fagundes varela (1875)

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Fagundes Varela Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. Carta a J. Tomás da Porciúncula, Publicada originalmente em A Crença, agosto de 1875. [RJ., 19 ( ? ) ago. 1875.] Meu prezado colega. — Ainda não é tarde para falar de Varela. Não o é nunca para as homenagens póstumas, se aquele a quem são feitas as merece por seus talentos e ações. Varela não é desses mortos comuns cuja memória está sujeita à condição da oportunidade; não passou pela vida, como a ave no ar, sem deixar vestígio; talhou para si uma larga página nos anais literários do Brasil. É vulgar a queixa de que a plena justiça só começa depois da morte; de que haja muita vez um abismo entre o desdém dos contemporâneos e a admiração da posteridade. A enxerga de Camões é cediça na prosa e no verso do nosso tempo; e por via de regra a geração presente condena as injúrias do passado para com os talentos, que ela admira e lastima. A condenação é justa, a lástima é descabida, porquanto, digno de inveja é aquele que, transpondo o limite da vida, deixa alguma coisa de si na memória e no coração dos homens, fugindo assim ao comum olvido das gerações humanas. Varela é desses bem-aventurados póstumos. Sua vida foi atribulada; seus dias não correram serenos, retos e felizes. Mas a morte, que lhe levou a forma perecível, não apagou dos livros a parte substancial do seu ser; e esta admiração que lhe votamos é certamente prêmio, e do melhor. Poeta de larga inspiração, original e viçosa, modulando seus versos pela toada do sentimento nacional, foi ele o querido da mocidade do seu tempo. Conheci-o em 1860, quando a sua reputação, feita nos bancos acadêmicos, ia passando dali aos outros círculos literários do país. Seus companheiros de estudo pareciam adorá- lo; tinham-lhe de cor os magníficos versos com que ele traduzia os sonhos de sua imaginação vivaz e fecunda. Havia mais fervor naquele tempo, ou eu falo com as impressões de uma idade que passou? Parece-me que a primeira hipótese é a verdadeira. Vivia-se de imaginação e poesia; cada produção literária era um acontecimento. Ninguém mais do que Varela gozou essa exuberância juvenil; o que ele cantava imprimia-se no coração dos moços. Se fizesse agora a análise dos escritos que nos deixou o poeta das Vozes da América, mostraria as belezas de que estão cheios, apontaria os senões que porventura lhe escaparam. Mas que adiantaria isto à compreensão pública? A crítica seria um intermediário supérfluo. O "Cântico do Calvário", por exemplo, e a "Mimosa", não precisam comentários, nem análises; lêem-se, sentem-se,

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Livros de contos, e de literatura de Machado de Assis, os melhores livros do autor disponibilizados aqui no scrib.

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  • Fagundes Varela

    Texto-Fonte:

    Obra Completa de Machado de Assis,Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994.

    Carta a J. Toms da Porcincula,

    Publicada originalmente em A Crena, agosto de 1875.

