fenomenologia e fé

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 FENOMENOLOGIA E FÉ: A SÍNTESE DO NEOMODERNISMO Don Davide Pagliarani “No momento e na medida em que, na vida de cada um dos seres humanos, é tomada uma decisão (e isto só pode ser considerado impossível nos casos patológicos), tal decisão moral é vista como um propósito voluntário que realiza até o conceito de ato sobrenaturalmente elevado, permeado de fé e, por isso, salutar.” (Karl Rahner, saggi di antropologia sopronnaturale (Ensaios de Antropologia Sobrenatural).  À primeira vista, a cultura dos anos novecentos parece extremamente heterogênea: ela se apresenta como um conjunto de escolas filosóficas e de autores que, freqüentemente, se contrapõem uns aos outros, e não raro chegam a definir-se e a identificar, definitivamente, as próprias doutrinas, com relação àquelas das outras escolas, examinando-as, criticando-as, e, enfim, tomando a devida distância das mesmas. Ora, sabemos que o modernismo nasce da reinterpretação do conteúdo doutrinal do catolicismo, à luz dos preconceitos fundamentais da filosofia contemporânea. Assim, se é tentado a pensar que existem diversas formas de modernismo, separadas entre si, cada uma delas correspondendo a uma expressão particular do pensamento moderno. Na realidade, não é assim. Todas as diversificações da cultura contemporânea têm em comum, praticamente, os pressupostos metodológicos, e são reduzíveis, em última instância, à Fenomenologia do início do século, cujas bases foram lançadas por Edmund Husserl. Buscaremos aqui individualizar, sinteticamente, as instituições fundamentais dessa nova filosofia, e, num segundo momento, as alterações da doutrina católica pelas quais aquela é responsável na osmose que o neomodernismo realizou: constataremos que à influência da Fenomenologia são reconduzíveis alguns dentre os traços mais característicos e essenciais da nova rota eclesial, por causa do lugar que essa filosofia ocupa no panorama cultural do século vinte. Portanto, se bem que as considerações que aqui vamos tecer possam apresentar uma certa abstração, não estamos procurando “cabelo no ovo”, mas com certeza a pedra angular sobre a qual foi construído o edifício da teologia neomodernista *. * sobre o assunto, ler “A Nova Teologia – Os que pensam que venceram”, Hirpinus, Editora Permanência, C.P . 62051, CEP 22252-970, Rio, 2001. ( www.permanencia.org.br/livros  ). T el/fax: 0xx 21 2616-2504.

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O ESTUDO TRATA DA INTROMISSÃO DA FENOMENOLOGIA SOBRE A TEOLOGIA CATOLICA.

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  • FENOMENOLOGIA E F: A SNTESE DO NEOMODERNISMO

    Don Davide Pagliarani

    No momento e na medida em que, na vida de cada um dos seres humanos, tomada uma deciso (e isto s pode ser considerado impossvel nos casos patolgicos), tal deciso moral vista como um propsito voluntrio que realiza at o conceito de ato sobrenaturalmente elevado, permeado de f e, por isso, salutar. (Karl Rahner, saggi di antropologia sopronnaturale (Ensaios de Antropologia Sobrenatural).

    primeira vista, a cultura dos anos novecentos parece extremamente heterognea: ela se apresenta como um conjunto de escolas filosficas e de autores que, freqentemente, se contrapem uns aos outros, e no raro chegam a definir-se e a identificar, definitivamente, as prprias doutrinas, com relao quelas das outras escolas, examinando-as, criticando-as, e, enfim, tomando a devida distncia das mesmas. Ora, sabemos que o modernismo nasce da reinterpretao do contedo doutrinal do catolicismo, luz dos preconceitos fundamentais da filosofia contempornea. Assim, se tentado a pensar que existem diversas formas de modernismo, separadas entre si, cada uma delas correspondendo a uma expresso particular do pensamento moderno. Na realidade, no assim. Todas as diversificaes da cultura contempornea tm em comum, praticamente, os pressupostos metodolgicos, e so reduzveis, em ltima instncia, Fenomenologia do incio do sculo, cujas bases foram lanadas por Edmund Husserl. Buscaremos aqui individualizar, sinteticamente, as instituies fundamentais dessa nova filosofia, e, num segundo momento, as alteraes da doutrina catlica pelas quais aquela responsvel na osmose que o neomodernismo realizou: constataremos que influncia da Fenomenologia so reconduzveis alguns dentre os traos mais caractersticos e essenciais da nova rota eclesial, por causa do lugar que essa filosofia ocupa no panorama cultural do sculo vinte. Portanto, se bem que as consideraes que aqui vamos tecer possam apresentar uma certa abstrao, no estamos procurando cabelo no ovo, mas com certeza a pedra angular sobre a qual foi construdo o edifcio da teologia neomodernista *.

    * sobre o assunto, ler A Nova Teologia Os que pensam que venceram, Hirpinus, Editora Permanncia, C.P. 62051, CEP 22252-970, Rio, 2001. (www.permanencia.org.br/livros). Tel/fax: 0xx21 2616-2504.

