feminism os - universidade de coimbra

4
Feminismos Catarina Martins Publicado em 2019-04-01 Entender os “Feminismos” no âmbito das epistemologias do Sul e enquanto “pensamento alternativo das alternativas” (Boaventura de Sousa Santos) implica um questionamento radical, a partir de uma perspetiva pós- colonial, de uma teoria que, apesar de crítica do conhecimento produzido na modernidade europeia, e das relações de poder que ele sustenta, nomeadamente no que diz respeito à diferença sexual, se lia no mesmo paradigma epistemológico. Esta interrogação dos feminismos quer perceber até que ponto esta liação limitou e continua a limitar o seu potencial de pensamento alternativo e a contribuir para a produção de invisibilidades e opressões. Por outro lado, a multiplicidade dos caminhos percorridos e dos instrumentos conceptuais desenvolvidos pelos feminismos, aliada à perspetiva pós-colonial, deve aprofundar o potencial epistemológico de ambos. A descolonização dos feminismos – imperativo que se ouve, desde há três décadas, a partir de vários Suis não imperiais (Ásia, América Latina, África) - implica uma nova história e uma nova geograa não eurocentrada dos feminismos, com temporalidades diferentes e outros modelos conceptuais, que chegam a colocar em causa noções estruturantes como “patriarcado” ou “género”. Feminismo e Pós-Colonialismo O conceito de feminismo pós-colonial diz respeito, por um lado, a uma análise dos colonialismos e dos movimentos anticoloniais, a partir da dimensão da diferença sexual como indissociável da natureza, dinâmicas e códigos simbólicos dos poderes em jogo. Inclui ainda a denúncia da instrumentalização das mulheres colonizadas nas disputas coloniais e neocoloniais. A representação metonímica da “Mulher do terceiro mundo” (“africana”, “indígena”, “islâmica”) tanto serve uma hierarquização “civilizacional” eurocêntrica que sustém os Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm] Dicionário Alice PT EN ES Destaque Semanal Pan-Africanism Pan-Africanism refers to the conviction that all Africans and descendants of Africans in the diaspora share a common history, common interests and, ultimately, a common fate which thus(...) Jihan El-Tahri

Upload: others

Post on 18-Jul-2022

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Feminism os - Universidade de Coimbra

  

FeminismosCatarina Martins

Publicado em 2019-04-01

Entender os “Feminismos” no âmbito das epistemologias do Sul e enquanto “pensamento alternativo dasalternativas” (Boaventura de Sousa Santos) implica um questionamento radical, a partir de uma perspetiva pós-colonial, de uma teoria que, apesar de crítica do conhecimento produzido na modernidade europeia, e dasrelações de poder que ele sustenta, nomeadamente no que diz respeito à diferença sexual, se �lia no mesmoparadigma epistemológico. Esta interrogação dos feminismos quer perceber até que ponto esta �liação limitoue continua a limitar o seu potencial de pensamento alternativo e a contribuir para a produção de invisibilidadese opressões. Por outro lado, a multiplicidade dos caminhos percorridos e dos instrumentos conceptuaisdesenvolvidos pelos feminismos, aliada à perspetiva pós-colonial, deve aprofundar o potencial epistemológicode ambos. A descolonização dos feminismos – imperativo que se ouve, desde há três décadas, a partir de váriosSuis não imperiais (Ásia, América Latina, África) - implica uma nova história e uma nova geogra�a nãoeurocentrada dos feminismos, com temporalidades diferentes e outros modelos conceptuais, que chegam acolocar em causa noções estruturantes como “patriarcado” ou “género”. Feminismo e Pós-Colonialismo O conceito de feminismo pós-colonial diz respeito, por um lado, a uma análise dos colonialismos e dosmovimentos anticoloniais, a partir da dimensão da diferença sexual como indissociável da natureza, dinâmicas ecódigos simbólicos dos poderes em jogo. Inclui ainda a denúncia da instrumentalização das mulherescolonizadas nas disputas coloniais e neocoloniais. A representação metonímica da “Mulher do terceiro mundo”(“africana”, “indígena”, “islâmica”) tanto serve uma hierarquização “civilizacional” eurocêntrica que sustém os

Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Dicionário Alice

PT EN ES

Destaque Semanal

Pan-AfricanismPan-Africanism refers to the conviction that allAfricans and descendants of Africans in the diasporashare a common history, common interests and,ultimately, a common fate which thus(...)

