fala quebradas! edição #1

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FALA QUEBRADAS! #1

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Fala Quebradas! Edição #1 cujo mote é a Rua. Setembro 2014.

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Page 1: Fala quebradas! Edição #1

FALA QUEBRADAS!

#1

Page 2: Fala quebradas! Edição #1

3

EDITORIAL

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Dom Casmurro

SANDRA LIMA

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Cestrum Nocturnum

FELIPE BOAVENTURA

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Rua Salema

ORLANDO RANGEL

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Rua de Estrelas

ROGÉRIA REIS

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O Sol Frio

MARCIO RUFINO

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Que roda é essa?

JESSICA CASTRO

Ladeira do Escorrega

RAFAELA NOGUEIRA

11

Ando pela Cidade

TERESA GIL

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A Passarela

LUCIANA OLIVEIRA

13

Esquinas Improváveis

DENISE KOSTA

14

Convocatória Rua

JANDIR JUNIOR

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Todas as Ruas

do meu Cérebro

LUDI UM

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Rua General Clarindo,

uma Rua de Feira

CRISTINA HARE

Page 3: Fala quebradas! Edição #1

A Fala Quebradas! chega a sua primeira edição! Entre a Edi-ção Zero e a Edição Um lançamos um site, estivemos na FLIP 2014, novos quebradeiros se juntaram como editores ou autores, nossa fanpage alcançou 200 curtidas, aplicamos oficinas, entre muitas outras coisas! Agora estamos aqui de novo trazendo produções literárias de pessoas das mais variadas matizes da cidade.

O compromisso da publicação é pensar através da ficção em prosa ou poesia a cidade na qual vivemos. O mote para os textos dessa edição sugeriu a RUA como tema central. Se pararmos para pensar em como a rua é importante em nossas vidas, talvez nos identifiquemos com algum conto, poesia ou crônica da Fala Quebradas!#1. Porque aqui nessa edição tem uma rua de feira, uma casa misteriosa da rua; tem ladeira, e também esquinas improváveis.

A rua é o palco da vida! E nesses últimos dias no Rio de Janeiro tem sido lugar de encontro político e covardia policial. Acreditamos na livre manifestação e nos indignamos com o estado policial que é o mesmo que sempre matou na favela.

A Fala Quebradas! quer ser um projeto que opere a literatura das periferias ao trabalhá-las com a cultura digital. Acompanhe nosso site www.falaquebradas.wordpress.com nossa fanpage www.facebook.com.br/falaquebradas e twitter @falaquebradas para ficar por dentro das novidades do projeto.

O mote dessa edição foi apresentado por Ariano Suassuna através de um vídeo onde fala de algumas ruas do Recife importantes para ele. Durante a produção da edição, infelizmente ele faceleu. Prestamos aqui nossa homenagem ao mestre.

E quebradeiro, fique atento a abertura da próxima edição! Parti-cipe desse projeto que está inventando um novo lugar para a litera-tura e em especial, a literatura da periferia.

Com alegria, Felipe Boaventura

Editorial 3

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Sei que a história que irei narrar é meio inusitada, afinal uma criança de 8 pra 9 anos aprender a sole-trar com uma obra complexa como a obra de Machado de Assis é real-mente inacreditável.

Quando criança, eu passava uns tempos com minha tia Madalena, uma linda portuguesa que colecio-nava livros, artesanatos e tapeça-rias. Eu amava todas essas coisas, nas quais na casa dos meus pais não tinha acesso.

Eu ficava com minha avó Rosa quando minha tia saía para o traba-lho. Vó Rosa era muito brava e não gostava muito de papear. Restava--me a vitrola, os discos e os livros. Livros!

Fui tomada de uma curiosidade por eles, e em especial pelo livro Dom Casmurro. Não me perguntem o porquê, não saberei responder. Talvez a capa tenha chamado minha a atenção, pois nela havia uma sin-gela dama vestida à moda dos filmes antigos.

Quando minha tia chegou em casa eu pedi: Tia, lê esse livro para mim? E ela respondeu com muito ca-rinho: Já está na hora de você come-çar a ler sozinha. Já está na explica-dora e já conhece as letras. Agora basta você juntá-las para formar as palavras.