  • A COLOCAO HISTRICA DA FENOMENOLOGIA

    Digamos de uma vez que a Fenomenologia no , propriamente, um sistema filosfico com metafsica, cosmologia, tica, etc., prprias, no sentido tradicional desses termos, mas sim uma posio, e talvez em seguida um mtodo, construdo a priori para investigar a realidade. Ela nasce oportuno sublinhar -, em um clima de profunda desiluso, devido decadncia e inutilidade, cada vez mais evidente, do idealismo alemo, que dominou de maneira preponderante a cultura europia do sculo XIX. necessrio, portanto, no esprito de Husserl, seja abstrada toda a filosofia precendente e fundada uma a outra, segura e apodctica, sobre pressupostos novos: preciso superar o prprio cogito ergo sum cartesiano, do qual nasceu a filosofia moderna, substitu-lo por elementos novos, deixar a vez para todas as especulaes abstratas e inconcludentes, para alcanar, finalmente a coisa mesma. Isto no significa, bem entendido, um retorno ao realismo escolstico: Husserl prope um entrincheiramente face realidade absolutamente indito na histria do pensamento ocidental, uma perspectiva gnoseolgica na qual os prprios termos utilizados adquirem um novo significado. Esta primeira observao imprescindvel: no h mais sentido o que seria um erro ingnuo , em atacar-se o mtodo fenomenolgico nos seus resultados, ou nas suas concluses, utilizando na sua acepo tradicional os termos clssicos do idealismo, do realismo, do ceticismo, do empirismo, etc. 1, o que seria pretender que um trem que transita sobre uma ponte se encontre com o trfego que navega sobre o rio debaixo dela: os prprios termos verdade e erro tm, fenomenologicamente falando, um significado novo. Posta esta preciso, focalizaremos, agora, nossa ateno sobre pressupostos tericos sobre os quais se fundamenta a Fenomenologia e, ao mesmo tempo, sobre a atitude e a posio intelectual que animam essa filosofia, e, em conseqncia, as vrias correntes do pensamento contemporneo, todo ele classificvel mesmo que sob termos diversos, e s vezes aparentemente contrrios , como concluses da premissa husserliana.

    O QUE O MTODO FENOMENOLGICO

    A Fenomenologia comea com uma radical colocao entre parnteses de tudo aquilo que o esprito humano, espontaneamente, d por aceito, de tudo o que o homem julga intil demonstrar, porque se impe como evidente inteligncia: caindo, assim, sob o cutelo dessa suspenso universal de juzo, todo o pensamento filosfico precedente, a certeza mais natural e imediata, como a existncia do mundo externo, dos princpios que o regem, o realismo inato em todo homem, etc.; esta primeira operao o que Husserl chama com um termo grego, epoch, ou reduo fenomenolgico. Isso lembra a dvida universal e metdica de Descartes, com a diferena, - absolutamente indesculpvel - de que

  • at o cogito cartesiano (a certeza do Eu pensante) posto entre parnteses. Sobre esse ponto Husserl polemiza com Descartes (e, indiretamente, com toda a filosofia idealista)2, acusando-o de ter confiado nessa certeza ingenuamente, e oxal, lanado um fundamento universal, de todo saber humano, errado. Em Descartes, est, de fato, ainda presente a inteno de descobrir um primeiro princpio, uma idia fundamental, da qual deduzir, e qual se possa reconduzir o conjunto dos enunciados do prprio sistema filosfico. O que resta, enfim, ao intelecto espoliado at da certeza psicolgica de ser um Eu pensante, a que se reduz em outras palavras o Eu puro que aspira Husserl? Resta, como resduo, a conscincia pura, purificada e isenta de qualquer preconceito, ou idia no demonstrada e, por isso, injustificada. Essa conscincia se apresenta, pois, privada dos conceitos, no sentido tradicional do termo. Todavia, isso sempre intencional, isto , conscincia de alguma coisa: esta alguma coisa de que a conscincia consciente, constituda, de fato, da conscincia mais ntima e anterior a qualquer idia ou a qualquer raciocnio que possam ser concebidos pelo intelecto. mesmo nesse fato de conscincia, nesse resduo fenomenolgico, que Husserl pra, finalmente, por ter encontrado o ponto de partida seguro e inequivocvel, para fundar uma filosofia apodctica.

    A Fenomenologia se atribui, como fim prprio, a observao desses fenmenos de conscincia. Um ligeiro comentrio: um fato de conscincia antes de tudo, uma realidade vivida, no tanto aferrvel intelectualmente quanto tanto na dimenso existencial prpria a qualquer conscincia 3; em segundo lugar e por conseguinte , isso constitudo por uma experincia interior, com a necessria conseqncia que, de certo e seguro, resta somente aquilo que interno conscincia, enquanto sobre toda a realidade externa praticada a suspenso de juzo; esta no negada, mas posta entre parnteses, reconhecida como contingente, isto , como algo que pode ser ou no ser, e por isso imprpria para funcionar como suporte especulao filosfica: A vontade de voltar coisa, fundando uma cincia rigorosa do real, poderia fazer pensar que tal real seja algo objetivamente existente. Nada mais falso. Husserl se pe, decididamente, na posio de Descartes, afirmando que a nica certeza absoluta aquela do eu penso, estendendo, todavia, o penso a todo tipo de experincia psquica e entendendo por penso exatamente, no tanto uma idia quanto, sobretudo, uma experincia interior.4 A esses pressupostos metodolgicos, so reconduzveis como j dissemos , as principais correntes filosficas contemporneas: o Existencialismo, por exemplo, partindo da centralidade dos fatos da conscincia intensos, como realidade vivida, radicalizar a tal ponto essa intuio at no contentar-se mais com uma observao passiva e desinteressada dos mesmos, mas pretender construir-lhe a si mesmo, alcanando assim a apoteose histrica do antropocentrismo; o Personalismo, por sua vez, reduzir a pessoa ao conjunto da experincia e da intencionalidade psicolgica, coordenada pela conscincia, partindo mesmo de uma anlise fenomenolgica da prpria pessoa; por fim, a filosofia da linguagem entendeu examinar fenomenologicamente aquelas regras

  • que sempre, e comumente, tm respeitado, e apoiam como preexistentes (so, pois, reduzveis a fatos de conscincia, dos quais no se pode fazer abstrao) a todas as expresses lingsticas; esta ltima escola mostra bem a que pode reduzir-se o mbito da certeza na cultura do sculo XX, dominado pelos pressupostos fenomenolgicos. oportuna, pois, uma viso de conjunto das diferentes correntes de pensamento contemporneas, enquanto peas de um nico mosaico: no se surpreenda, portanto, que algumas vezes, examinando a influncia particular de uma ou de outra escola filosfica a respeito do Neomodernismo, se chegue, por vias diferentes, a concluses semelhantes.

