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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DA UFRJ MARIA CLARA DE ALMEIDA CARIJÓ A DIMENSÃO INTUITIVA DO PENSAMENTO E DA APRENDIZAGEM ORIENTADORA: VIRGÍNIA KASTRUP Rio de Janeiro 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DA UFRJ

MARIA CLARA DE ALMEIDA CARIJÓ

A DIMENSÃO INTUITIVA DO PENSAMENTO E DA

APRENDIZAGEM

ORIENTADORA: VIRGÍNIA KASTRUP

Rio de Janeiro

2016

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MARIA CLARA DE ALMEIDA CARIJÓ

A DIMENSÃO INTUITIVA DO PENSAMENTO E DA

APRENDIZAGEM

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Psicologia

ORIENTADORA: VIRGÍNIA KASTRUP

Rio de Janeiro

2016

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MARIA CLARA DE ALMEIDA CARIJÓ

A DIMENSÃO INTUITIVA DO PENSAMENTO E DA APRENDIZAGEM

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Psicologia

Aprovada em

__________________________________________ Prof.ª Dr.ª Virgínia Kastrup – orientadora Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________________

Prof.ª Dr.ª Beatriz Sancovschi Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________________

Prof. Dr. Luiz Antonio Saléh Amado Universidade do Estado do Rio de Janeiro

__________________________________________

Prof. Dr. Arthur Arruda Leal Ferreira Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________________

Dr. Maurício Canton Bastos

RIO DE JANEIRO

2016

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AGRADECIMENTOS

Ao Filipe, pelo trabalho, pelo descanso, pela presença, pelo cuidado e pela alegria;

à Virgínia, pela amizade e pelo caminhar junto;

à minha mãe, Carmem, e à Carol, pela preocupação, pelo incentivo e pelo conforto;

ao meu pai, pela inspiração;

a Felipe, Jéssica e Verônica, pela amizade;

aos amigos de grupo de orientação, pelas contribuições;

a Ana e Giancarlo, pela colaboração sempre gentil;

ao CNPq, por ter apoiado financeiramente este trabalho.

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RESUMO

Carijó, Maria Clara de Almeida. A dimensão intuitiva do pensamento e da aprendizagem. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016.

A tese investiga a dimensão intuitiva da cognição no domínio do pensamento e da

aprendizagem. Argumenta-se que tal dimensão é parte constituinte de todo processo

cognitivo, embora, na maior parte do tempo, ela escape ao foco da atenção. Na psicologia e

nas ciências cognitivas não encontramos uma tradição de pesquisas sobre intuição; no entanto,

estudos do tema foram realizados de maneira esparsa e isolada por diferentes autores, em

diferentes contextos. Os objetivos deste trabalho são aprofundar a compreensão conceitual da

intuição e esclarecer o modo como ela participa dos processos de aprendizagem, discutindo as

implicações dessa participação para o campo da educação. Para isso, identifica-se e discute-se

certo conjunto de aspectos atribuídos à intuição pela literatura. Entre esses supostos aspectos

estão, por exemplo, seu caráter inconsciente, sua oposição à lógica e sua afinidade com

sensações e sentimentos. Defende-se que esses aspectos podem ser compreendidos de

diferentes maneiras, e que certo tipo de metodologia empírica frequentemente conduziu a uma

interpretação sua que merece ser contestada. Para realizar essa crítica, toma-se como principal

referência Claire Petitmengin, que observou a experiência subjetiva da intuição utilizando-se

de métodos de primeira pessoa. A consideração da experiência no estudo da intuição permite

entender melhor os aspectos do fenômeno anteriormente mencionados e reformular certas

concepções geralmente aceitas sobre eles. Outros autores importantes para tal trabalho são

Rudolf Arnheim, Eugene Gendlin e Daniel Stern. Assim, afirma-se que o caráter afetivo e

sensível da intuição não é apenas um atributo secundário, mas é central para o

desenvolvimento de processos intuitivos, tornando possível a existência de uma espécie de fio

condutor; nega-se a dicotomia entre pensamento intuitivo e pensamento analítico ou lógico e

sugere-se que ambos devem ser compreendidos como diferentes dimensões do pensamento

que se relacionam de maneira colaborativa e inseparável; reformula-se a noção de que

intuição é um processo inconsciente, imediato e não verbalizável em termos da ideia de que

ela é um modo de cognição pré-refletido, incorporado e não conceitual. Por fim, em discussão

com autores como Max Wertheimer, Virgínia Kastrup e Yves Citton, defende-se a intuição

como uma dimensão fundamental dos processos de aprendizagem, que lhes confere sentido

intrínseco e caráter mobilizador e inventivo. Salienta-se, entretanto, que sua participação em

tais processos pode assumir proporções variáveis, de acordo com o modo como a atenção é

dirigida nas práticas de ensino e aprendizagem.

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Palavras-chave: intuição; pensamento; aprendizagem; experiência; psicologia cognitiva.

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ABSTRACT

Carijó, Maria Clara de Almeida. A dimensão intuitiva do pensamento e da aprendizagem. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016.

The thesis investigates the intuitive dimension of cognition in the domains of thinking

and learning. I argue that such a dimension is part and parcel of all cognitive processes, even

though it normally escapes our attention. In psychology and in the cognitive sciences more

generally, the investigation of intuition is not traditional; however, studies about it have been

carried out in a sparse and isolated manner by various authors in various contexts. This work

aims to deepen our conceptual understanding of intuition, to investigate the part it plays in

learning processes and to discuss the implications for educational practices. For that purpose,

I identify and discuss a set of features that have been attributed to intuition by the literature.

Amongst those alleged features are its unconscious character, its opposition to logic and its

affinity with sensations and feelings. I show that those features can be construed in various

different ways and that a particular kind of empirical methodology has often led to an

understanding of them that should be called in question. A main source for this criticism is the

work of Claire Petitmengin, who has observed the subjective experience of intuition through

first-person methods. Taking experience into account allows us to better understand the

aforementioned features of intuition and thus to reformulate certain widely held views about

them. The work of Rudolf Arnheim, that of Eugene Gendlin and that of Daniel Stern are

further important sources for this. I defend that the affective and sensible character of

intuition, rather than being a secondary feature, is central to intuitive processes because it

provides the different stages of the processes with a common thread; I reject the dichotomy

between intuitive and analytic or logical thinking and suggest that they should be understood

as distinct but collaborative and inseparable dimensions of thinking; and I reformulate the

notion that intuition is an unconscious, immediate and verbally inaccessible process in terms

of the idea that it is a pre-reflective, embodied and nonconceptual mode of cognition. Finally,

a discussion of the work of authors such as Max Wertheimer, Virgínia Kastrup and Yves

Citton leads me to the claim that intuition is a fundamental dimension of learning processes,

one that endows them with intrinsic meaningfulness and is responsible for their mobilizing

and inventive character. I note, however, that the part intuition plays in such processes takes

on variable proportions, depending on the ways in which attention is directed in educational

practices.

Keywords: intuition; thinking; learning; experience; cognitive psychology.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1.1 Exemplo da tarefa proposta por Westcott .............................................................. 40

Figura 1.2 Córtex pré-frontal dorsolateral ............................................................................... 50

Figura 3.1 Fileiras de fichas vermelhas e azuis distribuídas desigualmente ........................... 87

Figura 3.2 Apreensão intuitiva x intelectual da figura ........................................................... 94

Figura 3.3 Diagramas silogísticos de Euler ............................................................................. 96

Figura 4.1 Gramática artificial utilizada por Reber, com exemplos de sequências gramaticais

geradas por ela ........................................................................................................................ 109

Figura 4.2 Esquema desenhado por Freud para representar o psiquismo humano ............... 117

Figura 5.1 ............................................................................................................................... 136

Figura 5.2 ............................................................................................................................... 136

Figura 5.3 ............................................................................................................................... 137

Figura 5.4 ............................................................................................................................... 137

Figura 5.5 ............................................................................................................................... 138

Figura 5.6 Ilustração da maneira mais intuitiva de apresentação de uma reação química .... 144

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1 SITUANDO O PROBLEMA DA INTUIÇÃO - UM PANORAMA DO CAMPO ...... 20

1.1 Métodos de terceira pessoa e os estudos da intuição ............................................... 21

1.1.1 Estudos teóricos da intuição na psicologia e nas ciências cognitivas ............... 21

1.1.2 Estudos empíricos da intuição na psicologia e nas ciências cognitivas ............ 33

1.2 Métodos de primeira pessoa e os estudos da intuição ............................................. 51

2 O CARÁTER SENSÍVEL DO PENSAMENTO INTUITIVO ...................................... 60

2.1 O pensamento intuitivo possui uma base sensível ................................................... 60

2.2 A exigência da dimensão intuitiva da cognição ........................................................ 63

2.3 A base da experiência intuitiva – os felt meanings ................................................... 68

2.3.1 O que é um felt meaning ..................................................................................... 68

2.3.2 A vitalidade dos felt meanings ............................................................................ 74

2.3.3 A tendência do pensamento intuitivo .................................................................. 76

2.4 Acompanhando o pensamento intuitivo ................................................................... 78

3 A RELAÇÃO ENTRE A DIMENSÃO INTUITIVA E A DIMENSÃO LÓGICA DA COGNIÇÃO ............................................................................................................................ 85

3.1 Pensamento intuitivo x pensamento lógico-analítico ............................................... 86

3.2 A complementaridade entre intuição e intelecto em Rudolf Arnheim .................. 91

3.3 Intuição como dimensão profunda do pensamento ................................................. 99

4 O CARÁTER INCONSCIENTE E IMEDIATO DA INTUIÇÃO .............................. 103

4.1 Caráter inconsciente da intuição ............................................................................. 104

4.1.1 Intuição como uma forma de cognição implícita ............................................. 107

4.2 Caráter de imediatidade ........................................................................................... 113

4.3 O problema da expressão da intuição ..................................................................... 119

5 A DIMENSÃO INTUITIVA NOS PROCESSOS DE APRENDIZAGEM ................ 127

5.1 O caráter sensível da aprendizagem intuitiva ........................................................ 128

5.1.1 Dimensão intuitiva da cognição e pensamento produtivo................................ 131

5.2 Diferentes modos de aprender ................................................................................. 134

5.3 Percepção e aprendizagem intuitiva ....................................................................... 140

5.4 O acolhimento da dimensão intuitiva pelas práticas de ensino e aprendizagem 146

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5.4.1 A dimensão intuitiva no ensino e aprendizagem da leitura e da escrita ........... 149

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 161

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 168

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INTRODUÇÃO

A presente tese investiga a dimensão intuitiva da cognição nos domínios do

pensamento e da aprendizagem. Provavelmente, a maioria das pessoas já se deu conta, em

algum momento, do aspecto intuitivo de seu próprio pensamento. Ao termos uma ideia para

um novo trabalho, por exemplo, ela nos aparece, a princípio, como uma impressão global do

que desejamos fazer, e nos sentimos profundamente envolvidos por ela, o que nos anima a

persegui-la. Essa ideia, entretanto, não se assemelha a um projeto, não se apresenta para nós

como um plano claro, definido, o qual precisamos, a partir de então, apenas executar. Pelo

contrário, uma de suas características mais marcantes é a sua difícil tradução em palavras,

uma vez que seus contornos não são bem determinados e que, apesar de termos dela uma

sensação bem específica, sua forma é, pelo menos num primeiro momento, vaga e indefinida.

Diremos, aqui, que este tipo de sensação marca o início de um processo de pensamento

intuitivo. Daí em diante, ela age como uma força motriz de nosso pensamento, o qual vai se

desenvolver de modo a torná-la exprimível, comunicável, clara. Esse processo pode ser mais

ou menos longo. Através dele nosso pensamento vai se transformando, se criando. Como uma

espécie de pano de fundo de nossa experiência, podemos sempre reencontrar aquela

impressão característica de nossa ideia, a mesma que se colocou para nós no início de nosso

trabalho, e que parece permanecer ativa, dando “calor” a nosso pensamento, fazendo-nos

sentir que algo está errado quando este se desvia dela, empurrando-nos em certa direção,

exigindo que nós demos conta de lhe dar concretude. Esse pano de fundo é o que chamamos

aqui de dimensão intuitiva do pensamento. O pensamento, quando se desenvolve de maneira

intuitiva, parece ter uma orientação própria, um propósito que lhe é inerente e que parece ser

suficiente para nos engajar nele. Os elementos que o alimentam não são experimentados como

arbitrários; há uma espécie de clima ou sensação global que os une de uma forma que nos

parece coerente.

A dimensão intuitiva do pensamento é uma parte muito importante de nossa cognição,

embora, na maior parte do tempo, nossa atenção não se volte para ela. Mas ela parece ser

indispensável ao pensamento e à aprendizagem. Sua escolha como objeto de estudo de minha

tese deveu-se ao encantamento que essa dimensão de nossa cognição foi aos poucos me

causando durante meus anos de formação. Já na graduação, realizada no Instituto de

Psicologia da UFRJ, meu interesse pelo tema da intuição e sua relação com o pensamento

havia sido despertado pela leitura de um texto de Rudolf Arnheim (2004) em uma disciplina

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ministrada pela Professora Virgínia Kastrup, da qual participei não somente como aluna, mas

também como monitora durante dois períodos. O tema da disciplina era arte e processo de

criação, e uma de suas principais referências bibliográficas era o livro “Intuição e intelecto na

arte”, no qual Arnheim, em uma perspectiva alinhada com a do gestaltismo, defendia a

intuição como um dos alicerces de toda cognição, ao lado do intelecto, com o qual ela

estabeleceria uma importante relação de complementaridade. Por ocasião da realização de

minha dissertação de mestrado, que investigava o processo cognitivo envolvido na percepção

e na criação da expressividade na arte (ALMEIDA, 2012), deparei-me novamente com tal

tema, mas sob uma nova perspectiva. Minha investigação me levou a concluir que a

percepção da expressividade artística mobilizava uma forma de experiência muito peculiar, a

qual já havia sido investigada pela pesquisadora francesa Claire Petitmengin (1996, 1999,

2001, 2007) e qualificada por ela como uma experiência intuitiva. Mas tal autora afirmava

não somente que a dimensão intuitiva era mobilizada pela experiência com a arte, como

também que ela desempenhava um papel essencial no processo de emergência de todo

pensamento e compreensão, o que a levou a batizá-la como “dimensão fonte dos

pensamentos”. Assim, a mesma dimensão de nossa experiência que parecia ser mobilizada

pela arte correspondia à dimensão intuitiva da experiência estudada por Petitmengin (2001),

cuja relação com o pensamento era estreita (PETITMENGIN, 2007).

E o que há em comum no modo como essa dimensão participa dos processos de

criação artística e dos processos de pensamento? Em minha dissertação, sustentei que o

artista, ao criar uma obra, não lhe dá expressividade por depositar nela seus mais íntimos

sentimentos, que serão posteriormente reconhecidos e revividos pelo espectador. Seu trabalho

consiste em criar uma obra que incorpore determinado caráter expressivo por dar concretude a

certas qualidades dinâmicas presentes na ideia inicial que impulsionou seu trabalho – ideia

que, como sustentamos, possui caráter intuitivo. Para tanto, é necessário que ele realize um

árduo trabalho de seleção de materiais condizentes com sua impressão inicial e avalie

constantemente se seu esforço em lhe dar expressão está sendo ou não bem sucedido

(ALMEIDA, 2012; CARIJÓ, 2014). O mesmo acontece a um cientista ou a um filósofo que

se depara com uma nova ideia: tomado pela força e exigência inerentes a ela, ele também se

esforça para lhe dar corpo, para encontrar meios de expressá-la que estejam de acordo com

aquilo que ela tem de específico, para clarificá-la e expressá-la em uma forma coerente com

sua dinâmica própria e demandante. Para fazê-lo, tanto um artista quanto um filósofo ou

cientista precisam estar atentos a essa dimensão intuitiva que acompanha seu pensamento, que

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lhe fornece as indicações de caminhos a seguir e as pistas para julgar se o processo está se

encaminhando de acordo com a ideia que lhe deu origem.

Do mesmo modo, a experiência daquele que se depara com uma obra de arte também

possui muitos aspectos em comum com a de alguém que lê um tratado filosófico ou um

trabalho científico. O sentido expressivo de uma obra de arte possui caráter evidente e

intenso, difícil de descrever, porém muito peculiar e distinto para o percebedor. A

expressividade é percebida como uma unidade, tornando-se evidente ao percebedor de modo

imediato, através de uma apreensão global da obra de arte. Perceber a expressividade de uma

obra é capturar suas principais qualidades dinâmicas, aquelas já indicadas na ideia da qual o

artista partiu em seu processo de criação, e que agora, graças ao processo de expressão

artística, se encontram encarnadas na obra. De maneira semelhante, a experiência com uma

obra científica ou filosófica pode seguir, em grandes linhas, contornos parecidos. Ao

entrarmos em contato pela primeira vez com uma ideia científica ou filosófica, podemos dizer

que a apreendemos intuitivamente se somos capazes de capturar seu sentido global e segui-lo

ao longo de seu desenvolvimento, como que refazendo, por nossa própria conta, o caminho de

descoberta iniciado pelo filósofo ou cientista. É assim que, antes mesmo de sermos capazes de

explicar para outra pessoa algo novo que aprendemos, capturamos o novo conhecimento em

uma forma global, vibrante, mesmo que ainda um tanto vaga para ser expressa em palavras.

Em todos os casos, a participação da dimensão intuitiva é essencial para o desenvolvimento

de nosso pensamento. Quando não damos atenção a ela e nosso pensamento se desenvolve

sem levar em consideração suas demandas, formas empobrecidas e automatizadas de lidar

com o conhecimento e com a arte podem se produzir.

Ao longo do século XX e contemporaneamente, vários autores buscaram compreender

a intuição e lhe ofereceram diferentes definições. Ao longo desta tese, apresentaremos e

discutiremos muitos deles. Porém, é preciso que indiquemos, desde o princípio, a importância

da contribuição de uma autora, em específico, para a construção deste trabalho, a quem nos

referimos ainda há pouco: Claire Petitmengin. Tendo sido orientada por Francisco Varela,

essa pesquisadora francesa dedicou sua tese de doutorado à investigação da experiência

intuitiva. Mas seu trabalho diferencia-se em um ponto essencial dos de outros pesquisadores

do tema: seu foco não é a formulação de modelos explicativos da intuição, e sim a produção

de uma descrição genética dela. Isso quer dizer que Petitmengin dedicou-se a fazer uma

observação da experiência subjetiva da intuição, utilizando-se para isso de um método que

nunca havia sido utilizado para o estudo desse fenômeno. Tal método consistia no uso de

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entrevistas de explicitação, uma técnica desenvolvida por Pierre Vermersch (1994), cujo

objetivo é acessar o vivido da experiência. O estudo da intuição a partir de tal técnica permitiu

que Petitmengin (2001) visse o fenômeno sob uma nova perspectiva, chamando atenção para

uma série de características dinâmicas deste e para seu caráter processual. A autora pôde,

também, afirmar a intuição como um modo de cognição não conceitual e não analítico que

está sempre ativo como uma dimensão de nossa experiência e que participa de todo processo

cognitivo.

Como a autora, entendemos a intuição como uma dimensão sempre atuante de nossa

experiência cognitiva – e, por isso, nos referimos a ela também como dimensão intuitiva –,

que não atua por recognição, sendo marcada por uma inventividade intrínseca. Para que uma

intuição se desenvolva, é necessário certo tipo de atenção – aberta, receptiva e flutuante – que

nos torna sensíveis àquilo que a situação atual tem a oferecer. Assim, a intuição não possui

uma intenção precisa, um objetivo pré-definido; nela está implicado um tipo de atenção

diferente, não voluntária, que deve ser mantida em suspensão, sem focalizar nenhum objeto

(PETITMENGIN, 1996, 1999, 2007). Outras características importantes do fenômeno, nas

quais nos aprofundaremos ao longo da tese, são seu caráter pré-refletido, global, incorporado

e sensível.

Porém, nosso trabalho diferencia-se do da autora em diversos aspectos. O principal

objetivo de Petitmengin é, através de um trabalho empírico, acompanhar e descrever

processos intuitivos, especificando suas diferentes fases e os diferentes gestos que nos

permitem tomar consciência deles. Nosso trabalho visa aprofundar conceitualmente o tema,

propondo uma revisão crítica de certos modos de se compreender alguns de seus aspectos

mais importantes. É o caso do papel que se têm atribuído às sensações e sentimentos nos

processos intuitivos e de algumas características que tradicionalmente vêm sendo imputadas a

eles – tal como seu caráter inconsciente, sua imediatidade e sua oposição à lógica. Assim,

tomamos o trabalho de Petitmengin como ponto de partida para a crítica de certas pesquisas e

teorias provenientes da psicologia e das ciências da cognição que, pela interpretação que

oferecem de tais pontos, tendem a restringir a intuição a um fenômeno empobrecido e

circunscrito. Esperamos, com isso, oferecer ao leitor uma concepção mais ampla e clara da

dimensão intuitiva do pensamento. Uma vez que isso seja feito, temos como segundo objetivo

discutir de que modo a intuição, tal como aqui a entendemos, comparece, ou pode

comparecer, em processos de aprendizagem, e quais as implicações disso para o campo da

educação.

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O esclarecimento que desejamos fazer de certos aspectos da dimensão intuitiva do

pensamento nos parece necessário por uma série de razões. Muitos estudos reconhecem que a

intuição envolve emoções, sentimentos e sensações. Todavia, pouca importância é atribuída a

esses elementos constitutivos da experiência intuitiva. Algumas teorias dão a eles um papel

acessório, sem atribuir-lhes nenhuma função significativa. Outras os desvalorizam, tomando-

os como um índice da inferioridade, primitividade ou do caráter meramente instintivo da

intuição, em comparação com formas superiores de pensamento e de processamento

cognitivo. Poucas chegam a conferir-lhe um papel expressivo na intuição, e quando o fazem,

geralmente recorrem a mecanismos de aprendizagem associativa muito simplificados para

explicar de que modo as emoções se relacionam com as ideias que compõem o pensamento.

Porém, qualquer um que já tenha observado em si mesmo o desenvolvimento intuitivo de uma

ideia fica com a sensação de que tais explicações não esclarecem, de fato, como os afetos e

sensações participam de nosso pensamento. Isso parece ser confirmado pela descrição

genética da intuição oferecida por Petitmengin (2001, 2007), que mostra a importante função

desses elementos na condução do processo intuitivo e na produção de seu caráter global.

Assim, desejamos afirmar que a intuição possui um caráter sensível que, longe de atribuir-lhe

um sentido pejorativo, indica seu enorme poder de comover-nos e de criar sentido nos

processos de pensamento.

No que concerne às outras características mencionadas, outros problemas se levantam.

É bastante comum que a intuição seja considerada um processo inferior ou oposto ao

raciocínio lógico e analítico. Cria-se, com frequência, uma dicotomia entre intuição e lógica,

ou intuição e intelecto, em que a primeira é considerada uma forma primária ou menos nobre

de raciocínio, em oposição à segunda, geralmente associada ao pensamento hipotético,

científico e racional, e, portanto, mais objetivo e confiável. Essa oposição geralmente supõe

que um modo de funcionamento da cognição exclui o outro, ou, pelo menos, que o primeiro é

inferior ao segundo. Além disso, essa separação dá lugar a teorias que sustentam a existência

de dois tipos cognitivos: pessoas que agem mais intuitiva ou mais analiticamente. Por trás

dessas teorias, encontra-se uma naturalização da separação entre modos intuitivos e modos

analíticos ou lógicos de funcionamento cognitivo que distancia e solidifica ainda mais a

oposição entre intuição e lógica. Diante disso, propomos, em primeiro lugar, uma revisão

dessa concepção dicotômica, sustentando a complementaridade e inseparabilidade entre

intuição e intelecto em todo ato cognitivo. Em segundo lugar, defendemos que a separação

entre tipos cognitivos deve ser repensada em termos de arranjos momentâneos e situacionais,

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em que uma ou outra dimensão da cognição pode ganhar maior proeminência, de acordo com

uma série de fatores, mas nunca de uma vez por todas. Assim, enfatiza-se que tais arranjos

estão sujeitos a flutuações e recomposições ao longo do tempo.

Desejamos questionar também a alegação de que a intuição é um processo

inconsciente e rápido, do qual conhecemos apenas o resultado, que se apresenta para nós de

modo imediato e completo. A descrição da experiência mostrou que, mesmo que na maior

parte do tempo não sejamos capazes de nos dar conta da dimensão intuitiva do pensamento, é

possível nos apercebermos dela por uma mudança de atitude atencional. Assim, a afirmação

do caráter inconsciente da intuição perde força e a noção de pré-refletido mostra-se mais apta

a dar conta do nível de consciência que temos dessa dimensão. Além disso, sua imediatidade

passa a ser compreendida principalmente em função de seu caráter global, abandonando-se a

ideia de instantaneidade de seu aparecimento, uma vez que os estudos da experiência intuitiva

mostram que a intuição tem uma espessura, uma temporalidade própria, e que pode, portanto,

ser acompanhada enquanto um processo.

A reformulação dessas concepções sobre a intuição coloca-nos em condições de

pensar a dimensão intuitiva da aprendizagem e sua importância para o campo da educação. A

intuição, que vêm recebendo considerável atenção de áreas como a psicologia clínica e

organizacional, pouco foi discutida nesse campo. Mas, uma vez que é uma dimensão de todo

ato cognitivo, a intuição comparece também nos processos de aprendizagem, dando-lhes um

caráter vivo e mobilizador. Entretanto, poucas práticas pedagógicas parecem preocupadas

com o cultivo de uma postura atencional atenta a tal dimensão, e acabam produzindo um

apagamento dela nos processos de ensino e aprendizagem. Acreditamos que uma falta de

estudos que abordem o problema da intuição na educação contribui para essa situação e, por

isso, acreditamos ser importante apontarmos a relevância desse tema para as práticas

educacionais.

É preciso mencionar, por fim, que, para o desenvolvimento de nosso argumento, além

do trabalho de Claire Petitmengin, a retomada de autores ligados ao gestaltismo, como Max

Wertheimer e Rudolf Arnheim, será também fundamental. Apesar de não desenvolverem

métodos de investigação da experiência em primeira pessoa, tais autores mostram-se sensíveis

ao caráter fenomenal da intuição, ainda que permaneçam na tradição dos métodos de pesquisa

de terceira pessoa. Assim, certas contribuições do gestaltismo também serão acolhidas para

que possamos repensar certos aspectos da dimensão intuitiva da experiência.

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Nossa tese está organizada da seguinte maneira. O primeiro capítulo apresenta e

discute a contribuição de estudos da intuição realizados tanto no campo da psicologia quanto

no das ciências cognitivas. Dividimos a apresentação destes estudos de acordo com um

critério metodológico, trazendo, primeiramente, estudos em terceira pessoa e, em seguida,

estudos realizados com metodologias de primeira pessoa. De acordo com Depraz, Varela e

Vermersch (2003), os estudos de primeira pessoa diferenciam-se dos estudos de terceira

pessoa por voltarem-se para a dimensão experiencial e subjetiva dos fenômenos. Embora as

metodologias de primeira pessoa tenham sido deixadas de lado por muito tempo pela

psicologia, os autores indicam que, desde a década de 1990, as ciências cognitivas

contemporâneas vêm retomando e desenvolvendo métodos que permitem investigar a

experiência vivida que acompanha os processos cognitivos (DEPRAZ, N. VARELA, F. J.,

VERMERSCH, P., 2003; VARELA, F., SHEAR, J., 1999; PETITMENGIN, 2009). Assim,

na primeira parte do capítulo, discutimos trabalhos teóricos e experimentais que abordam a

intuição a partir de evidências objetivas e comportamentais. Para tanto, nos apoiamos em

autores como Tony Bastick (1982), Malcolm Westcott (1968), Seymour Epstein (2014) e

Jonathan Evans (2003). Apontamos algumas limitações metodológicas desses estudos e

defendemos a necessidade de se utilizarem, nas pesquisas sobre intuição, métodos que

permitam acessar sua dimensão de experiência. Apresentamos, então, em um segundo

momento, a pesquisa de Claire Petitmengin (2001), que investigou a intuição com

metodologias de primeira pessoa, usando entrevistas de explicitação (VERMERSCH, 1994).

Com isso, a autora acessou aspectos dos processos intuitivos que não haviam sido explorados

por outros estudos do tema e que consideramos essenciais para uma compreensão mais

consistente do fenômeno, como buscamos mostrar nos capítulos subsequentes.

O segundo capítulo aborda a relevante questão do envolvimento de sentimentos e

sensações no pensamento intuitivo. A intuição geralmente é caracterizada pela presença de

sentimentos variados a ela associados, como sentimento de direção, de certeza e até mesmo de

satisfação ou alegria. Sensações corporais de vários tipos também são frequentemente

relatadas na descrição do fenômeno (BASTICK, 1982). Examinamos, então, em que

consistem tais sentimentos e sensações e como as diferentes teorias interpretam seu papel no

processo intuitivo. Em seguida, recorrendo ao trabalho de Claire Petitmengin, Eugene

Gendlin e Daniel Stern, mostramos como sensações e afetos estão na base da criação de

sentidos em nossas experiências de pensamento. O capítulo pretende apresentar também o

processo de gênese e desenvolvimento do pensamento intuitivo.

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O terceiro capítulo examina a aparente dicotomia que a literatura aponta entre intuição

e lógica. Com frequência, propõe-se uma oposição entre pensamento analítico, caracterizado

por seu modo sequencial e lógico de operar, e pensamento intuitivo, compreendido como um

processo global, que não estaria sujeito a regras lógicas (WESTCOTT, 1968; EVANS, 2003;

BOUCOVALAS, 1997; BASTICK, 1982). Essa separação é muitas vezes acompanhada da

ideia de que a intuição é uma forma primitiva de pensamento. Buscamos, ao longo do

capítulo, analisar de que modo essa oposição é justificada pelas diferentes abordagens

teóricas, quais são os limites que elas estabelecem entre esses dois modos de cognição e,

sobretudo, como explicam as relações entre eles. Questionamos até que ponto tal divisão faz

sentido e afirmamos que os dois processos são, na verdade, duas dimensões distintas e

inseparáveis da cognição.

O quarto capítulo discute o caráter inconsciente do pensamento intuitivo. Poucos são

os autores que admitem que a intuição seja um processo que pode ser acessado

conscientemente pelo indivíduo (PETITMENGIN, 1999, 2001, 2014; LAUGHLIN, 1997). De

maneira geral, os estudos sobre o tema concordam quanto à afirmação de que a intuição

apenas se oferece à consciência quando seu resultado já foi alcançado. Nesse estágio, ela

surge de maneira súbita e completa para o indivíduo. Entretanto, o processamento que levou a

tal revelação é inacessível para o sujeito, ocorrendo fora do campo da consciência pessoal.

Mostramos que estudos recentes da intuição, que a investigam sob o ponto de vista da

experiência do sujeito (PETITMENGIN, 1999, 2001, 2007; GENDLIN, 1997), mostram que é

possível acompanhar o surgimento e desenvolvimento de uma intuição até sua conclusão em

algumas situações especiais ou através do uso de métodos específicos (PETITMENGIN,

1999, 2001, 2014). Assim, recusaremos a afirmação de que a intuição é um processo

inconsciente, afirmando, em vez disso, seu caráter pré-refletido.

Finalmente, o quinto capítulo busca avaliar como nossa discussão precedente pode

oferecer subsídios para discussões sobre aprendizagem no campo da educação. Mostramos

que a intuição é uma dimensão importante dos processos de aprendizagem, mas que tende a

ser pouco cultivada pelas práticas pedagógicas. Partindo do trabalho de Wertheimer e

Arnheim, mostramos que estas tendem a estimular o desenvolvimento de formas reprodutivas

e automatizadas de relação com o conhecimento, em que o sentido do que se aprende fica,

muitas vezes, esquecido. Afirmamos, entretanto, que é possível criar práticas que acolham a

dimensão intuitiva da aprendizagem em vez de sufocá-la. Utilizando como exemplo o ensino

da leitura e da escrita, defendemos que práticas instrumentais, baseadas em exercícios

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repetitivos e descontextualizados que tendem a minar o interesse dos aprendizes, podem ser

contornadas. Trazendo como exemplo o que se passa em uma oficina literária observada por

Kastrup (2008), mostramos que a prática de certas posturas atencionais pode produzir outros

modos de se relacionar com a leitura e a escrita. Essas posturas atencionais vão desde a

produção de uma atenção a si até aquilo que Yves Citton (2014) chamou de atenção conjunta.

Assim, defendemos que é possível criar práticas pedagógicas mais atentas à dimensão

intuitiva no ensino e na aprendizagem.

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1 SITUANDO O PROBLEMA DA INTUIÇÃO - UM PANORAMA DO CAMPO

Para dar início a nossa investigação sobre a dimensão intuitiva do pensamento,

faremos um mapeamento dos principais estudos sobre a intuição empreendidos na psicologia

e nas ciências cognitivas. Tais estudos lidam com diferentes concepções de intuição, embora,

em linhas gerais, concordem quanto à maioria dos aspectos que podemos considerar como

mais fundamentais para defini-la. Entre eles, podemos citar seu modo global de atuação, sua

operação abaixo do nível da consciência, seu contraste com processos lógico-racionais e sua

capacidade de mobilizar sentimentos. Isso não quer dizer que todos os estudos aceitem todas

as características mencionadas, nem que se limitem a elas. Não há, nos estudos da intuição,

um consenso sobre a definição do fenômeno, nem uma sistematização ou uma tradição bem

estabelecida de pesquisas. Por isso, esse capítulo busca dar conta de construir um panorama

geral de tais estudos na psicologia e nas ciências da cognição, comparando as posições de

maior relevo e destacando suas principais divergências e aproximações. Além disso, e ainda

mais importante, tentaremos apontar os principais problemas envolvidos nas discussões sobre

intuição, de modo que possamos delinear os caminhos de aprofundamento que direcionarão

nossa discussão nos capítulos seguintes.

Como já indicamos na introdução da tese, nossa concepção de intuição alinha-se, em

grandes linhas, com a de Claire Petitmengin. Isso porque tal autora, de acordo com nosso

ponto de vista, ofereceu a este campo de estudos uma contribuição inédita, que toca em um

ponto essencial do fenômeno que poucos estudos haviam tocado: seu aspecto experiencial. A

abordagem da experiência que acompanha a intuição representa uma grande virada em

relação a outros estudos, uma vez que estes parecem não dar conta do caráter vivo,

mobilizante e dinâmico que nos parece essencial no pensamento e na aprendizagem intuitivos.

Deste modo, discutiremos, na primeira seção do capítulo, os estudos que abordam a

intuição em seu aspecto objetivamente observável, que podem ser qualificados, por tal razão,

como estudos em perspectiva de terceira pessoa (DEPRAZ, VARELA e VERMERSCH,

2003). Na seção seguinte, discutiremos a retomada, nas ciências cognitivas, das perspectivas

de primeira pessoa, interessadas no aspecto subjetivo, íntimo e experiencial da cognição, e

mostraremos como, utilizando-se de uma metodologia desse tipo, Claire Petitmengin (2001)

aproximou-se da intuição por outro caminho.

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1.1 Métodos de terceira pessoa e os estudos da intuição

1.1.1 Estudos teóricos da intuição na psicologia e nas ciências cognitivas

Podemos encontrar uma variedade de definições para a intuição, de acordo com

diferentes autores e com os diferentes campos de pesquisa em que ela é investigada:

psicologia clínica, psicologia do trabalho, ciências cognitivas, entre outros. Essa

multiplicidade é confirmada por Marcie Boucouvalas (1997), quando afirma que existem

concepções de intuição tanto em termos cognitivos quanto em termos de sua estrutura

contemplativa e espiritual – é o caso, por exemplo, daquelas provenientes da psicologia

transpessoal, área do conhecimento ao qual a própria autora se afilia. Segundo Boucouvalas

(1997), além da questão de se saber qual a fonte do conhecimento intuitivo, alguns estudos

buscam responder se a capacidade intuitiva é, ou o quanto ela é, um elemento da

personalidade. As relações entre intuição e gênero também são analisadas por alguns

pesquisadores e, atualmente, o tema é muito estudado no campo da administração e dos

negócios, que vem explorando o papel da intuição no contexto das organizações.

Boucouvalas aponta que, na literatura contemporânea, a busca por uma precisão

conceitual da intuição pode ser frustrada, uma vez que uma variedade de termos é usada de

forma indiscriminada para se referir à intuição, como “right brain thinking”, “gut feeling”,

“hunch”1, entre outros. A autora nota que alguns termos representam um processo, enquanto

outros uma experiência. Mas, em sua opinião, para avançarmos o que sabemos sobre intuição,

é preciso entendê-la como um conceito amplo cujas manifestações podem assumir diversas

formas: a de pensamento, sentimento, experiência espiritual ou mesmo de sentido visceral

(BOUCOUVALAS, 1997).

Esta tese, todavia, tem como foco principal a relação da intuição com o pensamento e

a aprendizagem, e por isso lançamos mão, principalmente, de estudos sobre cognição, dando

menor importância àqueles estudos da intuição mais afastados de nossa discussão. Isso,

entretanto, não nos impede de apresentar, quando oportuno, alguns estudos mais próximos da

clínica e da psicologia do trabalho, uma vez que, muitas vezes, tais estudos iluminam questões

cognitivas importantes.

Um trabalho de grande importância nos estudos sobre a intuição foi realizado na

década de 1980 por Tony Bastick. Sua obra é uma compilação de estudos teóricos e

1 Preferimos não fazer a tradução desses termos, pois suas possíveis versões na língua portuguesa alcançam

apenas aproximadamente o sentido original deles.

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experimentais sobre o assunto realizados na psicologia e apresenta também uma contribuição

própria do autor. Em sua pesquisa da literatura disponível sobre o tema, Bastick (1982)

encontrou e reuniu diferentes concepções de intuição. Comparando diferentes estudos, o autor

chegou a uma lista de vinte propriedades que a caracterizariam (ver Quadro 1.1). Bastick

acredita que há certo consenso, embora não total, quanto a tais propriedades da intuição nos

diversos autores que abordam o tema de maneira teórica (para a elaboração da lista, o autor

não considerou definições operacionais da intuição provenientes de experimentos). As vinte

propriedades enumeradas por ele estão resumidas no quadro abaixo:

� aparecimento imediato e repentino; � envolvimento emocional; � certeza subjetiva de correção; � compreensão por sentimento/sensação; � processo pré-consciente; � contraste com razão abstrata, lógica ou pensamento analítico; � influência da experiência; � relação com a criatividade; � associações com egocentricidade; � a intuição não precisa ser correta; � recentramento (recentring); � empatia; � conhecimento inato ou instintivo; � conceito pré-verbal; � conhecimento global; � conhecimento incompleto; � devaneio hipnagógico; � senso de relações; � dependência do ambiente; � transferência e transposição.

Quadro 1.1 Vinte propriedades da intuição mais encontradas na literatura por Bastick (1982)

Embora não pretendamos nos aprofundar em todas as características levantadas pela

pesquisa de Bastick (as quais, em nossa opinião, muitas vezes apresentam, mesmo, certa

sobreposição), é importante explicarmos resumidamente a que elas se referem. Na maioria das

definições encontradas, a intuição é marcada por um “aparecimento imediato e repentino”, o

que significa que, geralmente, ela é entendida como uma espécie de julgamento ou percepção

muito rápida ou imediata, ou mesmo como uma revelação. Há um “envolvimento emocional”,

pois o surgimento de uma intuição geralmente é acompanhado por alguns sentimentos, entre

os quais um sentimento de evidência e o de certeza de correção (o que demonstra a

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sobreposição dessa característica com as de “certeza subjetiva de correção” e “compreensão

por sentimento/sensação”, também discriminadas no quadro acima). Ela é entendida como um

“processo pré-consciente”, o que geralmente significa que não temos consciência de suas

etapas e que não podemos prever sua aproximação2. Seu “contraste com a razão abstrata,

lógica ou pensamento analítico” refere-se à ausência de raciocínio ou inferência na intuição.

Algumas definições encontradas por Bastick apontam uma “influência da experiência” sobre

este tipo de conhecimento, o que geralmente se refere ao fato de que, para que uma intuição

sobre determinado assunto se apresente, é preciso que o sujeito tenha ficado em contato por

algum tempo com ele, é preciso que tenha já alguma intimidade com o tema. A “relação com

a criatividade” demonstra a compreensão que alguns autores têm da intuição como um

processo criativo (posição sustentada por Jung, por exemplo), muitas vezes reconhecido como

uma espécie de inspiração. Por “associações com egocentricidade”, Bastick refere-se a

posições como a de Jean Piaget, para quem a intuição é uma forma de pensamento primitiva e

ainda egocêntrica, tomando a experiência que a criança tem de si mesma e do seu mundo

como principal referência. Ao colocar que “a intuição não precisa ser correta”, o autor refere-

se ao fato de que ela geralmente é experimentada como correta, mesmo que seja apenas uma

hipótese baseada em convicções pessoais e não em fatos ou em um julgamento lógico (ou

seja, ignora-se o fato de que ela possa estar errada). O “recentramento” diz respeito à

capacidade de a intuição reorganizar as informações de modo tal que elas se reestruturem

como algo novo, ou criem conexões surpreendentes com dados a princípio sem relação com

elas. Segundo Bastick, é comum também que a intuição seja caracterizada como um processo

que envolve “empatia”, o que se daria através de componentes cinestésicos e afetivos que

interviriam no julgamento. A intuição é também muitas vezes reconhecida como um

“conhecimento inato ou instintivo”, geralmente menos elaborado do que o raciocínio lógico.

Pelo fato de os passos do pensamento intuitivo não serem geralmente articulados nem

colocados em forma de um relato, a intuição é muitas vezes classificada como um tipo de

“conceito pré-verbal”. Por envolver uma percepção do problema como um todo, é entendida

como um “conhecimento global”, e por parecer alcançar certos resultados sem a presença de

muitas evidências ou informações, é também considerada um “conhecimento incompleto”. A

característica “devaneio hipnagógico” refere-se a seu frequente aparecimento durante estados

mentais relaxados ou dissociados. A intuição também coloca em jogo a percepção de relações,

de padrões, sendo, por isso, caracterizada como um “senso de relações”. Diz-se que ela é

2 O uso do termo pré-consciente é uma escolha de Bastick (1982), que o emprega em sua própria teoria sobre a

intuição. Porém, a maioria dos autores que apresenta usa, em vez dele, o termo inconsciente.

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“dependente do ambiente”, pois em situações muito hostis ou nas quais o sujeito sente-se

acuado pela conjuntura em que se encontra, o uso da intuição tende a diminuir. Finalmente,

diz-se que a intuição caracteriza-se por “transferência e transposição”, o que significa que as

relações ou padrões percebidos pela intuição podem ser transpostos para outros contextos,

sendo percebidos em novas situações, que passam a ser relacionadas com a situação original

em que a intuição se deu. Bastick (1982) destaca, entretanto, que a oposição à lógica é a

característica mais comumente atribuída à intuição. Em seguida, as características mais

importantes seriam: senso de relações, recentramento, envolvimento de emoções e caráter pré-

consciente.

A lista elaborada por Bastick (1982) parece-nos, de fato, bastante completa.

Entretanto, a maioria dos autores preocupa-se mais com uma ou outra dessas características, e

diferentes autores, interessados na investigação de uma mesma característica, muitas vezes a

explicam de maneiras completamente diferentes. Assim, raramente encontramos consenso

sobre o problema da intuição. Tentaremos apresentar um apanhado representativo dos estudos

da intuição, buscando dar conta dessa diversidade de abordagens que caracteriza tal campo de

investigação.

Um mapeamento do campo de estudos sobre intuição foi realizado por Malcolm

Westcott em 1968, em seu livro “Toward a contemporary psychology of intuition”3. O autor

realizou um levantamento das principais concepções filosóficas de intuição, além de reunir as

principais teorias e pesquisas em psicologia sobre o tema. No campo da psicologia clínica,

Westcott (1968) identifica Jung (1926) como o autor que formulou de maneira mais completa

e compreensiva o conceito de intuição. Ele a define como o processo de perceber, imediata e

inconscientemente, as possibilidades e potencialidades dos objetos que são o foco da atenção,

sejam eles externos ou internos. O processo ocorre à custa de se perderem os detalhes da

situação, mas as percepções que resultam dele são tomadas como verdades. Para Jung, a

intuição é uma forma de conhecimento, imediata e acrítica, mas sujeita a modificações por

outras funções mentais, o que faz com que seu resultado possa ser usado para o bem ou para o

mal. A intuição pode errar, embora seja acompanhada de um elemento de convicção. Mas

jamais pode ser reduzida à inferência.

Ainda no campo da clínica, Westcott cita duas outras definições de intuição. Eric

Berne (1949), analisando sua própria experiência clínica, define a intuição como um

conhecimento baseado na experiência e adquirido através do contato sensorial com um sujeito

3 Referimo-nos, principalmente, ao campo de estudos psicológico. No campo filosófico, cf. WILD, K.W. Intuition.

New York: The Macmillan Company, 1938.

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ou tema, sem que aquele que tem a intuição possa formular para si mesmo ou para os outros

exatamente como ele chegou a suas conclusões. Já S. Hathaway (1955), citado por Westcott,

propõe que a intuição clínica é um processo inferencial em que um percebedor ou receptor

não consegue identificar que pistas ou processos cognitivos o levaram a determinadas

inferências sobre a pessoa-alvo. Nessas situações, a informação disponível parece ser

inadequada ou insuficiente para produzir tais inferências e a atividade do receptor parece

exceder a análise racional ordinária.

Essas duas últimas formulações, embora não possuam a mesma força teórica que

outras conquistaram, como aquela sustentada por Jung, têm muito em comum com definições

que aparecem em contextos experimentais da psicologia cognitiva, que analisaremos na seção

1.1.2. Nelas, vemos que a intuição é definida como um processo geralmente inconsciente, que

leva o sujeito a determinada conclusão ou solução de um problema sem que ele seja capaz de

compreender e formular verbalmente de que modo a alcançou, uma vez que os dados que

estavam disponíveis para que ele o fizesse não eram claros o suficiente para justificar lógica e

racionalmente o resultado obtido.

Embora mantendo uma relação com a clínica, os estudos da personalidade abordam a

intuição de uma maneira um pouco mais específica. Ora se aproximam mais de uma discussão

sobre o melhor método para avaliar a personalidade de uma pessoa, ora de uma discussão

sobre o conteúdo da personalidade propriamente dito. Em relação ao primeiro tipo de

abordagem, menos em voga nos dias atuais, Westcott afirma que os psicólogos desse campo

herdaram da filosofia uma controvérsia que os dividiu, inicialmente, em dois lados. De um

lado, havia uma corrente intuicionista da análise da personalidade, e Allport (1929) é

apresentado por Westcott como um de seus principais representantes. Do outro lado

encontravam-se os psicólogos comprometidos com os testes psicométricos, como, por

exemplo, Thorndike (1918, citado por WESTCOTT, 1968).

Os psicólogos da psicometria defendiam que a personalidade de uma pessoa poderia

ser conhecida pela aplicação de testes específicos, que mensurariam os diversos aspectos da

personalidade do indivíduo separadamente e de forma controlada. Em desacordo com este

método, os intuicionistas defendiam que a personalidade só poderia ser apreendida através da

observação interpretativa holística feita por outro ser humano. Assim, para Allport, a

apreensão da personalidade seria dada por uma intuição, definida como a compreensão da

organização total através do interesse sustentado na estrutura da personalidade. Apesar de

considerar a inferência importante para o estudo da personalidade, a intuição era considerada

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como essencial no processo, pois a mera inferência mecânica não poderia reconstituir, parte

por parte, a personalidade de uma pessoa. Aqui, vemos que a intuição é valorizada por sua

capacidade de apreensão da totalidade de um campo complexo, sendo considerada um meio

apropriado para atribuir a ele um sentido global, dando-lhe a aparência de uma unidade

coerente.

Essa discussão perdurou até a década de 1930. Depois disso, Westcott (1968) afirma

que nenhum psicólogo aceitou sustentar seriamente a ideia de que haveria uma faculdade

especial da mente como a intuição, que seria um meio para a captura imediata da realidade. O

autor chama atenção para o fato de que mesmo Allport deixou de usar o termo intuição em

obras posteriores a essa década, por considerá-lo portador de uma carga emocional excessiva.

Todavia, continuou usando a mesma definição, apenas utilizando um novo termo para

designá-la: percepção padronizada (patterned perception).

O debate, entretanto, não deixou de existir completamente, apenas mudou de contexto.

Allport continuou sustentando uma posição holística e compreensiva da personalidade,

opondo-se, agora, a Hall e Lindzey (1984), para quem a personalidade só poderia ser

construída pelas observações limitadas que uma teoria (um conjunto de convenções) tornaria

possíveis. Os elementos da personalidade seriam os construtos da teoria usada e o objetivo da

análise não seria a compreensão da personalidade, mas a elaboração de algum grau de

predição em relação a ela.

Notamos, aqui, que a intuição era tratada pela psicologia da personalidade menos

como um objeto de estudo, e mais como um tipo de conhecimento ou método da prática dos

psicólogos de tal área. A discussão visava avaliar se a intuição era ou não um bom meio para

se fazer a investigação da personalidade de um indivíduo. Era tratada, então, como um

instrumento do qual o psicólogo poderia se valer em sua prática, e sobre o qual teria, então,

um grau bastante razoável de domínio. Isso é algo bastante raro nas teorias sobre a intuição,

que costumam tratá-la como um processo sobre o qual temos pouco ou nenhum controle, que

é geralmente disparado de maneira automática, em resposta a certas características do

contexto problemático em que aparece, e não de maneira voluntária.

Por outro lado, na maioria das vezes, a psicologia da personalidade tratou a intuição

como parte de seu construto teórico, como um tipo de personalidade em oposição a outros,

como, por exemplo, a um tipo de personalidade racional. A teoria de Jung, já comentada aqui,

pode ser interpretada dessa maneira. Nas últimas décadas, no entanto, a noção de

personalidade perdeu espaço no campo da psicologia, por portar uma conotação por demais

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essencialista. Atualmente, teorias sobre estilos pessoais ou tipos cognitivos tendem a tomar o

lugar das discussões sobre personalidade de outrora.

Uma importante teoria que entende a intuição como um modo de se relacionar com o

mundo capaz de se refletir no comportamento das pessoas foi desenvolvida por Seymour

Epstein. Trata-se da teoria cognitivo-experiencial, cuja primeira versão foi publicada em

1973, e, após algumas revisões, recebeu uma versão mais recente4 (EPSTEIN, 2014). Ela

exerceu grande influência sobre outras teorias da intuição no campo das ciências da cognição

contemporâneas – mais especificamente, sobre aquelas que ficaram conhecidas como teorias

de processamento dual, nas quais nos deteremos em breve – e também no de gestão de

pessoas – principalmente em estudos sobre tomada de decisões.

Epstein (2014) buscou desenvolver uma teoria global da personalidade que pudesse

integrar as contribuições mais importantes dos estudos até então existentes. A teoria

cognitivo-experiencial é definida como altamente integrativa, já que, segundo o autor, ela

seria coerente e compatível com várias outras teorias5. A ideia básica que sustenta a teoria é a

de que existem dois sistemas de processamento de informação distintos, através dos quais a

cognição humana opera: o sistema experiencial e o sistema racional. Ambos os sistemas

operam de maneira paralela e são bidirecionalmente interativos, ou seja, qualquer um deles

tem a capacidade de influenciar o funcionamento do outro. Tanto um como o outro intervêm

em nossos comportamentos, geralmente ao mesmo tempo, embora, na maior parte das vezes,

um deles seja dominante em nossas ações.

