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FGV DIREITO SP
CAROLINA FONTOLAN CARDILLI
A REGULAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE – BEN S
PÚBLICOS GLOBAIS, DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E O
DESENVOLVIMENTO INTERNACIONAL
São Paulo,
2016
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CAROLINA FONTOLAN CARDILLI
A REGULAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE – BEN S
PÚBLICOS GLOBAIS, DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E O
DESENVOLVIMENTO INTERNACIONAL
Monografia apresentada à FGV Direito SP como requisito para obtenção do título de bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Salem Hikmat Nasser.
São Paulo
2016
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Cardilli, Carolina Fontolan.
A regulação do patrimônio comum da humanidade – bens públicos globais, direito administrativo global e o desenvolvimento internacional / Carolina Fontolan Cardilli -2016.
Orientador: Salem Hikmat Nasser Monografia (bacharelado) – FGV Direito SP. Introdução. 1. Conceitos e
Contextos. 2. A regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica da ação administrativa global. 3. Ação administrativa global e sua relação com a emergência do Direito Administrativo Global. 4. Ação Administrativa Global e Direito Administrativo Global no contexto do desenvolvimento da sociedade internacional. Considerações finais. Referências bibliográficas.
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CAROLINA FONTOLAN CARDILLI
A REGULAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE – BEN S
PÚBLICOS GLOBAIS, DIREITO ADMINISTRATIVO GLOBAL E O
DESENVOLVIMENTO INTERNACIONAL
Monografia apresentada à FGV Direito SP como requisito para obtenção do título de bacharel em Direito. Campo de conhecimento: Direito Internacional. Orientador: Prof. Dr. Salem Hikmat Nasser. Data de aprovação: ____/____/____ Banca Examinadora:
____________________________________ Prof. Dr. Salem Hikmat Nasser (Orientador) –
FGV Direito SP
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Agradecimentos
Esta contribuição ao debate acadêmico, apesar de pequena em relevância, marca
o fim de um ciclo intenso e muito proveitoso: a graduação em direito. Foram cinco anos
de muitas leituras, apresentações, artigos, debates e provas que me mostraram que o
mundo jurídico é muito mais complexo e multifacetado do que o imaginário de uma
jovem de dezoito anos poderia conceber.
Sem o apoio institucional da FGV Direito SP eu não poderia ter explorado este
mundo plural com a profundidade que explorei. As oportunidades de intercâmbio
conferidas pela faculdade foram fundamentais para que este trabalho fosse realizado,
principalmente as estadias na Yale Law School e no Sciences Po Paris uma vez que
nestas instituições pude ter contato com discussões avançadas de governança global,
bens públicos globais e patrimônio comum da humanidade.
Por ter desde o primeiro ano de faculdade se disponibilizado a discutir as minhas
dúvidas acadêmicas e profissionais sobre o Direito Internacional sou especialmente
grata ao meu orientador Salem Hikmat Nasser. Sem sua orientação tanto no projeto de
iniciação científica e as muitas conversas sobre o sistema normativo e regulatório global
a realização deste trabalho não seria possível.
Ao Professor Diogo Moreira e à Luciana Marin Ribas sou grata pelos
comentários e sugestões feitos na banca de qualificação, estes foram ao mesmo tempo
reconfortantes e sinalizadores de que este trabalho estava no caminho certo.
Aos colegas Luiza Martinez e Lucas Padilha que compartilharam todas as
alegrias e angústias ao longo da graduação, eu não teria chegado até aqui sem seu apoio.
Por fim, nada disso seria possível sem meus pais e seu constante investimento
em capital cultural e social na minha criação. Aprendi desde cedo que a educação tem
poder transformador e que sempre deveria tirar o máximo proveito das oportunidades
oferecidas. Espero que eu tenha feito jus a estes ensinamentos.
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Resumo: A esfera regulatória global vem passando por mudanças impactantes. O
sistema regulatório do patrimônio comum da humanidade torna-se cada vez mais
complexo devido à sua caracterização com um bem público global. A regulação baseada
apenas em Direito Internacional começa a perder espaço na medida que percebemos
indícios de uma ação administrativa global. A partir da análise dos mecanismos de
controle desta ação percebemos que estes possuem uma série de fragilidades que
impactam o espaço regulatório do patrimônio comum da humanidade. Este estudo
resulta na compreensão da regulação do patrimônio comum da humanidade no contexto
do desenvolvimento internacional, observando como a transformação impacta a
construção de um rule of law internacional.
Palavras-chave: patrimônio comum da humanidade – ação administrativa global –
direito administrativo global– bens públicos globais– desenvolvimento internacional.
8
Abstract: The global regulatory sphere has undergone striking changes. The world
heritage’s regulatory system becomes increasingly complex due to its characterization
as a global public good. The regulation previously based primarily on International Law
begins to lose space, as we perceive signs of global administrative action. From the
analysis of such action’s control mechanisms we realize they have many fragilities that
impact the world heritage’s regulatory space. This study results in an understanding of
world heritage’s regulation in the perspective of international development, highlighting
how the transformation impacts the creation of an international rule of law.