Nesse dia ela passou horas me ajudando a juntar as letras e formar

as palavras. Era muito gratificante para mim. Cada palavra, um abraço e um elogio.

Desde então Machado de Assis entrou na minha vida. Comecei a ler outras de suas obras e me fascinei por sua trajetória.

Adulta, me mudei para um bair-ro chamado Jardim Clarice em MG. Nele, todas as ruas tem nome de grandes obras da literatura brasi-leira, graças a um pedido de poeta Carlos Drumond de Andrade feito ao prefeito Marcos Tamoio com esse fim. E qual não foi minha surpresa ao constatar que eu moraria na Rua Dom Casmurro? Eu e Machado jun-tos outra vez numa importante etapa da minha vida.

Fui muito feliz naquele endereço por muitos anos. E hoje penso que essa felicidade, na verdade, não co-meçou ali, mas muito antes quando uma tia se esmerou em ajudar sua sobrinha a entrar no fascinante mun-do da literatura através de um livro de Machado de Assis.

# Sandra Lima é roteirista, Quebradeira da 2ª edição.

Dom CasmurroSandra Lima

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O tempo escurecera a “Residên-cia dos Alves”, mas não a envergara ou a demolira. Da sua construção ninguém lembrava ao certo. Mas de seus moradores, sabe-se que o senhor Alves e sua esposa eram im-buídos de grande vontade de terem um varão como herdeiro. Entretan-to, toda vez que a senhora Maria Richet Alves engravidava a notícia era a mesma: uma menina. E uma após a outra, as crianças seguiam o mesmo destino temerário, pois pas-sado pouco tempo do nascimento faleciam. Até a terceira, pensavam ser fraqueza da mãe ou dos bebês. Depois, diziam que o grande desejo de seus pais por um menino impedia que as meninas sobrevivessem. Do dia para a noite, os Alves se muda-ram após a morte da quinta crian-ça, e o casarão permanecia agora em nossa rua como uma foto ama-relada de uma gaveta esquecida.

Até certa manhã quando um forte perfume se abateu sobre toda rua. Como o aroma era pesado e de in-tenso doce, e as pessoas após muitas ligações e perguntas entre janelas não identificavam sua origem à me-dida que as horas passavam, foram à rua como se atendessem uma mes-

ma convocação. Encontravam-se em meio a indagações, até que alguém disse ser aquele cheiro característi-co de uma flor chamada “Dama da Noite”. O palpite foi rechaçado por outro, uma vez que essa flor só abria a noite e ainda não eram cinco da tarde. Além do fato de ninguém dali possuir um exemplar da mesma em casa. Outra pessoa então levantou dúvidas sobre a possibilidade de haver tal flor no casarão dos Alves.

Após breve discussão sobre essa hipótese, alguns homens de-cidiram entrar no casarão a fim de verificá-la. Prepararam-se com ma-teriais próprios para a empreitada e quebrando o cadeado do velho portão decrépito, entraram no ter-reno. Pararam em frente às árvo-res que de tão espessas, impediam avistar o casarão. Existiam muitas histórias envolvendo as cinco meni-nas dos Alves. Alguns diziam terem sido mortas pelos pais e enterradas no terreno. Outros, que a casa era amaldiçoada, e que em certas ma-drugadas, seus choros distantes podiam ser ouvidos. Convencidos sobre os delírios que eram essas his-tórias, avançavam. Sob a copa das árvores, notaram que a temperatura

Cestrum NocturnumFelipe Boaventura

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diminuía e que o aroma se tornava ainda mais forte. Em silêncio, cami-nharam até quando inesperadamen-te o cinturão de árvores terminou e à frente, a coisa mais incrível surgiu.

