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FENOMENOLOGIA DA RELIGIÃO Compreendendo as idéias religiosas a partir das suas manifestações Cácio Silva

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  • FENOMENOLOGIA DA RELIGIO

    Compreendendo as idias religiosas a partir das suas manifestaes

    Ccio Silva

  • Elisngela, minha amada esposa, fiel e doce

    companheira, com quem tenho dividido a alegria de servir ao Senhor nos ltimos dez anos.

  • AGRADECIMENTOS

    A Ronaldo Lidrio, nosso lder, consultor e amigo, com quem tenho dialogado sobre o assunto e prontamente leu este texto, tecendo comentrios e dando valiosas sugestes.

    A Frances Popovich, primeira a lecionar fenomenologia no meio missionrio brasileiro, nos idos de 1987.

    A Margaretha Adwardana, com quem estudei fenomenologia pela primeira vez e despertou meu interesse por esta rea de pesquisa.

    A Alcir Almeida, que me desafiou e incentivou a enveredar pelos caminhos do ensino da fenomenologia.

  • PREFCIO

    Analisar e compreender um fenmeno religioso em nossa ou em outra cultura realizar um exerccio para o qual nem sempre estamos preparados.

    O estudo analtico da Fenomenologia da Religio um desenvolvimento relativamente novo na Antropologia e, apesar da expresso ter sido utilizada por Saussaye em 1887, seu valor acadmico como rea distinta de estudo ocorreu bem mais tarde, no incio do sculo 20.

    Essa rea de estudo serve, porm, como um divisor de guas na dinmica missionria com inquestionvel aplicao, tanto na elucidao da cosmoviso da cultura observada, quanto tambm na contextualizao da mensagem a ser transmitida. Ou seja, se prope a cooperar para que o Evangelho no se torne uma mensagem aliengena para um povo que

    possua diferentes pressupostos de cultura e vida. Croatto chama nossa ateno para o fenomenlogo afirmando que esse procura o

    significado da religiosidade humana enquanto o historiador se preocupa com as evidncias deixadas. A Fenomenologia da Religio , portanto, um instrumento de estudo e compreenso dos elementos do alm em certa sociedade ou segmentao humana, sua interao com o mundo do aqum e a anlise do fenmeno per si objetivando perceber seu valor para o povo.

    Neste livro, Ccio Silva aborda, com rara clareza e profundidade, esse complexo assunto levando-nos a trilhar sua histria, seu desenvolvimento como mtodo cientfico e seu valor tanto para a Antropologia Cultural quanto para o campo missionrio.

    O texto resultado direto do seu envolvimento com o estudo da fenomenologia da religio, como professor e pesquisador na rea. Dessa forma, Ccio no se limita a apresentar-nos academicamente o assunto, mas tambm nos desafia a aplic-lo na santa tarefa de comunicar Jesus a povos que pensam diferente, se agrupam de forma diferente e experimentam diferentes fenmenos religiosos. E ele o faz de forma cativante e didtica.

    A explorao dessa rea de estudo vem cooperar para saciar uma grave necessidade que temos como fora missionria brasileira, o aprofundamento na formao antropolgica.

    Creio que a formao de um missionrio, que venha a interagir em um contexto transcultural, est baseada em um trip: teologia, lingstica e antropologia. Sem dvida temos timos centros teolgicos que estudam a misso, diversos centros de formao lingstica com aplicabilidade missionria, porm pequeno investimento no esforo antropolgico.

  • Fenomenologia da Religio v

    Este texto resposta ao momento e verdadeiramente contribui para que nosso trip de formao missionria seja fortalecido.

    Que ele seja lido e assimilado com o compromisso de utilizar o estudo fenomenolgico como instrumento para uma responsvel transmisso do amor de Deus, aos de perto e aos de longe.

    Ronaldo Lidrio

  • NDICE

    Dedicatria / ii

    Agradecimentos / iii

    Prefcio / iv

    Introduo / 7

    1. Cincias da Religio Os vrios caminhos de investigao do fenmeno religioso / 11

    2. Fenomenologia da Religio Compreendendo as idias religiosas a partir das suas manifestaes / 18

    3. Fenomenologia da Religio e Teologia Bblica Dando respostas certas s perguntas certas / 32

    4. O Universo do Homem Religioso Distinguindo o sagrado do profano / 40

    5. Smbolo A transignificao dos objetos / 55

    6. Mito O relato de fatos fundantes / 66

    7. Rito A gesticulao do smbolo e do mito / 78

    8. Dogma A reflexo sobre o mito e o rito / 91

    9. Animismo O mundo animado por foras espirituais / 96

    10. Sincretismo Compreendendo as diferentes fontes religiosas / 104

    11. Fenomenologia da Religio e Discernimento Espiritual Indo alm do humano / 112

    Bibliografia / 119

    Anexos Mitos e Ritos / 129

  • INTRODUO

    Os Xacriab vivem no norte de Minas Gerais, somando mais de sete mil indgenas, distribudos em vinte e trs vilarejos. Seu principal ritual o tor, que envolve cantorias e danas. realizado com freqncia, sempre noite, porm sem datas predeterminadas, sendo por isto necessrias convocaes. A participao de estranhos proibida, pois Yay, sua principal entidade, no se manifesta nesse caso. Tambm so excludos os que se casam com brancos, pois Yay gosta apenas daqueles que tm o seu sangue. Somente os membros aceitos como efetivos podem participar.

    realizado no terreiro, local em forma de crculo, com cho batido e limpo. Fica prximo a uma gruta caverna ou pedreira onde vive Yay e o acesso difcil, no havendo trilhas abertas nem indicaes da direo.

    Ao chegar no terreiro, os participantes so orientados quanto posio que devem ocupar, sendo que todos j devem estar vestidos de branco e descalos. Antes de iniciar as danas preparada uma bebida chamada jurema, que possui efeito alucingeno. Ao comear, o paj retira das pedras o basto sagrado e o coloca num canto do terreiro. Esse basto de madeira, de tamanho mdio, fabricado por um antepassado distante e pode ser tocado apenas pelo paj, pois se outra pessoa toc-lo morrer imediatamente. Fica guardado na pedreira, sendo retirado dali somente para o tor.

    Segundo crem, num determinado momento o basto comea a se movimentar sozinho, emitindo fumaa pelas extremidades, formando uma cruz de fumaa que nem todos conseguem ver. Por fim, pra sobre a grande tigela sagrada. Essa tigela faz parte do conjunto de objetos sagrados, juntamente com o basto e as pequenas tigelas, chamados de tralha. A jurema distribuda entre os participantes nas tigelas pequenas e logo aps d-se a manifestao de Yay em carter de orculo, trazendo respostas aos participantes, avisos, orientaes e repreenses, no apenas pessoais, mas tambm comunitrias.1 Voc um missionrio que acaba de chegar para trabalhar com os Xacriab. Apesar de normalmente no permitirem presena de estranhos, o paj autorizou que voc observasse de longe. lua cheia, o cu est aberto e, assim, de uma pequena elevao voc consegue observar tudo e ouvir bem. Atentamente voc observa o danar frentico dos participantes, com suas roupas brancas colando ao corpo por causa do suor. As pisadas so to fortes que voc sente a vibrao do solo debaixo dos seus ps. Tambm ouve as cantorias, no meio das quais pronunciam palavras e at frases que parecem no fazer sentido. Qual ser a sua

  • Fenomenologia da Religio 8

    atitude? Do que voc tomar nota? Quais fenmenos voc consegue perceber nesse ritual? Quais perguntas voc far? Um ritual como esse formado por vrios fenmenos religiosos. A fenomenologia da religio se ocupa em estud-los, na tentativa de compreender as idias que esto por trs dos mesmos e o que significam para aqueles que os praticam. Como missionrios, antes de apresentar o evangelho para determinado povo, a primeira providncia a se tomar buscar uma compreenso satisfatria do mesmo. Compreender um povo equivale compreender a sua cultura e essa envolve complexos sistemas que regulamentam o comportamento do grupo social.

    Dentro do bojo cultural encontramos o sistema de parentesco, o sistema poltico, a cultura material, cognitiva e muitas outras reas nas quais podemos concentrar anlise. No processo de anlise, lanamos mo de cincias especficas que nos fornecem mtodos de pesquisa adequados. A cincia que mais tem contribudo no trabalho missionrio para compreenso dos povos alvos de evangelizao a antropologia cultural, que se ocupa de todas as reas acima mencionadas. Entretanto, dois sistemas culturais so sobremodo amplos e complexos, sendo necessrio abord-los de forma mais especfica. Trata-se da lngua e da religio. De acordo com o etnlogo alemo Lothar Kser, a religio um fenmeno universal, presente em todas as culturas2. O atesmo uma manifestao mais de cunho individual ou no mximo uma opo sociopoltica. Do ponto de vista cultural, todo grupo social apresenta manifestaes religiosas.

    Na prtica, porm, todos esses sistemas culturais so inseparveis, totalmente interligados. Os distinguimos apenas para fins de anlise. E, a bem da verdade, essa diviso da cultura em sistemas uma elaborao nossa, na tica do observador. Prova disso que quase nenhuma lngua sem escrita possui uma palavra para o conceito religio, no mesmo sentido que usamos. Isto se d porque a religio permeia todas as reas da cultura e, portanto, uma anlise segura da mesma s pode acontecer numa abordagem multidisciplinar. Como comenta o antroplogo brasileiro Luiz Gonzaga Mello, s possvel isolar a religio dentro da cultura como um recurso didtico e metodolgico apenas3.

    De qualquer forma, para anlise da cultura como um todo, utilizamos a antropologia cultural ou, mais especificamente, a etnologia. Para anlise da lngua, a lingstica antropolgica, e para anlise da religio, devemos lanar mo da fenomenologia da religio.

  • Fenomenologia da Religio 9

    Figura 1: Fenomenologia como rea da antropologia

    Ou seja, a fenomenologia para o estudo da religio, o que a lingstica para o estudo da lngua. No contexto brasileiro, temos uma crescente nfase no estudo da antropologia e da lingstica nos currculos de treinamento missionrio, mas o estudo da fenomenologia ainda , de modo geral, pouco evidenciado. A fenomenologia da religio uma disciplina extensa e complexa, relativamente nova no meio missionrio e pode ser abordada de vrias perspectivas. Nos cursos de cincias da religio oferecidos em algumas universidades brasileiras, por exemplo, ela apresentada numa perspectiva mais filosfica, reflexiva, partindo de pressupostos existencialistas4. Mas a fenomenologia com maior aplicabilidade missionria aquela que parte de uma perspectiva antropolgica, numa abordagem multidisciplinar. o que tento apresentar neste trabalho. O presente trabalho resultado das minhas pesquisas pessoais, motivadas pela necessidade de ferramentas ministeriais e por um particular interesse na rea. O leitor observar que o texto , de certa forma, bastante tendencioso. Tendencioso no sentido de que o plano de fundo, por exemplo, so sociedades indgenas, animistas e sincretistas, enquanto um outro pesquisador poderia visualizar sociedades urbanas, de outras religies. Isto se d pelo fato do meu ministrio ser exatamente com grupos indgenas. Boa parte dos exemplos e relatos de mitos e ritos vem dos indgenas de Minas Gerais, pelo fato de ter desenvolvido pesquisa entre estes grupos, e dos indgenas do Noroeste da Amaznia, devido ao fato de ali atuar ministerialmente. No entanto, os princpios aqui apresentados so aplicveis em qualquer contexto religioso.