Jihan El-Tahri

Page 2: Feminism os - Universidade de Coimbra

discursos e as políticas imperialistas do Ocidente como as reações nacionalistas de cunho essencialista. Sãodisputas entre patriarcados, nas quais as mulheres não têm voz. Por outro lado, feminismo pós-colonial designa a crítica que, a partir sensivelmente dos anos 80 do séc. XX,começa a ser feita aos feminismos do Norte, devido ao viés eurocêntrico e colonial da sua análise social e àde�nição de um conceito universal de Mulher, moldado pela mulher europeia, branca, cristã e de classe média,que invisibilizava as opressões especí�cas de mulheres de diferentes raças e contextos culturais e religiosos esubalternizava as suas lutas, impondo molduras teóricas e agendas de intervenção exógenas, entendidas comomais uma forma de violência imperialista em relação às mulheres do Sul. Esta crítica está relacionada com opensamento dos feminismos negros norte-americanos que, a partir do problema do racismo, abriram osfeminismos à heterogeneidade das identidades sexuais e à multiplicidade de opressões e de lugares deenunciação da resistência, nomeadamente através do conceito de interseccionalidade para pensar a articulaçãodos sistemas de dominação de sexo, raça, classe social, orientação sexual e outras categorias. Feminismos Asiáticos Gayatri C. Spivak (1987), de origem bengali, e referência incontornável dos estudos pós-coloniais, recusaria oconceito de um “feminismo asiático”, por considerar que a “Ásia” faz tão pouco sentido enquanto categoria dere�exão como qualquer outra construção geográ�ca produzida pelo colonialismo europeu e assente em“mulheres ícone”. A re�exão multifacetada desta teórica assenta numa crítica profunda à ordem capitalistaglobal, ao imperialismo e aos neocolonialismos, bem como ao eurocentrismo – e ao feminismo eurocêntrico -através de uma metodologia desconstrucionista e da recusa das simpli�cações dicotómicas do conhecimentoocidental, supostamente objectivo, ao qual opõe um conhecimento situado, em permanente “double bind”(tensão entre respostas contraditórias). Spivak expande o paradigma da interseccionalidade à posição dasmulheres na geopolítica global e no sistema internacional do trabalho capitalista, num sentidotransnacionalista. Identi�ca as mulheres pobres do Terceiro Mundo como as subalternas entre os subalternos,cuja possibilidade de falar interroga. Spivak formula ainda o conceito de “essencialismo estratégico”, uma �cçãoconsciente que, contudo, serve para unir colectivos de mulheres em torno de uma causa emancipadora. Também Chandra Mohanty (1991), de origem hindu, aborda a questão da violência epistemológica e discursivade ordem colonial, por parte dos feminismos ocidentais, na re/produção de uma imagem monolítica edescontextualizada da Mulher do Terceiro Mundo como eterna vítima, sexualmente oprimida, ignorante, pobre,fortemente ligada à tradição, por oposição a uma representação das mulheres ocidentais como modernas,emancipadas e com controlo sobre os próprios corpos. Esta imagem é construída a partir de categorias,estratégias e prioridades de um normativo feminista do Norte, cuja relação com o Outro é de ordem hierárquicae resulta numa supressão das heterogeneidades materiais e históricas, na invisibilização de processosemancipatórios diferenciados e na impossibilidade de estabelecimento de alianças estratégicas que construamidentidades políticas de oposição. Feminismos Latino-Americanos Em especial, duas autoras latino-americanas deslocadas para os EUA são importantes para repensar osfeminismos como alternativas epistemológicas, a partir da ideia de colonialidade. A chicana Gloria Anzaldúa(1987), falando pelas “mulheres de cor” (negras, chicanas, latino-americanas, asiáticas e outras) propõe, comonovo sujeito do feminismo, uma consciência mestiça, dinâmica, �exível e processual, de fronteira entre culturas,saberes e pertenças identitárias, que se opõe à dimensão categorizante, uni�cadora e promotora de binarismosquase sempre essencialistas da racionalidade ocidental. A consciência mestiça aparece como o pensamento dacontradição, da desidenti�cação e do enfrentamento do sujeito com os discursos conformadores deidentidades que o atravessam, incluindo o do feminismo, no sentido da produção de novas culturas queampliem solidariedades. Também Maria Lugones (2008) propõe um feminismo decolonial a partir da veri�cação da natureza europeia emoderna do conceito de género como instrumento da colonialidade do ser e do saber, particularmente quandoserviu o capitalismo na destruição de mundos com ontologias, cosmologias, línguas e estruturas sociais,económicas e políticas diferentes, não sexuadas. Através de uma metodologia que suspende a priori qualquerparadigma de base categorial (que sempre provoca invisibilidades, mesmo quando desagrega as opressões,segundo o modelo interseccional) e, em particular, a percepção de género (que tem inscritos em si conceitoscomo patriarcado, dimor�smo sexual e heterossexualidade), Lugones quer descobrir o “não-moderno”,

