,exerceraomesmotempoamemória,eaima-
ginação.Sereduzirdesamemóriaaartedramática,perderátodaaacçãosobreo
público.
---------------
HAYDN.
CARTA1.ª(conclusão)(NonossoantecedenteNúmerocomeçámosapublicaratraduçãodascartas
deumcontemporâneoecompatriotadograndeHaydn:nessascartassetratama-
gistralmenteda artemusical, aplicada especialmente às composiçõesdo sublime
maestro;julgamosqueosnossosamadoreslhesdarãoodevidoapreço.)
-----///-----
Taleraaantigamúsica instrumentaldaGréciaquedepoispassouparaos
Romanos;eninguémousaria inventarparaos instrumentosumamelodiaoposta
àquela,quehátantosanosreinava:leia-seoqueacercadistodizKalkbrenner.
“Les Grecs etoient trop scrupuleux observateurs du rythme, dumetre, et du
genre caracteristique, pour supposer qu’ils eussent jamais consenti que lamusique
instrumentaledevintautrechosequ’uneimitationfroideetuniformedelamusique
vocale.”–Hist.delamusiqueparKalkbrenner,pag.175.
AntesdasinfoniadeLullynenhumaoutramúsicainstrumentalseconhecia
naEuropa,senãoaqueeraindispensávelàdançaeaindaestaordenadademanei-
ra,queumdosinstrumentostocavaamelodiaeosoutrosselimitavamaoacom-
panhamento. Em Itália nesta tão imperfeitamúsica, entravammuito poucos ins-
trumentos,porquenaCeiadeS.JorgedeCaliari,enoconcertopúblicodeGeorgine
apenastocavamosseguintes:–viola,alaúde,flauta,saltérioeumpequenoinstru-
mentodequatrocordaschamadobasseto.
Queria-seumamúsicaestrondosa, acrescentava-seonúmerodosmesmos
instrumentoscommaisumatrompa.Nestemesquinhoestadoseachavaamúsica
instrumental,enquantoqueavocaltinhaaprimazia.Nãofalodaquelesimperfeitos
instrumentos,dequeusavamostrovadoresprovençais,taiscomoflautapequena,
Eutinhaumasasasbrancas
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gaitasdefoles,guitarras,címbalos&c.&c.equeacabaramnoséculoXV:aorques-
tratomouumanovaformanoséculoXVII.
TornandoàinfânciadamúsicadireiqueainvençãodeLully,conquantofos-
seadequadaaoseuobjecto,eprópriaparaabrircompompaumespectáculotea-
tral, não foi imitada porque amúsica vocal era tudo. Poucas foram as sinfonias
compostasemItáliaparataluso.UmadeLullyfoiexecutadaemdiversosteatros
aomesmo tempo, no princípio demuitas óperas dosmelhores autores, sempre
algumdelescuidasseemaumentá-la.Oufosseporqueseavaliasseempoucoogé-
nerodetaiscomposições;ouporqueemmuitoseestimassemasdeLully,ninguém
sejulgavacomtalentodeoigualar;ocertoéqueaouverturefrancesaeraaquese
tocavanosnossosteatrosquandonelesressoavamasdivinasóperasdeVinci,de
Pergolesi,deLeo,eoutros.OvelhoScarlattifoioprimeiroquecompôsumaouver-
ture,etiveram-noporumgénio;outrosnãomenosfelizeso imitaram,tais foram
Peres,Porpona,eantesdestesCorelli,Carcano,Bonincini&c.mastodasestaseram
escritascomoadeLully.–Sammartini,ePalladini, foramosprimeirosqueintro-
duziramos andamentosdediversosmodos.Haydn começouadar àmúsica ins-
trumentalumcarácterinteiramentenovo,econquantoCorellihouvessecomposto
quartetos, tercetos,eduetos,eramestascomposiçõesporextremoescolásticase
sujeitasatodoorigordafuga.
BastaouvirumquartetodeGusmanparaformarumajustaideiadopensa-
mentofrioeausterodamúsicadaqueletempo,novolverdoqualsepreparavaa
apariçãodaqueleastroquedeviaalegrartodoohorizontemusical.
QuandosepensanomesquinhoestadodamúsicanaépocaemqueHaydn
começou a escrever, e se reflecte na grande perfeição a que por ele foi elevada,
tendoapenas25anos;forçaédizerqueHaydnfoioinventordestegénerodecom-
posiçõesaquesechamousinfonia:comrazãodisseGretrinassuasmemórias,que
eranecessáriotermaisgénioparacomporumasinfoniacomoasdeHaydn,doque
para uma ópera inteira. E em verdade quantos hão escrito belíssimas óperas, e
ninguémumasinfoniacomoasdele?Gretridáumarazãoaisto,evemaserquena
óperaopoetasubministraaocompositordamúsica imagens,afectos,caracteres,
cores, e ideias; enquanto que a sinfonia é toda imaginação. Pode considerar-se
Haydncomoogéniomaisoriginaldoseuséculo,porque foio criadordamúsica
instrumental.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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NãodigoqueantesdeHaydnnãosehouvesseescritomúsicainstrumental,
porquemuitosautoresoprecederam;masseuestilo sublimeeverdadeiramente
perfeitofoidetodooriginal.
Compare-seamúsicainstrumentaldetodosquantosantesdeHaydnescre-
veram,e se conheceráaverdadeiraasserção.ComoColombo,Haydnabriucami-
nho a um novomundo quemuitos imaginaram existir, mas a quem nenhum se
atreveu:equeHaydnchegouàmetaoprova,nãosóoentusiasmoque inspirou,
masahistóriadequantosoimitaram.Haydnésempreperfeitamenteclaro,enér-
gico,natural,harmoniosoeregular,istoemmeiodavivacidadedeideiasaindapor
outronãoconcebidas.Deve-sepoisestudá-loeadmirá-lo;assimcomosódelese
podedizer.–“Liberapervacuumposuivestigiaprinceps.Nonlienameopressipede”
Persuadidodestaverdadevosdeixoporhojeparaouvirumquartetodeste
grandeautor,dequemmaisdeespaçovosfalareinoutracarta.
--------------
ACTRIZESDAALEMANHA
LuísadeHolteyAindatodaaAlemanhaselembradaactrizaquemtãocedoestrelouauréo-
ladeglóriaedemorte.Pobremulher,alquebradapeloestudo,exauridapelaarte!–
pobreflordefinhadapelaardenteatmosferadoteatro,seusdiasdetriunfoselhe
volveramcantadosecelebradossempre,eamortelhaprantearamtodosospoetas
deVienaeBerlim.–Umlivroquepoucodepoissetornouraridadeliteráriafoien-
tãopublicado.VereisneleoretratodeLuísa,omaisbeloegraciosoretratodemu-
lherqueimaginarsepossa:–olhosgrandescheiosdedoçuraeexpressão; lábios
quesorriemcomgravemelancolia:eumafronteondeseespelhacandorangélico,
eunscabelos, cujosanéis tãoondeadosrepresaecoroaumacapeladepervinca.
Oh!maisnãobusqueisemquelivrojáencontrastesoidealdesterostonobreesu-
avíssimo!–nãooindagueis;porquenãofoidecertosenãoemcontodemortosou
cantaresdeminnesinger!–Lereisdepoisasuabiografiafeitaemtercinas,sonetos,
equeixososjambos:éescritaporseumaridoquerecordacomamargadortodasas
circunstânciasde sua vida; escreve versos e lágrimas.Vêmdepois os cantosdos
poetasquetantoahaviamaplaudidonoteatro:todoslheofertaramtributos,todos
lhevêmsobreotúmuloesparzirfloreseramosdecipreste.–ParaescreverdeLuí-
saHoltey não é necessáriomais do que atentar a essa epopeia que lhe fizeram:
Eutinhaumasasasbrancas
-461-
contou ingenuamente seumarido todos os sofrimentos que Luísa padeceu; e os
poetas afiançaram seus tributos e sucessos. Era uma pobremenina, nascida em
Vienaem1800,semfortunaesemapoio.
NolargodeSantoEstêvão(dizopoema)veriasumapobrecriançamalves-
tida;semcuidadoscontemplamsuasvistasessagenteadereçadaebelaquepassa;
ecaminhaelaparaaigreja,nãoousandodizerumasópalavra:porémoolharsua-
veemodestodeLuísaganhamaconfiança;maisdoqueumapessoalhedepõena
mãozinhaumaesmola;eelacorrecheiadealegriacompraralgumacoisaparami-
tigarafomeàmãe,quejaznumleito.
NaidadedeoitoanosumaactrizdeViena,madamePetrilloarecolhenasua
casa,dá-lhemestres,eadestinaparaoteatro;epassadostemposquandoalinda
jovemsubiusobreacenafazendoaindapapéisdemenina,nãofoipossívelsabero
quemaissedeviaadmirar,seainteligênciaquedesenvolvenacompreensãodeles,
seasensibilidadecomqueosexprimia.Em1814vemLuísaaBerlimtendojá,con-
quantomuitojovemainda,reputaçãodetalentos;acabandoentãodeseformarnas
escolasdeBethmann,eVolf,actoresosmaiscélebresdoteatroalemão.Crescendo
cadavezmaisasuafamatodosaqueriam:dehámuitoqueoteatrodeBreslaua
reclamava;eaírepresentouelaem1821,casando-secomCh.deHoltey,quecomo
Garrick,eIflanduniuàvidadeactoradepoeta,recebendomuitasvezesnamesma
noiteduassalvasdeaplausos,umapelodrama,quehaviacomposto,eoutrapelo
papelqueneledesempenhava:belasepoéticasnúpcias,asdestes jovens inteira-
mentedevotadosàarte!Representandoambosnamesmanoiteenomesmoteatro
nãohaviaaplausos,nãohavia floresquebastassema satisfazeroentusiasmodo
público:enofimdoanoei-losqueiamdecidadeparacidade,elaarepresentaros
seuspapéismaisqueridos;eeleacontarcomumentusiasmodeartistaodiaem
queaconhecera,odiaemqueatinhaamado.
“Oh!comosechama,comosechamaolivro,ondevoudecontínuoaprender
asabedoria,ondevounadorbeberpalavrasdeconsolação;enaalegriapalavras
quefalamnaalma?Esselivrocomoqualomeuhorizonteébemmaislargo,esse
livroondeestãoescritososmeussonhosdeoiroederosas,eosmeuspensamen-
tosdeamor;esselivrooh!tuosabestusó;esselivrosãoteusbelosolhos!”