Key words: world heritage – global administrative action – global administrative law –
global public goods – international development.
9
Sumário
Introdução ........................................................................................................................11
I – Conceitos e Contextos ................................................................................................13
a. Patrimônio Comum da Humanidade .......................................................................13
b. Bens Públicos Globais .............................................................................................15
c. Direito Administrativo Global e seu lugar na nova dinâmica do Direito Global ....17
d. Ação Administrativa Global ....................................................................................21
II - A regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica do ação
administrativa global .......................................................................................................22
a. Regulação e direito internacional ...........................................................................22
b. O exercício da ação administrativa global ...............................................................26
III – A ação administrativa global e sua relação com a emergência do Direito
Administrativo Global .....................................................................................................31
a. Controle da ação administrativa global: questões de accountability, transparência e
enforcement .................................................................................................................31
b. Ação Administrativa Global e Direito Administrativo Global: conexão necessária
no caso do patrimônio comum da humanidade? .........................................................37
IV – Ação Administrativa Global e Direito Administrativo Global no contexto do
desenvolvimento da sociedade internacional ..................................................................39
a. Os paradigmas da cooperação e do multilateralismo...............................................40
b. A transformação da esfera regulatória global, o desenvolvimento e a formação do
rule of law internacional ..............................................................................................45
Considerações finais ........................................................................................................50
Referências bibliográficas ...............................................................................................53
10
Certes, on a toujours l’impression de vivre un moment de rupture. Celle qui accompagne le nouveau millénaire peut sembler illusoire, peut-être exagérée par un effet de calendrier. Si nous ne vivons probablement pas la fin de l’Histoire, notre ordre international contemporain présente bien cependant les symptômes de la fin de plusieurs histoires : celle de la bipolarité la plus classique, celle de la concurrence internationale de idéologies, celle deux puissances militaires rivales, mais aussi celle d’un monde qui pouvait se résumer à la juxtaposition concurrentielle d’États-nations territoriaux.
Bertrand Badie
11
Introdução
A patrimônio comum da humanidade é uma fonte inesgotável de conhecimento
sobre as diversas identidades culturais e naturais do planeta. Tal patrimônio não é
apenas global em sua escala, mas também possui o caráter global inerente a sua essência
uma vez que carrega consigo a ideia de intensificação de uma consciência coletiva que
enxerga o mundo como um todo1, e não como um conjunto de fragmentos.
A regulação do patrimônio comum da humanidade tem como um de seus pontos
centrais a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Tal
espaço de regulação é ministrado por uma instituição internacional – a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO) – em conjunto com
seus Estados partes. Existe extensa literatura sobre a Convenção, os critérios utilizados
para determinar o que se enquadra na lista de bens a serem protegidos, possíveis
sanções aos Estados que não protegem tais bens, etc.
Com a emergência do conceito de Direito Administrativo Global (em seu nome
original, em inglês, Global Administrative Law - GAL), é possível pensar este espaço de
regulação de uma forma diferente. O aspecto substantivo desta regulação relaciona-se
com o interesse global de preservação de certos bens e, a fim de atingir este objetivo, a
regulação acaba por influenciar o processo de tomada de decisão doméstico, ou seja,
influencia como os Estados lidam com as decisões que eventualmente irão impactar os
bens públicos globais. A ideia do trabalho de curso seria observar se no espaço
regulatório do patrimônio comum da humanidade podem ser constatados indícios do
exercício daquilo que é denominado ação administrativa global, assim como
mecanismos de controle de tal ação que corroborem com a emergência do Direito
Administrativo Global.
Este tópico, apesar de contar com literatura de base, ainda não á amplamente
discutido no espaço acadêmico estrangeiro e no âmbito nacional. No ambiente
acadêmico internacional, o Direito Administrativo Global vem sendo discutido com
intensidade nos últimos anos, tem como uma de suas principais referências de estudos o
Global Administrative Law Project baseado no Institute for International Law and
Justice da New York University School of Law. Os acadêmicos que fazem parte deste
projeto publicam ativamente sobre o assunto, produzindo uma série de working papers e
1 ROBERTSON apud TURTINEN, Jan. Globalising Heritage – On UNESCO and the Transnational Construction of a World Heritage. In: SCORE – Stockholm Center for Organizational Research, 2000.
12
casebooks sobre suas mais recentes descobertas. Além disso, a literatura estrangeira
avançou para além de discussões teóricas sobre o conceito e definição de Direito
Administrativo Global e já procura identificar e realizar estudos de caso sobre possíveis
exemplos2.