    Visando uma maior aplicabilidade, procuro mesclar teoria e estudos de casos variados. No final dos captulos principais, h uma seo chamada exercite... com sugestes de exerccios prticos para o leitor que desejar praticar imediatamente o que leu. Em seguida, h uma segunda seo chamada v mais longe..., contendo sugestes de leituras em portugus mais especficas sobre o tema do captulo. A grande maioria das fontes sugeridas secular, e

    Cincias Utilizadas reas de Anlise

    Cultura

    Lngua

    Religio

    Antropologia Cultural

    Lingstica Antropolgica

    Fenomenologia da Religio

  • Fenomenologia da Religio 10

    em especial clssicos da fenomenologia e antropologia. Isto ocorre pela falta de publicaes evanglicas na rea. Portanto, o leitor que desejar aprofundar seus conhecimentos ter nessa seo boas dicas de leitura, devendo, no entanto, tomar o cuidado de fazer sempre uma leitura crtica das obras sugeridas.

    No tenho a pretenso de apresentar aqui um texto conclusivo. Estou apenas compartilhando os resultados iniciais da minha pesquisa pessoal, na expectativa de que os mesmos sirvam de auxlio a outros missionrios tambm interessados na fenomenologia. Espero tambm que este trabalho desafie outros a irem alm, no imenso universo da fenomenologia da religio.

    NOTAS

    1 Extrado de Silva. Minas Indgena. 2002. p.49.

    2 Diferentes Culturas. 2004. p.187.

    3 Antropologia Cultural. 1995. p.390.

    4 Um bom exemplo disto pode ser visto no livro Fenomenologia e Anlise do Existir, organizado por Dagmar

    Castro (2000), resultado do I Encontro de Fenomenologia e Anlise do Existir da Universidade Metodista de So Paulo, atravs do seu Grupo de Pesquisa em Fenomenologia e Cincias da Religio, em 2000.

  • 1 CINCIAS DA RELIGIO

    Os Vrios Caminhos de Investigao do Fenmeno Religioso

    As cincias da religio surgiram como campo acadmico somente na segunda metade do sculo 19, como resultado dos estudos da histria da religio que, naquela poca, era aceita apenas como disciplina. No seu incio, as cincias da religio foram por muito tempo tributrias da filosofia e da teologia, chamadas velhas mes, mas aos poucos ganharam sua autonomia.1

    Ainda hoje h uma discusso acirrada acerca da terminologia. Qual seria correto: cincia da religio ou cincia das religies? Ou ainda, cincias da religio ou cincias das religies? Em outras palavras, existe um nico mtodo de pesquisa (cincia) e um nico objeto de estudo (religio)? Os cientistas da religio ainda no chegaram a um consenso a este respeito e no nosso objetivo entrar no mrito da questo.2

    O fenmeno religioso pode ser estudado de vrias perspectivas, cada uma com suas particularidades, objeto e mtodo prprios. Assim, dentro das cincias da religio surgiram vrias correntes ou escolas de estudo do fenmeno religioso.

    ESCOLAS HISTRICO-RELIGIOSAS

    As escolas histrico-religiosas surgiram na segunda metade do sculo 19 e suas razes remontam obra Histria Natural da Religio, de David Hume (1711-1776), publicada em 1757. Ganhou credibilidade especialmente atravs do padre e etnlogo italiano Wilhelm Schmidt (1862-1954), que fundou em Viena uma escola dedicada pesquisa das influncias de uma cultura sobre outra. Para essa escola, a forma religiosa mais antiga seria a dos Pigmeus, da Floresta Tropical Africana, por serem os povos que se encontram no estgio econmico mais primitivo do mundo. Schmidt concentrou anos de pesquisa ampliao da teoria de outro conhecido historiador das religies, o escocs Andrew Lang (1844-1912). Lang levantou a tese de que as sociedades iletradas crem num Ser Supremo, criador primordial que, apesar de no-ativo, continua sendo um referencial tico do povo. E como resultado das suas extensas pesquisas, Schmidt publicou uma obra monumental, em doze volumes, com mais de onze mil pginas, chamada Origem da Idia de Deus (1912ss), a qual contempla um nmero extensivo de religies primitivas da terra.

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    Outro grande vulto da escola histrico-religiosa o italiano Raffaele Pettazzoni (1883-1959), para quem se instituiu em 1924, na Universidade de Roma, a primeira ctedra italiana de histria das religies. Pettazzoni fez uma transferncia do historicismo absoluto para o campo histrico-religioso e dedicou-se tese de que a forma original da religio no era o monotesmo e, sim, o politesmo, apesar de concordar com Lang sobre a idia do Ser Supremo. Seus discpulos mais destacados tornaram-se famosos historiadores da religio, como o hngaro ngelo Brelich (1913-1977), que sucedeu Pettazzoni na cadeira de histria das religies na Universidade de Roma, Ernesto De Martino (1908-1965), aberto s sugestes da psicanlise e do existencialismo, e Vittorio Lanternari, cujo interesse so os fenmenos religiosos e culturais de fronteira, que geram sincretismo.

    A histria das religies est interessada no conjunto dos fatos religiosos enquanto manifestaes da cultura humana, podendo ser um mtodo descritivo, analtico ou comparativo. Dessa forma, sua grande utilidade est na classificao das religies e fornecimento de dados para fins de comparao, mas dificilmente possibilitar a compreenso do significado ltimo da experincia religiosa para o prprio homem religioso.

    ESCOLAS LINGSTICAS

    Ainda na primeira metade do sculo 19, surgiu a lingstica comparada indo-europia, que acabou propondo mtodos de estudo do fenmeno religioso. Foi o lingista e historiador alemo Friedrich Max Mller (1823-1900) que props o primeiro cruzamento sistemtico da lingstica com o mundo das religies. Para ele, as palavras so originariamente eventos. Os nomes de divindades evocam fatos histricos ou fenmenos da natureza. E assim, estudando a origem dos nomes possvel descobrir a origem das religies. Em suas pesquisas, Mller percebeu que os nomes de muitos deuses tinham uma origem lingstica comum. Por exemplo, nos Vedas, escritos em snscrito, aparece o nome de Agni, uma das principais divindades da ndia. Em latim, aparece o nome Ignis, enquanto em eslavo antigo Ogny. Para Mller, so apenas nomes diferentes, em lnguas diferentes, para se referir a uma mesma entidade. o mesmo caso de Dyaus, conhecido em grego como Zeus, em latim como Jouis e no alto alemo como Zio. Em snscrito, Agni significa fogo e Dyaus cu brilhante. Mller props ento que as entidades espirituais seriam apenas fenmenos da natureza divinizados pelos povos antigos. Surgia assim, a teoria de que a forma mais antiga de religio seria o naturismo, ou seja, a adorao das foras csmicas da natureza, como ventos, rios, astros, plantas, animais, rochas, alm dos j mencionados fogo e cu.3

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    O francs Emile Benveniste (1902-1976) trilhou a pista aberta por Mller e ampliou essa linha de pesquisa, concluindo que a anlise lingstica possibilita no apenas a descoberta das origens religiosas, mas tambm a compreenso da religiosidade em si. Com uma habilidade lingstica acima da mdia, o francs George Dumzil (1898-1986) ampliou ainda mais essa teoria, dando tambm a sua parcela de contribuio.

    Entretanto, apesar da sua considervel contribuio, hoje consenso a limitao da lingstica no alcance do real significado da religiosidade.

    ESCOLAS PSICOLGICAS

    Como disciplina cientfica autnoma, a psicologia da religio nasceu no final do sculo 19, nos Estados Unidos. Esses estudos foram iniciados pelo pastor americano Granville Stanley Hall (1844-1924), que dedicou-se ao estudo da psicologia da converso. Aluno de Hall, o suo, de orientao calvinista, James Henry Leuba (1868-1946), deu continuidade aos estudos sobre converso do seu professor. Apesar de ter passado por uma marcante experincia de converso, atravs do Exrcito de Salvao, abandonou a sua f posteriormente, dedicando-se apenas pesquisa cientfica. J seu aluno quacre, Edwin Diller Starbuck (1866-1947), seguiu as trilhas da psicologia da converso mas permaneceu fiel sua f at o fim. Outros pesquisadores conhecidos so William James (1842-1910) e George Albert Coe (1862-1951), tendo este ltimo pesquisado sobre as influncias do temperamento na converso.

    Entretanto, os mais conhecidos nessa rea so, sem sombras de dvida, o moraviano Sigmund Freud (1856-1939) e o suo Carl Gustav Jung (1875-1961). Freud faz uma abordagem negativista da religio, interpretando a mesma como um produto de conflitos ancestrais, equivalentes infncia da humanidade. No seu livro Totem e Tabu (1913), ele tenta explicar a origem da religio com a controvertida teoria do Complexo de dipo4. Nos tempos dos ancestrais da humanidade, numa horda primeva5, teria existido um pai prepotente e ciumento que ficava com todas a mulheres do seu cl, expulsando seus filhos de casa. Um dia os filhos se juntaram, mataram esse pai e o devoraram num banquete totmico de comunho. Porm, esse homicdio tornou-se para aqueles irmos uma causa de profundo sentimento de culpa e o pai morto se tornou mais poderoso do que era enquanto em vida. Nesse clima de remorso coletivo, os filhos passaram a agir exatamente como o pai. Proibiram relaes com as mulheres do seu prprio grupo que antes tanto desejavam, surgindo assim a exogamia. Proibiram tambm a matana de um determinado animal que passou a representar

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    o pai, surgindo assim o totemismo6. A imagem do pai continuou se fortificando, surgindo assim a idia de Deus. Se referindo a esse pai assassinado, Freud afirma que no fundo, Deus nada mais do que um pai glorificado e que a raiz de toda forma de religio a saudade do pai7.

    J Jung adota uma postura positivista, mas interpreta a religio como uma resposta ao inconsciente coletivo que se formaliza em profundas marcas psquicas. Teria, assim, um papel estabilizador da personalidade.

    So muitas as contribuies da psicologia para o estudo da religio, porm, os pressupostos da maioria dos seus tericos so questionveis. Via de regra, os fenmenos religiosos so considerados na psicologia como o espelho da psique humana, da mesma forma que na sociologia esses fenmenos so o espelho da sociedade. O sentimento religioso seria uma elaborao do desejo humano por satisfao.

    O professor de fenomenologia, Waldomiro Octvio Piazza, critica essa escola por sugerir que a religio no passa da expresso de sentimentos e temores do subconsciente humano 8. Ou seja, fruto da imaginao do homem.

    ESCOLAS SOCIOLGICAS

    O belga Claude-Henri de Saint Simon (1760-1825) um dos primeiros e principais tericos dessa escola, com sua nfase no retorno s origens. Mas seu interesse principal era mesmo o cristianismo, que para ele devia ser centrado na filantropia, que seria sua verdadeira base. Um dos seus discpulos mais conhecidos Augusto Comte (1789-1857) que acabou afastando-se do seu mestre e voltando seu pensamento para o fato religioso em si, quando elaborou a famosa lei dos trs estgios, segundo a qual a religio passa por trs sub-estgios sucessivos: fetichismo, politesmo e monotesmo.