Os papéis em que Luísa obtinhamaior sucesso eram os de ingénua: o de
Clara,aternaedoceamantedeEgmont;odeMargaridadapobrevítimadeFausto;
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-462-
odeMariananoirmãoeirmãdeGoëthe;masespecialmenteodeCatherinedeHei-
lbronn–suaveepoéticacriaçãodeH.deKleist.CadavezqueLuísasemostrava
nessapeça,eraumentusiasmoindizível;opalcojuncava-sedeflores,eosaplausos
abalavamtodooteatro.Umanoite,quandosaiudarepresentação,achouacarrua-
gem cheia de capelas de flores;multidão imensa a esperava com tochas acesas,
cercaram a carruagem e a acompanharam até sua habitação com estrepitosas
aclamaçõesecantos.
Eratodajuventude;sóvinteedoisaindacontava,brilhantevidaselheabria
noporvir…masnãofoi longoogozardela.Poucotempodepoisdehavercolhido
tãograndestriunfosseapoderoudelaumafataldoença;foidefinhando,esofrendo
atéqueveioamorte.Emsuadorescreveuoinconsolávelesposoasseguintespala-
vras,quebemmostramasaudadequeLuísalhetestou.
“Nacruelhoradaagoniavouparacolherseuúltimobeijo,emeuslábiosse
imprimemnosseuslábiosesmorecidos.
Seusolhostêmolhardemoribunda,masaindaexpiramamor;adébilmão
jánãotemforçasparaapertaramãodoesposo.
Oúltimosuspirolhesussurrajáentreoslábios;eaindadesabrochaumsor-
riso…purafoisuavida.Adormece;nãomorre.Nemestertor,nemânsias,nemes-
tremeções–anjodealvuraesemparbeleza.
Estáconsumado:masaindanão,aindaumvolverdeolhossobreaqueleros-
tonobre.Vinde,ófilhos,vinde:vedeessamãequehápoucovoscolmavadecarí-
cias, em balde a chamareis, que mais não tem de responder a vossos vagidos:
adeus!–Trêscoroassobreoseusepulcro,umadeloiroparaaartista,umadeflo-
resparaamãede família,outradeperpétuasparaaquelaquenuncapoderemos
esquecer.
Secam-se as lágrimas, calam-se os lamentos, retira-se da fronte o véu da
aflição. Aquele que vimos sepultado em tristeza podemostrar-se alegre, alguém
porventuraoveránomeiodasfestas,–masquandooseucoraçãoparecedilatar-
se,entãoéqueelejazofendidonamaisintensador.Éoquemeháamimaconteci-
do.Procuroàsvezesnomeiodaminhaalmaumafaíscadevida–ei-laquebrilha,
masapaga-se,desaparecelogo.
Filhosdesventuradosideporessemundo:buscaiumacasamaterna.
Eutinhaumasasasbrancas
-463-
Deusvosencaminhe;eapieda-sedevósanobrematronaqueserviudemãe
avossamãe.
E tu, filhaquerida, tumoverásocoraçãodequemteconsiderar,porqueo
teusemblante,écomoosemblante,daquelaporquemsechora!
Parti!epassadosanos,encontrareistalvezumhomemdesconhecido…será
vossopai!”
LuísaHolteymorreuaos28deJaneirode1824.Seumaridoescreveuumli-
vrodeelegias,aquenoshavemosreferido.Muitosamadoresdeteatronãoquise-
ramtornaraverCatherinedeHelbronn,pornãoserjárepresentadaporLuísa.
--------------------
AFESTADOCONSERVATÓRIOContávamoshámuitoqueoConservatórioDramáticodeLisboa,parasole-
nizar oAniversáriode SuaMajestade aRainha, nãoo tendopodido fazernodia
competente,preparavaumfestejopúblicoparaalgumanoitedepoisdePáscoa.
Sabemosagoracomcertezaeanunciamoscomsatisfação,quenanoitedo
dia29para30,efectivamentehá-deverificar-seestefestejoquetantacuriosidade
einteressegeralmentetemexcitado.Foifelizaescolhadanoite.Édelicadaalem-
brançadefestejaraRainhanumdiaemquetambémécelebradooNomedeSeu
AugustoEsposo.EstecumprimentodoConservatórioaoseuPresidentedeve,com
justa razão, ser avaliado pela generosa Protectora das nossas artes que oxalá se
digneestenderasuamãobenéficaaonossorenascenteteatro.
Que só o Conservatório pode regenerá-lo verdadeiramente, estamos nós
convencidos;econtamosquenestemesmofestejoeledarádissoprovasirrefragá-
veis.
ConstaráaFesta,segundoestamosautenticamenteinformados,detrêspar-
tesdistintas.
Naprimeira,quetodapertenceàEscoladeMúsica,teremos,alémdaintro-
duçãodocostume,umaOperetaoupequenodramaalegóricoemmúsica,composto
peloProfessordoConservatórioXavierMigone(poesiadoProfessorPerini)oqual
é executado todo, música vocal e instrumental, por alunos do Conservatório de
ambosossexos.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-464-
Segue-seaesta1.ªparte,como1.ºintervalo,umconcerto.
A2.ªparteincumbeàEscoladeDeclamação,cujosalunosdeambososse-
xos representamumapequena comédia histórica, original portuguesa, expressa-
mentecompostaparaestedia,quetemportítuloAMOREPÁTRIA.ODramaéfun-
dado no célebre episódio da revolução de 1640, dos dois filhos da Condessa de
AtouguiaD.FilipadeVilhenaquesuaprópriamãearmaporsuasmãosparaare-
volução.
Nãoestamosautorizadosadizer,nemtalvezsabemos,onomedoautorda
peça;sópodemosasseverarcomcertezaquenãoépessoaestranhaaoConserva-
tório.
Seguem-seo1.ºe2.º intervalos; sendoumdelesumapeçademúsica,eo
outroumacenatrágicaoriginalmentecompostaeexecutadaporumalunodaEsco-
ladeDeclamação.
Pertencea3.ªparteàEscoladeDançaeMímica, cujoDirectoreprimeiro
ProfessorFranciscoIorkfelizmenteaproveitouasinspiraçõesportuguesasquetão
propriamentelheforamdadas,compondoumBAILETEOUDIVERTISSEMENTque
temportítuloeassunto–ASTRÊSCIDRASDOAMOR-,históriadefadaspropria-
mentenacionalequetantoseprestaàs ilusõesegraciosasapariçõesquepedea
dança,equetantomaisagradamdoqueesseshorrorososassuntosdemortes,de
crimesedeatrocidadesdetodoogéneroquehojeéfeiamodafazerdançarnotea-
tro.
AmúsicadobaileécompostapeloProfessorJoãoJordani.
Esperamoscomalvoroçoestanoite játãopróximaemquetudoistohave-
mosdeverfeito,compostoeexecutadoemPortugaleporPortuguesesquetanta
esperançanosdãodeque,umdiacedo,teremos,semtantaprecisãodemendigar,
osmeiosdedarespectáculosdecenteseprópriosdeumanaçãocivilizada.
Encheríamosumvolumesetivéssemosdecontarasdificuldades,osemba-
raçoseasmiseráveisintrigasdetodoogénero,quesetêmmovido,paraimpedir
queoConservatóriofizesseestecumprimentoaSuasMajestades,edesse,aomes-
motempo,provatãobrilhanteeinquestionáveldasuautilidade,edequeétalvez
estaaúnicainstituiçãodasnovamentecriadasquedáfrutosquesecolham,graças
aozeloincansáveleàpasmosapertináciadequemadirige.
Eutinhaumasasasbrancas
-465-
Esperamospeloresultadoparaoexporfielmente;edeixaremosaopúblico
ofazerasreflexõesquenaturalmentefará,equenóssóapontamos.
Depoisdeváriosprojectostantasvezesmudadospelassobrevenientesdifi-
culdades,fixou-seolugardofestejonoteatrodoSalitrequesuaproprietária,ge-
nerosaegratuitamente,pôsàdisposiçãodoConservatório.
IgualofertafizeraodistintomembrodomesmoConservatóriooSr.Conde
deFarrobo,doseuteatrodaruadosCondes,queporcircunstânciaslocaisnãopo-
deaceitar-se.SuaEx.ªporémfranqueoucavalheiramentetodososmeiosteatraisà
suadisposição,quenãocoadjuvarampoucoosdoConservatório.
AVISOHavendodesofrerconsideráveisalteraçõesoplanodoJornaldoConserva-
tórionoquedizrespeitoàsuapartematerial,modelando-sepelosmelhores jor-
nais literários de França, e enriquecendo-se quanto o possampermitir osmeios
que oferece esta Capital; – osRR. participam aos Srs. assinantes, que por algum
tempo,omaisdiminutopossível,seinterrompeasuapublicação;equenopróximo
domingo lhes será distribuído gratuitamente um Suplemento dando notícia das
festasdoConservatórioquehão-deterlugarnodia29docorrente.
__________________________
Suplemento,de5deJunhode1840
AFESTADOCONSERVATÓRIO,
PELOANIVERSÁRIODES.M.ARAINHA.
NoDiadoNomed’El-Rei
OS.D.FERNANDO.
===§===
IDomingopassadoanunciámosospreparosquesefaziamparaestefestejo,
quemuitasdificuldadese embaraçosmateriais, sempre recrescentes, tinham ido
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-466-
espaçandodesdeoseuprópriodia,odosanosdeS.M.ARainha,atéque,pordeli-
cadaefelizlembrança,sefixouparaodoNomedeSeuAugustoEsposo.
Desdeoprincípiodesta instituição,S.M.ARainhaSeTinhadeclaradoSua
Protectora;eemJaneirodesteanoSeDignaraEl-ReiaceitarapresidênciadoCon-
servatório,paraqueforaEleitoporaclamaçãodetodososseusmembros.
AlémdosmotivosgeraisdeamoredevoçãoanossosPríncipes,haviapois
empenhode gratidão, que o Conservatório procurou satisfazer com a oferta das
suasprimícias.
OdesejodemostraràSoberanaeàNaçãoquehavia,pelomenos,vontade,
zeloeeficazperseverançaemquemdirigeoinstituto,nosqueensinamenosque
aprendem,nãofoimenosfortemotivonemmenosnobre.
AmelhoremaisentendidagentedaCapitalpresenciouosresultados:enós,
que atentamente os observámos, vamos historiá-los com miudeza escrupulosa,
satisfazendoassimàanelantecuriosidadedetodososquenãotiveramigualfortu-
na,enãomenosànossaprópriavontadededaramaiorpublicidadepossívelainda
àsmenorescircunstânciasdeumfactoquepersibradamaisaltodoquetodasas
vozesdosamigosque louvam,doquetodososgritosdosdetractoresquecensu-
ram.