A teoria cognitivo-experiencial parece encontrar-se na fronteira entre estudos da

personalidade e estudos da cognição de caráter cognitivista. De acordo com a abordagem

histórica das ciências cognitivas proposta por Francisco Varela (1996), o cognitivismo

computacional ganhou força a partir dos anos 1956, e trouxe a inovadora proposta, para a

época, de que a cognição pode ser definida pela computação. Isso significa que conhecer é

representar, e as representações envolvidas nesse processo possuem uma base física em nosso

cérebro na forma de um código simbólico. Assim, para o cognitivismo, a cognição é uma

4 Originalmente a teoria foi batizada como cognitive-experiential self-theory, devido à influência recebida pela

teoria de Carl Rogers. Alguns anos mais tarde, Epstein passou a chamá-la somente de cognitive-experiential

theory, e é por este nome que nos referimos a ela em toda a tese, em sua tradução para o português (teoria

cognitivo-experiencial). 5 Do campo psicanalítico, Epstein cita a teoria psicanalítica de Freud, a psicologia analítica de Jung, a psicologia

individual de Alfred Adler, a teoria da personalidade de Karen Horney e a teoria das relações de objeto de

Bowlby. Considera-se ainda influenciado pela teoria de aprendizagem de estímulo-resposta de Dollard e Miller,

pela teoria da aprendizagem intra-individual de B. Skinner, pelas teorias fenomenológicas de Carl Rogers e

George Kelly e pelas abordagens dos cientistas cognitivos modernos sobre processamento inconsciente.

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forma de tratamento da informação, que manipula símbolos de acordo com determinadas

regras. Os símbolos representam algum aspecto do mundo real, e o sistema funciona bem

quando é capaz de solucionar bem um problema a ele apresentado.

Durante muito tempo, o cognitivismo computacional foi o modelo hegemônico nos

estudos da cognição. Ainda hoje, ele permanece vivo e muito influente. Assim, é muito

disseminada a visão de que nossos pensamentos e comportamentos são produtos finais

(outputs) de um processamento de informações provenientes do mundo externo (inputs).

Consequentemente, ocorre que a maioria dos estudos sobre intuição na psicologia e nas

ciências cognitivas afilia-se, mais ou menos explicitamente, a essa tradição.

Em Epstein (2014), a proposta de dois sistemas de processamento de informação

reflete o caráter cognitivista de sua teoria. Tal divisão é motivada pela necessidade de se

explicar como certas crenças são capazes de influenciar o modo como as pessoas pensam e se

sentem a respeito de si mesmas, de outras pessoas e do mundo. Segundo Epstein, não somos

completamente conscientes de tais crenças, embora elas sejam essenciais em nossa vida.

Assim, o autor sugere a existência de um sistema de processamento de informação

experiencial, cujo conteúdo consiste em crenças implícitas não isoladas, organizadas em uma

teoria implícita da realidade, que determina como as pessoas se representam, representam os

outros e o mundo impessoal. A teoria implícita da realidade tem papel central em nossa

interpretação de eventos, sentimentos e comportamentos e influencia até mesmo nosso

pensamento consciente. Tal sistema possui atributos e regras de operação próprias: ele opera

geralmente fora do nível de consciência, de maneira rápida, automática, primariamente não-

verbal, holística, com demanda mínima de recursos cognitivos. Cabe destacar, também, o

importante papel que Epstein atribui às emoções no funcionamento desse sistema. O autor

sustenta que, diferentemente do inconsciente proposto pelas ciências cognitivas atuais, o

sistema experiencial é dirigido por emoções, que guiam sua operação por um princípio

hedonista, ou seja, de modo a evitar sentimentos negativos e a buscar sentimentos prazerosos.

O sistema experiencial é capaz de aprendizagem, e esta se dá automaticamente a partir

da experiência. Ele é capaz de aprender de três formas diferentes, todas, porém, automáticas e

associativas: por condicionamento clássico, o sistema aprende a relação entre os estímulos

entre si e deles com suas consequências; por condicionamento operante, aprende a relação

entre estímulos, respostas, e as consequências de suas respostas; e por aprendizagem

observacional, alcança, vicariamente, ambos os tipos de aprendizagem. Através desses

processos de aprendizagem automáticos, o sistema constrói um modelo de trabalho de seu

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ambiente, uma teoria da realidade, que possibilita a adaptação bem sucedida do indivíduo

(EPSTEIN, 2014).

O outro sistema de processamento de informações proposto por Epstein (2014) é o

sistema racional. Diferentemente do sistema experiencial, cuja observação é difícil devido a

sua operação automática e abaixo do limiar de consciência, o sistema racional opera de

maneira consciente, correspondendo a uma forma de raciocínio que se desenvolve de acordo

com princípios lógicos. Assim, esse é um sistema de raciocínio verbal, que opera de acordo

com a compreensão lógica e a consideração de evidências, envolvendo a capacidade de usar

linguagem complexa. Ele governa a operação das teorias explícitas da realidade e atua na

resolução de problemas pela produção de inferências lógicas para além dos dados imediatos;

também busca evidências que dêem suporte para certas ideias em detrimento de outras. Este

sistema trabalha procurando sempre a maior consistência interna e evitando contradições.

Uma importante característica do sistema experiencial refere-se a seu modo holístico

de processamento de informação, em contraposição ao modo analítico do sistema racional.

Isso significa que o sistema experiencial reage à totalidade de determinado evento ou objeto,

ou de determinado grupo de eventos ou objetos, capturando uma impressão do todo. Já o

processamento analítico quebra os dados em seus componentes. Para assinalar a diferença

entre ambos, Epstein (2014) compara o ato de ver um rosto com o de ler a descrição de uma

face. No primeiro caso, tem-se um processamento holístico, que apreende a face em seu

conjunto de maneira imediata, enquanto no segundo caso, o todo da face descrita se constrói à

medida que avançamos na leitura, parte por parte. Epstein (2014) dá destaque ainda a outro

atributo do sistema experiencial: ele dispensa qualquer esforço, uma vez que automático.

Assim, tal sistema demandaria poucos recursos cognitivos e, por isso, seria altamente

eficiente na condução do comportamento no cotidiano, sendo a condição padrão de nossos

comportamentos na maioria das situações.

De acordo com a teoria cognitivo-experiencial, a intuição operaria de acordo com os

mesmos princípios do sistema experiencial. Epstein (2014), entretanto, frisa que ambos não

são idênticos, por uma questão de delimitação: existem alguns fenômenos que estão

associados ao funcionamento do sistema experiencial, mas que ultrapassam o que o autor

entende como intuição. É o caso de medos irracionais, crenças religiosas, superstições e da

coordenação motora. Assim, a intuição seria um subconjunto limitado do processamento

experiencial.

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A função da intuição é prover informação de modo rápido, automático, sem esforço e

holístico. Ela geralmente opera fora da consciência, aplicando os princípios e atributos do

processamento experiencial na solução de problemas, o que nos permite aprender

empiricamente da experiência e usar tais atributos e princípios para responder a situações

novas (EPSTEIN, 2014). Portanto, na teoria de Epstein, a intuição se opõe, de certa forma, ao

processamento racional e analítico. O autor, todavia, não estabelece qualquer relação de

superioridade do sistema racional em relação à intuição e nem o contrário. Segundo ele,

ambos possuem suas potências e limitações.

Nas últimas décadas, houve uma proliferação de teorias que, influenciadas ou não pela

teoria cognitivo-experiencial de Epstein, propuseram ideias muito semelhantes, tendo ficado

conhecidas como teorias do processamento dual. É o caso, por exemplo, do trabalho de

autores como Steven Sloman (1996), Daniel Kahneman (2011), Keith Stanovich e Richard

West (2000) e Jonathan Evans (2003, 2013). Não apresentaremos o trabalho de todos estes

autores porque, apesar das inegáveis especificidades teóricas de cada um, de uma maneira

geral, e até onde nos interessa, as teorias de processamento dual apresentam grande

sobreposição entre si quanto a seus aspectos mais importantes. Traremos apenas a teoria

desenvolvida por Evans (2003), um dos mais importantes representantes dessa posição nos

dias atuais.

As teorias do processamento dual pertencem, majoritariamente, ao campo das ciências

cognitivas, sendo elaboradas no contexto de estudos sobre resolução de problemas. Mas são,

também, extensivamente absorvidas pela psicologia social e do trabalho – especialmente por

estudos sobre tomada de decisões, expertise e tipos cognitivos. Assim, sua influência hoje é

muito significativa e de longo alcance.

Um dos grandes proponentes das teorias de processamento dual é Jonathan Evans,

professor de psicologia cognitiva da Universidade de Plymouth. Sua posição teórica enfatiza a

ideia de que a intuição e o pensamento analítico possuem naturezas completamente diferentes

e opostas (EVANS, 2003). De acordo com sua teoria, a mente humana divide-se em dois

sistemas cognitivos distintos6, a cada qual corresponde uma forma diferente de raciocínio ou

6 Em seus trabalhos mais recentes, Jonathan Evans abandonou o termo sistemas e passou a se referir a dois

tipos de processamento diferentes, aos quais continuou atribuindo os números 1 e 2. Os atributos conferidos

aos dois modos de processamento permanecem os mesmos dos sistemas 1 e 2; a mudança de terminologia

deve-se, principalmente, à tentativa de evitar a interpretação errônea de que cada sistema corresponderia a

um centro cerebral separado. O autor acredita, em vez disso, que algumas estruturas cerebrais participam em

ambos os tipos de processamento. Com a nova nomenclatura, busca evitar uma interpretação localizacionista

de sua teoria.

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pensamento. Esses dois sistemas cognitivos competem entre si e teriam se diferenciado em

função de suas diferentes histórias evolutivas, sendo um mais primitivo do que o outro.

A intuição corresponde ao sistema cognitivo que ficou conhecido como sistema 1.

Este sistema é o mais antigo entre os dois, e também pode ser encontrado em outros animais.

Ele é responsável por comportamentos instintivos inatamente programados e possui um

conjunto de subsistemas que operam com certa autonomia. Os processos ligados a esse

sistema são frequentemente processos associativos de aprendizagem, do tipo produzido por

redes neurais. Eles são rápidos, paralelos e automáticos, e apenas os seus produtos finais

chegam à consciência do indivíduo.

Já o pensamento analítico seria produzido pelo sistema 2. Este é mais recente na escala

evolutiva, sendo um sistema única e exclusivamente humano. Diferentemente do sistema 1,

em que os comportamentos instintivos assumem grande importância e são caracterizados por

sua rapidez, no sistema 2 o pensamento é lento, pois se desenvolve de maneira sequencial. O

aparecimento desse sistema tornou possível o pensamento hipotético e abstrato, que não

ocorre no sistema 1.

Para ilustrar a diferença entre os dois sistemas, podemos tomar como exemplo a forma

como uma decisão é tomada com base em um ou outro. Se a tomada de decisão for

processada pelo sistema 1, ela será rápida, instintiva e baseada em experiências passadas, uma

vez que esse sistema aciona respostas aprendidas por associação. Se o processamento for feito

pelo sistema 2, ele será mais lento, porém, de acordo com Evans (2003), terá mais chance de

levar a uma decisão bem sucedida. Isso porque a decisão será tomada com base em modelos

mentais e simulações do futuro, já que aqui o pensamento é abstrato e hipotético. Dessa

forma, vemos que, segundo a teoria do processamento dual, a intuição é mais primitiva e

menos reflexiva do que o pensamento analítico. Além disso, diferentemente da maioria dos

estudos sobre o tema, ela é considerada pouco inventiva, uma vez que está sempre presa à

experiência passada.

No campo da neuropsicologia, Charles Laughlin (1997), que também é antropólogo,

define a intuição como um tipo de experiência no qual a resposta para uma questão, a solução

para um problema, a direção para alcançar um objetivo, um impulso criativo resultando na

emergência de uma imagem, ideia ou padrão, aparece à consciência de uma vez,

aparentemente do nada. Mas, por trás desse suposto aparecimento sem causa, defende a

existência de processos cognitivos inconscientes que estariam ativos sem serem percebidos,

trabalhando no problema. Afirma ainda que a experiência, que classifica como um insight, é

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experimentada como absolutamente certa, embora admita que o sentimento de convicção

possa existir mesmo quando a intuição leva a uma conclusão errada. Para o autor, a intuição é

uma experiência comum em nosso dia a dia. Frequentemente somos capazes de “ver” a

solução de um problema, ou seja, de apreender através de uma tomada de consciência

imediata uma atividade que operava sem que nos déssemos conta dela, mas que já estava ali.

Quanto às possíveis explicações que poderiam ser fornecidas para o fenômeno da

intuição, Laughlin (1997) apresenta algumas produzidas no contexto da pesquisa

neurofisiológica. Alguns pesquisadores dessa área tendem a identificar a intuição com a

função exercida pelo hemisfério direito do cérebro, uma vez que ele media a produção de

imagens, o pensamento gestáltico ou holístico e a padronização espaço-temporal. Já o

hemisfério esquerdo estaria associado ao que poderia ser chamado de razão, pois está

envolvido principalmente com a produção da linguagem, o pensamento analítico e o

sequenciamento linear e causal dos eventos. Os processamentos de cada hemisfério seriam

não conscientes e haveria complementaridade entre ambos, ou seja, eles estariam sempre

trabalhando juntos para a produção da experiência, embora a intencionalidade da consciência

possa, em dado momento, enfatizar mais uma função do que a outra.

Laughlin reconhece que é útil distinguir a experiência da intuição daquela do

raciocínio, mas considera um erro fundamental que essa distinção leve à consideração de que

ambas constituem modalidades cognitivas opostas ou que possam ser interpretadas

unicamente em termos de funcionamento do hemisfério esquerdo e direito. Coloca-se contra

algumas tendências da literatura que tentam inverter a polaridade antes apresentada pelo

positivismo, considerando o intelecto como o “bandido” e a intuição como “mocinho”. Essa

oposição, segundo o autor, apenas dificultaria e distorceria a compreensão de como

adquirimos conhecimento, tanto na ciência quanto em práticas que poderiam ser consideradas

místicas.

Para o autor, o raciocínio (incluindo aí o intelecto, a razão e a lógica) se refere a

modelos conhecidos de processos cognitivos que são reificados pela cultura e formulados em

termos de regras normativas. Já a intuição se refere a nossa experiência dos produtos de

processos cognitivos operacionais que ocorrem geralmente desligados das redes neurais que

produzem a consciência. Esses processos inconscientes aconteceriam em ambos os

hemisférios cerebrais.

Vemos assim, que as teorias apresentadas tendem a compreender a intuição como um

tipo de processamento de informação cuja principal diferença em relação ao modo analítico

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de tratamento de dados é o fato de que a primeira opera de modo paralelo, num padrão de

operação mais próximo do modelo conexionista da cognição, enquanto o segundo baseia-se

no processamento sequencial da informação. Para os defensores desse modelo, isso explica

porque a intuição é geralmente mais rápida e mais automatizada do que o pensamento lógico,

e porque apreende uma situação de maneira global e imediata. Além disso, fica claro que o

processamento sequencial da informação é geralmente considerado consciente, enquanto o

processamento intuitivo, paralelo, é inconsciente, levando o sujeito a conhecer diretamente

seu resultado. Esse é o modo cognitivista de compreensão da intuição. No entanto, ele parece

não dar conta de maneira satisfatória de alguns aspectos da intuição. Seu aspecto criador, por

exemplo, fica mal explicado, pois é sustentado por um sistema cujo funcionamento apóia-se

massivamente na experiência passada e em respostas associativas e condicionadas

automáticas. Além disso, certos traços evidentes da experiência da intuição, como seu caráter

afetivo, não parecem suficientemente explicados por tais teorias. Retomaremos essas críticas

na seção 1.2, onde buscamos apontar as principais razões para essas dificuldades.

1.1.2 Estudos empíricos da intuição na psicologia e nas ciências cognitivas

As diferentes concepções de intuição que apresentamos levam a diferentes propostas

de estudo empírico da mesma. Por exemplo, pesquisadores que supõem que a intuição é um

processo inconsciente desenham experimentos e analisam seus resultados de acordo com esse

pressuposto; já aqueles que acreditam que é possível conhecê-la, ter acesso a ela, criam

propostas bastante diferentes de investigação. Essa seção tem como objetivo analisar as

diversas relações que se estabelecem entre concepções teóricas e metodológicas sobre a

intuição e avaliar algumas de suas consequências. É importante mostrar que, mesmo

pesquisadores que preferem trabalhar com o método experimental sem se posicionar

teoricamente quanto ao fenômeno estudado, acabam por revelar uma concepção implícita de

intuição que pode ser deduzida de seus experimentos.

Por muito tempo, a intuição foi um tema pouco estudado pela psicologia e pelas

ciências cognitivas. Podemos imaginar algumas hipóteses para essa escassez de investigações,

como, por exemplo, a dificuldade de observação intrínseca ao fenômeno e o problema

envolvido em sua circunscrição. Por muitas vezes, a intuição foi até mesmo desconsiderada

enquanto objeto de estudo de tais campos de conhecimento, seja por seu caráter altamente

subjetivo e pouco científico, seja por ter sido entendida como um fenômeno de caráter mais

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afetivo do que propriamente cognitivo. Outras vezes, ainda, psicólogos e cientistas cognitivos

até a consideraram um tema a ser levado em consideração, mas deram-lhe uma formulação

limitada ou um papel de menor valor.

Segundo Westcott (1968), as investigações experimentais sobre intuição na psicologia

estão divididas em duas tradições principais: uma que inclui os estudos preocupados com o

julgamento de comportamentos complexos (geralmente sociais ou interpessoais) e outra que

se dedica aos estudos de situações não interpessoais, de resolução de problemas e formação de

conceitos. Em ambos os casos, os julgamentos ditos intuitivos são feitos com base em pistas

implícitas, que são manipuladas de modo não explícito e inconsciente. Assim, as duas

tradições entendem a intuição como um caso especial de inferência. Nessa tese, discutiremos

apenas trabalhos pertencentes à segunda tradição apontada pelo autor, uma vez que é nesse

campo que reside, principalmente, nosso interesse.

As definições de intuição apresentadas pelos autores dos estudos citados por Westcott

não possuem uma fundamentação teórica explícita, mas o autor sugere que eles tenham como

background teórico a teoria cognitivista. Até aquele momento, a teoria cognitivista não

possuía uma definição específica para o termo intuição, sendo este usado para se referir a

processos de classificação rápida de um estímulo ou evento. As definições de intuição

oferecidas pelos diversos autores estariam, então, de acordo com o modelo segundo o qual o

comportamento cognitivo individual consiste na codificação e categorização de imputs, com

maior ou menor velocidade, facilidade e acessibilidade. De acordo com essa posição, a

intuição seria:

(...) a codificação ou categorização rápida e a rápida extrapolação baseada na classe de pertencimento do evento categorizado. É um processo inferencial no qual algumas das premissas estão contidas no evento estimulante e algumas delas no sistema de codificação do percebedor (WESTCOTT, 1968, p.42).

Em contextos experimentais da psicologia cognitiva, a intuição é definida como um

processo geralmente inconsciente, que leva o sujeito a uma determinada conclusão ou solução

de um problema sem que ele seja capaz de compreender de que modo a alcançou. Veremos

que alguns experimentos tentam estimular processos intuitivos pela apresentação de dados

insuficientes ou pouco claros, que não são considerados adequados e suficientes para uma

resolução lógica do problema. Outros tentam fazê-lo pelo controle do tempo disponível para a

resolução do problema, pois acreditam que tempos mais curtos incentivariam uma solução

rápida e intuitiva dele.

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Westcott (1968) faz uma grande apresentação dos principais estudos experimentais

sobre a intuição que a psicologia cognitiva realizou até a década de 1960. Veremos que esses

estudos possuem concepções muito parecidas sobre a intuição e, ao final, argumentaremos

que todos eles, de algum modo, empobrecem a compreensão do fenômeno, uma vez que, para

que possam tornar a intuição mensurável, precisam formulá-la em termos de definições

operacionais que, muitas vezes, distorcem o fenômeno ou deixam de fora vários de seus

aspectos.

Alguns estudos apresentados por Westcott foram selecionados como mais

representativos de uma forma de se pensar a intuição no campo da psicologia experimental.

Por exemplo, De Sanctis (1928), citado por Westcott (1968), entendia a intuição como um

tipo de cognição imediata e tinha como hipótese experimental que a base intuitiva – instintiva

e primitiva – para o conhecimento seria mais acessível para crianças e deficientes mentais do

que para sujeitos normais jovens e adultos. Em uma série de experimentos, o pesquisador

utilizou um formato mais ou menos geral, onde crianças (com e sem atrasos cognitivos) e

adultos (sem atrasos cognitivos) recebiam tarefas envolvendo julgamentos globais sobre

tempo, quantidade ou distância, mas não lhes eram dadas oportunidades suficientes para que

fizessem uma avaliação analítica detalhada da situação. Por exemplo, em um dos

experimentos, um cartão preto coberto com pontos brancos era apresentado ao sujeito e,

depois disso, ele deveria escolher, dentre um conjunto de seis cubos de tamanhos graduados,

aquele que sentia ser o que melhor representava o número de pontos no cartão. Em seguida,

eram apresentados mais cinco cartões adicionais, cada um contendo mais ou menos pontos do

que o cartão padrão inicial. Em resposta a cada novo cartão, o sujeito deveria selecionar um

cubo do conjunto, menor ou maior, para representar a direção da diferença entre o cartão

padrão e o que havia sido recentemente apresentado. O pesquisador concluiu que existe uma

antítese entre a cognição racional ou inteligência geral e a cognição intuitiva. A cognição

intuitiva seria mais rápida e mais precisa em crianças do que em indivíduos que possuem o

desenvolvimento completo do pensamento lógico.

Vemos que o experimento de De Sanctis parte da pressuposição de que o pensamento

infantil é intuitivo, enquanto o pensamento do adulto é lógico e mais evoluído. Essa ideia está

presente na teoria psicogenética da inteligência de Jean Piaget, como mostraremos no capítulo

3. Em ambos os casos, supõe-se que o pensamento intuitivo é uma forma inferior de interação

com o mundo. De acordo com o experimento de De Sanctis, a intuição entra em ação em

situações em que o indivíduo não tem a oportunidade de pensar analiticamente. Parece

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também, haver entre ela e o pensamento analítico, algum tipo de influência, uma vez que os

indivíduos capazes de pensamento lógico são mais lentos na resolução de tarefas intuitivas do

que os indivíduos que ainda não desenvolveram esse tipo de pensamento.

Westcott cita também Lorraine Bouthilet (1948), pesquisadora que, num caminho um

pouco diferente, tenta escapar de uma definição do fenômeno, mas acaba afirmando que a

intuição é a capacidade de se oferecer um palpite para um problema sem se saber exatamente

por quê. A autora propôs uma situação experimental em que o sujeito tinha a oportunidade de

adivinhar a resposta para perguntas simples depois da exposição incidental e repetida a

estímulos que poderiam ajudar na precisão dos palpites. Ela queria observar até que ponto o

grau de sucesso dos participantes aumentava ao longo de ensaios sucessivos sem que eles

soubessem dizer qual seria o fundamento para os seus palpites. Para o experimento, foram

construídas listas de palavras associadas em pares: uma primeira, denominada palavra-

estímulo, e uma segunda, que continha as mesmas letras da palavra-estímulo que era seu par

(sempre contendo entre sete e nove letras). Foram elaboradas 20 listas, cada uma com 40

pares de palavras. Uma de cada vez, as listas eram apresentadas ao participante. Depois da

apresentação de uma lista, o participante ganhava uma folha teste contendo quarenta palavras-

estímulo, cada uma delas seguida de cinco palavras, dentre as quais uma deveria ser escolhida

como palavra associada. Era-lhe explicado que algumas palavras lhe dariam a impressão de

não serem familiares em relação à lista que ele havia acabado de explorar, já que ela era longa

e que tinha sido apresentada muito rapidamente e uma única vez. Mas o experimentador já

sabia que algumas palavras com certeza não seriam familiares, uma vez que apenas metade

delas estava realmente na lista apresentada anteriormente. A outra metade era composta por

palavras novas, mas cuja palavra associada a ser escolhida também seguia a regra de ser

composta pelas mesmas letras da palavra-estímulo. Os participantes eram estimulados a

escolher uma palavra associada para cada palavra-estímulo, mesmo que a dupla de palavras

lhe parecesse pouco familiar. A hipótese de Bouthilet era a de que, para as palavras novas,

haveria um aumento na frequência da seleção da palavra associada que estivesse de acordo

com a regra implícita (ser formada pelas mesmas letras da palavra-estímulo).

O resultado do experimento mostrou que, pela proporção de palpites corretos em

relação às palavras associadas a palavras não-familiares, três grupos de performance puderam

ser identificados, cada um contendo aproximadamente um terço do número de participantes

do experimento. Um grupo não apresentou um aumento no número de acertos, permanecendo

no nível de acertos ao acaso ao longo de todo o estudo. O segundo grupo saiu do nível de

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acertos ao acaso para o nível de sucesso total com uma mudança completamente brusca nos

níveis de acerto, sem fase de transição. O terceiro grupo demonstrou uma melhora gradual,

através de várias séries de testes, até alcançar o sucesso completo. Entre os sujeitos que, em

algum momento, alcançaram o desempenho “perfeito”, a regra de associação entre as palavras

foi verbalizada, mas, no terceiro grupo, os sujeitos já alcançavam um desempenho bem

superior ao nível do acaso, e ainda abaixo da perfeição, antes de conseguir enunciar tal regra.

Para Bouthilet, eles estavam exibindo uma capacidade de dar palpites certos sem saber por

quê. É interessante notar que a pesquisadora considerou que o grupo de pessoas que teria sido

capaz de resolver intuitivamente o problema foi o terceiro, pelo fato de que elas já eram

capazes de acertar sem nem mesmo saber a razão. Isso demonstra que a concepção de intuição

da autora resume-se a um processo que ocorre “às cegas”, sendo um tipo de atividade feita às

escuras. Assim que a regra é descoberta, não há mais espaço para uma ação intuitiva.

Acreditamos que essa é uma compreensão muito limitadora do fenômeno. A intuição é

entendida como a atividade não explicada, não consciente, de resolução do problema. Mas,

talvez, a tarefa da intuição, nesse experimento, pudesse ser compreendida como a própria

apreensão da regra que estaria em jogo no teste realizado. Se pensada dessa forma,

poderíamos, certamente, afirmar que os dois últimos grupos de participantes poderiam ter tido

uma experiência intuitiva. O segundo grupo, por exemplo, pode ter apresentado um tipo de

intuição mais instantânea, mais imediata, em que um insight trouxe à tona, de uma só vez, a

apreensão da regra em jogo. O segundo grupo pode ter passado por um processo diferente, em

que a compreensão foi se construindo de maneira lenta e progressiva, mas que, mesmo assim,

poderia ter sido alcançada de maneira intuitiva.

Outra questão importante é que, para que possamos falar que no experimento ocorrem

casos de intuição, parece ser essencial que examinemos a experiência dos participantes.

Certamente, nenhum dos estudos que Westcott apresenta, nem mesmo os seus próprios (como

veremos mais adiante), estão preocupados com isto. A própria definição de intuição que eles

buscam é propositalmente formulada de modo que a intuição possa ser julgada apenas com

base em resultados observáveis de determinados comportamentos, sem que qualquer

experiência subjetiva precise ser avaliada. Todavia, o próprio Westcott, em vários momentos,

coloca que a questão da experiência é importante para a compreensão da intuição, embora

afirme que seja preciso descartá-la como objeto de estudo, uma vez que haveria uma

impossibilidade intrínseca de acessá-la.

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Veremos, na próxima seção, que outras formas de pesquisar a intuição podem superar

essa dificuldade, e tornam os estudos sobre ela muito mais ricos. Agora, porém, é preciso que

nos mantenhamos na questão. Nos dois grupos que alcançam sucesso de respostas na pesquisa

de Bouthilet, se nos fosse possível acompanhar a tarefa do ponto de vista de primeira pessoa,

provavelmente poderíamos identificar participantes que realmente trabalharam de modo

intuitivo e outros que não o fizeram. Por exemplo, certamente, no segundo grupo, alguns

participantes podem ter tido um insight intuitivo da situação, que reorganizou a tarefa e os fez,

a partir de então, acertar todas as questões subsequentes. Para outros, uma rápida dedução

lógica pode ter acontecido. No terceiro grupo, não podemos saber se a lenta transição deveu-

se, de fato, a uma resolução intuitiva da tarefa ou se os participantes estavam desenvolvendo

um raciocínio lógico e metódico até que conseguissem alcançar a regra, ou ainda, se não

estavam testando hipóteses por tentativa e erro, o que, aos poucos, os aproximou da resolução

do “mistério”. Isso evidencia que apenas a observação do comportamento dos participantes

não é suficiente para a investigação da atividade intuitiva, pois não permite conhecer os

procedimentos que levaram aos resultados, apenas supô-los.

Em outro experimento citado por Westcott, Farmer (1961) usou um conjunto de 48

silogismos, elaborados pelo arranjo balanceado de sujeitos e predicados, que incluíam tanto

elementos concretos quanto abstratos. Os participantes eram obrigados a escolher a conclusão

correta dentre 5 opções de resposta, num tempo limite de 15 segundos. Depois de

completarem o teste cronometrado, que foi nomeado “teste intuitivo”, pedia-se que os sujeitos

fizessem comentários ou exprimissem reações em relação ao teste. Todos afirmavam que o

tempo limitado não lhes permitia fazer uma dedução racional e que eles precisaram criar

estratégias não-racionais ou não-explícitas para selecionar a conclusão adequada. Em

comparação com o sucesso que realmente tinham obtido, todos os sujeitos subestimaram o

número de acertos alcançado.

Para fazer uma comparação com o teste intuitivo, um segundo teste foi aplicado, em

que os mesmos sujeitos receberam os mesmos silogismos para resolver, com as mesmas

alternativas de múltipla escolha, mas sem tempo limite. Foi permitido, mesmo, que eles

levassem o teste para casa, desde que não consultassem outras pessoas ou livros. Nesta

segunda aplicação do teste, os sujeitos tiveram resultados melhores do que na primeira

(passaram de uma média de 27,3 acertos em 48 para uma média de 35,3).

Independentemente do resultado a que esse experimento nos leva, podemos fazer

alguns apontamentos importantes sobre o que esse modelo de estudo revela quanto àquilo que

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pretende que a intuição seja. Vemos que o estudo é elaborado de forma que uma resposta seja

fornecida em um curtíssimo espaço de tempo. Isso está de acordo com a premissa de que a

intuição é sempre um processo que acontece de forma rápida, quase instantânea. Também

parece supor que a intuição será necessariamente a via de resolução do problema quando o

tempo para resolvê-lo for muito limitado (ou seja, o tempo curto poderia ser um disparador de

processos intuitivos). Por fim, a intuição só poderia acontecer em situações em que nenhum

tipo de racionalidade fosse acionado e apenas quando as estratégias usadas pelo sujeito

pudessem ser classificadas como não explícitas.

Assim, o pesquisador elaborou uma definição operacional de intuição que

praticamente só leva em consideração o caráter de imediatidade geralmente atribuído a ela.

Isso o levou a construir um experimento que toma como ponto de partida a suposição de que

todo problema que é rapidamente solucionado é solucionado por uma atividade intuitiva. Isso

distorce o fenômeno, não só por reduzi-lo a praticamente um único de seus aspectos, como

também por negar-lhe temporalidade. Tal temporalidade será também afirmada por estudos da

experiência, que afirmam que a intuição é um processo que, na maioria das vezes, se

desenvolve ao longo de um considerável período de tempo (PETITMENGIN, 2001).

Westcott (1968) também investigou a intuição através de pesquisas empíricas. O autor

investiga o que também chamou de pensamento intuitivo. Para o ato específico de ocorrência

da intuição, o autor usa o termo “salto intuitivo”. Os saltos intuitivos são observados quando

conclusões são alcançadas com base no que, geralmente, consideraríamos informação

insuficiente, ou quando são feitas sínteses particularmente amplas a partir de informações que,

em geral, seriam suficientes apenas para levarem a sínteses bem menos significativas e mais

limitadas.

Assim, Westcott nos fornece uma definição operacional de intuição, que utiliza para

planejar seus experimentos: “pode-se dizer que a intuição ocorre quando um indivíduo

alcança uma conclusão com base em informação menos explícita do que ordinariamente é o

necessário para se alcançar aquela conclusão” (WESTCOTT, 1968, p. 97, tradução nossa).

Essa definição, segundo o autor, permite identificar diversos graus de intuição. Permite

também que se determinem graus de maior ou menor precisão para as conclusões alcançadas.

A formulação permite variações na informação oferecida em termos de quantidade e também

de clareza (ou seja, a informação pode ser mais ou menos empobrecida).

No experimento que relata em seu livro, Westcott solicita que os sujeitos resolvam

problemas de quatro tipos: problemas de séries verbais, problemas de analogia verbal,

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problemas de séries numéricas e problemas de analogias numéricas. Eles são elaborados de

modo que nenhum conhecimento especializado seja necessário, nem quaisquer conhecimentos

matemáticos e linguísticos que já não sejam comuns a estudantes universitários (já que é com

este grupo de sujeitos que trabalha). Cada problema é apresentado como uma série de passos

em uma sequência. Entretanto, apenas o primeiro passo (ou os dois primeiros, quando

necessário), está dado em cada problema. Os demais passos (que são chamados de pistas)

ficam escondidos por um selo que os esconde do participante. Os selos que cobrem as pistas

podem, entretanto, ser rompidos.

Aos participantes, pede-se que resolvam cada problema apresentado na folha de teste.

Entretanto, a instrução da tarefa deixa bem claro que o participante pode usar quantas pistas

desejar para resolver o problema, mas que deve tentar usar o menor número possível delas.

Ao encontrar a resposta, ele deve registrá-la no espaço reservado da folha teste e também

atribuir, para cada resposta, um número entre 1 e 4 que melhor represente seu grau de

confiança na resposta (a pontuação mais baixa corresponderia a um “chute” e a mais alta à

certeza absoluta). Um exemplo de resolução de problemas era oferecido antes que o

participante começasse. A figura 1.1 mostra a forma como os problemas eram apresentados

aos participantes e um exemplo de cada tipo de problema proposto.

Figura 1.1 Exemplo da tarefa proposta por Westcott (WESTCOTT, 1968)

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O resultado da pesquisa demonstra que os sujeitos se diferenciavam em relação à

quantidade de informação explícita que precisavam para tentar solucionar os problemas.

Também se diferenciavam quanto ao grau de sucesso que obtinham com a solução.

Demonstrou-se que essas duas características (quantidade de informação e grau de sucesso)

eram independentes entre si, uma vez que um indivíduo que demanda muita informação ou

muito pouca antes de tentar solucionar o problema pode tanto ser bem quanto mal sucedido

em sua resposta. Mas o experimento mostrou que aqueles que obtêm sucesso com base em

pouca informação tendiam a se sentir mais confiantes em suas respostas do que os demais.

Pela análise dos resultados, o pesquisador classificou os participantes em quatro grupos: (1)

intuitivos bem-sucedidos (pouca informação requerida e bem-sucedidos na tarefa), (2)

“chutadores” (guessers) (pouca informação requerida e mal-sucedidos na tarefa), (3)

solucionadores cuidadosos de problemas (muita informação requerida e bem-sucedidos na

tarefa) e (4) solucionadores que falham apesar de serem cuidadosos (muita informação

requerida e mal sucedidos na tarefa).

Mas o experimento de Westcott parece apresentar problemas, da mesma forma que os

anteriormente apresentados. Buscando testar a intuição experimentalmente, o pesquisador usa

uma definição limitada dela e monta um experimento cujas conclusões talvez se refiram,

muito mais, a uma medida da inteligência dos participantes (as tarefas apresentadas são, de

fato, muito semelhantes àquelas oferecidas em testes de inteligência) do que a sua capacidade

intuitiva.

Talvez, o experimento de Westcott e os demais apresentados por ele tenham em

comum um fator que dificulta que se encontrem conclusões mais significativas sobre a

intuição. Todas as concepções de intuição apresentadas são definidas em termos

comportamentais, onde a intuição é tomada como uma forma de comportamento de

inferência. Esse comportamento se baseia, em última análise, em dados sensórios pouco

claros, que são combinados de forma rápida e não explícita, levando a uma conclusão

plausível ou correta sem que o sujeito seja capaz de especificar como essas conclusões foram

alcançadas.

Nessas concepções, a noção de dados, informação, pistas e evidências são centrais. A

intuição acontece, segundo elas, quando uma conclusão é alcançada em situações limitadas,

seja porque o tempo oferecido para a resolução de um problema é reduzido ou porque se

reduz a quantidade ou a clareza das informações disponíveis. “Diz-se que ocorre uma intuição

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quando uma conclusão é alcançada em condições empobrecidas e é, em seguida, verificada

sob circunstâncias de informação mais adequadas e de operações mais adequadas”

(WESTCOTT, 1968, p.82, tradução e grifo nossos). A suposição de que a intuição só se

manifesta em situações de alguma forma empobrecidas parece se afastar muito da riqueza que

a experiência do pensamento intuitivo parece portar.

Os exemplos de pesquisa experimental até agora apresentados envolvem a solução de

problemas. Geralmente, é com este tipo de atividade que a psicologia cognitiva trabalha para

investigar suas mais diversas questões. Porém, mais recentemente, os estudos sobre intuição

vêm sendo dominados e absorvidos por pesquisas situadas na interface entre a psicologia

cognitiva e o campo da gestão de pessoas. Assim, por exemplo, muitos pesquisadores vêm se

interessando pela concepção da cognição como um processo dual (apresentada na seção

anterior), partindo dela para investigar processos de tomada de decisão, a expertise intuitiva

em contextos profissionais e para a criação de instrumentos ou métodos de identificação de

estilos cognitivos racionais ou intuitivos.

Quanto à pesquisa sobre estilos cognitivos, Hodgkinson e Sadler-Smith (2014) fizeram

um levantamento dos principais instrumentos desenvolvidos nas últimas duas décadas com

vistas a identificá-los. Neste campo, tornou-se muito popular o uso de escalas de

autoavaliação, geralmente compostas por afirmações sobre comportamentos e preferências

individuais que devem ser avaliadas pelo sujeito como mais ou menos verdadeiras em relação

a si mesmo. Os autores analisaram quatro instrumentos que pretendem avaliar as diferenças

individuais quanto à preferência por um processamento analítico ou por um processamento

intuitivo de informações: o Cognitive Style Index (CSI), desenvolvido por Allinson e Hayes

(1996); o Preference for Intuition and Deliberation scale (PID), desenvolvido por Betsch

(2004); o Rational Experiential Inventory (REI), desenvolvido por Epstein et al. (1996); e o

Linear Non-Linear Thinking Styles Profile (LNTSP), desenvolvido por Vance et al (2007).

Tais instrumentos evidenciam a grande influência das teorias de processamento dual na

investigação de tipos cognitivos na atualidade em comparação com certas teorias da

personalidade que antes haviam dominado esta esfera. Os três últimos instrumentos foram

construídos de acordo com aquelas teorias, enquanto instrumentos que por muito tempo

dominaram esse campo de pesquisa, como o clássico Myers-Briggs Type Indicator (MBTI),

desenvolvido com base na teoria tipológica de C. G. Jung, vêm sendo amplamente criticados e

gradualmente abandonados.

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Apresentaremos aqui, resumidamente, em que consistem dois dos instrumentos

analisados por Hodgkinson e Sadler-Smith (2014). O CSI foi um instrumento desenvolvido

por Allinson e Hayes (1996) para ser utilizado com grupos profissionais e de gestão. Esta

autoavaliação foi concebida para refletir uma dicotomia fundamental no pensamento humano

entre intuição – qualificada como uma característica da orientação do hemisfério cerebral

direito e definida como um julgamento imediato baseado no sentimento e na adoção de uma

perspectiva global – e racionalidade. Apresenta 38 itens, dentre os quais 17 foram

desenvolvidos para acessar a preferência por processamento intuitivo e 21 por processamento

analítico. Hodgkinson e Sadler-Smith oferecem um exemplo de item de avaliação de

preferência intuitiva: “Planos formais são mais um obstáculo do que uma ajuda em meu

trabalho” (tradução nossa). Também oferecem um exemplo de item que reflete uma

preferência analítica: “Sou mais produtivo quando meu trabalho envolve uma sequência clara

de tarefas a serem realizadas” (tradução nossa). O CSI é uma escala tricotômica, em que o

sujeito deve pontuar cada item como verdadeiro, incerto ou falso.

O REI é baseado na teoria cognitivo-experiencial de Epstein, discutida anteriormente

neste capítulo. Consiste também em uma autoavaliação, que visa medir as diferenças

individuais em termos de estilos intuitivo-experiencial ou racional-analítico de pensamento.

Estrutura-se em 31 itens, cujos exemplos fornecidos por Hodgkinson e Sadler-Smith são: “Eu

prefiro uma tarefa que seja intelectual, difícil e importante a uma que seja de algum modo

importante, mas não requeira muito pensamento” e “Eu confio em meus sentimentos iniciais

sobre as pessoas” (traduções nossas). O primeiro item apresentado indicaria uma preferência

pelo estilo de pensamento racional-analítico, e o segundo, pelo intuitivo-experiencial.

Escalas como o CSI e o REI vêm sendo criticadas enquanto instrumentos de avaliação

da intuição. Por exemplo, Christian Harteis, professor da Universidade de Paderborn, na

Alemanha, acredita que pesquisas sobre intuição feitas com base em escalas de autoavaliação

são problemáticas, já que, por duas razões, podem ser enviesadas. Em primeiro lugar, porque

nem sempre o indivíduo que responde a esses instrumentos tem consciência total de sua

intuição, o que dificulta sua avaliação sobre o modo de funcionamento intuitivo a que pode

estar sujeito. Em segundo lugar, porque, mesmo quando se dá conta de sua própria intuição,

as informações que fornece sobre ela baseiam-se em seu conceito ingênuo de intuição – que

não necessariamente corresponde à concepção do pesquisador (HARTEIS, 2014).

Às críticas de Harteis consideramos importante acrescentar mais uma, que

desenvolveremos de maneira mais completa no capítulo 3. Ela diz respeito à suposição de que

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existem configurações cognitivas suficientemente definitivas e estáveis que permitem a

identificação de tipos intuitivos ou racionais por tais instrumentos, de maneira independente e

descontextualizada. Essa afirmação geralmente se apóia em teorias de processamento dual, e

nossa crítica, evidentemente, estende-se também a elas. Desejamos questionar a existência de

formas de estar no mundo de tal modo cristalizadas, a ponto de tornar possível a classificação

de pessoas de acordo com elas. Defenderemos que a intuição não é um atributo com o qual

nascemos ou não nascemos, nem uma habilidade cognitiva que pode ser treinada e que, uma

vez desenvolvida, passa a dominar todas as nossas ações pelo resto de nossas vidas.

Queremos afirmar que oscilamos, o tempo todo, entre modos mais ou menos intuitivos de

estar no mundo e de lidar com o conhecimento, que podem se alternar de acordo com uma

série de fatores. Assim, instrumentos que têm como objetivo identificar tipos intuitivos ou

racionais parecem-nos ter uma utilidade muito limitada e questionável.

Harteis (2014) defende que pesquisas experimentais de tomada de decisão são muito

mais acuradas para avaliar a participação da intuição nas ações dos indivíduos do que as

escalas de autoavaliação. O autor, que investiga a aprendizagem em ambiente de trabalho e

questões relacionadas ao desenvolvimento profissional, trabalha com a perspectiva da intuição

como expertise. Desse modo, chama atenção para a compreensão educacional que essa

perspectiva faz da intuição, já que a compreende, em primeiro lugar, como o resultado de um

processo de aprendizagem e, em segundo lugar, como a aplicação de um conhecimento tácito.

Segundo Harteis (2014), as pesquisas sobre expertise interpretam a performance

humana como aplicação de conhecimento – é assim que compreendem, por exemplo, o que

ocorre quando uma pessoa precisa decidir entre duas ações alternativas. Elas distinguem entre

experts e principiantes, e consideram que a maior diferença entre ambos diz respeito a seus

diferentes níveis de aprendizagem e prática em determinado domínio de conhecimento. Isso

quer dizer que a expertise, de base intuitiva, é tanto maior quanto mais o sujeito põe em

prática conhecimentos a ela relacionados.

O autor formula sua concepção de expertise a partir de definições já bem estabelecidas

no campo. Cita, por exemplo, a formulação de Posner (1988), que a compreende como a

capacidade de performance permanente e confiável em um nível extraordinariamente alto.

Essa concepção atribui ao expert estruturas de conhecimento de qualidade superior a dos

principiantes e uma capacidade de utilizar tal conhecimento de maneira mais efetiva.

As pesquisas nessa área encontram algumas formas principais de operacionalização da

expertise. Para definir o que é um expert, podem recorrer a indicadores considerados

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confiáveis a respeito dela – como a quantidade de anos ou horas de experiência em

determinado domínio – ou a mecanismos de seleção permanente típicos de algumas áreas, em

que a performance do indivíduo é, em si, um critério de seleção, que garante apenas aos

experts a permanência em determinada função (como é o caso dos esportes e da medicina de

emergência). É possível, também, fazer a seleção de participantes experts pela aplicação de

testes de performance na forma de tarefas de resolução de problemas. Outra forma comum de

operacionalização da expertise é avaliá-la como um reflexo do mercado em relação ao valor

da performance, o que ocorre, por exemplo, na arte e na música. Por fim, em áreas como a

acadêmica, um critério que pode ser utilizado é a indicação pelos pares.

A premissa básica que todos esses critérios revelam é a de que a diferença entre a

performance do expert e a do principiante se explica por estruturas de conhecimento de

diferentes qualidades. Isso está de acordo também com o modelo de expertise intuitiva de

Dreyfus e Dreyfus (1986), que prevê o desenvolvimento da expertise em cinco etapas, sendo

o nível mais alto constituído pela ação intuitiva – aquela que não demanda concentração nem

reflexão consciente. Tal modelo entende que a intuição usa um conhecimento rico, do qual as

pessoas não estão (ou não estão mais) conscientes.

Harteis (2014) acredita que os experimentos envolvendo tomada de decisões são muito

mais eficientes para medir a intuição enquanto expertise do que as autoavaliações. Os

experimentos de tomada de decisão, desde que envolvam uma situação problema autêntica

que requeira a aplicação de conhecimentos específicos a um domínio, são considerados pelo

autor como mais adequados para o teste de hipóteses e para a implementação de testes

estatísticos que os tornam mais válidos, confiáveis e objetivos do que aquelas.

Dois experimentos sobre tomada de decisões foram, assim, elaborados pelo autor. O

primeiro deles envolvia experts que trabalhavam no domínio de investimentos no mercado de

ações. Esse é um campo que, segundo Harteis, é privilegiado para o estudo da tomada de

decisões com base na intuição, uma vez que o investimento em ações baseia-se não somente

em previsões explícitas, mas também implícitas, utilizando-se de informação incompleta – já

que certos conhecimentos acerca dos desenvolvimentos futuros do mercado não estão

disponíveis. Assim, parece ser impossível que uma decisão puramente racional possa ser

tomada, mesmo que existam dados objetivos sobre as companhias e mercados.

Para o experimento, dois grupos de 16 participantes foram formados, havendo, em

cada um, sujeitos com diferentes níveis de expertise. Consideraram-se como experts aqueles

indivíduos que tinham experiência com mercado de investimentos há entre 4 e 20 anos; os

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principiantes eram aqueles que trabalhavam na área há menos de 4 anos. Os participantes

responderam a um questionário online, no qual deveriam fazer previsões sobre cinco

mercados de ações alemães importantes com nove meses de antecedência. Também eram

solicitados a predizer o preço da gasolina e a taxa de câmbio do euro para o dólar americano

para o mesmo período. Era pedido, então, que preenchessem o formulário com o número

esperado para cada situação. Entre os dois grupos, entretanto, variaram-se as condições de

preenchimento da seguinte forma: o grupo do qual se esperava uma previsão intuitiva tinha

um tempo limite de 15 segundos para indicar o número; o grupo do qual se esperava uma

previsão racional tinha tempo ilimitado para indicar o número e precisava, além disso,

justificar explicitamente, por escrito, as razões que levaram às decisões.

As previsões feitas pelos dois grupos foram comparadas com os preços das ações de

nove meses depois, de modo que quanto menor a diferença entre o valor indicado no estudo e

o valor de fato das ações, maior era considerada a qualidade da previsão. Embora o autor não

tenha encontrado resultados significativos com o experimento – tendo relatado que diferenças

significativas entre previsões intuitivas e previsões racionais tenham sido verificadas apenas

em casos isolados – é importante notar que este experimento só considera que a intuição

participe das ações do indivíduo quando a justificação racional é impossível. Isso indica que

ele se baseia na suposição de que os dois modos de operação da cognição, intuitivo ou

racional, são opostos e incompatíveis. Por essa razão, conclui-se que, na segunda condição do

experimento, em que o participante era obrigado a justificar suas decisões por escrito,

nenhuma atividade intuitiva poderia ter se passado. Além disso, mais uma vez encontramos

uma concepção empobrecida da intuição, por se supor que a limitação do tempo seria

condição suficiente para elicitá-la.

O segundo experimento de Harteis (2014) envolveu outro domínio de conhecimento, o

da medicina de emergência. Mais uma vez, a área foi considerada adequada para o

experimento por não oferecer todas as oportunidades de escolha e deliberação comuns a

outras especialidades médicas. O campo de trabalho de um médico de emergência o obriga a

decidir imediatamente, sem anamnese, exigindo uma ação adequada que possa salvar vidas.

Assim, mais uma vez, supõe-se que este profissional tome decisões intuitivas, uma vez que

elas devem ser tomadas em segundos, sem que ele tenha acesso a todas as informações

concernentes ao problema do paciente.

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O experimento consistiu na elaboração, junto com especialistas, de duas situações de

emergência com o auxílio de um manequim de simulação7. Foram constituídos três grupos,

cada um com 10 participantes, divididos entre experts, semi-experts e principiantes, de acordo

com o status profissional dos sujeitos. Os participantes experts eram médicos de emergência

com, pelo menos, dois anos de experiência em atendimentos desse tipo; os semi-experts eram

médicos já formados, mais ainda sem uma especialidade; e os principiantes eram estudantes

do último ano de medicina, sem experiência em atendimentos de emergência.

Num primeiro momento, uma situação de emergência simulada era apresentada e os

participantes precisavam resolvê-la o mais rápido possível. Num segundo momento, tais

participantes precisavam resolver a situação dada seguindo a instrução de relatar em voz alta

as decisões que iam tomando e indicando, na medida do possível, justificativas para elas. O

desenho do experimento teve como objetivo provocar respostas intuitivas no primeiro cenário

e respostas racionais no segundo, utilizando-se, para isso, de uma situação que necessitava de

uma decisão em um curto período de tempo (o “paciente” estava tendo uma parada cardíaca e

a decisão por uma ressuscitação cardiopulmonar devia ser tomada rapidamente) e

demandando que, na outra, houvesse verbalização da ação em tempo real. O curto período de

tempo foi, mais uma vez, associado à operação intuitiva, enquanto a verbalização foi

considerada desencadeadora de um raciocínio lógico e analítico, o que supostamente afastaria

a influência da intuição no procedimento.

