famÍlia nos seringais: costumes e afazeres · 2015-02-18 · seringal: modelo caboclo e o modelo...
TRANSCRIPT
FAMÍLIA NOS SERINGAIS: COSTUMES E AFAZERES
MAURÍCIO GUEDES DE NEGREIROS*
Inverno: coleta na floresta
A estação chuvosa na Amazônia dificultava o comércio da borracha, pois
impossibilitava a extração do látex pelos seringueiros. Neste período, o leite da seringueira
misturava-se com a água e ficava impróprio para comercializar. E a forma para conseguir
algum recurso financeiro dentro do contexto de seringueiro e “patrão” era a coleta na floresta
de sementes e frutos, usando o mesmo processo de comercialização adotado no tempo do
comércio da borracha.
Este comércio de coleta no período chuvoso estava atrelado, em diversas localidades,
à exploração das imensas áreas verdes da Amazônia... Foi assim no Afuá1 , durante a o
segundo “boom da borracha”. A exploração da foz do Amazonas vem desde o período
colonial, segundo Darcy Ribeiro:
Já nos primeiros anos do século XVII ali se instalaram soldados e colonos portugueses, inicialmente para expulsar franceses, ingleses e holandeses que disputavam seu domínio, depois como núcleos de ocupação permanente. Estes núcleos encontrariam uma base econômica na exploração de produtos florestais, como cacau, o cravo, a canela, a salsaparrilha, a baunilha, a copaíba, que tinham mercado certo na Europa e podiam ser colhidos, elaborados e transportados com o recurso da mão-de-obra indígena, farta e acessível naqueles primeiros tempos. (RIBEIRO, 1996: 35)
*Graduando em História pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) 1 O município de Afuá está localizado ao norte do Marajó, na Microrregião dos Furos de Breves, limitando–se ao norte com a Ilha Caviana, ao nordeste com o município de Chaves, ao sul com os municípios de Anajás e Breves, ao sudeste com o município de Anajás, ao sudoeste com os municípios de Breves e Gurupá leste com o município de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapá.
2
Dentro do contexto da exploração da borracha estamos tratando de uma estação
especifica: o inverno, período de grandes chuvas, que fazem com que os seringueiros
busquem alternativas para obterem algum lucro.
Ao entrevistar os seringueiros das ilhas, percebi que eles tinham uma atividade
econômica comum entre eles durante a chegada das chuvas, diferentemente dos seringueiros
nordestinos que estavam atrelados à dependência do “patrão”. Segundo Cristina Scheibe
Wolff:
Cortava-se as seringueiras no período de 1 de maio e 31 de dezembro, cada estrada 2 vezes por semana, totalizando geralmente 60 dias de corte por estrada. No tempo restante pouco se fazia. Onde os “patrões” permitiam, fazia-se roças de mandioca, milho e outros produtos. Muitos seringueiros iam para as cidades e gastavam tudo o que tinham podido acumular nos meses de trabalho. Outros ficavam no seringal, onde alguns “patrões” aproveitavam a mão de obra disponível. (WOLFF, 1998: 65-66):
O controle dos seringueiros pelo “patrão” torna-se visível na palavra “permitia”, ou
seja, dificilmente os trabalhadores tinham total autonomia mesmo em um período que não se
podia coletar o látex. A “subida” para as cidades para gastar tudo que tinham economizado
durante a safra da borracha no período do verão, fortalecia o laço de dependência entre eles.
Endividar-se e depois tirar borracha nas estradas para quitar a dívida... Sempre os cofres
(cadernetas) dos “patrões” estavam abertos para “ajudar” a endividar os seringueiros.
Outro autor, Greg Grandin também retrata esta questão em sua obra:
Mas na Amazônia os seringueiros muitas vezes passavam os meses “cinzentos e tristes” da estação da chuvosa, quando a extração do látex se tornava lenta demais, “em suas cabanas, sem nenhuma ocupação lucrativa”, acumulando mais dividas do que conseguiriam pagar. (GRANDIN, 1962: 42)
“Sem nenhuma ocupação lucrativa”, nesta frase percebe-se que eles não tinham outra
forma de obter um trabalho que trouxessem dividendos paras esta classe de trabalhadores.