    O LUGAR DO TRANSCENDENTE

    Entre os vrios elementos que a reduo fenomenolgica pe entre parnteses, um merece neste estudo uma meno particular: trata-se da existncia do Transcendente Absoluto, isto , de Deus. Se, de fato, o mundo externo posto entre parnteses (donde a certeza se reduz ao fato nico da conscincia), em conseqncia, at mesmo o Ente Supremo, cuja existncia posso alcanar por induo, a partir dos entes criados, fica posto entre parnteses. A Fenomenologia apresenta-se, assim, como fundamentalmente agnstica, considerando que, na sua perspectiva, de absoluto resta apenas a conscincia, a qual a nica que pode fornecer dados verdadeiros e seguros, j se pode entrever, como nica via de escape a esse agnosticismo de fundo, a reduo do Absoluto, e de qualquer valor religioso e moral (at mesmo transcendental), a um mero fato de conscincia, numa perspectiva imanentista, de tal modo extremo, que no h precedentes na histria do pensamento ocidental. Para caracterizar a radicalidade de tais preconceitos, interessante notar como a Descartes ainda era advertida, imediatamente, a necessidade de demonstrar a existncia de Deus como ser transcendente, como que garante da veracidade daquelas idias presentes no intelecto (posto que qualquer verdade ainda era considerada como dependente, de qualquer modo, da Verdade Primeira) 5. Para Husserl, um tal desiderato carece de sentido, j que a conscincia substituiu, definitiva e completamente, o Absoluto. Adquirindo a prerrogativa de afirmar a si prprio como absoluto, o sujeito s tem uma arma contra a invaso da realidade, a da negao, ou melhor, a de fazer como se no fosse... a deciso, sobre a sorte do ser e da transcendncia, deixada inteiramente ao arbtrio da racionalidade que completa a reduo. 6 Desse modo, a conscincia, substituindo-se ao Absoluto, e tornando-se ela prpria absoluta, adquire os caracteres prprios transcendncia (o que conseqncia lgica e necessria do imanentismo radical). Essa conscincia transcendental como Husserl a chama a nica realidade que no cede aos assaltos da reduo fenomenolgica (somente esta no pode ser posta entre parnteses), constitui os significados das coisas, das aes, das instituies, e o sentido do mundo (observando-se que, aqui transcendental quer dizer,

  • Kantianamente, aquilo que est em nossa conscincia enquanto independente da sensibilidade, e at mesmo a priori, mas funcionalmente ordenado constituio da experincia). 7 De fato, eliminando-se qualquer objeto representvel, o sujeito representante permanece, ainda que modificado, e no verdade que estar privado dos contedos: mudar, mas assumindo como contedo a si mesmo. 8 Ora, se se aceita esses preconceitos fenomenolgicos fundamentais que se colocam, imediata e irremediavelmente, mesma perspectiva gnoseolgica de tal modo nova e sui generis, da qual no mais possvel sair, na qual toda palavra adquire um significado novo, e contra a qual como j havamos ressaltado no teria mais sentido uma crtica fundada sobre pressupostos da filosofia tradicional, qualquer termo perderia aquele significado objetivo em relao realidade que pretende exprimir, e, que o esprito humano naturalmente lhe atribusse e assumiria e, seja como for, uma valena necessariamente condicionada pela experincia da conscincia. Dito de outra maneira, a palavra no exprimiria mais a coisa em si, mas a coisa tal e qual a conscincia lhe d e lhe filtra. Em conseqncia, no mais possvel uma controvrsia normal com a Fenomenologia, e por isso no resta seno refutar de imediato essa premissa, constatando simplesmente, como o intento antiidealista de Husserl de retornar coisa mesmo esteja radicalmente falido, e tenha ulteriormente aprisionado, - se bem que de um modo novo -, o pensamento ocidental na jaula do imanentismo. Poderemos, mais tarde, sobre esse ponto desenvolver a anlise do pensamento de Husserl, porm, esta apresentao sumria, do ncleo da sua filosofia, j suficiente para identificar o esprito de fundo e formular algumas consideraes a respeito da influncia determinante, exercida pela Fenomenologia, sobre o Neomodernismo. oportuno ressaltar que Husserl no agiu na primeira pessoa ao aplicar o mtodo fenomenolgico ao estudo da religio, porm alguns dos seus primeiros discpulos, s vezes, por meio de suas posies relativamente heterogneas, entre eles e a respeito daquela do mestre, mas complexamente concordantes sobre a atitude e o mtodo de base, razo pela qual julgamos igualmente oportuno comear nossa anlise a partir do pensamento do prprio fundador da Fenomenologia.

    A ATITUDE DE FUNDO

    J tnhamos assinalado o clima cultural no qual a Fenomenologia tomou p: o incio do Sc. XX caracterizado por uma agitao generalizada dos sistemas filosficos que inspiravam na ocasio. Se de um lado a Fenomenologia reagiu ao Idealismo, a partir dos ltimos anos do Sc. XIX o Espiritualismo (que teria uma influncia determinante sobre o Modernismo clssico, condenado por S. Pio X), reagiu ao Positivismo, mostrando como o homem no poderia nem ser reduzido natureza, nem contentar-se com a certeza cientfica e matemtica a fim de investigar a realidade. Em suma, o que encontramos em um perodo de crise de poca, quando tudo o que tradicional (ainda que s relativa e impropriamente) cai, e cada qual se v tentado, naturalmente, a pr tudo em discusso, ou como

  • sugeriu Husserl , entre parnteses. Neste sentido, a Fenomenologia uma atitude de fundo, antes ainda de ser um mtodo de pesquisa filosfica. Pois bem, essa atitude, constitutivamente antitradicional, influenciou, indubitavelmente, o Catolicismo num perodo, como tambm no contemporneo, no qual, independentemente do prprio Modernismo, existem, certamente, at mesmo causas externas da crise da Igreja, devido a fatores histricos, sociais e polticos. No de espantar, por isso, o fato de reencontrar-se uma certa desenvoltura nos nossos contemporneos ao rejeitar ensinamentos e cnones tradicionais, a respeito dos quais criou-se uma espcie de silenciosa indiferena, e geral desafeio. Bem entendido, no pretendemos demonstrar uma influncia direta da Fenomenologia em nenhum desses casos, mas, sobretudo, ressaltar como a prpria Fenomenologia foi, historicamente, a principal intrprete e catalizadora desse sentimento difuso, o qual pde, dessa maneira, reverberar-se em todos os setores, a comear pelo religioso.