Page 3: Feminism os - Universidade de Coimbra

resistências entendidas a um nível infrapolítico como produção de intersubjetividades localizadas eincorporadas, entretecidas criativamente a partir do locus fraturado da diferença colonial, e das consciênciasmúltiplas que nele surgem. Neste “não-moderno” e na reformulação do conceito de poder, Lugones inclui aformação de comunidades e a transmissão quotidiana de práticas de vida, valores, ontologias e espaços-tempo,em que a vida e o bem-viver se sobrepõem às lógicas capitalistas. Feminismos Africanos Consolidando-se, sobretudo, a partir dos anos 80, os feminismos com origem no continente africano partilhamdo imperativo de uma descolonização dos feminismos ocidentais, através da crítica quer do saber sobre Áfricaproduzido no Norte, em particular das representações coloniais das culturas e das mulheres africanas, quer dabase epistemológica deste saber, quer das agendas “de género” produzidas pelos poderes do Norte, incluindoos feministas, tendo como objetos, e não como sujeitos, as mulheres do continente, nomeadamente no âmbitode políticas de ajuda ao desenvolvimento, instrumento determinante do capitalismo global e doneocolonialismo. Numa perspetiva epistemológica, o maior desa�o surge no chamado feminismo etnográ�co, no qual sedestacam as nigerianas I� Amadiume (1987) e Oyèrónké Oyewùmí (1997). Ambas analisam sociedades pré-coloniais que não têm o sexo/ género como vetor estruturante. Ali, os homens/ as mulheres não constituemgrupos socialmente identi�cáveis e os papéis sociais que ocupam devem-se a outros fatores de organizaçãosocial e das identidades, como a idade ou a linhagem, inclusivamente no quadro do contrato conjugal, em queas funções que este de�ne não incluem a determinação de sexo. É possível identi�car mulheres em lugarespolíticos e sociais proeminentes, o que contraria, igualmente, uma noção universal de patriarcado. O desa�o queAmadiume e Oyewùmí colocam aos feminismos no âmbito das epistemologias do Sul é pensar a possibilidadede uma organização social não sexuada, uma sociedade “pós-género”. Conceber este tipo de organização é algoque a mundivisão ocidental torna extremamente difícil, até na con�guração sexuada das línguas europeias quelhe dão expressão, por oposição à ausência de �exão de género nas línguas destas comunidades africanas. Estasteóricas, nem que seja em tese, desa�am a uma desconstrução feminista radical de toda a percepção domundo e das coisas, incluindo da linguagem que a cristaliza. Mais recentemente, os feminismos africanos procuram re�etir os desa�os que se colocam às respetivassociedades, no período que sucedeu ao fracasso dos projetos de independência dos múltiplos países, no que dizrespeito aos papéis sociais das mulheres, situando as respostas feministas num quadro teórico transnacionalistafortemente associado ao ativismo de base, que amplia a crítica aos normativos nacionais e pan-africanos, bemcomo ao capitalismo global, que é identi�cado como causa principal das diversas opressões e violênciasexercidas sobre as mulheres.  Referências e sugestões adicionais de leitura:Amadiume, I� (1987), Male Daughters, Female Husbands. Gender and Sex in an African Society. London andNew Jersey: Zed Books.Anzaldúa, Gloria (1987), Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lutte Books.Lugones, Maria (2008), “Colonialidad Y Género”, Tabula Rasa. Bogotá-Colômbia, No. 9: julio-deciembre 2008: 73-101.Mohanty, Chandra T. (1991), “Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses”, in Mohanty, C.T.,Russo, A. & Torres, L., Third World Women and the Politics of Feminism, Indiana University Press: Bloomingtonand Indianapolis.Oyewùmí, Oyerónké (1997), The Invention of Women. Making an African Sense of Western GenderDiscourses. London e Minneapolis: University of Minnesota Press.Spivak, Gayatri C. (1987), In Other Worlds: Essays in Cultural Politics. New York: Routledge.  Catarina Martins é Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigadora noCentro de Estudos Sociais. Foi leitora na Universidade Cheikh Anta Diop, Dakar. Doutorada em Literatura Alemã,especializou-se em Estudos Feministas, Estudos Pós-Coloniais e Estudos Comparados de Literatura e Cultura,especialmente nas Áfricas.   

Page 4: Feminism os - Universidade de Coimbra

Como citarMartins, Catarina (2019), "Feminismos", Dicionário Alice. Consultado a 27.05.19, emhttps://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24285. ISBN: 978-989-8847-08-9