Os estudos de caso foram filmados e depois analisados com os participantes,

imediatamente após terem sido realizados. O pesquisador utilizou entrevistas de rememoração

estimulada (stimulated recall interviews) para revelar as circunstâncias de tomada de decisão.

Esse tipo de entrevista visa fazer o entrevistado reviver uma situação recentemente vivida a

partir de um material que estimule tal rememoração, como um vídeo. Pedia-se que os

participantes pausassem o vídeo em pontos em que haviam tomado decisões, e perguntas

eram feitas a respeito de cada decisão tomada no setting experimental.

A análise dos resultados mostrou que, em média, os participantes trabalharam melhor

no setting racional do que no intuitivo. Além disso, houve diferença significativa de

performance no setting intuitivo entre principiantes, de um lado, e experts e semi-experts de

outro. Mas há uma interessante observação do pesquisador quanto a seus resultados, que pode

ser atribuída ao uso das entrevistas de rememoração estimulada, e que coloca questões

7 Um boneco realístico, que replica as características de um paciente doente e pode ser programado para

simular diferentes problemas médicos. Geralmente, os manequins de simulação são utilizados na formação de

profissionais da área da saúde.

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interessantes para nossa análise. Harteis (2014) afirma ter encontrado resultados

“enigmáticos” na análise dos dados da entrevista, porque os participantes relataram ter

tomado mais decisões intuitivas no setting racional do que no intuitivo. Embora a solução

encontrada pelo pesquisador tenha sido a de desconsiderar os dados verbais, afirmando que

estes não haviam sido úteis para a análise e que não eram objetivos, válidos ou confiáveis,

consideramos tal situação bastante reveladora. Em primeiro lugar, ela chama atenção para o

fato de que certos cuidados experimentais comuns a alguns estudos da intuição, como a

disponibilização de um curto tempo de resposta em uma atividade (seja de tomada de decisão

ou de resolução de um problema) como forma de produzir uma resposta intuitiva, claramente

apresentam um equívoco. Mesmo que se considere que a intuição corresponde a um processo

cognitivo de rapidez característica (o que, em si, já é questionável – ver discussão do próximo

capítulo), não se pode inferir daí que toda resposta suscitada de maneira rápida é, portanto,

necessariamente intuitiva. Seria o mesmo que afirmar que todas as vezes que chutamos uma

resposta rapidamente, estamos respondendo intuitivamente a uma questão. O máximo que se

pode afirmar de tal tipo de resposta é que elas são irrefletidas, ou até mesmo precipitadas.

Mas nada garante que sejam, de fato, intuitivas.

Do mesmo modo, os dados verbais ignorados pelo pesquisador só parecem

enigmáticos quando se têm uma concepção limitada da intuição e de sua relação com o

pensamento racional. É interessante notar que mesmo algumas teorias do processamento dual,

como a de Epstein (2014), admitem influência mútua e cooperação entre processamento

racional e intuitivo, mas os estudos experimentais, mesmo alegando estarem de acordo com

tais teorias, mostram a inabilidade de alguns pesquisadores para lidar com situações em que

ambos os tipos de processamento ocorrem juntos. É claro que é compreensível que, para fins

experimentais, uma intuição ou um raciocínio em “forma pura” sejam ideais para a coleta de

informações específicas sobre cada um dos modos de operação cognitiva. Mas, ou a

metodologia experimental precisa ainda desenvolver técnicas muito melhores para conseguir

atingir tal ideal, ou os pesquisadores devem buscar alternativas metodológicas que ampliem

seu escopo de investigação.

Por fim, gostaríamos ainda de apresentar uma nova tendência nas pesquisas sobre

intuição em ciências cognitivas. Paola Ianello, Barbara Colombo e Alessandro Antonietti

(2014), apresentam os avanços do estudo sobre o tema em pesquisas neuropsicológicas,

especialmente aquelas que utilizam técnicas não invasivas de estimulação cerebral. Os autores

reconhecem que nenhum estudo até hoje conseguiu manipular diretamente a intuição pela

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alteração de áreas cerebrais específicas em adultos saudáveis, mas acreditam que algumas

pesquisas que, de acordo com certos pressupostos de teorias do processamento dual, exploram

os antagonistas da intuição – o pensamento racional, deliberativo e analítico –, oferecem

evidência indireta sobre ela.

Antes de explicarmos exatamente de que modo isso acontece, esclareceremos no que

consistem tais técnicas não invasivas e o que elas são capazes de produzir. Os autores

analisam dois tipos diferentes de técnicas: a estimulação magnética transcraniana (EMT) e a

estimulação transcraniana por corrente direta (ETCD). A EMT produz, por indução

magnética, uma corrente que atravessa o couro cabeludo e o crânio sem que haja contato

físico com o aparelho que o produz. Assim, o campo magnético ultrapassa essas estruturas

periencefálicas e influencia a atividade de neurônios subjacentes. Já a ETCD é uma técnica

que transmite uma corrente fraca diretamente para a área cerebral de interesse através de dois

eletrodos. Um deles pode produzir estimulação anodal, ou seja, de carga positiva, o que leva a

uma estimulação dos neurônios subjacentes; o outro produz estimulação catodal, ou seja, de

carga negativa, que tem como consequência a inibição da atividade neuronal. Assim, permite

que se produza tanto hipo- quanto hiperatividade em áreas corticais específicas.

Considera-se que tais técnicas permitem fazer inferências sobre a função cognitiva de

áreas cerebrais particulares, uma vez que sua aplicação em determinados locais produz

consequências comportamentais observáveis, o que vem ampliando o que se sabe sobre o

funcionamento cerebral humano. Mais especificamente nas pesquisas sobre intuição,

especialmente naquelas que tomam como referencial as teorias do processamento dual, tais

técnicas têm sido utilizadas na estimulação do córtex pré-frontal dorsolateral (CPFDL). Esta

área (Figura 1.2) se relaciona, de maneira mais ampla, com funções executivas e com a

memória de trabalho, e, de maneira mais específica, com os processos de tomada de decisão,

especialmente aqueles que envolvem escolhas de risco.

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Figura 1.2 Córtex pré-frontal dorsolateral (http://www.shockmd.com/wp-content/dorsolateral-prefrontal-cortex1.jpg)

Ianello, Colombo e Antonietti (2014) afirmam que pesquisas neuropsicológicas

recentes mostram a associação entre o CPFDL e o sistema de processamento deliberativo e

analítico. Tais pesquisas registraram ativação dessa região cerebral nas seguintes situações:

em tarefas de decisão quanto à distribuição de recursos limitados; em atividades de integração

de múltiplas fontes de informação; em decisões que envolviam a avaliação dos custos e

benefícios de cada alternativa. Vários estudos relataram que a ativação, principalmente, do

CFPDL direito correspondia à tendência de supressão de respostas impulsivas e de

refreamento de comportamentos de risco. Também foi associado a uma otimização da

performance e da utilidade, no sentido de comportamentos “frios” e racionais em situações de

tomada de decisão, com vistas à maximização dos benefícios pessoais. Tais evidências foram

interpretadas como indicativos de que o CPFDL sustenta processos cognitivos, e não

emocionais, aproximando-se do processamento de tipo 2 apontado pelas teorias duais, ou seja,

do pensamento racional e analítico.

Como já observado, nenhum estudo encontrou uma área específica qualquer que

pudesse ser identificada com o funcionamento intuitivo do pensamento. Entretanto, alguns

pesquisadores têm assumido que a inibição ou ativação do CPFDL levaria, respectivamente, a

uma emergência ou supressão da intuição, o que permitiria determinar com mais clareza o

papel da intuição nos processos mentais. Assim, os antagonistas da intuição, por seguirem

regras opostas em relação a ela – sendo, por exemplo, lentos, enquanto a intuição é rápida;

controlados ao invés de automáticos; conscientes ao invés de inconscientes, etc. – passam a

ser inibidos ou lentificados por estimulação cerebral, pois se acredita que, dessa forma,

comportamentos intuitivos são induzidos nos participantes. Desse modo, tais pesquisas

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afirmam colher dados sobre os dois sistemas, embora apenas de maneira indireta em relação

ao sistema intuitivo (ou sistema 1).

1.2 Métodos de primeira pessoa e os estudos da intuição

Na seção anterior, analisamos estudos teóricos e empíricos da intuição que abordavam,

exclusivamente, os aspectos objetivos de tal fenômeno. Tais estudos baseiam-se,

principalmente, na observação do desempenho em tarefas de solução intuitiva de problemas.

Consideramos tal forma de investigar o tema muito importante, pois clarifica o modo de

operação da intuição e fornece subsídios para diversas áreas do conhecimento, como a

psicologia social e do trabalho. No entanto, tais estudos têm dificuldade em lidar com alguns

aspectos muito relevantes da intuição. Para além de sua rapidez, imediatidade, caráter não-

analítico e modo holístico de lidar com a informação – características geralmente exploradas

pelas pesquisas sobre o fenômeno – a intuição envolve, também, sensações, sentimentos e

impressões perceptivas e corporais. Estas características referem-se ao aspecto fenomenal da

intuição, dizendo respeito à experiência vivida que a acompanha. Elas parecem ser

extremamente relevantes para a própria definição de intuição, sendo geralmente reconhecidas

pelos estudos do tema como parte do fenômeno. Porém, estes geralmente não as tomam como

objeto de pesquisa, pelo menos não de maneira satisfatória, uma vez que as consideram por

demais subjetivas para serem tratadas por investigações empíricas.

Após analisar alguns experimentos, ficamos com a sensação de que algo muito

importante sobre a intuição fica de fora quando a sua dimensão experiencial não é

considerada. Em primeiro lugar, ficamos, muitas vezes, com a sensação de que, sem qualquer

menção à experiência, torna-se muito difícil julgar se os processos avaliados por alguns

estudos empíricos envolvem, de fato, a intuição. É o caso, por exemplo, do estudo de

Bouthilet (ver p.35), cujo critério utilizado para classificar uma performance como intuitiva

era o de os sujeitos serem capazes de dar respostas corretas acima do nível do acaso sem que

soubessem, entretanto, descrever as regras que levavam a tais respostas. Tal critério baseava-

se, exclusivamente, em uma pré-concepção da intuição como uma capacidade de dar palpites

certos sem saber por quê. Os participantes não classificavam seu desempenho com intuitivo

ou não intuitivo, e não descreviam o modo como haviam realizado a tarefa. O critério de

performance intuitiva da autora não passava pelo crivo da experiência, sendo fruto apenas de

uma concepção apriorística de intuição. Se a pesquisadora tivesse considerado, em vez disso,

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que o critério definidor da intuição é sua atuação pela compreensão imediata de um problema,

ela poderia ter identificado como intuitiva a performance do grupo de participantes que saiu

do nível de acertos ao acaso para o nível de sucesso total de maneira brusca, sem fase de

transição. Isso mostra que, no campo de estudos da intuição, onde várias definições do

fenômeno competem entre si, as pesquisas empíricas ficam sujeitas a uma grande fragilidade,

pois o que conta como uma ação intuitivamente guiada não é definido por um critério claro e

consensual. Nesses casos, fica evidente que a consideração da experiência intuitiva poderia

servir, no mínimo, como um critério básico para avaliar se as tarefas propostas por pesquisas

empíricas dão lugar, de fato, a processos intuitivos, uma vez que estes são geralmente

acompanhados de afetos e sensações bastante específicos, que poderiam ser identificados

pelos sujeitos.

Mas essa não é a única razão que temos para defender a consideração da experiência

nas pesquisas sobre intuição, muito menos a mais importante. Os afetos e sensações que

acompanham as experiências intuitivas parecem-nos muito pouco compreendidos. Eles são,

com frequência, explicados em termos de associações com ideias inconscientes, que foram

produzidas ao longo da vida. A intuição, ao acionar tais ideias inconscientes, teria como

contraparte consciente a manifestação, na experiência do sujeito, de tais sensações e

sentimentos. Assim, de maneira geral, dá-se a eles apenas um papel acessório, sem

importância maior para o desenvolvimento do processo. Em certos casos, tais afetos e

sensações chegam mesmo a serem considerados totalmente irrelevantes, por não serem

considerados úteis à compreensão de processos cognitivos superiores. Todavia, esse parece

ser um aspecto muito marcante da experiência intuitiva, e merece uma investigação mais

profunda.

Essa investigação, no entanto, encontra um obstáculo metodológico. A adoção de

metodologias de terceira pessoa, definidas por Depraz, Varela e Vermersch (2003) como

técnicas de pesquisa que apenas alcançam a face pública, comportamental, dos fenômenos,

não permite acessar a face íntima, privada, da dimensão subjetiva envolvida na intuição. Para

acessar tal dimensão, é preciso que se adote o ponto de vista de primeira pessoa. Varela e

Shear (1999) definem eventos de primeira pessoa como aqueles que abarcam a experiência

vivida associada a eventos mentais. É possível referir-se a tais eventos através de vários

termos, como consciência fenomenal, experiência consciente ou simplesmente experiência.

“Estes termos implicam, aqui, que o processo estudado (visão, dor, memória, imaginação,

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etc.) aparece como relevante e manifesto para um “eu” ou “sujeito” (…) eles têm um lado

‘subjetivo’” (VARELA E SHEAR, 1999, p. 1, tradução nossa).

Às vezes, pesquisas empíricas em terceira pessoa tentam, de algum modo, acessar os

dados experienciais da intuição, pela inclusão de uma ou mais perguntas, escritas ou verbais,

que dêem conta do aspecto “não observável” dela. Um exemplo simples dessa estratégia pode

ser encontrado no experimento de Westcott (1968), que apresentamos nas páginas 38 e 39. Na

folha de teste, o participante encontrava não somente a instrução de que registrasse a resposta

para problema que lhe era apresentado no espaço para isso indicado, mas que, também,

escrevesse um número de 1 a 4, de acordo com o grau de confiança que tinha em sua

resposta. Se sua resposta tivesse sido um chute, deveria escrever o número 1; se tivesse

certeza absoluta dela, deveria escrever o número 4. Os números 2 e 3 indicariam níveis de

confiança intermediária. Essa instrução extra tinha como função avaliar uma característica

subjetiva da intuição: o sentimento de certeza que, supostamente, a acompanha. Assim,

Westcott supôs que quanto maior o grau de certeza o participante expressasse, mais teria

razões para acreditar que sua resposta tinha sido alcançada por um processo intuitivo.

Varela e Shear (1999) comentam esse esforço de algumas pesquisas em terceira pessoa

para dar conta de aspectos da experiência do sujeito através da implementação de algum tipo

de técnica que vise conhecê-la. Consideram que tais técnicas não são capazes de trazer dados

muito completos ou relevantes sobre a experiência. Isso porque, para o estudo da experiência,

não basta apenas “dar uma olhada” no que se passa nela. Sua investigação é muito mais

complexa, uma vez que, apesar de nossa aparente familiaridade com ela, há aspectos da

experiência intuitiva que não nos são imediatamente acessíveis. Para conhecê-los, é preciso

um exame sustentado capaz de produzir descrições fenomenais ricas e bem estruturadas, o

que só é possível através do uso de técnicas específicas.

Mas, embora exija certos cuidados, o estudo da experiência não é, de modo algum,

impossível. Nos anos 90, as ciências cognitivas retomaram discussões sobre metodologias de

primeira pessoa e, desde então, técnicas para acessar a experiência vêm sendo desenvolvidas e

aplicadas nos mais diversos campos de estudo. No domínio dos estudos da intuição, Claire

Petitmengin (1996, 1999, 2007, 2014) realizou pesquisas lançando mão de tal metodologia, e

acompanhou o surgimento e o desenvolvimento da intuição em diversos contextos. Seu

trabalho não somente permitiu compreender com muito mais clareza o papel das sensações e

afetos na intuição, mas clarificou muitos outros aspectos desse fenômeno. Um dos grandes

avanços do trabalho de Petitmengin consiste na exploração da processualidade da intuição,

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mostrando ser possível acompanhar seu desdobramento ao longo do tempo. O uso de métodos

de pesquisa de primeira pessoa na investigação da intuição modifica sensivelmente nossa

compreensão do pensamento intuitivo, pois o acompanhamento de sua gênese e

desenvolvimento nos permite apreendê-lo em sua espessura temporal, praticamente

desconsiderada pelas outras abordagens. Além disso, o acompanhamento do fenômeno do

ponto de vista de sua experiência nos ajuda a esclarecer alguns aspectos dele que geralmente

são pouco explorados, devido a uma suposta obscuridade a eles inerente.

Assim, diferenciando-se de outros estudos, o trabalho de Petitmengin (2001, 2007)

destaca-se por sua proposta altamente inovadora de que a intuição pode, sim, ser investigada

enquanto uma experiência subjetiva. Seu foco não se fixa sobre o conteúdo de uma intuição,

mas no processo através do qual ela surge e se desenrola. Mas como tornar isso viável, se os

estudos da intuição apontam insistentemente para seu caráter de imediatidade e para a

inacessibilidade a seu modo de funcionamento, sobre o qual geralmente apenas fazemos

inferências baseados em seus resultados, estes sim acessíveis aos estudos científicos?

Petitmengin (2001, 2014) questiona a definição de intuição enquanto um tipo de

conhecimento direto e imediato, que não pode ser alcançado através de um processo dedutivo,

e cujo conteúdo se apresenta de maneira instantânea, completa, inesperada e independente de

nosso controle. Segundo a autora, essa concepção da intuição apenas limita seu estudo e

impede a tomada de consciência da sua gênese. Defende, então, que o conhecimento intuitivo

não se apresenta sempre de uma vez, completo e acabado, mas se clarifica para o sujeito de

modo progressivo, como um lento amadurecer. Os métodos tradicionalmente utilizados para

investigá-la não são capazes de acessar a processualidade dessa experiência. Por isso,

Petitmengin (2001) defende que para acessarmos e acompanharmos experiências intuitivas é

preciso que se faça uma psicofenomenologia da intuição. Para nos darmos conta dela, é

necessário um processo que consista em reorientar a atenção de seu conteúdo para seu

processo de emergência. Quando se consegue alcançar esta disposição atencional propícia, a

experiência intuitiva, antes reduzida ao seu momento de surgimento, passa a se desdobrar no

tempo. Dessa forma, o pensamento intuitivo ganha espessura. Assim, o que falta a outros

estudos é uma forma de acessar tal experiência, algo que Petitmengin consegue alcançar

através do uso de entrevistas de explicitação.

A explicitação é um método de entrevista criado por Pierre Vermersch (1994), cujo

principal objetivo é fazer com que o entrevistado se dê conta de parte de um processo

cognitivo que geralmente não é percebido prontamente por ele. Em nossas atividades

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cognitivas comuns, geralmente só possuímos uma consciência parcial de como procedemos,

já que somos grandemente absorvidos pelo conteúdo de nossas atividades, pelo nosso objeto

(ou o “o que” de nossas atividades), enquanto não nos damos conta do processo envolvido (ou

o “como”). Quando, posteriormente, descrevemos determinada atividade, o modo como ela se

desenvolve não é espontaneamente relatado. A entrevista de explicitação busca promover

certos atos atencionais de modo a fazer o entrevistado se dar conta dessa parte pouco notada

do processo descrito, através de perguntas e instruções específicas (PETITMENGIN, 2014).

Para que a entrevista de explicitação seja possível, é preciso, antes de tudo, escolher

uma experiência específica, situada no espaço e no tempo, uma vez que não é possível

relatarmos experiências “em geral”, somente aquelas localizadas. Petitmengin (2001), em sua

pesquisa, escolhia, com seus entrevistados, algum evento específico que pudesse ser

considerado um caso de experiência intuitiva. Este evento poderia ser a emergência de uma

intuição científica, a intuição à distância de um incêndio, ou uma “leitura intuitiva” feita por

uma terapeuta em uma sessão psicoterápica.

Uma vez escolhida a experiência a ser explicitada, a entrevista busca guiar o

entrevistado, de modo a evitar que ele se perca na verbalização de explicações, julgamentos

ou conhecimentos abstratos relacionados com a experiência em questão. As perguntas e

orientações do entrevistador devem ter como objetivo mantê-lo conectado com a experiência

singular que está sendo descrita, buscando levá-lo, o máximo possível, à evocação da

experiência tal como vivida naquele dia, naquele momento, naquele local específico

(PETITMENGIN, 2014).

Para a entrevista de explicitação, é essencial que o entrevistado evoque memórias que

ele mesmo não se deu conta de ter memorizado. Petitmengin (2014) usa como exemplo a

lembrança do primeiro pensamento que tivemos em um dia, ao acordar. Em um primeiro

momento, tendemos a afirmar que não conseguimos nos lembrar de nada, que não sabemos

bem o que pensamos ou fizemos naquela ocasião. Mas a entrevista de explicitação permite

que acessemos essas memórias, uma vez que busca evocar aquilo que, segundo a autora,

Husserl chamou de memória passiva – ou seja, aquilo que memorizamos de maneira

involuntária, na medida em que vivemos, sem nos darmos conta. Para retomar essas

memórias, o esforço voluntário não é um bom método. Por isso, a entrevista de explicitação

conta com algumas técnicas específicas, tais como o apelo a determinados disparadores

sensoriais. No exemplo dado pela autora, poderíamos começar nos lembrando

voluntariamente do ambiente em que estávamos quando acordamos, buscando rememorar as

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sensações visuais, auditivas, cinestésicas, táteis e olfativas associadas àquele momento. A

mesma técnica é usada pelo entrevistador quando se busca explicitar uma experiência vivida.

Com isso, o entrevistado vai aos poucos fazendo a experiência passada se tornar mais presente

para ele do que a atual, o que permite que memórias passivas relacionadas ao modo como

executou determinada atividade possam ser também resgatadas e revividas (PETITMENGIN,

2014).

Através do uso dessa técnica, Petitmengin (2001) realizou entrevistas que mostraram,

em primeiro lugar, que a intuição não ocorre em um lampejo, mas é um processo que se

desenvolve ao longo do tempo. Além disso, a autora encontrou uma estrutura dinâmica geral

da experiência intuitiva, compartilhada por todas as experiências que analisou em suas

entrevistas. Essa estrutura aponta para algumas características da intuição que foram

exploradas pelas abordagens do pensamento intuitivo analisadas na seção anterior, mas revela

também alguns aspectos novos da experiência intuitiva que são centrais para compreendê-la e

que analisaremos mais detidamente nos próximos capítulos.

Petitmengin (1996, 1999) afirma que a intuição é um modo de cognição não conceitual

e não analítico, que se apresenta como uma dimensão de toda experiência. Ela atua pela

compreensão de uma situação de modo global e imediato. A autora afirma, ainda, que a

intuição se caracteriza por um movimento interior particular: em vez atuar buscando

reconhecer seu objeto para então situá-lo entre as coisas já conhecidas, seu movimento é o de

deixar vir e acolher o que surge na experiência. Isto significa dizer que a intuição não atua por

recognição, mas é um processo que exige um tipo de atenção aberta e flutuante que se deixa

impressionar por aquilo que a situação atual tem a oferecer. Assim, a intuição não possui uma

intenção precisa, um objetivo pré-definido; nela está implicado um tipo de atenção diferente,

não voluntária, que deve ser mantida em suspensão, sem focalizar nenhum objeto.

A intuição é marcada também por seu caráter pré-refletido, ou seja, por não nos

darmos conta de sua ação senão através de alguns gestos que nos tornam capazes de

acompanhá-la. A imediatidade é outra característica sua marcante. Para Petitmengin, a

imediatidade pode ser compreendida de duas maneiras: em primeiro lugar, como um tipo de

conhecimento que é direto e que não pode ser alcançado através de processos racionais

intermediários. Ou seja, a intuição não é o produto final de um processo dedutivo, nem resulta

da acumulação de termos intermediários. Ela surge como um salto, de forma inesperada. É

interessante notar, todavia, que a autora não admite que o caráter de imediatidade da intuição

se confunda com uma instantaneidade de seu aparecimento, ou seja, ela defende que não é

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uma característica da intuição que seu conteúdo apareça todo de uma vez, completo e

acabado. Pelo contrário, um conhecimento intuitivo se clarifica para o sujeito de modo

progressivo, como um lento amadurecer. Por isto, Petitmengin defende que é possível acessar

e acompanhar experiências intuitivas.

Esse modo de compreender a imediatidade da intuição opõe-se à ideia muito difundida

nos estudos sobre o tema de que uma das suas principais características é a rapidez com que

ela ocorre, sua quase instantaneidade. Na seção 1.1.2, apresentamos vários experimentos cujo

design muitas vezes oferecia um espaço de tempo bastante reduzido para a realização de uma

tarefa, com o intuito de “forçar” uma resolução intuitiva de determinado problema. Assim,

quando uma tarefa era resolvida corretamente nessas condições, considerava-se que o tipo de

pensamento acionado para resolvê-la havia sido intuitivo, uma vez que uma de suas

características mais importantes seria a rapidez de seu processamento, antes mesmo que o

indivíduo pudesse dar-se conta de como alcançou o resultado (WESTCOTT, 1968). A

introdução do método de primeira pessoa nas investigações sobre intuição muda radicalmente

esse cenário, trazendo para a cena o que aqui chamamos de espessura da experiência intuitiva.

A espessura da intuição refere-se à ampliação de sua temporalidade e a complexificação de

sua estrutura. Ela admite, então, o acompanhamento da intuição enquanto processo, deixando

para trás a concepção de que só é possível ter acesso aos seus resultados, mas não ao seu

desenvolvimento.

O acompanhamento do processo de desenvolvimento de uma intuição mostra,

também, que uma das características mais marcantes da intuição é seu aparecimento inicial na

forma de uma sensação vaga e indistinta, descrita por Petitmengin (2001) como uma direção

do pensamento, “uma linha de força interior que guia silenciosamente a ação ou a pesquisa”

(PETITMENGIN, 2001, p. 295, tradução nossa). Esse é um passo importante de sua pesquisa,

pois coloca em evidência o papel das sensações e afetos que marcam a experiência subjetiva

da intuição, para os quais vimos que outras teorias têm muito pouco a dizer. A intuição é

marcada, então, por isto que a autora identifica como um felt meaning, ou seja, pela sensação

global e vaga que temos de uma situação, pessoa ou evento – uma espécie de conhecimento

pré-conceitual e pré-discursivo que temos do mundo. A noção de felt meaning é tomada

emprestada do trabalho de Eugene Gendlin (1997) sobre a criação de sentido em nossa

experiência. Segundo o autor, o sentido não é algo que se restringe a uma relação objetiva e

formal entre símbolos verbais, ou entre símbolos e coisas, ou ainda entre símbolos e

percepções. Para além dessa relação, o sentido possui outra dimensão, que diz respeito à nossa

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experiência dele. Ou seja, quando falamos, lemos ou pensamos, um sentido é experienciado, é

sentido, para além de sua relação estreita com um símbolo que o represente. Entretanto,

geralmente só nos damos conta dessa dimensão do sentido quando nos faltam palavras ou

outros referentes que possam simbolizá-los adequadamente: damo-nos conta de que estamos

experimentando intensamente aquele sentido e ficamos rodeando-o, buscando expressá-lo por

gestos de mãos, ou dando exemplos, inventando metáforas, etc.. Gendlin defende que essa

dimensão experienciada do sentido está sempre presente, e atua o tempo todo em nossa

cognição. Em Petitmengin, esses felt meanings são a essência de nossa dimensão intuitiva. O

surgimento de uma ideia é sempre marcado por um felt meaning, que pode sofrer um processo

de tradução até que a ideia se torne exprimível. Assim, é preciso transformar uma intuição

inicial, clarificá-la e refiná-la até que esta se torne exprimível e compartilhável, até que ela se

desenvolva em pensamento e se torne plenamente compreendida pelo sujeito.

Ao dar atenção ao aspecto experiencial e à presença de sensações como o felt meaning

no pensamento intuitivo, Petitmengin traz de volta aquilo que havia ficado de lado na maioria

das pesquisas sobre intuição nas ciências cognitivas. Apesar de quase todas elas reconhecerem

o que nomearam como aspecto emocional da intuição, a maior parte das teorias cognitivas até

hoje propostas não conseguiu (ou nem mesmo tentou) estabelecer com clareza a função dos

sentimentos e sensações em processos intuitivos de pensamento. Estes foram vistos, na

maioria das vezes, como simples anexos, tendo havido muito pouco esforço para tentar

integrá-los na dinâmica geral do pensamento8. Assim, esse resgate do que aqui chamamos de

sensibilidade do pensamento intuitivo feito por Petitmengin, juntamente com o aparecimento

da possibilidade de acompanhá-lo e conhecê-lo em sua processualidade, amplia e enriquece

nossa concepção de intuição e é de grande importância para discussões nos mais diversos

domínios, como é o caso da educação – sobre o que refletiremos no último capítulo da tese.

Não é nossa intenção afirmar a metodologia de primeira pessoa em detrimento dos

métodos de terceira pessoa. É preciso reconhecer os pontos fortes e fracos de cada uma, e

defender que certas limitações metodológicas não precisam prejudicar nosso entendimento da

dimensão intuitiva do pensamento, nem impedir outras interpretações sobre o fenômeno em

questão. A apresentação e comparação das principais concepções de intuição no campo da

psicologia e das ciências cognitivas evidenciam que, do ponto de vista teórico, as definições

da intuição não podem ser apontadas como definitivas. Devido ao fato de não haver uma

8 Exceto, é preciso reconhecer, por Bastick (1982), que deu às emoções um papel interessante na dinâmica do

pensamento intuitivo, como mostraremos nos capítulos 3 e 4.

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unidade nos estudos sobre o tema, diferentes pesquisadores oferecem definições diversas, ora

elegendo um aspecto do fenômeno, ora outro, como fundamental para caracterizá-lo.

Nas diferentes abordagens apresentadas, entretanto, algumas questões ganham

destaque e colocam problemas de pesquisa. Algumas características do pensamento intuitivo

parecem especialmente relevantes e enigmáticas: é o caso da sua relação com o pensamento

analítico ou lógico; seu caráter inconsciente e holístico; e sua capacidade de mobilizar

sentimentos e sensações. Devido às dificuldades e desafios impostos por tais características da

intuição, nos deteremos, nos capítulos subsequentes, na análise de tais aspectos. Em seguida,

discutiremos as consequências de nossa análise para a compreensão da participação da

dimensão intuitiva na aprendizagem.

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2 O CARÁTER SENSÍVEL DO PENSAMENTO INTUITIVO

Até agora, vimos como os estudos da intuição, especialmente aqueles que adotam o

ponto de vista de terceira pessoa, vêm conceituando e investigando o fenômeno, chamando

atenção para seu caráter inconsciente, imediato, não lógico e emocional. Apresentamos,

também, os avanços que a retomada de metodologias de primeira pessoa na década de 90

(VARELA E SHEAR, 1999; PETITMENGIN, 1999) proporcionou nesse campo de

investigação, uma vez que possibilita o exame do aspecto experiencial do pensamento

intuitivo. Os próximos três capítulos têm como objetivo mostrar como essa abordagem em

primeira pessoa da intuição nos permite rever algumas conclusões dos estudos de terceira

pessoa, reconfigurando nossa compreensão dos aspectos mais comumente atribuídos a ela. O

aspecto que nos parecer ser central para iniciarmos essa tarefa é o caráter afetivo da intuição.

Tendo sido muitas vezes abordado, mas deixado de lado por seu suposto caráter subjetivo,

esse aspecto recebeu muito pouca atenção da maioria dos estudos sobre o tema e sua

importância foi, de maneira geral, bastante subestimada. Ao nos voltarmos para a experiência

intuitiva, ficamos em condições não somente de compreender com mais clareza seu papel,

mas também de indicar sua centralidade no fenômeno como um todo, uma vez que tal aspecto

parece ser fundamental na condução do processo intuitivo de pensamento. Além disso, sua

compreensão será esclarecedora também de alguns aspectos de sua relação com a lógica,

assim como do caráter inconsciente desse processo, que serão discutidos nos capítulos

subsequentes. Assim, pretendemos avançar, em termos teóricos, no entendimento que se tem

dos principais aspectos do fenômeno intuitivo e de sua relação com o pensamento.

2.1 O pensamento intuitivo possui uma base sensível

Desejamos defender que o pensamento intuitivo tem, como aspecto essencial, uma

dimensão sensível. Com isso, referimo-nos a uma série de eventos que parecem estar

envolvidos em toda intuição, desde a participação de emoções e sentimentos em sentido mais

estrito, até a evocação de sensações corporais cinestésicas. Esses elementos sensíveis da

intuição são essenciais para compreendermos o caráter particular desse modo de cognição,

pois parecem, de algum modo, agir como uma espécie de fio condutor do processo.

Encontramos tal indicação na obra do famoso matemático francês, Jacques Hadamard

(1945/2009), que chama atenção para o caráter estético da invenção e da descoberta nas

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ciências – processos que só podem acontecer, segundo o autor, com a participação da

intuição. Para ele, toda invenção envolve a combinação de ideias diversas, dentre as quais

cabe um processo de escolha das melhores combinações. Tal escolha não se baseia, segundo

Hadamard, em critérios lógicos, mas em critérios sensíveis, impossíveis de serem enunciados

em palavras exatas. Tais critérios seriam, segundo ele, mais sentidos do que propriamente

formulados. Assim, mesmo na matemática, uma área do conhecimento tão reconhecida por

seu rigor formal e abstração, a combinação de ideias que resulta em uma invenção seria

alcançada por sua capacidade de afetar nossa sensibilidade. Hadamard reconhece, então, que

há um elemento afetivo que é uma parte essencial de toda descoberta ou invenção. Chama

este elemento de sentido de beleza científica, afirmando que a invenção envolve escolhas e

que estas são esteticamente governadas.

Mas essa contribuição do autor não é suficiente para explicar de que modo isso, de

fato, acontece. Como matemático, ele apenas descreve o que se passa com ele mesmo quando

se debruça sobre novas questões matemáticas, e também com seus colegas de profissão. O

autor recorre a uma noção pouco clara de combinação inconsciente de ideias para tentar

explicar como esse fenômeno ocorre, mas não tem sucesso em clarificá-lo.

Na psicologia, estudos sobre a intuição também insistem no caráter afetivo ou emotivo

da intuição. Muitas vezes, eles nada fazem além de reconhecer que emoções e sentimentos

participam de processos intuitivos, mesmo que seja somente como uma sensação de certeza

associada a essa forma de pensamento (p.ex. WESTCOTT, 1968). Alguns autores buscaram

explorar com mais profundidade essa relação, como é o caso de Bastick (1982), que confere

às emoções um papel especial em sua teoria, atribuindo a elas o papel de conectar entre si as

ideias que compõem uma intuição – ideias que, a princípio, poderiam parecer completamente

desconexas entre si, não fosse a ligação emocional que se estabelece entre elas. Assim,

segundo Bastick, a experiência emocional teria uma participação importante na evocação

intuitiva. Através de condicionamento, certos estados emocionais seriam associados a

experiências ou respostas específicas. O conjunto formado por um estado emocional e

determinadas respostas condicionadas a ele associadas foi chamado pelo autor de set

emocional. Assim, a intuição trabalharia pela associação de ideias baseada no seguinte

mecanismo: uma determinada experiência evocaria um set emocional específico. Mas todo set

emocional estaria associado a outros por compartilhar com eles emoções semelhantes. Assim,

quando uma experiência evoca um set emocional específico, as ideias daquele set tendem a se

associar com ideias pertencentes a outros sets emocionais parecidos. Por exemplo, o autor

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mostra que a frase “um amanhecer em uma mina de carvão9” é pouco intuitiva, uma vez que

evoca dois sets emocionais muito diferentes: “um amanhecer” evocaria um set emocional A

que em nada se relacionaria com o set emocional B evocado por “em uma mina de carvão”.

As emoções associadas com o primeiro tendem a ser de um tipo muito discordante do

segundo, e não haveria associação intuitiva entre as duas partes. Assim, ideias intuitivamente

associadas seriam aquelas que se ligassem a emoções e sentimentos muito próximos entre si,

de modo que, por associação entre eles, houvesse também uma associação entre tais ideias

(mesmo que, do ponto de vista lógico, a associação entre elas parecesse disparatada). As

associações subjetivas entre elementos e o set emocional ajudam a manter os elementos em

mente para um processamento global, agindo como uma espécie de “gancho de memória”.

O mecanismo proposto por Bastick (1982) para explicar como a experiência presente

pode evocar um set emocional é a empatia, entendida como um conjunto de respostas

cinestésicas e afetivas. Os sentimentos empáticos evocariam sets emocionais cujos

sentimentos associados fossem parecidos. A empatia seria usada para compreender

experiências presentes. Nós a utilizaríamos como quadro de referência para percepção de

objetos. Nesse mecanismo encontramos também a razão oferecida pelo autor para explicar a

falta de precisão da avaliação intuitiva: os sets emocionais evocados por empatia podem não

ser apropriados, evocando, por sua vez, respostas também inapropriadas para a situação

presente, o que acarretaria em uma intuição incorreta.

Bastick oferece uma compreensão interessante do papel da emoção na intuição e, até

certo ponto, podemos encontrar alguma semelhança entre suas ideias e as que aqui

defendemos. O papel das emoções na conexão de ideias as privilegia enquanto elementos

essenciais ao processo intuitivo, dando-lhes, até certo ponto, uma função central na condução

do processo de pensamento. Mas Bastick ainda está preso a uma explicação behaviorista e

associacionista, única que parece ser capaz, para o autor, de explicar de que modo uma

emoção pode se associar a uma ideia ou a uma percepção. Apenas por contiguidade e

repetição o autor consegue pensar a formação de tal elo, não conseguindo imaginar nenhum

elemento intrínseco que os relacione.

A mesma crítica pode ser feita a teorias mais atuais, como a do processamento dual

proposta por Epstein (2014). O autor propõe que os seres humanos possuem duas rotas para

estabelecer uma verdade: um caminho primariamente inferencial de raciocínio no sistema

racional e um caminho primariamente empírico, mediado pelos sentimentos, no sistema

9 No original: “a sunrise in a coal mine”.

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experiencial. Mas, para Epstein, a importância do afeto na intuição reside, principalmente, no

papel reforçador que este desempenha na aprendizagem associativa. Sem ele, não haveria

aprendizagem automática nem sistema experiencial. Quanto maior o reforço afetivo, maior a

força da resposta aprendida, o que fica indicado pela sua resistência à extinção. Assim,

formam-se esquemas emocionalmente carregados, adquiridos por reforço afetivo. A

atribuição de afetos à experiência intuitiva deve-se ao fato de que uma determinada resposta

automaticamente desencadeada traz associada, consigo, sentimentos que foram reforçadores

na aprendizagem daquela resposta. Aqui, além da limitação a uma explicação associacionista

entre sentimentos e respostas no comportamento intuitivo, vemos que o papel deles também é

muito empobrecido em relação ao que propõe Bastick (1982), uma vez que tais sentimentos

parecem ser muito mais um efeito colateral da resposta intuitiva do que seu guia.

Acreditamos que seja preciso oferecer às emoções, sentimentos e sensações

característicos do pensamento intuitivo uma nova compreensão de sua função cognitiva. É

evidente a importância deles em tal processo, e parece-nos evidente, também, sua tarefa na

criação de um fio condutor para o pensamento intuitivo, dando-lhe coesão e sentido

intrínseco. Tal função foi enfatizada por autores gestaltistas que, analisando o pensamento

produtivo, encontraram nele um aspecto exigente especial, responsável por seu caráter

experiencial particular. É o que apresentamos a seguir.

2.2 A exigência da dimensão intuitiva da cognição

Quando um pensamento se desenvolve de maneira intuitiva, ele contrasta com

processos reprodutivos em muitos aspectos, dentre os quais um se destaca: sentimos uma

espécie de urgência, de necessidade de levarmos o processo adiante; encontramo-nos, de

repente, profundamente envolvidos por alguma ideia e temos a sensação de quase conseguir

alcançá-la por inteiro, embora, na realidade, tenhamos em mãos apenas uma direção, um

esboço do que ela é e de como se encaminha. Essa sensação está ausente nos processos

reprodutivos de pensamento, que se desenvolvem como uma mera aplicação de passos, que já

supõem um resultado previsto.

Este traço do pensamento intuitivo pertence à dimensão experiencial do processo e

geralmente encontra-se presente em relatos de cientistas que descrevem o surgimento de uma

ideia, ou em nossa experiência comum, quando ouvimos ou contamos como nos envolvemos

em determinado trabalho ou com determinado problema. Muitas vezes, esse aspecto intuitivo

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é desconsiderado em estudos sobre o pensamento, sendo tomado como um fenômeno do qual

não é possível dar conta de maneira suficientemente científica, ou ainda recebendo o status de

propriedade acessória do processo, sem grande importância para sua compreensão e

desenvolvimento.

Os psicólogos gestaltistas reconheceram formas de pensamento muito próximas

daquele que, aqui, poderíamos chamar de pensamento intuitivo, tendo sido, ainda por cima,

muito sensíveis à experiência envolvida nessa forma de pensamento. Descontentes com as

abordagens associacionistas e behavioristas dominantes na psicologia da primeira metade do

século XX, os principais representantes da escola gestaltista de Berlim10 trouxeram novos ares

para a discussão de inúmeros temas de interesse psicológico, inclusive o do pensamento.

Autores como Wolfgang Köhler (1929/1968; 1938/1976) e Max Wertheimer (1945/1982), por

exemplo, demonstraram grande insatisfação com a limitação que tais teorias impunham sobre

o entendimento do pensamento. De acordo com Wertheimer (1945/1982), apenas o

pensamento mecânico e reprodutivo poderia ser explicado por teorias cujos principais

fundamentos explicativos do comportamento humano seriam a associação e a formação de

hábitos, sendo impossível que dessem conta do aspecto criador do pensamento. Köhler

(1938/1976) também criticou a desconsideração dessas teorias por uma característica

essencial dos fatos psicológicos, o valor, que lhes dotaria de um caráter dinâmico e exigente, e

sem o qual a mente humana tornar-se-ia apenas um domínio de meros fatos indiferentes –

tanto no campo das questões intelectuais quanto no moral e no estético.

O trabalho de Max Wertheimer (1945/1982) sobre o pensamento produtivo destaca-se

como um dos mais importantes sobre o tema, tendo o autor dedicado uma obra completa a sua

análise. O predicado “produtivo” é escolhido por Wertheimer em oposição a “reprodutivo”, e

cada um deles caracteriza certo tipo de pensamento. O pensamento produtivo é um processo

sensível, compreensivo, que contrasta com uma atitude cega do pensamento. Ele participa do

nascimento de uma ideia genuína e de seu desenvolvimento produtivo, assim como da

compreensão sensível de um problema e de relações conceituais.

Já o pensamento reprodutivo é assim designado pelo autor por corresponder a um

processo baseado em hábitos não questionados, na repetição sem sentido, na memorização e

10

Historicamente, considera-se a existência de três escolas da forma: a escola de Graz, representada por

Alexius Von Meinong, Vittorio Benussi e Stephan Witasek; A escola de Leipzig, representada por Felix Krüger,

E.H. Volkelt e Friedrich Sander; e a escola de Berlim, representada por Wolfgang Köhler, Max Wertheimer e

Kurt Koffka. Todas as escolas estudam a noção de forma, mas de modos diferentes. A principal diferença da

Escola de Berlim para as demais reside na recusa do conceito de sensação enquanto a unidade básica

elementar da percepção e da ideia de síntese intelectual. Para seus representantes, a forma é auto-organizada

e percebida diretamente (Moraes, 2006).

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utilização de fórmulas prontas, mesmo quando não há qualquer compreensão do que é feito.

Uma das maiores críticas de Wertheimer (1945/1982) a esse tipo de pensamento dirige-se a

seu modo de operação, uma vez que os problemas seriam tratados por ele pela sua

fragmentação em partes aleatoriamente definidas, o que teria como objetivo sua resolução por

etapas pré-estabelecidas e aplicáveis a todos os problemas da mesma categoria. Assim, o

pensamento reprodutivo visa promover um mesmo comportamento em situações similares,

não se envolvendo, portanto, em nenhum tipo de atividade genuinamente criadora.

Wertheimer (1945/1982) aponta que a concepção do pensamento enquanto um

processo reprodutivo é encontrada na teoria da associação clássica e também no behaviorismo

– que pode ser considerado uma versão mais moderna daquela teoria. Assim, o pensamento é

explicado em termos da associação entre ideias ou traços de estimulação por contiguidade e

repetição. A lei fundamental de conexão entre esses itens pode ser assim resumida: se dois

itens, a e b, frequentemente ocorreram juntos, uma ocorrência subsequente de a evocará b

para a situação. O hábito e a experiência passada, ou seja, a repetição de elementos em

contiguidade, são os fatores essenciais nesse processo. Para Wertheimer, isso significa dar

mais centralidade à inércia que à razão na explicação do fenômeno. O autor mostra que,

segundo esse sistema, as operações básicas do pensamento seriam a tentativa e o erro, onde o

sucesso depende do acaso. Como consequência, os processos de aprendizagem seriam

explicados pela repetição do sucesso e a ação só seria compreendida em termos de respostas

condicionadas e do hábito.

Esse tipo de abordagem apresenta grandes dificuldades para explicar processos

produtivos e sensíveis de pensamento. Segundo Wertheimer, se tentamos descrever processos

produtivos em termos da lógica tradicional, o resultado é geralmente insatisfatório: há uma

série de operações corretas, mas o sentido do processo, aquilo que nele era vital, vigoroso e

criativo, parece evaporar nas formulações. Com isso o autor não pretende diminuir a

importância do pensamento lógico, já que reconhece que o treino na lógica tradicional

contribui para o desenvolvimento do rigor no pensamento e para a disposição crítica. Mas

sustenta que, apenas em si, tal treino não parece dar lugar ao pensamento produtivo. Há

sempre o risco de, apesar de sua exatidão, o raciocínio lógico tornar-se vazio e sem sentido.

Em contraste com este tipo de pensamento, Wertheimer defende a existência de

processos produtivos genuínos, que não se fundamentam em operações fragmentárias, mas em

operações (tais como o agrupamento, a centralização, a reorganização, etc.) que se relacionam

com a estrutura da situação como um todo, sendo determinadas por exigências estruturais de

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uma situação sensível11. Assim, os itens, dados e relações de um contexto surgem e

funcionam como partes de acordo com seus lugares e papéis no todo, sendo todos submetidos

às mesmas exigências dinâmicas. O autor recusa-se a compreender os processos de

pensamento como arbitrários, como um agregado formado por um simples somatório de suas

partes, criticando aqueles que assim procedem:

No intuito de chegar aos elementos do pensamento, eles cortam em pedaços processos de pensamento vivos, lidam com eles cegos à estrutura, pressupondo que o processo é um agregado, uma soma daqueles elementos. Ao lidar com processos do nosso tipo, eles não podem fazer nada senão dissecá-los, e depois exibir um quadro morto, despido de tudo que é vivo neles. Passos, operações, vêm a cena externamente: com base na evocação, em um conhecimento prévio, geral ou analógico, em associações em conexão com alguns itens na situação (ou mesmo com a soma de todos eles) ou, novamente, no mero acaso. Os itens, as conexões utilizadas, são cegas ou neutras em relação a questões sobre sua função estrutural específica no processo. (WERTHEIMER, 1945/1982, p. 237, tradução nossa)

O autor sustenta, pelo contrário, que os pensamentos mostram uma consistência em

seu desenvolvimento, criando sempre hipóteses, suposições ou expectativas sensíveis, que

levam o indivíduo a uma atitude honesta de verificação da verdade estrutural do problema.

Isto quer dizer que as próprias características estruturais na situação inicial criam vetores, com

direção, qualidade e intensidade próprias, que, por sua vez, levam às operações

dinamicamente consoantes com as exigências. Para Wertheimer, tal desenvolvimento é

determinado pelo princípio da pregnância, pela tendência à boa forma e pelas várias leis da

gestalt12.

Nesse sentido, a teoria gestaltista destaca-se pela importância que sempre atribuiu à

dimensão vivida da experiência em suas pesquisas. O caso do pensamento produtivo é um

exemplo disso, diferenciando-se, entre outras coisas, por seu caráter cativante, envolvido,

demandante, por ser experimentado pelo indivíduo não de maneira indiferente ou neutra, e

sim como uma convocação, uma exigência.

Esta característica do pensamento produtivo não é entendida apenas como um adendo

ao processo. Pelo contrário, é uma característica central dele, sendo identificada como uma

das condições indispensáveis para seu desenvolvimento. Por isso Wertheimer (1945/1982)

destaca que é uma marca dos processos produtivos possuir um forte sentido de tendência,

mesmo quando estes ainda não alcançaram propriamente uma conclusão. Desde o princípio,

11

Que pode ser percebida pelos sentidos. Original: “sensible situation”. 12

As principais leis que regem a percepção são: proximidade, semelhança, movimento, simetria, movimento,

boa continuidade e destino comum. Para explicações mais detalhadas, ver Guillaume (1937/1966).

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existem vetores e uma clara exigência que mostra ao sujeito que caminho seguir, e quais estão

evidentemente errados. Deste modo, o autor afirma que há no pensamento vivo um intenso

direcionamento no sentido de melhorar uma dada situação. Muitas vezes, a ideia relativa ao

objetivo pode estar vaga ou pouco clara, podendo haver duas frentes do pensamento

trabalhando ao mesmo tempo: uma que tenta deixar a ideia central mais clara, a outra

tentando alcançar as partes. Mas nestes casos sempre é imediatamente claro o que se encaixa

e o que não se encaixa na solução do problema, uma vez que o pensamento produtivo

responde sempre a tais demandas.

A exigência foi também reconhecida no campo do pensamento, da arte e da moral por

Wolfgang Köhler (1938/1976). Ele a reconhece, a princípio, como uma espécie de valor

presente em nossas experiências, que lhes colore com qualidades específicas, experimentadas

diretamente por nós. Mas, por uma questão terminológica, prefere utilizar o termo exigência

(requiredness), visto que ele é mais bem aceito em todos os campos do conhecimento aos

quais se aplica.

Köhler caracteriza a exigência como um traço constitutivo da própria natureza dos

fatos psíquicos, correspondendo a uma qualidade de aceitação ou rejeição de algo que está

para além deles mesmos. Esta referência a outros fatos faz parte do seu caráter. Por esta razão,

o autor toma emprestado da matemática a ideia de vetor, como aquilo que é responsável pela

ligação que se estabelece entre fatos distintos na exigência. Em nossa experiência, tais vetores

são experimentados como uma espécie de demanda. Por isso, esta referência está longe de ser

neutra; ela é parcial e seletiva em relação aos fatos a que se refere. Analisemos um exemplo

simples que deixa claro o tipo de relação característico da exigência no pensamento: lendo um

texto, tenho uma ideia para um artigo. A princípio, ela ainda não se encontra claramente

definida, e ainda não consigo formulá-la com clareza. Mas tal ideia reveste-se de um caráter

especial, e tenho a nítida sensação de que sei como ela deverá ser desenvolvida, embora ainda

não consiga descrever com detalhes. Algumas sugestões de desdobramento vão, então,

surgindo. Mas, mesmo sem conseguir definir ainda exatamente onde pretendo chegar, já

consigo descartar aquelas que compõem e se harmonizam com minha ideia e aquelas em que

isso não ocorre. Esta seria a referida qualidade de aceitação ou rejeição apontada acima:

minha ideia inicial exige completamento em certas direções e recusa tudo que parece não

estar de acordo com sua demanda. No fim, não é minha vontade que guia o processo, mas as

características de exigência intrínsecas à ideia inicial.