Na literatura nacional também observamos o início de uma produção acadêmica
sobre o Direito Administrativo Global. Tal produção é em sua maior parte formada por
indagações teóricas ou aplicações práticas em áreas do Direito Internacional
Econômico3. A produção acadêmica sobre o Direito Administrativo Global é importante
pois aborda a relação de interesses, tanto internacionais e domésticos, sob a ótica de sua
regulação em um espaço internacional cada vez mais globalizado e, consequentemente,
complexo. Desse modo, a expansão dos temas abordados faz-se necessária. O tema
patrimônio comum da humanidade é especialmente interessante pois possui grande
perspectiva de discussão acadêmica devido a sua relação com a teoria dos bens públicos
globais. Apesar de existir um início de discussão sobre o patrimônio comum da
humanidade sob a ótica do Direito Administrativo Global, ainda não existe literatura
consolidada sobre tal especulação acadêmica. Uma pista relevante sobre a importância
do assunto está no fato do Global Administrative Law: The Casebook – Third Edition
citar a Convenção do Patrimônio da Humanidade e a regulação capitaneada pela
UNESCO como um exemplo de um forma complexa de governança4, ou seja, um dos
fatores englobados pela teoria da administração global.
Aqui o objeto de análise será a relação entre a regulação do patrimônio comum
da humanidade através de organizações internacionais e domésticas e sua possível
relação com a noção de Direito Administrativo Global. A complexificação da regulação
da sociedade internacional aponta alteração tanto na abordagem da regulação deste bem
complexo assim como acarreta novos empecilhos na administração do mesmo.
2 Os mais proeminentes estudos de casos referem-se a Organização Mundial do Comércio, organismo internacional que foi um do vetores que despertaram e incentivaram os estudos sobre Direito Administrativo Global. 3 Neste aspecto é possível citar os seguintes trabalhos: POSTIGA, Andre. Emergence of Global Administrative Law as a Means of Transnational Regulation of Foreign Direct Investment. In: Brazilian Journal of International Law, vol. 10, issue 1, 2013; FROTA, Hidemberg . Direito Admnistrativo Global: Padrões Substantivos. In: Revista Digital de Direito Administrativo; vol. 2, n. 1, 2015; RATTON, Michelle; STEWART, Richard. The World trade Organizatuon: Multiple dimensions of Global Administrative Law. In: International Journal of Constitutional Law, vol. 9, Issue 3-4, 2011. P. 556-586; PETERSMANN, Ernst-Ulrich. International Economic Law in the 21st Century – Constitutional Pluralism and Multilevel Governance of Interdependent Public Goods. Oxford: Hart Publishing, 2012. 4 CASSESE, Sabino; CAROTTI, Bruno; CASINI, Lorenzo; CAVALIERI, Eleonora; MACDONALD, Euan (Editores). Global Administrative Law: The Casebook – Third Edition. Institute for International Law and Justice – NYU School of Law, 2012, Kindle Edition, Location 2405.
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A pergunta-problema que deu origem a esta pesquisa é a seguinte: a regulação
do patrimônio comum da humanidade, um bem público global complexo, pode ser
concebida sob a ótica do arcabouço teórico do Direito Administrativo Global?
A partir da pergunta problema é possível perceber sua forte conexão com
discussões sobre o desenvolvimento internacional, uma vez que o arcabouço teórico
emergente do Direito Administrativo Global e a sua relação com a governança global
está conectada com a especialização do Direito Internacional, um dos fenômenos que
geram fortes discussões no âmbito internacional das instituições de direito e impactam o
desenvolvimento do mesmo. Além disso, podemos identificar duas facetas do
desenvolvimento fortemente ligadas à premissa deste trabalho de conclusão de curso: o
desenvolvimento social e econômico dos povos que são impactados pelas decisões das
instituições de direito do âmbito internacional e o desenvolvimento de um rule of law
internacional, no sentido de conceber um sistema de mensuração da qualidade jurídica
da sociedade internacional. Aqui será fundamentada e elucidada a percepção inicial da
forte conexão supracitada a partir da análise crítica das discussões realizadas. Desse
modo, o presente trabalho busca compreender as mudanças na regulação internacional
do patrimônio comum da humanidade a partir da discussão de seus impactos nas
instituições de direito. A bibliografia utilizada esta baseada tanto em artigos acadêmicos
e livros publicados referentes ao assunto, como em documentos oficiais das
organizacionais internacionais que são afetadas pelo fenômeno.
No primeiro capítulo iremos identificar conceitos e contextos chave para este
trabalho – patrimônio comum da humanidade, bens públicos globais, Direito
Administrativo Global e seu lugar na nova dinâmica no Direito Global e, ação
administrativa global; no segundo capítulo será observada a regulação do patrimônio
comum da humanidade, sua relação com o Direito Internacional e indícios de existência
de ação administrativa global em seus contexto; no terceiro capítulo iremos explorar a
relação entre a ação administrativa global e a emergência do Direito Administrativo
Global; no quarto capítulo ilustraremos as discussões trazidas pelo presente trabalho no
contexto do desenvolvimento da sociedade internacional.