Seringueiros dependentes dos “patrões”, mesmo que houvesse permissão para eles lucrarem
com qualquer outro tipo de atividade, estavam vinculados aos desígnios dos seus contratantes.
Porém notamos uma diferença entre os seringueiros nordestinos e os seringueiros locais das
ilhas.
3
Ao entrevistar sobre o que os seringueiros das ilhas faziam quando chegava o
inverno, responderam dessa forma obtivemos diferentes respostas. A senhora Maria Darcy
Guedes de Negreiros afirmara: “juntava caroço... “Vendia” caroço de murumuru, castanha da
andiroba, semente da ucuúba. A ucuúba não podia exportar, então inventaram esse de virola”.
Mauro dos Anjos Lamarão disse:
nós ia pro mato e pro rio, juntar semente, juntar semente de vergalho de jabuti, semente de ucuúba, semente de andiroba, e semente de pracaxi, pra vender. Vendia lá mesmo pro comerciante, e o comerciante embarcava, de quinze em quinze dias. Quando ele chegava, ia pegando de porto em porto aquela quantidade de semente. Ainda tinha o caroço de murumuru, o caroço de murumuru era o mais difícil de juntar.
Francisco Paulo de Negreiros destacou: “cortando seringueira na época da borracha,
no período do inverno que não podia cortar borracha colhia semente na época. Era murumuru,
castanha da andiroba, a fruta da ucuúba conhecida por virola”.
Ainda que Francisco e Darcy não falassem que o destino das sementes coletadas era
para a venda, fica implícito que se destinava aos barracões dos comerciantes. A coleta de
sementes e frutos trazia uma renda num período que as dificuldades da estação invernosa
impediam que as seringueiras fossem riscadas: “era no período verão, porque de inverno não
dava pra cortar seringa, enche, aí era só água, não dava leite né (riso)”, comentara Dalk Dias
Salomão.
No verão, havia então a contratação de seringueiros, dentro da própria região das
ilhas, onde se criava um vínculo entre seringueiro e “patrão”, no período de extração da
borracha. Quando o inverno chegava, esse vínculo de contrato acabava. Jacinto da Silva Vaz
falou sobre isto: “é riscava, levava um barco cheio, um barco “porrudo”, entrava nesses rios
aí, ia pegando primeiro pra levar pro serviço, principio de junho. Aí passava junho, julho,
agosto, setembro, outubro, novembro, fim de dezembro começava chover vinham devolver,
trazia de volta”.
Uma diferenciação geral entre os dois seringueiros — o migrante nordestino e o das
ilhas — pode ser, grosso modo, posta nos seguintes termos: os nordestinos que trabalhassem
na roça, na coleta de sementes, ou quisessem ir para a cidade gastar suas economias, o faziam
com autorização do seu “patrão”. Ou seja, sempre estavam ligados dentro de processo
submissão em relação aos seus “patrões”. Enquanto que os seringueiros das ilhas tinham
4
liberdade irrestrita para eleger suas atividades alternativas. Apesar de venderem suas sementes
para os comerciantes de Afuá, não tinham nenhuma obrigação de prestar contas com eles,
pois “fim de dezembro começava a chover vinham devolver, trazia de volta”. Sendo assim,
estes podiam fazer qualquer outra atividade, como construir, caçar, pescar, plantar, criar, etc.
O autor João Pacheco de Oliveira Filho (1979) dentro de sua obra “O caboclo e o
Brabo” faz uma concisa distinção destas duas formas de trabalho ao retratar dois modelos de
seringal: modelo caboclo e o modelo do apogeu. O modelo caboclo tem como força de
trabalho o núcleo familiar voltado para a pluralidade funcional, ou seja, para o recurso a
outras atividades de subsistência como: agricultura, coleta na floresta, pesca, caça, pequenas
criações entre outras. O seringueiro e morador de Afuá Jacinto da Silva Vaz mostra essa
independência, ao falar: “ai vinha a extração da fruta. Dela o vinha o murumuru, era a
castanha de andiroba, era a ucuúba. E tinha marisco, [pois] a gente ia mariscar e vendia no
mercado o camarão, peixe. Pescava ai fora no canal”.