Desdeasseishorasdatardecomeçaramaafluirconcorrentesecuriososem
tornodoteatrodoSalitre.Às7umaguardadehonraestavapostadaàesperadeSS.
MM.eAA.
Umadeputação escolhidapelo Sr. InspectorGeral, dentre osmembrosdo
Conservatórioque se achavamemLisboa, esperavano vestíbulodoTeatro a SS.
MM.
Eracompostaadeputação,alémdomesmoInspectorGeralVice-Presidente
doConservatório,dosSrs.CondedeMello,Bomtempo,LimaLeitão,GonçaloVazde
Carvalho,CondedeFarrobo,AlexandreHerculano, JoséEstêvão,FranciscoFreire
deCarvalho,DuquedePalmela,FranciscoJoaquimMaia,JoaquimLarcher,A.Feli-
cianodeCastilho,AugustoFredericodeCastilho,eAbadeCastro.
Algunsminutos antesdas oito horas chegou S.M. I. a Senhora Imperatriz
Viúva,DuquesadeBragança,quefoirecebidapelaDeputação,eacompanhadaaté
àTribunaReal.Logodepois,S.M.aRainha,El-Rei,eSeuAugustoHóspedeePrimo,
oPríncipeHereditáriodeSaxeCoburgo–Gothachegaramcomtodaasuacomitiva
Eutinhaumasasasbrancas
-467-
edomesmomodoforamconduzidosatéàSuatribuna.S.A.R.aSra.InfantaD.Isa-
belMaria,impedidaporsuadébilsaúde,nãopôdehonraresteacto.ASra.Infanta
D.AnadeJesusMariaocupavaatribunaimediataàdeSS.MM.
Enquanto a grande deputação do Conservatório estava esperando e rece-
bendoaSS.MM.eAA.,oSecretário,oSr.A.G.Lima,àtestadeumacomissãocom-
postadoGuarda-mor,doBibliotecárioedosprincipaisadidosaoestabelecimento,
recebiamoCorpoDiplomático, aCorte, eosmais convidados, conduzindoasSe-
nhorasaosseuscamarotes,eindicandoaoshomensosseuslugares.
Aordemdecamarotes,vulgarmenteditanobre,estavaocupadadestemo-
do:aumladodatribunaReal,seguiam-se,depoisdaSra.InfantaD.Ana,oscama-
rotesdosMinistrosd’Estado,osdosDuques,doMarquêsdeFronteira,dosCondes
de Sabugal, e de Lumiares, do GovernadorMilitar, e do Administrador Geral de
Lisboa;dooutrolado,asDamasdeS.M.,oCorpoDiplomático,oPresidentedoSe-
nado,odaCâmaradosDeputados,odaCâmaraMunicipaldeLisboa,eoCondede
Farrobo, a quemeste lugar dedistinção fora reservadopelomuito que, alémde
outrostítulos,bemmereceradoConservatório,cujomembroé,auxiliando-oneste
seuúltimoempenhocommuitoeficazepoderosacoadjuvação.
A segundaordeme frisas tinham sido, indistintamente, distribuídas pelas
famíliasdossóciosoudepessoasqueporzeloeamordoestabelecimentocostu-
mamconcorreraosseusbenefícios.Aplateia,quelevamaisdequinhentaspessoas,
eraumaplateiacomonuncaseviraemteatronenhumdacapital.GrandesdoRei-
no,Senadores,Deputados,Ministrosd’Estadohonorários,osprincipaismembros
detodososinstitutosliterários,científicoseartísticosdacapital,docorpodaMa-
gistratura,daassociaçãocomercial,dadosAdvogados,doBanco,dasSecretarias
d’Estado;osComandantesdoscorposdaguarnição,os jornalistas, todoogénero
deilustraçõesenotabilidades,tinhamsidoconvidados;etodososlugaresestavam
cheios.
ApenaschegaramSS.MM.,aorquestracomeçouaintroduçãoàoperetta(ou
cantata)alegóricaqueeraprincípiododivertimento.
Tinha-sedistribuídoportodososespectadoresumeleganteebemordena-
do libretto comoprogramade todoo festejo, explicandoos títulosdaspeças,os
nomesdos seusautores,osdosalunosqueasexecutavam,osdosprofessores, a
ordemdoespectáculoe tudoquantoeranecessáriopara informaçãodoespecta-
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-468-
dor:continha,alémdisso,aspalavrasitalianas(comatraduçãoportuguesaaola-
do)daopereta,eoargumentodadança.
Deste programa, que foi rigorosamente executado, nos ajudaremos, como
deguiaseguro,parairdireitosemnossahistória.
II
PRIMEIRAPARTEDOESPECTÁCULOAAPOTEOSE,cantata:músicadoProfessor
doC.FranciscoXavierMigone;poemado
ProfessordoC.CesarPerinideLucca
PESSOAS ALUNOS
VÉNUS-------------------------------------------D.HenriquetadeLimadeCarvalho,
Alunado3.ºtermo.DiscípuladaAula
doProfessorFranciscoSchira(substi-
tuídointerinamentepeloSr.Frondoni)
CAMÕES--------------------------------------JúlioCésarGallouinTorres.Decurião
de2.ªClasse.Alunodo2.ºt.Discípulo
doProfessorAntónioPorto.
(coro)
APOLO------------------------------------ManuelGermanoRodriguesdosSantos.
Alunodo2.ºt.DiscípulodoProfessor
AntónioPorto.
1.ºBAIXO------------------------------------AntónioJosédeSousa.Alunodo2.ºt.
DiscípulodoProfessorFranciscoSchira
(substituídointerinamentepeloSenhorFrondoni)
2.DITO---------------------------------AugustoFranciscoToscano.Alunodo2.ºt
DiscípulodoProfessorAntónioPorto.
2.DITO------------------------------------EduardodosSantosSmith,Decuriãode
2.ªClasse.Alunodo2.ºt.,eDiscípulodoProfessorF.X.Migone.
Eisaquiaideiadestepequenodramaalegórico.
Eutinhaumasasasbrancas
-469-
Sentadoà sombradeum loureironosbosques Idálios (Cena1.ª) discanta
Camões,emsentidíssimasendechas,asdesventurasdaamadapátria;gemeepran-
teia,porquevêasuaLísialaceradapelosfuroresdadiscórdia,postasemesqueci-
mentoasbelas-artes,deixandoestalarascordasdalira,eofuscarobrilhantegénio
queoutroraailustrava.
Gradualmenteselheinflamaopeitodenobreindignação;enãojámestova-
te,mas inspiradoprofeta, prorrompe embrados de vingança e furor!…Mas que
vozéessaque,nasasasdeperfumadabrisa,vêmacalmar-lheasfúrias,derramar
suavíssimobálsamoemseucoraçãomalferido?–Avozcantaassim:
Lasperanzaéstellaamica
Cheadognialmaappareognor;
Elamornonsinutrica
D’anatemi,editerror!…
QuemviráconfortarCamõesemsuasmágoas,senão
…alindaEricinaqueguardando
Estavasempreagentelusitana!
Transforma-se-lheatristezaemalegria,aslágrimasemriso,ofuroremes-
perança;–eparteentregueaseusjubilosospensamentos.
ElávemaformosaVénus(cena2.ª)queixando-sedocementedequeoseu
vatesedeixelevardepesadumessemselembrardamãecarinhosaquenãocessa
develarpelosLusitanos.
Manonpensati,ingrato
ChedeLysiaallesortiiocautaveglio?
Felizterradosportugueses,objectodossolícitoscuidadosdamaisbeladas
divindades:–felizterraportuguesaquevaisrecobrarteusantigosesplendores!–
Vénus o promete, e logo é rodeada por um bando de cupidinhos (cena 3.ª) que
formandograciososgruposaconvidamaetéreopasseioemlindocarrotiradopor
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-470-
alvaspombas:–masVénus lhes impõesilêncio,declarando-lhesquesenãodeve
gastar em passatempos aquele dia consagrado à glória: quer descer à terra em
honradaRainhadosLusoscujoNatalíciosefesteja;eenquantoqueosamoreslhe
tecemcapelas,iráeladarvigornovoàsartes,eàsletrasparaqueLysiaseaditesob
seusauspícios,efaçaimortaloreinadodeMARIA
Mentreglideisorpresialsuovalore,
Griderannod’alcielo:Onore,onore!
EisquechegaCamões(cena4.ª);logocomeçaaanimá-loadeusadaformo-
sura;e tantaglóriae felicidade lhe fazvernoporvirdacarapátria,queovate já
nãosabedesi com júbiloegratidão.MARIAExcelsaRainhadosPortugueseséo
penhore seguroabonode todasasprosperidades;ornam-lheo seioasvirtudes,
como lhe enfeitamas graças o afável rosto.O vate e a deusa já estão compondo
umacoroadeoliveiraparacingir-lhea fronteRégia.Entãocomeçamdeouvir-se
umas longínquas harmonias, e (cena 5.ª) logo aparece uma auréola celeste e no
meiodela,sobreummagníficopedestal,obustodaRainhadePortugalaSenhoraD.
MARIA II. Um enxame de lindíssimos amores com frescas grinaldas, e artísticos
instrumentos lhe fazemgracioso cortejo. Apolo, quepreside à apoteose, convida
CamõesparaquevácoroaraimagemdaSoberana.Vénuseovatecorremgostosos
asatisfazeraoconvite,enquantoqueoirmãodasmusasexclama:
FigliadiLusoEróe,
Chel’orbeinteroapprezza,
Vediqualdolceebbrezza
SpirailtuonomeinCiel!
SegueaesserGrandeeapprezza
Ilpopoltuofedel.
Todosrepetemasmesmaspalavras,eacantataéfinda.
Odesempenhodestapequenaóperamaispareceudeprofessoresdoquede
alunos;atodosseavantajouaSra.D.HenriquetadeLimadeCarvalho,tantopela
vozcomopelaexecuçãoqueostentou.Avozéumperfeitosopranocommuitaex-
Eutinhaumasasasbrancas
-471-
tensãoedoçura; sobeaté aodónatural, sustentando-senasúltimasoitavas com
extraordináriafirmeza.Semomínimoesforço,ecomosemoquerer,desprendedo
peitoasmaissubidasnotas,sempreafinadasepuras.OromanceLasperanza&c.é
sobretudo cantado com extremado primor e delicadeza: no lindo recitativo com
queabrea2.ªcenadáaocantoumardemelancoliaedocequeixume,quemuito
dizemcomapoesiaqueoinspirou.