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De maneira resumida, podemos dizer, então, que para Köhler (1938/1976) a exigência

se origina de uma relação vetorial que se estabelece no campo fenomenal entre partes de seu

contexto. Esta relação é marcada por uma propriedade qualitativa de aceitação ou rejeição da

primeira parte em relação à segunda, assumindo esta última as propriedades dependentes de

“consonante” ou “dissonante”. Este é o traço geral que caracteriza a exigência em qualquer

situação: ética, estética, lógica. Estas dissonâncias ou consonâncias não são, de modo algum,

fruto de uma análise racional do contexto ou de um julgamento moral. São, antes de tudo,

dadas na experiência direta do sujeito, de maneira global, possuindo, assim, caráter intuitivo.

Um segundo exemplo esclarece ainda mais o fenômeno: ao ler um texto, podemos ter a

sensação de que um parágrafo ou argumento destoa de seu clima geral. Este parágrafo ou

argumento assumirá a propriedade dependente de “dissonante” e será rejeitado, não pelo

leitor, mas pelas outras partes do próprio texto às quais parece não se encaixar bem.

É pela qualidade de dissonância ou consonância que certas ideias podem ser avaliadas

como soluções genuínas ou não para determinado problema. Assim, poderíamos dizer que o

caráter de exigência sugere certos direcionamentos para o pensamento, sinalizando, de alguma

forma, caminhos para seu desenvolvimento. Mas o gestaltismo, embora chame atenção para o

caráter experiencial do pensamento produtivo, indicando a presença de uma sensação de

exigência presente no seu desenvolvimento, ainda deixa muitas questões em aberto, como, por

exemplo, a de sabermos, mais especificamente, em que realmente consiste esse caráter

exigente. Acreditamos que o estudo da intuição em primeira pessoa nos coloca em condições

melhores de avaliar tal sensação, que encontra seu correlato no conceito de felt meaning, no

qual nos deteremos a partir da próxima seção.

2.3 A base da experiência intuitiva – os felt meanings13

2.3.1 O que é um felt meaning

Claire Petitmengin (2001, 2007) argumenta que uma das características mais

marcantes da intuição é seu aparecimento inicial na forma de uma sensação vaga e indistinta,

13

Usaremos o termo original em inglês, pois, até o momento, não encontramos uma tradução realmente

satisfatória para o português. A tradução mais direta seria “sentido sentido”, a qual soa mal e, mesmo, inviável.

Uma opção semelhante seria “significado sentido”, mas o termo significado já não corresponderia mais, com

precisão, à expressão original. Em outros trabalhos, traduzi a expressão por “sentido intuído”, aqui

abandonado por não deixar completamente clara a ideia expressa pelo termo, que deve ser interpretado como

um sentido que é experimentado enquanto sensação, de maneira corporal, possuindo, então, um apelo

perceptivo.

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descrita pela autora como uma direção interna de pensamento, uma inclinação, “uma linha de

força interior que guia silenciosamente a ação ou a pesquisa” (PETITMENGIN, 2001, p. 295).

Esse aspecto da intuição é extremamente complexo e de difícil compreensão à primeira vista.

Ele representa a principal novidade nos estudos sobre a intuição introduzida por Petitmengin e

só pode ser compreendido levando-se em consideração a dinâmica fluida da experiência, para

a qual raramente estamos atentos e sobre a qual encontramos uma enorme dificuldade de

falar, por se tratar de uma dimensão pré-verbal e corporificada. Por isso, tentaremos explicar

com o máximo de clareza tal sensação.

Para explicar essa sensação que se relaciona de modo essencial com o surgimento de

uma intuição, Petitmengin recorre à noção de felt meaning, proposta por Eugene Gendlin

(1997). Petitmengin (2001, 2007) afirma que o felt meaning é uma sensação global e vaga que

temos de uma situação, pessoa ou evento, uma espécie de conhecimento pré-conceitual e pré-

discursivo que temos do mundo. Por exemplo, eu posso ter um felt meaning de uma música:

quando a escuto, imediatamente sou tomada por determinada sensação, que não sei muito bem

como colocar em palavras, mas que está direta e especificamente relacionada com aquela

música; é como se, de algum modo, tal sensação fosse capaz de traduzir a impressão global

que aquela composição produz em mim. Em outro exemplo, podemos tomar a sensação que

tenho de determinada pessoa. É bastante fácil percebermos o felt meaning que temos de

alguém com quem temos uma grande amizade ou de alguém que, pelo contrário, nos inspira

certa antipatia. Quando na presença de um grande amigo, ou mesmo quando apenas pensamos

nele, experimentamos uma sensação bem particular, que parece nos tomar de súbito e por

completo, e mesmo assim somos praticamente incapazes de descrevê-la. Já o encontro com

uma pessoa malquista pode despertar em nós uma sensação tão particular e avassaladora

quanto a do caso anterior. Há, porém, uma grande diferença na qualidade das duas sensações.

Cada pessoa produz em nós um felt meaning muito específico, muito preciso. O mesmo

valeria para o exemplo da música; qualquer outra música poderia evocar um felt meaning,

mas nunca exatamente o mesmo que a primeira. Com isso, conseguimos intuir um aspecto

importante dos felt meanings: embora possamos dizer que eles são vagos, que parecem, de

algum modo, sem definição precisa, podemos afirmar, ao mesmo tempo, que são

extremamente específicos. A indefinição que atribuímos a eles deve-se, principalmente, ao

seu caráter não verbal, difícil, então, de ser definido em palavras com precisão. Mas, mesmo

assim, eles são particulares, uma vez que possuem uma relação de especificidade com

determinado ser ou evento. Eu jamais confundiria o felt meaning que sinto ao encontrar

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aquele amigo querido com aquele que me produz a companhia de uma pessoa com quem

antipatizo.

O caso da memória também nos ajuda a ilustrar esse caráter dos felt meanings. Em um

exemplo simples e já consagrado, William James (1890/1950) chama atenção para aquilo que

experimentamos quando não conseguimos nos lembrar de uma palavra, embora tenhamos a

sensação de que ela está “na ponta da língua”. Nesta situação, experimentamos uma espécie

de vazio intensamente ativo, e, ao mesmo tempo, um sentido de direção muito específico, que

nos faz recusar qualquer palavra que não aquela procurada, mesmo uma de sentido muito

próximo. James fala em um sentimento de ausência que, no entanto, não é uma ausência de

sentimento. Até mesmo “o ritmo de uma palavra pode estar lá sem um som para vesti-lo”

(JAMES, 1890/1950, p. 252, tradução nossa). Vemos que este “vazio” em muito se assemelha

ao felt meaning, pois possui uma forte especificidade, embora não possua nitidez. Quando

encontramos a palavra, ela parece se ajustar perfeitamente a este vazio, que é mesmo como se

fosse seu molde.

Crendo termos conseguido oferecer uma ideia um pouco mais concreta daquilo a que

nos referimos quando falamos em felt meaning, podemos avançar um pouco mais no

entendimento dessa sensação do ponto de vista teórico e conceitual. Buscaremos, contudo,

tentar manter o leitor em contato com a concretude do fenômeno, o que acreditamos ser

fundamental para sua adequada compreensão. Como já mencionado, a noção de felt meaning

foi tomada emprestada por Petitmengin (2001) do trabalho de Eugene Gendlin (1997). De

acordo com Eugene Gendlin, podemos reconhecer três dimensões do conhecimento: uma

operacional, outra lógica e uma experiencial. É por esta última que o autor mais se interessa, e

seu trabalho visa desvendar de que modo podemos criar sentidos a partir de nossa experiência,

que função ela assume em nossas operações conceituais e qual sua relação com as dimensões

lógica e objetiva.

Gendlin (1997) afirma que a dimensão experiencial do conhecimento é diretamente

sentida. Com isso, o autor marca seu uso distinto do termo experiência, uma vez que este, por

vezes, se refere a um esquema lógico que organiza a percepção sensorial ou a um construto

que teria a função de relacionar e predizer comportamentos. Tais definições da experiência

não satisfazem o autor, cujo interesse se volta para a dimensão sentida da experiência, a qual

ele caracteriza como o fluxo contínuo e concreto de sentimento a que estamos sujeitos o

tempo todo. Prefere, então, utilizar o verbo substantivado “o experienciar” para se referir a

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ela, uma vez que este carrega consigo a conotação do movimento, do processo, do fluxo

característico dessa dimensão do conhecimento.

Segundo o autor, o sentido não é algo que se restringe a uma relação objetiva e formal

entre símbolos verbais, ou entre símbolos e coisas, ou ainda entre símbolos e percepções. Para

além dessa relação, o sentido possui outra dimensão, que diz respeito à nossa experiência

dele. Ou seja, quando falamos, lemos ou pensamos, um sentido é experienciado, é sentido,

para além de sua relação estreita com um símbolo que o represente. Entretanto, geralmente só

nos damos conta dessa dimensão do sentido quando nos faltam palavras ou outros referentes

que possam simbolizá-la adequadamente: damo-nos conta de que estamos experimentando

intensamente aquele sentido e colocamo-nos a rodeá-lo, buscando expressá-lo por gestos de

mãos, ou através de exemplos, ou pela invenção de metáforas, etc. É o que acontece, por

exemplo, no caso da palavra na ponta da língua de James (1890/1950), apresentado logo

acima.

Assim, para Gendlin, os felt meanings são a “carne” da dimensão experienciada do

sentido. Segundo o autor, só podemos entender um conceito se tivermos o seu felt meaning.

Ele é parte essencial de todo ato cognitivo e de nosso pensamento. No pensamento, um

conceito não envolve apenas um padrão lógico e suas implicações em determinado momento;

ele envolve também a experiência “sentida” de sentido. Enquanto temos grande dificuldade

em manter, ao mesmo tempo, muitas considerações em forma verbal em nossa mente, o felt

meaning é capaz de englobar uma complexidade de considerações que podem ser resumidas

por termos como “isso” ou “aquilo”. Segundo Gendlin, essa é a forma mais fundamental de

simbolização de um felt meaning, a que o autor chamou de referência direta14. Ou seja, a

referência direta refere-se ao ato de circunscrevermos uma porção de nossa experiência

sentida, utilizando-nos, para isso, de algum termo que o destaque, como pronomes

demonstrativos. Por exemplo, com frequência, quando queremos explicar uma ideia que

tivemos e que nos parece muito potente, apesar de termos a sensação de que sabemos o que

queremos dizer, muitas vezes encontramos certa dificuldade de expressá-la em palavras para

outras pessoas. Se nosso interlocutor tenta nos ajudar e propõe uma formulação do que

acredita ser nossa intenção, podemos rejeitar prontamente sua sugestão, dizendo “Ainda não é

bem isso. Isso que eu pensei é diferente, ainda não é bem por aí”. Existe algo que queremos

dizer, algo que está presente na forma de uma sensação específica ligada a determinada ideia.

A especificidade dessa sensação fica clara quando, apesar de não conseguirmos ainda

14

Outros formas mais complexas de simbolização dos felt meanings são apresentadas no capítulo 4.

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formular o que ela é, somos perfeitamente capazes de perceber o que ela não é (como quando

rejeitamos a proposta de nosso interlocutor). Isso demonstra também que nossa dificuldade de

exposição não revela uma desorganização do pensamento, apenas indica que estamos lidando

com uma porção da experiência de difícil tradução em palavras, que ainda precisa de tempo e

trabalho para ser clarificada. A essa porção, muitas vezes, nos referimos usando termos como

“isso”, e é possível dizer que a ele corresponde uma sensação do todo de nossa ideia,

completa num certo sentido, mas ainda incompleta em termos que a tornem compartilháveis

com outras pessoas.

Com a introdução do felt meaning como uma dimensão essencial do pensamento e de

nossos processos cognitivos em geral, Gendlin (1997) deseja afirmar o experienciar como

uma nova ordem de nossa cognição. Mas não é sua intenção afirmar essa nova ordem em

detrimento das ordens lógica e operacional. Pelo contrário, o autor se esforça para encontrar

um método que permita transitar entre essas diferentes dimensões cognitivas e esclarecer de

que modo elas se relacionam.

Para Gendlin (1997), o sentido não se localiza no experienciar, nem na lógica, mas

resulta da interação entre um felt meaning e algo que assuma a função de um símbolo.

Símbolos, para o autor, podem ser palavras, coisas, situações, eventos, comportamentos,

interações interpessoais, etc. Afirma, assim, que o sentido depende da interação entre

símbolos e felt meanings: sem os primeiros, os felt meanings são incompletos, não podem

existir como sentidos completos em si, embora, ainda assim, existam num sentido pré-

conceitual. Gendlin afirma que são, então, sentidos implícitos, pois não são completos e

formados. As diferentes formas de interação entre felt meanings e símbolos resultam em

diferentes tipos de experiência. Na próxima sessão, discutiremos essas sutilezas com mais

detalhes. Por enquanto, apenas desejamos indicar a existência de uma incontornável ligação

entre símbolos e felt meanings, fundamental para criarmos sentido para nossas experiências.

Desta forma, Gendlin defende que o pensamento nunca pode ser explicado exclusivamente

com base em associações lógicas e esquemas analíticos; ele sempre envolve experiência,

resultando de uma relação funcional entre símbolos e o experienciar.

Encontramos nas notas autobiográficas de Albert Einstein (1949/1982) algumas

reflexões do cientista sobre o pensamento que parecem dar suporte a importante relação entre

sentido e experiência proposta por Gendlin (1997):

As relações entre os conceitos e as proposições são de natureza lógica e o processo do pensamento lógico é estritamente limitado à efetivação da conexão entre os

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conceitos e as proposições entre si, de acordo com regras firmemente estabelecidas, que constituem a matéria da lógica. Os conceitos e proposições adquirem sentido ou conteúdo apenas através das suas conexões com as experiências sensoriais. A conexão destas últimas com os primeiros é puramente intuitiva, e não de natureza lógica em si mesma. (EINSTEIN, 1949/1982)

Einstein afirma que os conceitos e proposições que a lógica relaciona entre si de

acordo com suas regras próprias ganham seu sentido, antes de tudo, através de uma conexão

com experiências sensoriais. Essa conexão, em si, transborda a natureza lógica, sendo de outra

ordem, presumidamente corporal e sentida. Em outro trecho do mesmo texto, Einstein afirma

ainda que “Não é de modo algum necessário que o conceito esteja ligado a um signo que

possa ser reconhecido e reproduzido pelos sentidos (palavra), mas, quando isto se dá, o

pensamento torna-se, por esse meio, capaz de ser comunicado”. Assim, refere-se à

possibilidade de um conceito não estar, ainda, ligado a nenhum símbolo (ligação esta

assumida como condição para que ele se torne comunicável), o que reforça a ideia de Gendlin

de que o pensamento comporta sentidos implícitos, anteriores a uma interação com símbolos.

Poderíamos resumir as principais características dessa ordem pré-conceitual da

experiência da seguinte forma. Em primeiro lugar, ela é concreta, correspondendo, portanto, a

uma massa aperceptiva sentida para a qual podemos direcionar nossa atenção internamente. É

um “isso” ou “esse jeito como me sinto”. A dimensão do experienciar não pode ser

equacionada a definições ou esquemas lógicos, pois esses representam algo, mas, em si, não

são algo. Ela é aquilo que “estamos”, que “queremos dizer” ou que “sentimos” internamente

em um dado momento, que raramente se nos apresenta sob a forma de símbolos verbais ou

imagens visuais explícitas.

Outra característica muito importante dessa dimensão fluida da experiência refere-se

ao seu caráter de inacabamento. Qualquer aspecto do experienciar possui ordens “inacabadas”

complexas. Isso quer dizer que não importa o que dela está presentemente simbolizado; há

sempre muitas outras possibilidades de simbolização que podem ocorrer (GENDLIN, 1997).

É como se sempre houvesse um inesgotável potencial intrínseco de sentido em todo felt

meaning, ou seja, é como se todo felt meaning carregasse consigo um potencial de ser sempre

clarificado e desenvolvido para além do que já foi. Uma vez que os felt meanings podem ser

considerados como sentidos implícitos que só se tornam completos e explícitos quando

interagem com símbolos, os aspectos que diremos que “estavam lá” dependem dos símbolos

que vão interagir com a experiência.

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74

2.3.2 A vitalidade dos felt meanings

Segundo Petitmengin (2001, 2007), a dimensão intuitiva da experiência é gestual e

rítmica. Isso ocorre porque o felt meaning não é sólido e estático; ele possui uma dinâmica

interna, um sutil movimento interior, que podemos experimentar em determinadas situações.

Ao ouvir uma música, por exemplo, podemos entrar em contato com tais características, pois

ela desperta e faz vibrar em nós uma zona interna difícil de situar, tanto intimista como difusa,

sem limites precisos. Há uma energia específica que provém de cada felt meaning, uma

dinâmica própria que emana, por exemplo, da forma, inclinação, espessura e ritmo de uma

mão que escreve. Petitmengin sugere que este caráter do felt meaning deve-se ao fato de que

ele está na base daquilo que Daniel Stern (1992, 2010) chamou de experiências de vitalidade.

Para explicar as experiências de vitalidade, Stern desenvolve o conceito de “afetos de

vitalidade” (STERN, 1992) ou “formas dinâmicas de vitalidade” (STERN, 2010). Eles

correspondem a uma nova categoria de afetos que visa dar conta de determinadas qualidades

de sensação que não se ajustam ao nosso léxico ou taxonomia de afetos existentes (STERN,

1992). Os afetos de vitalidade recobrem certas qualidades da experiência que são mais bem

designadas por termos dinâmicos e cinéticos (geralmente adjetivos ou advérbios), como:

explosivo, relaxante, tenso, parado, crescente, pulsante, lânguido, acelerado, fraco,

decrescente, flutuante, prolongado, entre outros. São eles que trazem a experiência de

vitalidade para nossas experiências.

Os afetos de vitalidade não dizem respeito ao conteúdo de uma experiência, mas,

antes, a sua forma dinâmica. Relacionam-se com o “como”, com o modo e estilo através do

qual uma experiência ocorre, e não com o “o que” ou o “por quê” dela. Dessa forma, os afetos

de vitalidade representam um aspecto de nossa experiência cotidiana que permeia todas as

nossas ações e percepções, embora nem sempre estejamos atentos a eles. Eles estão sempre

presentes, mesmo que fora de nossa consciência, enquanto afetos regulares como alegria,

tristeza e raiva, ora aparecem, ora desaparecem de nossa experiência.

Assim, os afetos de vitalidade são distintos dos afetos categóricos, pois são inerentes a

todo comportamento. Eles podem ocorrer na presença ou não daqueles, sendo algo diferente

de uma emoção. A emoção é apenas um dos possíveis conteúdos que podem ser modelados

em formas dinâmicas de vitalidade. Um afeto de vitalidade não se refere ao conteúdo de um

sentimento, mas a uma forma que pode se referir a todo e qualquer tipo de evento. O afeto de

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vitalidade “explosivo”, por exemplo, pode tanto se referir a um riso quanto a um levantar-se

de uma cadeira (STERN, 1992).

Stern afirma que a vitalidade é uma experiência subjetiva e uma realidade fenomenal

que possui uma base na ação física e em operações mentais rastreáveis, não se confundindo,

então, com uma forma de vitalismo. A base física dos afetos de vitalidade é o movimento, e

ele carrega consigo alguns componentes dinâmicos importantes. Em primeiro lugar, uma vez

que todo movimento se desenvolve ao longo de certo período de tempo, podemos atribuir a

ele um contorno ou perfil temporal, de acordo com o modo como ele começa, se desenvolve e

termina. Assim, nossa percepção do movimento caracteriza-se por um senso de tempo, forma

e duração. Além disso, quando percebemos movimento, geralmente atribuímos uma força a

ele e tendemos a considerá-la como intrínseca ou como estando “por trás” dele. O movimento

define, também, certo senso de espaço e, finalmente, parece possuir uma orientação, ou seja,

sentimos que ele “vai a algum lugar” (STERN, 2010).

Stern define, dessa maneira, cinco componentes dinâmicos que caracterizariam nossa

percepção de vitalidade: movimento, tempo, força (ou intensidade), espaço (ou forma) e

orientação. Eles ocorrem sempre simultaneamente, formando uma espécie de Gestalt, ou,

como o autor nomeia, uma “pêntade dinâmica fundamental” (STERN, 2010, p.4). Só

podemos separá-los de maneira teórica ou analítica; a vitalidade sempre é experimentada ou

percebida como um todo, surgindo como uma propriedade emergente. Stern (1992) também

afirma que os componentes da vitalidade são qualidades amodais de nossa experiência. Isso

significa que, apesar de serem compartilhadas por todas as modalidades sensoriais, tais

qualidades dinâmicas da experiência não são específicas de nenhuma delas, sendo um aspecto

mais global de nossa experiência. Elas são características não somente de nossas experiências

sensoriais, mas de muitas outras formas de experiência. Por exemplo, podemos dizer que uma

cor (estímulo visual) possui tanta intensidade quanto um som (estímulo auditivo) ou um odor

(estímulo olfativo); mas também podemos perceber intensidade em uma gama de experiências

não sensoriais: uma conversa pode ser intensa, assim como um sentimento ou mesmo um

pensamento.

Assim, dizermos que os felt meanings que estão na base de nossas experiências

intuitivas são uma forma de experiência de vitalidade implica atribuir-lhes algumas

características essenciais, como ritmo, intensidade, uma forma dinâmica e orientação. Essas

características parecem estar de acordo com a descrição de experiências de pensamento

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intuitivo. Mais adiante, poderemos observar de que modo isso é corroborado por experiências

concretas.

2.3.3 A tendência do pensamento intuitivo

De acordo com Petitmengin (2001, 2007), uma ideia geralmente se apresenta à

consciência como uma sensação vaga e sem contornos definidos, que se assemelha a uma

orientação do pensamento. Essa formulação é rica em semelhanças com a ideia de exigência

proposta pelo gestaltismo, como apresentamos anteriormente. Vimos que Claire Petitmengin

identificou tal sensação como sendo um felt meaning. O pensamento desenvolve-se, então,

como um refinamento desta sensação inicial, do felt meaning a que corresponde a ideia

nascente.

Os felt meanings portam um caráter de direcionalidade que se mostra essencial para o

desenvolvimento de nosso pensamento. Este caráter já foi apontado, também, como um traço

característico dos afetos de vitalidade, de acordo com Stern (2010). Com o intuito de refinar

nossa compreensão desse aspecto da experiência intuitiva, podemos recorrer também ao

conceito de sentimento de tendência proposto por William James em seus escritos sobre o

pensamento. James (1890/1950) afirma que, no fluxo do pensamento, existem mais do que

partes substantivas e partes transitivas das quais podemos tomar consciência. Há também a

presença de determinados sentimentos, os quais chamou de sentimentos de tendência (feelings

of tendency), geralmente tão vagos que somos incapazes de, sequer, nomeá-los. Estes

sentimentos nos permitem ter uma visão abreviada da forma de um pensamento, são como

uma espécie de vislumbre premonitório de um esquema de relação entre termos que se

apresenta a nós de maneira muito rápida. Graças a eles, podemos entrever, de modo um tanto

nebuloso, a forma de, por exemplo, uma ópera, uma peça ou uma obra literária, e

conseguimos ter consciência permanente de para onde nosso pensamento está se

encaminhado. É um sentimento como qualquer outro, um sentimento de que o pensamento

está próximo de chegar a algum lugar, antes que tenha, de fato, lá chegado. Assim, se

tentamos resolver um problema, sabemos que soluções estão de acordo com a tendência de

nosso pensamento e quais não estão, pois, mesmo antes de concluí-lo, já podemos prevê-lo

enquanto um esquema mais vasto, já conhecemos sua forma.

De fato, as experiências de pensamento intuitivo parecem estar sempre marcadas por

esse sentimento de tendência apontado por James. Até mesmo em estudos experimentais da

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intuição, onde a experiência dos participantes é, no máximo, superficialmente levada em

consideração, a afirmação de que a intuição é marcada por algum senso de direção é

frequentemente encontrada (p.ex. BASTICK, 1982). A partir do trabalho de Petitmengin e

Gendlin, é possível relacionar essa tendência do pensamento intuitivo a características

próprias dos felt meanings.

O felt meaning, segundo Gendlin, é uma espécie de sentido implícito, como já

apontado. Este sentido é extremamente específico, o que significa dizer que só pode se

realizar de determinadas formas, e não de outras. Isso quer dizer que há uma exigência própria

intrínseca ao felt meaning, ele próprio é experimentado como uma indicação de um caminho.

Por exemplo, quando temos uma ideia para uma tese, certamente ainda não sabemos onde

exatamente pretendemos chegar com nosso trabalho. Entretanto, sentimos que há uma direção

que encaminha nosso pensamento e que pode ser percebida quando escrevemos um projeto.

Com o desenvolvimento de nosso trabalho, vamos tateando o melhor caminho a seguir, de

modo a tentar contemplar a direção que nos é dada pela ideia global que temos daquilo que

desejamos fazer. Assim, a partir da direção contida em nossa ideia inicial, vamos

selecionando autores, materiais e exemplos que parecem estar de acordo com ela e que nos

ajudarão, efetivamente, a desenvolvê-la.

Talvez o mais interessante sobre essa tendência do felt meaning resida na constatação

de que, apesar de exigir em certa direção, ela admite uma ampla gama de escolhas que, de

maneira análoga, satisfazem sua exigência. Estamos diante, então, do que chamamos aqui de

uma abertura dentro da necessidade. A exigência intrínseca de um felt meaning não restringe a

sua tradução a um único produto final. Tal tradução pode se dar de múltiplas formas, desde

que incorpore o felt meaning subjacente.

Dewey (1934/2010) também abordou esse fenômeno ao apresentar o modo como o ato

de expressão artística se desenvolve. Também o artista lida com um sentimento de direção

que age como uma espécie de fio condutor para sua ação criadora. Dewey afirma que o ato

expressivo não é uma emissão instantânea, mas uma construção no tempo: é uma interação

prolongada de algo proveniente do artista com as condições objetivas, onde ambos adquirem

uma forma e ordem que não possuíam de início. Estas transformações são executadas por

uma mesma e única operação, que é o fazer artístico. É no ato de escrever ou colocar as tintas

sobre sua tela que o artista ordena e dá uma forma perceptível às suas ideias e emoções. Neste

processo, uma emoção inicialmente bruta e indefinida é elaborada e vai se tornando cada vez

mais definida como resultado de sua sensibilidade às modificações sofridas pelo material

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objetivo, num movimento de mútua afetação entre ambos que caminha até sua conclusão. A

emoção apresentada por Dewey se assemelha muito à noção de felt meaning apresentada por

Petitmengin (2007) e possui um papel de extrema importância na condução do ato de

expressão, embora não constitua seu conteúdo. Ela possui um papel fundamental no processo

expressivo, devido a seu caráter seletivo. Pode ser comparada com um clima predominante

que exclui tudo aquilo que não se incorpora a ele. Ela seleciona tudo que lhe é cognato, que

pode alimentá-la e levar o processo de criação a uma conclusão.

Assim, através da obra de Dewey, vemos com clareza a relação entre a direcionalidade

do felt meaning e seu caráter seletivo em relação aos materiais que servirão para a sua

expressão. Apenas os materiais que permitam a tradução do felt meaning em um sentido que

concorde com a exigência intrínseca a ele são selecionados. À medida que a tradução vai se

concretizando, o felt meaning ganha corpo e se torna mais claro e bem definido, o que

impulsiona o processo.

O modo como a seleção do material é feita e de que modo ele é incorporado ou

rejeitado ao longo do processo intuitivo também são questões esclarecidas pelo exame da

criação artística oferecido por Dewey (1934/2010). Durante o processo de criação, o artista

não realiza sua obra de uma só vez, através de sua escrita, ou de suas pinceladas, por exemplo.

No fazer da obra, ele está sujeito também ao sofrer, ou seja, à percepção atenta da obra em seu

desenvolvimento. O artista deve ser também espectador, avaliando, ao longo do processo, se

sua obra está de fato incorporando e ampliando o sentido expressivo característico de sua

ideia inicial, ou, em nossos termos, o felt meaning característico dela.

Podemos dizer, então, que experimentamos um felt meaning como uma exigência, que

aponta em determinada direção, e esta nos impele a clarificá-lo de acordo com ela. O

pensamento intuitivo é marcado por essa tendência, que experimentamos como necessária e

em relação à qual avaliamos seu desenvolvimento. Esse é um aspecto central do pensamento

quando ele incorpora a dimensão intuitiva da cognição, e é uma das razões pelas quais a

intuição é tradicionalmente associada a aspectos emocionais de nossa experiência.

2.4 Acompanhando o pensamento intuitivo

Para Petitmengin (2007), o surgimento de uma ideia traz consigo um felt meaning, que

pode sofrer um processo de tradução até que a ideia se torne exprimível. Assim, é preciso

transformar uma intuição inicial, clarificá-la e refiná-la até que esta se torne exprimível e

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compartilhável, até que ela se desenvolva em pensamento e se torne plenamente

compreendida pelo sujeito. Ao tentarmos desenvolver uma ideia nascente, geralmente

recorremos a um entre dois gestos possíveis: em primeiro lugar, podemos tentar forçar a

categorização e interpretação do felt meaning, o que pode congelar ou interromper a evolução

do pensamento; ou, em segundo lugar, podemos deixá-lo se desenvolver, tornar-se mais

preciso, mantendo contato com ele pelo tempo que for necessário até sua maturação.

Assim, para expressar uma ideia, precisamos entrar em contato com o felt meaning

subjacente a ela. É preciso descobrir seu significado, a vibração e o movimento próprios a ela,

para que ela possa ser expressa. Durante todo o processo de expressão é preciso manter o

contato com o felt meaning. O que está sendo produzido deve ser avaliado a partir deste

sentimento, a expressão deve se dar de acordo com ele. Um felt meaning, sempre muito

específico, nos faz rejeitar tudo o que se apresenta à nossa percepção que não está em sintonia

com ele. Uma vez terminado o processo de expressão, o felt meaning não desaparece. Ele não

é apenas um ponto de partida, mas permanece mesmo após sua expressão. O felt meaning

torna-se, então, ainda mais preciso, mais desenvolvido, permitindo que descubramos nele

novos aspectos (PETITMENGIN, 2007).

A dimensão fonte age como fio condutor no processo de expressão de uma ideia,

através de quatro gestos. Primeiro, precisamos entrar em contato com o felt meaning

subjacente a ela. É preciso descobrir seu significado, a vibração e o movimento próprios a ela,

para que ela possa ser expressa. Por exemplo, o trabalho de tradução não pode se limitar a

uma correspondência fixa de palavras entre duas línguas. É preciso, mais que isso, entrar em

contato com a ideia do texto que está sendo traduzido, fazer um detour através de seu

significado não-verbal para encontrar o sentido que lhe é inerente. A autora também se utiliza

da análise da pintura de Cézanne feita por Merleau-Ponty para mostrar que o mesmo pode

ocorrer na pintura. O pintor não simplesmente reproduz uma paisagem, mas precisa antes

entrar em contato com ela, captar seu movimento essencial, sua vibração própria, para então

pintar aquilo que o toca.

Em um segundo momento, é necessário traduzir o felt meaning em uma forma

específica, seja ela verbal, visual, musical, ou outra. Esta transposição deve conseguir

expressar sua força, seu ritmo, sua forma inicial. Além disso, é necessária uma constante

comparação do felt meaning com aquilo que vai ganhando forma através do ato de expressão.

Durante todo o processo expressivo, é preciso manter o contato com o felt meaning, de modo

que aquilo que está sendo produzido seja avaliado a partir deste sentimento, garantindo que a

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expressão se dê de acordo com ele. Um felt meaning, sempre muito específico, nos faz rejeitar

tudo o que se apresenta à nossa percepção que não está em sintonia com ele.

Agora que dispomos de uma fundamentação teórica mais sólida sobre o

desenvolvimento do pensamento intuitivo, gostaríamos de ilustrá-lo descrevendo o ato de

instauração artística proposto por Étienne Souriau (1956/2009). Acreditamos que a

apresentação da experiência de instauração (ou criação) servirá para o enriquecimento de

nossa discussão, pois não somente nos permitirá encontrar aspectos da experiência intuitiva

discutidos nas sessões anteriores, como também dará destaque para algumas características

dela que geralmente são pouco exploradas pelos estudos do tema.

Para Souriau, todas as coisas, inclusive nós mesmos, são sempre um esboço, sempre

um ser a se realizar, e a sua realização, seu acabamento, é incumbência de um agente

instaurador. A existência completa, acabada, é apenas uma potência, e exige uma ação

instauradora – é uma obra a fazer. E toda obra a fazer nos concerne. Buscando designar de

maneira mais clara a obra a fazer e sua natureza, Souriau nega, em primeiro lugar, que esta

deva ser entendida como um projeto (veremos em breve suas razões) ou como futuridade

(pois pode não se concluir, pode ser abortada). Prefere usar um termo mais controvertido para

entendê-la, pois acredita que ele caracteriza melhor o aspecto experiencial, vivido, da obra a

fazer: fala na “forma espiritual” da obra, ou no “anjo” da obra (pois tais expressões deixam

mais evidente a experiência que temos de que ela desempenha um papel anunciador). A obra

a fazer possui certa forma, que é como que acompanhada de um “halo de esperança”, um

“maravilhamento” que é percebido pelo criador como uma espécie de oriente. O apelo da obra

é o que faz com que doemos nosso corpo e humanidade para ela. Por isso, abandona a ideia de

projeto, uma vez que ela suprime toda a experiência sentida ao longo do caminho de

instauração da obra e os encontros que este caminho proporciona.

Já aqui, podemos ver algumas semelhanças entre o que propõe Souriau e o que

expusemos a respeito da origem das experiências intuitivas de pensamento. A princípio,

poderíamos comparar a obra a fazer, cuja existência é virtual, ao felt meaning que acompanha

o surgimento inicial de uma ideia. A obra a fazer de Souriau se apresenta como potência,

como “uma espécie de oriente”, apresentando o caráter de direcionalidade que vimos ser um

dos aspectos mais salientes do felt meaning. E o autor ainda destaca que esta não pode ser

entendida como futuridade nem como projeto, pois nem a obra a fazer necessariamente se

concretizará (o sentido implícito de um felt meaning nem sempre se tornará explícito), nem é

uma espécie de resumo em forma de projeto, um passo a passo que só precisa ser colocado em

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prática para vir à existência. A passagem do modo de existência de obra a fazer para o modo

de existência concreto envolve uma ação instauradora muito mais complexa, que se organiza

segundo alguns fatores e que está sempre sujeita ao risco de não se concluir, por uma série de

razões. Para explicar o ato instaurador e a colocação no mundo de uma obra com existência

concreta, Souriau usa a metáfora do drama de três personagens: a obra a fazer, que se

encontra num modo virtual; a obra no modo de existência concreto, onde se realiza; e o agente

instaurador, a quem concerne a obra.

Nesse drama, Souriau (1956/2009) valoriza a experiência do agente instaurador como

único meio de compreender o desenvolvimento da obra a fazer em obra concreta. Isso porque

não nos damos conta nem da existência rasa e simples da coisa física, nem da virtualidade

pura que representa o modo de obra fazer. A única experiência que temos é a do processo

instaurador, onde ocorre a metamorfose do modo de existência virtual (obra a fazer) para o

modo de existência concreto. A experiência da instauração artística é utilizada como exemplo

por Souriau, porque esta metamorfose só nos é dada na experiência do fazer, tão evidente na

criação artística. Apenas o agente instaurador pode experimentar esta transformação de um

modo de existência em outro. Na experiência do fazer instaurador, esta experiência é

incontestável e direta para o agente.

Ao longo do processo de instauração, três fatores essenciais caracterizam o papel do

agente instaurador. Em primeiro lugar, o agente possui o que Souriau (1956/2009) postula

como liberdade. O filósofo, entretanto, sublinha que tal liberdade deve ser entendida,

principalmente, do ponto de vista prático, referindo-se ao poder do agente instaurador de

poder de escolher na indiferença. O pintor, por exemplo, tem liberdade de escolha quanto ao

local em que vai dar um toque de pincel, que cor vai escolher na palheta, etc. É a partir desta

liberdade completa de escolha que se inicia a ação do agente instaurador, seja lá qual for a

obra a fazer.

Essa liberdade prática do agente instaurador nos remete ao que acima chamamos de

abertura dentro da necessidade, que seria um aspecto essencial do felt meaning. Se a exigência

característica do felt meaning só pudesse ser traduzida de uma única forma, ou, em termos

mais próximos aos de Souriau, se a obra a fazer fosse apenas um projeto, cuja conclusão já

estivesse detalhadamente prevista desde o princípio, não seria possível falar em liberdade do

agente instaurador. É num jogo entre a exigência própria da obra a fazer e a liberdade prática

do agente que a obra a fazer vai encontrando seu caminho em direção a uma existência

concreta, na escolha dirigida pela necessidade imposta pelo “anjo da obra”. Nos termos de

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Gendlin (1997), a criação depende da interação com símbolos, que pode ocorrer de diversas

maneiras.

Um segundo fator que caracteriza o fazer do agente instaurador é a eficácia

(SOURIAU, 1956/2009). Isso significa que o criador (ou agente instaurador) é quem opera a

criação, manualmente ou espiritualmente. Apesar da existência da obra enquanto obra a fazer,

é o agente que a realiza, que decide ou não fazê-la. A obra não se faz sozinha; para se

desenvolver, precisa se nutrir do esforço do agente. Se o agente se sente cansado, perde a fé

em sua obra ou desiste dela, ela fica a meio caminho, volta para um limbo, é abortada. Se o

criador desiste do esforço, a criatura deixa de vir ao mundo. Por isso, Souriau se recusa a

entender a obra a fazer como dotada de futuridade.

A atribuição de eficácia ao agente instaurador traz à tona um aspecto muito relevante

da experiência intuitiva, geralmente ignorado e até mesmo negado pela maioria dos autores: o

do esforço que a acompanha. É muito comum que a intuição seja entendida como uma forma

de conhecimento direto e que não exige qualquer esforço do sujeito. Pelo contrário,

encontramos alguns autores que até mesmo apontam o esforço como um fator que põe em

risco o surgimento de uma intuição. Mas, quando olhamos para a intuição do ponto de vista

da experiência, o esforço aparece de maneira clara. Uma intuição envolve um longo trabalho

de compreensão de sua forma inicial, vaga e indistinta, e de experimentações e busca de

meios que lhe dêem carne, que a expressem. Para isso, o esforço é essencial. Se o agente nada

faz, e apenas espera que sua ideia se concretize em uma forma final através de uma

iluminação inspiradora, provavelmente sua obra nunca se concretizará.

Para terminar, Souriau (1956/2009) aponta que o agente instaurador está sujeito

também àquilo que chamou de errabilidade ou falibilidade. O agente pode fazer bem ou mal a

obra. É um ponto a que se costuma dar pouca atenção quando se trata do processo de criação.

Entretanto, Souriau sublinha que é um aspecto essencial do processo: o criador pode fazer

bom ou mal uso de sua liberdade; sua eficácia pode promover ou arruinar a obra. Quando o

agente falha, sua sanção imediata é um aborto, um recuo existencial da obra, a cessação da

promoção do ser. Por isso, Souriau afirma que, enquanto a obra está em construção, ela está

em perigo. A cada ato do artista, ela pode viver ou morrer.

Quanto ao processo de criação em si, Souriau (1956/2009) afirma que seu traço mais

característico é a abnegação do agente instaurador diante da vontade da obra. O autor destaca

três pontos essenciais da relação do criador com a obra a fazer no processo instaurador. Em

primeiro lugar, afirma que a obra a fazer coloca uma situação questionante. Isso significa

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dizer que a obra a fazer nunca se dá como revelação, ou como modelo pronto a ser

simplesmente copiado. É como se ela perguntasse ao criador: “O que você vai fazer? Por qual

ação vai me promover ou me deteriorar?” Com isso, a obra coloca para o criador a

responsabilidade de escolher, de responder sua pergunta. Ela não o ajuda; apenas lhe

apresenta uma exigência, que dá um caráter intenso à situação, semelhante a um vazio que

pede completamento. Mas a responsabilidade de inventar e de fazer tal completamento é do

criador.

Em segundo lugar, há uma exploração do homem pela obra que caracteriza a relação

entre eles. A obra coloca uma questão para o agente instaurador; ele deve encontrar uma

resposta para ela, essa se torna sua responsabilidade. Para isso, Souriau afirma que o artista

deve extrair dele mesmo a resposta à questão que a obra coloca. Ele deve estimular todos os

poderes de sua lembrança, buscar em sua vida e sua alma a resposta. Porém, é importante

sublinhar que, mesmo aí, há uma abnegação do agente instaurador em relação à obra. Na

verdade, é a obra a fazer que opera esta busca; é ela que se utiliza do criador, das experiências

daquele que ela considera como utilizáveis para se instaurar. É neste sentido que Souriau diz

que somos concernidos pela obra: para responder a sua demanda, lhe damos tudo aquilo que

encontramos em nós. Quando ela se acaba, se torna autônoma; entretanto, para alcançar este

estado, antes se nutre de tudo aquilo que o criador tem de melhor.

Este é mais um ponto importante no que concerne à experiência de criação. Dizer que

a obra retira do agente instaurador sua matéria não significa dizer que ela é uma expressão da

subjetividade deste, de seus sentimentos pessoais. Significa que ela demanda dele, que cria

nele um sentimento de necessidade que o faz buscar um caminho para lhe dar expressão. Esta

ideia se aproxima do modo como John Dewey (1934/2010) entende a atividade do artista no

ato de expressão. Para ele, o artista seleciona e reúne materiais que serão trabalhados a fim de

criar uma obra na qual se encarnam um sentido e uma qualidade expressiva que penetram o

todo da experiência. Essa qualidade que penetra o todo da obra pode ser comparada ao anjo da

obra de Souriau (1956/2009), que cria uma demanda de realização em uma determinada

direção. Como nos ajuda a compreender Dewey, é preciso que o artista selecione e reúna os

materiais necessários para trazer a obra a uma existência concreta.

Finalmente, Souriau destaca um último aspecto da experiência instauradora. Trata-se

da necessária referência existencial da obra concreta em relação à obra a fazer; da relação

diastemática que existe entre elas. O criador avalia o tempo todo, em pensamento, de modo

global e aproximativo, a distância que separa o esboço da obra acabada. O ato instaurador

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sempre progride na direção da diminuição da distância entre ambos. Com isto, Souriau se

refere ao fato de que toda a matéria da arte, por exemplo, um bloco de argila, tem sempre

suficiente existência física completa, mas que a alienação completa da obra enquanto tal só

ocorre quando o escultor lhe dá o último golpe de cinzel que a torna uma espécie de espelho

da obra a fazer. É claro que existe, geralmente, certa dificuldade de se saber onde termina a

obra. O artista pode terminá-la antes ou depois do “ponto exato”. Trata-se de algo difícil de

estimar, onde fatores como o pesar de terminar totalmente obra, de cortar o cordão umbilical,

de torná-la autônoma, lutam confusamente entre si. Neste momento final, o que intervém é

uma experiência direta, cujo conteúdo supõe sempre esta referência mútua da obra a fazer e

da obra feita, na estimação de sua distância decrescente e finalmente praticamente abolida.

Mais uma vez, encontramos em Dewey uma argumentação semelhante, em que o

papel da percepção estética desempenha uma função central. Dewey (1934/2010) propõe que

a percepção estética não é uma atividade exclusiva do percebedor ou fruidor de uma obra,

sendo fundamental também para a ação daquele que a cria. Assim, todo ato de criação

artística abarca uma percepção estética, o que significa que, ao criar, o artista assume também

o papel de espectador, já que toda criação se fundamenta na percepção de relações que vão se

concretizando na obra ao longo de sua produção e que orientam o trabalho. É através de um

julgamento perceptivo, então, que o artista é capaz de julgar se sua obra está próxima ou não

de sua ideia inicial, que o guiou ao longo de todo o processo.

Acreditamos que a descrição oferecida por Souriau (1956/2009) do processo

instaurador na arte é de grande valia para compreendermos o que se passa no processo de

emergência e maturação de uma ideia. De fato, não acreditamos numa grande distância entre

os dois, pois tanto na arte quanto no meio científico, uma ideia se desenvolve incluindo um

pensamento intuitivo, com características próprias, seja este pensamento mais próximo da

percepção ou de símbolos verbais ou matemáticos.

Consideramos que a análise da experiência intuitiva empreendida neste capítulo dá

mais clareza ao caráter sensível e concreto do pensamento intuitivo. Não podemos considerar

que as sensações e sentimentos envolvidos na intuição sejam de menor importância, ou que

participem apenas de maneira periférica em nossos processos cognitivos. Pelo contrário, eles

parecem estar na base do pensamento intuitivo, e parecem iluminar muitas outras

características desse fenômeno. Isso é o que buscaremos demonstrar nos dois capítulos

adiante.

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3 A RELAÇÃO ENTRE A DIMENSÃO INTUITIVA E A DIMENSÃO LÓGICA DA

COGNIÇÃO

No primeiro capítulo, constatamos a existência quase generalizada de uma dicotomia

entre intuição e lógica nos estudos que analisamos. Tal dicotomia toma, em geral, duas

diferentes formas: em primeiro lugar, é entendida como uma relação de exclusão entre dois

modos distintos de operação cognitiva; em segundo lugar, como uma relação de alternância

colaborativa, porém hierárquica, entre duas funções. O primeiro tipo de dicotomia sugere que

determinada atividade cognitiva pode ser executada por uma ou outra via, mas nunca pelas

duas ao mesmo tempo. É a posição, por exemplo, de Evans (2003), que marca um paralelismo

entre intuição e lógica, distinguindo-as como dois modos completamente diferentes de

operação e de processamento de informação, o que influencia, inclusive, nos tipos possíveis

de resultado final do processo. O segundo tipo de dicotomia, que podemos qualificar como

menos radical, pressupõe a co-existência mais ou menos harmoniosa entre função intuitiva e

lógica, de modo que uma pode receber a assistência da outra, mesmo que uma delas se

destaque como mais proeminente em dado momento. É o caso, por exemplo, de Epstein

(2014). Há, nesse segundo tipo de dicotomia, uma pressuposição, entretanto, de que a intuição

é, dentre as duas formas de conhecimento possíveis, uma função mais básica e inferior do que

o raciocínio analítico, o qual, muitas vezes, trabalha aperfeiçoando os dados intuitivos.

Desejamos desconstruir essa forma de compreender a relação entre intuição e

processos lógicos ou analíticos, pois consideramos que tais formulações não fazem, de fato,

jus ao fenômeno. Do mesmo modo, gostaríamos de deixar para trás a concepção de intuição

como algo primitivo. A ideia de que a intuição é uma forma menos perfeita, menos lógica de

apreensão do mundo, só pode basear-se em um restrito conhecimento do fenômeno, ou em

uma supervalorização do pensamento analítico puro. Em vez disso, desejamos recolocar esta

questão, mostrando que, como afirma Petitmengin (2007), a intuição, em vez de primitiva, é

uma dimensão profunda de nossa experiência. Isso se deve, principalmente, ao fato de ela ser

concreta e corporificada, e não de ser menos elaborada que o pensamento analítico. Pelo

contrário, até mesmo este tipo de pensamento depende da dimensão intuitiva de nossa

experiência, uma vez que, como aponta Claire, esta constitui a própria fonte de todo

pensamento e ação.

Deste modo, afirmamos a intuição como uma dimensão da cognição sempre presente,

contestando a ideia, presente na psicologia, de que ela se liga a certos tipos de personalidade,

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ou que se restringe a determinados eventos. Queremos, pelo contrário, mostrar que a intuição

é uma dimensão de todo conhecimento, mesmo que nem sempre estejamos completamente

conscientes dela.

3.1 Pensamento intuitivo x pensamento lógico-analítico

Na psicologia, a teoria psicogenética de Jean Piaget foi uma das mais influentes nos

estudos do pensamento e da aprendizagem. Sem jamais ter se dedicado a uma investigação

especialmente extensiva da intuição, o autor a tomou como um processo cognitivo menor e,

de certo modo, primitivo. Piaget (1964/2005) considerou a intuição como uma forma de

pensamento pré-lógica, a ser superada por formas de pensamento mais equilibradas e bem

adaptadas. O autor observa que o pensamento infantil sofre notável transformação ao longo

do desenvolvimento. Até por volta de dois anos de idade, o pensamento se dá pela pura

incorporação ou assimilação, é egocêntrico e sem qualquer objetividade. O pensamento

intuitivo representa um passo adiante em relação a esta forma inicial de pensamento, sendo,

segundo Piaget, mais adaptado ao real. Com o surgimento da função simbólica, que permite

que a criança represente o mundo através de símbolos ou signos, torna-se possível também a

intuição, que nada mais é do que a experiência e coordenação sensório-motoras constituídas e

antecipadas graças à representação. De acordo com a teoria de Piaget, a criança no período

pré-operatório – entre 2 e 7 anos de idade aproximadamente – é pré-logica, e a intuição é

interpretada como um mecanismo que busca suplementar a ausência de lógica característica

dessa fase.

Desse modo, Piaget (1964/2005, p.34) define a intuição como “a simples

interiorização das percepções e dos movimentos sob a forma de imagens representativas e de

‘experiências mentais’ que prolongam, assim, os esquemas senso-motores sem coordenação

propriamente racional”. Ou seja, a intuição responde por esquemas perceptivos ou esquemas

de ação sensório-motores, não mais na forma pura e imediata de ação que tinham no estágio

anterior, mas na forma de atos de pensamento, interiorizados como representações. Ou seja, é

um meio termo entre a experiência efetiva e a mental, não se sendo, ainda, uma operação

lógica generalizável e passível de combinação e coordenação com outras operações.

Para demonstrar o modo de operação do pensamento intuitivo, Piaget (1964/2005)

relata um experimento feito com crianças em que fichas azuis e vermelhas são dispostas em

duas filas, cada uma contendo fichas de uma das duas cores. Fazem-se, então, perguntas a elas

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a respeito da equivalência entre as duas fileiras. Piaget observa que, no estágio pré-operatório,

a avaliação da equivalência entre as séries baseia-se no tamanho das fileiras, e não na

quantidade de fichas contidas em cada uma. Assim, em uma situação como a representada

pela Figura 3.1 abaixo, por exemplo, as crianças nesse estágio tendem a afirmar que a fileira

azul tem mais fichas do que a vermelha, mesmo que as duas possuam o mesmo número de

fichas. Isso ocorre mesmo que a criança tenha sido apresentada, primeiro, a uma situação em

que as fichas vermelhas estivessem emparelhadas com as azuis, uma a uma, e ocupando a

mesma quantidade de espaço (situação em que, geralmente, as crianças admitem haver o

mesmo número de fichas em ambas as fileiras) e a situação apresentada na Figura 3.1 tenha

sido resultado do simples afastamento das fichas mais externas, feito pelo pesquisador na

presença da criança.

Piaget (1964/2005) atribui tal resposta a uma forma primitiva de intuição, que avalia a

quantidade somente pelo espaço ocupado, focando nas qualidades perceptivas globais da

situação dada, mas sem fazer uma análise das relações internas nela presente. Há um primado

da percepção em relação à lógica, o que leva a criança a atribuir uma equivalência visual, e

não racional, entre as duas fileiras. O pensamento lógico só surgirá mais tarde, no período

operatório concreto, quando a criança adquire as noções de reversibilidade e de conservação,

o que introduz no pensamento infantil a possibilidade de retorno ao ponto de partida

característica das operações reversíveis. As operações reversíveis corrigem a intuição

perceptiva, descentralizando o egocentrismo e transformando as relações imediatas em um

sistema coerente de relações objetivas.