    Na rea francesa das escolas sociolgicas, surgiu mile Durkheim (1853-1917), que se tornou o maior expoente dessa escola. Para ele, tudo o que h de essencial na sociedade fruto da religio e, portanto, a essncia da religio a idia de sociedade. A partir dos seus estudos de grupos australianos, ele levantou a tese de que a forma mais antiga de religio seria o totemismo9. Sobrinho e discpulo de Durkheim, Marcel Mauss (1872-1950) tornou-se tambm um grande vulto, dirigindo seus interesses para o mbito etnolgico e dedicando-se ao estudo das sociedades iletradas, especialmente seus sistemas mgicos e formas de sacrifcio. Podemos citar ainda, Gabriel Le Brs (1891-1970), que marcou uma reviravolta na

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    sociologia da religio com sua tentativa de criar uma metodologia destinada a medir a prtica religiosa dentro das dinmicas sociais.

    Na rea alem, destacou-se o historiador Max Weber (1864-1920), que se dedicou investigao sobre a tica econmica das grandes religies universais. Amigo e colega de Weber, Ernst Troeltsch (1865-1923) tambm se despontou na sociologia da religio, mas, como Saint Simon, dedicou-se histria e sociologia do cristianismo.

    As escolas sociolgicas contribuem em muito para a compreenso do fenmeno religioso, especialmente no estudo da funo social da religio. Entretanto, crticas srias tm sido feitas a elas, por reduzir o fenmeno religioso a um subproduto da sociedade. Como comenta Filoramo e Prandi,

    a sociologia da religio no coloca a religio no centro dos seus interesses; antes, fixa a ateno no fato religioso entendido como produto social ou como fruto de uma criao coletiva [...] Assim, o objetivo da sociologia da religio o estudo das funes sociais da religio.10

    Isto pode ser observado claramente nas palavras do prprio Durkheim:

    O objeto da experincia religiosa a sociedade [...] Se a religio gerou tudo o que existe de essencial na sociedade, porque a idia da sociedade a alma da religio. As foras religiosas so, portanto, foras humanas, foras morais.11

    ESCOLAS ANTROPOLGICAS

    O estudo da religio do ponto de vista antropolgico comea efetivamente com o antroplogo ingls Edward Burnet Tylor (1832-1917), com sua teoria do animismo. Com essa teoria, Tylor discorda do seu contemporneo Max Mller, afirmando que a religio surgiu da concepo de alma princpio vital que anima o corpo humano, bem como a natureza. Esse conceito, por sua vez, teria surgido da tentativa do homem antigo de entender e explicar o fenmeno do sonho. E a partir do conceito da alma, teria surgido tambm o conceito de espritos. Assim, as religies teriam evoludo do animismo politesta para o monotesmo.

    Mas foi o polons Bronislaw Malinowski (1884-1942) quem forneceu um status metodolgico antropologia em geral, e ao estudo da religio em particular, se ocupando especialmente com o rito e mito, elementos essenciais para a expresso do sagrado. Tylor e Malinowski so expoentes da antropologia cultural, mas surgiu uma outra linha de pesquisa conhecida como antropologia social. Essa teve seu incio com o ingls Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973), que privilegia a sociedade como recipiente da cultura. Enquanto a antropologia cultural est mais atenta aos comportamentos, tcnicas, linguagens e smbolos, a

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    antropologia social volta seu olhar para as instituies e, em especial, aos sistemas de parentesco. Nesse campo, podemos citar tambm o antroplogo francs Roger Bastide (1898-1974) que estudou a influncia da religiosidade africana sobre a brasileira.

    Uma terceira linha de pesquisa o estruturalismo, desenvolvido pelo etnlogo belga Claude Lvi-Strauss (1908), que viveu vrios anos no Brasil, onde estudou os indgenas Bororo, Kadiwu, Nhambikuara e outros. Lvi-Strauss estudou o mito e o rito, analisando oitocentos mitos na sua obra Mitologias (1964). Escreveu tambm sobre questes do totemismo e deu maior amplitude aos estudos das relaes de parentesco.

    Apesar da relevncia da antropologia para a anlise cultural de qualquer povo, tm-se percebido sua limitao no que se refere religiosidade. Como comenta Dagmar Castro, a antropologia tende a objetivar a subjetividade humana12. Ou, nas palavras de Piazza, se referindo especificamente a Malinowski e Lvi-Strauss, a tendncia dessa escola reduzir a religio a uma frmula para fazer funcionar a sociedade13. Assim, em especial no meio missionrio, a antropologia tem lanado mo da fenomenologia para anlise do fenmeno religioso, como veremos no prximo captulo.

    V MAIS LONGE... ELIADE, Mircea. Origens. Lisboa: Edies 70, 1989.

    FILORAMO, Giovanni & PRANDI, Carlo. As Cincias das Religies. So Paulo: Paulus, 1999.

    PADEN, William E. Interpretando o Sagrado Modos de Conceber a Religio. So Paulo: Paulinas, 2001.

    TEIXEIRA, Faustino (org.). A(s) Cincia(s) da Religio no Brasil Afirmao de Uma rea Acadmica. So Paulo: Paulinas, 2001.

    NOTAS

    1 No Brasil, as cincias da religio como rea acadmica surgiram no final da dcada de 1970 e esto se

    firmando ao ganhar cada dia maior credibilidade. J temos, pelo menos, quatro universidades que oferecem o curso cincias da religio em nvel de ps-graduao: UMESP, USP-SP, UFJF e Mackenzie. 2 Para uma melhor compreenso deste tema, ver o texto Cincia da Religio, Cincias da Religio, Cincias

    das Religies? do antroplogo e professor de cincia da religio da UFJF, Marcelo Lima, em Teixeira, A(s) Cincia(s) da Religio no Brasil. 2001. pp.197-232. 3 Durkheim. As Formas Elementares de Vida Religiosa. 1989. pp.81,108,109.

    4 Totem e Tabu. 1974. pp.162-178. Posteriormente, Freud retomou e levou adiante esta questo, especialmente

    em seu livro Moiss e o Monotesmo (1939), pp.99-112. 5 Freud usa a linguagem de Darwin, ampliada por Atkinson (1903), onde horda indica um grupo relativamente

    pequeno, mais ou menos organizado, muito prximo do que hoje seria chamado de cl. 6 Freud apia a teoria de Durkheim (1912), segundo a qual o totemismo seria a forma mais antiga de religio,

    bem como, as discusses da poca sobre a ligao entre exogamia e totemismo. Exogamia a prtica muito

  • Fenomenologia da Religio 17

    comum entre povos tribais, de casamento com pessoas de outro grupo, seja cl, aldeia ou mesmo povo. O contrrio seria a endogamia, ou a prtica de casamento com pessoas do mesmo grupo social ou lingstico. 7 Totem e Tabu. 1974. p.170.

    8 Introduo Fenomenologia Religiosa. 1983. p.271. Piazza brasileiro, formado em filosofia e teologia em

    Roma, onde tambm estudou fenomenologia da religio e histria das religies. 9 As Formas Elementares de Vida Religiosa. 1989. p.125.

    10 As Cincias das Religies. 1999. p.91.

    11 As Formas Elementares de Vida Religiosa. 1989. p.495.

    12 Fenomenologia e Anlise do Existir. 2000. p.47.

    13 Introduo Fenomenologia Religiosa. 1983. p.272.

  • 2 FENOMENOLOGIA DA RELIGIO

    Compreendendo as Idias Religiosas a Partir das Suas Manifestaes

    HISTRIA DA ESCOLA

    A fenomenologia se firmou como corrente filosfica e mtodo cientfico somente no sculo 20, ao se distanciar do estudo comparado das religies. O termo fenomenologia surgiu em 1764, com o matemtico e filsofo suo-alemo Johann Heinrich Lambert (1728-1777). Entretanto, o alemo, de ascendncia judaica, Edmund Husserl (1859-1938) que considerado o pai da fenomenologia. Com sua obra Investigaes Lgicas (1900-1901), ele desenvolveu o mtodo fenomenolgico de tal forma que o mesmo passou a constituir o centro de gravidade de grande parcela do pensamento filosfico do sculo 20 e sua influncia estendeu-se a todas as cincias humanas. Como mtodo cientfico, a fenomenologia pode ser utilizada pelas mais diferentes reas de conhecimento, cincias e meios de expresso que o homem possa desenvolver.

    J a expresso fenomenologia da religio foi criada pelo holands, historiador das religies, Pierre Daniel Chantepie de la Saussaye (1848-1920). Na primeira edio da sua obra Manual de Histria das Religies (1887) usou essa expresso, entretanto, no indicava com a mesma um novo mtodo, mas apenas uma alternativa terminolgica para a chamada religies comparadas. Isso ficou evidente quando, dez anos depois, na segunda edio do seu Manual, suprimiu a referida seo.

    Assim, a primeira expresso significativa da fenomenologia da religio vem do holands Gerardus van der Leeuw (1890-1950), na sua Fenomenologia da Religio (1933). Ligado fenomenologia filosfica de Husserl, Leeuw prope um mtodo de compreenso da experincia religiosa, e no apenas de descrio, a partir da anlise das suas linguagens ou meios de manifestao os fenmenos. Para ele, a meta da pesquisa fenomenolgica atingir a essncia da religio, essncia esta que o fenomenlogo alemo Gustav Mensching (1901-1978), contemporneo de Leeuw, definiria como a experincia do encontro com o Sagrado1.

    Apesar de se afastar um pouco da linha filosfica, van der Leeuw retoma pelo menos dois conceitos bsicos de Husserl: a epoch e a viso eidtica. Epoch a suspenso do juzo que o fenomenlogo deve operar se quiser compreender realmente o fenmeno estudado. E viso eidtica a busca pela essncia do fenmeno em questo2.

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    Mensching um dos representantes da escola fenomenolgica alem de Marburgo, fundada pelo iminente Rudolf Otto (1869-1937), com seu livro O Sagrado (1917). Apesar de no ser especificamente uma obra fenomenolgica, este livro ofereceu um modelo de anlise fenomenolgica em chave hermenutica da experincia religiosa. Se Otto no chegou a ser um fenomenlogo, seus alunos o foram, aprimorando o mtodo de anlise fenomenolgica compreensiva, tpico da escola de Marburgo. Um dos nomes mais citado na fenomenologia da religio do romeno, que se radicou nos Estados Unidos, Mircea Eliade (1907-1986). A bem da verdade, Eliade foi um historiador das religies e no um fenomenlogo, mas suas pesquisas foram to extensas que acabou deixando um material de valor inestimvel para a fenomenologia religiosa. A escola fenomenolgica lana mo de princpios metodolgicos de basicamente todas as demais escolas, mas se distingue por buscar compreender o que a experincia religiosa significa para o prprio homem religioso. O argentino, professor de fenomenologia da religio, Jos Severino Croatto (1930-2004), sintetiza isso da seguinte forma:

    Aplicada (s) religio(es), a fenomenologia no estuda os fatos religiosos em si mesmos (o que tarefa da histria das religies), mas sua intencionalidade (seu eidos) ou essncia. A pergunta do historiador sobre quais so os testemunhos do ser humano religioso, a pergunta do fenomenlogo sobre o que significam. No o que significam para o estudioso, mas para o homo religiosus, que vive a experincia do sagrado e a manifesta nesses testemunhos ou fenmenos.3

    Entre os cientistas da religio, tem sido defendido que a investigao fenomenolgica a melhor opo para se aproximar, o mximo possvel, do significado real da experincia religiosa.