Acabalettadaariafoicantadacomtodaaprecisão;eolindíssimoremateda
mesmaSipersempreiolefaro&c.foiumgorjeiomuisuave,ondeadistintaaluna
ostentou na voz muito particular volubilidade. Seria prolixo memorar todas as
passagens emque a Sra. Lima se distinguiu, e só por derradeiro lembraremos a
strettadoduetoeohinofinal,emquedeuprovasdegrandeforçadevozecanto.
–OpapeldeCamões,cometidoaoalunoJúlioCésarGallouinTorres,foide-
sempenhadocondignamente, concorrendonaquelemoçomuitasqualidades rele-
vantesquefazemesperardeleumexcelentecantor:avozédopeito,clara,argen-
tinaesuficientementeforte;estámuitodesembaraçadoparaostrechosdeexecu-
ção,emantem-se,semdecair,naspassagensdeandamentovagaroso.Distinguiu-
seespecialmentenaaria,nodueto,cujoandantecantoumuidelicadamente–eno
final. Os actores secundários coadjuvaram perfeitamente os seus condiscípulos:
finalmenteodesempenhofoidignodaópera,dofestejo,edasAugustasPessoasa
quemeradedicado.
A orquestra, merece osmaiores elogios: acorde em todas as suas partes,
bemunidaeafinada, sustentandoconvenientementeosandamentos,ecadaqual
executandocomprimorasuaparte.Ossolosdeviolino,violoncelo,eclarinetefo-
ram tocados com sumadestreza; e em todo oprelúdio se aprimorou tanto a or-
questra,quemereceriaaplausoselouvoresaindadosmaisdifíceisdecontentar.
Nestacomposição,enomodoporquedirigiuaexecuçãodela,deu-nosoSr.
FranciscoXavierMigone,umaprovairrefragáveldegrandetalentomúsicounidoa
considerávelciênciadecomposição.
Começa a operetta por um belo prelúdio em dómenor; prelúdio que, em
nosso entender, tem especial valia, assim pelo bem combinado da orquestração,
comopelaideiaqueaelepreside,nãofalandonogostoenovidadequetantoofa-
zemsobressair.–Écomoumtema,umaepígrafemúsica,quedepoissedesenvolve
pelocorrerdapeça:contémlogonoseucomeço,umgermen,umpensamento(e
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-472-
feliz!)aoqualestásubordinada todaamúsicaquese lhesegue.Essaunidadede
pensamento, a quem infelizmente dão bem poucos compositores sua atenção, é
umaqualidaderelevantíssimaequaseessencialparaoverdadeiromerecimentode
uma partitura; o Sr.Migone foi assaz afortunado para a conseguir. – Segue-se o
recitativo e aria de Camões, cujo andante em Cmenor é demuitomimo, e logo
principiaporumbelosolodeviolonceloondepredominaaideiaprimáriadopre-
lúdio,eondecabemaosviolinoscertasentradas,tambémseguindooprelúdio,que
depoisserepetemporessecantabileIncostei&c.oqualémuitonogostodeBellini.
–OromancedeVénus,emBmaior=Laesperanza&c.édemuidelicadacomposi-
ção,econforma-sebemcomaletra;éumtrechodemúsicapróprioasuavizarmá-
goas,risonhocomoumaesperança,graciosocomoumfalardedeusa.Omoderato,
nomesmotomqueoromance,nãodesmerecedorestodaaria.–Orecitativoearia
deVénus,queseseguem,sãoobrademuitogosto:umbelosolodeviolinoprecede
orecitativo,oqualfazlembrarpelobemconcertado,aquelequeprecedeapregui-
eradeAdalgisano1.ºactodagrandeóperadeBellini.OandanteemSibemolmai-
orémimosoebemenfeitadodeacompanhamentosassimcomoacabaleta.Outro
tantodiremosdoduetoqueprincipiaemallegrogiustocomumbrilhanteacompa-
nhamento de violino obrigado; seguindo-se um sustenuto em B fa onde se nota
grande fluidezdemúsica,merecendonotar-seacromática transiçãodocantodo
tenorparaodadama,transiçãofeitaporviolinoquaseasolo,equetemprimor.No
allegrograciosonota-seaunidadedequeacimafalámos;começacomoprincipiara
acena;astrettaemElafaébrilhante.–Dá-seprincípioaofinalcomumallegro:
pareceu-nosdebastantenovidade.Ofinalétodoricodeinstrumentaçãoeharmo-
nia,terminadoporumcanonouhinomuialegreebrilhante.
Talé resumidamenteaoperettadoSr.Migone,professorqueaindamuito
moço,jádáboasesperançaselargasdeacrescentarumdiaosnossostítulosàgló-
riamusical. Pouco seprestauma cantata às grandes inspirações; alémdeque, a
mitologiaéessencialmenteclássica;eaindaassimousounobrementeocompositor
nãoselimitaraospreceitosescolásticos,earrojar-sealémdaesferadocontrapon-
to.–Ogostoqueseguiufoimistodoitaliano,ealemão:vê-sequeBellini,eMeyer-
beerforamseuguias;HaydneMozartosseusmestres.
Eutinhaumasasasbrancas
-473-
IIITerminadaaprimeirapartedodivertimentonomeiodeaplausosebravos
quenemorespeitodevidoàpresençadeSS.MM.podiaconter,seguiu-seoprimei-
ro intervalo, que foi preenchido por uma sinfonia do Professor do C. Francisco
Schira,executadapelaorquestracomamaiorperfeição.
Eaquimencionaremosoquetodosnotaram:quetãopequenaorquestra,in-
completa,emtamanhoetãomalconstruídoteatro,pelacertezaeprecisãocomque
executava,faziaumefeitoquasepasmoso.
IVSEGUNDAPARTEDOESPECTÁCULO
AMOREPÁTRIA
Comédiahistórica
Por***PESSOAS ALUNOS
D.Jerónimod’Ataíde-------------------JosédaSilvaReis–Alunodo2.ºtermo–
Decuriãode1.ªClasse
D.Leonor---------------------------------MariadoNascimentoBarataSalgueiro-
Alunado2.ºt.–Decuriãode1.ªClasse
RaimundoGuterres--------------------JoséGeraldoMoniz–Alunodo1.ºtermo
D.FilipadeVilhena------------------------MariaJosédosSantos–Alunado1.ºt.
RamiroCorrêa-------------------------------CândidoJ.X.Lopes–Decuriãode3.ª
Classe–Alunodo2.ºtermo
CustódioPeres-----------AntónioJoaquimPereira–Aluno(premiado)do2.ºt.
BarnabéFulgêncio------------------------VascodaGamaCabral–Alunodo1.ºt.
Criado-------------------------------------FranciscoCaetanoLobo–Alunodo1.ºt.
OutroCriado-------------------------------JoséGonçalvesRamos–Alunodo1.ºt.
Notário
FreiJoão Pessoasquenãofalam.
D.FranciscoCoutinho
Fidalgos,Damas,Povo,Soldados,Pajens.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-474-
Concluídoo1.ºintervalo,queaindapertenceàescoladeMúsica,seguiu-sea
deDeclamaçãocomestasegundapartedodivertimento,queeratodasua.
Odrama,oucomédiahistóricaem3actos,segundocommaisexacçãosein-
titula,foiexpressamentecompostoparaestaocasião,éverdadeiramenteoriginale
portuguêsnoassunto,noscaracteres,noscostumes,nosaborda linguagemedo
estilo.
Oenredoésimplesefácil.–Terminavaoanode1640,eacabava-seaosPor-
tuguesesapaciênciavelhade60anoscomquetinhamsofridoo jugocastelhano.
OstumultosdeÉvoraedeBragajánãopodiamdeixarnoenganooGovernointru-
so,eassazlhediziamoestadodaopiniãopública.–Todostinhamosolhosnodu-
quedeBragança.OrdensrepetidasdeMadridomandamiràquelacorte.–Sevai,
todasasesperançasdosPortuguesesestãoperdidas.–Énecessárioquearevolu-
ção rebente, e quePortugal proclame alto e forte a sua liberdade e os seusReis
legítimos.
Nesteestadodecoisascomeçaa1.ªcenadacomédia.Estamosemcasade
umcertoRaimundoGuterres,nobreportuguêsdegenerado,quesordidamentese
vendeuaopartidocastelhano,vilsatélitedeMigueldeVasconcellososecretárioda
duquesaregente.
Aolevantardopano,aparece-nosummordomovelhodacasa,bomportu-
guêsdatêmperaantigaque,ocupadodeseusquefazeresdomésticos,vairesmun-
gando,comoemsuaidadeecarácterénatural,sobreoquevaiporaquelacasae
peloreino.Chama-seeleoSr.CustódioPeres(oalunoAntónioJoaquimPereira)é
rabugentoefrondeur,nãopodejáaturaraquelacasa,esóalipára,porqueaverda-
deiradonadelaéasuaqueridaD.Leonorqueelecrioudepequena,cujopai,hon-
radofidalgoportuguês,estalaradepenadeseverescravo;enãoimaginandoque
tantopudessecorromper-seonobresanguedeseuirmão,àhoradamorteoinsti-
tuiututordestasuafilha,herdeirariquíssimaeúnicadesuapoderosacasa.Maso
tutordelapidouaherança,eparanãodarcontas,fez-seexaltadodopartidodomi-
nador;trataocasamentodasobrinhacomumCorrêa,irmãodosecretárioparticu-
lardeMigueldeVasconcellos,eobtémdeMadridumavisoreal,queoabsolvede
todaaresponsabilidadeelhedáporboaselídimassuascontascomodeseusleais
sentimentosseesperava.
Eutinhaumasasasbrancas
-475-
Detudoisto,edoestadodoreino,edecomovãoascoisasdecasadeD.Le-
onoredosdoispartidosqueestãoempresençaemPortugal,nosinformamuina-
turalecircunstanciada,postoquerapidamente,avivaeanimadaexposiçãodove-
lhomordomoedeumseujovemamigo,quelogoentra,oprimodeLeonor,oami-
godesuainfância,oesposoqueseupailhedestinaradoberço,aquemelaama,e
queestádesesperadocomoatrozprojectodotutor.