Quando se toma por referência a literatura específica sobre o tema, nota-se que a

oposição entre pensamento intuitivo e pensamento lógico ou analítico possui grande peso.

Segundo Bastick (1982), esta é a propriedade da intuição mais encontrada nas obras sobre

Figura 3.1 Fileiras de fichas vermelhas e azuis distribuídas desigualmente (PIAGET, 1964/2005)

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intuição. O autor afirma, ainda, que essa propriedade é reafirmada por várias outras, pois

muitas características da intuição são definidas por oposição a características normalmente

atribuídas ao processamento lógico ou analítico. Por exemplo, o pensamento analítico é um

processo sempre consciente, opondo-se, então, a uma intuição inconsciente; enquanto o

pensamento analítico é lento e sequencial, atuando pela comparação de apenas dois elementos

por vez, a intuição é repentina e depende de processos paralelos de um campo global de

conhecimentos; enquanto o pensamento lógico é tido como um processo frio por não

comportar qualquer forma de sentimento, o pensamento intuitivo envolve emoções.

Bastick (1982) afirma que o pensamento intuitivo pode ser entendido como um

conjunto de multi-relações simultâneas contínuas, enquanto o pensamento analítico consiste

em relações binárias consecutivas diretas. Isso significa que o pensamento analítico trabalha

com apenas dois elementos por vez, de maneira linear. Quando muitos elementos são

processados analiticamente, eles são agrupados em operações binárias, sendo considerados

aos pares. Já o pensamento intuitivo age num campo contínuo, utilizando-se de todo o campo

do conhecimento. Nele, algumas ideias estão associadas a certos sentimentos e ocorre uma

mútua afetação entre eles, num processo de feedback simultâneo não-linear. Geralmente, esse

processamento é pré-consciente. Para ilustrar a diferença entre ambos, Bastick (1982) cita um

exemplo de Arnheim (2004), que envolve a análise do tamanho de três objetos diferentes (por

ora nomeados objetos A, B e C) pelo processo analítico e pelo intuitivo. Arnheim afirma que,

pelo processo analítico, os objetos são analisados dois a dois, e é através de um processo

sequencial de comparações que se estabelece uma escala de tamanho entre eles. Já o processo

intuitivo apreende os três objetos em conjunto, fazendo uma comparação imediata entre eles e

encontrando o maior, o menor e o intermediário em uma única visualização. Mais adiante,

retomaremos a posição de Arnheim, mostrando como sua compreensão dos dois processos

complexifica a relação apontada por Bastick entre eles.

Essa posição é reencontrada em Evans (2003), que afirma que a intuição é uma forma

de raciocínio ou pensamento diferente do pensamento analítico. O sistema 1, intuitivo, está,

segundo o autor, em relação de competição com o sistema 2, analítico. Tais sistemas operam

por processamentos diferentes, o primeiro contando com processos associativos produzidos

por redes neurais, que muitas vezes se confundem, mesmo, com comportamentos instintivos,

enquanto o segundo opera de modo sequencial e, por isso lento, embora possua a suposta

vantagem de contar com a possibilidade de formular hipóteses e de fazer abstrações. Evans

defende, então, que a intuição é um processo menos reflexivo e menos inventivo, que é

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acionado, principalmente, em situações em que uma ação deve ser executada de maneira

rápida, quase automática.

Se olharmos para essa maneira de caracterizar a intuição com mais cuidado, vemos

que em pouco ela se assemelha aos processos intuitivos descritos no capítulo anterior. A

rapidez atribuída ao processo intuitivo, por exemplo, contrasta com o laborioso processo de

seleção de materiais característico dos processos intuitivos, embora em uma ordem não verbal

e pré-consciente de desenvolvimento. Além disso, o acompanhamento da experiência intuitiva

deixou claro que processos associativos implícitos não parecem dar conta do modo pelo qual

uma intuição ganha corpo.

A intuição também costuma ser diferenciada das operações lógicas em termos de sua

precisão. Segundo Bastick (1982), mesmo quando o pensamento intuitivo é correto, ele não é

detalhadamente preciso. Isso ocorre porque há um sentimento emotivo característico do

pensamento intuitivo que é responsável por selecionar as ideias que lhe dão corpo. A conexão

lógica entre essas ideias é demonstrada apenas a posteriori, de maneira analítica. Assim, se

uma intuição não estiver correta, tal demonstração ulterior é impossível. Já o pensamento

analítico é claro, preciso. As ideias se encadeiam de maneira lógica e demonstrável desde o

princípio.

Outra forma comum, embora cada vez menos aceita, de separação entre intuição e

pensamento lógico ou analítico, diz respeito a seu correspondente modo de funcionamento em

nível cerebral. Laughlin (1997) apresenta uma divisão deste tipo proveniente do contexto da

pesquisa neurofisiológica. Segundo o autor, alguns pesquisadores dessa área tendem a

identificar a intuição com uma função exercida pelo hemisfério direito do cérebro, uma vez

que ele media a produção de imagens, o pensamento gestáltico ou holístico e a padronização

espaço-temporal. Já o hemisfério esquerdo estaria associado à razão, envolvendo-se,

principalmente, na produção da linguagem, no pensamento analítico e no sequenciamento

linear e causal dos eventos. De acordo com essas pesquisas, os processamentos que ocorrem

nos dois hemisférios não seriam conscientes e seriam complementares entre si, ou seja, ambos

os processos estariam sempre trabalhando juntos para a produção da experiência, embora a

intencionalidade da consciência possa enfatizar mais uma função do que a outra.

Laughlin reconhece a utilidade de se distinguir a experiência da intuição daquela do

raciocínio, mas considera um erro fundamental que essa distinção leve à conclusão de que

ambas constituem modalidades cognitivas opostas ou de que podem ser interpretadas

unicamente em termos de funcionamento do hemisfério cerebral esquerdo ou direito. Também

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se coloca contra algumas tendências da literatura que tentam inverter a polaridade antes

apresentada pelo positivismo, considerando o intelecto como o “bandido” e a intuição como

“mocinho”. Segundo o autor, essa oposição apenas dificulta e distorce a compreensão de

como adquirimos conhecimento, tanto na ciência quanto em práticas que poderiam ser

consideradas místicas. Neste ponto, estamos de acordo com Laughlin (1997).

A separação entre intuição e lógica alimenta ainda algumas questões de pesquisa e

produz determinadas formas de aplicação do conhecimento sobre o assunto. Bastick (1982),

por exemplo, aponta que tal divisão levou ao surgimento de muitos estudos em psicologia que

buscam associar a preferência por um ou outro tipo de pensamento a características de

personalidade das pessoas. É comum que, na literatura sobre o tema, cada um dos processos

seja associado a um estilo cognitivo individual – as pessoas intuitivas prefeririam, então, a

complexidade e a categorização multidimensional; as analíticas, a simplicidade e a simetria, e

apresentariam uma maior intolerância à categorização ambígua. Por sua vez, observa-se hoje

que o interesse pela diferenciação entre personalidades de tipo intuitivo e de tipo analítico

aquece as pesquisas sobre intuição e sobre as formas de mensurá-la, principalmente na área de

gestão de pessoas (ver SINCLAIR, 2011, 2014).

A relação com sentimentos é outro fator comumente apontado como critério de

diferenciação entre a intuição e o raciocínio analítico. Bastick (1982), por exemplo, afirma

que a conexão entre ideias no pensamento intuitivo não depende de relações lógicas entre

elas, e sim de um sentimento emotivo (emotive feeling) que seleciona e relaciona tais ideias

entre si. As emoções são consideradas como essenciais para o processo intuitivo,

diferentemente do que ocorre no pensamento analítico, entendido como independente de

sentimentos e sensações. Segundo Bastick (1982), o pensamento intuitivo, pelo contrário, é

todo permeado por eles, em todos os seus estágios. Assim, na percepção inicial da situação,

são criados sentimentos de impressão da informação; durante o processo intuitivo, tais

sentimentos podem sofrer modificações; ao final, um sentimento de certeza comparece.

Bastick acredita que, na intuição, os sentimentos atuam criando relações entre ideias a

princípio desconexas:

No pensamento intuitivo, os elementos são relacionados pela concordância de seus sentimentos associados com o estado emocional global. Cada elemento contribui para esse estado emocional. Enquanto o estado emocional flui e se modifica, novos elementos associados com os novos estados são justapostos a elementos antigos. Devido aos sentimentos concordantes associados aos elementos terem sido associados pela experiência única do indivíduo, justaposições originais de elementos podem resultar. Esses elementos são relacionados por um sentimento subjetivo comum, não pela lógica. (BASTICK, T., 1982, p. 61, tradução nossa)

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Essas ligações subjetivas com sentimentos emotivos esclarecem como algo que se

apresenta como ambíguo do ponto de vista analítico pode não o ser assim considerado do

ponto de vista intuitivo. São elas que explicam a tolerância à ambiguidade característica da

intuição:

O fato de um indivíduo intuitivo ser mais tolerante a ideias analiticamente ambíguas foi encontrado em estudos da criatividade. Pode ser que no modo intuitivo existam ligações subjetivas não ambíguas com os sentimentos emotivos. Elas são o critério não consensual do indivíduo intuitivo para associar ideias. Isso explicaria a tolerância à ambiguidade em tipos criativos. (BASTICK, T., 1982, p.55, tradução nossa)

Vemos aqui, que o caráter sensível da intuição é utilizado por Bastick (1982) para

justificar sua oposição ao raciocínio lógico. Mas, na verdade, essa é uma maneira ainda

limitada de entender a questão. Posições como a de Gendlin (1997) mostram que há uma

relação entre sentimentos e lógica também muito íntima. Um pensamento lógico, segundo

esse autor, também precisa passar pela tradução de certos sentimentos e sensações que

experienciamos, como se verá mais adiante.

3.2 A complementaridade entre intuição e intelecto em Rudolf Arnheim

Arnheim estabeleceu de maneira mais estreita uma relação entre o pensamento e a

intuição, e destacou a importância desta – considerada pelo autor como uma propriedade

perceptiva – em todo processo cognitivo. A concepção de intuição de Rudolf Arnheim (2004)

dá ênfase especial ao caráter perceptivo deste modo de cognição. Arnheim defende a tese de

que a cognição tem como seus pilares a intuição e o intelecto; ambos sustentam todas as

operações da aprendizagem produtiva em todos os campos do conhecimento, de maneira

complementar. Enquanto o intelecto é uma espécie de propriedade do pensamento, cuja

função é criar classificações e generalizações, a intuição é uma propriedade particular da

percepção que age por processos de campo. Assim, a intuição seria uma capacidade

perceptiva de apreensão e reorganização direta de uma interação de forças que ocorre em um

campo perceptivo. A maior diferença entre a intuição e o intelecto consistiria, então, no fato

de que a intuição apreende a estrutura de um problema de maneira imediata, enquanto o

intelecto o faz através de cadeias de inferências lógicas.

Assim, vemos que, embora estabeleça uma relação de complementaridade entre

intuição e intelecto, Arnheim não dá a uma ou outra forma de operação um status de

superioridade. O autor apresenta a cognição como algo impossível sem a ação de ambos de

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modo conjunto, dando o mesmo nível de importância para os dois. Diferencia-os,

principalmente, pelo seu modo de operação, uma vez que a intuição, sendo uma propriedade

da percepção, atua por processos de campo, enquanto o intelecto opera por cadeias de

inferência. Mas, diferentemente das teorias que apresentamos anteriormente, Arnheim

sustenta que a percepção, em si, já possui uma maneira inteligente de funcionamento,

retirando da intuição seu caráter ilógico, incompreensível e arbitrário. Além disso, sua teoria

chama atenção para o aspecto perceptivo da intuição, o que, mesmo que por um lado possa ser

criticado por ser uma compreensão por demais circunscrita dela, é um avanço interessante em

relação a outras teorias, que menosprezam ou não esclarecem esse traço do fenômeno. Assim,

o caráter holístico da intuição se faz muito mais compreensível na proposta do presente autor.

Se a intuição se relaciona com a percepção, é preciso uma nova concepção do papel da

mesma no pensamento. Arnheim (2004) não aceita a posição de que, na aquisição de

conhecimentos, o papel da percepção seja limitado a coletar informação em estado tosco para

o posterior processamento desta por processos cognitivos superiores – e, supostamente, mais

nobres – do pensamento. Arnheim define a intuição como a capacidade da percepção de

apreender diretamente o efeito de uma interação que ocorre num campo, sendo a estrutura da

situação percebida, como um todo, que determina o lugar e a função de cada componente.

Com isso, o autor limita a intuição à percepção, pois, segundo ele, apenas a percepção é capaz

de gerar conhecimento por processos de campo na cognição. Isso não limita, entretanto, a

função da intuição no pensamento, uma vez que, para o autor, a percepção participa

ativamente de qualquer ato de pensamento:

Desde que, porém, a percepção não está em parte alguma separada do pensamento, a intuição partilha de todo ato cognitivo, seja este mais caracteristicamente perceptivo ou mais semelhante ao raciocínio. E o intelecto também atua em todos os níveis de cognição. (ARNHEIM, 2004, p. 14)

Arnheim caracteriza a intuição, ainda, como um processo que geralmente só se dá a

conhecer por suas realizações, uma vez que seu modo de operação geralmente esquiva-se da

consciência. Nesse sentido, ela diferencia-se do intelecto, uma vez que este geralmente opera

por cadeias de inferências lógicas cujos elos são facilmente discerníveis entre si e

conscientemente observáveis. Arnheim (2004) atribui a interpretação popular da intuição

como uma espécie de inspiração sobre-humana a essa diferença de modo de operação; afinal,

ela parece uma pura iluminação vinda do além, e não o resultado de um processo de

pensamento palpável. Mesmo assim, é interessante notar que o autor não classifica a intuição

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como um processo inconsciente, no sentido de inacessível: como teremos a oportunidade de

discutir melhor no capítulo 4, Arnheim defende que a intuição só ocorre abaixo do nível da

consciência em situações corriqueiras e habituais, mas garante que é possível observá-la em

atividade em certas atividades em que a organização do campo perceptivo não é

completamente estável, como as que envolvem a percepção estética.

Arnheim enfatiza a relação de colaboração que se estabelece entre intuição e intelecto

e afirma que nenhum deles nos levaria muito longe por conta própria. A intuição tem o

relevante papel de fornecer a estrutura geral de uma situação, e de determinar o lugar e função

de cada elemento nesta totalidade. Mas, como, de acordo com os princípios gestaltistas, a

função de um elemento é determinada pelo todo em que ele se insere, ou seja, como não é

uma característica absoluta e imutável dele, em diferentes situações uma mesma entidade

correria o risco de parecer diferente a cada vez, o que tornaria a generalização impossível. É

aí que o intelecto atua: ele é responsável pela generalização, pela atividade de classificação

das variações sob uma designação comum, criando conceitos genéricos necessários à

cognição e permitindo que, no presente, sejamos capazes de aplicar o que aprendemos no

passado. A cognição é tida pelo autor como o resultado da cooperação ininterrupta entre

intuição e intelecto (ARNHEIM, 2004).

Essa colaboração entre intuição e intelecto foi também observada por Henri Poincaré

(1908/1995) no campo da matemática. Segundo ele, o uso exclusivo da análise tornaria a

matemática artificial, pois, apesar de ser suficiente para fazer alguém entender como uma

questão se resolve, ela não é suficiente para evidenciar como e porque uma questão surge.

Para Poincaré, a demonstração é parte da ciência, mas é preciso um antídoto para a lógica, de

modo a garantir à descoberta científica seu caráter criador. Para o matemático, tal antídoto

seria a intuição. Uma demonstração lógica, segundo Poincaré, pode ser decomposta em várias

operações elementares; mas a análise de cada um deles, um a um, e a constatação de sua

correção, não é suficiente para a compreensão do verdadeiro sentido da demonstração. É

como se, de algum modo, a compreensão de seu sentido exigisse algo mais, “aquele não sei

quê que faz a unidade da demonstração” (POINCARÉ, 1908/1995, p. 21). Pela análise, vários

caminhos podem ser seguidos; mas, sem a intuição, ficamos sem saber qual deles nos leva até

o fim. A intuição tem a função, então, de fazer ver o fim à distância, sendo indispensável não

só para o cientista criador na exploração e escolha de uma rota, mas também ao seu aprendiz,

que deseja seguir seu raciocínio e saber por que tal rota foi escolhida. Para demonstrar a

diferença entre as duas formas de lidar com o conhecimento, Poincaré usa uma metáfora:

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Se os senhores assistem a uma partida de xadrez, para compreender a partida, não lhes bastará saber as regras da marcha das pedras. Isso lhes permitiria apenas reconhecer que cada lance foi jogado em conformidade com aquelas regravantagem um livro de matemática, se ele fosse apenas lógico. Compreender a partida é algo inteiramente diferente; é saber de outra, que poderia ter movido sem violar as regras do jogo. É perceber a razão íntima que faz dessa série de lances sucessivos uma espécie de todo organizado. fortiori

(POINCARÉ,

Assim, Poincaré afirma que

compreendido com a participação da intuição. A

de demonstração; mas é a

compreender.

Assim, Poincaré parece concordar com

dimensão intuitiva e a intele

limita-se a tratar de relações lineares, tendo capacidade para l

maneira sequencial, e nunca com mais de uma em um único e mesmo tempo. Assim, o

intelecto agrupa informações em cadeias intelectuais. Por isso, descrever um processo de

campo intelectualmente é, de acordo com Arnheim (2004), um prob

as palavras parecem ser mais adequadas às atividades intelectuais, enquanto as imagens o são

para o trabalho intuitivo: as primeiras, sendo o fundamento da linguagem proposicional, dão

lugar a cadeias lineares de unidades padroniz

as segundas porporcionam uma sinopse intuitiva da estrutura global de um problema,

obra de arte, de constelações físicas e sociais, etc., além de evidenciarem a hierarquia

estrutural nelas presente. Por exemplo, observe a figura abaixo:

Figura

Se os senhores assistem a uma partida de xadrez, para compreender a partida, não lhes bastará saber as regras da marcha das pedras. Isso lhes permitiria apenas reconhecer que cada lance foi jogado em conformidade com aquelas regravantagem realmente teria bem pouco valor. Entretanto, isso é o que faria o leitor de um livro de matemática, se ele fosse apenas lógico. Compreender a partida é algo inteiramente diferente; é saber por que o jogador avança determinada peça em vezde outra, que poderia ter movido sem violar as regras do jogo. É perceber a razão íntima que faz dessa série de lances sucessivos uma espécie de todo organizado. fortiori, essa faculdade é necessária ao próprio jogador, isto é, (POINCARÉ, 1908/1995, p.21)

Poincaré afirma que o verdadeiro sentido de uma invenção só pode ser

com a participação da intuição. A lógica traz a certeza, sendo

de demonstração; mas é a intuição que dá a visão de conjunto e permite

Assim, Poincaré parece concordar com Arnheim quanto a uma distinção entre a

intuitiva e a intelectual da cognição relativa a seu modo de trabalho. O intelecto

se a tratar de relações lineares, tendo capacidade para lidar com informações de

encial, e nunca com mais de uma em um único e mesmo tempo. Assim, o

intelecto agrupa informações em cadeias intelectuais. Por isso, descrever um processo de

campo intelectualmente é, de acordo com Arnheim (2004), um problema insolúvel. Por isso,

as palavras parecem ser mais adequadas às atividades intelectuais, enquanto as imagens o são

para o trabalho intuitivo: as primeiras, sendo o fundamento da linguagem proposicional, dão

lugar a cadeias lineares de unidades padronizadas, ajustando-se às necessidades do intelecto;

as segundas porporcionam uma sinopse intuitiva da estrutura global de um problema,

obra de arte, de constelações físicas e sociais, etc., além de evidenciarem a hierarquia

or exemplo, observe a figura abaixo:

Figura 3.2 Apreensão intuitiva x intelectual da figura (Arnheim, 2004)

94

Se os senhores assistem a uma partida de xadrez, para compreender a partida, não lhes bastará saber as regras da marcha das pedras. Isso lhes permitiria apenas reconhecer que cada lance foi jogado em conformidade com aquelas regras, e essa

teria bem pouco valor. Entretanto, isso é o que faria o leitor de um livro de matemática, se ele fosse apenas lógico. Compreender a partida é algo

o jogador avança determinada peça em vez de outra, que poderia ter movido sem violar as regras do jogo. É perceber a razão íntima que faz dessa série de lances sucessivos uma espécie de todo organizado. A

o jogador, isto é, ao inventor.

o verdadeiro sentido de uma invenção só pode ser

lógica traz a certeza, sendo um instrumento

dá a visão de conjunto e permite inventar e

uma distinção entre a

a seu modo de trabalho. O intelecto

idar com informações de

encial, e nunca com mais de uma em um único e mesmo tempo. Assim, o

intelecto agrupa informações em cadeias intelectuais. Por isso, descrever um processo de

lema insolúvel. Por isso,

as palavras parecem ser mais adequadas às atividades intelectuais, enquanto as imagens o são

para o trabalho intuitivo: as primeiras, sendo o fundamento da linguagem proposicional, dão

se às necessidades do intelecto;

as segundas porporcionam uma sinopse intuitiva da estrutura global de um problema, de uma

obra de arte, de constelações físicas e sociais, etc., além de evidenciarem a hierarquia

Apreensão intuitiva x intelectual da figura (Arnheim, 2004)

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Arnheim (2004) nos oferece a figura acima para demonstrar os diferentes modos de

funcionamento da intuição e do intelecto. A intuição, por apreender a estrutura toda de modo

simultâneo, é capaz de, através de um simples olhar à figura, ver cada componente no lugar

por ele ocupado na hierarquia total da série de quadrados dados: o primeiro se localiza na

parte mais inferior, o último na parte superior, e entre eles há os que ocupam uma posição

intermediária. Arnheim sustenta que, sem a atuação da intuição, o intelecto precisaria analisar

elo a elo, verificando e comparando a altura de cada elemento com o próximo, par a par, e só

a partir da soma dessas conexões lineares poderia estabelecer o padrão como um todo.

Essa relação entre pensamento e percepção é explorada em profundidade por Rudolf

Arnheim, principalmente no livro “Visual Thinking”, publicado originalmente no final da

década de 1960, e em alguns textos publicados em “Intuição e Intelecto na Arte”, cujo

original data da década de 1980. Anteriormente, Arnheim (1997a) já havia se dedicado a

demonstrar que a percepção não é nem um processo inferior em relação ao pensamento e à

razão, nem subordinada a eles, e também que certo tipo de pensamento já opera desde o nível

perceptivo. Desse modo, não só o pensamento estaria submetido às mesmas leis que a

percepção, mas esta também comportaria operações que, tradicionalmente, são atribuídas

apenas ao pensamento. Assim, Arnheim defende que a percepção, além de captar as

qualidades das coisas na especificidade de seu contexto situacional, é capaz, ela mesma, de

apreender ainda certos tipos de fatos. Isso significa que ela é capaz de lidar com

generalidades, e não somente com propriedades isoladas. Com isto, Arnheim propõe a

existência de conceitos perceptivos, mostrando que essa categoria de eventos não se restringe

ao nível supostamente superior do pensamento. Afirma o autor que, sem o material

proveniente dos sentidos, a mente não tem nada com que pensar (ARNHEIM, 1997a).

Essa nova colocação do problema opõe-se à concepção clássica de que a percepção

limita-se a reunir o material bruto do qual o pensamento se ocupa. Segundo este modelo,

percepção e pensamento precisariam um do outro, mas o segundo começaria onde a primeira

acaba. Toda percepção seria a respeito de situações individuais; todo pensamento trataria de

realizar generalizações. Arnheim argumenta que esta distinção entre funções intuitivas e

funções abstrativas fez-se presente desde a Idade Média e que pode ser encontrada também

em Descartes, Berkeley e Leibniz, por exemplo. O pensamento seria, por esse ponto de vista,

uma função cognitiva superior à percepção (ARNHEIM, 2004).

A proposta de uma nova perspectiva nos permite rearranjar certas relações, e o que

tradicionalmente é entendido como pensamento passa a se aplicar igualmente à percepção.

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Operações como a exploração ativa, a seleção, a apreensão de elementos essenciais, a

simplificação, a abstração, a análise e a síntese, o fechamento, a correção, a comparação, a

resolução de problemas e atividades de combinar, separar e colocar no contexto não são mais

uma prerrogativa de nenhuma função mental, são a maneira como a mente humana e animal

trata qualquer material cognitivo em qualquer nível. Com isso, o próprio sentido de cognição

e de cognitivo se transforma, de modo a incluir a percepção (ARNHEIM, 1997a).

Dando continuidade às ideias de Wertheimer (1945/1982), Arnheim (2004) afirma que

o pensamento produtivo é perceptivo, mesmo que se dê em um plano abstrato. O autor

mostra, por exemplo, que mesmo um silogismo, que é uma forma de pensamento altamente

geral e abstrata, pode ser apreendido por meio de um diagrama, citando, assim, uma ideia de

Euler. Ao ser submetido à fórmula silogística “Se todos os A estão contidos em B, e se C está

contido em A, então C deve estar também contido em B”, um ouvinte pode compreendê-la

recorrendo a uma imagem visual como os diagramas silogísticos de Euler, abaixo

representados:

Figura 3.3 Diagramas silogísticos de Euler (ARNHEIM, 2004)

Arnheim defende que, aqui, como em geral, o diagrama não é mera ilustração, mas

veículo do pensamento abstrato; ele não contém referência a situações particulares, como o

fato de Sócrates ser mortal (Todo homem é mortal/Sócrates é homem/Sócrates é mortal),

podendo ser tão geral quanto uma proposição. Essa é uma maneira de exemplificar que a

percepção não é a percepção de uma mera situação particular; ela é sempre, ao mesmo tempo,

percepção do geral. Da mesma maneira, o autor afirma que ver um incêndio é ver a

incandescência, ver um círculo é ver a redondeza e as relações de circunscrição. Por isso o

diagrama de Euler funciona como pensamento. O autor adverte, ainda, que para compreender

o problema, não precisamos ir além das informações dadas pela percepção, mas apenas

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enxergar como cada elemento é definido por seu lugar no todo. Para isso, a linguagem é útil,

mas não essencial; já a inteligência e a inventividade são fundamentais (ARNHEIM, 2004).

Na linha de pensamento dos gestaltistas da escola de Berlim, Arnheim (2004) mostra,

ainda, que a percepção, em si, é inteligente. Isso fica evidente até mesmo nas atividades mais

simples. Quando, por exemplo, uma criança quer desenhar uma árvore, ela primeiro tem que

ser capaz de extrair da árvore – um objeto muito complexo – sua estrutura essencial, que é

simples. Ora, isso é uma operação inteligente. Ela precisa estruturar a árvore como constituída

de um tronco, que sustenta os galhos, que, por sua vez, sustentam as folhas. A descoberta da

ordem num mundo complexo é uma operação da inteligência perceptiva.

A inteligência passa a ser então, compreendida como uma propriedade tanto do

pensamento quanto da percepção. Esta se afirma como mais do que uma capacidade passiva

de receber informações, que seria suplementada com uma capacidade separada e ativa de

elaboração. Arnheim (1997a) mostra que perceber não é só abrir os olhos e ter consciência do

mundo. Há uma performance ativa, que é o que verdadeiramente caracteriza a percepção

sensorial. Nosso olhar percorre o mundo, dirigido pela atenção, focando em diferentes coisas,

escaneando certas configurações, dando sentido àquilo que encontra.

É na própria percepção que operações inteligentes acontecem. Para sustentar essa

ideia, Arnheim (1997a) mostra como características intrínsecas ao funcionamento visual

podem dar lugar a processos verdadeiramente inteligentes apenas nesse nível de análise.

Dentre outros aspectos, a inteligência da visão se distingue por sua seletividade e pelo

discernimento em profundidade. Quanto ao primeiro aspecto, pode-se dizer que a percepção é

intencionalmente dirigida e seletiva. Assim, Arnheim mostra que o campo perceptivo não é

um meio homogêneo, em que todos os elementos possuem o mesmo status. Alguns objetos e

eventos ganham destaque em relação a outros, de acordo com as exigências da situação em

que o percebedor se encontra. Essa característica não se deve a processos superiores que

indicam uma direção para nossos sentidos, mas é um dado da percepção direta. Arnheim

sustenta essa ideia com argumentos evolutivos, lembrando que nossos sentidos se

desenvolveram, filogeneticamente, como auxiliares biológicos para a sobrevivência,

concentrando-se nos aspectos do ambiente que fariam a diferença entre perecer e sobreviver.

A percepção é, portanto, uma ocupação ativa, organizada de acordo com a atividade presente

do indivíduo.

Outra forma de seletividade visual pode ser observada na dimensão da profundidade.

Ao escolher a distância apropriada, o observador pode tornar a imagem percebida tão grande

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ou pequena quanto seu propósito demandar. Se a visão próxima está aguçada, o fundo estará

embaçado, e vice-versa. A escolha apropriada depende da natureza da atividade cognitiva.

Quanto detalhe é pertinente? Qual é a distância necessária para aparecerem as características

estruturais relevantes? A seleção correta no nível perceptivo elementar é parte importante na

estratégia cognitiva mais ampla. Encontrar a extensão apropriada de um problema equivale a

encontrar sua solução: “Uma vez que raciocinar sobre um objeto começa pelo modo como o

objeto é percebido, um percepto inadequado pode perturbar toda a cadeia de pensamento

subsequente”. (ARNHEIM, 1997a, p. 27)

O destaque dado por Arnheim à visão nessa discussão não é mera obra do acaso. De

fato o autor defende-a como o sentido mais próximo ao pensamento produtivo. O tato seria

importante para auxiliá-la, mas sozinho teria dificuldades de construir um todo, pois trabalha

somando parte por parte, sendo, portanto, um sentido lento na construção de uma totalidade.

Quanto à audição, considera a música uma forma de pensamento, mas argumenta que ele seria

um pensamento de um tipo apenas musical, uma vez que não consegue fazer uma referência

clara ao mundo externo. Por isso, considera a visão mais próxima do pensamento do que os

outros sentidos (ARNHEIM, 1997a).

Por fim, Arnheim (2004) admite ainda que seja possível “pensar” e resolver problemas

sem recurso a imagens de qualquer espécie. É isso que fazem os computadores, por exemplo.

Trata-se, porém, de um pensamento automático, que não faz senão reproduzir operações

cegas. Ele não comporta inteligência no sentido estrito. Nesse sentido, aproxima-se da posição

de Wertheimer (1945/1982), diferenciando o pensamento produtivo e, portanto, sensível, do

reprodutivo. Para Arnheim (2004) operações mecânicas são úteis, mas não permitem

reestruturar situações.

Além da já mencionada valorização da intuição enquanto um processo inteligente em

si mesmo, o modo perceptivo pelo qual a compreensão intuitiva atua pode ser de grande

utilidade para pensarmos a função de sensações cinestésicas que, como vimos, parecem estar

sempre presentes nos atos intuitivos. Arnheim não explorou muito esse caminho, mas,

certamente, sua teoria poderia ampliar nossa compreensão desta característica intuitiva.

Voltaremos a ela no próximo capítulo, ao analisarmos o caráter holístico da intuição.

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3.3 Intuição como dimensão profunda do pensamento

Apresentamos, ao longo deste capítulo, diferentes modos de se compreender a relação

entre a intuição e o pensamento lógico-analítico. Até aqui, a abordagem proposta por Rudolf

Arnheim foi a que consideramos mais consistente, uma vez que afirma a intuição como um

modo de cognição presente em todo ato cognitivo e que atua em colaboração indispensável

com o intelecto. Acreditamos, ainda assim, que autores como Claire Petitmengin e Eugene

Gendlin colocam em evidência novos aspectos dos processos intuitivos que nos permitem

compreender de modo mais preciso tal relação, através do exame de sua experiência vivida. A

partir de seus estudos, tais autores mostram, como Arnheim, que a intuição não é uma

modalidade cognitiva separada de uma modalidade lógica e intelectual, que atuaria somente

em situações especiais ou somente na ausência de ação do intelecto. Mas, além disso,

estabelecem certa relação genética entre ambas as dimensões cognitivas e especificam de

modo mais claro como elas se relacionam.

Tomemos, como exemplo, algumas observações de Gendlin (1997) a respeito da

relação entre a lógica e a dimensão sentida da experiência. O autor desafia a ideia de que a

lógica é uma espécie de regra anterior aos conceitos e que serve de base para a construção

destes. Para ele, antes de tudo, a lógica é fruto de uma construção a partir de um contato

sensível com nosso experienciar, não havendo qualquer mecanismo cognitivo que crie

conceitos com base em uma regra lógica anterior a sua própria criação. Para o autor, apenas

conceitos já simbolizados e singulares podem ser compreendidos como lógicos. A lógica não

é uma regra que antecede a criação de um conceito, pois o que acontece durante a criação é

anterior às propriedades do produto final. O autor oferece como exemplo a criação de uma

metáfora, como a presente no verso “my love is like a red, red rose”, de uma canção de

Robert Burns. Ao criar uma metáfora desse tipo, o criador não parte de uma relação lógica de

semelhança anterior à criação. Ele começa pela experiência indiferenciada de sua namorada,

seu amor, e é a metáfora que o auxiliará a especificar melhor essa experiência. A relação

lógica de semelhança só se estabelecerá no próprio ato de criação da metáfora, e, ainda, na

criação ulterior dos aspectos que a relação lógica formula como “semelhante”. Para isso, o

criador parte da experiência indiferenciada, ou do felt meaning, de sua garota e se pergunta:

“com o que isso se parece?”; ele afirma que há uma semelhança entre a experiência de sua

garota e algo de sua experiência mais geral, que ele ainda não encontrou. Apenas depois de

encontrar a “red rose” é que ele cria o aspecto específico da experiência da garota. Somente a

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partir daí pode especificar a experiência, até então implícita, que tinha dela. A relação de

semelhança só passa a existir quando o novo sentido é criado. Não é a semelhança que cria

novo sentido.

Pelo método filosófico clássico, o que determinaria o sentido novo da metáfora seria a

relação de semelhança. Mas Gendlin inverte essa posição: somos nós que, confrontados com a

metáfora, extraímos sentidos e semelhanças em um processo criativo ulterior a ela. Quando

lemos a metáfora, não notamos explicitamente nenhuma dessas relações. As semelhanças que

extraímos da metáfora se baseiam no experienciar, ao mesmo tempo, o “my love” e o “red,

red rose”. Assim, Gendlin entende a metáfora como uma criação de sentido e de semelhança

ao mesmo tempo. Depois de criada, o novo felt meaning só é simbolizado por ela. E apenas

depois de criada, tal felt meaning pode ganhar novos sentidos, ser ampliado, pelo processo de

compreensão (que explicaremos detalhadamente no próximo capítulo). Por isso, Gendlin diz

que a metáfora é rica e inesgotável.

Isso, certamente, não quer dizer que não seja possível partir da relação de semelhança

para a construção da metáfora. Eu posso pensar: “que coisa quente se parece com o amor que

sinto pela minha namorada?”, e então fazer uma metáfora que a compare com o sol. Mas,

talvez, esse procedimento produza um efeito diferente no produto da criação, de modo a

torná-lo ligeiramente artificial. Todos conhecem a sensação de se ouvir um poema ou canção

em que a produção de metáforas soa forçada, insípida. Talvez seja nesse sentido, também, que

John Dewey (1934/2010) se refira a certa irritação que nos causam certas obras de arte, em

que a seleção e a montagem dos materiais apresentados não parecem guiados por uma emoção

inerente a ela, mas por um esforço do autor em despertar no espectador determinada emoção

pré-definida que não condiz com o clima geral da obra. Desse modo, o artista perde o fio

condutor estabelecido por ela, a obra perde seu caráter de unidade, apresentando-se como uma

justaposição mecânica de elementos cuja expressividade fica seriamente comprometida.

Quando as relações que se estabelecem entre os elementos de uma obra antecedem a criação

da própria obra, corre-se esse risco; quando elas condizem com o felt meaning inicial que a

deu vida, cria-se um encadeamento que se apresenta ao espectador como intrinsecamente

necessário, seguindo uma lógica própria, que está acima da intenção consciente do autor.

Petitmengin (2001, 2007), de maneira mais explícita, também defende o papel

essencial que a dimensão intuitiva da cognição desempenha nos processos criadores e na

própria gênese do pensamento. Para Petitmengin (2007), a intuição é a dimensão fonte de

nossos pensamentos. Isso significa que a dimensão intuitiva da experiência possui uma

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relação genética com outras dimensões mais “superficiais”, já que parece estar no início do

processo de diferenciação de nossas memórias, percepções e ideias. Nesse sentido, parece

haver, de algum modo, a afirmação de certa anterioridade da dimensão intuitiva em relação a

outras dimensões cognitivas. Porém, isso não significa que a intuição é apenas um ponto de

partida para os processos cognitivos, sendo, em seguida, substituída por processos cognitivos

superiores. Como vimos em Gendlin (1997), a criação de sentidos e conceitos exige alguma

atividade simbólica e mais “intelectualizada”, mas é necessária uma constante volta ao felt

meaning subjacente ao processo para que este possa se concretizar. Do mesmo modo,

Petitmengin (2001, 2007) defende que, mesmo em atividades altamente intelectuais, a

dimensão intuitiva participa constantemente, sendo a base sensível que permite que o

pensamento se desenvolva e tome forma, sempre em consonância com os aspectos dinâmicos

dos felt meanings que as acompanham.

Por fim, Petitmengin (2007) nos leva a refletir, também, sobre a razão por que parece

haver tanta dificuldade em se estabelecer uma relação entre pensamento lógico-analítico e

intuição. A dimensão intuitiva é caracterizada pela autora como uma dimensão profunda de

nossa cognição. Isso se deve não apenas ao fato de estar na gênese do pensamento, mas

também a outros três fatores: em primeiro lugar, ao seu caráter pré-conceitual, pré-discursivo

e anterior à separação entre as distintas modalidades sensoriais; em segundo lugar, a seu

caráter concreto e corporificado; e, em terceiro lugar, ao seu caráter pré-reflexivo. Estes

fatores fazem com que a dimensão intuitiva, embora nos acompanhe durante todo o tempo, só

se torne evidente em algumas situações especiais (dentre as quais a criação artística e o

pensamento científico) ou através de gestos especiais, que exigem direcionamento ou

treinamento (como são os gestos atencionais colocados em ação durante a entrevista de

explicitação). Por isso, muitas vezes somos levados a crer que a intuição não participa de

grande parte de nossos processos cognitivos. Mas, como veremos no próximo capítulo, essa

suposição não se sustenta diante de uma análise pormenorizada de tais características da

intuição.

Defendemos, nesse capítulo, que a intuição é uma dimensão da cognição que atua

sempre de modo colaborativo com a dimensão lógica ou intelectual. As duas dimensões não

são, então, irreconciliáveis; estão, o tempo todo, trabalhando em conjunto. Esse relação

colaborativa não implica, entretanto, um equilíbrio perfeito entre ambas. Diferentes arranjos

podem se estabelecer entre elas: ora a dimensão intuitiva pode ser mais proeminente, como no

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início de um processo de criação ou na experiência com a arte, ora a dimensão intelectual

pode estar mais ativa, como quando é preciso dar corpo a uma ideia ou a uma demonstração

matemática. Isso fica evidente nessa passagem de Poincaré:

[o matemático] precisa demonstrar, e é necessário que suas demonstrações repousem em bases inabaláveis e constituam monumentos sólidos; para isso, basta-lhe o espírito geométrico. Mas, antes de fazer a demonstração, ele precisa inventá-la. Não se inventa por dedução pura; se a conclusão inteira já se encontrasse nas premissas conhecidas, não mais se trataria de uma invenção, uma criação, mas apenas de utilização, transformação. O geômetra inventa por indução, como faz o próprio físico; expliquei isso em outro texto. Mas, para inventar por indução, é preciso conjecturar, é preciso escolher. Não se pode esperar pela certeza, há que nos contentarmos com a intuição. Nisso, o espírito geométrico puro é falho; precisamos de algo mais, e esse algo é a finura do espírito, tal como acabo de defini-la. (POINCARÉ, 1908/1995, p.267)

Poincaré chama atenção para as diferentes funções da intuição e da lógica no

pensamento, e mostra como uma perde seu sentido sem a outra. Quando uma atua, entretanto,

a outra não se cala. Petitmengin (2001) mostra que a dimensão intuitiva é a dimensão fonte de

nosso pensamento, e Gendlin evidencia que ela está ativa o tempo inteiro. Mesmo quando o

intelecto trabalha de modo mais evidente, a intuição está sempre lhe dando direção, como seu

pano de fundo, oferecendo-lhe suporte em seu desenvolvimento. Buscamos deixar isso

evidente quando apresentamos os felt meanings como os fios condutores dos processos de

pensamento e aprendizagem. Do mesmo modo, a dimensão intuitiva precisa da intelectual

para se tornar explícita. Sem a dimensão intelectual e verbal da cognição, não seríamos

capazes de clarificá-la, de dar-lhe expressão. Assim, acreditamos que uma dicotomia entre as

duas dimensões esconde o que realmente se passa entre elas, e cria formas artificiais de

entender como lidamos com o conhecimento.

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4 O CARÁTER INCONSCIENTE E IMEDIATO DA INTUIÇÃO

A ideia de que a intuição é um modo de cognição que se esconde de nós, que atua

silenciosamente, surpreendendo-nos quando menos a esperamos, é muito difundida, não

somente no senso comum, mas também na literatura acadêmica. É comum que ela seja

tomada por um fenômeno inconsciente, do qual não teríamos acesso senão ao resultado final.

Este, por sua vez, tenderia a se apresentar de maneira instantânea, imediata, e sem nos

permitir ao menos saber de que modo foi alcançado. A experiência de um evento deste tipo é

descrita por Poincaré, que narra como, após um longo período durante o qual se dedicou a

buscar uma solução para determinado problema matemático sem ter êxito, a partida para o

serviço militar foi a ocasião para que uma solução fosse alcançada de modo inconsciente, uma

vez que o obrigou a afastar-se de seu exaustivo trabalho intelectual:

(...) parti para Mont-Valerien, onde tinha que cumprir meu tempo de serviço no exército, e, então, minha mente estava preocupada com assuntos muito diferentes. Um dia, enquanto eu atravessava a rua, a solução para a dificuldade que me havia levado a uma paralisação me veio toda de uma vez. Eu não tentei entendê-la imediatamente, e foi somente quando o meu tempo de serviço terminou que eu voltei à questão. Eu tinha todos os elementos, e precisava apenas juntá-los e arranjá-los. (POINCARÉ, 1914, p.54-5, tradução nossa)

Esse tipo de descrição não é raro e parece revestir a intuição de uma aura misteriosa,

ou mesmo assombrosa. Muitas vezes, o fenômeno da intuição chegou a ser considerado como

uma espécie de dom, algo raro, que poucos homens e mulheres possuiriam. As pesquisas

teóricas e experimentais sobre o tema, por sua vez, tendem, em sua maioria, a aceitar, com

mais ou menos ressalvas, que a intuição dá-se de modo inconsciente, explicando, cada uma a

seu modo, como compreendem esse fato.

Neste capítulo, pretendemos colocar em discussão esse aspecto da intuição, buscando

apresentar de que maneira os diversos teóricos e pesquisadores entendem tal caráter

inconsciente. Também discutiremos outras duas características do fenômeno que, como

argumentaremos, parecem se derivar da primeira, tal como sua imediatidade e sua difícil

expressão para outrem. Buscaremos mostrar que o exame da gênese do pensamento intuitivo

exige que a afirmação de seu caráter inconsciente seja revista. Mais uma vez, o trabalho de

Claire Petitmengin nos será indispensável, assim como o de Eugene Gendlin. A partir desses

autores, mostraremos que, por ser pré-conceitual, pré-discursiva, transmodal, concreta e

corporificada (PETITMENGIN, 2007), a intuição tende a ser tomada como um processo

inconsciente, quando, na verdade, muito de seu desenvolvimento pode ser acompanhado –

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desde que se adote uma postura atencional apropriada para tal. Outros autores, como Rudolf

Arnheim, também serão importantes para discussão sobre a imediatidade e o caráter global do

pensamento intuitivo.

4.1 Caráter inconsciente da intuição

Vimos, no capítulo 1, que uma série de pesquisadores considera a intuição como um

tipo de inferência inconsciente ou como um processamento de informações. Este pode ser

muito rápido ou pode se desenvolver ao longo de um tempo mais longo, conhecido como

incubação, que ocorre fora de nossa consciência. Assim, a manifestação da intuição de

maneira repentina e completa é compreendida como o resultado de um processamento

inconsciente, essencial para explicar por que temos tanta dificuldade para descrever o

pensamento intuitivo.

Embora o caráter inconsciente da intuição tenha sido apontado por diversos autores,

nem sempre encontramos consenso entre eles sobre o “grau de inconsciência” da intuição,

nem sobre os processos subjacentes a ela que levam a um “resultado” intuitivo. A maior parte

dos estudos da intuição nas ciências cognitivas tende a afirmar que os processos intuitivos

distinguem-se dos processos de pensamento consciente por dependerem de outros

mecanismos que não a análise ou dedução. Mas Petitmengin (2001) afirma que há posições,

como a de Herbert Simon, que chegam mesmo a considerar que os processos subjacentes à

intuição são idênticos aos do pensamento analítico, apenas fora da consciência. Torna-se

necessário, por conseguinte, apresentar tais divergências, analisando as de maior importância.

Segundo Petitmengin, podemos distinguir entre modelos reducionistas e não-

reducionistas de explicação da intuição. Os primeiros são assim classificados por reduzirem a

intuição a um raciocínio inconsciente e subdividem-se em explicações da intuição enquanto

inferência inconsciente ou enquanto uma forma de análise petrificada pelo hábito. Os

segundos tentam dar conta do caráter de imprevisível novidade que caracteriza o

conhecimento intuitivo, dividindo-se entre processos de reconhecimento global e modelos

explicativos emergentistas.

Petitmengin cita como representante da posição reducionista da inferência

inconsciente o criador da análise transacional, Eric Berne. Para ele, a intuição corresponderia

a uma inferência inconsciente, feita a partir de informações percebidas abaixo do limiar da

consciência. Essas informações seriam elementos sensoriais discretos e subliminares, cuja

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percepção e síntese se dariam abaixo do nível da consciência. Os índices que a intuição usa

para fazer inferências permanecem inconscientes para o indivíduo, e apenas o resultado delas

chega a ser por ele conhecido. Como representante da análise petrificada pelo hábito, a autora

toma Herbert Simon, para quem a inferência inconsciente é entendida como um mecanismo

dedutivo em um processo de reconhecimento inconsciente que opera de maneira analítica. O

mecanismo da intuição seria estritamente idêntico aos mecanismos racionais de análise e

dedução, com a diferença de que se desenvolveria inconscientemente. Ela seria, nesse caso,

apenas a análise petrificada pelo hábito e pela capacidade de dar respostas rápidas através de

processos de reconhecimento; não haveria qualquer segredo ou mistério sobre ela. Na mesma

linha de argumentação, Robert Weisberg, citado por Petitmengin (2001), destaca a

importância da experiência passada na resolução de problemas de insight. Ela se basearia na

comparação da situação problema atual, organizada enquanto um conjunto de fatos

elementares, com situações similares que foram estocadas na memória, a partir do que se

deduziria a melhor solução ou o melhor plano de ação possível para resolução do problema

dado. Para este autor, nenhum flash de intuição seria suficiente para resolver um problema se

não fosse proveniente de uma experiência passada.

De acordo com Petitmengin (2001), essa corresponde à visão cognitivista que

predomina atualmente nas ciências cognitivas, inscrita na tradição racionalista clássica, em

que a intuição, como toda forma de cognição, é tomada como uma representação, cujos

elementos simbólicos refletem o mais exatamente possível os traços do mundo. Tal

representação só pode ser elaborada graças a um mecanismo analítico, dedutivo e sequencial.

A autora aponta que o resultado desse mecanismo é, consequentemente, previsível, necessário

e reprodutível. Assim, critica tal modelo por não levar em conta o caráter global, não

deliberado, criativo e imprevisível da intuição, considerado por ela como um fator essencial

do conhecimento intuitivo.

Petitmengin (2001) sustenta que a intuição se apresenta como uma imagem, sensação

ou pensamento global. Isso acontece independentemente de ela surgir de uma vez só,

completa, ou de se desenvolver progressivamente, passando de uma forma vaga e fluida

inicial para uma mais precisa. Um processo de decomposição analítica, baseado na

comparação, traço a traço, de uma experiência atual com uma experiência passada, não é

capaz de explicar essa característica intuitiva. Além, disso, como o reconhecimento de uma

situação passada é sempre essencial nestas explicações reducionistas, elas são incapazes de

explicar decisões realmente criativas, para a qual se desconheça qualquer precedente.

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Como indicado anteriormente, outros autores também ressaltam o aspecto inconsciente

da intuição. Westcott (1968), por exemplo, diz que a intuição é uma “formação inconsciente

de conceitos”, ou uma “formação pré-verbal de conceitos”. Wild (1938) afirma que cientistas

e filósofos, em sua maioria, concordam que a intuição é definida como chegar a uma

conclusão, síntese, formulação ou solução de um problema sem estar consciente do processo

que leva a essa conclusão.

No campo da neuropsicologia, Charles Laughlin (1997) define a intuição como um

tipo de experiência no qual a resposta para uma questão, a solução para um problema, a

direção para alcançar um objetivo, um impulso criativo resultando na emergência de uma

imagem, ideia ou padrão, aparece à consciência de uma vez, aparentemente do nada. Mas, por

trás desse suposto aparecimento sem causa, defende a existência de processos cognitivos

inconscientes que estariam ativos sem serem percebidos, trabalhando no problema. Afirma

ainda que a experiência – que classifica como um insight – é comum em nosso dia a dia.

Frequentemente, somos capazes de “ver” a solução de um problema, ou seja, de apreender

através de uma tomada de consciência imediata uma atividade que operava sem que nos

déssemos conta dela, mas que já estava ali.

Quanto à discussão sobre a qualidade sintética ou analítica das operações intuitivas,

Laughlin aponta o caráter repentino e a completude dos produtos intuitivos como uma fonte

de confusão sobre o assunto. Para o autor, a intuição nos aparece de uma vez, mas os

processos que a produzem podem ser analíticos ou sintéticos, ou, em outros termos, podem

ocorrer como processos seriados ou paralelos. Para explicar como isso pode ocorrer, recorre a

uma metáfora:

Falando metaforicamente, é como se a solução para um problema estivesse sendo processada no fundo de um rio escuro, e os resultados estivessem sendo escritos num quadro negro que é depois liberado para flutuar acima da superfície. ‘Eu’ (o eu empírico) me torno consciente da solução em um rápido flash de insight quando o quadro negro rompe a superfície. ‘Eu’ experimento a realização da solução alcançada desse modo de maneira diferente de quando ‘eu’ trabalhei na solução usando processos racionais formais. Eu posso perceber as faculdades analíticas operando na última, mas não na primeira. ‘Eu’ ingenuamente pareço ter controle sobre a última, mas não sobre a primeira. (LAUGHLIN, 1997, p. 25).