    TENTATIVA DE CONCEITUAO

    Fenomenologia O termo fenmeno vem do grego fainomenon, que significa literalmente aquilo que

    aparece, que se mostra. Logo, fenomenologia , literalmente, o estudo do que aparece. Mas, obviamente, como mtodo cientfico, o termo vai muito alm do seu significado literal. A fenomenologia uma tentativa de compreender a essncia da experincia humana, seja ela psicolgica, social, cultural ou religiosa, a partir da anlise das suas manifestaes, que chamamos de fenmenos. uma tentativa de compreenso no do ponto de vista do observador, mas do ponto de vista da prpria pessoa que teve a experincia. No meio lingstico e antropolgico, isso seria chamado de ponto de vista mico.

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    Religio J religio um termo conceitualmente bastante complexo. Aceitamos geralmente

    que religio vem do latim religare, significando assim religar, ou seja, religio o meio de religar o homem a Deus. Entretanto, historicamente isto nem sempre foi assim. Srvio

    Sulpcio afirmou, em poca bem remota, que a palavra religio deriva de relinquere = deixar, abandonar. Ccero (sculo 1 a.C.) sugeria como origem o termo relegere = observncia do rito. Foi Lactncio (sculos 3 e 4 d.C.) quem sugeriu o termo religare = religar. Agostinho (sculo 4 d.C.) tambm entrou nesta questo, tentando melhorar a conceituao de Ccero com o termo religere = reeleger, mas posteriormente concordou com Lactncio no termo religare = religar. Toms de Aquino (1224-1274) retoma a questo numa tentativa de unificar as sugestes de Ccero e Lactncio, sugerindo os termos relectione = reescolha e religatione = religao. Mas Aquino vai alm, reinterpretando Agostinho e tentando dar um basta na questo, ao concluir que religio implica propriamente numa relao com Deus. 4

    Filoramo e Prandi comentam sobre certo pesquisador que comparando 68 respostas que lhe foram enviadas por colegas sobre o modo como definiam religio, objeto de seus estudos, no encontrou sequer duas iguais5.

    Esses comentrios so apenas para demonstrar que, tanto etimolgica como historicamente, no h um consenso simples quanto conceituao de religio. Nos afastaremos aqui das tentativas de definies etimolgicas, optando pelas conceituaes de cunho antropolgico. Neste meio, vrias conceituaes j foram sugeridas, mas aceitamos neste trabalho a sugesto do antroplogo e missilogo alemo Paul Hiebert, que conceitua religio como um sistema explicatrio que trata das ltimas questes da vida e da morte, das razes da prpria existncia6. Nessa mesma linha tambm podemos citar o conhecido antroplogo americano Clifford Geertz, que entende a religio como um sistema cultural7.

    Para Felix Keesing, a religio um sistema explanatrio e tambm interpretativo. Explanatrio medida que responde sistematicamente aos porqus totais, relacionados diretamente com a existncia natureza do mundo e do homem; poder foras dinmicas do universo; providncia funes de manuteno do bem-estar; moralidade vida e morte dos indivduos. E interpretativo porque tende a interpretar todo o comportamento importante e valorizado, ligando-se aos diferentes setores da vida humana, como economia, poltica, famlia, lazer, esttica e segurana.8

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    Religio e Magia Os estudiosos, tanto da antropologia como da fenomenologia, tm procurado traar uma distino entre religio e magia. Os antroplogos americanos Adamson Hoebel e Everett Frost comentam sobre esta questo dizendo que religio quando a pessoa subordinada aos seres espirituais, enquanto magia quando a pessoa domina e controla as foras sobrenaturais. Na religio, a orao uma busca de relacionamento com o sobrenatural de forma submissa, enquanto na magia a mesma orao visa manipular o divino. Nesse processo de manipulao do divino, o mago age com uma confiana semelhante ao estudante de laboratrio que sabe que, se seguir corretamente as instrues do manual, obter o resultado esperado.9 Malinowski exemplifica isso contrastando um rito para evitar um aborto (magia) com um rito de comemorao do nascimento de uma criana (religio):

    Compare-se um rito destinado a evitar a morte no parto, com outro costume tpico, uma cerimnia de celebrao de um nascimento. O primeiro rito executado como meio para atingir um fim, tem um objetivo prtico definido que conhecido de todos os que o praticam e pode ser facilmente descoberto por qualquer informador nativo. A cerimnia ps-natal, digamos a apresentao de um recm-nascido, ou uma festa para comemorao do acontecimento, no tem qualquer objetivo; no um meio para atingir um fim, o prprio fim.10

    Durkheim distingue basicamente religio como sendo benfica e coletiva, enquanto magia, individual e anti-social. Assim, a religio algo socialmente aprovado, enquanto a magia censurada pelo grupo social11. Para Malinowski, magia e religio esto sempre juntas, agindo lado a lado, seja na construo de uma canoa, na pesca, na guerra, ou na sade e na morte. Para ele, a religio atende as necessidades emocionais, enquanto a magia as necessidades tcnicas12. Apesar de concordar at certo ponto com essa diferenciao, neste trabalho trataremos a magia como uma forma de manifestao religiosa e no como um sistema distinto. Outra distino terminolgica que faremos aqui entre religio e religiosidade. Neste trabalho, enquanto o termo religio se refere a esse sistema explicatrio, supramencionado, o termo religiosidade se refere manifestao ativa da religio. a prtica religiosa em si, como vivenciada pelo homem religioso.

    Fenomenologia da Religio Segundo o professor de fenomenologia Antnio Mendona, a fenomenologia da

    religio pode ser vista num duplo sentido: uma cincia independente, com suas pesquisas e publicaes, mas tambm como um mtodo que faz uso de princpios prprios13. A inteno

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    deste trabalho apresentar a fenomenologia da religio como mtodo de pesquisa e, enquanto tal, William Paden a define como o estudo das coisas em seus aspectos observveis, contrapondo-se sua causalidade14. Ou seja, o estudo das causas religiosas atravs da observao das suas manifestaes. Entretanto, a questo da causalidade um pouco controversa. Assim, preferimos trabalhar com o conceito de idias. Por trs das manifestaes religiosas existem idias que determinam o real significado da experincia para aquele que a experimenta.

    ngela Bello, professora de historia da filosofia em Roma, usa o termo fenomenologia arqueolgica15 para se referir a esse esforo em busca das idias por trs dos fenmenos. Para ela, a fenomenologia uma investigao regressiva que permite escavar no

    interior da conscincia individual e coletiva, at alcanar o significado real da experincia religiosa. A anlise fenomenolgica como o trabalho do arquelogo. A partir de uma pequena evidncia que aparece no solo, ele escava at descobrir grandes fsseis escondidos sob os seus ps. Os fenmenos ou manifestaes religiosas so apenas pequenas evidncias que se mostram. Cabe ao fenomenlogo intuir atravs delas at alcanar o seu significado mais profundo. Detrs de cada fenmeno h uma idia, um significado. essa idia que a fenomenologia procura compreender. A pergunta mais bsica no estudo fenomenolgico : qual idia cultural est por trs de cada fenmeno?

    A EXPERINCIA RELIGIOSA

    A experincia a forma bsica de aquisio de conhecimento. Nada chega ao nosso intelecto sem causar uma experincia pessoal, quer seja emprica ou existencial. A experincia existencial pode ser fsica, social, moral, metafsica ou religiosa. Assim sendo, a religiosidade est intimamente relacionada com a experincia, no caso, com o sagrado.

    Se referindo a um contexto cristo, Piazza afirma, como j havia dito Mensching, que a essncia da experincia religiosa o encontro do homem com Deus16. Generalizando esse raciocnio, podemos ento dizer que a experincia religiosa consiste no encontro do homem com o sagrado. Tcito Leite Filho chama esse mesmo fato de relaes do homem com a divindade17, as quais, para ele, constituem a base de todas as religies. Vale lembrar, que o cristo pode contar com a Bblia para conhecer a Deus, mas a maioria dos religiosos s pode contar com a prpria experincia para conhecer o divino.

    Apesar de no se tratar de uma obra especificamente fenomenolgica, o livro O Sagrado, de Rudolf Otto, tem sido considerado a ponte da fenomenologia filosfica de

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    Husserl para a fenomenologia da religio de Leeuw. Nele, Otto analisa a experincia religiosa afirmando que a mesma tem por agente o sagrado18, que se manifesta como um mistrio tremendo e fascinante19. Mistrio porque algo maravilhoso, que transcende a compreenso do homem, totalmente outro; tremendo porque uma potncia estranha, que se impe de forma absoluta; e fascinante porque desperta curiosidade, causa fascnio. Ou seja, a experincia religiosa se d quando o homem entra em contato com o sagrado e isso lhe causa um sentimento de estado de criatura20, enchendo o seu ser de perguntas, terror e admirao.

    A experincia religiosa ao mesmo tempo individual e comunitria. Individual porque o homem religioso a experimenta na sua particularidade. Comunitria porque esse mesmo homem no a contm e por isso comunica com outros sobre a mesma. Neste processo, a experincia religiosa se manifesta atravs de linguagens prprias, que se apresentam em forma de fenmenos. So estes fenmenos que constituem o objeto da fenomenologia da religio.

    EPOCH E EIDTICA

    Estes dois conceitos se tornaram o principal diferencial da fenomenologia, pois enquanto os demais mtodos cientficos excluam a subjetividade em favor da objetividade, Husserl sugeriu ser possvel compreender o subjetivo, a essncia, o eidos. Na sua poca, estava em voga o psicologismo para o qual a experincia religiosa no passava de um subproduto da psique humana. A fenomenologia muda o foco da anlise, afirmando que, independente dessa experincia ser um produto da psique ou um real encontro com o sagrado, o que interessa compreender o que a mesma significa para o homem religioso, aquele que vivencia tal experincia. Na linguagem do prprio Husserl, o voltar s coisas mesmas21. A viso eidtica a busca por essa essncia do fenmeno. a tentativa de ver o fenmeno como o prprio homem religioso v. Para isso necessrio a epoch, a suspenso

    do juzo, dos pressupostos. O socilogo clssico se aproxima do homem religioso j pressupondo que a experincia do mesmo fruto do viver social. O psiclogo clssico pressupe de antemo ser um resultado da psique. O fenomenlogo tentar no pressupor nada. Algumas observaes aqui se fazem necessrias. Obviamente, como missionrios no concordamos com todos os postulados e pressupostos da fenomenologia. Para o fenomenlogo, compreender a experincia religiosa o fim da sua anlise. Para ns, apenas

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    o meio. Para o fenomenlogo, essa suspenso de juzo definitiva, perptua. Para ns, deve ser apenas no primeiro momento, at alcanarmos uma compreenso relevante do fenmeno. A epoch necessria no primeiro momento, porque se no retardarmos um pouco nosso julgamento bblico-teolgico, chegaremos a muitas concluses erradas e nossa mensagem no ter relevncia.