I – Conceitos e contextos
a. Patrimônio comum da humanidade
14
O patrimônio comum da humanidade é o conjunto de bens e locais, culturais e
naturais, materiais e imateriais, que pertencem aos povos do mundo, independente de
sua localização geográfica. Podemos entendê-lo como uma solução comunitarista5 para
a preservação e conservação de bens especiais. Os bens e locais que integram o
patrimônio comum da humanidade diferem daqueles considerados patrimônio local pelo
seu extraordinário valor universal. A UNESCO encoraja a identificação, proteção e
preservação deste patrimônio, tendo como base um tratado internacional criado em
1972 – Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural6.
O Centro do Patrimônio Mundial, inserido no sistema organizacional da
UNESCO e responsável pelo patrimônio comum da humanidade, tem como objetivos
(i) encorajar países a assinar a Convenção e assegurar a proteção de seu patrimônio
cultural e natural; (ii) encorajar os países signatários da Convenção a estabelecer planos
de administração e criar sistemas para reportar o estado de conservação de seus bens
que fazem parte do patrimônio; (iii) providenciar apoio emergencial aos bens em perigo
imediato; (iv) incentivar a participação da população local na preservação de seu
patrimônio cultural e natural; (v) incentivar os países signatários a nomear bens/locais
em seu território nacional para serem incluídos na lista do patrimônio comum da
humanidade; (vi) providenciar apoio técnico e treinamento profissional aos países
signatários; (vii) incentivar a cooperação internacional para a conservação do
patrimônio comum da humanidade e (viii) incentivar a sensibilização pública quanto à
conservação do patrimônio comum da humanidade7.
O Centro do Patrimônio Mundial elabora listas8 – lista do patrimônio mundial e
lista do patrimônio mundial em perigo – para sistematizar e identificar os bens que estão
sujeitos à proteção especial do patrimônio comum da humanidade. Atualmente existem
1052 propriedades inscritas na lista do patrimônio comum da humanidade,
caracterizadas como culturais, naturais ou mistas. Como exemplos podemos citar a
cidade histórica de Ouro Preto, no estado de Minas Gerais, Brasil; a cidade de Angkor
no Camboja; o santuário de Machu Picchu no Peru; o Lago Baikal na Rússia e o Parque
5 PUREZA, José Manuel. O Património Comum da Humanidade – Rumo a um direito internacional da solidariedade? Porto: Edições Afrontamento, 1998. 6UNESCO. World Heritage Information Kit. P. 5. Disponível em: http://whc.unesco.org/en/activities/567/ Acesso: 1 ago. 2016. 7 UNESCO. World Heritage. Disponível em: http://whc.unesco.org/en/about/ Acesso: 1 ago. 2016. 8 A sistemática de elaboração da lista do patrimônio comum da humanidade sera explorada posteriormente neste mesmo trabalho.
15
Yellowstone nos Estados Unidos. Na lista do patrimônio mundial em perigo
encontramos o Vale de Bamiyan no Afeganistão, a cidade de Potosi na Bolívia; a cidade
arqueológica de Samarra no Iraque; monumento medievais no Kosovo e as cidades
antigas de Aleppo, Bosra e Damasco na Síria. Importante mencionar que além dos
critérios elencados acima, os bens que integram a lista do patrimônio mundial em perigo
sofrem com os impactos negativos das transformações naturais do ambiente em que
estão localizados, assim como estão sujeitos à destruição e danos irreparáveis devido a
conflitos armados9.
Também inserido na UNESCO, temos o Centro do Patrimônio Mundial
Imaterial, um centro dedicado a proteger tradições e expressões de grande relevância
para as diversidades cultural e intercultural do planeta. São tradições orais, artes
performáticas, rituais, eventos festivos, práticas sociais e conhecimentos tradicionais
que representam comunidades por gerações, possuem valor econômico e social de
difícil mensuração dado seu caráter intangível e definem os perfis socioculturais tanto
de países desenvolvidos, como não desenvolvidos. Na lista do patrimônio mundial
intangível temos a Capoeira e o Frevo, do Brasil; a cultura do café turco, da Turquia; o
fado, tradição musical de Portugal; técnicas tradicionais de confecção de tapeçaria do
Irã e a caligrafia chinesa10.