Embora admita tal caráter inconsciente, Laughlin (1997), diferentemente dos autores

até aqui apresentados, defende que é possível acessar uma intuição. Trabalhando a partir de

uma perspectiva fenomenológica na antropologia, o autor atesta que alguns praticantes

experientes de meditação parecem alcançar algum acesso também ao processo intuitivo,

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embora, em geral, as pessoas comuns não possuam treinamento que as possibilite desenvolver

essa habilidade. O autor defende, então, a possibilidade de acesso às experiências intuitivas,

desde que métodos adequados sejam utilizados, o que o aproxima de Claire Petitmengin.

Embora a maioria das referências citadas pelo autor utilize o termo inconsciente,

Bastick (1982) afirma que a intuição é um processo pré-consciente. Isto é justificado pelo fato

de que este se refere a materiais que, apesar de poderem estar inconscientes em dado

momento, estão disponíveis e prontos para se tornarem conscientes. Assim, no momento de

seu processamento, a matéria da intuição e seu processamento ocorrem fora da consciência

individual, e apenas o resultado final do processo – o qual recebe várias denominações, seja

intuição, insight ou mesmo experiência de Eureka – torna-se acessível à consciência pessoal,

geralmente em uma forma completa e de maneira repentina. Dessa forma, vemos que a ideia

de pré-consciente é muito semelhante à de inconsciente, e é distinta de outras definições do

termo, como a de Claire Petitmengin (2001, 2007), que considera a intuição como um

fenômeno pré-consciente porque, embora, geralmente, ela não seja conscientemente percebida

em seu desenvolvimento, pode vir a ser.

Bastick (1982) afirma, ainda, que a compreensão da intuição como pré-consciente

ocorre em dois níveis. Em um primeiro nível, refere-se à entrada da informação utilizada no

processamento intuitivo. Isso significa que parte da informação utilizada pelos processos

intuitivos é proveniente de estimulação subliminar, recordação hipnagógica ou aprendizagem

incidental. Na resolução intuitiva do problema, tal informação interage com informação

recebida de forma consciente, e o resultado dessa interação é a intuição final ou o insight. Em

um segundo nível, o próprio processamento intuitivo dessa informação é pré-consciente.

Assim, é comum que as pessoas relatem não saber qual é a fonte de suas intuições e que não

sejam capazes de explicar como completaram uma tarefa intuitiva. A intuição refere-se, então,

a experiências de “saber sem saber como se sabe”, ou “saber e não ser capaz de provar o que

se sabe”. O pensamento intuitivo é, então, considerado um processo de pensamento primário,

em que a evocação de informações e as associações não são dirigidas pela consciência.

4.1.1 Intuição como uma forma de cognição implícita

Podemos notar que, de maneira geral, as ciências cognitivas tratam a intuição como

um processo não acessível, sobre o qual nada sabemos e de que não nos apercebemos. Ela

seria, portanto, apenas um tipo de cognição implícita. Essa forma de cognição é amplamente

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aceita como base explicativa para os processos intuitivos, que parecem ser um caso evidente

de “saber sem saber como se sabe”. Representando tal posição, Underwood e Bright (1996)

mostram que a cognição não diz respeito somente aos eventos mentais a que temos acesso

consciente, mas também envolve conhecimentos de que não somos capazes de nos dar conta.

De acordo com esse ponto de vista, a consciência não é nem uma consequência necessária dos

processos cognitivos, nem é uma condição necessária para que eles aconteçam. Ao lado dos

conhecimentos explícitos, que são aqueles sobre os quais podemos refletir e que podemos

relatar verbalmente, “há formas de conhecimento que podem não estar disponíveis para o

relato verbal, mas que estão disponíveis apenas no sentido de que nosso comportamento é

modificado” (UNDERWOOD e BRIGHT, 1996, p. 2, tradução nossa).

A noção de inconsciente proposta pelos defensores da cognição implícita é definida

em termos da possibilidade de verbalização ou não de determinado conhecimento. Assim,

uma vez que um indivíduo diz que não sabe dizer como fez determinada ação, ou como

chegou a determinado resultado de um problema, isso é considerado um dado suficiente para

classificar tal fenômeno como inconsciente. Consciência, por oposição, refere-se a fenômenos

os quais somos capazes de descrever, de verbalizar. Não há, em sua definição, nenhum outro

aspecto a ser considerado. A definição do que é consciente ou inconsciente não se fundamenta

em nenhum aspecto experiencial do fenômeno analisado, apenas em critérios práticos,

operacionais, objetivamente observáveis.

Um importante fenômeno da cognição implícita, que parece estar envolvido em muitos

estudos experimentais da intuição, é a aprendizagem implícita. Segundo Underwood e Bright,

embora o material a partir do qual a aprendizagem se constrói seja geralmente apresentado de

maneira explícita, a aprendizagem implícita ocorre quando uma melhora na performance em

uma tarefa é observada, sem que um aumento do conhecimento verbal sobre como realizá-la a

acompanhe. Há, portanto, evidência de conhecimento procedural, mesmo que sem qualquer

evidência de conhecimento declarativo. Tal aprendizagem é explicada apenas por condições

incidentais, e é considerada automática e sem esforço.

Um dos mais conhecidos estudos de aprendizagem implícita foi realizado por Arthur

Reber em 1965. O investigador utilizou uma gramática artificial, capaz de gerar certo número

de sentenças de acordo com certas regras, tal como representadas na Figura 4.1 abaixo, em

que as setas indicam as sequências permitidas. Por esta gramática, uma sentença gramatical

deve ser iniciada pela T ou P; iniciando-se pela letra T, a letra seguinte deverá ser S ou X. A

terceira letra, por sua vez, poderá ser novamente um S ou um X, caso a segunda tenha sido um

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S, por exemplo. Algumas possibilidade

retirada de Reber (1993). O experimento consistia

apresentar aos participantes

eram consideradas gramaticais

indiretamente, conhecimentos sobre as regras em questão

indivíduos não eram informados de que havia uma regra subjacente à formação das

sequências. Eles eram informados que aquele era um experimento sobre memória, e eram

instruídos a decorar sequências de letras impressas em cartões, cada um contendo quatro

delas. Depois disso, na fase teste,

letras que apareciam em tal gramática, mas dentre as quais algumas sequências eram

gramaticais e outras não. Nessa

seguiam uma regra gramatical, e eram instruídos a determinar, na lista de novas sequências

oferecida, quais eram gramaticais. Reber afirma que os participantes eram capazes

as sequências gramaticais acima do

dizer qual era a regra subjacente, e não

sequências gramaticais e não gramaticais. Reber considera essa um

indivíduos usavam conhecimento implicitamente aprendido e armazenado para realizar a

tarefa, uma vez que eram capazes de realizá

conhecimento procedural –

possuindo, portanto, conhecimento declarativo.

Figura 4.1 Gramática artificial utilizada por Reber

S, por exemplo. Algumas possibilidades de sentenças gramaticais são apresentadas na figura,

er (1993). O experimento consistia, em uma fase inicial

aos participantes uma série sentenças que, de acordo com as regras apresentada

eram consideradas gramaticais. Nessa fase, supunha-se que os indivíduos adquiririam,

tamente, conhecimentos sobre as regras em questão. É importante notar que estes

indivíduos não eram informados de que havia uma regra subjacente à formação das

Eles eram informados que aquele era um experimento sobre memória, e eram

a decorar sequências de letras impressas em cartões, cada um contendo quatro

na fase teste, os participantes recebiam uma lista de sentenças com as

letras que apareciam em tal gramática, mas dentre as quais algumas sequências eram

Nessa etapa, eram informados de que as sequências memorizadas

seguiam uma regra gramatical, e eram instruídos a determinar, na lista de novas sequências

oferecida, quais eram gramaticais. Reber afirma que os participantes eram capazes

as sequências gramaticais acima do nível do acaso, mas, quando perguntados, eles não

dizer qual era a regra subjacente, e não eram capazes de dizer como decidiram entre as

sequências gramaticais e não gramaticais. Reber considera essa uma evidência de que esses

indivíduos usavam conhecimento implicitamente aprendido e armazenado para realizar a

que eram capazes de realizá-la – apresentando, então, evidência de possuírem

– embora não fossem capazes de explicar como o

possuindo, portanto, conhecimento declarativo.

Gramática artificial utilizada por Reber, com exemplos de sequências gramaticais geradas por ela

109

de sentenças gramaticais são apresentadas na figura,

inicial de aquisição, em

uma série sentenças que, de acordo com as regras apresentadas,

os indivíduos adquiririam,

É importante notar que estes

indivíduos não eram informados de que havia uma regra subjacente à formação das

Eles eram informados que aquele era um experimento sobre memória, e eram

a decorar sequências de letras impressas em cartões, cada um contendo quatro

os participantes recebiam uma lista de sentenças com as

letras que apareciam em tal gramática, mas dentre as quais algumas sequências eram

, eram informados de que as sequências memorizadas

seguiam uma regra gramatical, e eram instruídos a determinar, na lista de novas sequências

oferecida, quais eram gramaticais. Reber afirma que os participantes eram capazes de acertar

, quando perguntados, eles não sabiam

capazes de dizer como decidiram entre as

a evidência de que esses

indivíduos usavam conhecimento implicitamente aprendido e armazenado para realizar a

apresentando, então, evidência de possuírem

e explicar como o faziam – não

com exemplos de sequências gramaticais geradas por ela (Reber, 1993)

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Podemos retomar alguns exemplos de pesquisa sobre intuição que envolvem tarefas

desse tipo. É o caso do experimento de Bouthilet (1948), apresentado por Westcott (1968) e

por nós descrito no capítulo 1, em que listas de pares de palavras cuja regra de associação (a

segunda palavra sempre continha as mesmas letras da palavra-estímulo que era seu par) eram

apresentadas aos participantes da pesquisa, sem que, entretanto, estes fossem informados de

tal regra. Após serem apresentados a 20 listas contendo 40 pares de palavras cada, uma folha

teste era oferecida ao participante, com 40 palavras estímulo, metade das quais não havia

aparecido em nenhuma das listas anteriormente apresentadas a ele, sendo completamente

novas. Cada palavra-estímulo era seguida de cinco palavras, dentre as quais uma deveria ser

escolhida como palavra associada. Dentre as 5 palavras, uma seguia a regra, desconhecida

pelo participante, de apresentar as mesmas letras da primeira palavra. Como vimos, o

resultado do experimento mostrou que, três grupos de desempenho se destacaram, e o grupo

que a pesquisadora considerou ter resolvido o problema de maneira intuitiva foi aquele em

que os sujeitos já alcançavam um desempenho bem superior ao nível do acaso na tarefa, e

ainda abaixo da perfeição, antes de conseguir enunciar a regra subjacente, pois estes

participantes exibiam uma capacidade de dar palpites certos sem saber por quê. Assim,

vemos, com o experimento de Bouthilet, que, apesar de ter sido realizado quase duas décadas

antes do aparecimento da discussão sobre cognição implícita nas ciências cognitivas, os

estudos experimentais pioneiros sobre intuição já supunham, sem o aporte teórico

ulteriormente desenvolvido, que ela se tratava de um processo implícito.

Por conta de tamanha semelhança, torna-se interessante, para os fins de nossa

discussão, analisar um pouco mais as pesquisas sobre cognição implícita, em especial certas

controvérsias relativas à aprendizagem implícita que surgiram algum tempo depois dos

primeiros experimentos de Reber. Interessa-nos, em especial, a discussão sobre o grau em que

o conhecimento adquirido em experimentos desse tipo pode ser dito, de fato, implícito, pelo

menos no sentido empregado pelos pesquisadores de tal área, em que tal termo é usado como

sinônimo de inconsciente.

Reber (1965, citado por REBER, 1993) afirma que a aprendizagem implícita é

completamente inconsciente com base nos relatos dos participantes de seus estudos

resultantes de uma introspecção feita por eles após a tarefa, a pedido do experimentador.

Desse modo, quando perguntados se podiam descrever o que haviam feito na tarefa, e com

base em quê tomaram suas decisões ao longo dela, os participantes geralmente respondiam

não saber nenhuma das respostas. Vemos aqui, com clareza, que Reber afirma o aspecto

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inconsciente do conhecimento utilizado por esses participantes com base em sua capacidade

de verbalizar seu procedimento. Desse modo, a partir das respostas dos participantes, o

pesquisador afirmou que conhecimentos adquiridos por aprendizagem implícita eram também

implícitos, ou seja, inconscientes.

Todavia, tal afirmação logo começou a ser questionada por outros pesquisadores, que

acusavam-na de ser uma simplificação exagerada do problema. O próprio Reber, então, refez

alguns experimentos e chegou a conceder um grau maior de consciência às regras em jogo na

tarefa, admitindo que os participantes conseguiam relatar, por recordação livre, um pouco do

que sabiam, como alguns aspectos específicos das sequências de letras. As primeiras e últimas

letras, alguns bigramas, trigramas, e recorrências foram, então, indicados como importantes

para a tomada de decisão. Mas o autor manteve a posição de que, embora essas informações

pudessem ser explicitamente evocadas, elas não eram suficientes para demonstrar a

compreensão da regra subjacente.

Ainda insatisfeitos com essas concessões, Dulany, Carlson e Dewey (1984)

reproduziram o experimento de aprendizagem de uma gramática artificial feito por Reber,

mas introduziram um teste de escolha forçada após a tarefa para acessar o conhecimento

adquirido. Para isso, durante a tarefa de classificação, quando os sujeitos qualificavam uma

sequência como gramatical, deveriam, em seguida, sublinhar a parte dela que consideraram

decisivas para sua escolha; do mesmo modo, quando os sujeitos qualificavam uma sequência

como não gramatical, deveriam sublinhar a parte dela que consideravam violar as regras.

Após o experimento, os pesquisadores analisaram se as regras implicadas nas marcações dos

sujeitos para a classificação das sequências eram válidas ou não, e averiguaram que as regras

induzidas eram, sim, suficientes para dar conta de todo o conjunto de classificações. Por

conseguinte, concluíram, em oposição a Reber, que o conhecimento das regras era consciente.

Outro experimento que buscou refutar o caráter inconsciente do conhecimento

envolvido na aprendizagem implícita foi realizado por Stanley et al (1989). Esses

pesquisadores também replicaram um experimento anterior, nesse caso realizado por Berry e

Broadbent (1984), que utilizava situações experimentais mais próximas da realidade para

avaliar a aprendizagem implícita. Berry e Broadbent, citados por Berry (1996), submetiam os

participantes a tarefas controladas por computador, solicitando que eles controlassem ou uma

fábrica de produção de açúcar ou uma pessoa simulada por um programa. Matematicamente,

as duas tarefas eram idênticas. Os participantes não recebiam qualquer instrução sobre como

controlar a tarefa, mas deveriam ser capazes de manter níveis específicos de uma variável

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alvo de output pela manipulação de uma ou mais variáveis de input. Em ambas as tarefas, os

participantes demonstraram melhoras significativas em sua habilidade de controlar a tarefa

com a prática. Porém, essa melhora não se acompanhava de uma habilidade para responder

perguntas por escrito sobre como realizaram a tarefa. A conclusão de Berry e Broadbent

(1984) foi a de que estas tarefas eram desempenhadas de alguma maneira implícita. Mas

Stanley et al (1989), citados por Berry (1996), retomaram a situação experimental de Berry e

Broadbent e pediram para que os sujeitos, depois de praticarem por um tempo uma das duas

tarefas, descrevessem para outra pessoa como controlar a tarefa. Em níveis moderados de

prática, essa tarefa parecia muito difícil; mas quanto mais prática os sujeitos adquiriam, mais

fácil se tornava explicar para um terceiro como fazer a tarefa, de modo que os principiantes

eram capazes de realizar a tarefa com sucesso, mesmo sem prática. Com isso, os

pesquisadores mostraram que a dissociação entre o desempenho na tarefa e o conhecimento

verbalizável associado a ele não era tão absoluta assim.

Se, a partir do que as pesquisas em primeira pessoa nos permitem saber sobre os

processos intuitivos, refletirmos sobre os resultados das duas últimas pesquisas apresentadas,

podemos ampliar ainda mais a crítica à afirmação de que eles se tratam de processos

completamente inconscientes. Dulany, Carlson e Dewey (1984) mostraram que, mesmo

quando os participantes não eram capazes de explicitar verbalmente como fizeram a atividade,

eles tinham acesso, sim, a conhecimentos relativos ao modo como procederam, o que se

evidenciava quando os participantes sublinhavam as partes das sequências de letras que os

faziam classificá-las como gramaticais ou não gramaticais. De fato, tomar a incapacidade de

verbalização como critério para avaliar se uma atividade desenvolve-se de maneira consciente

ou inconsciente é uma maneira muito restrita de compreender a questão. No capítulo 2, vimos

que um processo intuitivo é caracterizado pela presença de sensações específicas, que dizem

respeito a outro modo de conhecer, que é concreto e incorporado. Somos capazes de nos dar

conta delas, e precisamos ficar em contato com tais sensações até que sejamos capazes de

torná-las exprimíveis. Ao mesmo tempo, elas são muito específicas e capazes de portar

sentido. Assim, seria incorreto dizer que não há qualquer consciência do processo, se

ampliamos o sentido de consciente para a percepção dessas sensações, ainda não traduzidas

em palavras. Isso estaria de acordo com os resultados, também, do segundo experimento, que

mostra que, por verbalização, é difícil explicar uma ação desenvolvida em nível intuitivo, mas

isso se torna mais fácil com a experiência. Isso poderia se explicar pelo fato de se ampliar o

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tempo de contato com a dimensão intuitiva da experiência, de modo que alguma tradução do

que se passa nela possa ser alcançada quando um tempo maior para isso é disponibilizado.

Assim, temos razões para acreditar que não é correto afirmar que a intuição é um

processo cujo desenvolvimento não pode ser acompanhado. Parece-nos muito mais evidente

que ela é uma experiência difícil de ser imediatamente descrita, visto que surge na forma de

sensações corporalmente inscritas. É preciso tempo para que uma intuição torne-se

verbalizável; porém, não conseguir expressar uma intuição não significa, necessariamente,

que seja impossível aperceber-se dela, tampouco que não existam formas de torná-la

compartilhável com outras pessoas.

4.2 Caráter de imediatidade

É comum que se descreva a intuição como algo que nos aparece de maneira repentina

e imediata. Muitas vezes, essa característica parece ser um complemento necessário para o

caráter inconsciente da intuição. Isso porque, uma vez que se afirma a impossibilidade de nos

apercebermos de seu desenvolvimento, resta-nos apenas a possibilidade de nos darmos conta

de seu resultado final, que nos chegaria inesperadamente, como uma espécie de experiência

de “Eureka!”.

Existem duas razões principais, e correlacionadas, que levam à atribuição de um

caráter de imediatidade à intuição. Em primeiro lugar, temos seu aparecimento repentino, ou

seja, o modo como uma intuição nos chega “pronta” e de uma só vez. Em segundo lugar,

temos seu caráter global, já que a intuição refere-se geralmente a uma sensação que se

apresenta em bloco, como um conhecimento do todo, dando-nos a impressão de ser

experimentada enquanto uma unidade. De fato, essa segunda razão está associada à primeira,

uma vez que o caráter global facilita a tomada de consciência de uma intuição em uma única e

rápida investida.

Petitmengin classificou como emergentistas os modelos de explicação que tentam dar

conta desse caráter descontínuo e imprevisível da intuição. Entre eles, encontramos modelos

que explicam as descobertas intuitivas como fruto de associações entre ideias feitas ao acaso,

por mero acidente (é o caso de Paul Souriau), por bissociação de ideias (por exemplo, Arthur

Koestler) e pela reestruturação de uma situação. Os principais representantes da última

posição são os gestaltistas, que propuseram o conceito de insight, o qual foi amplamente

absorvido por outros pesquisadores da intuição e, muitas vezes, usado como sinônimo dela.

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Petitmengin critica todos esses modelos por não terem sido criados a partir de nenhum estudo

rigoroso do vivido intuitivo. Segundo a autora, mesmo quando se apóiam em experiências, os

representantes dessas teorias fazem um salto da descrição dela para um modelo explicativo,

contribuindo com uma compreensão pobre da estrutura do processo, algo que só uma

descrição genética permitiria superar. Concordamos parcialmente com a autora, que defende a

primazia da descrição em relação à explicação, mas achamos que a autora não faz uma

apreciação justa da contribuição do gestaltismo para o tema. Para os gestaltistas, a experiência

era, sim, um fator importante, e embora não tenham desenvolvido métodos especiais para

acessá-la, por certo tocaram em aspectos muito importantes dela.

É certo que muitos estudos entendem a intuição como um sinônimo de insight. Assim,

do mesmo modo que o insight, a intuição seria o ápice de um processo sobre o qual nada se

sabe, o resultado de um trabalho inconsciente, aparecendo-nos, de uma só vez, como solução

de um problema. É interessante notar que essa formulação da intuição só pode ser proveniente

de estudos sobre solução de problemas. Afinal, nesse contexto, o momento em que mais

claramente nos apercebemos da intuição é aquele em que finalmente encontramos uma

solução – o que geralmente ocorre no fim da tarefa. Vimos, porém, que, em casos como os

dos processos de criação, esta ordem se inverte, já que a intuição nos aparece mais

nitidamente no início deles, no momento em que temos uma ideia, quando esta ainda precisa

de tempo para se clarificar e desenvolver.

Para Petitmengin, mesmo que uma intuição apareça à consciência de forma abrupta e

instantânea, essa emergência corresponde somente à parte aparente de um processo que se

desenvolve no tempo, composto de uma sucessão de gestos interiores precisos. Estes últimos

permanecem, na maior parte do tempo, pré-refletidos, o que explica que sejam desconhecidos.

Mas podem ser levados à consciência e, pelo menos até certo ponto, podem ser colocados em

palavras, graças a procedimentos particulares, como os descritos no capítulo 2, e aos quais

voltaremos no fim deste capítulo.

Mas, para o gestaltismo, mesmo na solução de problemas, o insight, embora carregado

por seu caráter de aparecimento repentino e completo, não parece ser fruto de um processo

anterior completamente inconsciente para o indivíduo. O insight resulta de uma reestruturação

do problema, mas parece haver pistas experienciais anteriores a sua eclosão, descritas por

autores gestaltistas em textos que discutiam tal fenômeno, que poderiam muito bem ser

interpretados de maneira muito harmônica com a descrição genética da intuição oferecida por

Claire Petitmengin. É o caso do caráter de exigência, conceito que discutimos no segundo

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capítulo. Gestaltistas como Wertheimer, Köhler e Arnheim pareciam dar a essa sensação

considerável importância no processo de pensamento produtivo, mostrando que temos uma

experiência dela que costuma anteceder o insight. Os momentos de pré-compreensão não

parecem arbitrários, ou completamente inacessíveis para o sujeito.

Por outro lado, também no gestaltismo encontramos uma pista importante sobre a

intuição, que parece se relacionar com o caráter global, de unidade, presente nessa

experiência. Para o gestaltismo, o trabalho do pensamento produtivo – que, de acordo com

nossa compreensão, porta algo de intuitivo – relaciona-se intimamente com o trabalho da

percepção. Por isso, tais autores chamam atenção para o papel das imagens no pensamento

intuitivo. Parece haver algum tipo de relação entre intuição e imagens, ou, pelo menos alguma

semelhança entre elas.

Em Arnheim (1969) essa relação é bem evidente. O autor defende que o pensamento

produtivo faz uso extensivo de imagens, opondo-se aos psicólogos da escola de Wurzburgo,

que defendiam a teoria do “pensamento sem imagens”. Para estes, embora o pensamento fosse

consciente, ele não se apoiava em imageria. Essa afirmação originou-se dos resultados de

experimentos de introspecção, a partir dois quais tais psicólogos não conseguiram encontrar

imageria de maneira consciente no pensamento. Arnheim propõe três formas de interpretar

esse dado. O primeiro seria uma aceitação de que o pensamento se dá apenas em palavras.

Essa hipótese é rejeitada pelo autor. Em segundo lugar, isso poderia significar que, no

pensamento, as imagens se dão em um nível abaixo da consciência, hipótese também recusada

por ele. Por fim, poderia indicar que ainda não estava claro o que se entendia por imagem, ou,

pelo menos, que os defensores do pensamento sem imagens simplesmente ainda não eram

capazes de definir o tipo de imagem que se relacionaria com o pensamento. É com esta última

forma de entender os resultados da introspecção da Escola de Wurzburgo que Arnheim fica.

Arnheim (1997a) sugere que a imagem do pensamento não é eidética, ou seja, não é

uma réplica de objetos já existentes no mundo, uma forma de projeção. Afirma, ainda, que

esse tipo de imagem é, pelo contrário, raro, e, apesar de poder servir de material para o

pensamento, não serve como instrumento para o pensamento. Seguindo em outra direção, o

autor vai defender que as imagens mentais são genéricas e geralmente incompletas. Por

exemplo, pode-se imaginar um tronco sem os galhos, raízes ou folhas de uma árvore, se esta é

a parte do objeto imaginado que é significativa para o sujeito. Assim, as imagens admitem

também seletividade: o pensador pode focar no que é relevante e dispensar de visibilidade o

que não é. As imagens podem ter generalidade, porque não são claras, são indefinidas. Isso

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não quer dizer, entretanto, que sejam imprecisas. Arnheim afirma que a psicologia

experimental tende a resolver o paradoxo das imagens que são ao mesmo tempo particulares e

genéricas descrevendo a experiência como indistinta e sem clareza, mas que isso não é

necessário.

Com isso, o autor faz uma verdadeira revisão do status das imagens mentais:

afirmando sua incompletude, destaca que ela não é um defeito, um problema de fragmentação

ou de apreensão insuficiente. A apreensão mental não segue as mesmas regras que a

apreensão da natureza física dos objetos; não é possível, portanto, no que diz respeito às

imagens mentais, falar em erro do objeto ou coisa. Pelo contrário, essa qualidade é essencial

para o pensamento abstrato, pois permite que um tema possa ser reduzido visualmente a um

esqueleto de características dinâmicas essenciais. Apesar de vagas, as imagens do pensamento

podem incorporar com precisão o padrão de forças que evocam.

Do mesmo modo, o autor vai sustentar que uma imagem é imprecisa não quando lhe

falta detalhe ou precisão, mas quando há falta de forma (no sentido gestaltista do termo),

quando o esqueleto estrutural da imagem não está organizado ou ordenado. Assim, propõe

que as imagens do pensamento, principalmente de pensamentos abstratos e complexos, são,

com frequência, esquemáticas, podendo atingir um alto grau de abstração. Conceitos teóricos

podem se ligar a settings visuais específicos, servindo como um modelo de trabalho para o

pensamento. Essas imagens esquemáticas são ditadas pela ideia dominante do pensamento e

podem ser consideradas fantásticas se comparadas com o evento físico com o qual muitas

vezes se relacionam, mas isso não faz delas algo menos funcional do que as ideias que

incorporam.

Arnheim defende, portanto, que o pensamento produtivo se dá no domínio das

imagens. Deseja mostrar que a solução para problemas teóricos requer configurações

abstratas, representadas por figuras topológicas e frequentemente geométricas no espaço

mental. Nelas, objetos podem ser reduzidos a flashes de direção ou forma, ou pode haver

padrões ainda mais abstratos, sem nada que corresponda ao mundo físico (ARNHEIM,

1997a). Um exemplo fornecido pelo autor (ARNHEIM, 2004) é o do esquema que Freud

utilizava para explicar sua teoria dinâmica do psiquismo (Figura 4.2).

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Figura 4.2 Esquema desenhado por Freud para representar o psiquismo humano (Arnheim, 2004)

Tal figura é bastante esquemática e abstrata, representando um modo de

funcionamento dinâmico do psiquismo humano segundo a teoria psicanalítica freudiana, para

a qual não há nenhum correspondente físico. Apesar de simples, ela condensa de maneira

bastante evidente as características das instâncias do psiquismo. Arnheim (2004) a descreve

da seguinte maneira:

Num dos poucos diagramas que acompanham suas teorias, Sigmund Freud ilustrou a relação entre duas tríades de conceitos: id, ego e superego; inconsciente, pré-consciente e consciente (...). Seu desenho apresenta estes termos num corte vertical, por meio de um compartimento bojudo, uma espécie de arquitetura abstrata. As relações psicológicas são mostradas como relações espaciais, a partir das quais somos convidados a inferir os lugares e direções das forças mentais que o modelo pretende ilustrar. Embora não representadas no desenho, estas forças são tão perceptivas quanto o espaço onde são mostradas em ação. É bem conhecido o fato de que Freud as fez atuar como forças hidráulicas – uma imagem que impôs certas restrições ao seu pensamento. Observe-se, aqui, que o desenho de Freud não era um mero recurso didático, usado em suas conferências para facilitar a compreensão de processos que ele próprio imaginaria localizados em um meio diferente. Não, ele os representou justamente no meio em que ele próprio os concebia, bem consciente, sem dúvida, de estar pensando por analogias. (ARNHEIM, 2004, p. 147)

Fica claro que Arnheim compreendia a intuição como um modo de pensamento que se

valia, principalmente, de imagens, e que estas serviam de meio para ele. No exemplo citado,

essa imagem era consciente e presente de forma clara para Freud. Mas Arnheim (1989)

admite que nem sempre as pessoas estão acostumadas à auto-observação, o que faz com que

muitas imagens do pensamento passem por elas despercebidas. Além disso, afirma que as

imagens mentais são difíceis de descrever e são facilmente perturbadas, o que dificulta,

muitas vezes, seu compartilhamento com outras pessoas. Vemos, então, que, para este autor, o

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fato de a intuição se desenvolver, principalmente, na forma de imagens, não somente justifica

a impressão que temos de imediatidade da mesma, como também contribui muito para nossa

dificuldade em colocá-la em palavras – o que, mais uma vez, contribuiria para a atribuição de

um caráter inconsciente a ela.

Como era o caso no exemplo de Freud, os desenhos, de acordo com Arnheim, sugerem

ou compartilham as características estruturais das imagens mentais, mesmo que nunca sejam

representações fiéis delas. Cita como protótipos os rabiscos feitos por professores no quadro

negro que descrevem constelações físicas, sociais, psicológicas ou lógicas, às vezes com

muita precisão, e que, mesmo assim, são não miméticas.

Apesar de dar muito peso às imagens visuais nos processos intuitivos, como vimos no

capítulo 4, Arnheim (1989) mostra que não somente elas são adequadas para auxiliar o

pensamento. Outras qualidades perceptivas, para além das visuais, podem ser capturadas pelo

pensamento produtivo. É o caso das experiências cinestésicas, que são formas não miméticas

de imagens do pensamento e que se deixam perceber através de nossos gestos. Para o autor, o

gesto se refere a uma qualidade ou dimensão isolada do referente. É geralmente eficiente,

porque destaca uma característica relevante para o discurso e enfatiza de modo inteligente o

que importa nele, indicando certas propriedades generalizáveis da ação.

As qualidades perceptivas de forma e movimento estão presentes nos próprios atos do

pensamento que os gestos retratam. Essas qualidades são o meio onde o pensamento se dá. Há

uma grande semelhança entre elas e os afetos de vitalidade propostos por Daniel Stern, o que

se confirma pelos diversos exemplos de qualidades dinâmicas do pensamento que tais

qualidades de forma e movimento tentam expressar: empurrar, puxar, avançar, obstruir.

Assim, as imagens que evoca Arnheim nada têm de estáticas e sem vida, e podem ser

essenciais para expressar pensamentos.

Assim, mesmo enfatizando a qualidade visual das imagens mentais, Arnheim admite

que elas podem assumir outras formas, como por exemplo as formas cinestésicas. Diderot, por

sua vez, já havia mostrado o papel de imagens táteis no pensamento de um matemático cego

em sua “Carta sobre os cegos para uso dos que vêem” (cf. DIDEROT, 1749). Claire

Petitmengin (2007) enfatiza o caráter transmodal da intuição, uma vez que as sensações

características dela são marcadas por uma série de qualidades dinâmicas comuns a qualquer

um de nossos sentidos – ritmo, intensidade, forma dinâmica. Assim, também tal autora parece

admitir que algo que, se não é uma imagem, pelo menos possui características geralmente

atribuídas a imagens, parece ser mobilizado nas experiências intuitivas, capturando a intuição

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em sua globalidade. Assim, podemos afirmar que intuição carrega uma qualidade de imagem,

sem por isso precisarmos nos limitar a seu sentido puramente visual.

4.3 O problema da expressão da intuição

O caráter de imediatidade que acabamos de discutir nos leva a um segundo problema.

Essa característica global, muitas vezes incorporada, da intuição, pode ser uma das razões

pelas quais se insiste na qualidade inconsciente dessa experiência, uma vez que, para muitos

autores, ser inconsciente equivale a ser impossível de descrever verbalmente. Como já

buscamos salientar, essa afirmação nos parece equivocada diante de tudo que o estudo da

gênese da intuição nos apresenta (PETITMENGIN, 1999, 2001, 2007). Tal estudo nos mostra

que a intuição é pré-consciente, no sentido de que geralmente não nos damos conta dela, mas

postula, também, que uma mudança em nossa postura atencional habitual pode nos colocar

em contato com a dimensão intuitiva da experiência e ampliar grandemente o acesso que

temos a ela. Assim, ele muda o status de completa inconsciência dos processos intuitivos,

mostrando que estamos conscientes de muito mais do que apenas o que é verbalmente

comunicável. Petitmengin (2007) chega a afirmar que, em determinadas situações, não é

preciso nem mesmo o treino de qualquer gesto atencional especial para nos darmos conta da

dimensão intuitiva, citando alguns casos em que essa dimensão da experiência nos salta aos

olhos por si mesma: é o caso do processo de criação (artística ou científica), do encontro com

uma obra de arte, da psicoterapia. Anteriormente nesta tese, apelamos a situações deste tipo, a

fim de de tentar fazer o leitor se aperceber da presença desta dimensão em sua própria

experiência concreta; utilizamos, principalmente, o exemplo do surgimento de uma ideia que

deve ser desenvolvida em um trabalho, momento em que, geralmente, a intuição se torna

proeminente. Em tais situações, os felt meanings envolvidos, geralmente incorporados e

globais, podem ser vivamente experienciados. Mas, como não sabemos de imediato como

explicá-los ou nomeá-los, para um observador externo poderia muito bem parecer que nada se

passa em nossa experiência consciente, que nem suspeitamos da existência de tal processo

intuitivo.

Mas, como vimos no capítulo 2 (p.70/71), ganhamos consciência de um felt meaning –

de modo ainda bastante instável, mas incontestável – por referência direta, muito antes de

sermos capazes de expressá-lo de maneira clara (GENDLIN, 1997). Isso, entretanto não é

tudo. Podemos ir além, e afirmar que uma experiência intuitiva, da qual um felt meaning é o

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fundamento, pode sim ganhar expressão, seja verbal ou de qualquer outro tipo. Mas esse

processo é muito mais lento, se constrói no tempo, e, por isso, tão frequentemente, parece que

não somos capazes de dizer nada sobre uma intuição.

Gendlin não pára no processo de referência direta, mostrando que existem várias

formas de se expressar um felt meaning. Utilizando-nos dos termos do autor, os felt meanings

podem ser, e o são a todo momento, simbolizados. O autor identifica sete modos de

simbolização possíveis, de acordo com o papel assumido pelos símbolos (que, segundo ele,

podem ser palavras, gestos, imagens, ou outros) e pelos felt meanings em cada situação. Para

nós, não será necessário passar por todos os tipos, mas apenas pelos mais relevantes para a

compreensão do modo como a expressão de um pensamento se desenvolve no tempo. Gendlin

explica que essas diferentes formas de simbolização não são resultado de relações “já-

lógicas”, ou seja, não é uma relação lógica que determina como um felt meaning será

simbolizado, nem que símbolos serão mais adequados ou não para fazê-lo. Pelo contrário, o

autor defenderá que o sentido de um felt meaning é especificado ou criado ao mesmo tempo

em que a lógica. Gendlin coloca que existem formas de simbolização, ou relações funcionais

entre felt meanings e símbolos, paralelas e criativas. No primeiro caso, a um felt meaning

correspondem símbolos em uma relação um a um; no segundo caso, felt meanings já

explicitados por determinados símbolos entram em interação com novos felt meanings, ou

com novos símbolos, que ampliarão seu sentido.

A relação funcional mais básica entre símbolos e felt meanings é a referência direta.

Em nosso estudo, ela parece ter uma importância fundamental para a compreensão de como

um processo intuitivo se desenvolve. A referência direta é o próprio ato de nos referirmos ao

felt meaning. Anteriormente, quando descrevemos a experiência intuitiva de, por exemplo,

termos uma ideia, iniciamos por descrever, exatamente, a referência direta que fazemos a um

felt meaning, ou seja, ao gesto que nos permite identificá-lo no fluxo de nossa experiência. A

referência direta nada mais é, então, do que o próprio ato de se referir a um felt meaning, em

sua forma mais crua. Isso quer dizer que, mesmo antes de saber explicá-lo ou nomeá-lo,

somos capazes de identificá-lo como uma região de nossa experiência, como um “isso”; por

exemplo, ao termos uma ideia, nos referimos a ela como “essa ideia”, mesmo que ainda não

sejamos capazes de dizer mais nada sobre ela. Segundo Gendlin, a referência direta não

implica que recorramos, ainda, à explicitação em palavras. Há uma significação

(meaningfulness) experimentada, implícita, que é suficiente para nos referirmos diretamente

ao felt meaning. Note-se que Gendlin parece usar os termos “explícito” e “não explícito” ou

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“implícito” para se referir a algo que já foi ou não simbolizado, respectivamente, e não

exatamente no sentido de consciente ou inconsciente, como no campo dos estudos sobre

cognição implícita.

Geralmente, a referência direta é o ponto de partida de nossos pensamentos. Ela é

exemplificada, ainda, por Gendlin, como sendo a sensação em que nos concentramos para nos

lembrarmos de algo, ou a sensação única que experimentamos diante de uma obra de arte.

Nesse caso, os símbolos se referem diretamente ao sentimento como tal, ao felt meaning,

servindo apenas para destacá-lo (geralmente com termos bem simples e pouco específicos,

como pronomes demonstrativos – isso, esse sentimento, etc.), e apenas na relação com ele

ganham seu sentido. Na referência direta, símbolos fazem referência a sentimentos sem os

conceitualizar ou representar; não é preciso nenhuma conceitualização, apenas a delimitação

de um felt meaning que o torne independente e nos possibilite apontá-lo.

Outra relação funcional apontada por Gendlin é a recognição. Aqui, a dependência

entre símbolo e felt meaning é inversa em relação ao caso da referência direta: os símbolos

são conceitos propriamente ditos, e é o contato com eles que evocam um felt meaning. Por

exemplo, Gendlin afirma que, ao lermos símbolos impressos numa página, estes evocam em

nós os felt meanings que constituem nosso “ter” os sentidos deles, ou seja, nossa compreensão

do que está escrito na página. Isso ocorre com símbolos que já nos são familiares. Geralmente

não explicamos termos familiares; sentimos seu sentido ao lê-los, ouvi-los ou pensá-los. Um

felt meaning, nesse caso, é um sentimento de recognição de um sentido (e não de algo ou

alguém). Esse corresponde ao uso mais comum que se faz do termo “sentido” no senso

comum.

Há ainda a explicação, que apresenta um grau de complexidade maior em relação às

relações funcionais anteriores. Assim, diante de um símbolo, pela recognição, evoca-se um

felt meaning; mas este é, por sua vez, anterior a símbolos que o explicam. O autor usa como

exemplo o que se passa em nós ao nos depararmos com uma palavra qualquer, como

democracia: tal palavra (símbolo) evoca um felt meaning específico (recognição); mas, se eu

desejo explicar a alguém o que democracia significa, preciso encontrar mais símbolos que

possam explicar esse sentimento de recognição. Assim, a explicação parece ser uma

ampliação de sentido que se dá a partir da exploração de um felt meaning de recognição. Este

atuará selecionando os próximos símbolos, apropriados para explicá-lo.

Sem trazer para si mesmo o felt meaning de um termo, tal como democracia, não se pode defini-lo. O som verbal, por si só, não pode levar a outros sons verbais que

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definem democracia. O dramaturgo não poderia imaginar criativamente uma situação para explicar melhor alguma coisa sem permitir que o felt meaning, ele mesmo, operasse como vamos agora descrever. (GENDLIN, 1997, p.107, tradução nossa)

Assim, na explicação, o felt meaning tem a função de ser dotado de sentido e de

selecionar outros símbolos para explicitá-lo.

Gendlin afirma que as relações funcionais entre símbolos e felt meanings até agora

apresentadas são paralelas, por estabelecerem relações lineares entre eles. Por outro lado,

existem relações funcionais criativas, em que os felt meanings não são, simplesmente, o outro

lado, sempre presente, da simbolização. Agora, símbolos que já possuem significado entram

em nova relação com felt meanings que não estão relacionados ainda com símbolos paralelos.

Estabelece-se uma relação entre um felt meaning parcialmente não simbolizado e símbolos

que, geralmente, ligam-se a outro sentido (o sentido antigo que possuíam antes dessa nova

relação).

A primeira relação funcional criativa descrita por Gendlin que aqui nos interessa é a

metáfora. Ela ocorre quando os símbolos não se referem ao seu felt meaning habitual, pois os

aplicamos a uma nova área da experiência, criando, assim, um novo sentido e um novo

veículo de expressão. Com isso, a primeira experiência é afetada de tal forma que um novo

felt meaning surge dela; velhos símbolos e seus significados são empregados de uma nova

forma para conceitualizar o novo sentido. O símbolo metafórico tem, então, dois felt

meanings: um antigo (felt meaning de recognição) e o novo felt meaning, recém-criado.

Tomemos um exemplo dado pelo autor para clarificar essa nova relação: a análise da metáfora

que acontece no verso “my love is like a red, red rose”, retirado de uma canção de Robert

Burns. Gendlin diz que o predicado “is like a red, red rose” possui um sentido “original”,

querendo dizer que evoca determinado felt meaning habitual no leitor. Mas, para além desse

predicado, há o sujeito da metáfora, “my love”, que evoca uma nova área da experiência – que

também é um felt meaning. Gendlin sustenta que, desse modo, ou seja, ao referirmos os

símbolos primários e seus felt meanings (do predicado) a outra massa de experiência (o

sujeito), um novo aspecto dessa massa de experiência emerge, é criado. Assim, a metáfora

estabelece uma nova ordem ao criar uma relação mais complexa entre um complexo de felt

meaning e símbolos + novos felt meanings. Essa é a característica peculiar das metáforas.

É importante notar, entretanto, que essa descrição da criação de um novo sentido para

a metáfora vale apenas para o leitor ou ouvinte, para aquele que já a encontra pronta. Gendlin

afirma que para o poeta, o criador de uma metáfora, o processo é diferente, pois o novo felt

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meaning lhe ocorre antes de concretizar a invenção da metáfora. Assim, em última instância,

os processos criadores do poeta, do cientista, ou do homem comum – a quem não podemos

negar momentos de criação – dependem da última relação funcional que aqui analisaremos, a

compreensão.

Embora Gendlin pareça restringir a compreensão aos processos que ocorrem na

invenção de uma metáfora, acreditamos que tal processo descreve bem a maioria dos

processos criadores, mesmo que eles não envolvam, propriamente, uma metáfora15. Por isso,

usaremos mais o termo “invenção” do que o termo metáfora para nos referirmos a ele.

A compreensão refere-se à clarificação e explicitação de um felt meaning novo, não

habitual, ao qual nenhuma simbolização parece ainda corresponder. É diferente do que ocorre

na explicação, em que um felt meaning que já nos é conhecido evoca símbolos para explicá-lo

e já conhecemos o sentido envolvido nessa relação. Agora estamos diante de um caso

diferente, em que um novo felt meaning toma forma, cujo significado precisamos, ainda, criar.

Este parece ser o caso em que percebemos, com mais clareza, o caráter intuitivo de nossa

experiência de criação de sentidos. Não é à toa que Gendlin cita como exemplos de

compreensão os processos que ocorrem na criação artística e na terapia.

O que acontece, então, no processo de compreensão? Um felt meaning novo surge,

para o qual um sentido ainda não foi explicitado, e buscamos uma expressão simbólica que

possa dar conta dele. Lembramos, aqui, que essa expressão pode assumir uma forma verbal,

imagética, gestual, entre várias outras possibilidades. Podemos retomar nosso exemplo de ter

uma ideia nova para um trabalho. Já vimos que, em primeiro lugar, é preciso que nos demos

conta da nova ideia que surge, ainda num formato vago e impreciso, ou, nos termos de

Gendlin, é preciso que façamos referência direta ao novo felt meaning. Nesse momento, como

vimos, ainda não somos capazes de colocá-lo em palavras. Em seguida, é necessário

compreendê-lo. Isso quer dizer buscar uma forma de torná-lo explícito, compartilhável, não só

porque queremos que as outras pessoas nos compreendam, mas porque nós também

precisamos conhecer melhor o sentido dessa nova ideia. De acordo com Gendlin, quando

buscamos expressão simbólica para um felt meaning, procuramos por termos que já existam e

experimentamos os termos que ele evoca. O caráter metafórico da criação proposto pelo autor

vem justamente do fato de que recorremos a termos que antes eram usados para se referir a

outros felt meanings que possuíamos, e que, pelo uso de seus termos de referência habituais,

acabam interagindo como o novo felt meaning, criando-se, assim, um novo sentido

15 Na verdade, parece que Gendlin tende a entender todos os processos de criação como um exemplo de

metáfora. Por acharmos essa conclusão muito simplificadora, não a assumiremos aqui.

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(metafórico). O novo felt meaning que queremos simbolizar é ativo durante todo o processo.

É ele que seleciona os símbolos e age como árbitro na criação; é nele que nos concentramos

(por referência direta), de modo que símbolos venham a nós e permitam-nos explicitá-lo. Ao

longo do processo de criação, esse felt meaning se transforma, quanto mais avançamos na

tarefa de expressá-lo. É o que acontece quando, por exemplo, na terapia, a compreensão de

um felt meaning nos leva a dizer frases como: “Só percebi isso em relação a esse sentimento

quando tentei expressá-lo”. Algo parecido nos acomete quando começamos, finalmente, a

escrever um texto. Essa experiência deve-se à mudança que ocorre na experiência sentida em

função da interação de símbolos já existentes e dotados de sentido com felt meanings até

então não simbolizados. A colocação do felt meaning em símbolos não serve apenas para

comunicar algo aos outros, mas também para nos darmos conta do que está envolvido no

desenrolar desse processo:

No momento em que dizemos exatamente o que ele significava, ele não é mais exatamente o mesmo; ele é mais rico, mais explícito, mais completamente conhecido. Usamos símbolos não somente para dizer aos outros o que queremos dizer; nós dizemos a nós mesmos. (…) em um sentido importante, então, a simbolização resultante de fato simboliza o felt meaning original. Em outro sentido, ela o especifica, lhe acrescenta, vai além dele, ou alcança apenas uma parte dele – em suma, o modifica. (GENDLIN, 1997, p.120, tradução nossa, grifo do autor)

Assim, Gendlin aponta um duplo sentido de compreensão: o primeiro significa que é

preciso simbolizar e explicar para compreendermos o que o felt meaning significa, pois,

apenas dessa forma, entendemos o que queremos dizer, experimentamos, de fato, o sentido;

segundo indica que ela é um processo cujo produto “compreende” o felt meaning original,

mas não é mais idêntico a ele. Por conta dessa duplicidade, podemos compreender dado felt

meaning de várias formas, e em cada uma, embora de algum modo diferente das outras, a

experiência é simbolizada com precisão.

Gendlin chama atenção, ainda, para o fato de que um felt meaning é implícito, o que o

indica a possibilidade de sofrer transformação em uma relação funcional, como a

compreensão, mas isso não significa que ele é duplicado no símbolo. Quando ocorre a

compreensão, esse sentido, antes apenas experimentado enquanto uma sensação, se torna

explícito.

Os diferentes modos de relação funcional propostos por Gendlin iluminam muitos

aspectos da experiência de criação de sentidos, seja em experiências cotidianas corriqueiras,

seja em processos de criação complexos, que lidam com o novo. É claro que existem ainda

certas limitações. Parece haver um gap entre o felt meaning e sua simbolização concreta,

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parece-nos ainda muito misterioso o modo como um felt meaning é capaz de selecionar

materiais que efetivamente o expressem. Abandonamos explicações psicológicas clássicas,

como a proposta por Bastick (1982), de que tal relação se estabelece por aprendizagem

associativa entre sentimentos e ideias, uma vez que essa explicação parece incompatível com

a criação do novo. Acreditamos que a forma mais fácil de entendermos tal tradução é pelo

apelo à noção de sintonia de afetos proposta por Stern (1992). De alguma maneira, os felt

meanings parecem envolver certas características dinâmicas e incorporadas de força,

intensidade e ritmo que seriam fundamentais para essa seleção, exigindo certa sintonia entre

sentido implícito e símbolos. Isso explicaria também a multiplicidade de traduções que um

mesmo felt meaning comporta, uma vez que tais qualidades dinâmicas podem tomar corpo de

diversas formas. Mas, mesmo com esse avanço, precisamos admitir que tal processo ainda

porta certa aura enigmática.

É interessante notar que a proposta de Claire Petitmengin (1996, 2001, 2007) para

explicar a explicitação de um felt meaning é muito próxima da de Gendlin (1997), como a

própria autora reconhece. Para ela o surgimento da intuição não é o resultado de uma

acumulação de conhecimentos, mas supõe um trabalho anterior de evacuação, de

“desaprendizagem”, e uma disponibilização. Assim que uma intuição aparece, ela não se

presta imediatamente à colocação em palavras, ela é acompanhada de um tempo inicial de

silêncio e de escuta. Longe de ser um ato puramente teórico, ela necessita de uma prática de

transformação interior. Pela descrição genética, é possível observar a experiência intuitiva,

desenvolver um vocabulário para se referir a ela, descrevê-la e compreendê-la.

É possível, então, operar uma transformação da atividade intuitiva de um modo

imagético ou cinestésico para um modo discursivo e abstrato. Para isso, algumas etapas de

contato são necessárias. É preciso, em primeiro lugar, se colocar numa atitude atencional

aberta, de “deixar vir”; em seguida, é preciso sentir, entrar em contato com o sentido corporal,

para percebê-lo em sua inteireza e na forma de uma sensação vaga, mas que é única e global;

depois, identifica-se o sentido corporal, buscando-se perceber a qualidade particular que

emerge dele; então, é hora de deixar surgir uma palavra, ou uma imagem, que dê conta dele –

não convém impor uma palavra ou uma imagem ao sentido corporal, é preciso deixar que ele

nomeie a si mesmo –; por fim, é necessário fazer ressoar, confrontar a palavra ou a imagem

surgida na etapa anterior com o sentido corporal. Se a expressão for apropriada, no momento

em que a palavra é pronunciada ou a imagem visualizada, o sentido corporal “estremece”,

produz, segundo Petitmengin, um calafrio, um estremecimento ligeiro, e então se atenua. Se

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essa confirmação não vem, é preciso deixar termos mais apropriados emergirem. Vemos,

assim, que uma atitude de acolhimento deve guiar esta tradução, permitindo que o sentido

amadureça e emirja de si mesmo. Essa transformação do sentido corporal que nos habita e nos

acompanha constantemente é a gênese de um sentido. Para Petitmengin (2001), esse

movimento se encontra no coração de qualquer processo de compreensão e de criação.