    Uma segunda observao que, mesmo no meio cientfico, j consenso a impossibilidade de uma epoch total. A total neutralidade na pesquisa cientfica uma falcia. impossvel uma total suspenso de juzo. Alguns afirmam que um religioso no pode ser um cientista da religio, por causa dos seus pressupostos. Entretanto, um ateu tambm tem pressupostos em relao religio e, talvez, mais radicais e preconceituosos do que os do religioso. A dificuldade que ambos tero para suspender o juzo ser a mesma. No entanto, apesar dessa impossibilidade de uma epoch total, possvel uma neutralidade pelo menos parcial e esta que deve ser buscada no primeiro momento. Discordamos tambm do princpio da vivncia. Para alguns fenomenlogos, necessrio no apenas suspender o juzo, mas tambm vivenciar por algum tempo a experincia religiosa em estudo para que se possa compreend-la bem. o que defendia van der Leeuw e outros: precisamos viver aquele contedo particular de experincia a fim de poder, em seguida, entender como um outro ser humano por sua vez poderia experiment-lo22. Esse foi o caso de Roger Bastide que, mesmo se identificando como protestante, iniciou-se no candombl brasileiro em busca da compreenso do mesmo.

    Poderamos entrar num longo dilogo com os principais tericos da fenomenologia, discordando de vrios dos seus postulados e pressupostos, porm, isto foge do propsito deste trabalho. Nossa inteno apenas extrair as ferramentas teis no trabalho missionrio oferecidas pela fenomenologia. Outro elemento que surge na busca pelo eidos a intuio. Para se aproximar da subjetividade da experincia religiosa preciso intuir. Esse conceito vem do telogo e filsofo alemo Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834), que precedeu o movimento fenomenolgico, mas deixou muitas contribuies para o mesmo. Tommy Goto o chama de pr-fenomenlogo23. O conceito de intuio em Schleiermacher to central que ele chega confundi-lo com a essncia da religio24, mas o movimento fenomenolgico o redefiniu, fazendo do mesmo uma ferramenta de busca do eidos. Somente atravs de uma atitude intuitiva possvel se aproximar do sentido real do fenmeno religioso, pois o mesmo no algo lgico.

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    VISO TICA E MICA

    O missionrio lingista Kenneth Pike (1912-2000) desenvolveu dois conceitos fundamentais em anlise lingstica, chamados perspectivas tica e mica25. Estes conceitos alcanaram a academia antropolgica se tornando elementos fundamentais tambm para a anlise cultural. Tornaram-se ainda igualmente fundamentais na fenomenologia para a anlise religiosa. So conceitos bem relacionados com a epoch e viso eidtica de Husserl.

    Perspectiva tica a viso externa, do observador, numa postura transcultural, comparativa e descritiva. Perspectiva mica a viso interna, do observado, numa postura cultural, particular e analtica. Perspectiva tica de quem est olhando de fora. Perspectiva mica de quem olha de dentro. tica a viso do eu em direo ao outro. mica a viso do eu em direo ao nosso. Ou como comentam Hoebel e Frost,

    Quando vista de fora e expressa por um observador que no , por educao e vivncia, completamente enculturado com a cultura observada e escrita, a viso chamada tica. A viso interna chamada de mica.26

    Para os etnlogos africanistas Philipe Laburthe-Tolra e Jean-Pierre Warnier27, os fenmenos micos so aqueles elementos realmente funcionais do corpus cognitivo, enquanto os ticos so pura roupagem, sem incidncia sobre os contedos cognitivos.

    A perspectiva tica inevitvel e necessria. Sempre que observamos qualquer comportamento ns emitimos juzo sobre o mesmo. Avaliamos o que para ns certo ou errado e fazemos um julgamento de valores. Como missionrios, fazemos um julgamento baseado em nossos princpios cristos, teolgicos, missiolgicos e hermenuticos. Obviamente, precisamos mesmo fazer isso, pois afinal nosso objetivo levar um evangelho que prope mudanas. Mas de extrema importncia observar uma cultura primeiramente na perspectiva mica, procurando compreender como o prprio povo entende cada manifestao cultural e religiosa. Entretanto, ao contrrio da perspectiva tica, a mica no automtica, inevitvel, implcita a nossa viso. Pelo contrrio, precisamos fazer certo esforo para us-la,

    pois equivale a ver o mundo com os olhos do outro. Quando no procuramos entender o povo a partir de uma perspectiva mica,

    geralmente damos respostas para perguntas que no so feitas e nossa apresentao do evangelho fica irrelevante. Por isto, s devemos chegar a concluses culturais depois que adquirimos uma relevante compreenso mica de cada fato.

    Piazza relata o ocorrido com um missionrio catlico na frica. Prximo aldeia onde vivia, havia um local em forma de crculo, com uma estaca no meio e uma cabea de antlope

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    na ponta da mesma. Sempre que os caadores iam empreender uma caada, passavam primeiro neste local, empunhavam seus arcos com a mo esquerda e corriam no sentido anti-horrio atirando flechas naquela cabea de antlope at acertarem o alvo. O missionrio concluiu ento que se tratava de um ritual invocando alguma divindade para ajudar-lhes na caada. Um dia se aproximou de um caador e perguntou se acreditava mesmo que aquele ritual o ajudava a ter sucesso na caada. O caador lhe respondeu que era apenas um treino de pontaria!28 A anlise e concluso daquele missionrio foi puramente tica, baseada nos seus pressupostos. A resposta do caador foi mica. Antes de chegar a uma concluso sobre qualquer fenmeno, seja cultural, lingstico ou religioso, necessrio alcanar uma relevante compreenso mica do mesmo.

    A ANLISE FENOMENOLGICA NA PRTICA

    Uma pergunta que pode ser feita a esta altura como tudo isso se d na prtica. O antroplogo brasileiro Roberto de Oliveira escreveu um relevante texto sobre pesquisa de campo que pode nos ajudar nesta questo. Para ele, o trabalho do antroplogo olhar, ouvir e escrever29. Isto igualmente vlido para o trabalho do missionrio na sua anlise fenomenolgica.

    Olhar, ouvir e escrever so trs habilidades que todo missionrio precisa desenvolver se quiser compreender o povo para o qual vai ministrar. Oliveira chama essas habilidades de atos cognitivos, pois atravs delas que se torna possvel construir o saber ou organizar o conhecimento adquirido. Olhar muito mais que admirar o extico de forma ingnua, como um turista que, cheio de curiosidade, pra diante do diferente, at ento desconhecido. Olhar observar com ateno e discrio, de forma acurada e intuitiva, tentando perceber o real sentido de cada fenmeno. Portanto, faz-se necessrio treinar o olhar. a partir da observao que se deve fazer perguntas, as quais so fundamentais no processo analtico. Ao observar um fenmeno, queremos logo concluir algo sobre o mesmo, porm, no primeiro momento, muito mais importante que chegar s respostas fazer perguntas. Sem as perguntas certas jamais chegaremos s respostas certas. E perguntas aqui no so argies verbais a serem feitas a um informante, mas sim, questes de anlise que levantamos para ns mesmos e que serviro de um roteiro para nossa observao. A religiosidade do povo se manifesta no seu dia-a-dia, em prticas rotineiras, e no apenas em rituais complexos. Ela permeia todas as reas da vida. Por isso, preciso estar atento o tempo todo e tudo que chamar a ateno deve ser analisado.

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    Por exemplo, no Tor Xacriab, mencionado na introduo deste trabalho, muitas perguntas podem ser feitas. Por que o local do ritual tem o formato de crculo? Por que chamam aquele lugar de terreiro? Pode acontecer em qualquer horrio ou s noite? O que acontece se algum de sangue misturado participar? Parra que os participantes devem estar descalos e vestidos de branco? O que quer dizer a suposta cruz de fumaa? O que vem a ser aqueles objetos usados? Por que s o paj pode manuse-los? Qual a finalidade da jurema? O que eles crem a respeito da entidade Yay? Perguntas. Precisamos fazer perguntas. E no incio o que teremos de palpvel sero as perguntas, pois as respostas s viro com o tempo, e algumas com muito tempo. Faremos essas perguntas a ns mesmos e, quem sabe, algumas vezes teremos a oportunidade de verbalizar com algum. No entanto, as principais respostas no so obtidas atravs de perguntas verbalizadas, pontuais e objetivas, e sim atravs de falas espontneas. Por isso, o segundo elemento igualmente fundamental: alm de olhar, preciso ouvir.

    Ouvir estar atento a conversas informais, narrativas, cnticos, frmulas verbais de rituais. So nas conversas do dia-a-dia que grande parte da religiosidade expressa e comentada. Um ouvido atento perceber o que se comenta sobre os problemas da vida e suas solues, acerca de entidades e a relao das mesmas com a comunidade. A finalidade de cada fenmeno, as normas e regras de cada ritual, os porqus do religioso. Perguntas objetivas dificilmente obtero respostas objetivas, mas conversas informais, na normalidade do dia-a-dia, podem revelar o sentido mais profundo do mundo do outro. Portanto, faz-se necessrio um ouvir disciplinado. claro que, em contexto transcultural, nos primeiros momentos a comunicao ser muito limitada e pouco se obter atravs do ouvir. Mas se o olhar acurado, todas as perguntas que vierem mente desde o primeiro momento podem ser anotadas para uma investigao posterior. Por isso, alm de olhar e ouvir necessrio escrever.

    Escrever registrar de forma organizada todas as impresses, perguntas e concluses. As anotaes pessoais com tempo se tornaro um banco de dados. Em um caderno bem organizado, pode-se, por exemplo, anotar todas as observaes, descrevendo o que se viu e as perguntas que vieram mente, deixando uma parte em branco para o futuro registro das respostas e concluses que se chegar sobre aquele fenmeno. Estas anotaes devem conter elementos como local, dia, horrio, ambiente e a pessoa diretamente envolvida ou observada. Da mesma forma, deve-se registrar futuramente o que levou o observador s concluses. Com registros bem organizados ficar bem mais fcil fazer uma anlise fenomenolgica segura e apresentvel. Se for possvel digitalizar tais registros, melhor ainda. Quando escrevemos,

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    cristalizamos idias, alinhamos raciocnio e documentamos informaes que podero ser teis a outros. Mas, obviamente, todo esse processo deve ser feito com muita discrio e naturalidade. Enquanto o olhar e ouvir acontece no dia-a-dia, junto ao povo, o escrever acontece no gabinete. interessante ter sempre consigo um pequeno bloco e caneta para registro de fatos principais, em especial palavras e expresses desconhecidas, mas o registro detalhado e analtico deve ser feito em casa, na quietude do lar, onde o missionrio pode ficar sos com os seus pensamentos. necessrio disciplina. O ideal ter um horrio dirio para registrar as observaes do dia. Tambm aconselhvel ter um dirio pessoal, alm do caderno de anotaes. No dirio registra-se a experincia pessoal, os principais fatos que marcam o missionrio enquanto pessoa nessa vivncia transcultural. um espao para registrar seus sentimentos, reaes e aprendizado. Isto tornar seu registro histrico. J no caderno de anotaes, registra-se as observaes, o apreendido pelo olhar e ouvir, perguntas sobre a cultura e religiosidade, descrio de rituais e o mximo de fenmenos observados, sempre evitando concluses ticas no primeiro momento, buscando as respostas micas.

    consenso entre antroplogos e fenomenlogos que os primeiros meses do contato so fundamentais nesse processo de observao. Muitos fenmenos se tornaro naturais para o observador em pouco tempo e no mais lhe chamaro a ateno. Por isto, preciso fazer o mximo de anotaes e perguntas j nos primeiros momentos. claro que, algumas questes mais sutis, s sero percebidas com algum tempo de convvio, mas o quanto antes dar incio a essa prtica de registro, melhor.