Já no modelo do apogeu, predominavam os migrantes nordestinos que trabalhavam
isoladamente, sendo direcionados para a alta produção de borracha, criando uma dependência
em relação ao seu “patrão”. Segundo João Pacheco de Oliveira Filho:
desde o momento em que sai de sua terra o futuro seringueiro já vai se tornando prisioneiro do agenciador e depois do seringalista, tendo que pagar-lhe todas as despesas que realizar até e para a obtenção da primeira safra. [...] O seringueiro nordestino, que migra sem a familia e que tem como objetivo voltar para a sua terra depois de formar algum pecúlio, aquele que se destina unicamente à extração de seringa... Uma mão-de-obra dependente e que se enquadra melhor na organização do seringal... modelo do Apogeu. (OLIVEIRA FILHO, 1979: 135)
Dentro dessa lógica de dependência para com o “patrão” — agenciador e seringalista
— é que se percebe que há uma diferença entre os seringueiros das ilhas e os seringueiros
migrantes nordestinos. A coleta independente de sementes e frutos era uma tradição dos
moradores seringueiros de Afuá. A atividade do período chuvoso era uma das alternativas de
aquisição dos meios de sobrevivência no Afuá. Os moradores desta ilha, além de seringueiros
eram, portanto, coletores de sementes, além de pescadores, caçadores, roceiros...
5
Mulheres e crianças: atividade de homem nos seringais
De que forma a mulher se envolvia dentro desse processo da extração da borracha,
dentro da casa, no roçado? É necessário dar visibilidade para essas trabalhadoras muitas vezes
silenciadas dentro dos escritos historiográficos. Cristina Scheibe Wolff procura abordar
“aspectos da história social das mulheres do Alto Juruá (AC), extremo oeste do Brasil, dando-
lhe visibilidade no processo de constituição dos seringais e da sociedade que ali se formou”
(WOLFF, 1998: 13). A autora esmiúça o cotidiano da mulher do Auto Juruá-Acre, no período
de 1870 a 1945, mulher pertencente às populações menos favorecidas. Ela passa quase que
despercebida dentro da historiografia da Amazônia no ciclo da borracha. Pretendemos
também mostrar a importância da mulher e da criança dentro da comunidade e dos seringais
afuaenses.
As mulheres e crianças das ilhas do Pará também tiveram uma importante
participação dentro do processo da coleta do látex, no período do segundo ciclo da borracha.
Dentro da floresta, em diversas atividades que supostamente seriam “de homens”, mulheres e
crianças tiveram suas participações ativas. Muitas vezes faziam trabalhos de igual rigor em
relação à força física masculina.
Geralmente, os migrantes nordestinos vinham para a Amazônia, sozinhos. Talvez
seja essa a origem da dificuldade de se reconhecer presença da mulher dentro ciclo da
borracha. Entretanto, a busca de vestígios da presença de mulheres trabalhando nos seringais
tem atraído alguns estudiosos, que vem desmistificando a ausência das mulheres nas estradas
de seringais, como Cristina Scheibe Wolff, citada acima, Ligia T. L. Simonian, entre outros.
Fortunato de Souza Pelaes, quando perguntado sobre quem ia para estrada extrair
leite, respondeu: “tinha familia que era a familia toda quando tinha. Familia, a mulher que
gostava de trabalhar ia pro mato com pai, o filho e tudo, não tinham outra coisa, tinham
mesmo que fazer aquilo”. Cândido Galleno Quintas Filho disse: “na estrada ia só homem,
criança não. Só o pai e a mãe, ia só os dois riscar seringueira. Às vezes ia só o pai riscar
seringueira, naquele tempo dava muito dinheiro tirar borracha”. Dentro destas duas respostas
percebemos que a mulher estava ombreada com seu companheiro dentro da estrada de
seringais, apesar de haver negação na fala de Cândido Galleno sobre a ida dos filhos para tirar
látex. Mas, o importante é notarmos que nas ilhas do Afuá encontramos mulheres fazendo o
trabalho nas estradas supostamente de homem dentro da floresta.