b. Bens públicos globais
Quando pensamos no conceito de patrimônio comum da humanidade pensamos
em bens cujo valor inestimável é de importância para toda a sociedade global. Este bem
consiste em um complexo de características espirituais, materiais, intelectuais e
emocionais que pertencem a uma sociedade ou determinado grupo social11. Estes bens,
sejam eles naturais ou culturais, podem estar localizados geograficamente no território
de um determinado Estado soberano ou serem, a princípio, sujeitos a determinado
sistema jurídico doméstico. Entretanto, a partir do momento em que eles são
considerados patrimônio comum da humanidade, é possível entender que existe um
interesse público da sociedade global quanto à sua regulação. Isto ocorre porque a
9 As listas completas do patrimônio mundial e do patrimônio mundial em perigo podem ser encontradas em: http://whc.unesco.org/en/list/ Acesso: 5 nov. 2016. 10 A lista completa pode ser encontrada em: http://www.unesco.org/culture/ich/en/lists Acesso: 5 nov, 2016. 11 SERAGELDIN, Ismail. Cultural Heritage as a Public Good – economic Analysis Applied to Historic Cities In: INGE, Kaul; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc (coord). Global Public Goods – International cooperation in the 21st century. Oxford University Press: Nova Iorque, 1991. Publicado para o UNDP –United Nations Development Programme. P. 240
16
globalização, fenômeno que dá origem à governança global, implica na emergência e
desenvolvimento de bens públicos globais12 . Este tipo de bem possui duas
características essenciais: (i) não impede que um grupo diverso de pessoas o usufruam,
caráter não excludente (no original, em inglês, non excludible); (ii) o uso do bem por
uma pessoa não impede que outra o utilize ao mesmo tempo, caráter não rival (o
original, em inglês, non rival)13. Bens públicos globais geram externalidades, cujos
benefícios e malefícios atingem todos os países, populações e gerações14. Portanto,
entende-se que é necessário um sistema de governança global para administrar este tipo
de bem.
A característica peculiar do patrimônio comum da humanidade como bem
público global é que este questiona a utilização do termo global. Entre as características
econômicas deste bem público estão o fato de ele não entrar nos mercados dos
diferentes países, seus benefícios e valores são na grande maioria das vezes intangíveis
uma vez que muitas vezes eles possuem caráter: (i) estético, derivado do uso não
extrativo, de difícil aferição; (ii) turístico/recreação, baseado em número de visitantes
turísticos e (iii) existencial, valor que deriva do fato que sabemos que tal lugar ou
prática cultural existe mesmo que não planejemos visitá-lo ou ter contato com o mesmo.
Ao mesmo tempo, sua conservação e proteção é o cerne da discussão, em vez do
fornecimento, como geralmente ocorre em debates sobre outros tipos de bens públicos –
por exemplo: saúde, educação. Estas características diferenciadas aliadas ao fato de que
os bens que compõem o patrimônio comum da humanidade encontram-se localizados
em territórios sob jurisdição de um Estado soberano – no caso dos bens tangíveis – ou
possuem impacto limitado por se tratar de práticas culturais específicas – no caso dos
bens intangíveis – acabam por dar um tom diferenciado ao vocábulo global, conforme a
discussão apresentada no início deste parágrafo. Tendo em vista este cenário podemos
entender que a caracterização do patrimônio comum da humanidade como um bem
público global implica a existência de externalidades que ultrapassam as fronteiras
soberanas, ampliando seus benefícios a diferentes países, populações e gerações, logo, é
12 STIGLITZ, Joseph. Global public goods and global finance: Does global governance ensure that the global public interest is served? In: TOUFFUT, Jean-Philippe. (Org.). Advancing Public Goods. Paris, 2006. P. 152. 13 NAVRUD, Stale; READY, Richard. Valuing Cultural Heritage – Applying Environmental Valuation Techniques to Historic Buildings, Monuments, Artifacts. Edward Edgar Publishing: UK, 2002. 14 BERTACCHINI, Enrico; SACCONE, Donatella; SANTAGATA, Walter. Loving Diversity, correcting inequalities: Towards a New Global Governance for the UNESCO World Heritage. In: International Journal Of Cultural Policy, vol. 17, n. 3, 2010.
17
possível inferir que um bem como este necessita de um sistema global de governança
para amparar a sua sustentação15.
Além das características apresentadas, também é preciso ter em mente que bens
públicos globais desafiam as características tradicionais do direito à propriedade,
substanciadas pela análise econômica do direito. Na análise econômica do direito, bens
privados, que apresentam as características de rivalidade e exclusão, deveriam ser
propriedade privada e, bens públicos, que não apresentam tais características, deveriam
ser propriedade pública16. Esta premissa está baseada na alocação eficiente de recursos e
redução de custos de transação. Entretanto, quando falamos de bens públicos globais a
linha entre posse pública e privada torna-se tênue, sendo difícil tomar como verdadeira
a premissa mencionada acima. Isso ocorre porque temos um fator complicador: o
caráter global dos bens. Já é difícil distinguir bens privados e públicos quando nosso
espaço de análise é apenas um ente soberano; quando incluímos o espaço global na
análise precisamos nos lembrar que além das tensões entre privado e público dentro do
espaço soberano, teremos tensões entre privado, público e global nas mais diferentes
formas. Não adotamos a análise econômica do direito como marco acadêmico de
orientação, entretanto, as tensões ilustradas brevemente aqui são relevantes para
compreender as dificuldades do objeto de análise deste trabalho: o patrimônio comum
da humanidade e sua relação com o nascente direito administrativo global.
c. Direito Administrativo Global e seu lugar na nova dinâmica do Direito
Global
O Direito Internacional17, antes prontamente conectado aos Estados soberanos e
sua capacidade de celebrar tratados entre si, passou por transformações. O fenômeno da
fragmentação, foco do relatório da Comissão de Direito Internacional da Organização
das Nações Unidas publicado em 200618, aponta que tal fragmentação se dá no contexto
da crescente expansão e especialização, tanto normativa como institucional, do direito.