    Imagine um missionrio chegando pela primeira vez num grupo indgena pouco conhecido, em algum lugar da Floresta Amaznica. Ele no conhece uma palavra sequer do idioma, mas tem um bom olhar etnogrfico e razovel conhecimento etnolgico30. Entrando em uma grande maloca, em poucos momentos seu olhar aguado vasculha o interior da mesma. Logo conta os fogos, acesos ou em resduos de cinzas e carvo, o que indicar possivelmente quantas famlias ou grupos domsticos habitam aquela maloca. Contando as redes de dormir, perceber quantas pessoas ou pelo menos quantos adultos vivem ali. Observando onde esto as armas, como arco e flecha, lanas e zarabatanas, logo ter uma possvel idia se os homens e mulheres dormem juntos ou separados. Os utenslios e vestimentas lhe daro uma boa idia do nvel de contato com a sociedade externa. Observando a estrutura arquitetnica da maloca e relacionando a mesma s informaes disponveis na literatura etnolgica, ser possvel ter uma suspeita de qual famlia etnolingustica aquele grupo deve pertencer.

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    No primeiro momento mais reservado que tiver, registrar todas essas observaes no seu caderno de anotaes. Estas idias iniciais so apenas suspeitas e devero ser confirmadas. Muitas outras perguntas viro sua mente e sero registradas tambm: por que alguns pintam o corpo com listras e outros com crculos? Por que algumas redes esto mais prximas das fogueiras que outras? Por que a maloca no tem janelas?

    Esse missionrio tambm tem um bom treinamento lingstico e, assim, com pouco tempo de convvio j percebe os sons daquela lngua, compreende algumas palavras e at frases mais simples. Comear a tomar nota das nomenclaturas de parentesco, percebendo que os tios paternos so chamados pais e os primos paternos chamados irmos, enquanto o mesmo no se d com os tios e primos maternos. Isto j lhe dar uma boa idia acerca do sistema de parentesco.

    A anlise fenomenolgica acontece no mesmo vis, porm, a subjetividade maior. Poucas concluses sero possveis nos primeiros momentos por se tratar de experincias e no de instituies. O alvo compreender o que cada fenmeno significa para o homem religioso, de forma eidtica e mica. Mas a prtica de observao e elaborao de perguntas a mesma, tendo sempre em mente a pergunta bsica: qual idia est por trs desse fenmeno? Andando nos arredores da aldeia com alguns indgenas, o missionrio observar que eles sempre tocam em uma determinada rvore ao passar por perto. Qual a razo? Do volta ao irem ao rio, para no atravessar um grupo especfico de rvores. Ser um local sagrado? Parece que algumas palavras jamais so pronunciadas por mulheres. Outras, somente o paj pronuncia. Ser uma frmula mgica ou algum tabu? Em alguns lugares que os homens passaram corriqueiramente, as mulheres nem se aproximam. Qual o motivo da restrio? Observando um ritual ele perceber objetos manuseados, palavras e frases proferidas repetidas vezes e alguns nomes at ento no ouvidos. Que objetos so estes? E os nomes, seriam de entidades? preciso fazer perguntas e com o tempo as respostas viro.

    Antes de prosseguir, bom lembrar que a anlise fenomenolgica no um fim em si mesma. Como missionrios, buscamos compreender a cultura, a lngua e a religio de um povo com uma finalidade maior: apresentar-lhes o evangelho. Assim, a fenomenologia, bem como, todos os demais mtodos cientficos aplicados, apenas um meio para alcanar o fim. Portanto, necessrio desenvolver um constante dilogo com a teologia bblica, pois atravs dela que o evangelho ser apresentado de forma relevante. o que veremos no prximo captulo.

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    1 Citado por Filoramo e Prandi. As Cincias das Religies. 1999. p.43.

    2 Husserl. Meditaes Cartesianas. 2001. pp.38,85.

    3 As Linguagens da Experincia Religiosa. 2001. p.25. Croatto era um padre ecumnico, formado em teologia,

    cincias bblicas e orientais e lngua hebraica. Nascido em Crdoba, Argentina, lecionou filosofia, histria das religies e fenomenologia da religio em Buenos Aires. 4 Filoramo e Prandi. As Cincias das Religies. 1999. pp.255-259.

    5 Idem. p.193.

    6 Popovich. Fenomenologia da Religio. 1997. p.4.

    7 A Interpretao das Culturas. 1978. pp.101-142.

    8 Antropologia Cultural. 1961. p.494.

    9 Antropologia Cultural e Social. 1995. pp.367,368.

    10 Magia, Cincia e Religio. 1988. p.41.

    11 Montero. Magia e Pensamento Mgico. 1986. p.8.

  • Fenomenologia da Religio 31

    12 Magia, Cincia e Religio. 1988. pp.32,33,90-93.

    13 Fenomenologia da Experincia Religiosa. 2000. p.142.

    14 Interpretando o Sagrado. 2001. p.135.

    15 Culturas e Religies. 1998. p.13.

    16 Introduo Fenomenologia Religiosa. 1983. p.106.

    17 Origem e Desenvolvimento da Religio. 1993. p.9.

    18 Sagrado em Otto equivalente concepo judaico-crist de Deus (Birck, 1993.164), diferente do

    sagrado de Durkheim e Eliade que pode ser tanto o divino, transcendente, como os objetos onde o divino se manifesta. 19

    O Sagrado. 2005. p.23. 20

    Idem. p.17. 21

    Investigaciones Lgicas. 1999. Tomo II. 1 parte. 22

    Bello. Culturas e Religies. 1998. p.107. 23

    O Fenmeno Religioso. 2004. p.70. 24

    Schleiermacher. Sobre la Religin. 1990. pp.33,35. 25

    A partir da fontica (estudo de todos os sons de uma lngua) e fonmica (estudo dos sons que so relevantes para o falante nativo da mesma lngua), no seu livro Language in Relation to a Unified Theory of the Structure of Human Behavior. 1971. 26

    Antropologia Cultural e Social. 1995. p.340. 27

    Etnologia, Antropologia. 2003. p.193. 28

    Introduo Fenomenologia Religiosa. 1983. p.70. 29

    Oliveira. O Trabalho do Antroplogo. 1996. pp.13-37. Inspirado no livro Olhar, Ouvir e Ler, de Lvi-Strauss. 30

    Etnografia e etnologia so duas reas da antropologia cultural. A etnografia ocupa-se da descrio da cultura, sem preocupar-se com comparao ou anlise. J a etnologia ocupa-se da anlise comparativa dos dados fornecidos pela etnografia.

  • 3 FENOMENOLOGIA DA RELIGIO E TEOLOGIA BBLICA

    Dando Respostas Certas s Perguntas Certas

    Em termos missionrios, nada valer compreender de forma relevante uma religio se no apresentarmos o evangelho tambm de forma relevante mesma. Enquanto lanamos mo da fenomenologia da religio para analisar e compreender a religiosidade do povo, devemos lanar mo da teologia bblica para apresentar respostas relevantes e devidamente contextualizadas s muitas perguntas que a cultura far ao evangelho. Assim, a fenomenologia nos leva s perguntas certas e a teologia bblica fornece as respostas certas. O trabalho missionrio , portanto, uma abordagem multidisciplinar.

    Ento, acrescentemos nossa tabela inicial o respondente:

    Figura 2: A teologia bblica como respondente

    O missionrio corre o risco de levar respostas pr-fabricadas para perguntas que ainda nem conhece. Respostas para perguntas no feitas, por mais profundas que sejam para o prprio missionrio, no surtiro qualquer efeito para o povo. Estamos acostumados a lidar com perguntas como: De onde venho? Para onde vou? Qual o significado da vida? Entretanto, as perguntas da maioria dos povos de cosmoviso no ocidental, em especial os animistas, so diretamente ligadas aos problemas imediatos da vida: Por que estou doente? Por que meu filho morreu? Quem causou a morte dele? Quem ou o que est causando esta seca prolongada?

    Se no tomarmos o devido cuidado, apresentaremos uma teologia importada que pode ter grande relevncia para ns mesmos, mas no fazer qualquer sentido ao povo para o qual ministramos. preciso desenvolver uma teologia bblica que atenda aos anseios do povo, que v de encontro aos seus questionamentos e aos seus problemas da vida.

    Respondente Cincias Utilizadas reas de Anlise

    Cultura

    Lngua

    Religio

    Antropologia Cultural

    Teologia

    Bblica

    Lingstica Antropolgica

    Fenomenologia da Religio

  • Fenomenologia da Religio 33

    TEOLOGIA BBLICA COMO RESPONDENTE CULTURAL

    Esta questo da teologia bblia como respondente cultural tem sido oportunamente levantada por Paul Hiebert1. Para ele, quando da interao do evangelho com a cultura, de extrema importncia a elaborao de teologias bblicas que vo de encontro a questes especficas. o que ele chama de contextualizao crtica no processo de lidar com o velho crenas, rituais, histrias, canes, costumes, artes, msicas, etc. Aluna de Hiebert, foi a lingista-tradutora, bem como antroploga americana, Frances Popovich2 que levantou a mesma questo no meio missionrio brasileiro. Teologia bblica diferente de teologia sistemtica. Ambas partem da Bblia como revelao divina, mas andam por caminhos diferentes. A teologia sistemtica tem um fundamento mais filosfico e trabalha na elaborao de verdades eternas, atemporais e supraculturais, numa perspectiva lgica. A teologia bblica visa a aplicabilidade prtica, trabalhando com ensinos e casos bblicos que se apliquem diretamente a situaes reais e temporais, dentro de uma determinada cultura. A teologia sistemtica responde pergunta: quais so as verdades universais imutveis? J a teologia bblica responde pergunta: o que significam as passagens bblicas no tempo que elas foram escritas e que lies podemos aprender delas nos dias de hoje, em situaes especficas?3

    Observe, portanto, que a teologia bblica sempre aplicada e no filosfica como a teologia sistemtica. A questo central no o que a Bblia diz sobre determinado tema, mas o que ela ensina a determinada situao. As cartas de Paulo, na sua maioria, so bons exemplos de teologias bblicas. Observe a primeira carta aos Corntios e verificar que Paulo est o tempo todo elaborando teologias bblicas em resposta a situaes especficas. Nos captulos 1.10 a 3.23, ele elabora uma teologia sobre unidade, em resposta a questes de divises internas na igreja; captulo 4, uma teologia do apostolado, em resposta a distores na compreenso deste ministrio; captulo 5, uma teologia de disciplina eclesistica em resposta a problemas de aceitao do pecado dentro da igreja; captulo 6.1-11, uma teologia de conduta crist, em resposta a problemas de processos judiciais entre cristos; 6.12-20, uma teologia de pureza pessoal, em resposta a questes de sensualidade; captulo 7, uma teologia de famlia, em resposta a perguntas sobre o matrimnio e celibato; captulos 8.1 a 11.1, uma teologia de santidade e liberdade crist, em resposta a perguntas sobre alimentos sacrificados a dolos e escndalos entre irmos; captulo 11.2-34, uma teologia de liturgia e submisso da mulher, em resposta a questes de desordem no culto; captulos 12 a 14, uma teologia dos

  • Fenomenologia da Religio 34

    dons espirituais, em resposta a perguntas sobre os mesmos; e, captulo 15, uma teologia da ressurreio, em resposta a ensinos errneos que estavam sendo difundidos sobre tal assunto.