Esse espaço interior onde acontece a intuição, a diferenciação, é aberto e se situa no

seio de todo pensamento. Mas é, também, indiferenciado porque não é, ele mesmo, nem

visível, nem audível, nem compreensível. Petitmengin afirma, nesse sentido, que existe um

ponto cego na consciência, pois antes que se coloque em prática a explicitação da experiência

intuitiva, esse espaço não é nem nomeável, nem mesmo pensável.

Neste capítulo, buscamos discutir os principais argumentos geralmente apresentados

para sustentar o caráter inconsciente da intuição em diversos autores. Buscamos, também,

mostrar, que aspectos da experiência intuitiva contribuem para que a afirmação de tal caráter

seja tão amplamente aceita. O estudo da gênese da intuição, proposto por Claire Petitmengin,

nos permitiu recolocar certas afirmações, fazendo-nos perceber que podemos tomar

consciência de muito mais do que usualmente se afirma em relação aos processos intuitivos.

Segundo a autora:

Este processo de emergência, de maturação e de metamorfose não é exclusivo ao pensamento criador, ele é extremamente familiar a qualquer um entre nós. Com ele, nós assistimos ao desdobramento de um sentido, à gênese de uma compreensão, ao nascimento de um pensamento. É nesta experiência não intencional, pré-representacional e pré-discursiva do mundo que parece se enraizar toda nossa atividade cognitiva. É esta ancoragem, a ligação mantida com essa experiência, que faz um pensamento e uma fala encarnados, vivos. Mas, surpreendentemente, esta experiência que nos é a mais imediata, a mais íntima, nos é também a mais dificilmente acessível. Um longo desvio é necessário para que nos seja dado tomar consciência dela. (PETITMENGIN, 2001, p.310, tradução nossa)

Assim, preferimos ficar com o termo pré-consciente proposto por Petitmengin, para

nos referirmos ao nível de acesso que temos à intuição. Embora não estejamos

constantemente conscientes dela, podemos tomar consciência de muitos de seus aspectos, seja

pela colocação em prática de gestos atencionais específicos, seja em situações privilegiadas

em que ela se nos apresenta.

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5 A DIMENSÃO INTUITIVA NOS PROCESSOS DE APRENDIZAGEM

Até agora, o foco de nosso trabalho manteve-se em aspectos específicos do processo

intuitivo em si, e utilizamo-nos de estudos sobre o pensamento criador e sobre a solução de

problemas para dar-lhe sustentação. Tentamos afirmar uma posição sobre a dimensão intuitiva

do pensamento mais próxima daquela oferecida por Claire Petitmengin, o que exigiu que

fizéssemos a revisão de algumas características da intuição, de modo a tornar mais clara a

concepção que temos dela. Neste capítulo final, desejamos ampliar o escopo de nossa

discussão, levando nossa discussão para o campo da educação, onde acreditamos poder

encontrar um espaço muito fecundo e, ao mesmo tempo, muito carente de certas reflexões

sobre a experiência concreta do pensamento e da aprendizagem.

Essa possibilidade de direcionamento dos estudos da intuição já se encontra indicada

em Claire Petitmengin (2007), que afirma que, no campo da educação, entender que a

compreensão de uma ideia se dá através do acesso ao felt meaning que está em sua fonte,

graças a gestos específicos, pode trazer avanços para a discussão dos métodos de ensino.

Assim, a autora aponta que, em vez de estimular a simples transmissão de conteúdo, novos

métodos poderiam ser desenvolvidos para estimular a aprendizagem de gestos que

permitissem acessar a fonte da experiência.

Logo de saída, é preciso deixar claro que não temos a pretensão de sugerir novos

métodos de ensino aqui. Essa é uma tarefa que está muito além de nossas possibilidades e de

nosso interesse. Nossa intenção é produzir novos modos de olhar os processos de

aprendizagem e ressaltar um aspecto dele que geralmente fica esquecido, ou, mesmo,

deliberadamente abandonado pela maior parte das práticas de ensino e aprendizagem

correntes – seu caráter vivo, exigente, intuitivo.

Geralmente a aprendizagem é definida, de maneira genérica, como a aquisição de

conhecimentos e habilidades através do estudo, do ensino ou da experiência – entendida aqui

como as vivências que temos fora de sala de aula, “na vida”. A partir disso, aqueles

envolvidos com o ensino formal buscam encontrar métodos que possibilitem que tal aquisição

se dê da melhor maneira possível. A psicologia torna-se uma grande aliada da educação,

oferecendo teorias e pesquisas que investigam os mecanismos que regem a aprendizagem e

que desvendam a relação desta com o desenvolvimento ou com o funcionamento cerebral.

Mas a psicologia aborda muito pouco certas questões concernentes à experiência do

aprender. Pouco se sabe sobre o que se passa no plano individual e coletivo da experiência

quando um processo de aprendizagem se põe em curso. Como um aprendiz experimenta o

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aprender? Que conformações a aprendizagem assume? Estamos muito acostumados a pensar a

aprendizagem como uma tarefa cognitiva ancorada no intelecto. Sem, de forma alguma, negar

sua importância para a compreensão de muitos aspectos do aprender, gostaríamos, todavia, de

chamar atenção para o que se passa em outro plano do aprendizado – na dimensão intuitiva da

cognição. Como vimos, todo conhecimento possui um aspecto sentido, experiencial, mesmo

que geralmente não nos apercebamos dele (GENDLIN, 1997). Aprender algo envolve estar

em contato com esse aspecto, colocá-lo no foco, tentar lidar com ele, desvendá-lo.

Acreditamos que a pouca atenção dispensada a essa dimensão da aprendizagem deve-se a uma

série de fatores, pedagógicos e políticos. É também fruto de certa compreensão do que seja o

aprender, do que sejam os aspectos mais relevantes dessa atividade, dentre os quais a intuição

raramente figura. Dá-se, em geral, muita importância para o desenvolvimento do raciocínio

lógico, analítico, como se este fosse o fim último da educação, como se a intuição em nada

tivesse a contribuir para o pensamento. Esta, se aparece, é frequentemente tomada como uma

capacidade especial que alguns alunos possuem, mas que não pode ser ensinada. Pode ser

bem-vinda quando encarada como uma espécie de bônus para os processos de aprendizagem,

mas raramente figura como um aspecto essencial destes. Por isso, há pouco interesse pelo

assunto, que acaba se tornando algo lateral no campo da psicologia da educação.

O presente capítulo visa, então, afirmar a ampla participação da intuição nos processos

de aprendizagem e sustentar, além disso, a existência de uma aprendizagem desse modo de

cognição. Assim como o raciocínio lógico, a intuição também pode ser ensinada e exercitada

na escola. Do mesmo modo que uma pessoa que nunca teve oportunidade de exercitar sua

capacidade de análise terá, muito provavelmente, grandes dificuldades de realizar tarefas que

exijam raciocínio analítico, também uma pessoa que nunca foi sensibilizada para a dimensão

intuitiva do seu pensamento encontrará dificuldades de dar lugar para ela em suas atividades.

Mas isso não implica uma impossibilidade de aprender a reconhecê-la e de deixá-la participar

de nossas ações.

5.1 O caráter sensível da aprendizagem intuitiva

O primeiro passo que nossa investigação sobre a dimensão intuitiva da cognição nos

permite dar no domínio da aprendizagem é ressaltar seu aspecto sensível. A exploração da

experiência intuitiva trouxe à luz a presença de certo tipo de sensação que lhe é característica:

o felt meaning. Mostramos que tal sensação é incorporada e dinâmica, apresentando

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qualidades específicas e particulares nos diferentes processos cognitivos. Notamos que o felt

meaning geralmente confere aos processos um caráter global, além de participar ativamente

do seu desenvolvimento como uma espécie de fio condutor. Essa característica da experiência

intuitiva parece contribuir para envolver e engajar o indivíduo nos processos de pensamento e

aprendizagem, o que dá à experiência certo caráter cativante.

A dimensão intuitiva está, segundo Petitmengin, na fonte de todo ato cognitivo.

Assim, toda nova ideia, toda invenção, parece ter início em uma sensação intuitiva, que, ao

longo do tempo, amadurece e ganha formas mais definidas e partilháveis. Quando nos damos

conta da intuição enquanto um processo, apercebemo-nos dessa sensação e a experimentamos

como um sentimento de tendência ou direção. Isso não quer dizer que haja qualquer certeza

sobre sua conclusão. É como na brincadeira de frio ou quente das crianças: de acordo com o

rumo que nosso pensamento toma, temos a impressão de que “está ficando quente” ou de que

“está ficando frio”; o que determina essa sensação parece ser uma ressonância ou dissonância

que sentimos entre ideias das quais nos aproximamos e o felt meaning que guia o processo.

Assim, o desenvolvimento intuitivo dos processos cognitivos não se realiza como um projeto,

ou como uma progressão através de etapas pré-estabelecidas. É um processo inventivo,

imprevisível, cujo fim não se pode prever com clareza.

Ao reconhecermos os felt meanings como uma forma de conhecimento pré-conceitual

e experiencial que está na fonte de todo ato cognitivo, somos obrigados a reconhecer sua

participação também nos processos de aprendizagem. Entendendo a aprendizagem como uma

forma muito particular de criação, e não simplesmente como o acúmulo de informações

acerca de determinado assunto, não é possível, simplesmente, suprimir sua dimensão intuitiva

e dinâmica. O aprendizado de algo novo mobiliza a dimensão intuitiva da cognição, atingindo

o aprendiz em toda sua inteireza. Este fica absolutamente envolvido com o assunto em

questão, não só em termos intelectuais, mas também afetivos e corporais. Podemos nos dar

conta de experiências desse tipo nas mais diversas situações de aprendizagem: durante uma

leitura, quando uma ideia nova nos é apresentada e parece-nos possuir qualquer coisa de

especial, de vibrante, impelindo-nos a acompanhá-la; em um estudo em grupo, no qual todos

os participantes parecem contaminados por determinado aspecto de um texto, compartilhando

a alegria de sua exploração e enfrentando em conjunto suas dificuldades; em uma aula,

quando somos, individual ou coletivamente, tocados por um tema que nos sensibiliza e

envolve em sua discussão; ou quando um problema se coloca de uma forma tal que nos

absorve completamente até que consigamos resolvê-lo.

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O modo como nosso pensamento se desenvolve em um processo intuitivo de

aprendizagem assume características particulares. Uma aprendizagem desse tipo não é uma

mera aquisição de um conhecimento fornecido por outrem, mas um processo inventivo, em

que o aprendizado do que quer que seja, mesmo que da formulação matemática mais antiga

do mundo, assume um caráter de descoberta. O aprendiz, tomado por uma questão inicial, é

levado a explorá-la de maneira ativa, a compreendê-la e dar-lhe consistência de uma maneira

nova e dinâmica. Por isso, podemos dizer que o que marca um processo intuitivo de

aprendizagem é um desenvolvimento muito próprio do pensamento, inventivo, e não

reprodutor. Arriscamo-nos, mesmo, a dizer que há algo de estético numa aprendizagem desse

tipo - ela é uma experiência, como enfatizaria John Dewey (1934/2010).

Se nos voltamos para nossa experiência, encontramos, no início dos processos de

aprendizagem, uma sensação, um felt meaning característico, que lhe serve de fio condutor.

Tomemos um exemplo simples e bastante corriqueiro, como o da aprendizagem de algum fato

científico. Podemos dizer que um aprendiz que entra em contato, pela primeira vez, com uma

descoberta científica, refaz ele mesmo o caminho dessa descoberta se captura a ideia principal

por trás dela de maneira intuitiva. É assim que, antes mesmo de ser capaz de explicar para

outra pessoa o que aprendeu, ele capta o novo conhecimento em uma forma geral, viva, ainda

um tanto vaga para ser expressa em palavras, mas que o captura e o faz querer seguir em

frente no aprofundamento de sua compreensão. Podemos dizer que o que ele captura é um felt

meaning inicial, que caracteriza a ideia que está em processo de descobrir. Inicialmente, a

ideia aparece em uma forma vaga e pouco nítida, o que não significa que não possua

especificidade. Pelo contrário, a sensação que temos de um problema ou de uma ideia nova é

sempre muito singular para cada caso. A impressão inicial peculiar deixada em uma criança

pela descoberta da infinitude do universo certamente não é a mesma causada pela

compreensão do que seja uma função matemática, embora ambas sejam experimentadas de

modo intenso e marcante.

Dessa maneira, se há uma dimensão intuitiva do conhecimento, que é sentida e

incorporada, esta não pode ser negligenciada ou ignorada pelas práticas pedagógicas.

Desejamos defender a importância dessa dimensão de fluxo contínuo e concreto de

sentimentos e sensações que atravessam os processos de aprendizagem, apontando sua imensa

importância na criação de sentido para tais processos e na produção de engajamento neles.

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5.1.1 Dimensão intuitiva da cognição e pensamento produtivo

Como vimos no capítulo 2, o caráter sensível da aprendizagem intuitiva foi

reconhecido, também, em um sentido um pouco diferente, pela teoria gestaltista. Max

Wertheimer (1945/1982), um dos psicólogos gestaltistas pioneiros, dedicou parte de sua obra

à análise do que chamou de pensamento produtivo. Sua posição sobre o tema buscava,

principalmente, fazer frente ao behaviorismo, cujas ideias eram muito influentes em seu

tempo (e cuja herança teórica faz-se sentir até os dias de hoje). Para os behavioristas, a

aprendizagem explicava-se por associação e condicionamento, seguindo leis relativamente

simples. Wertheimer discordava do modelo de aprendizagem proposto pelos adeptos do

associacionismo, por considerá-lo mecânico e independente de atos genuinamente

inteligentes. Assim, propôs que tal modelo lidava com uma forma específica de pensamento, a

que chamou de reprodutivo, e contra o qual apresentou uma alternativa, o pensamento

produtivo.

O problema de Wertheimer nunca foi, diretamente, aquele da intuição. Sua principal

questão era a defesa do pensamento inteligente frente ao pensamento mecânico das teorias

behavioristas e associacionistas. Para isso, trouxe uma nova concepção do pensamento, mas

esta concepção, em vez de dobrar-se aos princípios da associação, tinha como base as leis da

forma. Isso quer dizer que, em última análise, Wertheimer forneceu uma análise estrutural do

pensamento e da aprendizagem produtivos, mostrando que estes seguiam alguns princípios

básicos, como os do equilíbrio, da simplicidade e da simetria, princípios que buscam resolver

uma tensão dada no campo.

Entretanto, embora este não fosse seu foco, identificamos no conceito de pensamento

produtivo de Wertheimer (1945/1982) uma semelhança com nossa discussão presente. Isso

porque, diferentemente de outras teorias psicológicas, no gestaltismo a inteligência não é algo

que se explique unicamente como uma capacidade intelectual, como algo que se dá em um

nível apenas conceitual ou “racional”. Como aponta Guillaume (1937/1966):

Quando se consultam, sobre a questão da inteligência, certas obras clássicas, encontram-se nelas duas classes de dados bastante díspares. Do ponto de vista teórico, estamos em presença de um capítulo que parece extraído de um tratado de lógica, e que não tem ligação direta com os capítulos sobre a percepção, sobre a memória, etc. Os conceitos e os problemas mudaram; parece que se aborda um problema completamente novo, e numa linguagem nova. Do ponto de vista prático, a obra oferece uma contribuição experimental, sob forma de testes destinados à medição dos níveis e das aptidões, provas frequentemente engenhosas, mas escolhidas ao acaso, sem princípio diretor, sem relação bem definida com a parte teórica desse estudo. (GUILLAUME, 1937/1966, p.140)

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O que o autor aponta é que a inteligência é com frequência associada à capacidade

lógica do pensamento, ao seu aspecto abstrato e conceitual. Assim, de modo geral, todo ato

inteligente se caracteriza pela compreensão da relação entre os elementos dados e pela

invenção do que se deve fazer para, a partir dessas relações, chegar a um fim pretendido

(VIAUD, 1964). Mas Guillaume (1937/1966) chama atenção para a distinção essencial entre a

teoria gestaltista da inteligência e outras teorias psicológicas: nessas, tal compreensão de

relações resultaria do tratamento dos dados iniciais pela inteligência em um nível superior de

pensamento, que os transformaria em materiais intelectuais. Mas para o gestaltismo, há uma

impossibilidade em se pensar desta forma, pois, segundo essa teoria, ao percebermos os

termos, já o percebemos em uma relação; eles não são percebidos absolutamente, não são

dissociados para serem relacionados por qualquer forma de processo superior. A situação já se

apresenta estruturada por relações primitivas, que submetem os termos ao todo. Os traços

essenciais da inteligência são a mobilidade da organização e a possibilidade de reestruturação

da situação dada, capazes de revelar novos objetos e novas relações: “Em outras palavras, não

há uma percepção ‘dada’ de uma vez por todas, dos elementos de um problema, e depois,

consecutivas a essa percepção, ‘operações intelectuais’ pelas quais certas consequências

seriam tiradas desse dado” (GUILLAUME, 1937/1966, p.145).

O autor classifica essa inteligência como uma intuição, pois nela está envolvida uma

reorganização da percepção. Segundo o autor, isso se aplica não somente à inteligência

prática, mas também aos atos intelectuais superiores, ao raciocínio e ao que chama de

invenção racional. A palavra que Guillaume usa para se referir à intuição é, no entanto, o

substantivo alemão Einsicht, que poderia ser traduzido, também, como insight. Em outro

trecho de seu livro, traduz a mesma palavra como iluminação repentina. De fato, alguns

pesquisadores da intuição muitas vezes a tomam como um sinônimo do insight gestaltista. A

concepção com que trabalhamos aqui, entretanto, vai além do momento do insight. Podemos

dizer que o insight pode participar da intuição, mas não a esgota. O insight, em seu sentido

original, está relacionado com a reorganização perceptiva do campo, representando o

momento em que o problema é solucionado. Se a única contribuição de Wertheimer

(1945/1982) para nosso trabalho se resumisse ao fato de ele apontar que o pensamento

produtivo é marcado pelo insight, no sentido de que uma resposta surge de maneira súbita

para o sujeito, muito pouco tal autor teria a acrescentar a nosso estudo.

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Contudo, o pensamento produtivo de Wertheimer revela algo do funcionamento

intuitivo de nossa cognição que está para além da simples constatação do insight, esse

momento de “Eureka!” que tantas vezes dominou os estudos da intuição como se englobasse

tudo que interessa sobre ela. E isso se deve ao fato de que essa forma de pensamento, como

enfatiza o próprio autor, é uma forma de pensamento sensível. Quando usa este termo,

Wertheimer deseja se referir, principalmente, ao caráter perceptivo da compreensão, algo que

se revela claramente na experiência do insight: a situação se reconfigura, o sujeito percebe o

problema, o que significa não só que chegou a um resultado, mas que compreendeu

genuinamente a situação problemática. O insight não se resume, aqui, a alcançar uma solução,

mas envolve, antes de tudo, a colocação de um problema.

Acreditamos que a descrição dos processos produtivos do pensamento por Wertheimer

parece conter mais compreensão sensível do que geralmente se reconhece. Referimo-nos à

percepção de exigência e ao sentido de direção que esta impõe ao processo. O autor reconhece

não somente o insight, mas a presença de uma sensação que parece ser essencial para que o

pensamento o alcance, algo que, como o próprio Wertheimer descreve, responde pelo caráter

vital, vigoroso e criativo do processo. Quando o pensamento segue apenas a aplicação de

regras pré-estabelecidas, esse caráter desaparece, levando a aplicação de operações corretas,

mas que são experimentadas como passos sem sentido intrínseco. O pensamento produtivo,

por sua vez, desenvolve-se de maneira consistente, criando, como apontamos no capítulo 2,

hipóteses, suposições ou expectativas sensíveis que levam o indivíduo a avançar na resolução

de um problema. Assim, voltamos a afirmar aqui que Wertheimer parece preocupado com o

processo que se coloca em movimento quando um pensamento se desenvolve, e não somente

com o modo de surgimento de uma solução. Se seu modo de entender a diferença que marca

tal desenvolvimento em processos produtivos e reprodutivos leva-o a identificar os primeiros

como processos inteligentes e os segundos como processos mecânicos, essa inteligência que

atribui ao pensamento produtivo é, entretanto, sensível. Ela marca uma indissociabilidade

entre intuição e intelecto, algo que ganha destaque no momento do insight, quando a

compreensão atrela-se a uma nova maneira de ver o problema, de percebê-lo onde ele surge.

Mas todo o processo parece ser marcado por tal sensibilidade, o que, para nós, demonstra o

envolvimento da dimensão intuitiva da cognição no pensamento produtivo, enquanto os

processos reprodutivos parecem se desenvolver com um abafamento dela.

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5.2 Diferentes modos de aprender

No terceiro capítulo, destacamos que a intuição não é um modo de funcionamento

cognitivo que ocorre apenas em ocasiões específicas. Colocamo-nos contra teorias que

tendiam a compreendê-la numa relação de exclusão ou de inferioridade com o modo cognitivo

intelectual, analítico ou lógico. Em vez disso, propusemos que a intuição comparece em nossa

cognição como uma de suas dimensões, estando sempre presente em todo ato cognitivo. Por

essa mesma razão, dispensamos também a difundida ideia de que algumas pessoas tenderiam

a ser mais intuitivas do que outras – que seriam, por sua vez, mais analíticas. Isso não

significa afirmar que a dimensão intuitiva da cognição está sempre em pé de igualdade com a

dimensão intelectual. Sustentamos que há entre ambas uma constante oscilação, de modo que,

em todos nós, em diferentes momentos, uma dessas dimensões pode intervir de modo mais

proeminente que a outra. Retomando um exemplo antes dado, o de termos uma ideia para um

novo trabalho, vemos que a dimensão intuitiva parece, inicialmente, projetar-se em nossa

experiência de maneira muito evidente, enquanto a dimensão intelectual perde em

sobressalência. Algum tempo depois, entretanto, tal dimensão intelectual pode assumir um

papel mais evidente em nossa experiência, quando trabalhamos para dar corpo a nossa ideia.

Isso não significa que a dimensão intuitiva se anule; como já vimos, ao desenvolvermos uma

ideia, precisamos continuar atentos a ela para que não percamos o rumo de nosso pensamento.

Estabelece-se, assim, uma relação dinâmica e sujeita a constantes variações entre ambas as

dimensões.

Nas práticas de ensino e aprendizagem, seria, portanto, de se esperar que essas duas

dimensões da cognição trabalhassem também em parceria, de acordo com a dinâmica que

apontamos. Porém, o que se observa com frequência é que as práticas de ensino escolares

raramente dão espaço à dimensão intuitiva do pensamento. De fato, há um pressuposto muito

disseminado no campo da educação de que o intelecto, caracterizado pelo raciocínio lógico-

analítico, é o domínio mais apropriado, senão o único, para o pensamento e a aprendizagem.

O raciocínio lógico-analítico é, então, valorizado, em detrimento da intuição. A grande

relevância que teorias do conhecimento como a de Jean Piaget recebe em contextos

educacionais pode ser tomada como uma evidência disso. Como vimos, Piaget (1977;

1964/2005) afirma a lógica como fim último do desenvolvimento. A intuição, em sua teoria,

nada mais é do que um modo específico de lidar com problemas que é característico de

determinada fase do desenvolvimento, o qual deve ser superado para que se alcance um nível

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de raciocínio lógico e, portanto, superior. A organização das práticas de ensino escolares

reflete muito bem o pensamento piagetiano. Sendo uma forma rudimentar de se relacionar

com o conhecimento, todo esforço em direção a uma forma intuitiva de pensamento é, nesse

contexto, apenas passageiro. Uma vez que, de acordo com essa visão, a aprendizagem não

pode se adiantar ao desenvolvimento, os anos escolares iniciais são repletos de atividades

concretas e perceptivamente organizadas, de modo que a criança, que, segundo a teoria de

Piaget, até por volta dos seis ou sete anos ainda exibe um modo intuitivo – e primitivo – de

pensamento, possa dar conta delas. Mas, assim que essa fase é superada e a criança passa a

dar indícios de compreensão lógica do mundo, a intuição é deixada para trás nos métodos de

ensino, e o foco volta-se, então, para o desenvolvimento do raciocínio analítico.

Assim, diversos fatores, como alguns hábitos, certas práticas pedagógicas ou mesmo

algumas posturas assumidas pelo próprio aprendiz, parecem afastar a aprendizagem de um

curso intuitivo, fazendo-a operar de modo menos sensível. Nesse sentido, precisamos,

novamente, dar destaque ao trabalho de Max Wertheimer (1945/1982), cujas observações o

fizeram afirmar a existência de dois modos distintos de aprendizagem: um produtivo e

sensível e outro reprodutivo e mecânico. Para apresentá-los, descreveremos um exemplo

fornecido pelo autor, no qual relata sua experiência como visitante por alguns dias em uma

sala de aula, nos permitindo examinar, com mais detalhes, as principais diferenças entre duas

formas de aprendizagem: produtiva e reprodutiva. Ao longo de sua visita, Wertheimer

acompanhou o modo como um professor ensinou seus alunos a encontrar a área de um

paralelogramo. O autor relata que, antes de iniciar tal lição, o professor, primeiro, lembrou os

alunos a última lição aprendida: como medir a área de um retângulo. Os alunos se recordaram,

prontamente, que a área do retângulo era o produto de seus dois lados e foram instruídos a

resolver alguns exercícios sobre aquele conteúdo. Em seguida, o professor desenhou um

paralelogramo no quadro e explicou aos alunos que aquela nova forma geométrica era um

quadrilátero plano, cujos lados opostos são iguais e paralelos. Um aluno, perguntou, então, ao

professor, o tamanho dos lados da figura desenhada e, obtendo os valores de 11 e 5 polegadas,

disse a ele que a área de tal figura seria, então, 11x5 polegadas quadradas. Mas o professor

responde ao aluno que sua afirmação está incorreta e apresenta uma nova explicação.

Puxando uma perpendicular a partir do vértice superior esquerdo e outra a partir do vértice

superior direito da figura desenhada no quadro, e depois ampliando a linha de base para a

direita, ele marca dois novos pontos, e e f.

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Com a ajuda do desenho, estabeleceu, então, a equivalência entre certas linhas e

ângulos e a congruência dos pares de triângulos, referindo-se, para isso, a teoremas,

postulados ou axiomas anteriormente aprendidos, sobre os quais se baseia a equivalência ou

congruência em cada caso. Em seguida, demonstrou, finalmente, que a área do paralelogramo

era igual ao produto da base vezes a altura. Os alunos fizeram, depois, exercícios em casa para

aprenderem bem o que foi ensinado, e os resolveram sem problema.

Na aula seguinte, um aluno resolveu no quadro um problema semelhante e encontrou

facilmente a área do paralelogramo. Mas Wertheimer relata ter se sentido, então, incomodado

e afligido, indagando-se sobre o que os alunos teriam aprendido, se eles haviam, de fato,

pensado, se haviam captado a questão colocada pelo professor ou se estariam apenas

repetindo automaticamente o que o professor lhes mostrou. Resolveu perguntar ao professor

se poderia colocar uma questão para a turma e, obtendo uma resposta positiva, foi ao quadro e

desenhou a seguinte figura:

As reações variaram. A maioria dos alunos pareceu ficar surpresa e alguns disseram ao

professor que ainda não tinham visto aquela figura. Outros a desenharam e tentaram puxar as

Figura 5.1

Figura 5.2

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perpendiculares e a linha extensora da base que haviam sido usadas antes, mas estranharam o

resultado. Outros, ainda, pareceram não se incomodar muito com a nova figura, apenas

escrevendo abaixo dela que a área era igual à base vezes a altura – o que Wertheimer

percebeu ser uma suposição completamente insensível, apesar de correta, quando pediu que

tais alunos demonstrassem a afirmação e eles não conseguiram fazê-lo. Mas Wertheimer

descreve, também, a reação de alguns poucos alunos, completamente diferente das anteriores.

Ele relata que estes sorriam e, depois, desenhavam as seguintes linhas:

Ou viravam o papel em 45º e faziam os seguintes traços:

Figura 5.3

Figura 5.4

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Wertheimer aponta ainda outras reações que encontrou quando a figura mudava para a

seguinte, ainda mais próxima da originalmente apresentada pelo professor:

Notou, então, que algumas crianças faziam traços enquanto repetiam as palavras do

professor na primeira aula sobre paralelogramos: “uma perpendicular do vértice esquerdo,

outra do direito, e depois estender a linha de base para a direita” e chegavam à figura acima.

Mas algumas crianças com menos de seis anos, que nunca tinham estudado geometria,

depois de aprender como achar a área do retângulo, produziam soluções originais para a área

do paralelogramo sem serem ensinadas sobre o que fazer. Outras, depois de aprender a área

do paralelogramo, conseguiam resolver a área do trapezóide depois de alguma deliberação.

Com todas as formas, era possível resolver o problema por uma mudança sensível da figura –

procedimento que o autor nomeou como resposta de tipo A – ou pela aplicação de operações

aprendidas de maneira automática e sem sucesso – procedimento que ficou conhecido como

resposta de tipo B. Nas respostas de tipo A, elas faziam apenas mudanças na posição dos

triângulos e descobriam a área; não tentavam aplicar exatamente o mesmo passo a passo

ensinado para a área dos paralelogramos.

De acordo com Wertheimer (1945/1982), as respostas de tipo A são exemplos do

verdadeiro pensamento produtivo, que lida com problemas de maneira estrutural e sensível,

de modo que as relações que se estabelecem entre suas partes e o todo não são, de maneira

alguma, arbitrárias, mas seguem princípios estruturais e dinâmicos específicos. O autor afirma

que o desenvolvimento de um pensamento produtivo caminha sempre na direção de mudar a

situação inicialmente dada na direção de melhoras estruturais. Para isso, deve-se encarar e

tratar suas lacunas, regiões-problema e perturbações de maneira estrutural, buscando-se

relações internas entre elas e a situação dada como um todo, assim como em relação às suas

várias partes. Ao tratar as relações entre as perturbações e o todo de acordo com seu sentido

dinâmico, o sujeito percebe as mudanças que estão implicadas e que devem ser operadas para

que o pensamento se desenvolva e encontre uma estruturação mais estável.

Figura 5.5

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Uma série de fatores parece contribuir para que o pensamento siga um curso produtivo

ou reprodutivo. O exemplo que apresentamos de Wertheimer deixa claro, por exemplo, que

um método de ensino pode estimular uma forma de lidar com problemas que não se baseia em

qualquer compreensão do problema, apenas na aplicação de regras aprendidas. Os casos de

pensamento reprodutivo apresentados por Wertheimer representam um caso extremo do que

apontamos aqui como inibição da dimensão intuitiva do pensamento, chegando ao ponto

mesmo desta encontrar-se praticamente anulada. Essa não é uma condição natural do

pensamento, mas uma forma de lidar com o conhecimento que se constrói ao longo do tempo.

Sem dúvida, muitos processos de aprendizagem sufocam o caráter intuitivo que naturalmente

os acompanha. Com a pressão do tempo e dos currículos escolares, são estabelecidos tempos-

limite e metas a alcançar, que tornam improvável o desenvolvimento de processos de

aprendizagem atentos à dimensão intuitiva de tal experiência. O conhecimento é apresentado

em sua forma última, não há caminho a percorrer, apenas passos pré-estabelecidos a serem

seguidos para que se encontrem soluções já esperadas. A percepção tem sua participação

reduzida: não há que se buscar as relações, elas chegam prontas e devem ser compreendidas a

posteriori, devem ser aceitas e “aprendidas” – o que significa, no fundo, decoradas e

internalizadas. A aprendizagem se torna um processo sem sentido; ensinam-se os fatos finais,

não se ensina a aprender ou a pensar. Como consequência, a aprendizagem é experimentada

como monótona e, muitas vezes, desestimula o aprendiz.

Em oposição a isso, a aprendizagem que dá espaço à dimensão intuitiva é geralmente

acompanhada de um sentimento de satisfação e alegria. O aprendiz parece “cativado” pelo

processo, e o persegue até sua conclusão, não por ser esta sua obrigação, mas por sentir-se

impelido a fazê-lo devido ao próprio modo como o problema se apresenta. Nesse caso, temos

um problema que é apreendido em sua totalidade de forma sensível e, dessa forma, é

experimentado pelo aluno como uma convocação. O problema apresenta um sentido de

tendência, de direção, e solicita o pensamento, envolvendo o aluno por completo.

A dimensão intuitiva da cognição pode participar mais ou menos ativamente do

aprender, o que equivale a afirmar a existência de processos de aprendizagem mais ou menos

intuitivos. Desse modo, poderíamos considerar dois extremos da aprendizagem, de acordo

com a maior ou menor participação da intuição em seu desdobramento. Uma aprendizagem de

caráter fortemente intuitivo se diferenciaria, então, de um processo de aprendizagem no qual a

atividade da intuição está praticamente ausente. Tal distinção se faz sentir concretamente na

forma como o pensamento se desenvolve ao longo do processo de aprender. Um pensamento

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reprodutivo, segundo os termos de Wertheimer, leva à aprendizagem pela mera transmissão e

reprodução de informação. Quando, pelo contrário, o pensamento é produtivo, a

aprendizagem assume um caráter de descoberta. Quando usamos este termo, concordamos

com o autor quanto a seu sentido: uma descoberta não significa apenas chegar a um resultado

que antes não era conhecido ou apenas responder a uma questão; significa compreender uma

situação de uma maneira nova e mais profunda, alargando o campo inicialmente dado e

permitindo que outras possibilidades sejam vistas.

Mais uma vez, não podemos deixar de lembrar que a concepção de pensamento

produtivo do gestaltismo possui algumas limitações em relação ao fenômeno investigado por

nossa tese. A principal delas reside em sempre nos reconduzir às leis da forma. Estas seriam,

no fim das contas, o princípio explicativo regulador de toda forma de pensamento produtivo,

e, consequentemente, da aprendizagem produtiva. Para os autores gestaltistas, toda invenção

submete-se a essas leis, às quais, o tempo todo, o pensamento parece ir se conformando. O

pensamento produtivo é inteligente e sensível porque supõe mudanças estruturais que se dão

na direção de uma conformação mais equilibrada, mais simples, dos elementos em jogo; seu

modo de solucionar problemas tem sentido porque respondem a reconfigurações das relações

de figura e fundo que atendem a uma necessidade de melhoria estrutural. Assim, precisamos

deixar claro que nossa noção de dimensão intuitiva da cognição não é totalmente equivalente

à concepção de pensamento produtivo gestaltista. Quando a ela recorremos, é porque

encontramos nela ressonâncias com o processo intuitivo que aqui investigamos, mas isso não

significa adotar a perspectiva das leis da forma para explicá-lo.

5.3 Percepção e aprendizagem intuitiva

Há uma última contribuição do gestaltismo que nos parece importante destacar, a qual

já apresentamos, em outros contextos, nos capítulos anteriores, mas que ganham uma

importância especial em nossa discussão com a educação. Trata-se da natureza perceptiva

atribuída à intuição. Embora consideremos que tal característica seja, muitas vezes,

sobrevalorizada pelos teóricos gestaltistas, achamos, ao mesmo tempo, que o destaque dado à

percepção em discussões sobre o pensamento produtivo e sobre a intuição contribui para

chamar atenção para um aspecto pouco discutido da dimensão intuitiva da cognição.

Vimos que Wertheimer (1945/1982) trata as operações do pensamento de maneira

muito semelhante às operações perceptivas. As mesmas leis que regem as segundas regem

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também as primeiras; o termo “sensível” é empregado o tempo inteiro para se referir ao

aspecto produtivo do pensamento, estabelecendo uma conexão íntima entre o pensamento e os

sentidos. Também encontramos, com frequência, o uso de vocabulário ligado ao campo

semântico da visão em suas discussões e descrições de processos produtivos, como no trecho

a seguir, em que o autor narra sua própria experiência de pensamento ao tentar encontrar um

modo de estabelecer uma relação constante entre um ângulo de 360º e os ângulos internos de

um polígono qualquer:

A ideia de que a soma dos [ângulos] δ’s é 360º veio à existência não como uma proposição hipotética, uma afirmação geral ou uma crença, mas como uma ‘intuição’: vendo em uma visão estruturada da figura o parentesco entre o fechamento e todos os δ’s. (...) Isto foi compreendido em uma visão (...) (WERTHEIMER, 1945/1982, p.196-197, grifos nossos).

Na passagem selecionada, o autor não se refere à visualização de um material concreto

que se punha em frente a ele, mas ao aparecimento de uma solução em forma visual de um

problema sobre o qual vinha refletindo há algumas semanas, sempre com a sensação de que

estava próximo a sua compreensão, mas sem ainda alcançá-la. É interessante notar que, nesse

momento, Wertheimer recorre ao termo intuição para se referir a uma primeira reestruturação

e compreensão do problema que vinha enfrentando. Vemos aqui sua conexão com um

processo que envolve uma apreensão nova da totalidade da situação problemática, e

evidencia-se seu caráter sensível.

Vimos também, no terceiro capítulo, que em sua distinção entre intuição e intelecto,

Arnheim (2004) coloca a intuição do lado da percepção e o intelecto do lado do pensamento,

atribuindo à primeira um funcionamento por processos de campo e ao segundo um

funcionamento sequencial, por inferência de cadeias lógicas. Entretanto, Arnheim também

afirma que não há qualquer superioridade do intelecto sobre a intuição. Chega mesmo a

afirmar que certo tipo de pensamento já pode ser encontrado mesmo no nível perceptivo.

Submete, então, o pensamento às mesmas leis da percepção e atribui à percepção operações

que, tradicionalmente, são atribuídas apenas ao pensamento, como a percepção da

generalidade, e não somente de propriedades isoladas dos objetos. Assim, o autor amplia a

concepção clássica de cognição, fazendo-a se expandir de modo a acomodar a percepção

como parte dela (ARNHEIM, 1997).

Desse modo, encontramos no gestaltismo a afirmação de que a aprendizagem

produtiva, para a qual o pensamento produtivo serve de base, supõe não só uma forma

intelectual de pensamento, mas também uma forma perceptiva. Arnheim (2004) defende,

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assim, que o aguçamento da percepção poderia levar a modos mais intuitivos de

aprendizagem. Demonstra, com um exemplo, que duas formas de se ensinar e aprender

podem ser produzidas, de acordo com as diferentes práticas educativas adotadas. Tomando o

caso do ensino da história da Sicília como modelo, o autor mostra que uma forma de abordar

tal tema baseia-se na apresentação em sequência de dados relativos a fatos marcantes da

história daquele local, assim como de informações sobre características da população, do

relevo e da economia local. Poder-se-ia, ainda, enumerar as forças militares que, uma após a

outra, dominaram a região. Deste modo, algumas relações poderiam ser estabelecidas entre

tais dados e determinados fatos históricos concretos. Outra maneira de ensinar não

apresentaria uma série de informações, mas se utilizaria de algum dispositivo que pudesse

servir como um “fio condutor” capaz de unificar e organizar tais fatos e relações de maneira

mais orgânica, de modo a favorecer uma compreensão mais intuitiva dos dados abordados.

Esse dispositivo poderia muito bem ser um mapa. Assim, a partir do confronto entre dois

mapas, uma série de contradições históricas poderia ser mais bem compreendida. O primeiro

mapa apresentaria a ilha da Sicília como parte de um mapa da Itália, no qual representaria um

mero apêndice deste país:

Sendo a parte da Itália mais distante da Europa Central, à qual a Itália está ligada cultural, política e economicamente, a ilha mostrada nesse mapa dá à intuição dos alunos uma imagem inesquecível, ligada prontamente à negligência e isolamento a que a Sicília tem sido submetida pela "verdadeira" Itália e seu governo. (ARNHEIM, 2004, pp.22-23)

Em seguida, uma segunda imagem seria apresentada, trazendo insights importantes

sobre a história daquele local e sua situação atual:

Há, porém, outra imagem. Esta se concentra no Mediterrâneo, a região de origem da cultura ocidental, a movimentada bacia formada pelo Oriente e o Ocidente, o Islã e a Cristandade, o Norte Europeu e o Sul da África. Este segundo mapa também mostra a Sicília, mas desta vez não como um apêndice insignificante. Pelo contrário, agora está localizada perto do centro do contexto cultural. Quando passam do primeiro para o segundo mapa, os estudantes sentem o que, na psicologia da solução de problemas, se chama reestruturação de uma situação visual. A ilha passa de sua posição inferior nos limites do continente europeu para o próprio centro de todo o mundo ocidental, geograficamente qualificada para ser a sede de seu governo. E sob o impacto desta revelação intuitiva, professor e alunos podem então se lembrar de que, durante uns poucos anos muito importantes, por volta de 1200, Palermo foi realmente a capital do Ocidente, o trono do imperador Frederico II, este gênio cosmopolita que falava todas as línguas e reunia, em sua mente, o espírito do Norte e do Sul, o Cristianismo e o Islã. Nenhum aluno razoavelmente sensível deixará de perceber o trágico contraste da história da Sicília, entre o que a ilha parecia predestinada a ser e aquilo em que se tornou quando o centro do mundo ocidental se

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deslocou do Mediterrâneo para o Norte da Europa. Esta apreensão intuitiva da estrutura geográfica fará a história adquirir vida (...). (ARNHEIM, 2004, pp.22-23)

Neste segundo caso, o mapa traz ao processo de aprendizagem um caráter dinâmico,

vívido, proporcionando aos alunos uma assimilação mais efetiva daquele conteúdo do que o

poderia fazer a mera enumeração e combinação de fatos e relações isolados, característicos do

primeiro modo de apresentar a história daquela região.

Assim, temos novamente a afirmação de que a aprendizagem baseada em processos

produtivos não se estrutura a partir de cadeias de elementos que se somam em sequência para,

ao fim, estruturar o conhecimento; mais uma vez, do mesmo modo que Wertheimer

(1945/1982), Arnheim reconhece os processos de campo como a base da aprendizagem e

afirma que a percepção das funções das partes em sua relação com o todo é essencial para que

dada situação seja compreendida e reestruturada em uma conformação mais equilibrada. De

fato, o problema do papel da percepção na aprendizagem está intimamente relacionado com a

questão de como as práticas de ensino são estruturadas na escola, uma vez que o

desenvolvimento da sensibilidade perceptiva poderia ser utilizado como um meio para

produzir formas mais sensíveis de lidar com diversos assuntos, facilitando a apreensão dos

aspectos relevantes de dadas situações e problemas.

Arnheim (1997a) afirma, no entanto, que a percepção nunca foi corretamente

apreciada pelas instituições educacionais. Aponta como uma evidência a favor de seu

argumento a importância dada à arte nos currículos escolares. Geralmente, a presença da arte

nos currículos é justificada em termos de ampliação de horizontes culturais e da busca por

auto-expressão. Mas Arnheim mostra que as artes – seja a pintura, a escultura, o desenho ou o

cinema – suscitam questões cognitivas, e seu ensino, antes de qualquer coisa, possui função

prática. Ao lidar com práticas artísticas, um aluno se defronta com diversas questões, como:

“de que forma se cria, numa obra de arte, o movimento, a unidade, o equilíbrio?”; ou “como

se expressam, numa pintura, os aspectos característicos de um objeto ou de um evento?”.

Arnheim enfatiza que, até mesmo para as profissões mais técnicas e exatas, o ensino da arte

pode ter grande valor – afinal, não é verdade que a capacidade de visualização tridimensional,

essencial para o trabalho de um engenheiro, por exemplo, é algo que pode ser aprendido com

a prática, digamos, da escultura?

A cisão entre atividade intelectual e os temas vitais que atravessam a arte levam

mesmo a uma fragmentação do próprio pensamento. Para o autor, “Em termos de pensamento

visual, não existe uma separação entre as artes e as ciências, bem como entre o uso das

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imagens e o das palavras” (ARNHEIM, 2004, p.154). Ele defende, por exemplo, que a escrita

de qualidade pode ser auxiliada por um bom manejo das imagens, seja em literatura ou nas

ciências. Lamenta-se, por exemplo, que os cientistas não escrevam mais como Einstein, Freud

ou William James, atribuindo esse fato, entre outras razões, a essa ruptura entre pensamento e

percepção que se instala desde cedo nas práticas educacionais.

O autor defende que os professores devem aprender a fazer melhor uso dos recursos

visuais, isto é, devem aprender a desenvolver slides, diagramas, vídeos, etc., que melhor

apresentem as propriedades estruturais daquilo que se pretende ensinar. Mostra, por exemplo,

que em uma aula de química, a utilização de um tubo em forma de Y é muito mais

interessante do que a de um monotubo vertical para explicar a produção da amônia, uma vez

que torna a fusão entre hidrogênio e nitrogênio mais evidente, aumentando a probabilidade de

haver uma compreensão sensível de tal reação química (Figura 5.6 abaixo).

Figura 5.6 Ilustração da maneira mais intuitiva de apresentação de uma reação química (ARNHEIM, 2004)

Arnheim insiste, assim, na necessidade de se cultivar o pensamento visual em todas as

áreas. Alerta que não lhe dar o devido valor em determinado campo é algo que o ameaça em

todos os campos. É preciso, então, dar-lhe valor de maneira integral, o que implicaria numa

mudança de atitude em todo o ensino. Para ele, a intuição, longe de ser algo impossível de ser

ensinado, com que nascemos ou não nascemos, pode ser sensibilizada por práticas de ensino

adequadas a este propósito.

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A importância que Arnheim dá à percepção visual não implica que a percepção através

de outros sentidos não seja valorizada pelo autor como importante para a aprendizagem. A

primazia que concede à visão está relacionada com a capacidade desta de fornecer uma

apreensão imediata do todo, o que facilita a captura global da estrutura de um problema.

Porém, em alguns textos, o autor reconhece que sentidos como o tato e a audição, apesar de

levarem mais tempo para apreenderem e organizarem os componentes da percepção

(operando de maneira bem menos imediata que a visão), não são destituídos do conceito de

gestalt. A diferença entre a visão e os sentidos do tato e da audição seria, na verdade, uma

diferença de grau. Assim, tais sentidos também contribuem para uma apreensão intuitiva do

conhecimento. Isso fica evidente, por exemplo, quando a linguagem trabalha criando imagens

mentais, de modo a facilitar uma apreensão perceptiva de determinado conteúdo.

Além disso, já mostramos a importância da percepção cinestésica no desenvolvimento

da intuição. O pensamento produtivo, segundo Arnheim (1997a), também captura

experiências cinestésicas, por exemplo através dos gestos. Estes indicam qualidades dos

referentes que podem ser apreendidas para além do que as palavras dizem. O gesto retrata

qualidades perceptivas de forma e movimento do pensamento, capturando sua dimensão

dinâmica e intuitiva. Para Arnheim (1997b), a percepção do gesto pode produzir em um

observador efeitos de ressonância corporal, dando lugar a sensações corporais que se referem

à indicações cinestésicas dos esforços e tensões musculares. Embora isso seja muito mais

evidente na experiência com a arte, como por exemplo, em um espetáculo de dança, a

percepção do movimento, de maneira geral, pode reforçar a apreensão de uma ideia intuitiva

através do sentido cinestésico. Estas sensações podem ser suscitadas pela percepção de

qualquer sistema expressivo em qualquer meio (ARNHEIM, 1997b).

O papel da percepção na atividade intuitiva também foi destacado por Petitmengin

(2001)16. Segundo a autora, “a intuição pode falar diferentes linguagens sensoriais”

(PETITMENGIN, 2001, p.269, tradução nossa). A autora chama atenção para o modo como

as metáforas de nossa linguagem cotidiana evidenciam tal fato: quando falamos de uma

experiência intuitiva, geralmente recorremos a metáforas visuais (“tive uma iluminação”; “vi

num flash”), cinestésicas (“eu sinto que”; “tenho um feeling”), auditivas (“algo me diz que”),

etc.. A intuição parece, então, envolver nossos sentidos de maneira contundente. É preciso se

voltar para tais sensações para encontrar o sentido de uma ideia intuitiva, é preciso que nos

voltemos para as qualidades dinâmicas que as atravessam para compreendermos o caráter

16

Cf. seção 4.2 do capítulo anterior.

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geral de uma intuição. Por isso, seja através do uso de imagens, de expressões corporais ou do

uso de metafórico da linguagem, é importante que as práticas educativas dêem espaço para a

percepção no desenvolvimento do pensamento, contribuindo, assim, para um contato maior

com a dimensão intuitiva da aprendizagem.

5.4 O acolhimento da dimensão intuitiva pelas práticas de ensino e aprendizagem

Destacamos, até aqui, que os processos de aprendizagem sempre admitem, pelo menos

potencialmente, um desdobramento intuitivo, uma vez que a dimensão intuitiva participa de

todo processo cognitivo. Assim, o aprender é geralmente marcado por uma dimensão

experiencial sentida, sensível, pré-conceitual, que dá ao processo um sentido de direção e que

possui um grande efeito mobilizador sobre o aprendiz. Apesar disso, as práticas de ensino

parecem se preocupar pouco com essa dimensão da experiência de aprendizagem, focando,

principalmente, em propostas de trabalho que visam desenvolver o raciocínio lógico-analítico

e a aplicação de regras. Assim, a dimensão intuitiva da experiência parece ser sufocada, e

poucas práticas que se voltem para o seu aguçamento costumam ter lugar nos contextos de

ensino e aprendizagem escolares.

Tentamos mostrar que uma educação deste tipo tende a produzir sujeitos incapazes de

pensar por si mesmos, que repetem soluções, em vez de inventá-las, e que se sentem perdidos

diante de novos problemas, novas situações. Tomamos a experiência de observação em sala

de aula de Wertheimer (1945/1982) como um exemplo de tal fato. O autor mostrou que os

métodos de ensino praticados em muitas escolas estimulam uma maneira reprodutiva de

pensar, baseada, principalmente, na produção do que chamou de respostas do tipo B. Os

alunos são estimulados a aprender por repetição de procedimentos cujos fundamentos, muitas

vezes, são axiomas e pressupostos dados por compreendidos. Mas, na verdade, muitas vezes,

mesmo esses fundamentos básicos não fazem sentido, de fato, para o estudante, e tudo o que

ele vem a aprender depois se constrói sobre essa base frágil. É interessante notar que, em

geral, os alunos nem mesmo se dão conta da sua própria falta de compreensão de determinado

tema. Wertheimer chama atenção, por exemplo, para o modo como alguns alunos, diante de

um problema do mesmo tipo daqueles com os quais já haviam trabalhado um pouco antes,

porém apresentado de uma forma sutilmente diferente, nem mesmo conseguiam reconhecer

que já haviam se deparado com questões semelhantes e o tratavam como algo completamente

novo, que ainda não tinham aprendido. Quando Wertheimer apresenta a reação dos alunos,

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vemos que a perplexidade que os toma de assalto não se relaciona com o fato de perceberem

que, na verdade, ainda não haviam compreendido bem o que realmente significava encontrar a

área de um paralelogramo; ficam perplexos porque aquele visitante estava pedindo que

resolvessem algo que nunca tinham visto, que lhes parecia, de fato, um problema

completamente novo. Para aquela nova figura desenhada no quadro, ainda não havia

procedimentos aprendidos, ainda não havia algo que pudessem reproduzir para alcançar um

resultado.

É claro que existem aqueles, na descrição de Wertheimer, cujos rostos se iluminavam

diante do novo problema, e que conseguiam driblar, de algum modo, o pensamento

reprodutivo que lhes havia sido ensinado. Isso demonstra que a apreensão intuitiva de uma

situação pode ocorrer apesar do incentivo de práticas reprodutivas em sala de aula. Mas esses

alunos eram poucos, eram aqueles que conseguiam lidar de forma intuitiva com os problemas

apesar do treinamento que receberam. Para levarmos a cabo um processo de aprendizagem

intuitivo, precisamos ter alguma intimidade com a dimensão intuitiva de nossa experiência.