15 BERTACCHINI, Enrico; SACCONE, Donatella; SANTAGATA; Walter. Embracing diversity, correcting inequalities: towards a new global governance for the UNESCO World Heritage. In: International Journal of Cultural Policy, vol. 17, issue 3, 2011. P. 279. 16 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. Porto Alegre: Bookman, 2010. 5a edição. P. 121. 17 Ao longo deste trabalho a expressão “Direito Internacional” será utilizada para se referir ao Direito Internacional Público. 18 UNITED NATIONS. Fragmentation of International law: Difficulties Arising From Diversification and Expansion of International. CDI, 2006.
18
Este processo está associado à análise da globalização, fenômeno que procura estudar
como as sociedades se desenvolvem em um contexto no qual múltiplos atores
estabelecem relações entre si. A fragmentação da vida torna-se mais acentuada e a partir
da diferenciação funcional, a sociedade é dividida em diversos setores organizados em
torno de interesses, temas e conhecimentos específicos19. Estes “pedaços” podem ser
partes diferenciadas de uma mesma ordem jurídica fragmentada, ou podem constituir
novas ordens jurídicas. Tais conjuntos regulatórios tendem a ser denominados regimes
jurídicos. Contudo, a fragmentação da vida em sociedade não ocorre apenas no nível
doméstico, nacional; tal fenômeno tem reflexos na esfera global, logo, esses regimes
também são internacionais ou transnacionais ou globais20.
Esta pequena explicação sobre as mudanças que ocorrem no Direito
Internacional já indica o quão complexa a regulação da sociedade se tornou. A forma de
regulação da vida na esfera internacional antes apontada nos livros deixou de ser
compatível com a realidade uma vez que mudanças nesta sociedade dotada de
dinamicidade transformaram, e continuam transformando, as relações. Esta nova forma
de compreender a regulação da sociedade global abala o reinado da concepção do Duo
de Westfália onipresente na academia durante o século XIX 21. Não conseguimos mais
apenas categorizar o direito como ou doméstico ou internacional, como fruto de dois
grandes tipos de ordem jurídica – a interna e a internacional. Temos formas de direito,
como o religioso e o costumeiro, que não encontram lugar na arcabouço teórico do duo.
Além disso, temos formas de regulação que não são entendidas como direito ou que
geram discussão sobre ser direito ou não, como o soft law22.
A dinâmica da sociedade global precisa ser analisada a partir de um ponto de
vista mais abrangente do que o do Direito Internacional Público, caso visemos
compreender de forma eficiente o mundo atual. É preciso adotar o ponto de vista do
Direito Global, o qual permite uma melhor compreensão da regulação das relações da
vida humana na medida que não se limita a analisar o direito realizado entre Estados e
19 NASSER, Salem. Global Law in Pieces Fragmentation, Regimes and Pluralism . In: FGV Direito SP Research Paper Series, n. 105, 2014. P. 6. 20 Idem, Ibidem, P.6. 21 A expressão Duo de Westfália é comumente utilizada para fazer referência à teorização ocidental clássica do direito: distinção entre o direito doméstico, baseado nas ordens jurídicas nacionais, e o direito internacional público, o qual regula as relações entre Estados. Esta concepção foi dominante durante o século XX, fazendo com que os estudos sobre direito ficassem limitados apenas a estas duas vertentes de direito, ignorando formas de direito que não decorrem diretamente de Estados nação. (TWINING, William. General Jurisprudence: Understanding Law from a Global Perspective. Cambridge University Press: Cambridge, 2008. P. 363-363) 22TWINING, William. Implications of “Globalisation” for Law as a Discipline. HALPHIN, A.; ROEBEN, V. (Organizadores). Theorising the Global Legal Order. Portland: Hart Publishing, 2009. P. 10.
19
para Estados. Este Direito Global possui (i) variadas cadeias de normas, algumas
geradas no mercado jurídico interno, outras tantas de origem externa; (ii) uma complexa
estrutura de órgãos, estatais e internacionais, produzindo e aplicando Direito e (iii) a
mundialização da economia fazendo valer seus interesses: tanto influenciando a reforma
dos Estados e criando-lhes uma nova organização, como impondo novas regulações
para variados assuntos23.