    FENOMENOLOGIA E ESTUDO COMPARADO DAS RELIGIES

    Entre os primeiros discpulos de Husserl, bem cedo alguns consagraram-se aplicao do mtodo fenomenolgico ao estudo das religies. Nota-se entre eles os nomes de Rudolf Otto, F. Heiler, e do holands Van der Leeuw. Esses estudiosos trabalham em ambiente alemo e protestante, no entanto os resultados dos seus estudos exerceram uma influncia considervel sobre telogos catlicos, como Rahner, e sobre o Conclio Vaticano II. Vamos, sinteticamente, seguir o percurso. O que interessa a esses estudiosos, logicamente, o conjunto dos fenmenos religiosos, assim como se do na conscincia; eles esto, por conseguinte, naturalmente compelidos a examinar os fatos religiosos enquanto tais, prescindindo do problema de saber se esta ou aquela religio seja verdadeira ou falsa. Fenomenologicamente falando, essa uma questo sem significado, pois, de verdadeiro e certo s existe o fato de conscincia assim como dado. Nasce assim, sobre novas bases, o estudo comparado das religies, posto que o fenomenlogo nota que todas elas se compem de crena, ritos, oraes, etc... todos os elementos, portanto, da expresso dos precisos e universais fatos da conscincia. Ao contrrio, tudo o que diferencia uma religio da outra no tem mais um interesse preponderante, porque, no sendo um fenmeno universal, no considerado um fato religioso no sentido restrito, mais sim uma peculiaridade de uma religio particular, sobre a qual, em conseqncia, se deve praticar a suspenso de juzo. Podemos imaginar, prontamente, qual seja, em tal perspectiva, o destino dos motivos de credibilidade da Revelao Crist, isto , de todos aqueles elementos prprios nossa religio que mostram que ela a nica verdadeira. 9 Podemos, igualmente, imaginar a transformao de uma coisa partindo de um ponto de vista fenomenolgico, o conceito de Revelao, atravs da qual Deus intervm diretamente na histria, e funda a nica religio verdadeira: tambm esta

  • destinada a ser posta entre parnteses, a menos que se a recupere, de alguma maneira, como fato de conscincia, oxal concedendo-lhe em tal aparncia uma posio de privilgio. Neste ponto, uma objeo poderia ser agitada nos confrontos da nossa crtica: estamos em fase de uma filosofia que, embora carente, considerada isoladamente (enquanto circunscreve o prprio interesse somente aos fenmenos religiosos naturais e universais), permanece uma filosofia e, portanto, deixa a teologia a possibilidade de uma reflexo autnoma, a partir do dado revelado e do elemento sobrenatural. Na realidade, isto no mais possvel, posto que a distino clssica entre Filosofia e Teologia , na prtica, eliminada: Seja qual for a cincia da religio , em ltima anlise, Teologia, enquanto tem o que fazer, no s com fenmenos psicolgicos e histricos, mas, tambm, com o viver realidades transcendentes. 10 Esta afirmao de Heiler a conseqncia lgica e coerente do pressuposto fenomenolgico, segundo qual o Absoluto Transcendente se torna um fato de conscincia. Desse modo, de fato no pode mais existir uma disciplina que fale de Deus, distinta qualitativamente de uma cincia filosfica normal, posto que a experincia do divino reduzida irremediavelmente, a um fato puramente humano e natural. Dessa maneira arruna, tambm, a distino real entre natureza e graa, entre ordem natural e sobrenatural. Essa distino pode continuar a subsistir de forma terica (distino de razo) 11, mas, torna-se inconcebvel uma natureza humana que, concretamente, no desfruta, nesse nterim, e necessariamente, alm disso, da graa sobrenatural. (Este um dos carros-chefes do Neomodernismo, sentena comum, tambm, a todos os telogos catlicos contemporneos, particularmente a de Lubac, Congar, Rahner. Sobre esse ltimo, retornaremos adiante). Alm disso, o estudioso (esta uma tese comum aos filsofos citados), para poder analisar esses fenmenos religiosos, deve, ele prprio, ter experincia, isto , ser um homem religioso na primeira pessoa. No nos esqueamos de que um fato de conscincia uma realidade existencial, antes de ser intelectual. O fim o ltimo desse mtodo , pois, intuir alm dos fatos, nesse nterim vividos e analisados, a prpria essncia da experincia religiosa. Naturalmente, um autor articula, de modo original, a prpria resposta. Todavia, interessante notar como comum a tese, segundo a qual a evoluo e o desenvolvimento das vrias religiosidades humanas tende para o prprio arremate na Revelao Crist. 12 Mas, esta Revelao, fruto resultado da experincia religiosa humana, fica considerado humana ou divina? Esta pergunta no tem significao, pelo fato de que o sobrenatural , enfim, absorvido pelo natural. Assim, os dons de Deus (Revelao e Graa), no vem mais ao homem do exterior, mas so, em ltima anlise, conaturais natureza humana. Nesses pensadores citados, o movimento ecumnico, de fato, tomou um considervel impulso: trata-se de figuras de proa do movimento protestante (geralmente so tambm pastores), particularmente empenhados na primeira linha do dilogo inter-religioso, que encontraram, na Fenomenologia das religies, um instrumento vlido para expor luz aquilo que uniria as diferentes confisses entre

  • elas, a sua base natural, os seus sensos comuns e idias do sagrado (nico critrio base da qual uma religio pode ser avaliada) que prescindam das diferentes manifestaes histricas. Ao mesmo tempo, esses autores puzeram a premissa para contrastar, no importa qual exclusivismo, ou pretenso de algum ser o n ico a possu i r uma pre tensa Verdade e Abso lu ta que, fenomenologicamente, no pode mais subsistir.