É estemancebo D. Jerónimo d’Ataíde, (o aluno José da Silva Reis) o filho
maisvelhodacélebrecondessadaAtouguiaD.FilipadeVilhena,que,porumespí-
ritoecoraçãomuitosuperioresàsuatenraidade,foiadmitidoàsconferênciasdos
generososconspiradosde640;trataevivecomJoãoPintoRibeiro,masnomeiode
tudoissoéumacriança,esquece-seàsvezesdosuplementodeidadequelhede-
ram,edoidodeamorespelaprima,deciúmesdoseurival,estáaponto,emvárias
ocasiões,deperdertudocomaideiadesalvarasuaLeonor.
JáidesverestaprimaLeonorporquemtantoseresolveaquitudo.Elaque
entra(cena3.ªnapessoadaalunaD.MariaBarataSalgueiro)ecomseuespírito,
seujuízo,seuentusiasmodeamorpátrio,justificatodosossentimentosqueinspi-
rou.
Numgalantíssimodiálogocomoprimo,acabadenosinformarcabalmente
doestadodas coisas; epode-sedizerexpostaaacção,quandoomordomovelho
quetemestadodevigiaenquantoosprimosconversam,acodeassustadobradan-
do-lhesque se retiremporqueo velho acordou.Eramhorasda sesta;Raimundo
Guterresdormianoclássicorepousopeninsulardasuameridiana,enquantoestas
coisassepassavamnaante-salaousalãograndedopalácio.
D.Jerónimod’Ataídevai-seàsúltimasconferênciasdaconspiração;porque
nósestamosem3deDezembrode1640;D.Leonorretira-seàsuacâmara,etudo
istoàpressa,porque jáseouvetossiro tutor:ei-loaívem: ficasóCustódiopara
protegeraretiradadosdoisamantesquasesurpreendidos.
RaimundoGuterreséumtipodoseugénero.Sempaixãonementusiasmo
político,partidárioporinteresse,maisviciosodoquecriminoso,éumverdadeiroe
felizcarácterdecomédiapolítica.NeleestãopersonalizadostodososvisPortugue-
sesdaquelaépocaemque,comoemtodas,
Algunstraidoreshouvealgumasvezes.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-476-
AcenaentreRaimundo,quesuspeitavagamenteas inteligênciasdasobri-
nha comomordomo, e esteque, semas confessar, lhe vai dizendo, a seumodo,
verdadesdurasecomodequemjásenãopodeconter:–écheiadeverdadeetem
umcolorido local,umsaboraos costumesdaépoca, certamentenotável epouco
vistonasnossascomposiçõesdramáticas.
Asegurançacomque,navésperadasuatotalruína,esterepresentantedo
partido dominador, escarnece das que ele chama miseráveis tentativas de uns
poucos de fidalgospobretõesedequatro taberneirosdeLisboa, é característica e
denuncia,noquadro,aspinceladasdequemconheceoshomenseomundo,semo
quesenãopodemfazercomédiasnemdramas.
Raimundotemresolvidocasaraquelanoitemesmaasobrinha,emandafa-
zer todosospreparativos;quandoachegadadeumdestesparasitasqueentram
emtodaaparte,ovêmconfirmaraindamaisemseusprojectos.
Um tal Barnabé Fulgêncio, (o aluno Vasco da Gama Cabral) “homem que
merendasempresejaaquehorafor”segundoodescreveonossoamigoCustódio
Peres,vemfazerasuavisitaaRaimundoGuterresquelhepuxapelalíngua,ecom
alguns coposdevinho,opõeemestadodedizerquanto sabe.Nãoémuito,mas
bastaparadarpretextoaomautiodevexarainocentesobrinhaedespediroob-
nóxiomordomo.
Issosefaz.Leonorofendidadassuspeitasindignasdotio,diz-lhetodaasua
alma,protestaquenãoaceitaráoesposoquelhequeremdarporforça.Raimundo
estáfortecomoseuDecretoRealassinadoIoEl-Rey,epartecomonoivoparaaca-
bardedisportudocomoseuprotectoreorenegadoMigueldeVasconcellos.
MasenquantoistosepassaemcasadeGuterres,osconspiradoresnãodor-
mem.OSacrifíciodeLeonorestádecretadoparaaquelanoite;eparaaquelanoite
tambémestápreparado,peloslibertadoresdapátria,odosseusalgozescomuns.
Nosegundoacto,achamo-nosemcasadaCondessadaAtouguiaD.Filipade
Vilhena;éaltanoite;eadesveladamãeestáàesperadeseus filhos,queforama
casadosAlmadasàúltimaconferênciadosconjurados.Resolvidaaosacrifício,ela
vaiexporavidadeseusfilhos.Masaboaportuguesatambémémãe:estremece-
lheo coração,enãopodeconteras lágrimas involuntáriasquea imensidadeda-
quelegrandesacrifíciolhearrancadopeito.
Eutinhaumasasasbrancas
-477-
Osfilhoschegam;areuniãodeamigoseparentesjunta-se:D.Filipanomeio
davastasaladodosseldoantigopaláciodosAtouguias,comaespadadeseumari-
donamão, invocandoamemóriadeseusantepassados,chamandopelonomedo
Salvador,cujoauxílioimplora,D.Filipa,verdadeiraheroínaportuguesadostempos
antigos,exclamacomvozsolene:“Meusfilhos,vossosavósforamarmadoscavalei-
rosnoscamposdebatalha,porbraçosdereis,comasespadasdegrandescapitães.
Avós,criancinhas,évossamãequeaindaontemvosacalentava,vossamãequelhe
tremeobraço, que lhe rebentao chorodosolhos, que aqui está sustidadeuma
forçasobrenaturalqueelamesmanãocompreende…Arma-vosvossamãe,filhos;e
sereistãobonscavaleiroscomoosquevosprecederam…porqueeutenhofé,por-
quechamoporDeusevosdigo:D. Jerónimod’Ataíde,D.FranciscoCoutinho,em
nomedeDeusedevossosavós,euvosarmocavaleiros.Tomaiestaespadaenão
vossirvaisdelasenãoparadefenderareligião,apátria,aliberdadedopovo,eos
vossoslegítimosreis!”
Epormilagredepatriotismo,edeamormaternal,asduascriancinhassele-
vantamhomensfeitosecavaleiros.
“Estaauroratrazliberdade,meusamigos–bradaD.Jerónimo–corramosa
encontrá-la!”–Epartemtodos,enesteentusiasmo,ecomoscoraçõesdosespec-
tadoressobressaltadostodosdequantohánobreegrandeebelonassensaçõese
pensamentosdohomem,caiopanonofimdeste2.ºacto.
Voltamos,noterceiro,acasadotraidorGuterresedesuagenerosasobrinha
D.Leonor,que,estamosquasecertosdeirversacrificarnummatrimónioaborre-
cidoeodioso.Daquiaduas,trêshoras,serásalvaapátria…eela,elaquetantotem
chamado com seus votos, com sua influência, com tudo quanto pode e vale, por
essediadeglória–eémuitooquepodeevaleumaconspiradoramoçaeformosa
–elaserácondenadaaverraiaressabelaauroranosprantosenainfâmia!
Daqui,edestaartificiosasuspensãoqueoA.habilmentecolocouentreo2.º
e o 3.º acto, comode remora à catástrofe, daqui, dizemos, o interesse do último
acto,quealiásonãopoderiaexcitar,porquetodoscontamoscomodesenlacefeliz
dapartepolíticadoenredo,quedetodosésabida.
EmcasadoGuterres,agora,vemosopartidocontrário,gentedeCastela.Es-
tá-seaosúltimosbrindesdeumaceiaesplêndida:daliparaacapela.PobreLeonor!
–Éinútilresistir,clamar,apelarparaapiedadedaqueleshomenssemcoração.Vão
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-478-
casá-la…Umrecadodopaço,queatodaapressachamaGuterreseosseusamigos
ao gabinete deMiguel deVasconcellos, suspende a cerimónia.Que será? Partem
todos tremendo.Leonor temummomentode respirar.Deixam-lheporguardao
parasitado1.ºacto–oBarnabéqueestáquasecegoesurdodeembriaguez,eque
partenãovê,partenãoquerveroquesepassa.Custódioaproveitaestemomento,
paravirconfortarasuaqueridaama,etrazer-lhesalvação.Éoprimo,éD.Jeróni-
moempessoaqueavembuscarparacasadesuamãeparaapôremrecato.
Escapou a pobre Leonor: ainda bem!…Mas que ruído é este? vem gente.
Tristesdenós!Éotioquevolta.Jánãoépossível:Leonorestáperdida,eD.Jeró-
nimod’Ataídenem sequerpoderámorrer combatendonobrementenomeiodas
ruas de Lisboa pela Liberdade da pátria. Aímorrerá vilmente assassinado pelos
rufiõesdeRaimundoGuterres.Jáseouvemosrebatesdossinos,tirosdemosque-
taria. FogeD. Jerónimo (lhebradaCustódioque conheceos cantosda casa) foge
poraquelaescadaparticularquedánãoseiemquebeco,fogeevaicomessaespa-
daparaondeháglóriaqueganhar.
D.Jerónimo,queouveosinaldarevolução,cededodesejodecastigaroGu-
terresqueemsuacóleradeamantealiqueriapartirdemeioameio,evaiparaa
grandeacção.
Raimundoestácomotocadodoraio.Queéisto?Queaudáciaadestagente?
–Masatodooinstanteagorachegamnotíciasdetodaaparte.Ossinosredobram,
ocanhãotroa,osbradosdopovovão-seaproximando.VivaD.João4.ºvivaanossa
liberdade!ressoadetodaaparte.PortugaléPortugaloutravez.
ACondessadeAtouguia,Custódio, todosvêmacudindoacelebrare infor-
mandodoquevai.Estásalvaapátria,estásalvaLeonor.Raimundoficacomomor-
to;atéoparasitaBarnabéoveminsultaremsuadesgraça,edar-lheocoicedoas-
no,enquantodeforaopovobrada.MorraotraidorGuterres!
Acodem-lheosgenerososvencedores.D.Filipasuspendeasiraspopulares,
eD.Jerónimodáasiloaosvencidos.
Triunfante,cheiodeglória,chegaD.Jerónimoqueéparanós,osespectado-
resdodrama,orepresentantedetodososheróisdarestauração.Nestaconcentra-
çãoeminentementedramática,emnosfazerassistir,atodoomovimentodeuma
revolução,semavermos,seguramenteestáoprincipalméritododrama.Batalhas,
revoluçõesecoisassemelhantesassimdevemviraoteatro.