6
A autora Ligia T. L. Simonian, ao dissertar sobre a presença da mulher na extração
da borracha, afirma:
é um trabalho masculino, por se um trabalho pesado e perigoso, parece ter desempenhado um papel importante na persistência do silêncio sobre a existência de mulheres seringueiras... Já não há como negar o fato de que as mulheres têm desempenhado um importante papel nesse processo produtivo. (SIMONIAN, 2001: 72)
A autora destaca que mulheres seringueiras começam a germinar de trás de um silêncio
marginalizador, silêncio este que está se quebrando através de informações delas próprias. Ou
melhor, elas nunca negaram ou negariam tais informações, precisavam ser instigadas por
pesquisadores em busca de suas experiências de vida e de trabalho, nas estradas dos seringais.
Vejamos o relato da senhora Rita Fonseca Nogueira, sobre seu trabalho na extração da
borracha:
trabalhei na borracha. É o seguinte: você risca, se tiver de riscar, um palmo sabe, aquele risco e aí encosta a tigela, nesta tigela este leite vem pra dentro, leite da seringueira, aí você risca todinho, cinquenta, sessenta, cem madeira. Risquei com vinte tantos anos. Eu já era casada quando aprendi, porque meu pai não deixava nós trabalhar, tinha os empregados né, pra trabalhar na seringa, ele andava embarcado, tinha uma canoa chamada Da Luz. [...] Meu marido era pobre, e o que ele ganhava não dava pra sustentar o conforto que a gente tava acostumado. Aí eu achei melhor eu ir ajudar ele pra criar meus filhos. Eu me casei com dezessete anos, não tinha mais pai quando me casei. Aí minha mãe morreu. Quando minha mãe morreu eu já tinha casado, com pouco tempo ela morreu, aí eu tive que ajudar ele (marido) pra ver meus filhos bem. Trabalhar na seringa, de tarde ia juntar caroços, pra quando eu fosse defumar já tivesse caroço urucuri, chamado caroço, desse tamanho, pra poder defumar a borracha.
Neste relato, observamos outra situação que levava a mulher para a estrada: a dificuldade
financeira obtida ao ser casar e a busca do conforto que os filhos não tinham. Por isso Rita
Nogueira foi trabalhar com seu marido na extração. E aprendeu a cortar depois de casada,
quando foi ensinada por seu companheiro, pela necessidade acima exposta. A julgar pela
quantidade de árvores riscadas pelo casal — “cinquenta, sessenta, cem madeira” — a estrada
era bastante grande e Rita não media esforços para dar conta do trabalho. E ela destacou:
Eu falei pro meu primo, ele trabalhava tirando madeira assim nessa... pro pessoal, serrando e tudo mais, eu pedia pros meus cunhados, pros primos pra limpar aquele caminho pra mim cortar seringa.
7
Depois a minha sogra ficou viúva ai ela veio morar comigo, ela, minha segunda mãe, muito boa comigo, ai as coisas melhoraram (risos) e eu ia trabalhar sem preocupação.
Percebe-se a relação de parentesco ao pedir ajuda aos primos ou quando sua sogra foi
morar junto com sua familia e ficou cuidando das crianças enquanto ela saia para trabalhar.
Segundo Cristina Donza Cancela: “essa sociabilidade marcada por relações de vizinhança e,
por vezes, de parentesco indica a presença de uma estratégia de sobrevivência desses grupos”
(CANCELA, 2006: 197). A observação da autora evidencia que há recorrentemente uma rede
de trocas de favores baseada no parentesco e na vizinhança dentro das camadas populares.
Outro ponto a observar dentro da entrevista com a senhora Rita Fonseca é a múltipla
função. Apesar dela não cuidar das crianças por motivo de ir para o seringal, as crianças
ficavam com a irmã maior. Entretanto, ela tinha uma especial preocupação com a hora de
alimentar as crianças: “ia só eu e uma cachorrinha, eu deixava meus filhos com a maiorzinha
que ficava na casa eu fechava tudo e ia embora. Quando eu vinha de lá dava a alimentação
deles e voltava”.