    A EXPERINCIA DA TRANSCENDNCIA

    At aqui, focalizamos a ateno sobre o itinerrio filosfico-teolgico dos representantes do mundo protestante, particularmente importante enquanto contm as principais instituies que tm mantido relaes com telogos catlicos. Vamos dirigir, agora, nossa ateno sobre uma figura de ainda maior interesse, isto , sobre Karl Rahner, o prncipe dos telogos modernistas. Ele pe o fundamento de toda religiosidade 13 na experincia de Deus, entendimento de modo rigorosamente fenomenolgico. Esta ltima consiste na experincia do Transcendente (Deus) como ponto de aterragem da experincia da transcendncia da conscincia; simplesmente a partir dos fatos de conscincia que se intui a existncia de Deus: Naturalmente a experincia originria de Deus [...] pode ser pensada apenas como uma experincia de Deus que sempre, e por toda parte dada com a transcendncia do homem qual horizonte de tal transcendentalidade. 14 Essa experincia, que reduz o Transcendente a uma conquista espontnea e natural da conscincia, postula definitivamente a supresso ( qual j fizemos referncia) da distino real entre as ordens natural e sobrenatural. O grande argumento de Rahner, para justificar essa tese consiste em que vontade salvfica de Deus universal, do que resulta que Ele confere d emble (de improviso, sem dificuldade) natureza humana a graa sobrenatural necessria para salvar-se (prescindindo da ligao do indivduo com a Igreja e da vida sacramental): Se conhecemos a salvao como elemento especificamente cristo, se no existe salvao fora de Cristo, se permanecendo na doutrina catlica a divinizao sobrenatural do homem no pode ser substituda por sua mera boa vontade, mas, vice-verso, necessrio que lhe venha harmonizada com esta vida terrena, e, se, por outro lado, Deus destinou, real e efetivamente, essa salvao a todos os homens, as duas coisas no se podem unir-se entre si, a no ser aceitando como pacfico que todos os homens esto, realmente, includos na esfera de influncia da graa divina sobrenatural. 15 A experincia do Transcendente, baseando-se sobre fatos de conscincia, resulta ser universalmente necessrio; todos, isto , sem distino a cumprem em razo dos simples uso das prprias faculdades, mesmo quem no saiba ou se declara ateu: A experincia de Deus, intenda-se, transcendentalmente necessria. Porque existe sempre, e por toda parte (embora freqentemente em forma atemtica) l onde o homem pe em ato o prprio conhecimento e a prpria

  • liberdade espiritual, enfim, l onde ele nega, de maneira temtica e objetivamente, com palavras, tal referncia transcendentalmente necessria de Deus. 16 Vejamos agora, concretamente, como se articula essa experincia. J havamos nos referido ao fato de que o fundamento dessa experincia transcendente de Deus a experincia da transcendncia feita pelo homem. Ambos exprimem a mesma realidade presente no homem, ainda se a primeira ressalta, explicitamente, o ltimo horizonte da transcendentalidade humana. 17 No em conseqncia, uma fenomenologia precisa da experincia da transcendncia... Mostraria que, no seu horizonte, d, efetivamente, Deus. 18 No , por isso, um salto de qualidade da transcendncia humana divina, mas, simplesmente, uma instituio mais profunda que se coloca, sempre, sobre o mesmo plano. Na prtica: todos os fatos de conscincia, como havamos dito, so intencionais, isto , traz alguma coisa, conscincia de alguma coisa. Ora, uma constante universal que nos atos de conscincia e de liberdade, o homem aspire, sempre, a qualquer coisa a mais do que o objeto singular dessa faculdade, num anelo sempre estendido para alguma coisa de mais, at o infinito. Por exemplo, cada vez que descobre uma verdade nova, o esprito humano conjuga, imediatamente, a satisfao com o desejo de descobrir outra. Nesse tormento, Rahner identifica a experincia da transcendncia humana, a qual encontra sua completa satisfao na transcendncia divina: essa [a experincia da transcendncia] consiste no fato de que o conhecimento e a liberdade do homem pretendem sempre ir alm de simples objetos da experincia interior e exterior, que esta antecipao constitui a condio da possibilidade do conhecimento objetivo e da ao livre objetiva, que esta antecipao supera todos os objetos enunciveis e , simplesmente ilimitada, porque qualquer seja a limitao, no mesmo momento em que pensada, j est, por sua vez, superada. Na medida em que a experincia da transcendncia do homem real, na medida em que est se verifica sustentada pelo prprio horizonte, e sabe que nada nada, tal horizonte da transcendncia pode ser pensado portanto como realidade infinita, no abravel, que permanece radicalmente misteriosa, isto , como Deus. 19 Notemos que Rahner parte, na sua demonstrao, dos fatos de conscincia analisados com impressionante rigor fenomenolgico, e no de uma idia preconcebida de Deus: Tal horizonte, qual o mistrio no abravel, no como objeto, no sentido ontolgico despreende, realmente, o movimento da transcendncia. No fiquemos mais numa tica idealista, na qual o sujeito concebe autonomamente, uma sua idia de Deus: a prova cartesiana (ontolgica) da existncia de Deus , definitivamente, separada. Bem entendido, no pretendemos defender o ontologismo 20 de Descartes, mas sublinhar como novo imanentismo no parte de uma idia (explicitamente rejeitada) de Deus, nem de um sentimento ou necessidade, mas sim dos fatos vividos na experincia: aqui que se aloja, ao nosso juzo o carter especificamente contemporneo do Neomodernismo. Desta vez a conseqncias capitais que merecem nossa ateno. Com a rejeio, antes de tudo, (por si inaceitvel) do ontologismo, o Neomodernismo rejeita, na prtica, at a concesso tradicional da f como virtude

  • intelectual, baseado sobre contedos doutrinais, e no, em sua vivncia de conscincia. Noutras palavras muito justo rejeitar uma idia de Deus construda a priori, sem qualquer lao em um mundo externo, mas isto no significa, de fato, que o cristo no tenha, atravs da f, uma idia bem precisa de Deus: A f intelectual for substituda, como que definitivamente, pela f existencial. Em segundo lugar, graas a esta precisa concesso fenomenolgica da experincia Transcendente que podemos distinguir, na sua prpria raiz, Modernismo e Neomodernismo.