Eutinhaumasasasbrancas
-479-
É felicíssimoopensamentocomqueapeçaconclui;D. Jerónimoabraçado
comsuamãeecomasuaesposaouveasaclamaçõesdopovoquedaruaovitoriae
saúda:“VivaD.Jerónimod’Ataíde!(dizemeles)–Vivaapátria,meusamigos,(lhes
respondeomancebochegandoàjanela)vivaaliberdade!VivaaCasadeBragança,
quenostrazasantamonarquiadeOurique,emqueopovosemprehá-deamaros
seusReis,porqueosseusReissemprehão-deamaraliberdade!”
Nãoéfácildescreveraexplosãodeaplausoseentusiásticosbravoscomque
foiacolhidoestefinaldodrama;nemseriapossíveltãopoucodizerapartequeo
autorouosactoresdapeçapuderamtomardelesparasi.Vibravamtodasascor-
dassonorasdocoraçãoportuguêsemconfusamelodia;nãoseestremavamsons.
Contentem-seopoetaeosseusartistasdesaberemqueassimofizeram;enãoé
poucasatisfação.
Odramaéumaverdadeiracomédiahistórica:nopequenopontoepisódico
dograndequadroda revoluçãode1640emqueo autor se colocou, faz reflectir
todaaacção,todoomovimentodela.Maisfeliznestaparte,segundonossaopinião,
doqueMr.LemerciernoseuPinto,semarriscarosgrandescaracteresconhecidos
dahistória,nasfeiturasdesuaimaginaçãorecompiloutodos,eno-losdeuconcen-
tradosemtiposdegrandeverdade.Nota-seaartecomquenospreparouparafa-
zerdeD. Jerónimod’Ataíde,queéumacriança,ummancebocapazde tamanhas
empresas.Temodefeitoabsolutamentefalando,deserpequenaacomédia;apenas
sãoesboçadosos caracteres;masvê-seque foi feitaparaumestudodealunos, e
nãoparaumarepresentaçãodeactoresconsumados.Desenvolvidanosseuscinco
actosnaturais,deveficarmuitomelhoremaiscompleta.
ContinuaasersegredoonomedoA.Nãoousaremosnósrevelá-lo.Sórepe-
tiremosquenãoédepessoaestranhaaoConservatório.Quemquerqueé,sabea
língua,oscostumeseosmodosdasuaterraedaépocaquetratou.
Nãotemmaldições,neminfernos,nemferrosembrasa,comovesemberros,
excita sem gritarias, faz rir sem obscenidades, indigna sem torpeza: Lamère en
permetralalectureàsafille.Nestapartenãoduvidamosdá-lapormodeloaosnos-
sos jovens escritores dramáticos. É clássica esta peça?Não sabemos; tem coisas
disso.Éromântica?Aespaçosnospareceterveemênciadeacçãoededicçãoqueo
nãocedeaosmaisatrevidosdaescola.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-480-
QuemsabeseoA.seráordeiroentreosdoispartidosliterários?Goëthe,que
foraumromânticoexaltado,morreuabraçadocomaféordeira:deveserboareli-
giãoliterária.
Daexecuçãopoucodiremos.Todososalunos,semexcepção,mostraramca-
pacidadeeestudo, emgrausdiversos contudo, e com imperfeiçõesdiversas,que
todostinhamassuas:nemoutracoisaerapossívelnamaisdifícildetodasasartes.
OSr.Reis tem fogo, sentimentoealma,pronúncia recta,masumrestode
acentotranstagano.Precisamodularmaisavoz,eperderumrestodemonotonia
queaprendeunasdeclamaçõesultra-românticas.
ASra.D.MariaSalgueiroinculcamuitacompreensão,temforçadeexpres-
sãoeenergianavoz;masoinfelizhábitodeimitarmausmodelos,enãoabstrair
delesparaimitarsóanatureza,alevaaumsemi-cantoquenãochega,éverdadea
ser o antigo cantoda velhaRuadosCondes,mas ainda é canto, aindabate todo
numaperpétuaemonótonacorda,queéomaiordefeitodeumactor.Esperamos
quesedesenganeepercacedoestedefeito,livredoqualhá-deserumaboaegentil
actriz.
ASra.D.MariaJoséfezmilagresparaquemtemapenasalgunsmesesdees-
cola:precisamaisalma,maisforça,emelhorsustentadaavoz.
OSr.Pereira temumgrandee inapreciávelmérito:– foinatural.Não tem
boapronúncia:éconfusa;masnãolheouvimoserrosensível.
NãodiremosomesmodoSr.Moniz(RaimundoGuterres)queporvezesca-
iu em algumas faltas gravíssimas de pronúncia: o que é tantomais para sentir,
quanto é umalunode grandíssimas esperanças pela inteligência quemostra em
compreendercabalmenteoseucarácterdifícil:épapelparaexperimentaromais
consumadocentro;eoSr.Monizentendeu-operfeitamente,sobretudono1.ºacto.
MuitotalentoefirmezatemoSr.VascodaGama(Barnabé)masabusadele;
e farão bem os Srs. Professores do Conservatório se contendo e dirigindo esta
plantatãovivaz,alevaremassimaumcrescimentoregularesadiocomoelapode
ter,seanãodeixaremdesmandareperdertodaemfolhas,quenãochegueadar
frutobemcriado.
Os demais alunos ajudam no seu tanto; e uns e outros merecem louvor:
porqueéimpossível,nocurtoprazodeestudoquetiveramfazermais:oquefazem
épasmoso.
Eutinhaumasasasbrancas
-481-
Nãoháartemaisdifícil;tornamosadizê-lo;nemadamúsica.OsRoscios,as
Clairons,osTalmas,asMars,osKeans,asSydons,contam-seumaumpormeios
séculos.Porcadacemartistasdistintosnasoutrasartes,apareceumnadramática,
setanto.Assimcomonasmaisricasliteraturassãopoucososautoresdramáticos
deprimeiraordem,tambémosãoosactores.EemPortugal,quenãotemaindaum
repertórionacionalparaoseuteatro,émaisdifícilaindaofazeractores.Ondees-
tãoosmodelos,ondeestãoospapéisdascomédias,dastragédias,dosdramasem
quesehajamdefundirplasticamente,orosto,osmodos,oshábitosdoactor?Cui-
damque o hão-de conseguir jamais com traduções, que por óptimas que forem,
sempre terão de ser péssimas, porque as não pensou um português com ideias
portuguesas,paraactoresportugueses,comestilo,cor,verdade,tomesaborqueo
artistacompreendabem,eopúblicosinta,esevejavivernelas?
Enganam-se.Osactores formamosespectadores, eos espectadoresàque-
les:masnãoofazemunsnemoutrossemdramasseusdeambos:umacoisatradu-
zidanuncaésua.Pormaisbemlavradasquesejamascartasdenaturalização,não
nasceucá:podeteraprotecçãodas leiscivis (pormeservirdeumacomparação
quenãoédespropositada)osforostodospolíticosdoteatro,não.
Comoalunospois,ecalculadasaindaaesmoaspasmosasdificuldadesque
venceram,osdaescoladeDeclamaçãodoConservatóriofizeramprodígios,edão
largasesperanças.
Apoloesuasnovebem-aventuradasirmãsoslivremdomauolhadodeexal-
tadaefuriosabruxaromântica,que,àforçademaldições,deinfernos,dediabos,de
gritariasabomináveis,osfaçamcairnessemonótonopsalmeardeblasfémiaseim-
propériosquenosvêmcádizerqueémodaemParis, quando talnãoé, quando
todoomundo escarnece omau gostoda gente bruta que ainda vai ao teatroda
Porte-St.MartinassistiraessesespectáculosdeCanibais.Vamosnósantesaostoi-
ros,queémaisnobreemaisportuguêspassatempo,aindaquenãomuitociviliza-
do,doqueaessasorgiasemquenãosesabequalémaisgrosseiramentevioladase
ainteligênciaouamoralidade.
VAcabadaacomédiaseguiram-seumasbrilhantesefortíssimasvariaçõesde
HertzexecutadasempianoasolopelaSra.D.TeresadeLimadeCarvalho,alunado
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Conservatório,eque,semamenordúvida,éumdosseusprincipaisemaisdistin-
tosornamentos.Extremavolubilidadeecertezadeexecução,dificuldadesinextri-
cáveisexpressascomumaprecisãomimoe frescorespantosos, sumadistinçãoe
clarezaaindanos trechosdemaisdespenhadacarreira,–eisumapequenaparte
domuitoqueostentouaSra.Lima!–E,sobretudoisto,deualmaeexpressãoao
teclado:–enote-sequãodifícil,quãoraraéestaqualidade!Asvariaçõesquetocou
versavamsobreabemconhecidamarchafavoritadaMudadePortici,e foramle-
vadasemandamentoprecipitadíssimo.–Grandepenafoiqueuminstrumentode
mais força e vozes senãohouvesseproporcionado, paradeixarmelhor gozar as
passagensdelicadaseospianissimos;fazendotambémostentaremtodoseuvigor
elimpidezoslancesdebrilhanteexecução.UmfortepianofranqueouoSr.Ziegler,
que se achounão ser conveniente, eporúltimo recorreu-se aopianodaprópria
executora,oqual,postoquemuitobomparasala,nãocomportavaagrandecapa-
cidadeemaiscircunstânciasdeumteatro.–Aplausosextraordinários!
VINoterceirointervaloderam-nosumacenacompostaeexecutadapeloaluno
daescoladedeclamaçãoA.daSilvaReis.Umconvencidodeparricídio,condenado
àmorte, estáesperandoaexecução, edesafogaseusderradeiros remorsose im-
precações.–DeuoSr.Reisnovasprovasdetalentoeforçanestahorrorosacena:
mas sentimos, e todosos espectadores lastimaramoobjectoqueescolheu; insu-
portável, repugnante e impróprio. Consta-nos que, para não desanimar o jovem
artista,oSr.vice-presidentedoConservatóriopreviamentesolicitaradeSS.MM.a
indulgêncianecessáriaparasetoleraremtaldiaeportalocasiãosemelhantees-
pectáculo.
Tolerado pois, com esse intuito, o Sr. Reis havia de conhecer todavia que
nãoachaecodesimpatiasverdadeirasentrenósessegostofalsodosmausafran-
cesados;equeéprecisonãodesperdiçarnemderrancaroseutalentocomessas
coisasfeiaserepugnantes.
OConservatóriodeuboamedida:quisamontoarasprovasdeseusserviços;
nãofoiprecisamuitapaciênciaparalhasverdeduzir;tãobelasforamtodas!