Ou seja, isso nos remete ao trabalho de Marcos Montysuma e Tereza Almeida Cruz
(2008) sobre essa múltipla tarefa da mulher, como cuidar das crianças, das crias, do roçado,
da casa, providenciar o alimento entre outros, mesmo tendo que trabalhar nas estradas:
Nos aponta uma situação que nos permite deduzir por que as mulheres sempre se referem ao cortar seringa numa estrada pequena, que cortavam umas duas estradinhas pequenas, em distinção aos homens, que cortavam estradas longas. É que as mulheres cortavam estradas pequenas para poder ficar mais tempo em casa, para poder atender aos serviços domésticos. Ainda que fizessem outros serviços pesados, se ainda cortassem estradas longas, os serviços ditos da casa, como a comida, por exemplo, não seriam atendidos a tempo de servir ao esposo que estava na chamada atividade econômica principal. (MONTYSUMA, CRUZ 2008: 226).
A senhora Rita Fonseca, quando vinha dar alimentação para as crianças,
provavelmente fazia outros trabalhos na casa. Fica implícito que a estrada era próxima de sua
casa. Como afirmam os autores acima citados, trabalhar nas estradas próximas da casa era
condição necessária para se cuidar das atividades do lar.
A preocupação da mulher seringueira afuaense em ajudar seu companheiro com a
extração da borracha e ainda em cuidar dos afazeres fora das estradas também é percebida nas
mulheres seringueiras do Acre, pois, segundo Marcos Montysuma e Tereza Almeida Cruz:
8
apesar de ainda ter vários homens que pensam que o papel da mulher é cuidar da
casa, e ao homem cabe cuidar dos serviços relativos à floresta, na prática, nas
vivências nos seringais acreanos, a maioria das mulheres enfrenta sozinha todo tipo
de trabalho, ou junto com seus maridos, porque conta também a preocupação e a
solidariedade com o companheiro. (MONTYSUMA, CRUZ 2008: 227).
Ou seja, as mulheres da floresta, tanto do Acre quanto as das ilhas afuaenses, sempre
estiveram inseridas no trabalho pesado nas estradas. Trabalho este que sempre foi
discriminado e visto apenas como secundário.
Moises Machado Cohen, sobre as mulheres na extração da borracha, disse: “é muito
difícil ter um “sorteiro”, tinha mulher, filho, mulher também cortava, fazia a borracha dela,
separada, comprava roupa e assim iam vivendo né”. E Dalk Dias Salomão: “ia só homem e a
mulher também riscava, ajudava o marido, e os filhos”. Maria Darcy Guedes de Negreiros
destacou: “trabalhei desde sete anos, risquei, tirei leite, defumei pra fazer borracha. Criança
até aos dez anos eu ia com o s meus pais (pra estrada), depois eu ia com meus irmãos, eles
riscaram também”.
Nessas três narrativas de dois seringueiros e da seringueira da ilha é perceptível
presença das famílias nas estradas, onde a mulher realizava a coleta do látex. Todo trabalho
feito pelas mulheres era derivado da “preocupação e [d]a solidariedade junto com seus
maridos”, segundo os autores Marcos Montysuma e Tereza Almeida Cruz. O comando de
toda a negociação da produção era feita pelo marido:
toda produção da familia era comercializada pelo marido, (...), que administrava
sozinho os negócios da família. No final do ano, ele costumava repassar dinheiro
para os filhos comprarem algum presente. E a mulher só tinha acesso ao dinheiro
quando precisava. Vemos que, para produzir, todos produziam a borracha, mas o
gerenciamento do dinheiro era centralizado nas mãos do “chefe da família”.
(MONTYSUMA, CRUZ 2008: 226).
Mesmo quando Moises destaca que “fazia a borracha dela, separada, comprava
roupa” não se infere daí a independência financeira da mulher, ou a disputa por estrada entre o
casal. Pelo contrário, comprar ou não alguma coisa era uma questão que tinha que passar
pelas mãos do homem. A mulher trabalhava para suprir as necessidades da família, cujos
ganhos eram geridos pelo companheiro.
9
Essa invisibilidade do trabalho de mulheres seringueiras dentro das estradas dos
seringais vinda através do processo histórico e discriminatório pelos próprios seringueiros e
por alguns escritores do assunto durante muitas décadas está sendo desmistifica pelas próprias
mulheres seringueiras e por novos documentos produzidos que estão contribuindo para acabar
com esse silêncio. As mulheres seringueiras das ilhas do Afuá fazem parte deste grupo de
mulheres que estão contribuindo nesse processo. Pois estiveram ombreadas com seus
companheiros nas estradas para ter uma renda maior e ajudar nas despesas domésticas.