    MODERNISMO E NEOMODERNISMO

    O modernismo clssico, para explicar a origem da religio, parte de uma misteriosa necessidade do sagrado que gera o sentimento religioso no subconsciente. Esta experincia livre, pode realizar-se pelo menos segundo as circunstncias e, por isto, radicada no subconsciente, assim como a prpria conscincia: A f (segunda a doutrina modernista), comeo e fundamento de qualquer religio, deve repousar um sentimento que nasa da necessidade da divindade. Nessa necessidade, no sentida pelo homem seno em determinadas e oportunas circunstncias, no pode por si pertencer ao campo da conscincia; mas nasce, em princpio, somente da prpria conscincia, ou, como diz com um vocbulo tomado emprestado da moderna filosofia no subconsciente, onde sua raiz permanece oculta e incompreensvel. 21 Nessa perspectiva , ainda, conservada a idia de uma certa ao livre de Deus sobre a alma e de sua revelao ntima, ainda se essa ao de Deus se apresenta irremediavelmente confundida com o sentimento religioso natural (bem entendido, no sai do imanentismo): No revelao o aparecer, se bem que confuso, que Deus faz s almas no prprio sentimento religioso?.. A dita revelao , ao mesmo tempo, de Deus e por meio de Deus; isto , Deus como revelante e revelado, ao mesmo tempo. 22 Em conseqncia, a confuso entre as duas ordens (natural e sobrenatural) um postulado o necessrio: da a absurdssima sentena dos modernistas que todas as religies devam dizer-se igualmente naturais e sobrenaturais. 23 O neomodernismo, ao contrrio, coloca-se numa posio, em definitivo, ainda mais radical: isso no confunde simplesmente a ao de Deus com a ao do esprito humano, mas dissolve e aniquila radicalmente a ao de Deus nas aes humanas; isto no postula, simplesmente, a supresso da distino entre natureza e graa, mas, em ltima anlise, no pode mais, nem mesmo conceber essa prpria distino, posto que no momento em que tudo que pode ser tomado por verdadeiro se reduz aos fatos nicos da conscincia, a idia de um fundamento, sobrenatural da religio, distinto da natureza e da conscincia do homem, torna-se privada de sentido e inconcebvel; fica excluda, de fato e pelo mesmo motivo, tambm a idia de uma ntima e livre ao e revelao de Deus nos confrontos da alma: esta ltima alcana a experincia de Deus

  • exclusivamente com suas foras, simplesmente experimentando a prpria transcendncia e descobrindo Deus como horizonte dessa sua transcendncia. Essa contribuio da Fenomenologia , quanto s conseqncias, nada desprezvel: a experincia da prpria transcendncia, como a descreve Rahner, diferente da necessidade do sagrado (experincia que o homem pode realizar livremente), universalmente necessria, todo homem a faz, mesmo se de maneira atemtica. A religio tem origem assim, no mais da necessidade de alguns, mas sim de um fato de conscincia de todos, e a comunidade dos crentes que substitui a Igreja histrica, coincide j, pelo menos virtualmente, com a Humanidade inteira. Concretamente, para justificar teologicamente esta tese, preciso demonstrar que todo homem j , de algum modo, cristo, e encontrar um meio para fazer convergir, para unidade, as vrias formas de religiosidade.

    CRISTIANISMO ANNIMO E ECUMNICO

    Banida definitivamente a distino real entre natureza e graa (fenomenologicamente absurda) pode-se descortinar, em qualquer tipo de espiritualidade, os sinais da graa, a qual resulta ser conatural ao homem. O nico requisito necessrio a tal escopo que se trate de uma religiosidade sinceramente conforme conscincia. Eis como se expressa a este propsito o prprio Rahner: ... tal piedade extra eclesial pode ser, sem mais, salvfica. O cristo no deveria consider-la como uma tentativa, puramente humana, de estabelecimento de uma relao com Deus de baixo para cima [como, alis, acontece ser a teologia tradicional]. Essa relao, de fato intimamente sustentada pela graa de Deus, livre e oferecida a todos, e l onde o homem segue o ditame absoluto da sua conscincia, realiza e objetiva tal obedincia, pelo menos numa forma qualquer de piedade, qual referncia explcita a Deus, produz salvao. Portanto, o cristo, e o telogo catlico, em princpio, podem reconhecer que, de fato, toda piedade sinceramente conforme conscincia salvfica, sustentada pela graa, e, nesse sentido, j crist de maneira annima. 24 Eis, concretamente, a quais resultados a porta, no plano religioso, a idia de uma conscincia transcendental: esta toma, literalmente, o lugar de Deus, o Absoluto Transcendente, somente em relao ao Qual, e em funo de Quem, uma religiosidade deveria ser considerada autntica ou falsa, salvfica ou nociva. Ao contrrio, segundo Rahner, qualquer homem coerente com a prpria conscincia, realiza, necessariamente, a experincia da transcendncia, e cristo sem sab-lo, sem nenhum smbolo externo de pertencena Igreja. A imediata e lgica conseqncia dessa concesso, da graa e do sobrenatural, a subverso completa do papel histrico da Igreja. Esta no aparece mais como a depositria dos meios necessrios (particularmente os sacramentos) para dar a graa, e, por conseguinte, para iniciar os homens na vida sobrenatural, ponto de chegada final daqueles que viveram autenticamente e, de acordo com sua conscincia, a prpria religiosidade: A eclesializao dessa