Isso supõe certa atitude atencional específica, receptiva e aberta, além da disponibilização de

certo tempo, necessário para que uma aprendizagem intuitiva possa se desenvolver.

Mas, no campo da educação, isso nos leva a um problema. Os modos intuitivos de

lidar com o conhecimento parecem, à primeira vista, algo muito difícil de ensinar. Como

mostramos anteriormente, a concepção de intuição mais amplamente disseminada a concebe

como um processo inconsciente, ao qual só temos acesso através de seus resultados. Assim

sendo, como seria possível ensiná-la? A partir desse ponto de vista, restaria admitir a ideia de

que algumas pessoas são mais predispostas a usar sua capacidade intuitiva, o que pode se

tornar evidente pelo modo como determinados alunos lidam com certos problemas, mas isso

independeria de qualquer ação pedagógica prévia, devendo-se a um traço pessoal do

indivíduo.

Entretanto, defendemos aqui a ideia de que a intuição é uma dimensão da experiência

da qual geralmente não nos damos conta, mas isso não significa que só podemos ter acesso a

seus feitos finais. Assim, compreendemos a intuição como pré-refletida e incorporada, como

uma dimensão de nossa experiência que, apesar de não ser sempre facilmente apercebida,

pode vir a ser, de acordo com certos gestos atencionais. Como mostra Petitmengin (2007), ela

pode vir a ser explorada, uma vez que a atenção se volte para a experiência concreta do

sujeito, fixando-se no movimento interno, com contornos indefinidos, que caracteriza a

dimensão intuitiva da experiência. Para nos darmos conta da intuição, é preciso redirecionar a

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atenção do conteúdo da experiência para sua forma. A adoção de uma "atitude de espera"

específica, sensorialmente não determinada, no processo de tomada de consciência, é

essencial. A atenção que está em jogo aqui parece, então, diferir da atenção concentrada e

recognitiva, sendo, em vez disso, panorâmica, periférica, flutuante, holística e lateral. Este

modo de atenção também é descrito como sendo receptivo e não voluntário, pois envolve

atitudes como “permitir-se ser impregnado”, “deixar vir”, “deixar-se ser afetado”.

Obviamente, esta não parece ser uma tarefa simples. Estar atento à dimensão intuitiva

da cognição exige uma saída de nosso modo habitual, prático e pragmático de estar no mundo.

Voltar-se para o que se passa em nossa experiência pode ser uma empreitada muito

trabalhosa. Nos dias atuais, e no campo da educação, principalmente, o desafio parece ainda

maior. Como aponta Larrosa (2004), vivenciamos tempos de total desvalorização da

experiência, o elemento crucial de nosso problema. Larrosa descreve a experiência como

aquilo que nos passa, nos acontece, nos toca. Mas, contemporaneamente, ao lado do excesso

de opinião e de trabalho, o excesso de informação e a falta de tempo marcam a rotina das

pessoas e não têm deixado muito lugar para a experiência. Segundo o autor, “Nunca se

passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara" (LARROSA, 2004, p.154).

Para Larrosa, esse fenômeno se reflete nos aparatos educacionais: marcados pela obsessão

pela informação e pelo saber, estes confundem conhecimento com aquisição e processamento

de informação, e tal aquisição e processamento de informação deve se dar em ritmo

acelerado, para dar conta da enxurrada dela. Larrosa aponta a consequência paradoxal a que

esse estado de coisas leva, pois cada vez passa-se mais tempo na escola, e cada vez mais se

tem menos tempo de aprender. No ensino, o tempo ganha estatuto de mercadoria, passa a ser

considerado um valor, deve ser aproveitado, para que evitemos o risco de nos tornarmos

defasados. Isso torna o contato com a experiência algo muito raro em contextos escolares: "na

escola, o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos e mais curtos. Com o

quê, também em educação, estamos sempre acelerados e nada nos acontece" (LARROSA,

2004, p.158).

O autor aponta que tendemos a nos relacionar com tudo do ponto de vista da ação,

encontrando sempre pretextos para a atividade. Além de ultra-informados, transbordantes de

opinião e superestimulados, também somos cheios de vontade e hiperativos. Estamos sempre

mobilizados, não podemos parar, e, por isso, nada nos passa. Como Petitmengin, o autor

reconhece a importância de uma mudança de atitude para que isso se reverta e a experiência

se torne possível.

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A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2004, p.160)

Assim, entende que o sujeito da experiência é um "território de passagem", uma

"superfície de sensibilidade" onde aquilo que se passa afeta, produz alguns afetos, deixa

vestígios e efeitos. Ele se define, portanto, mais por sua passividade e receptividade do que

por sua atividade. "Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e

passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como

uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura

essencial" (LARROSA, 2004, p.161).

Definitivamente, as práticas que encontramos em contextos de ensino e aprendizagem

escolar raramente deixam espaço para um exercício atencional desse tipo. Mas acreditamos

que, mesmo que isso signifique nadar contra a corrente, práticas acolhedoras da dimensão

intuitiva da aprendizagem podem se desenvolver no cotidiano do ensino. Para reforçar nossa

posição, faremos, a título de exemplo, uma análise de nosso problema em um contexto

educacional específico e hoje muito debatido: o do ensino da leitura e da escrita.

5.4.1 A dimensão intuitiva no ensino e aprendizagem da leitura e da escrita

Diante de toda a discussão precedente, fica em aberto, ainda, a questão de como, nas

práticas de estudo e ensino, disparar processos intuitivos de aprendizagem, como fugir das

práticas reprodutivas e substituí-las por outras mais inventivas e mais abertas à afetação

sensível por novos problemas. Como apontamos no início do capítulo, não é nosso objetivo

propor um método que responda a tal questão. Isso se deve, em parte, a uma forte dúvida

quanto à possibilidade de se estabelecer uma metodologia sistemática para a produção de

aprendizagens intuitivas que não coloque em risco, por sua rigidez intrínseca, a própria

intuição, com seu caráter de imprevisibilidade e criador. Entretanto, não podemos nos furtar à

reflexão sobre o que é possível fazer para dar mais espaço à dimensão intuitiva da cognição

nas salas de aula. Afinal, seguimos com a aposta de que é possível aprender modos mais

intuitivos de lidar com o mundo. Essa aprendizagem da intuição não é algo inventado por nós

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nessa tese, mas um processo que se faz e refaz todos os dias, no contexto das mais diversas

práticas em curso em tantas salas de aula. Acreditamos que será pela observação de tais

práticas que aprenderemos modos de direcionarmos a atenção para a experiência concreta que

abram espaço para a aprendizagem intuitiva. Por essa razão, gostaríamos de fechar esta tese

fazendo este exercício reflexivo – certamente apenas o início de uma longa jornada que nos

espera se quisermos aprofundar a discussão aqui iniciada, de modo a torná-la mais fecunda

para o campo da educação. Encontramos, em uma pesquisa relatada por Kastrup (2008), uma

experiência de ensino e aprendizagem da escrita que parece nos dar algumas indicações de

caminhos possíveis para o desenvolvimento de modos mais intuitivos de conduzir as práticas

educativas. É com o relato desta experiência que trabalharemos adiante.

O ensino escolar da escrita recebe muitas críticas. Como aponta Colello (2012), a

escola, muitas vezes, parece promover um desserviço às práticas de leitura e escrita. A autora

aponta que, ao ingressar na educação formal, a criança geralmente apresenta grande

curiosidade e interesse em relação à linguagem escrita, a qual ainda não domina, mas com a

qual já convive e interage fora do ambiente escolar. As crianças gostam de ouvir histórias

lidas pelos adultos, e também inventam, muitas vezes, suas próprias histórias através de uma

escrita própria, não alfabética, mas que demonstra sua vontade de conquistar esse novo

domínio. Entretanto, Colello aponta um fenômeno interessante: ao longo dos anos escolares, o

interesse e excitação que acompanham as atividades de leitura e escrita nos anos escolares

iniciais parecem ir se perdendo, de modo que muitas crianças e adolescentes passam a

apresentar, mesmo, certa aversão à leitura e à escrita, considerando-as atividades

desestimulantes e monótonas. A que se deve essa mudança? O que se passa nesse tempo que

leva ao abandono do encanto pelas palavras?

Colello (2012) aponta que um dos maiores problemas do ensino da linguagem escrita

na escola deve-se à ênfase técnica e instrumental que o ensino da língua recebe em tal

contexto. A relação com a leitura e a escrita é dominada por uma concepção restrita dessa

forma de linguagem, que a afasta gradativamente do uso efetivo que dela se faz em contextos

extra-escolares. A autora sustenta que quanto maior esse afastamento, menor é a chance de o

aluno estabelecer relações e investir na compreensão do sistema, e toda atividade que envolva

a escrita passa a ser experimentada como um imenso sacrifício por ele.

Essa postura em relação à língua escrita leva a um aprendizado baseado em uma

linguagem artificial e despida de significado para o aluno. As práticas pedagógicas, em vez de

se apropriarem do trabalho de escrita como uma maneira de produzir uma reflexão sobre a

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língua, incitando a ampliação e o ajustamento do dizer, servem para a produção de maneiras

adestradas e bem definidas de escrever, de acordo com padrões excessivamente limitados.

Assim, a escrita escolar torna-se homogênea, como se apenas uma forma dela fosse possível.

Para aprender essa forma de escrever, os alunos são submetidos a práticas de escrita que

podem ser consideradas como um puro exercício, já que tal escrita não adquire qualquer valor

para além daquele contexto limitado em que é produzida. As rotas a se seguir são impostas de

fora, pela figura do professor, a quem toda a escrita escolar se destina, num contexto de tarefa

e prestação de contas, que fixa como e sobre o que escrever (COLELLO, 2012).

Assim, o sentido da atividade de escrita não é intrínseco à própria tarefa, mas se

remete a fatores externos relacionados com o processo de ensino, como a atribuição de uma

nota e a necessidade de passar para a próxima série. Além disso, a escola valoriza uma escrita

objetiva e racional, a serviço do conhecimento, e não da expressão e da criação. Colello

aponta a relação disso com um medo de se “perder tempo” com formas mais livres de escrita

que levem a uma perda do controle do processo de aprendizagem, cuja finalidade principal é a

preparação para o futuro, e não para o presente. Assim, a escola parece desconsiderar as

múltiplas possibilidades do escrever, valorizando o texto científico em oposição ao literário, o

produto do escrever em oposição ao processo, a informação em oposição à reflexão e o

funcional em oposição ao interlocutivo. A dimensão criativa é pensada somente a posteriori,

quando uma perda da espontaneidade imaginativa já se instalou. Assim, somente quando a

língua culta e as regras da escrita estão dominadas é que se pede do aluno que este seja

criativo, quando suas formas de expressão e seus interesses próprios já foram largamente

minados pelas práticas escolares de leitura e escrita. A escola, portanto, ensina a ler e a

escrever, mas não forma o leitor ou o escritor. A construção de outras possibilidades de

relação com a língua escrita depende de competências adquiridas aleatoriamente e em

paralelo (COLELLO, 2012).

Isso que se passa com o ensino da leitura e da escrita escolares parece-nos um

exemplo claro de um modo de se pensar a educação que se importa somente com a dimensão

lógica de seu ensino, mas que sufoca sua dimensão intuitiva. Realmente, é um fato bastante

conhecido que a escrita no contexto escolar assume, com o avançar do aluno em seu percurso

acadêmico, um caráter cada vez mais instrumental e pragmático, que se volta, principalmente,

para a aprendizagem de técnicas de escrita que são valorizadas para a produção de

determinado tipo de texto. No Brasil, as redações escolares assumem o papel de exercício de

treinamento para a escrita da redação do vestibular, avaliação que vem sendo, cada vez mais,

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tomada como o fim último de todo aprendizado. Para que se alcance um padrão excelente na

escrita de um texto adequado, verdadeiras fórmulas de produção de texto são elaboradas e

ensinadas na escola, a fim de que o aluno aprenda a “escrever bem”. Mas essa aplicação de

fórmulas chega mesmo a negar ao aluno a possibilidade de se colocar na própria escrita, uma

vez que o mais importante é que se escreva com se deve escrever.

Mas esse modo de ensino da escrita, embora prevaleça nas práticas educativas atuais,

está longe de ser a única opção possível. Outros modos de relação com a leitura e a escrita

podem se estabelecer em contextos de ensino e aprendizagem, modos muito mais atentos à

dimensão intuitiva de nossa experiência. É o que mostra, por exemplo, uma pesquisa realizada

por Kastrup (2008) em uma oficina literária. Pesquisando o acoplamento da criança com o

livro literário, a autora observou esse dispositivo, cujo caráter era pedagógico, uma vez que

visava ao desenvolvimento de processos de aprendizagem. Na oficina observada, uma

professora de português e uma fonoaudióloga faziam um trabalho especializado, cujo público-

alvo eram crianças que tinham dificuldades de leitura e escrita de textos. Ao todo, 11 crianças

entre 10 e 14 anos eram reunidas em dois grupos, que tinham aulas duas vezes por semana. É

interessante notar que, dentre os participantes, havia não somente crianças com dificuldades e

baixo rendimento escolar, mas também aquelas que já gostavam de ler e escrever e estavam

ali com a intenção de desenvolver ainda mais tal gosto. Tal composição não homogênea era

parte da proposta da oficina, pois era vista como uma maneira de promover uma interação tal

que as crianças com mais dificuldades fossem estimuladas pelas que já apresentavam um bom

desempenho em leitura e escrita.

Kastrup notou que, entre as crianças que participavam da oficina, algumas afirmavam

gostar de ler, mas outras apresentavam atitudes hostis em relação aos livros, afirmando achá-

los chatos e cansativos, ou até mesmo expressando o desejo de que todos os livros do mundo

deixassem de existir e fossem substituídos por televisões. Buscando, nesse espaço, entender

que fatores pareciam dificultar as atividades de leitura das crianças, a pesquisadora encontrou

algumas pistas. A primeira delas relacionava-se com o tempo demandado por essa atividade.

Mesmo as crianças que gostavam de ler pareciam encarar o tempo que uma atividade de

leitura demanda como longo demais. Para a autora, tal dificuldade relaciona-se com o regime

de tempo imposto pela contemporaneidade, cujo ritmo parece ser um obstáculo para a leitura,

uma vez que incompatível com aquele necessário par ler textos literários. A rotina cada vez

mais acelerada e ocupada das crianças de classe média, comprometidas cada vez mais com

múltiplas atividades, exige uma organização e otimização do tempo, tempo que não pode ser

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perdido. A leitura, entretanto, é uma atividade que demanda desaceleração e paciência, tendo

como uma de suas principais características sua temporalidade lenta, necessária para que se

experimente o texto, as palavras, seus sentidos.

Ao apontar essa dificuldade, Kastrup mostra que, antes de qualquer coisa, era preciso

que a oficina se tornasse um espaço de construção de um corpo de leitor. Ler exige tempo e

certa desaceleração motora, envolvendo o corpo como um todo. A autora indica que essa

construção era um dos desafios da oficina, sendo parte do que lá se aprendia, mesmo que isso

levasse um tempo mais longo. Na oficina, algumas estratégias de desaceleração propostas

pelas professoras eram desenhar, ou colocar uma música de fundo. A busca pelo silêncio era

considerada pelas professoras como essencial para que o trabalho pudesse acontecer. Mas

Kastrup (2008) aponta que não são só os movimentos observáveis do corpo que importam

para a prática de leitura, e também que ela não aciona apenas regras ou formas cognitivas. A

autora, tomando como referência Deleuze e Guattari (1997), afirma que essa prática:

(...) envolve não apenas a atividade molar – plano das formas e regras constituídas – mas sobretudo uma atividade molecular, que ocorre num outro plano, denominado plano molecular, das sensações, dos afetos, dos devires. Cabe salientar que as formas cognitivas existentes no plano molar são engendradas no plano molecular, resultando da composição de suas forças. O processo de transformação das formas e regras cognitivas passa sempre por esse plano dos afectos, que é onde o processo de aprendizagem tem início, para depois gerar resultados visíveis no plano molar. A atividade molecular é em grande parte invisível, e dela só detectamos indícios: a atenção concentrada, o brilho nos olhos, etc. (KASTRUP, 2008, p. 249)

Se considerarmos que tocar o plano dos afectos de que falam Deleuze e Guattari

significa acionar a dimensão intuitiva da experiência – a dimensão fonte de nossos

pensamentos, concreta, sensível, dinâmica e incorporada – vemos que o trabalho de leitura e

produção escrita, na oficina observada, lançava mão de algumas estratégias importantes que

pareciam dar conta de acolher essa dimensão da experiência. Kastrup mostra que uma das

atividades regulares da oficina observada era a leitura compartilhada, prática conduzida pelas

professoras leitoras que, segundo a autora,

(...) habitam o campo da palavra e possuem uma relação de intimidade com o dispositivo livro. Quando lê, a professora revela uma atitude de sintonia com o texto. Ela não lê como professora, mas como uma leitora apaixonada, o que expressa a verdade de seu envolvimento com o texto. Isso faz com que a aula vá transcorrendo numa sintonia, com um ritmo, numa espécie de onda ocasionada pelo próprio texto. (KASTRUP, 2008, p.251-252).

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Kastrup ressalta que, nesse processo, a professora não é o centro da atividade, mas o

limite, a linha que envolve o grupo. Isso porque ela possui uma aliança com o texto e conduz

as transformações que nele se dão. A leitura da professora tem um potencial de transporte,

incita devires. Utilizando-se de tal conceito de Deleuze, a autora mostra que o texto literário

dirige o leitor para um plano de forças, movimentos, afetos, intensidades, acionando um

movimento de saída de si. Esse é um plano de processualidade, de produção de subjetividade.

Experimentar tal devir é a condição essencial para que as professoras levem as crianças a

experimentar o texto literário, a penetrá-lo, ultrapassando alguns obstáculos que afastavam as

crianças da leitura.

A partir de tal leitura compartilhada, a professora apresenta àquelas crianças novas

possibilidades de relação com o texto, indicando a possibilidade de brincar de experimentar as

palavras, de apreciar sua sonoridade, sentindo-as em seu som e seu sentido. Kastrup descreve

com beleza um momento desses, observado em sua pesquisa:

Numa leitura da história Soldadinho de Chumbo, a professora pára nas palavras que as crianças estranham: sarjeta, extasiado, crepitava. Pára especialmente na palavra crepitava, que dá lugar a uma exploração de seu som e depois de seu sentido. Crepitava, estalava, queimava ao fogo, ardia... A professora volta à palavra, mais uma vez, quando, ao final da história e num caso extremo de amor ardente, soldadinho e bailarina tornam-se um só coração, em meio às brasas da lareira, no frio inverno do Natal europeu. A experiência com a palavra “crepitava” e com o devir coração dos pequenos amantes evidencia momentos que podemos denominar de “provar as palavras”, degustá-las, saboreá-las, experimentar seu gosto. Podemos dizer que aí as crianças provam o texto do livro através das professoras. (KASTRUP, 2008, p.253-4)

Trata-se aqui de algo mais do que ensinar a ler ou a escrever; trata-se, nas palavras de

uma das professoras, de passar a paixão pelo texto, ou em nossas palavras, de fazer vibrar a

dimensão intuitiva da experiência, trazendo à tona o caráter cativante daquela atividade de

leitura. É interessante que o que se passava na oficina observada por Kastrup (2008) evidencia

que a questão da aprendizagem passa, necessariamente, pela do ensinar. É evidente que em

tais práticas, não se ensinam técnicas de leitura, mas ensina-se a gostar de ler. A autora

recorre ao conceito de imitação de Gabriel Tarde para indicar o que se passa, mostrando que

esse processo envolve contágio e propagação. O gosto pela leitura é algo que se propaga. O

professor assume a função de um atrator de afectos, porque atrai os alunos para o texto, para

seus devires, para a matéria linguística, e não apenas transmite um saber pronto, completo,

dado. Para Kastrup, esse tipo de transmissão não pode ser reduzido a um método de ensino,

pois possui caráter incerto. Mas, em vez de tomar isso como um indício de deficiência da

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prática desenvolvida na oficina de leitura que acompanhou, considera essa uma característica

positiva de uma longa experiência desenvolvida por aquelas professoras, cujo compromisso

maior era com a aprendizagem inventiva.

Para Kastrup (2008), a prática de leitura proposta instala uma rede de afectos. O

conceito de afecto proposto por Deleuze e Guatari é muito próximo daquilo que aqui

descrevemos como felt meanings. Eles não são sentimentos, no sentido clássico que a

psicologia atribui a esse termo; é algo que transborda a percepção, que revela o caráter vivo e

dinâmico das coisas. Tedesco (1994, 1999), citada por Kastrup (2008), afirma que eles se

referem ao plano não-linguístico da linguagem. Nesse plano, as palavras adquirem dimensão

de força e intensidade, e é a partir dele que a linguagem literária suscita devires. Para que isso

seja possível, alguns elementos são muito importantes, como a entonação, o ritmo, a

velocidade e a altura com que se apresenta um enunciado, além das expressões do rosto do

falante, todos capazes de quebrar a monotonia enunciativa e produzir uma rugosidade na

linguagem.

Se nos perguntamos sobre como o aluno é capaz de capturar essas qualidades

dinâmicas, esses afectos, podemos encontrar em Stern (1992) algumas indicações. Stern

propõe o conceito de sintonia do afeto como uma maneira de explicar como os afetos de

vitalidade, ou seja, as qualidades dinâmicas de comportamentos, ideias, obras de arte e outros

eventos, podem ser percebidos e compartilhados entre diferentes pessoas. Seu estudo,

inicialmente, surge no contexto específico da relação intersubjetiva entre bebês e suas mães,

no qual a sintonia do afeto diz respeito ao processo através do qual a qualidade de um estado

afetivo compartilhado se expressa através de uma equiparação dos aspectos dinâmicos do

comportamento da mãe e do bebê. Por exemplo, um bebê percebe que sua mãe percebe e

compartilha seu estado afetivo quando ela iguala algum aspecto de seu comportamento ao

dele. Se ele sacode um chocalho verticalmente, para baixo e para cima, em um determinado

ritmo, e a mãe acompanha seu comportamento mexendo a cabeça no mesmo sentido, e no

mesmo ritmo do filho, estabelece-se entre eles aquilo que Stern chama de sintonia do afeto.

Para haver sintonia, as expressões comportamentais devem ser intercambiáveis. Deve

haver alguma correspondência, ou melhor, “as duas expressões devem compartilhar alguma

matéria comum que lhes permita serem transferidas de uma modalidade ou forma para uma

outra” (Stern, 1992, p.135). Esta matéria comum são qualidades amodais comuns a todas as

modalidades perceptivas: intensidade, forma, tempo, movimento e número. Tais qualidades

são apontadas também por Petitmengin (2007) como constitutivas do felt meaning, e Stern

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afirma que elas se prestam a fluências intermodais. O afeto sintonizado em nosso exemplo é,

na verdade, um afeto de vitalidade, que pôde ser comunicado pela mãe sem que ela recorresse

à imitação do comportamento exato do bebê, mas através de um novo tipo de comportamento

que compartilhava com aquele as qualidades transmodais de tempo (neste caso exemplificado

pelo ritmo) e forma (Stern, 1992).

Isso nos ajuda a entender o processo que se desenvolve na oficina literária descrita por

Kastrup (2008). A autora mostra como a professora, a partir de sua leitura engajada, captura

os alunos, fazendo ressoar neles a dinâmica do texto que a atravessa. Assim, não precisa dizer

aos alunos porque é bom ler, mas expressa isso com seu corpo todo:

Ao ler um poema ou contar uma história, a professora adota certa entonação, seus olhos brilham, ela ri, comenta uma passagem, eventualmente explica ou faz alguma outra digressão, destaca e saboreia palavras novas e bonitas, convida ao seu uso futuro, enche os olhos de água, se empolga. (...) A leitura na voz da professora instala uma rede complexa, que multiplica e expande o campo das relações entre a criança e o livro. O ler em voz alta envolve a captação, pelas crianças, dos afectos que atravessam a relação da professora com o livro. (KASTRUP, 2008, p.257-8)

É como se, através de seu corpo, da expressão de sua voz, de sua leitura encarnada, a

professora deixasse toda a dinâmica do texto tomar uma forma perceptível, vibrante. Por ter

uma intimidade, um modo intuitivo de se deixar afetar pelo texto, as qualidades dinâmicas do

felt meaning que lhe são próprios reverberam através da leitura em voz alta. Por sua vez, as

crianças que acompanham tal leitura são envolvidas por tal dinamismo. A professora, atratora

de afetos, consegue fazer tais afetos de vitalidade reverberarem também naquelas crianças,

acionando a dimensão intuitiva da experiência. Através desse contágio, mostra a elas que há

experiência viva, dinâmica e envolvente no processo de leitura. Desse modo, é capaz de

produzir uma experiência marcante e desencadear o prazer e o gosto por tal atividade,

retirando-a de seu lugar de monotonia e desinteresse.

A leitura em grupo parece favorecer o compartilhamento de múltiplos afectos, não só

o da professora com o texto, mas também os de outras crianças. Aquelas que gostam de ler

compartilham afectos alegres, dando consistência aos da professora e criando um efeito de

ressonância com eles. Há uma atenção diferenciada que circula aí: “a leitura em grupo

também possibilita a circulação de olhares entre as crianças, bem como o do professor na

direção das crianças, de cada criança com o livro, etc.” (KASTRUP, 2008, p.258).

Isso nos leva de volta a questão do tipo de atenção que é preciso ser cultivada. Além

de uma atenção a si, aberta, desinteressada, receptiva, necessária para o contato com a

dimensão intuitiva da experiência, os processos de ensino e aprendizagem convocam também

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outro plano da atenção, um plano compartilhado, em que a atenção se distribui entre alunos e

professor. Yves Citton (2014) aponta que, geralmente, a atenção é entendida de modo

individualizado, referindo-se a um sujeito, cérebro ou consciência que presta atenção em

algum aspecto do mundo externo. Mas o autor propõe uma nova forma de lidar com esse

fenômeno, que o toma pelo caminho inverso: partindo do pressuposto de que a atenção é um

fenômeno essencialmente coletivo, o autor mostra que aquilo em que prestamos atenção

depende, em grande escala, daquilo a que se presta atenção enquanto um coletivo. Os regimes

atencionais coletivos são essenciais para a compreensão da atenção individual, uma vez que é

a partir deles que somos conduzidos a perceber nosso mundo.

Citton (2014) afirma que, na relação pedagógica, o tipo de atenção que se estabelece

ultrapassa o domínio da atenção individual, no qual um sujeito estabelece uma relação com

um objeto de modo diádico. Nesta relação, instaura-se outro modo de atenção, a que chamou

de atenção conjunta, que diz respeito ao modo triádico pelo qual duas pessoas afetam

mutuamente o modo como a outra encara determinado objeto. Assim, destaca a atenção como

um produto de uma interação. A consciência que temos da atenção de outra pessoa afeta,

segundo essa posição, a orientação de nossa própria atenção.

Para nós, a produção de modos intuitivos de aprendizagem depende não só da atenção

a si, mas também do estabelecimento de uma atenção compartilhada entre professor e alunos e

entre os próprios alunos. Kastrup (2008) destaca a circulação dos olhares entre as crianças e

entre essas e a professora ao longo da atividade de leitura. Essa dinâmica de trocas revela o

modo como a atenção do outro regula a minha, atraindo-a para determinados pontos, ou

afastando-a para outros. Isso se apresenta não só quando a professora estabelece um contato

atento com seus alunos e o processo vai bem, mas também quando um aluno desvia a atenção

do grupo para outra direção, colocando em risco a conexão que este estabelecia com o texto

via professora.

A atenção compartilhada é caracterizada, segundo Citton, pela co-atenção presencial,

o que significa que só pode ser estabelecida quando há entre os sujeitos uma co-presença

limitada no espaço e no tempo, sem a mediação de algoritmos e sem levar em conta os casos

de difusão midiática. Além da co-presença, outros três fenômenos caracterizam as situações

de atenção compartilhada. Em primeiro lugar, é preciso haver bidirecionalidade da circulação

da atenção entre as partes envolvidas, mesmo que isso não implique em uma relação de

igualdade perfeita. Citton dá a isso o nome de princípio de reciprocidade. Na sala de aula, ela

se traduz como uma necessidade de atenção aos retornos atencionais, de modo que, para

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receber atenção, é preciso prestar atenção e ter sensibilidade aos retornos que podem ser

decifrados nos olhos e faces dos alunos. O autor mostra que o professor cria uma espécie de

atenção ilusória, produzindo a sensação do modelo simétrico de conversação, ao se voltar para

cada espectador como se a ele estivesse se dirigindo pessoalmente.

Em segundo lugar, é preciso haver um esforço de sintonia afetiva. A atenção conjunta

supõe um nível de ressonância afetiva entre as partes, algo que depende de um ininterrupto

esforço de ajustamento recíproco. São necessários microgestos de encorajamento, simpatia,

prevenção, precaução e reconforto para que um diálogo progrida, de tal modo que Citton

chega mesmo a afirmar que tal sintonia é mais importante para o desenvolvimento da troca do

que a razão argumentativa. É interessante notar que este esforço de sintonia lembra muito a

noção de sintonia do afeto de Stern que comentamos há pouco. É como se houvesse uma

regulação de afetos entre os dois lados: “(...) é preciso começar por estabelecer e, sobretudo,

manter a ligação que permite aos participantes do diálogo permanecer no mesmo

comprimento de onda emocional” (CITTON, 2014, p.131, tradução nossa). Assim, em sala de

aula, é necessário haver uma conexão não somente intelectual, mas também emocional. A

comunhão afetiva é entendida por Citton como o substrato indispensável a toda comunicação.

Por isso, é num nível emocional que os professores devem se conectar com seus alunos.

Apenas reexplicar o que não foi compreendido de um conteúdo não basta; é preciso medir as

reações afetivas e tentar produzir a sintonia emocional, que exige do professor um trabalho

delicado. “Para instaurar um ambiente favorável às dinâmicas da atenção compartilhada, o

professor deve, então, aprender a sentir, a reconhecer e a modular as ressonâncias afetivas

(harmoniosas ou dissonantes) que estruturam a sala de aula” (CITTON, 2014, p. 137, tradução

nossa).

Por fim, o autor reconhece que a atenção conjunta depende da possibilidade de sair das

rotinas programadas antecipadamente para se abrir aos riscos da improvisação. Tais práticas

de improvisação são também importantes em sala de aula, a qual só se torna um ecossistema

favorável à atenção compartilhada quando é vivida como um lugar onde processos de

invenção coletiva estão em curso de se fazer. Pela sintonia afetiva, o professor deve ser capaz

de perceber o estado atencional de seus alunos para, se necessário, inventar novos modos de

apresentar dado conhecimento. Para isso, deve levar em consideração as particularidades do

grupo com o qual trabalha, buscando meios de tocá-lo e fazê-lo entender determinado

conteúdo.

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Se a relação entre professor e aluno baseia-se no princípio da reciprocidade, na

sintonia afetiva e em práticas inventivas, muito mais do que a simples transferência de

informação ocorre entre ele e sua turma. Acreditamos que a atenção conjunta exerce um papel

essencial para a produção de práticas de ensino e aprendizagem mais atentas à dimensão

intuitiva da experiência. Atualmente, o apelo às atividades lúdicas parece ser um caminho

alternativo às práticas de ensino sem vida, sem dinamismo e sem intuição que vêm se

estabelecendo no cotidiano escolar. À primeira vista, a ludicidade aparenta ser uma boa

maneira de transformar o modelo de aula de mera transmissão de informação em algo mais

vivo e dinâmico. Mas essa concepção é altamente enganosa, e pode pregar peças. Muitas

atividades podem ser conduzidas na forma de jogos, de brincadeiras, ou fazendo-se uso de

material interativo ou eletrônico, trazendo alegria e divertimento para os alunos, e mesmo

assim podem permanecer insensíveis à dimensão intuitiva da experiência. A intervenção da

dimensão intuitiva da experiência nos processos de aprendizagem depende da criação de

condições para o contato com a dimensão pré-refletida de nossa experiência, que permitam o

aprofundamento da atenção e o mergulho em uma temporalidade ampliada. É o exercício de

posturas atencionais que está em jogo, mas não de qualquer atenção. Um jogo prende a

atenção de uma criança, a mantém interessada em uma atividade, mas o que se passa no plano

intuitivo da aprendizagem permanecesse insuspeito. Nas práticas educativas, não é qualquer

forma de atenção que interessa, mas aquelas que são capazes de criar densidade e espessura

para a aprendizagem.

Citton acredita que sua discussão sobre as três dimensões da atenção compartilhada

apresentadas acima pode ajudar a resolver o debate inútil que se trava a respeito da invenção

de práticas que atraiam a atenção dos alunos em sala de aula. Para o autor, a sala de aula deve

ser um espaço de inventar junto. Para que isso seja possível, o papel do professor deve ser

revisto. Sua função essencial não deve ser simplesmente a de explicar o conteúdo, mas a de

exercitar a atenção dos alunos. Para isso, sua própria atenção deve ser exercitada. Ele também

há que seguir o olhar do aluno, procurar sua dúvida, dificuldade, surpresa, etc., para a partir

disso renovar, precisar, aprofundar e pluralizar também a sua própria concepção do problema.

O ensino e a pesquisa podem ser vistos como processos que visam fazer convergir os olhares

para a descoberta de elementos relevantes que ainda não tinham sido percebidos. Ensinar, no

fim das contas, é ver e ensinar a ver aquilo que o outro vê (CITTON, 2014).

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Nosso estudo da intuição permite-nos, assim, afirmar a participação da dimensão

intuitiva nos processos de aprendizagem e defender a possibilidade de se aprender a abordar o

conhecimento de maneira mais intuitiva. O contato com a dimensão intuitiva torna os

processos de aprendizagem mais inventivos e dotados de sentido. Isso porque aproxima o

aluno do caráter sentido do conhecimento, e não apenas de seu aspecto lógico ou intelectual.

Na aprendizagem, o contato com a dimensão dinâmica e intuitiva da cognição permite que um

conhecimento seja explorado em seu aspecto vivo, incorporado, criando ressonâncias entre o

aprendiz e o que se aprende. Para que aprendizagens desse tipo se desenvolvam, é preciso, de

um lado, um cultivo de uma atenção a si, e por outro, de uma atenção conjunta, que envolve o

outro. O papel do professor não é somente o de transmitir o conhecimento, mas o de ensinar

modos atencionais que permitam que seus alunos aprendam formas menos recognitivas de

relação com o saber. É preciso produzir uma abertura atencional que permita um encontro

afetivo e estético com o outro e com o conhecimento, que nos permita experimentar o sentido

do que se aprende, e não apenas acumular informações. Instaurar práticas que não abafem o

caráter intuitivo da aprendizagem é um desafio constante, mas, que vale a pena ser enfrentado.

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CONCLUSÃO

Estudar a dimensão intuitiva do pensamento é uma tarefa desafiadora. Como bem

observa Petitmengin (2001), tal dimensão refere-se a uma região de nossa experiência que

experimentamos como a mais íntima, e ao mesmo tempo como a que temos maior dificuldade

de manter sob o foco de nossa atenção. Para compreendê-la, precisamos nos esforçar para não

perdermos o contato com ela, sob a pena de deixarmos esvaírem-se seus traços mais

essenciais, seu aspecto mais vibrante. Essa particularidade do estudo da intuição não nos

parece poder ser contornada. Há em nosso próprio objeto de estudo, uma exigência que lhe é

característica, que não podemos ignorar sem jogar fora o bebê junto com a água do banho.

Era, provavelmente, algo parecido com isso que Köhler (1938) tinha em mente quando, em

seu livro “The place of value in a world of facts”, afirmou que a ciência, ao se aproximar dos

problemas essenciais do homem, tende a distorcer sua verdadeira natureza. A pesquisa sobre a

intuição é um exemplo excelente do que o autor queria dizer. Existe um aspecto dela que foge

à observação objetiva, que pertence ao campo fenomenal, e que não pode ser deixado para

trás sob a alegação de sua falta de objetividade. Afinal, quando assim procedemos, parece que

perdemos seu cerne, seu mais caro atributo.

Cientes disso, iniciamos nosso trabalho buscando dar ao leitor um ponto de partida

concreto, buscando fazê-lo aperceber-se da dimensão experiencial que é o cerne de nosso

problema, para que pudesse seguir conosco em nosso caminho de argumentação e

compreender a limitação dos estudos que deixam a experiência da intuição de fora de seu

escopo. Apresentamos ao leitor a experiência de se ter uma ideia, apelando a um processo

inventivo justamente por sua potencialidade de colocar em evidência a dimensão intuitiva da

cognição, na esperança de fazê-la ressoar nele. Era preciso deixar claro qual era, de fato,

nosso objeto de estudo.

No primeiro capítulo da tese, apresentamos diferentes concepções teóricas da intuição

na psicologia e nas ciências cognitivas. Apesar das múltiplas abordagens e dos diferentes

campos de desenvolvimento, apontamos a recorrência de algumas características: o caráter

inconsciente da intuição, sua rapidez, sua imediatidade, seu modo distinto de funcionamento

em comparação com o raciocínio lógico-analítico, seu caráter afetivo. Vimos também como

as pesquisas desenvolvidas a partir do ponto de vista de terceira pessoa tinham dificuldade de

propor experimentos que considerassem o fenômeno em sua integralidade. A maioria deles

edificava-se com base em definições operacionais da intuição que contemplavam, quase

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sempre, apenas um de seus traços: se este traço era a rapidez e imediatidade da intuição, então

tarefas com tempo-limite muito curto eram utilizadas, uma vez que se supunha que a intuição

seria mobilizada, em vez do intelecto, pela exigência de que uma resposta rápida fosse dada;

se, em vez disso, a característica determinante para o experimento fosse seu caráter instintivo,

em oposição ao processamento analítico do pensamento racional, o tempo de execução de

uma tarefa era levado em consideração para se classificar as tarefas rapidamente resolvidas

como intuitivas e as mais lentamente resolvidas como racionais; se o caráter inconsciente era

considerado o traço distintivo da intuição, o acerto acima do acaso na resolução de problemas

em que tal sucesso não se acompanhava de uma capacidade de expor as razões que levavam a

ele era o critério para classificar os desempenhos como intuitivos. Assim, pelo

empobrecimento da definição de intuição, os resultados de tais experimentos trouxeram, a

nosso ver, muito pouco esclarecimento do fenômeno e o encobrimento de certos aspectos

importantes dele.

Sustentamos, então, que a tais estudos da intuição parecia faltar o caráter dinâmico e

vivo do fenômeno. Os processos intuitivos são geralmente experimentados como uma

experiência altamente mobilizadora e marcante, mas ganhavam aspecto frio e sem vida nos

experimentos e teorias propostos para explicá-los, como se algo faltasse a eles. Apostando

que, pelo menos em parte, tal situação se devia a uma desatenção à experiência, componente

do fenômeno da intuição que supusemos indispensável para sua verdadeira compreensão,

trouxemos o trabalho de Claire Petitmengin (1999, 2001, 2007), que se apresentava como

uma forma alternativa de abordar o fenômeno. Utilizando-se de uma metodologia de primeira

pessoa, que permitia à pesquisadora ter acesso à dimensão experiencial da intuição, seu

trabalho mostrou ser possível investigar o aspecto vivo e sensível dela, que parecia faltar aos

outros estudos. Além disso, a autora mostrou que o processo intuitivo possuía espessura

temporal e que poderia ser acompanhado em seu desenvolvimento, o que permitiu iluminar

muitos de seus aspectos, dando-nos uma perspectiva global do fenômeno.

A partir disso, propusemo-nos a realizar uma revisão crítica de certas concepções

acerca da intuição que nos pareciam equivocadas de alguma maneira. No segundo capítulo,

examinamos o caráter afetivo e sensível geralmente atribuído à intuição, que, como

mostramos, referia-se desde a participação de emoções e sentimentos em sentido mais estrito,

até a evocação de sensações corporais cinestésicas. Apesar de ter sido subestimado pela

maioria dos estudos da intuição, ou mesmo deixado de lado pelas dificuldades de investigá-lo,

o estudo da experiência intuitiva permitiu-nos compreender a decisiva função que esse

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aspecto sensível exercia no desenvolvimento do pensamento. Assim, longe de possuir um

caráter meramente acessório ou o papel de associar arbitrariamente certas ideias (como era

sugerido por Bastick, 1982), indicamos que a presença de uma sensação marcante, difusa,

porém altamente específica, marcava não somente o momento da instauração do processo

intuitivo, mas todo ele. Essa sensação difusa, identificada por Petitmengin (2007) e Gendlin

(1997) como um felt meaning, foi reconhecida como o fio condutor do desenvolvimento do

pensamento intuitivo, por ser experimentada como um sentimento de tendência, como uma

exigência, que indica a direção do pensamento sem, todavia, predeterminá-lo. Assim,

mostramos que um processo de pensamento, esteja ele envolvido na solução de um problema,

na criação de uma obra artística ou científica, ou ainda em processos de aprendizagem,

desenvolve-se de maneira intuitiva quando resulta do contato atento com o felt meaning que

lhe é subjacente, avançando de acordo com ele. Isto é possível porque essa sensação possui

um caráter dinâmico e altamente seletivo, que nos leva a escolher os meios para lhe dar

materialidade de acordo com certa ressonância entre ela a as características dinâmicas

percebidas do material selecionado.

A negação de uma dicotomia entre intuição e pensamento analítico ou lógico foi nosso

próximo passo. Tendo sido amplamente aceita como uma característica definidora da intuição,

tal dicotomia apresentava-se ou como a afirmação de dois modos mutuamente excludentes de

funcionamento da cognição ou como a indicação da existência de dois modos de

funcionamento cognitivos que estabeleciam entre si uma relação de alternância colaborativa,

porém hierárquica (ocupando, a intuição, o nível mais baixo dela). Além disso, a suposição de

que haveria pessoas mais inclinadas a um ou outro modo de funcionamento cognitivo,

consolidada na proposta de dois tipos cognitivos – um intuitivo, outro racional – propunha

uma naturalização de tal divisão que também desejávamos confrontar. Assim, sugerimos, em

primeiro lugar, que tal dicotomia deveria ser reinterpretada como uma dualidade, em que

pensamento intuitivo e pensamento racional não fossem tomados como processos

irreconciliáveis entre si, mas fossem compreendidos como diferentes dimensões da cognição.

Essa proposta não só torna a relação entre a dimensão intuitiva e a dimensão analítica mais

harmoniosa, mas supõe, mesmo, a impossibilidade de uma sem a outra. Não somente a

intuição precisa do raciocínio analítico para se tornar exprimível, comunicável e para ganhar

mais clareza, como o raciocínio analítico não tem como existir sem seu correlato intuitivo, já

que todo pensamento nasce sempre, de acordo com Petitmengin (2007), na dimensão fonte da

experiência, desenvolvendo-se sempre no contato com ela.

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Por essa mesma razão, defendemos que a separação entre tipos intuitivos e tipos

racionais não faz sentido, uma vez que a intuição é uma dimensão de todo ato cognitivo.

Assim, faz mais sentido pensarmos em diferentes arranjos cognitivos, sujeitos a oscilações

constantes, permitindo que ora a dimensão intuitiva, ora a dimensão analítica da cognição

ganhe proeminência. Mas esses arranjos não supõem uma configuração absoluta,

característica de determinado indivíduo de uma vez por todas, para toda sua vida.

Acreditamos que tais configurações sejam produzidas por diferentes práticas, em diferentes

contextos. O contexto educacional, por exemplo, é muitas vezes marcado por práticas

pedagógicas que estimulam o pensamento reprodutivo, para o qual a mera aplicação de regras

decoradas parece ser o suficiente para se alcançarem os objetivos escolares, o que não se

produz sem o sufocamento da dimensão intuitiva da experiência, a qual aprende-se a dar

pouca atenção. Nesse caso, é de se esperar que um arranjo cognitivo marcado pela

proeminência da dimensão analítica tome lugar. Isso não significa que, em outro contexto, o

mesmo aluno que, na escola, só é capaz de reproduzir informações, não seja capaz de

estabelecer maneiras mais intuitivas e inventivas de lidar com o conhecimento, de modo que

sua cognição assuma outra configuração, menos reprodutiva, em uma nova situação.

Acreditamos, também, que mesmo que esses arranjos possam parecer, às vezes, cristalizados

e irreversíveis, eles podem ser transformados pelo exercício de novas posturas atencionais.

Buscamos reformular, também, a ideia de que a intuição é um processo inconsciente,

imediato e não verbalizável. Mostramos que, por ter espessura temporal e por envolver

sensações profundamente incorporadas, é comum que tais características sejam atribuídas à

intuição. Isso é possível, em primeiro lugar, porque a maioria das pesquisas e teorias que

lidam com o tema possui uma concepção restrita do que seja tomar consciência de algum

evento cognitivo, entendendo como conscientes apenas aqueles processos que podem ser

imediatamente colocados em palavras e explicados para alguém. Assim, a intuição, cuja

verbalização exige um tempo de contato e experimentação com seu felt meaning subjacente

para que este possa ser traduzido, tende a ser concebida como um processo inconsciente,

porque a maioria dos experimentos que tenta acessá-la não leva em consideração essa

condição (isso quando tais experimentos são capazes, de fato, de mobilizar processos

intuitivos). Por basearem-se exclusivamente em dados colhidos através de técnicas de terceira

pessoa, tais pesquisas também desconsideram que, por mais que a princípio uma tomada de

consciência em forma verbal não seja imediatamente possível, é possível experimentar, desde

a origem do processo intuitivo, a sensação característica que a acompanha, seu felt meaning.

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Mesmo antes de ser traduzida em palavras, ou em qualquer outra forma de simbolização,

podemos nos dar conta da presença de tal sensação por referência direta (GENDLIN, 1997), e

ela produz uma experiência de posse de um sentido que é muito específico e intenso, do qual

somos plenamente capazes de nos aperceber, mesmo que não saibamos ainda como expressá-

lo. Assim, não somente fica evidente que a intuição não é imediata no sentido de instantânea,

como também não é um processo inconsciente e incomunicável. Em vez disso, defendemos

seu caráter pré-refletido e incorporado, que exige que certa postura atencional seja assumida

para dela nos darmos conta.

Por fim, vimos que a intuição é uma parte importante dos processos de aprendizagem,

que parece indispensável para que esses sejam dotados de sentido intrínseco e para que

assumam um caráter cativante. Os processos intuitivos de aprendizagem parecem ter uma

maior capacidade de mobilizar o aprendiz, uma vez que este os experimenta como dinâmicos

e atraentes. Entretanto, verifica-se que, na maioria dos contextos educacionais, modos

intuitivos de relação com o conhecimento são raramente incentivados. Um fator que parece

contribuir para isso é a pressão dos currículos escolares, que prevêem que certos conteúdos

predeterminados deverão ser trabalhados com os alunos numa janela de tempo limitada, o que

não favorece o desenvolvimento de processos de ensino e aprendizagem intuitivos.

Diferentemente do que se afirma, a intuição é um processo lento, que precisa de tempo para

amadurecer, tempo este que falta a professores e alunos em sua obrigação de cumprir o que

está estabelecido no currículo. Assim, formas mais reprodutivas e mecanizadas de ensinar e

de aprender são mais frequentemente colocadas em prática, sendo a capacidade do aluno de

repetir fórmulas e saberes prontos mais valorizada do que sua capacidade de questionar,

problematizar e inventar.

Ao propormos que outra forma de lidar com o tempo nas salas de aula se instaure, de

modo a se criarem condições mais propícias para a participação da dimensão intuitiva nos

processos de ensino e aprendizagem, não nos esquecemos de que outras dificuldades, já

amplamente debatidas no campo da educação, também se impõem. É o caso, por exemplo, da

revisão dos currículos, cujos conteúdos merecem ser revistos tanto em termos de sua

quantidade quanto de sua importância. Essa revisão é importante e coloca-se como um

caminho possível no sentido de diminuir a pressão a que são submetidos, hoje, os professores,

obrigados a realizar uma quantidade enorme de trabalho em um curto período de tempo.

A partir da concepção de intuição que este trabalho tem a pretensão de afirmar, que a

reconhece como uma dimensão de toda experiência, da qual podemos nos dar conta, e cuja

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colaboração indispensável com o raciocínio analítico não pode ser negada, é preciso que

inventemos maneiras de torná-la mais presente nas práticas pedagógicas. A contribuição de

Rudolf Arnheim (1997a, 2004) e de Max Wertheimer (1945/1982) mostrou que a percepção é

uma parte muito importante dos processos cognitivos intuitivos, e o apelo a formas mais

perceptivas de ensinar parece, de alguma forma, contribuir para dar mais espaço para ela nos

processos de aprendizagem. Isso não deve nos levar, entretanto, a supor que a mera inclusão

de figuras ou filmes nas práticas educativas pode dar conta dessa tarefa. O campo da

educação, hoje, vem sendo bombardeado pela presença das imagens, principalmente por conta

do uso de novas tecnologias. Mas isso não garante que a intuição participe mais da

aprendizagem; pelo contrário, esse recurso pode afastá-la ainda mais do processo. O consumo

das imagens não favorece o contato com a experiência. Geralmente, coloca-nos num regime

de atenção recognitivo e voltado para o exterior, o que dificulta que tenham lugar os gestos

atencionais necessários para que nos apercebamos da dimensão intuitiva da cognição. Assim,

é preciso ainda mais pesquisas que busquem compreender como a percepção pode ser

acolhida pelas práticas de ensino de modo a favorecer processos de aprendizagem intuitivos.

Outro fator que nos parece essencial para o resgate da dimensão intuitiva nos

processos de aprendizagem é o cultivo e o ensino de certas posturas atencionais. Vimos que a

dimensão intuitiva depende de uma atenção a si, aberta, receptiva, para que sejamos capazes

de nos dar conta dos aspectos dinâmicos do conhecimento. Além disso, um cuidado especial

na produção de uma atenção conjunta, tal como proposta por Citton (2014), é também

essencial para produzir novas formas de se habitar o espaço escolar e desencadear processos

intuitivos. Professores e alunos devem estabelecer uma relação atencional diádica, atenta aos

microgestos afetivos, de modo que efeitos de ressonância se produzam e façam ver o aspecto

vivo do conhecimento.

Reconhecemos que nosso trabalho ainda traz contribuições muito insuficientes para os

debates da educação. Temos um longo percurso daqui por diante. A realização de trabalhos de

campo e a ampliação de nossos referenciais teóricos se colocam como passos necessários.

Muitas questões, levantadas principalmente no quinto capítulo, ficaram, aqui, apenas

esboçadas. É o caso, por exemplo, de como incluir a percepção como um dispositivo efetivo

na mobilização da dimensão intuitiva nos processos de ensino e aprendizagem, assim como a

questão de como instituir práticas atencionais mais atentas à experiência concreta em sala de

aula. Tais problemas poderão ser explorados em pesquisas futuras.

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O reconhecimento da dimensão intuitiva como uma dimensão essencial de nossa

cognição não tem como objetivo aclamar a intuição como um processo mais valioso do que os

processos racionais, lógicos ou analíticos. Ele visa, principalmente, reivindicar a importância

dessa dimensão em todas as áreas de nossa vida e mostrar que é possível cultivar, por

pequenos gestos, um modo de estar no mundo menos automatizado e mais atento ao caráter

dinâmico e vivo do que nos rodeia.

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