Mulheres além de fazerem todo o processo na produção da borracha, tinham seus outros
afazeres, considerados pelos homens como “coisa” de mulher, como: cuidar da casa, dos
filhos, do roçado, das crias... Trabalhadoras com múltiplas funções.
Outro trabalho pouco reconhecido é o trabalho das crianças2. Dentro das estradas dos
seringais era evidente que essa presença não estava relacionada aos migrantes, pois vinham
para a Amazônia com idade adulta. Mesmo por que não era “negócio” interessante para os
aliciadores desta mão-de-obra trazer mulheres e crianças para a Amazônia. Cristina Scheibe
Wolff, ao se referir sobre mulheres e crianças na Amazônia, argumenta:
A princípio crianças e mulheres eram consideradas totalmente improdutivas para o
seringal, já que não se dedicariam, teoricamente pelo menos, à colheita do látex,
alem disso, a presença de crianças e mulheres, gerava a possibilidade e a
necessidade de plantar alimentos, o que na maioria dos seringais deste período era
proibido aos seringueiros. (WOLFF, 1998: 77)
A prática de não trazer mulher e criança decorria do fato de que o seringueiro tinha
que estar totalmente direcionado ao corte da borracha, e a presença destes no seringal poderia
atrapalhar e trazer prejuízo, visto que, no barracão tinha o necessário para o sustento do
seringueiro. No segundo “boom da borracha”, os aliciadores trouxeram para a Amazônia
“soldados da borracha”, jovens solteiros para trabalhar na extração da borracha. Porém, que
fique claro, também vieram famílias para a Amazônia neste período, mesmo em quantidade
reduzida. Cristina Scheibe Wolff destaca que: “outra questão interessante, que diferencia este
novo surto migratório do anterior, é que desta vez não vieram apenas jovens solteiros. Estes
eram a maioria, certamente, mas o número de famílias ou pelo menos casais não pode ser
desconsiderado”. (WOLFF, 1998: 142)
2 Segundo Estatuto da criança e adolescente – ECA – criança é a pessoa com idade inferior a doze anos.
10
Neste período, nas ilhas afuaenses, o trabalho familiar era bastante usado na divisão
das tarefas diárias. E as crianças tinham suas obrigações de trabalho dentro do núcleo
familiar. Muitas delas foram introduzidas dentro da floresta para extração do látex, como
vamos ver vários relatos a seguir de moradores do Afuá.
Ao perguntar sobre a idade com que começou a ir para a estrada dos seringais
Fortunato de Souza Pelaes afirmou: “olha rapaz quando eu comecei trabalhar com a borracha
comecei com meus pais, meus pais trabalhavam na borracha porque naquele tempo no interior
não tinha outra coisa: era borracha mesmo naquele tempo. Então, desde criança eu comecei a
ir pro mato com eles. [...] Quando eu comecei mesmo trabalhar eu tinha uns doze anos,
trabalhei mesmo, só que eu ia com ele desde criança, eu tinha uns doze anos quando eu
comecei a trabalhar”. E Jacinto da Silva Vaz nos relatou: “trabalhei muito, muito... Extraindo
o látex, ajudei a produzir a borracha, ia pra estrada mesmo de borracha, tinha doze anos
quando comecei a riscar a seringueira com meu pai”.
Nestes dois relatos fica notório que as crianças realmente trabalhavam
excessivamente na estrada. É importante ressaltar neste relato que elas foram introduzidas nas
estradas pelos seus pais. Esse fato de levar as crianças para dentro da floresta é típico das
famílias dessa região, pois aprender com os pais as tarefas como pescar, caçar, roçar, era a
confirmação que essas tarefas serão continuadas pelos filhos. E o trabalho da extração da
borracha não era diferente, pois a ajuda de toda mão-de-obra familiar no fabrico da borracha
trazia maior ganho.