  • piedade salvfica extra eclesial, equivale ao pleno vir a ser prprio de uma piedade existente desde sempre pela obra da graa, ao pleno vir a ser seu prprio, que tem lugar no encontro explcito com Jesus [reconhecemos que a idia de uma Revelao Crist, como aperfeioamento ltimo das vrias experincias religiosas humanas] e com sua comunidade de f estruturada institucionalmente. Dessa maneira, a eclesialidade no o incio, mas o fim da graa... 25 sobre esse terreno que tem sido possvel edificar e justificar toda forma de ecumenismo: a Revelao, a Igreja, aparecem assim como o cume das experincias religiosas, e cessam de existir, enquanto tal, os erros doutrinrios opostos ao catolicismo, os quais so concebidos como conseqncia de verdades particulares, pendentes Oxal sem a plena conscincia dos que os professam , a uma sua potencial institucionalizao na Igreja. No mais oportuno, por isso, conceber (e fomenta) um desencontro entre verdade e erro, se bem que vlido o dilogo, entre e com a verdade no institucionalizada, para alcanar eventualmente , uma forma qualquer de unidade institucional: o cristianismo no vai ao encontro do homem das religies extra crists como se eles fossem pura e simplesmente no-crists; pelo contrrio, aproxima-se delas como de uma criatura que, sob um aspecto ou outro, pode e deve j, virtualmente, ser considerado um cristo annimo. Seria errado ver no pago um homem, embora ainda mudado pela graa e verdade de Deus. Vice-verso, se ele experimentou a graa de Deus, [...] se agora, para ele j se verificou uma autntica revelao, antes mesmo que a palavra missionrio lhe tenha sido vindo de fora. 26 Entretanto, no se iluda pensando que o fim ltimo do dilogo inter-religioso consista em fazer entrar na Igreja Catlica quem dela ainda no faa parte. De fato, o prprio catolicismo como tal, isto , na sua identidade histrica, percebido como contingente e, por isso mesmo, posto em discusso, e se busca sua contribuio especfica (e parcial) para criao de uma igreja ainda mais perfeita englobante e sintetizadora de todas as formas de espiritualidade, e cujas fronteiras so bem mais amplas do que aquelas da prpria Igreja Catlica: alm do mais, bvio que a Igreja no se considera mais a comunidade exclusiva dos candidatos salvao, mas sim a vanguarda, historicamente enquadrada, de um imenso exrcito em marcha, a explcita organizao histrica e social da qual o cristo est convencido e conciliado com os homens, como realidade oculta, at mesmo fora da Igreja visvel. 27 Em conseqncia, torna-se evidente que o percurso religioso natural (baseado na experincia da transcendncia de Deus) que fundamenta, justifica e d sentido Revelao Crist, e no vice-verso. Portanto, se por um lado, o prprio fato de que Nosso Senhor seja um personagem histrico, e que Sua Igreja esteja encarnada na histria, constitui um porto da experincia religiosa natural (que Rahner chama piedade extra-eclesial), entretanto, representa um perigo objetivo de limitao e cristalizao dessa mesma experincia. Qualquer experincia transcendental efetuada com material histrico. Isto vale at mesmo para a experincia transcendental de Deus. A piedade eclesial, por que no mais do que a atuao da experincia transcendental de Deus (existente sempre e em toda parte) e da reflexo sobre ela, luz da identidade histrica de Jesus de Nazar, morto e ressuscitado. A contingncia histrica, desse material, confere

  • piedade eclesial a sua clareza, tangibilidade e concretitude, mas tambm a torna vulnervel. Portanto, hoje devemos, continuamente, rejuntar com clareza a piedade eclesial quela experincia original, da qual ela o material e a explicao. ... O material histrico [isto , Nosso Senhor Jesus Cristo] poderia at ser diferente, mas, em qualquer caso, conservaria a sua origem contingente. Trata-se de uma coisa necessria, mas difcil de suportar, porque essa origem contingente deve ser, e , a concretitude de um relato sobre Deus, transcendentalmente necessrio e vlido em qualquer parte. 28 Em resumo, Jesus Cristo permanece um material histrico privilegiado para veicular a experincia da transcendncia de Deus, mas no exclusivo. O prprio fato de apresent-lo como exclusivo (o que a Igreja sempre fez) limitaria irremediavelmente a possibilidade da experincia do Transcendente.

    A LINGUAGEM MODERNISTA

    J explicamos como e porque a Fenomenologia impe uma linguagem nova e, ao mesmo termo, um significado diferente. No se surpreenda, portanto, pelo fato de que o Neomodernismo tambm tenha cunhado um lxico prprio e, sobretudo, use, numa nova acepo, termos tradicionais. No mais possvel falar de Deus, de graa, de pecado, de sacramento, com a concretitude prprio a um esprito realista, pois todas essas realidades so filtradas pela percepo existencial que a conscincia realiza delas.

    Alm disso, se a ao sobrenatural de Deus mundo no coincide mais fundamentalmente , com a ao da Igreja Catlica, mas se manifesta misteriosamente em cada conscincia, a linguagem que a exprime, e a define, no pode mais coincidir com aquela tradicional, que , de qualquer modo, vinculados aos sinais objetivos da ao de Deus, tais como os sacramentos e predicaes da Igreja. ainda Rahner que admite esta virada: hoje no podemos mais pretender que se adote uma linguagem concreta e plstica, como podemos fazer no passado. Podia-se adotar uma linguagem religiosa muito mais concreta, porque se localizava mais desenvoltamente a ao de Deus em pontos determinantes do mundo e da histria [...] podemos pensar Deus, de maneira radical, s como o fundamento ltimo, e o fim ltimo da realidade, e podemos experiment-lo de maneira intramundana [isto , concreta e visivelmente na Igreja Catlica], indiretamente, ao mximo. Porque, no fundo, hoje, a linguagem religiosa no pode evitar uma certa estreiteza. 29

    Em conseqncia, oportuno reconhecer que, assim como impossvel um dilogo construtivo quando o interlocutor baseia os prprios raciocnios sobre pressupostos fenomenolgicos, igualmente desarmante tentar um dilogo com quem aplica aos fenmenos religiosos os mesmos preconceitos: arrisca-se crer estar falando, de uma mesma coisa, quando, na realidade, os raciocnios nicas possibilidades se apresentam ou se arrisca a suportar o interlocutor com a utilizao realista e concreta dos termos, ou se interrompe o dilogo.