Diante deles, o velho casarão ja-zia em silêncio profundo em meio ao terreno, com toda sua alvenaria externa coberta completamente por um manto de grandes e belas “Da-mas da Noite” abertas. O ar estava tão impregnado pelo seu aroma que demoraram em notar a existência dos outros tipos de rosas, orquíde-as, jasmins, e até Vitórias Régias que nasciam do cimento da casa, e que formavam dos seus quatro lados um mosaico multicolorido. Apenas seu telhado não apresentava qualquer tipo de flor. Nessa distância parecia ter o dobro do tamanho. Passado o espanto, decidiram examinar o ter-reno em busca de possíveis sinais de lápides ou coisas semelhantes. Acabariam assim com os boatos. Porém, de fato, nada de significati-vo encontraram ali. Decidiram então entrar na casa se dividindo em dois grupos, um para cada andar. A lua estampava o céu quando se encon-travam novamente em frente à casa sem nada encontrar nela, senão mui-ta poeira e pouco mobiliário esque-cido debaixo de panos amarelados.

Nada restara fazer senão cor-tar as flores e queimá-las a fim de

acabar com aquele intenso perfume e poderem voltar à normalidade do dia a dia. Logo, juntaram restos de madeiras com as flores cortadas, jo-garam gasolina e acenderam a fo-gueira ao lado do casarão. Quando voltaram para a rua, foram recebi-dos pelas pessoa que haviam per-manecido nela. Afinal, o que havia acontecido e que fumaça era aque-la que saía do terreno e aos poucos enchia a rua? Feitas as explicações sobre o que foi encontrado na casa e como resolveram o problema, se deram finalmente por satisfeitas. Aquela noite transcorreu tranquila e o dia seguinte também teria sido assim, se pela manhã ao acordarem, não houvesse no ar frio que habita-va toda a rua, um forte perfume de aroma pesado e de intenso doce.

# Felipe Boaventura é escritor, Quebradeiro da 4ª edição.

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Rua dos folguedos, brincadeiras, brinquedos, cirandas, crianças, segredos, degredos, mais cedo todos a dormir com medo de assombração.Rua da canção desesperada, da primeira à derradeira namorada, do sonho, da lua e estrela entre paixões, sermões, amendoeiras.Rua que ladeia a praça, que embala a massa entre o ir e o porvir, e o que está por vir entre as nanotecnologias sutis Rua do descontentamento com a hora da mordaça, rua do futebol e da pirraça, da cachaça ao arrebol, rua onde a gente mais matreira nas manhãs alvissareiras vão atrás do seu filó, do seu angu, do seu jiló.Na hora mais virtual, hoje passa o Funk no automóvel da geral,comboio de motoqueiros a dar sinal para periguetes a mostrar o seminu (entramos na era digital).Rua da manhã principiada pelo canto dos pardais, suburbana boemia que volta para seus quintais o eco e invenção de uma nova cidade à contra luz.

# Orlando Rangel é poeta, Quebradeiro da 4ª edição

Rua SalemaOrlando Rangel

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Pediram-me poesia sobre “rua”Mas só sei escrever com o coraçãoSe essa rua fosse minha, estaria é nua De morte, tristeza e desilusão.

Uma rua sem roupas? Não pode!De poesia e canção devo togá-la.Luiz Barbosa nela ainda batuca, sacodesamba de breque, no chapéu de palha!

Fosse minha rua, seria sétimo céu:Com lua e estrelas salpicadas no chão.Na minha rua ainda ouço cantar Noel A sua mais linda e nova composição.

Dessa rua só saio rumo a pátria derradeiraPrivilégio ver o sol nascer tão lindo na Vila! Martinho e meu povo devagarinho subindo a ladeira Meu morro contemplo do peitoril da janela!

# Rogéria Reis é poeta, Quebradeira da 4ª edição

Rua de EstrelasRogéria Reis

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9

I

Como são belos esses diasEm que o sol nos queimaComo que nos beijasse.

Como são belos esses diasEm que o sol nasce do sorrisoDos adolescentes que saem das esco-las.

Como são belos esses diasEm que o sol mora no entoardos cantos dos vendedores ambulantes.

Belos também são os diasEm que o sol junto com o céuTem o poder de gerar pipasQue rebolam suas rabiolasNa azulidade do firmamento.

Assim como belos também são os diasEm que acreditamos que o solSe alimenta das fogosas e animadasQuase sensuais saudações de velhos amigos.Dos inocentes palavrões que nascemDas bocas das crianças que aprendem a falar.