Vejamos o relato de Maria Darcy Guedes de Negreiros: “trabalhei desde sete anos,
risquei, tirei leite, defumei pra fazer borracha. Criança até aos dez anos eu ia com os meus
pais (pra estrada), depois eu ia com meus irmãos e irmãs (sendo a mais velha dos irmãos), eles
riscaram também”. A seringueira Maria Darcy disse que começou a trabalhar nas estradas
com seus pais até aos dez anos, mas depois passou a ir com seus irmãos e irmãs, sendo ela a
mais velha dos filhos. Ou seja, ela aprendeu as etapas do trabalho dentro das estradas com
seus pais. Depois tinha a responsabilidade, após os dez anos de idade, de levar seus irmãos
menores para a floresta, para riscar seringueira. E nesse processo de aprendizagem com o
mais velho, possivelmente também tinha que ensinar seus irmãos a etapa da extração do látex
nas estradas.
11
Francisco Paulo de Negreiros, ao buscar pela memória sobre o assunto tratado, nos
revela que seu pai faleceu quando ele tinha doze anos de idade, ou seja, cedo teve a
responsabilidade de “gente grande”. Ele nos relatou que: “eu também cortei muita seringa,
desde os cinco anos eu acompanhava minhas irmãs no caminho da seringa, aí depois comecei
a cortar seringa só. Depois de adulto vendi muita borracha até mais ou menos”.
Ao descrever sobre a idade com que começou a trabalhar, percebe-se que aos cinco
anos ele acompanhava suas irmãs para as estradas, ou seja, suas irmãs, seringueiras e também
crianças, foram que o ensinaram a coletar látex. Toda a família, voltou a dizer, estava
envolvida na atividade de produção gomífera.
Já Mauro dos Anjos Lamarão acompanhava outras mulheres, suas tias: “com nove,
no máximo dez anos comecei a andar no mato ajudando a cortar seringueira, ia com minhas
tias, meus parentes, porque eu não me criei com meus pais, eu me criei com minhas tias. Era
um tempo com uma um tempo com outra, era assim, na ilha das Pacas”.
Isso nos mostra que as mulheres estavam diretamente ligadas à extração da borracha
nas estradas das ilhas afuaenses. Não só isso, crianças estavam trabalhando ombreadas com
seus pais. E não podemos deixar de ressaltar que elas tinham um importante papel de passar a
cultura das estradas de seringais para os mais novos, como vimos acima.
Ao tratar da quebra do anonimato das mulheres seringueiras dentro das florestas,
Ligia T. L. Simonian assevera: “o discurso acadêmico, a documentação produzida e a
iconografia continuarão contribuindo para a quebra do silêncio que envolve o trabalho das
mulheres seringueiras em particular e das extrativistas em geral”. (SIMONIAN, 2001: 99)
O silêncio ensurdecedor, o triste apagar da História de histórias de mulheres e
crianças que se embrenharam dentro das estradas das seringueiras, com o mesmo ímpeto dos
seringueiros homens e, a bem da verdade, trabalhando muito mais que os homens — pois
tinham seus afazeres corriqueiros no roçado, na casa, nas crias, entre outros — vem sendo
reconhecido e combatido dentro da historiografia amazônica por pesquisadores que estão
entrando mais profundamente nas memórias silenciadas e que estão fazendo grandes
descobertas, principalmente quando buscam os relatos orais de pessoas que viveram este
período. Dar ouvidos a essas pessoas faz toda a diferença: possibilita quebrar o silêncio no
que diz respeito às mulheres e às crianças trabalhadoras nos seringais.
12
Depoentes
Moradores antigos do município de Afuá-Pa, ilhas circunvizinhas e em Macapá-Ap.