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    Tendo chegado concluso das nossas consideraes sobre a influncia da Fenomenologia sobre a Teologia Catlica, oportuno perguntar-se o que se reduz, em ltima anlise, o conjunto das desviaes doutrinrias entrevistas neste estudo. Trata-se, paradoxalmente, do mesmo erro que estava na origem da primeirssima heresia da histria da Igreja: a secularizao do Divino.

    espantoso notar que nos Evangelhos apcrifos dos primeiros tempos da Era Crist, freqentemente a pessoa de Nosso Senhor era ridicularizada como atributos e narrativas incompatveis com Sua Divindade, e prprios de um homem comum. De modo muito mais fino, o Neomodernismo faz coisa idntica, reduzindo, sistematicamente, e do modo mais radical o Divino a uma realidade aprisionada e absorvida pela pouquido daquilo que humano e terreno.

    Ou se aceita de imediato a Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, com todas as conseqncias (a comear pela natureza divina da Igreja Catlica, a nica fundada por Ele), ou, necessariamente, se cai num erro cuja raiz s pode ser a negao de uma ou mais dessas conseqncias e (indiretamente), da divindade mesma de Nosso Senhor.

    Pode-se identificar a raiz desse erro na tentao perene de se querer conciliar, a qualquer custo, o esprito do mundo com o esprito de Nosso Senhor, o mximo do mundo com Deus Filho, naquela tremenda iluso de poder servir a dois patres.

    NOTAS

    1 Cfm. Renato Cristin, sul mtodo fenomenolgico, introduo a: Friedrich Wilhelm von Hermann, Il concetto di fenomenologia in Heidegger e Husserl, Il melangolo, Genova, 1997, p.9.

    2 Husserl devolve, com justia, a Descartes (e boa parte dos filsofos modernos) a acusao do psicologismo, isto , a transformao de uma questo metafsica numa questo psicolgica, e, em conseqncia, a confuso do plano do ser com o plano da atividade psicolgica humana. Nessa mesma linha, Rahner refutar a prova ontolgica da existncia de Deus (Cfm. Nota n. 20). Entretanto, como constataremos no curso deste estudo, em ambos as questos no se sai da priso do imanentismo mas se aprisiona, ulteriormente o ser, em qualquer coisa de mais ntimo ainda, que o prprio pensamento.

    3 Trata-se da concesso, emprestado de Schleiermacher, e, em particular, de Dilthey, segundo o qual tudo o que gira em torno do esprito humano e sua

  • produo pode ser experimentado, visto e at mesmo descrito como que definido sic et simpliciter. a afirmao definida do primado da Erlebnis (experincia vivida), que ter uma influncia decisiva sobre a Fenomenologia da Religio.

    4 Tomas Tyn, metafsica della sostanza participazione e analogia entis, Ed. Studio Domenicano, Bolonha, 1991, pp. 370-371.

    5

    6 Tomas Tyn, op. cit., p. 374.

    7 Reale / Antiseri, Il pensiero occidentale dale origini ad oggi, Ed. La Scuola, Brescia, 1983, p. 429.

    8 Tomas Tyn, op. cit., p. 371.

    9 Trata-se de todos os argumentos que demonstram que Jesus Cristo um personagem histrico, que realmente existiu, cuja divindade foi provada por milagres irrefutveis e incontroversveis pela prpria factualidade histrica; trata-se, igualmente, de tudo aquilo que comprova a origem sobrenatural da religio catlica, como a sua propagao universal, a resistncia s perseguies, a estabilidade no sculo, o testemunho dos inumerveis martrios, etc.

    10 Citado em Filoramo / Prandi, Le sciense delle religioni, Morselliana, Brescia, 1997, p. 43.

    11 Na realidade, parece mais correto dizer-se que entre a ordem natural e a ordem sobrenatural fica, numa tica fenomenolgica, simplesmente inconcebvel: qualquer realidade que considera o homem e o esprito se levada, realmente, em considerao deve, necessariamente, ser entendido como fato de conscincia, vista e filtrada por esta ltima, e no como resultado de uma ao direta de Deus. Sobre este problema voltaremos no curso deste mesmo estudo.

    12 Cfm. Piergiorgio Grassi e outros, Filosofia della religioni, Storia e problemi, Queriniana, Brescia, 1988, p. 205. Ver, tambm, Filoramo / Prandi, op. Cit., p. 38, 46.

    13 O fundamento de qualquer religiosidade coincide, mais exatamente, com o que Rahner define como piedade extraeclesial: este termo no sinnimo de paganismo, se bem que indica uma experincia originria de Deus, que se realiza e j vlida e salvfica ainda que privada da sua institucionalizao na Igreja. Esta ltima passagem aparece como um aperfeioamento acessrio e contingente.

  • 14 Karl Rahner, Teologia dall esperienza dello spirito, Ed. Paulinas, Roma, 1978, pp. 718-719.

    15 Karl Rahner, Saggi di antropologia soprannaturale, Ed. Paulinas, Roma, 1965, pp. 548-549.

    16 Karl Rahner, Teologia dall esperienza dello spirito, p. 719.

    17 Ibidem, p. 720.

    18 Ibidem.

    19 Ibidem, pp. 720-721.

    20 Trata-se do clebre prova ontolgica da existncia de Deus, a qual se baseia na idia de que o Ser perfeitssimo, que concebo na minha mente, devo, necessariamente, atribuir todas as perfeies, a comear pela prpria existncia: por conseguinte, Deus existe. Esta prova, que confundem a ordem lgica e a ordem ontolgica, rejeitada por Sto. Toms, ensinada por Descartes, Spinoza, Leibniz e Hegel (para citar apenas alguns autores).

    21 - S. Pio X, Encclica Pascendi Dominici Gregis, 1907.

    22 Ibidem.

    23 Ibidem.

    24 Karl Rahner, Teologia dall esperienza dello spirito, p. 715.

    25 Ibidem, 716.

    26 Karl Rahner, Saggi di antropologa soprannaturale, p. 565.

    27 Ibidem, p. 569.

    28 Karl Rahner, Teologia dall esperienza dello spirito, p. 728.

    29 Ibidem, p. 724.