    Infelizmente pouca nfase tem sido dada teologia bblica nos currculos de treinamento teolgico e missionrio. A primazia sempre da teologia sistemtica. Esta importante e necessria, pois atravs da mesma que se adquire um conhecimento macro-teolgico consolidando convices, entretanto, ela tem suas limitaes. Como comenta Hiebert, a teologia sistemtica desempenha um papel em ajudar-nos a desenvolver uma cosmoviso bblica, mas no tem sido a fora motivadora para conduzir pessoas e igrejas s misses4. Vale lembrar, que a teologia sistemtica surgiu em contextos culturais especficos para dar respostas especficas a questes especficas do seu tempo. Ela essencialmente ocidental, portanto, d respostas a uma cosmoviso ocidental. O missionrio que vai trabalhar em uma cultura no ocidental se valer muito pouco da nossa teologia sistemtica se quiser apresentar respostas relevantes, pois aquela cultura ter as suas prprias perguntas.

    AS PERGUNTAS SO CULTURAIS E OCULTAS

    A dinmica de perguntas e respostas deste captulo diferente do que foi tratado no captulo anterior. As perguntas do captulo anterior podem ser chamadas de antropolgicas e as respostas de culturais. As deste captulo sero chamadas de perguntas culturas e respostas bblicas. Como visto, as perguntas antropolgicas so aquelas feitas pelo pesquisador cultura, questionamentos intuitivos, na maioria das vezes no verbalizados, na busca de compreenso da cultura em estudo. E as respostas culturais so aquelas dadas pela cultura ao pesquisador ou, a bem da verdade, as concluses que o pesquisador chega em resposta aos seus questionamentos. J as perguntas culturais so aquelas que a cultura far ao evangelho

    quando abordada pelo mesmo e as respostas bblicas so aquelas que a Bblia, como Palavra de Deus, atemporal e supracultural, dar respectiva cultura.

    Figura 3: Dinmica de perguntas/respostas

    Dinmica de Perguntas Respostas

    Respostas

    Culturais: Cultura Pesquisador

    Bblicas: Evangelho Cultura

    Perguntas

    Antropolgicas: Pesquisador Cultura

    Culturais: Cultura Evangelho

  • Fenomenologia da Religio 35

    Entretanto, toda cultura auto-suficiente e completa. ingenuidade missionria pensar que os povos esto culturalmente espera de explicaes para fatos no resolvidos na sua religiosidade. Pelo contrrio, para cada anseio existencial, h uma soluo cultural elaborada e praticada por incontveis anos. Desta forma, medida que o evangelho vai sendo apresentando que perguntas culturais vo surgindo. Os novos valores e princpios causam mudanas e situaes novas, com as quais o povo no est acostumado a lidar. E um erro que s vezes o missionrio incorre achar que o povo ir verbalizar todos os questionamentos que surgirem. Na prtica, isto nem sempre acontece. A tendncia natural de qualquer povo compreender o evangelho a partir dos seus pressupostos religiosos. Portanto, preciso estar fazendo uma leitura cultural a todo tempo para perceber quais so as perguntas que esto surgindo e apresentar respostas relevantes para as mesmas. o que David Hesselgrave chama de estudo paralelo das Escrituras e das pessoas nos seus contextos culturais. No basta conhecer a Palavra, preciso conhecer bem as pessoas para perceber suas perguntas5. S ento respostas relevantes podem surgir. Se a teologia bblica no der as respostas, a cultura local dar, o que resultar num sincretismo religioso.

    Em uma determinada cultura, para os jovens serem aceitos como adultos pela sociedade, passam por complexos rituais de iniciao, envolvendo uma srie de sacrifcios a entidades espirituais. Quando abordada pelo evangelho e chegando concluso de que tais sacrifcios so condenados pelo mesmo, certamente essa cultura perguntar: e agora, como nossos jovens se tornaro adultos, podendo constituir famlia? Esta uma pergunta cultural que demanda uma resposta bblica. E muito provavelmente ela no ser verbalizada, cabendo ao missionrio perceb-la e ajudar o povo a achar a resposta.

    Para Hiebert, h trs possibilidades aqui6. Primeiro, a negao desse rito, o que seria uma rejeio da contextualizao ou anti-contextualizao. Ou seja, o rito de passagem seria simplesmente proibido por se tratar de uma prtica animista e antibblica. Isto causaria um vcuo cultural gerando problemas a longo prazo. Um deles que a igreja se tornaria uma comunidade culturalmente alienada, pois no passando por nenhum rito de iniciao, os jovens crentes no seriam aceitos como adultos pela sociedade e, logo, no poderiam contrair matrimnio culturalmente aceitvel. Jamais poderiam se tornar lderes comunitrios e no teriam voz ativa nem mesmo para pregar o evangelho. Dessa forma, o evangelho seria sempre

    estrangeiro e conseqentemente rejeitado. Ou a igreja continuaria praticando os ritos de iniciao s escondidas, o que resultaria em sincretismo.

    A segunda possibilidade a aceitao desse rito, o que seria uma contextualizao acrtica ou hiper-contextualizao. Em especial no tempo em que vivemos, onde o pluralismo

  • Fenomenologia da Religio 36

    e relativismo ditam regras, a contextualizao acrtica um dos principais riscos no trabalho missionrio. Elementos como esse podem ser aceitos como no danosos ao evangelho por se tratar apenas de manifestaes culturais. Alguns entendem que o diferente no deve ser confrontado pelo missionrio, deixando a cargo dos prprios convertidos perceber e abandonar as prticas anti-bblicas. Entendemos ser ingenuidade missiolgica optar por este caminho. verdade que mudanas no devem ser foradas, mas papel do missionrio apresentar de forma compreensvel e aplicvel todo o evangelho, e, como sabemos, o mesmo pressupe mudanas. O principal problema da contextualizao acrtica que elementos condenveis so aceitos como legtimos causando igualmente o sincretismo religioso.

    A terceira opo, e nica vivel, compreender essa pergunta cultural e respond-la de forma relevante a partir da elaborao de uma teologia bblica especfica para o caso. o que Hiebert tem chamado de contextualizao crtica. A anti-contextualizao resultado do fundamentalismo teolgica e sua principal conseqncia tem sido o sincretismo religioso. A hiper-contextualizao resultado do liberalismo teolgico e sua principal conseqncia tem sido o nominalismo religioso. Contextualizao crtica a saudvel aplicao da teologia bblica a um contexto cultural especfico, de forma tal que o Evangelho se torna compreensvel e relevante para aqueles que o recebem (e mesmo para os que o rejeitam), e seu principal resultado tem sido o surgimento de igrejas biblicamente saudveis e culturalmente aceitveis.

    AS RESPOSTAS SO BBLICAS E REVELADAS

    Se por um lado as perguntas culturais so na maioria das vezes ocultas, pouco perceptveis, as respostas bblicas so reveladas, estando ao nosso dispor na Palavra de Deus. Basta encontr-las e auxiliar os crentes na compreenso das mesmas. Neste processo de elaborao de respostas bblico-teolgicas os convertidos da cultura local devem ser os principais agentes, sendo o missionrio um facilitador. o processo da contextualizao crtica e Hiebert sugere alguns passos a serem seguidos7.

    Primeiro, a igreja local ou algum dos seus lderes deve perceber a necessidade de repensar a prtica cultural. Em alguns casos, os prprios convertidos logo percebero a disparidade de algumas prticas com o evangelho. Mas caso isto no acontea, o missionrio poder direcionar ensinamentos bblicos sobre reas problemticas da cultura, at que algum perceba. Obviamente, por trs de tudo isso dever ter muita orao, para que o Senhor faa a Sua Palavra se tornar viva para o povo.

  • Fenomenologia da Religio 37

    No segundo passo, os lderes da igreja e o missionrio devem reunir toda a igreja local para uma anlise no crtica do costume em questo. O objetivo deve ser compreender, de forma profunda, a prtica cultural e o que a mesma envolve. Neste momento no deve haver qualquer crtica, pois as pessoas podem se fechar. a busca de uma compreenso mica que est em questo.

    O terceiro passo ser o estudo do que a Bblia tem a dizer sobre tal prtica, seja atravs de ensinamentos explcitos ou casos registrados na Palavra de Deus. aqui que o missionrio ter mais a contribuir, pois dispe dos recursos da exegese. Mas de extrema importncia que a igreja seja apenas conduzida nessa busca pelo ensinamento bblico. Ainda que o missionrio j saiba de antemo o que a Bblia diz, seu papel deve ser ajudar os crentes a encontrarem as respostas. Este o ponto crucial, pois se as pessoas no compreenderem de forma clara o ensinamento bblico, no sero capazes de lidar com seus prprios costumes culturais. A teologia bblica elaborada pela igreja local. uma autoteologizao.

    O quarto passo a avaliao que a congregao local dever fazer, agora criticamente, da prtica em questo, luz do ensinamento bblico. Pode ser que se chegue concluso de que tal prtica no antibblica, mantendo a mesma. Mas no sendo este o caso, ser necessria uma deciso em relao mesma. importante que a igreja tome tal deciso, pois os convertidos conhecem sua prpria cultura e as implicaes de mudanas melhor que o missionrio.

    Pode ser que eles decidam preservar a prtica, apenas eliminando os elementos que so realmente contrrios ao evangelho ou apenas mudando alguns por outros elementos cristos. Pode ser que a congregao decida criar um outro ritual, culturalmente aceitvel, mas baseado em princpios cristos. Isto chamado de substituto funcional e tem sido a opo em muitos casos. No caso dos rituais de iniciao na vida adulta, muitas igrejas da frica tm usado como substituto funcional o batismo. Os adolescentes so batizados na mesma poca que passariam pelo ritual e assim so igualmente aceitos como adultos. Pode ser tambm que a igreja opte por introduzir um ritual j praticado por outros grupos cristos, porm, adaptando-o sua cultura local. So muitas as opes e, claro, algumas vezes o missionrio dever fazer questionamentos sobre elementos que a prpria igreja no esteja percebendo nesse processo, mas a deciso final deve ser da igreja local. E o missionrio nem sempre vai concordar com a deciso da igreja, mas at onde a conscincia permitir, importante aceitar, pois afinal, a igreja local igualmente guiada pelo Esprito Santo.