Eutinhaumasasasbrancas
-483-
VIIFoi o último intervalo preenchido com umas variações de rabeca e piano
compostasporOsborneeBerioteexecutadaspeloSr.JoãoZiegleralunodoconser-
vatórioepelaSra.D.TeresadeLimadeCarvalho.Àrabecapertenciaamaiorparte
limitando-sequaseopianoaumcomplicadoacompanhamentoealgumasentradas.
Sobreomerecimentomúsicoemquetantosobressai,mostrouaindaaSra.Limaa
suamodéstiaebondade,prestando-seaacompanharquasesecundariamenteou-
tro instrumento: assim,pareceu avaliá-lodevidamenteo jovem rabequista, envi-
dando todos os esforços, para que a sua execução correspondesse à do piano; e
conseguiuseunobrefimdesempenhandomuitobemastãodifíceisvariações.
VIII
PARTETERCEIRA
__________
BELA,RICAEBOA
OUASTRÊSCIDRASDOAMORDançaem2actos
CompostapeloDirectorFranciscoIorkeposto
emmúsicapeloProfessorJoãoJordani
PESSOASDADANÇA:ALUNOS(todosdo1.ºtermo):
MadreCelestinaencantadora,
fadaboa,protectorado-------------------------------FranciscaLeonides
PríncipeAltamiro---------------------------------------JoãoJacintoRibeiro
Barbudona,bruxamá
inimigadoPríncipe-----------------------------------AdelaideCristina
Princesasencantadasdentro
dastrêscidrasdoamor:
Bela-------------------------------------------------------MariaLuísa
Rica-------------------------------------------------------MariadaGlória
Boa--------------------------------------------------------JudithRugali
Pajens----------------------------------------------------BernardodaSilva
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
-484-
FranciscoAparecido
PedroMonteiro
Camponeses-------------------------------------------DanieldosSantosHenriques
ManuelEvangelistadosSantos
Domingosd’AssisTravassos
Camponesas--------------------------------------------AngelinaPernetti
AnaJacinta
CristinaJúliaBrites
RitaMaria
SéquitodoPríncipe-----------------------------------RosadaConceição
MariaHenriqueta
AnaHenriqueta
MargaridadeCortona
MariadaConceiçãod’Arosa
AméliaPerpétua
ÂngeloMontani
JoséElias
VIII
Vailargaamontaria:osgritosdoscaçadores,oslatidosdoslibréus,eore-
clamodabuzinavenatóriafazemumconcertoferoeríspido,masnobreegratoa
coraçõesdemancebosgenerosos.Reboamosmontesdoarredor;deixamos ino-
centespassarinhososuavíssimogorjeioefogemaesconder-senomaisdensodos
bosques;atimorata lebresecosecomaterra;edasmargensdopuroarroio,em
cujoespelhomiravavaidosoasramosaspontaseelegantecolo,arrancaogamotão
velozcarreira,quenuminstantedesaparece.–Fogesembalde;jáosdardostesil-
vamaosapavoradosouvidos!Aívemomaiságiledestrodequantoscaçadoresse
conhecem!ÉopríncipeAltamiro.
Cabem-lheashonrasdacaçada;e todosoaplaudemdocoração;porqueé
umpríncipequereúneamildotesdocorpoedoespírito,outrosmuitomaispreci-
osos–osdaalmaedocoração!–Foramestesúltimosquelheacarearamavaliosa
protecçãodeumafada,cujodestinoeraabondadeeavirtude,cujosdesejoseram
escudarosque a imitassem: chamava-se ela, anossa amigada infância, aMadre
Eutinhaumasasasbrancas
-485-
CelestinaEncantadora.Masassimcomonesteterrenomundo,tambémlánaetérea
mansãodasfadasháinvejosasrivalidades;comoquenãoquerendodesmentir-se
doreinofeminino:ocertoéqueaboaeformosafadaCelestinatinhaporinimigae
rivala fadaBarbudona, cujodestino,pelocontrário,eraperseguiravirtude.Está
vistoquehaviadeserinimigadonossoherói.
Nomeiopoisdosdesígniosdopríncipe,ei-laquevaierguerumatempesta-
detãomedonhaquedispersatodososmonteiroseledoscamponeses.
Mas a Madre Celestina é mais poderosa que a rival; conseguiu portanto
imediatamenteserenaraborrasca;epassadopoucotempo,paraexperimentarseo
jovempríncipeeracomefeitodignodasuaprotecção,disfarçadaempobrezinha
lhevaipedirumaesmolaporcaridade.Dá-lheopríncipeaúnicacoisaquealitem,
umriquíssimoanel,eaboafada,dando-seaconhecer,olouvapelasuabeneficên-
cia,elhedáemremuneraçãoastrêscidrasdoamor;numaestáabeleza,nasegun-
daariqueza,enaúltimaabondade.Escolha;masnãoasabrasenãoaopédeuma
fonte,poisquedocontráriolheviriampesares.
Tudo prometera o príncipe, porém a curiosidade venceu promessas, e a
possedoamoredabelezalheparececompensaçãosobejaparaasmaioresdesgra-
ças,–jáasduasprimeirascidrasforamabertas,jáperdeuduastãolindastãoen-
cantadorasvirgens,queocoraçãose lheparte;quasesucumbeàdorqueoator-
menta,quaseamaldiçoaumdomquese lhe torna tão funesto.–Oh!nãoamaldi-
çoestuasorte,nãomaldigasoqueporinconsideradotensperdido!Aindateresta
umacidradoamor,eseportuaimprudênciaperdesteabelezaeasriquezas,ainda
terestaamelhorcidra;ainda te ficaadabondade,que teressarciráaperdadas
outras!–Palpitantedeesperançaedetemorbuscaopríncipeumafonte,eabrindo
aúltimacidravê surgir amaisbela, amais formosa, amais encantadoravirgem
que nunca olhos humanos tinhamvisto: é a encantadora princesaBoa, que, lan-
çando-lheosbraçosaocolo,exclama,comoasoutras:Dá-meágua,senãomorro!…
Aquiaprudênciasalvouabondade.Aprincesabebeevive.Masaadmiração,
opasmo,oembevecimentodopríncipenãohápintá-lo:comumenlevo,comuma
emoção,comumamorquedetodoorostolhetrasbordava,contemplaoangélico
semblantedaquetemdefronte.Osolhosdamuidonosavirgemespiravammodés-
tiaeabandono,assustadaternuraevoluptuosíssimopejo.Oferece-lheopríncipeo
coraçãoelhepõenodedooanelnupcial.
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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NãopôdeBarbudonatolerartamanhafelicidadeempartãoinocenteebelo,
quedemaisamaiseraprotegidopelaboafadaCelestina:apresentando-sepoisà
formosa donzela, consegue pormás artes roubar-lhe o anel introduzindo-lhe no
ouvidooclássicoalfinetedebruxaqueatransformaemníveapomba,desprenden-
doarrebatadovôo. –Chegavaopríncipe, que cheiode alvoroço como consenti-
mentodopai,vinhadesposaraquelaquetantoadora:rodeiam-noosamigosansi-
ososde veremoportentodebeleza emaravilha comqueo céuquispremiar as
virtudesdopríncipe:masquevêemeles!Ohéimpossível,clamamtodoshorrori-
zados!…–Umamulherhedionda, foioqueviram…e temnodedoopenhordos
juramentosdopríncipe!Comoacreditarsemelhantesjuramentos,tãoinconcebível
amor?
Odesespero,aafliçãodopríncipe,nãohádescrevê-lo.Serãoestasaspro-
messasdeCelestina?Seráestaarecompensadesuasvirtudes?Ohqueémuitodi-
fícilprova!Masopríncipenãosearrependedasuavirtudeesegemeéporqueé
umpobremortal.
Uma pomba que vôa e revôa tão languidamente como se estivesse ferida
pordespiedadocaçador,pareceacompanharcomsentidosarrulhososgemidosdo
príncipe:vaielapoucoepoucoacercando-se,atédeixar-seanimardoternoaman-
te,quedescobrindooalfineteencantado,oarranca,equasemorredeprazerejú-
biloaorecebernosamorososbraços,atãocara,tãoformosa,etãopranteadaespo-
sa.AfadaCelestina,queentãoaparece,exprobaaBarbudonasuasperversidades,e
infâmias;abraçaosesposos,e lhesafiançanoporvirasmaioresventuras, convi-
dandoos circunstantesa festejarempor todososmodosovirtuosopríncipe, e a
princesaqueéaomesmotempobela,rica,eboa!–Seguem-seosbailadosquesão
lindíssimos.
EstebailetequeétodoexecutadoporalunosdoConservatórioaindatãojo-
vensqueomaisvelhoapenascontarádozeanos,édesempenhadoportalarte,que
espanta: aqueles corpozinhos tão tenros e delicados, aqueles peitos tão infantis,
aquelas frontestãodescuidosas,mostramàuniversaladmiração,omimoegraça
dossentimentos,amelancolia,odesespero,ouinefáveljúbilo!…Nãopodemosdei-
xardeespecializarquantoàmímicaasjovensaquemforamconfiadosospapéisde
boaemáfada;masaengraçadíssima JudithRugaliéquemprincipalmentese fez
admirávelpelasmuitasevariadasprendas,dequeseostentouadornadatantona
Eutinhaumasasasbrancas
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pantomimacomonadança,masprincipalmentenestaqueexecutoucomumaban-
donoevoluptuosidade incompreensíveis.Nãoesqueceremosmencionarumape-
quenina,quetalveznãoconteaindacincoanosdeidade,equefezmuitomaisdo
que nunca poderá esperar-se. Finalmente guardámos para último lugar o jovem
Ribeiro (opríncipe); porque é evidenteque a ele eramaplicáveis em toda a sua
extensão,asobservaçõesqueemgeralfizemosacercadoméritodosinteressantes
meninosquetantasesperançasdão,ejátantasrealizam:bastadizerqueojovem
Ribeiroéapéroladetodoseles,equemostrou,nodesempenhodopapeldovirtu-
osoapaixonadopríncipe,umtalentoqueproduziugeraladmiração.Todoobailete
foicobertodeaplausosextraordinários,eaténosmaisrefractáriosedesdenhosos
ânimos,naquelesquetãoempenhadossolicitaramumconviteparaircriticarpo-
brescriançasdesvalidasesempresunção,aténessesfezrecuardoslábiosacensu-
ramalévola.