Há tempos em que esse sol e esses diasNão aparecem como que querendoCastigar a malcriação dos homensCom suas ausências.

Mas como o sol e os diasTambém têm seus sentimentosQue pulsam na fé

Destes mesmos homensEles acabam voltandoAtendendo o chamadoDas esperanças das mulheres,Dos sonhos das minorias,Dos desesperos dos indefesos,Das inocências dos ignorantes,Da pluralidade de tudo aquiloQue aos nossos olhos não deveria sofrerMas mesmo assim sofre.

II

E não satisfeitos em voltarEles ainda despem as vestes do nosso mundo particularDesnudando visões,Cintilando percepções,Excitando pensamentos e imaginações.Fazendo co m que uma rua qualquerPossa adquirir o mesmo brilho e ener-giaDe qualquer mulher bela, saudável e tesaPronta para o amor.

Agora deixem-me entoar Um tranquilo e alegre(Algo parecido com melancólico) cantoAntes que o próximo crepúsculoVenha e cubra esse dia e esse solCom seu denso e notívago manto.

# Marcio Rufino é poeta, Quebradeiro da 4ª edição

.

O sol frioMarcio Rufino

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10 Que roda é essa?Jessica Castro

Que roda é essa que gira e gera vidas? Pulsa sonhos! Que ema-na fala e tece demandas emaranhadas visceralmente, por nós.Nobres humanos.Vagantes, errantes, aprendizes!Somos ela! Essa roda! Na pele crua de nossa história, na ferida resiliente de nossa carne...Somos! Giramos! Cantamos e tocamos... Todos embriagados pelo êxtase de nossa própria fé.Lua, pontos brilhantes, chuva fina, alvorada, amanhecer, galo canta. Estamos!E no tempo cíclico ancestral. Somos todos poetas embriagados de gira, de identidades latentes, somos Jongo. Somos ela! Essa roda!Axé!

# Jessica Castro é jongueira, Quebradeira da 4ª edição.

Se chove tudo fica mais fácilSe chove tudo corre...Do telhado se arrastar A vida a cursarE é na esquina que se convence a subirSe a gente passa a dobrarDeve-se olhar, mas com cuidado,O morador subjetivo na janelaSe a gente sobe para escorregarPor entre os tobogãs de ruasPor entre as romãs dos quintaisE faz de tudo um abraço De existir um transpassarParalelepípedo lunarDescascando o cais.

#Rafaela Nogueira é poeta,Quebradeira da 4ª edição.

Ladeira do EscorregaRafaela Nogueira

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Ando pela cidadeTeresa Gil

Ando pela rua Passo tropeço e reparo:Na vitrola sem braçoO disco caladoTudo gasto puído mofadoLargado no meioMal passadoNa calçada Ando pela mesma rua Sigo:Um filme mal revelado passaUm súbito na retinaEmbaça a rotinaNão é um hábito e paro. Foco:A vista pesaExperimento lentesDiferentes modos de olhar pela mesma rua?

AndoPasso acelerado e tudo passan-

do:Sons, odores, sabores,Gentes, coisas, tempo, tudo. Desacelero e volto:Na vitrola o mesmo disco roda

A mesma música toca,A mesma faixa arranha,A agulha gasta engasgaNão é um hábito Volto e acelero:E o chiado de uma agulha de

vitrola velha me martelaA agulha no disco da vitrola

chia me agulhando a almaNão é um hábito Diminuo a marcha:Ando e não passo engasgada fico no meioPor um fioNo meio-fio atropelada?

# Teresa Gil é professora, Quebradeira da 4ª edição.

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A PassarelaLuciana Oliveira

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Passei parte da minha infância, toda minha adolescência e vida adulta numa importante avenida do centro do Rio. Tenho ótimas recorda-ções e sinto-me muito feliz por tam-bém fazer parte desta memorável passarela - como muitos conhecem a Avenida Marquês de Sapucaí.