    [RJ., 19 ( ? ) ago. 1875.] Meu prezado colega. Ainda no tarde para falar de Varela. No o nunca para as homenagens pstumas, se aquele a quem so feitas as merece por seus talentos e aes. Varela no desses mortos comuns cuja memria est sujeita condio da oportunidade; no passou pela vida, como a ave no ar, sem deixar vestgio; talhou para si uma larga pgina nos anais literrios do Brasil. vulgar a queixa de que a plena justia s comea depois da morte; de que haja muita vez um abismo entre o desdm dos contemporneos e a admirao da posteridade. A enxerga de Cames cedia na prosa e no verso do nosso tempo; e por via de regra a gerao presente condena as injrias do passado para com os talentos, que ela admira e lastima. A condenao justa, a lstima descabida, porquanto, digno de inveja aquele que, transpondo o limite da vida, deixa alguma coisa de si na memria e no corao dos homens, fugindo assim ao comum olvido das geraes humanas. Varela desses bem-aventurados pstumos. Sua vida foi atribulada; seus dias no correram serenos, retos e felizes. Mas a morte, que lhe levou a forma perecvel, no apagou dos livros a parte substancial do seu ser; e esta admirao que lhe votamos certamente prmio, e do melhor. Poeta de larga inspirao, original e viosa, modulando seus versos pela toada do sentimento nacional, foi ele o querido da mocidade do seu tempo. Conheci-o em 1860, quando a sua reputao, feita nos bancos acadmicos, ia passando dali aos outros crculos literrios do pas. Seus companheiros de estudo pareciam ador-lo; tinham-lhe de cor os magnficos versos com que ele traduzia os sonhos de sua imaginao vivaz e fecunda. Havia mais fervor naquele tempo, ou eu falo com as impresses de uma idade que passou? Parece-me que a primeira hiptese a verdadeira. Vivia-se de imaginao e poesia; cada produo literria era um acontecimento. Ningum mais do que Varela gozou essa exuberncia juvenil; o que ele cantava imprimia-se no corao dos moos. Se fizesse agora a anlise dos escritos que nos deixou o poeta das Vozes da Amrica, mostraria as belezas de que esto cheios, apontaria os senes que porventura lhe escaparam. Mas que adiantaria isto compreenso pblica? A crtica seria um intermedirio suprfluo. O "Cntico do Calvrio", por exemplo, e a "Mimosa", no precisam comentrios, nem anlises; lem-se, sentem-se,

  • admiram-se, independente de observaes crticas. "Mimosa", que acabo de citar, traz o cunho e revela perfeitamente as tendncias da inspirao do nosso poeta. um conto da roa, cuja vida ele estudou sem esforo nem preparao, porque a viveu e amou. A natureza e a vida do interior eram em geral, as melhores fontes da inspirao de Varela; ele sabia pint-los com fidelidade e viveza raras, com uma ingenuidade de expresso toda sua. Tinha para esse efeito a poesia de primeira mo, a genuna, tirada de si mesmo e diretamente aplicada s cenas que o cercavam e vida que vivia. Adiantando-se o tempo, e dadas as primeiras flores do talento em livros que todos conhecemos, planeou o poeta um poema, que deixou pronto, embora sem as ntimas correes, segundo se diz. Ouvi um canto do Evangelho nas Selvas, e imagino por ele o que sero os outros. O assunto era vasto, elevado, potico; tinha muito por onde seduzir a imaginao do autor das Vozes da Amrica. A figura de Anchieta, a Paixo de Jesus, a vida selvagem e a natureza brasileira, tais eram os elementos com que ele tinha de lutar e que devia forosamente vencer, porque iam todos com a feio do seu talento, com a potica ternura de seu corao. Ele soube escolher o assunto, ou antes o assunto imps-se-lhe com todos os seus atrativos. O Evangelho nas Selvas ser certamente a obra capital de Varela; vir colocar-se entre outros filhos da mesma famlia, o Uruguai e Os Timbiras, entre os Tamoios e o Caramuru. A literatura brasileira uma realidade e os talentos como o do nosso poeta o iro mostrando a cada gerao nova, servindo ao mesmo tempo de estmulo e exemplo. A mocidade atual, to cheia de talento e legtima ambio, deve pr os olhos nos modelos que nos vo deixando os eleitos da glria, como aquele era, da glria e do infortnio, tanta vez unidos na mesma cabea. A herana que lhe cabe grande, e grave a responsabilidade. Acresce que a poesia brasileira parece dormitar presentemente; uns mergulharam na noite perptua; outros emudeceram, ao menos por instantes; outros enfim como Magalhes, Porto Alegre, prestam ptria servios de diferente natureza. A poesia dorme, e mister acord-la; cumpre cingi-la das nossas flores rsticas e prprias, qual as colheram Dias, Azevedo e Varela, para s falar dos mortos.