Quando adotamos o ponto de vista global encontramos a zona cinzenta da noção de
governança, noção ampla e de difícil conceituação que entre outros elementos inclui o
direito. É preciso indagar-se como esta se relaciona com o direito enquanto forma –
meios e mecanismos – de regular a vida24. O aumento das formas de regulação e
administração transgovernamentais está relacionado à necessidade de lidar com as
consequências de uma interdependência globalizada em campos como segurança,
proteção ambiental, telecomunicações, movimentos migratórios, etc.25 Não é possível
lidar com as consequências de forma eficiente apenas com medidas administrativas e
regulatórias nacionais isoladas. Para lidar com este contexto vários sistemas
transnacionais de regulação e de cooperação regulatória foram estabelecidos por
tratados internacionais e até mesmo por redes de cooperação intergovernamentais
informais, alterando o local de tomada de decisão regulatória, do nível nacional para o
global26.
A formação desses novos espaços regulatórios acarreta a discussão sobre o papel do
direito na regulação da vida e nos permite questionar até que ponto esta decorre do
direito ou se ela passa emergir de outros meios27. Temos então um cenário onde dois
23 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: sbdp/Malheiros Editores, 2012. P. 188. 24 Idem, Ibidem, P. 18. 25 KINGSBURY, Benedict.; KRISCH, Nico.; STEWART, Richard. The Emergence of Global Administrative Law. Law and Contemporary Problems, v. 68, 2005. P. 16 26 Idem, Ibidem, P. 16. 27 Nesse sentido temos: “Desta distinção entre o que é direito e o que não é direito surge uma importante indagação: a partir do momento que nos perguntamos se algo é direito estamos nos perguntando se algo faz parte de um sistema jurídico específico . Quando almejamos analisar os regimes jurídicos ou regulatórios da esfera internacional é preciso questionar se suas normas são jurídicas; de onde tais normas surgem – ou seja, quais suas fontes; e se eles constituem um sistema jurídico específico. (...) Existem muitas formas de conceituar o direito. No contexto internacional, muito discute-se sobre a possibilidade de denominar direito algo que não é criado por Estados, que tem problemas de enforcement, que possui controvérsia quanto sua obrigatoriedade, etc. Chamar algo de direito levando em consideração as características acima é um exercício de descrição da realidade que não gera muitos efeitos na prática. Contudo, quando passamos a nos perguntar se algo é direito porque faz parte de um sistema jurídico especifico é preciso adotar a lógica interna do sistema, ou seja, apenas o que o sistema considera como sua parte poderá ser de fato27. Por exemplo, o sistema jurídico internacional regulado pelo direito internacional público reconhece os costumes internacionais como fonte de direito, logo, podemos afirmar que existe um direito costumeiro pois este se enquadra na lógica interna – mecanismo, standards, procedimento, etc. – do sistema. Característica fundamental de qualquer ordem jurídica e, ainda mais acentuada no esfera global, é a temporalidade. A ordem jurídica se altera, por exemplo: no contexto da ordem jurídica internacional, o que antes eram apenas standards ou guidelines se tornam normas por serem incorporadas por tratados internacionais ou por serem reconhecidas como direito costumeiro. A
20
fenômenos se encontram e se relacionam: a diferenciação e especialização do direito e a
perda de espaço deste para outras formas de regulação2829. Entre estes novos tipos de
regulação está a ação administrativa global, que pode decorrer de quatro grandes tipos:
(i) organizações intergovernamentais globais; (ii) organizações híbridas (público-
privadas) e privadas que exercem funções de interesse público (iii) redes transnacionais
e intergovernamentais de governança e; (iv) formas complexas de governança, como os
regimes regulatórios globais que envolvem atores na esfera internacional e nacional30.
O espaço administrativo global surge do abalo da dicotomia entre o direito
doméstico e o internacional no contexto da globalização e da governança global. Este
cenário apresenta o campo de ação da administração global, o qual é composto por um
grupo de regras e instituições públicas, privadas e híbridas Este campo do direito ainda
é incerto devido a sua juventude, contudo, é possível traçar sua conceituação a partir da
observação de sua atuação na sociedade: o Direito Administrativo Global é visto como
um conjunto de mecanismos, princípios e práticas que promovem ou afetam a
accountability dos entes que promovem a ação administração global, principalmente
assegurando que as atitudes destes respeitem a critérios de transparência, participação,
tomada de decisão racional e legalidade e que haja possiblidade de revisão efetiva das
regras e das decisões criadas e tomadas por estes entes31.