Ao longo de 30 anos, muitos desfiles se tornaram inesquecíveis. Tomo a liberdade de listar os mais marcantes ao meu ponto de vista. E como diria o samba enredo da Império Serrano de 1982: Bum, bum paticumbum prugurundum. Mangueira 1984: Yes, nós temos Braguinha. Da Mocidade Indepen-dente de Padre Miguel foram ótimos o Ziriguidum 2001, Carnaval nas Estrelas de 1985 que arrasou! O Vira Virou, a Mocidade Chegou e o Chuê, Chuá... as Águas Vão Ro-lar de 1990 e 1991 foram incríveis. Teve também o Kizomba, Festa da Raça da Vila Isabel em 1988 que foi surpreendente. O desfile da Estácio de Sá em 1992, com o enredo sobre o Modernismo foi belíssimo! Teve o homem que voo em plena passa-rela pela Grande Rio em 2001. As trocas de várias roupas durante o desfile pela comissão de frente da Unidos da Tijuca em 2010, e que continuou ousando durantes os ou-tros anos com cabeças flutuando, homem virando mola fazendo a ar-quibancada delirar!

São 80 minutos para que as agremiações cantem e desfilem seus samba-enredos. Infelizmente esse show não é mais gratuito como de-veria ser. Pena porque o Carnaval é do povo, da massa. Como todo brasileiro dá seu jeito, a galera dá o seu ao aproveitar a Marquês nos ensaios técnicos que são uma pré-via do desfile oficial. Ou ainda da arquibancada zero, nas grades e de cima do Viaduto São Sebastião - terror das escola de Samba que se concentram do lado do Balança mais não Cai no dia do desfile ofi-cial. Mesmo sem ter dinheiro para comprar ingresso, o que vale é estar por perto da nossa Marquês de Sa-pucaí e celebrar como todos ali, o maior espetáculo da terra.

# Luciana Oliveira é professora, Quebradeira da 4ª edição.

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Partindo a pé de Cascadura, desça a Rua Sidônio Paes, do-bre na Saint Roman. Na dúvida, peça informações à garota de Ipanema, para circular a Pra-ça General Osório. Dali, pegue a Primeiro de Março, corra até a Vinte e Quatro de Maio, des-canse na Sete de Setembro. Um conselho? Vá devagar até a Dois de Dezembro, afinal, já é quase Natal.

Sob as bênçãos suburbanas, vá em frente pela Dom Helder e, alguns metros adiante, aproveite para um banho no mar do sul da Atlântica que, dizem, inclusive os mais céticos como eu, cura espi-nhela caída e ainda corta o mau--olhado.

Na Itararé, atravesse na faixa e ingresse no teleférico. Após dar Adeus do morro, desembarque na estação Sapucaí para cortar caminho pela Barata Ribeiro e chegar na Edgard Romero, pa-ralela à Conde de Bonfim. Siga as placas em direção ao Méier

e na bifurcação entre a Dias da Cruz e a Gustavo Sampaio, sem soltar as mãos do Leme, opte por seguir em frente pela João Gou-lart até alcançar o contorno da Cesário de Melo, justo onde tem um Campo Grande: você estará a poucos Passos de se unir aos amigos para interagir os nós e falar de poesia. Maravilha.

Dispense as origens e a ceri-mônia. Basta chegar e pronto. A troca de saberes é a festa dos en-contros, seja bem-vindo.

# Denise Kosta é design, Quebradeira da 4ª edição.

Denise Kosta

13Esquinas Improváveis

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RUA – Residência Urbano--Artística – é um programa de residências voltado a artistas e criadores em geral. Seu intuito é estimular a ocupação de espa-ços urbanos públicos na condi-ção de moradores de rua, para assim efetivá-los enquanto lugar de criação por tempo expandi-do, tal qual ateliês para artistas, bloco de notas para escritores, laboratórios para cientistas, en-tre outros espaços e práticas.

O período de ocupação da RUA está aberto! Todos os espa-ços urbanos públicos de trânsito estão amplamente preparados para recebê-los. Recomenda-mos que não portem dinheiro ou quaisquer outros utensílios nessa residência, mas que adquiram o que precisarem ou quiserem, tanto para subsistência quan-to para seus projetos de cria-ção, através da caridade ou dos meios utilizados pelos residentes permanentes, moradores de rua que não chegaram a estes luga-res por meio desta convocatória.