Sr. Jorge Araujo Filho, 79 anos (03/09/1935), natural do municipio de Afuá;
Sr. Cândido Galleno Quintas Filho, 89 anos (27/09/1925), natural do municipio de Afuá;
Srª. Rita Fonseca Nogueira, 88 anos (04/12/1926), natural do municipio de Afuá;
Sr. Dalk Dias Salomão, 81 anos (19/07/1933), natural do municipio de Afuá
Sr. Moises Machado Cohen, 85 anos (19/11/1929), natural do municipio de Afuá
Sr. Jacinto da Silva Vaz, 79 anos (03/07/1935), natural de Belém
Srª. Maria Darcy Guedes de Negreiros, 81 anos (29/11/1933), natural do municipio de Afuá
Sr. Francisco Paulo de Negreiros, 79 anos (03/05/1935), natural do municipio de Afuá
Sr. Mauro dos Anjos Lamarão, 82 anos (22/12/1932), natural do municipio de Afuá
Sr. Fortunato de Souza Pelaes, 84 anos, natural do municipio de Afuá
BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Sidney Barata de: Arigós, jabá e o caso da carne verde: vivências populares na
cidade de Manaus (1939 – 1949). Dissertação (Mestrado em História) –Universidade Federal
do Amazonas, 2012.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3°ed. São Paulo: companhias das
letras, 1994.
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha.
Belém (1870-1920). Tese (doutorado em História social) defendida na USP, 2006, p. 182-
239, 285-318.
CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. História e análise de textos. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da história: ensaios de
teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
CASTRO. Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo
(orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 16ª Edição. Rio de Janeiro.
Elsevier. 1997.
13
CRUZ, Manoel de Jesus Masulo da. Territorialização camponesa na várzea da Amazônia.
274f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Universidade de São Paulo, SP. 2007.
DAOU, Ana Maria. A Belle Époque na Amazônia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. Ed. 2000.
GRANDIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na
selva. Rio de Janeiro: Rocco, 2010, p. 35-46, 279-330.
HEMMING, John. Os índios e a borracha. In: Fronteira amazônica: a derrota dos índios
brasileiros. São Paulo: EDUSP, p. 362-392.
HUERTAS, Daniel Monteiro. Da Fachada atlântica à imensidão amazônica: fronteira
agrícola e integração territorial. São Paulo: Annablume, 2009, p. 105-163.
LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho
científico. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 1992.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4°ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
LIMA, Frederico Alexandre de Oliveira. Soldados da Borracha: das vivências do passado às
lutas contemporâneas. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Amazonas,
Manaus, 2013.
LITTLE Paul E.. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: Por uma antropologia
da territorialidade. Universidade de Brasília. 2002.
MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão
Rondon”. Tese (Doutorado em História), PUC-SP, 1997, p. 68-135.
MARTINELLO, Pedro. A “Batalha da Borracha” na Segunda Guerra Mundial e suas
consequências para o vale amazônico. Tese (Doutorado em História Econômica),
Universidade de São Paulo-SP. 1986, p. 110-143, 292-329.
MONTYSUMA, Marcos. CRUZ, Tereza Almeida: Perspectivas de gênero acerca de
experiências cotidianas no seringal Cachoeira – Acre (1964-2006). História Unisinos. V.
12, N°3, 2008.
MEIHY, José Carlos Sebe; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar.
São Paulo: contexto, 2007.
14
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O caboclo e brabo: notas sobre duas modalidades de
força de trabalho na expansão da fronteira amazônica no século XIX. Encontros com a
civilização brasileira. N° 11, 1979, p. 101-104.
PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: Narração, interpretação e significado nas
memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n° 2, 1996, p. 59-72.
RIBEIRO, Darcy. A Amazônia extrativista. In: Os índios e a civilização: integração das
populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 35-62.
ROSEMBERG. André. SOUZA, Luís Antonio Francisco. Notas sobre o uso de documentos
judiciais e policiais como fonte de pesquisa histórica. Patrimônio e Memória. UNESP-
FCLAs-CEDAC, V. 5, N.2, P. 168-182 (2009)
SECRETO, Maria Verônica. Soldado da borracha: trabalhadores entre o sertão e a
Amazônia no governo Vargas. São Paulo. Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 67-88.
SIMONIAN, Ligia T. L. Mulheres da Amazônia brasileira: entre o trabalho e a cultura.
Belém: UFPA/NAEA, 2001.
THOMPSON, Paul. A voz do passado — História Oral. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992.
VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. 16ª Edição. Rio de Janeiro. Elsevier. 1997.
WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São
Paulo: Hucitec, 1993.
WOLFF, Cristina Scheibe. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da
floresta Alto Juruá, Acre 1870-1945. 1998. 284f. Tese (Doutorado em História) Universidade
de São Paulo-SP. 1998.