AmúsicadasTrêsCidrasfoiexpressamentecompostapelodistintoprofes-
sordoConservatóriooSr.J.Jordaniqueporcertodeumaisumaprovadoseure-
conhecidomerecimento.Émuitoprópriadoassunto,cabendomençãoespecial,à
que tem lugarcoma tempestade,eàque imitava tãosentidamenteosqueixosos
arrulhosdamíserapombinha.
Comtodaa ingenuidadedamosaoSr. Iorkcordiaisparabénspelos felicís-
simosfrutosqueseusdiscípuloscolhemdesuasexcelentes lições,pelobemcon-
certadodestaproduçãomímica,eporsehavertãofelizejudiciosamenteinspirado
emnossaslegendasnacionais;quebempareceterlido,esaboreadoaqueleinsigne
poetaquetãodonosamenteexclamou:
Vivamasfadas,seusencantosvivam,
Nossaslindasficções,nossaengenhosa
Mitologianacional,eprópria!
Tais foram, em resumo, as festas do Conservatório que terminarampelas
duashorasdamanhã;SS.Majestadesestiveramatéaofimdetodooespectáculo,
mostrandoporessemodoquantoéoseuapreçopelasbelas-artesportuguesas,e
quantosouberamavaliarasdiligências,esforçosefadigasquetãobelosresultados
produziram:–resultadosespantosos!–Maisespantosasaindaasdificuldadesde
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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todoogéneroquesesuperaram;maisextraordináriosmilvezesostropeçosquese
venceram;maisemuitomaislouváveis,asolicitude,actividade,zeloebomgrado,
comquetodos,desdeoincansávelV.PresidentedoConservatórioatéaomaisras-
teiroempregadodomesmoestabelecimento,desdeodecanodosprofessoresaté
aomais jovemdosalunos, todospuseramombrosa talempresa.–Nãosacrifica-
mosalisonjas,easnossaspalavrassãoverdadeirasedesenganadas:–outroque
nãoforaoSr.ALMEIDAGARRETThouverasucumbidoatantose tãogigantescos
estorvos;teriarecuadoanteembaraçosqueseaparentavaminvencíveis;equando
foradeânimoforte,aindapertinaz,começariaporventuratãoárduatarefa,masno
meiodocaminhocansaria,easiprópriochamariainsensatoporhavercomeçado.
Eutinhaumasasasbrancas
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OCORREIODELISBOA
N.º382,de10deJaneirode1840
ELIÉSER,OUATERNURAFRATERNALPoemade Florian, traduzido emversosportugueses, porM.Rodriguesda
SilvaAbreu.Braga,1839.–1volume,oitavo.
(COMUNICADO)
Aquiestáumlivrinhobonito,elegante,raroparaotempoemquevamos,e
quenosdáumaspoucasdenovidadesinteressantesedefazergosto.
Comecemospeloexterior.Éumvoluminhopequeno,masnitidamente im-
presso,bemtalhado,bemproporcionado,comoumabrochuradeParis,feitapara
secortarcomfacadenácarnobufeteaveludadodoboudoir.Eesteeleganteespé-
cimedanossatipografiavem-nosdosprelosdeBraga,cidadequenãotinhaassen-
toemcortesdeprogresso!Quemohaviadeesperardela?–Poisdeviamiraprender
comosseusmodestosirmãosbracarensesosnossospresumidosElsevirosdacapi-
tal.Asproporções,asdistâncias,adistribuiçãodosdiferentestiposqueseempre-
gamsegundoanaturezadasdiversaspartesdequesecompõeo livro,prefácios,
corpodopoema,notas,versos,prosas,tudoestátãobemcalculadoedisposto!Esta
ciênciadotipógrafo,estetactoquevemdogostonatural,aperfeiçoadopelaobser-
vaçãoeestudodosbonsmodelos; abelezaquedela resulta, e semaqualpouco
brilhaado tipomaisbem fundido, adopapelmais acetinado, esta é aquemais
absolutamente ignoramosnossos impressoreseque–mirabiledictu!–pelapre-
senteobravemosquechegouaBragasemdardespachonasalfândegasdeLisboa
oudoPorto.
Maso livroébonitopordentroepor fora;querodizeraparte intelectual
nãoésomenosàmaterial,antesaexcedemuito.Comosouvidostrilhadosdoestilo
deseumestre,convertidaaimitaçãoemnatureza,osr.Rodriguesseguefacilmente
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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esemesforçopelocaminhodeFilintoElísio,traduzindoemsincerosversosportu-
gueses,apoéticaprosadeFloriancomoaqueloutrotraduziraadeChateaubriand.
Ovelhopoetaexilado,cônsciodesuasforças,mediu-secomumgigante;enagran-
delutadeestilo,queemtodaatraduçãosetravaentreoescritororiginaleotra-
dutor,FranciscoManuel,deixouduvidosapelomenos,avitória.Omodestoereti-
radoautordapresenteversãoantesseacolheu,comasuatimidez,aoamparode
umnomemenosgrande–nãomenosbenquisto;ecomoamedofoitransplantando
paraoseuvergelignorado,numcantodoMinho,aslindasfloresquetambémno
retirotinhambrotadod’entreasmãosaosensíveleeleganteautordeEstelaede
GonçalodeCórdova,nestasuaderradeira,eporventuramaisdelicadacomposição,
oEliéser.
Florian,perseguidodos tão atrozesquanto ridículos e absurdosmonstros
quenassanguinosas tragicomédiasdarevolução francesasearvoraramasipró-
prios–comoemtodaaparte,emiguaiscircunstâncias,fazemsempreostaisignes-
fatui,–emúnicoseexclusivosamigosdopovoeliberdade,–Florianquetãoentusi-
astaacantaraessaliberdadenoseuGuilhermeTell,Floriancujoamoraoimpério
dasleis,cujadedicaçãopelacausadopovotãosinceraetãorealresplandecerana
suaNuma,FlorianodiscípulovalidodeVoltaire,perseguidodosliberaisedosfiló-
sofos,estavaexiladoemSeauxquandocompôs,entredissaboresemedos,estelin-
dopoemetoemqueparecequistodasconcentrarasvirtudesdeumbomcoraçãoe
deumespíritorecto,queemtemposdefrenéticaedesalmadadoidicepopular–ou
maisexactamente,dedesmandadatiraniatribunícia–sãoencabeçadosemcrimes
capitaisedelesa-majestade-popular,comonaoutranãomenosodiosatiranialegal
sãocrimesde lesa-majestade-realasmesmasvirtudes.Epelamesmarazão!Por-
que tiranos-reise tiranos-tribunosunseoutros sãohipócritasaquem,maisque
nenhumacoisa,ofendeaverdadeiravirtudeeoverdadeiromérito.
Osr.Rodrigues,semserperseguido,que,pormaisquefaçam,nãovaipara
aí–aindabem!–anossatêmperaportuguesa,retirou-sedesgostosoaoseucanto,
amargurado como o seumodelo, chorando como ele sobre as discórdias civis, e
sonhando os consoladores sonhos das almas boas de que os homens haviamde
voltaraopreceitoevangélicodoamordopróximo,preceitoconsignadoemleidi-
vinaescrita,masjánascidocomanatural.Nãopodeserenquantoamentiraderas
Eutinhaumasasasbrancas
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suas leis, a cobiça jogar em seusdados a sortedospovos, e a ignorância estiver
prontaparasócrernelasambaseasservir!
Nãooacordemos,porémdeseuditososonhar,aocantorportuguêsdeElié-
ser, e transportemo-nosantes comeleaesses felizes temposemqueoshomens
viviamligados.
“Pelaconcórdiaefraternalbrandura.
“Oh!renovemosopainelgracioso,
“Dessescostumesmaviosos,simples.
Emversosirmãosdestestrêsquecito,nosintroduzopoetaàexposiçãodo
seuassunto.
Oassuntoétiradodahistóriabíblica,edotempodosjuízes,idadedeouro
dopovohebreu.Eisaquiapinturadeépoca.
AarcaSantaeraemSilo;temploaugusto
Anãoguardavaainda,esódepeles
Secobriamodestootabernáculo.
Sósanguedasnovilhasraro-tinto
Eraoaltardoholocausto,–raro
OincensodeTadmorseviaardendo
Dosperfumesnoaltar;–porémrespeitos,
Cultosdeumpovointeiro,evotospuros
Depontíficessantosdecontínuo
Fervorososerguendo-seaoEterno,
Tornavam-lheessaestância‘indamaiscara
QueotemplodeSiãotãomajestoso,
Mastantasvezes,tantasprofanado.
Aliàsnossasfestasdemaisfama
Concorriamd’Israeltodasastribos.
Ali,paisdefamíliaacompanhados
D’abundanteprogénie,vinhamledos
AdoraroSenhor,comerapáscoa,
MariaGabrielaRodriguesdaSilvaFerreira
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Emfraternalunião,eojuramento
Renovardaaliança.Asmãesseusfilhos
Davammútuasaver,porentreabraços
Edocesparabéns…
Pesa-mequea faltadeespaçonãodeixeprolongar esta citação (queédo
canto1),nemjuntaroutrasmuitasquefalariamporsimelhorquetudooquedo
poemasepodedizer.
Continuemosahistória.Sadoc,netodeEliasar,sumo-sacerdote,temdoisfi-
lhosgémeosqueseamamternamente.Umdeles,Neftali,adoraabelaRaquel.Os
pais que ignoram esta paixão contratam desposá-la com o outro irmão, Eliéser.
Eliéservemaconhecerquefazainfelicidadedeseuqueridoirmão,efiadonalei
mosaicaqueobrigao irmãoquesobreviveacasarcomaviúvadoquefeneceu,–
embrenha-senodeserto,efaz-sepassarpormorto.
Aleiécumprida;eEliéser,quedaíapoucoédescobertonasúltimasagonias
aqueolevouadoença,morreabençoandoeabraçandoatodososquefezfelizes
comseugenerosoeestranhosacrifício.
Pesa-meterdepassaremclaroportodasascircunstânciasqueembelezam
eaviventamestesingeloquadrodequesódouoesboçodescarnadoparanãoan-
teciparsobreogostoeprazerdosleitores.
O estilo é puro, a linguagem casta.Acaso algumperlucho notará, aqui, ali,
seuFilintismoquedirão fanáticopelomuitoqueoA. sevêquedesconfioude si
paraconfiaràscegasemseumestre.
Pormim,quenãosoutãoescrupuloso,regalei-mecomaleituradobomEli-
éser,quefoihebreuedepoisfrancês,masagoraéportuguêsdeveras;eestouque
assimsucederáatodososqueoleremesouberemapreciarcomoestalindacom-
posiçãomerece.
A.G.