Reconhecemos que a presen-ça de residentes permanentes pode tornar indiscernível para o público geral quem são os ar-tistas/criadores participantes da residência. Mas neste problema temos também uma dupla espe-rança: Primeiro que vocês pos-sam aprender modos de (sobre)vivência distintos dentro do es-paços urbanos públicos, atra-vés do encontro com estes que a tanto tempo estão ali. Segundo que as suas práticas nesta resi-dência possam trazer atenção às práticas artísticas e criativas des-tes moradores permanentes das ruas, despercebidos boa parte do tempo pelos transeuntes urbanos.

A RUA urge!Participem!

# Jandir Junior é artista visual, Quebradeiro da 4ª edição.

Convocatória RuaJandir Junior

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Ludi Um

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Nasci na Estrada da Cacuia, no hospital do célebre médico que introduziu o Sistema de So-corro Urgente das Ruas que, na época, os cariocas não recebe-ram bem. Não eu, mas o tal Sis-tema de Socorro.

Com 24 horas de nascido fui para a Rua Arthur Magioli, no Morro do Dendê. Do lado es-querdo da casa, uma equipe de som de onde sai o som do James Brown, Bebeto, Black Rio e Jimi Hendrix. Do direito, uma vila de quitinetes onde rolava brigas e Odair José, amores e Roberto Carlos, perdão e Nelson Gonçal-ves. Não nesta ordem, mas com intensa frequência. Nos fundos, tinha um terreiro de candomblé que apesar da minha criação ca-tólica apostólica romana ostensi-va, me encantava e me deixava curioso.

Na infância, jogava bola no campinho de barro da Rua Sua-biá e também: bolinha de gude, pique esconde, carniça, soltava pipa e maria-fumaça. Ainda via balões gigantescos sendo prepa-rados para perigosamente ilumi-nar as noites de São João.

Fui estudar na Rua Noêmia da Silveira, mas quando eu era mo-leque se chamava Rua maestro Arturo Toscanini e era uma bai-

ta ladeira. Eu descia um morro e subia outro para ir à escola, fa-zendo um côncavo diariamente. Depois, fui morar na Rua Doutor Manoel Marreiros, onde minha mãe era babá de um menino dez anos mais novo que eu e onde, pela primeira vez, pude conhe-cer a Enciclopédia Mirador e outros livros; um mundo novo ao alcance dos meus olhos.

Eram dias divididos entre a vida pobre do Dendê e a classe média da Praia do Barão. Com eles, fui para a Rua Guapeni e o morro ficou distante. Andava de metrô, ia ao cinema, comia no Rico, mas nunca sozinho… eu e meu walkman, que ganhei de presente de uma ex-patroa de minha mãe, que trazia muambas do Paraguai.

Voltei para Ilha e cursei parte do meu segundo grau na Rua Pio Dutra. Lugar do primeiro beijo, primeiro baseado, primeira vez de diversas primeiras vezes... Depois, realizei o sonho da mi-nha família passando a estudar na Avenida Maracanã. Fazia música, enchia a cara e, de vez quando, estudava. Nessa época, eu morava na Rua Cícero Rosa, já sem a inocência da infância e com uma vontade de mudar dali, de ser cidadão do mundo.

todas as ruas do meu cérebro

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Olhando os aviões cortando o céu, deitado na laje, imaginava os sonhos que ele levava naquele voo.

Como toda família pobre, que vive de aluguel, fomos indo para outras ruas: Jaime Cabral, Curuená, Arthur Magioli e, de novo, Morávia...

Sou encantado pelo centro desde sempre, quando olhava de cima da laje o Cristo ilumina-do com a cidade iluminada sob os seus pés. Queria conquistar aquela cidade!