    A necessidade de algumas respostas bblicas s ser percebida quando surgir algum problema relacionado igreja nascente. Outras, entretanto, so claramente perceptveis j no

  • Fenomenologia da Religio 38

    incio da anlise fenomenolgica. Por exemplo, uma cultura que pratica a poligamia8, mais cedo ou mais tarde demandar uma teologia de famlia. Uma cultura que na sua cosmologia existe mais de um Ser Supremo demandar uma teologia da trindade e assim por diante. assim que Popovich prope a elaborao de algumas teologias necessrias para povos animistas. Para atender aos anseios animistas sobre questes de origem, sentido e destino do mundo, das sociedades e indivduos, ela prope uma teologia de histria csmica. Para questes de direo, cura, proviso e proteo, uma teologia de histria humana. Para questes relacionadas natureza, uma teologia de histria natural9.

    Mas as principais perguntas culturais estaro relacionadas a questes prticas do dia-a-dia. Especialmente culturas animistas, demandam respostas menos reflexivas e mais prticas. necessrio deixar claro, portanto, que as respostas de Deus no so manipulveis. Na mesma linha de raciocnio de Popovich, mas se referindo especificamente ao contexto Konkomba-Limonkpeln do oeste africano, o missilogo e antroplogo brasileiro, Ronaldo Lidrio, cita algumas teologias necessrias para a evangelizao de animistas. Para responder a questes como: se Deus maior, ento por que os crentes continuam sofrendo? Uma teologia de sofrimento e maldio. O crente deve participar de guerras tribais? Teologia de guerra e paz. Se Deus cura, por que os crentes adoecem? Teologia de enfermidade e cura. Por que somos sujeitos a ataques espirituais? Teologia de batalha espiritual e sincretismo10.

    Mas, obviamente, mesmo dentro do contexto animista, cada cultura far as suas prprias perguntas e cada uma demandar respostas bblicas relevantes e especficas. por esta razo que, em um currculo de treinamento missionrio, deve ser dada nfase ao desenvolvimento de teologia bblica, pois ela no apenas dar as respostas certas para as perguntas do povo, como dar diretrizes para toda a vida pessoal e ministerial do missionrio.

    Um requisito bsico para perceber as perguntas certas compreender o universo do homem religioso. Como ele v o mundo ao seu redor? Na sua tica, quais entidades habitam esse mundo? o que veremos no prximo captulo.

    EXERCITE... Analise quais so as perguntas dos Corntios e as respostas bblicas elaborados por

    Paulo, na Segunda Carta aos Corntios.

    Ao seu ver, quais so as principais perguntas da igreja brasileira e quais seriam as respostas bblicas?

  • Fenomenologia da Religio 39

    V MAIS LONGE... CARRIKER, C. Timteo (org.). Misses e Igreja Brasileira. Vl. 3. Perspectivas Teolgicas.

    So Paulo: Mundo Cristo, 1993.

    HESSELGRAVE, David J. Cosmoviso e Contextualizao. In: WINTER, Ralph D. & HAWTHORNE, Steven C. Misses Transculturais Uma Perspectiva Cultural. So Paulo: Mundo Cristo, 1981.

    --------. Plantar Igrejas Um Guia para Misses Nacionais e Trans-culturais. So Paulo: Vida Nova, 1984.

    --------. A Comunicao Transcultural do Evangelho. Vl. 1. Comunicao, Misses e Cultura. So Paulo: Vida Nova, 1994.

    HIEBERT, Paul G. O Evangelho e a Diversidade das Culturas Um Guia de Antropologia Missionria. So Paulo: Vida Nova, 2001a.

    --------. Guerra Espiritual e Cosmoviso. In: TAYLOR, William D. (org.). Missiologia Global Para o Sculo XXI A Consulta de Foz de Iguau. Londrina: Descoberta, 2001b.

    KAISER JR., Walter. Teologia do Antigo Testamento. So Paulo: Vida Nova, 1980.

    LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. So Paulo: Exodus, 1997.

    LAUSANNE, Srie. Vl. 3. O Evangelho e a Cultura A Contextualizao da Palavra de Deus. So Paulo: ABU Editora, 1983.

    LIDRIO, Ronaldo Almeida. Comunicao Missionria Comparando a Cultura Ocidental com a Cosmoviso Konkomba. Cambuci: JME, 1998.

    NICHOLLS, Bruce J. Contextualizao Uma Teologia do Evangelho e Cultura. So Paulo: Vida Nova, 1983.

    ROBERTSON, O. Palmer. O Cristo dos Pactos. Campinas: LPC, 1997.

    VAN GRONINGEN, Gerard. Revelao Messinica no Velho Testamento. Campinas: LPC, 1994.

    WRIGHT, George Ernest. O Deus Que Age. So Paulo: ASTE, 1967.

    NOTAS

    1 Ver especialmente O Evangelho e a Diversidade das Culturas, 2001a. pp.169-192. Mais recentemente, Hiebert

    passou a usar a expresso teologia missiolgica (ver Guerra Espiritual e Cosmoviso, 2001b. pp.225-245), mas, neste trabalho, optamos pela expresso teologia bblica como equivalente quela. 2 Fenomenologia da Religio. 1997. p.10. A Dra. Frances Blok Popovich missionria americana, com

    formao em enfermagem, lingstica, sociologia e antropologia. Juntamente com seu esposo Harold Popovich, trabalhou entre os Maxakali de 1959 a 1981, como tradutora da SIL, deixando o Novo Testamento traduzido para aquela lngua. Passou a ensinar antropologia e fenomenologia da religio no CEM, em Viosa, e na ALEM,

  • Fenomenologia da Religio 40

    em Braslia. Foi a primeira a lecionar fenomenologia no meio missionrio brasileiro, nos idos de 1987. Hoje, vive com seu esposo nos Estados Unidos. 3 Hiebert. Guerra Espiritual e Cosmoviso. 2001b. p.231.

    4 Idem. p.228.

    5 Plantar Igrejas. 1984. p.152.

    6 O Evangelho e a Diversidade das Culturas, 2001a. pp.183-190.

    7 Idem. pp.186-190.

    8 Poligamia o termo antropolgico para a prtica de casamento com mais de um cnjuge. O casamento de um

    homem com mais de uma mulher poliginia e o casamento de uma mulher com mais de um homem poliandria. 9 Fenomenologia da Religio. 1997. pp.10,11.

    10 Comunicao Missionria. 1998. pp.61-63.

  • 4 O UNIVERSO DO HOMEM RELIGIOSO

    Distinguindo o Sagrado do Profano

    Depois das consideraes anteriores, podemos entrar assim nos campos mais especficos da fenomenologia da religio. Uma questo bsica na anlise fenomenolgica de qualquer religio procurar entender como o homem religioso distingue e classifica os vrios elementos do seu mundo.

    No seu clssico As Formas Elementares de Vida Religiosa (1912), mile Durkheim prope uma classificao do universo em dois domnios totalmente distintos e fundamentais, que ele chama de profano e sagrado:

    Todas as crenas religiosas conhecidas, sejam elas simples ou complexas, apresentam um mesmo carter comum: supem uma classificao das coisas, reais ou ideais, que os homens representam, em duas classes ou dois gneros opostos, designados geralmente por dois termos traduzidos relativamente bem, pelas palavras profano e sagrado.1

    Essa concepo tornou-se clssica nos estudos da religio, por fugir da percepo ocidental do mundo dividido em natural e sobrenatural, material e espiritual, percepo esta aliengena para a maioria dos povos no ocidentais. Essa percepo ocidentalizada do universo por vezes interfere na anlise de culturas no ocidentais. Evans-Pritchard sugere que nem devemos perguntar se o povo faz diferena entre natural e sobrenatural, mas sim, se ele v alguma diferena entre acontecimentos que ns, observadores, classificamos como naturais e msticos2.

    Rudolf Otto tambm escreveu sobre o sagrado (1917), mas identificando-o basicamente com o conceito judaico-cristo de Deus. Mircea Eliade ento retomou o assunto e dedicou-se ao mesmo, a ponto de lanar um pequeno livro com o ttulo O Sagrado e o Profano (1957), o qual tornou-se leitura obrigatria no estudo das religies. Para ele, o homem religioso, em especial aquele de sociedades primitivas, cria uma tenso constante entre o comum (profano) e o incomum (sagrado). difcil conceituar o sagrado, pois o mesmo muito abrangente e varivel. Assim, Eliade prefere discorrer sobre o mesmo em forma de contraste.

    Ora, a primeira definio que se pode dar ao sagrado que ele se ope ao profano.3

    Todas as definies do fenmeno religioso apresentadas at hoje mostram uma caracterstica comum: sua maneira cada uma delas ope o sagrado e a vida religiosa ao profano e vida secular.4

  • Fenomenologia da Religio 42

    Temos aqui as duas dimenses bsicas de classificao do universo para o homem religioso: o sagrado e o profano. Esta forma de perceber o universo pode ser observada em todas as cosmovises. Cada cultura, porm, determinar suas prprias categorias e subcategorias.

    Profano aqui no deve ser entendido como mundano, mpio, mas como terreno, comum, material, o que no possui qualquer virtude especial. Todos os elementos materiais so, a princpio, profanos. Pertencem a este mundo, nossa dimenso existencial. So comuns, no possuindo nada de especial. Assim, uma pedra, uma rvore, uma casa, um animal ou qualquer outro elemento ou objeto, so, a princpio, profanos.

    Sagrado o oposto. Parece simplismo, mas o que Eliade quis dizer que sagrado tudo aquilo que no profano. Conseqentemente, sagrado o incomum, pode ser transcendente, divino, uma entidade espiritual que habita outra dimenso ou, como nas palavras de Otto, o totalmente outro5. Aqui e em todo este trabalho, divino no sinnimo de Deus, mas sim, de seres espirituais sejam eles bons ou maus. O divino pertence ao domnio do sagrado, mas no o totaliza, pois o sagrado pode ser tambm um objeto aparentemente comum que, porm, desperta no homem religioso admirao, espanto ou at assombro, causando-lhe o sentimento de estado de criatura6. Sobre isto escreveu Durkheim:

    Mas por coisas sagradas, no se devem entender simplesmente esses seres pessoais que chamamos deuses ou espritos; um rochedo, uma rvore, uma fonte, uma pedra, uma pea de madeira, uma casa, enfim, qualquer coisas pode ser sagrada.7

    Objetos podem ser sacralizados com a manifestao do sagrado nos mesmos. Apesar de continuar sendo, fisicamente, um objeto natural, simbolicamente representa algo incomum. Assim, o homem religioso distingue uma rvore de outra rvore do mesmo gnero e famlia. Para ele, uma profana e a outra sagrada, apesar de serem semelhantes e produzirem frutos idnticos. Mas o sagrado pode tambm ser profanado, e por isto surge em torno dele os tabus, que nada mais so do que meios de proteger o sagrado, de impedir a profanao do mesmo.

    O sagrado pode ser o desejado, bom e