Peguei o 328 de manhãzi-nha e pela janela; Avenida Bra-sil, Francisco Bicalho, Presidente Vargas, Rio Branco. Passei o dia sorvendo cada passo daquelas ruas, aqueles cheiros, aquelas cores, aquelas faces, um mun-do se abrindo em cada esquina. Voltava toda semana e andava me encharcando daquelas ruas: Uruguaiana, Gonçalves Dias, Almirante Barroso, México, São José, Debret, Alcindo Guanaba-ra, Álvaro Alvim, Senador Dan-tas, Pedro Lessa, 13 de maio. E na 13 de Maio, entre um vinil de Tábua de Esmeralda, do Jor-ge Ben e o CD Bitches Brew, do Miles Davis e a camisa Goo, do Sonic Youth nas bancas da feira de discos, onde a fauna alternati-va carioca se locupletava, resolvi que seria músico e que esta cida-de seria minha. Mas que nunca esqueceria a Arthur Magioli, do barro, dos vizinhos românticos

briguentos musicais, das brinca-deiras ao ar livre, dos piques, do marraio, do “a de fora é minha”, e principalmente dos desejos quando deitado em cima da laje com as estrelas pertinho e dos aviões grávidos de sonhos.

# Ludi Um é músico, Quebradeiro da 4ª edição.

Page 17: Fala quebradas! Edição #1

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A Rua General Clarindo era meu endereço no Engenho de Dentro. Era a rua da feira, a mais ani-mada do bairro aos domingos.Eu gostava de ir à feira. Muitas barracas, muita gente compran-do, num tempo em que não exis-tiam hortifrútis. Achava legal as mulheres que puxavam carrinhos aramados. Minha mãe nunca teve um, sempre preferiu carregar saco-las e eu queria entender o porquê.A gente sempre ia perto do meio-dia, quando o expediente estava quase no fim e, por isso os feirantes baixavam os preços. Fim de feira é a famosa hora da xepa! E quando os barra-queiros por fim recolhiam suas bar-racas, sobravam as frutas pisadas no chão de paralelepípedos e o cheiro enjoado de peixe empesteando o ar.Em 82, a escola de samba Capri-chosos de Pilares, bairro vizinho, subiu pela primeira vez ao gru-po especial, trazendo um samba--enredo que estava na boca de todos. O samba de cunho social e com letra popular, retratava a feira, o feirante e seus bordões.Nesse ano, era comum os barra-queiros cantarem o refrão, cha-mando atenção dos fregueses pras suas mercadorias, orgulhosos por estarem representados numa obra tão significativa para eles. O samba chamava-se Moça Bo-nita Não Paga, e o refrão dizia:

“Pisa na casca de banana escorrega Aqui não paga, mas também não leva. Compra peixe Lili, compra peixe LiliJá é meio dia de bol-sa vazia não pode sairTem zoeira, tem zoeira, Hora de xepa é final de feira”.

Em 2007, O Estádio Olímpico João Avelange, o Engenhão, invadiria a Rua José dos Reis, esquina dessas lembranças. Os tempos mudaram!Sem saudosismo. Afinal, eu gosto de ver as ruas do bairro entupidas de carros nos dias de jogo. Dá uma falsa impressão de que o progresso está chegando ao Engenho de Den-tro e que a qualquer momento, aque-les lugares por onde tanto perambu-lei, podem se tornar pontos turísticos.A Caprichoso de Pilares ganhou e perdeu muitos carnavais. Os carri-nhos aramados estão fora de moda. Mas o cheiro das frutas pisadas e dos peixes , agora num chão asfaltado, continuam se misturando e enchen-do o ar nos dias de domingo. A feira, continua lá, apesar dos hortifrútis.

E moça bonita? Não paga, mas também não leva.

• Cristina Hare é videomaker, Quebradeiro da 2a edição.

Cristina Hare

Rua General Clarindo, uma rua de feira

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FALA QUEBRADAS!Número Um

(Cem exemplares impressos)

Rio de Janeiro, Setembro de 2014.

[email protected]

Ficha técnica desta edição:

Idealização e edição geralFelipe Boaventura

Equipe de Edição ProsaDenise Dias

Rafaela Nogueira

Equipe de Edição PoesiaJanaina TavaresOrlando Rangel

Rogéria Reis

Projeto GráficoEgeu Laus

ApoioUniversidade das QuebradasMuseu de Arte do Rio (MAR)

ProduçãoLetraTera