partir do momento em que há a incorporação por um tratado ou reconhecimento como costume aquele standard ou guideline passa a ser fonte de direito internacional. Ademais, novas fontes de direito podem passar a ser reconhecidas por uma ordem jurídica. Ao mesmo tempo, formas de regulação, como os regimes jurídicos ou regulatórios, podem conviver paralelamente à lógica daquele sistema jurídico tradicional, interagindo com este e criando um espécie de zona cinzenta onde é difícil distinguir o que é direito e o que não é, o que pode ser entendido como governança e suas consequências. O aspecto político e a necessidade de discussões técnicas profundas sobre os sujeitos e fontes das áreas de regulação transnacional apresentam um grande desafio as teorias tradicionais do direito.” CARDILLI, Carolina Fontolan. Pluralismo de regimes no Direito Global. Iniciação Científica apresentada à Fundação Getúlio Vargas em Julho de 2015. Orientador: Salem Hikmat Nasser. P. 11, 19-20. 28 NASSER, Salem. Global Law in Pieces: Fragmentation, Regimes and Pluralism. P.18. 29 Este cenário plural composto por formas de regulação de direito e não direito é também influenciada pela política e relaçoes internacionais. Este pluralismo é visto como um modelo integrator e compatibilizador das diferentes formas de regulação. Neste sentido temos: “Expandindo a análise do mundo do direito em direção ao mundo das relações e políticas internacionais, Martti Koskenniemi concebe o pluralismo como uma das possíveis respostas aos problemas do mundo globalizado repleto de regimes e racionalidades distintas: de um lado a necessidade de centralismo e controle e, do outro lado, a necessidade de diversidade e liberdade . Em outras palavras, a tensão entre unidade e fragmentação. Para Koskenniemi esta resposta ainda não foi muito explorada pelos internacionalistas devido às dificuldades do desenvolvimento de uma sociologia do direito internacional. Quando falamos em pluralismo no contexto do direito internacional, pensamos nas discussões sobre globalização, a partir do conflito das racionalidades – decorrentes da diferenciação funcional da sociedade - dos múltiplos regimes. Existem aqueles que defendem que o pluralismo é uma condição comum às diferentes épocas históricas. Esta posição não tem destaque na consciência coletiva devido à visão dominante de que o direito é uno, uniforme e tem seu sistema administrado pela máquina estatal . Nesse sentido, o fenômeno da globalização deu origem a uma nova onde de pluralismo, fortemente conectado à perda da primazia do poder estatal nas relações internacionais e a noção do não-direito”. CARDILLI, Carolina Fontolan. Pluralismo de regimes no Direito Global. P. 14-15. 30 CASSESE, Sabino; CAROTTI, Bruno; CASINI, Lorenzo; CAVALIERI, Eleonora; MACDONALD, Euan. (Editores). Global Administrative Law: The Casebook – Third Edition. Kindle Location 2354, 2367, 2379, 2395. 31 KINGSBURY, Benedict.; KRISCH, Nico.; STEWART, Richard. The Emergence of Global Administrative Law. P. 17.
21
A partir de tal concepção, é possível realizar as seguintes constatações: (i) o
Direito Administrativo Global presume a existência de formas de administração
transnacional e global, (ii) na medida que aponta como seus entes como instituições
intergovernamentais regulatórias formais, redes regulatórias intergovernamentais
informais, mecanismos de coordenação, instituições regulatórias híbridas (público-
privadas) e instituições privadas. Ademais, é possível apontar que atrás da noção de
Direito Administrativo Global, e sua ligação com a governança global, está a
preocupação com o zelo do interesse público. Presume-se que seja por isso que este
emergente campo do direito recebe a alcunha de “administrativo”: assim como o que
conhecemos como Direito Administrativo doméstico, o Direito Administrativo Global
tem como força motriz a primazia do interesse público.
d. Ação Administrativa Global
A partir do entendimento exposto acima sobre o Direito Administrativo Global,
temos que automaticamente propomos que muito da governança global pode ser
compreendido e analisado pela ótica da ação administrativa: criação de normas,
adjudicação administrativa entre interesses conflitantes e outras formas regulatórias e
administrativas de tomada de decisão e gerenciamento. O direito doméstico presume
que o conceito da ação administrativa é residual, sendo aquilo que não decorre da ação
estatal legislativa ou judicial. Em um contexto além daquele circunscrito pelo Estado
soberano, as diferenciações no cenário institucional são mais variadas. Mesmo assim,
muitas instituições e regimes internacionais que atuam e compõem aquilo que é
entendido como governança global cumprem funções que no contexto doméstico seriam
vistas como ações essencialmente administrativas32. Estas ações são desde decisões
vinculantes de organizações internacionais, decisões não vinculantes de redes
intergovernamentais até ações administrativas domésticas no contexto de regimes
globais. Exemplos incluem decisões do Conselho de Segurança da Organização das
Nações Unidas (ONU) sobre sanções individuais, criação de normas pelo Banco
Mundial (BC) para países em desenvolvimento, criação de parâmetros em relação à
lavagem de dinheiro pela Financial Action Task Force (FATF) ou decisões
32 Idem, Ibidem. P. 17.
22
administrativas domésticas sobre abertura de mercados nacionais a produtos
estrangeiros como parte do regime da Organização Mundial do Comércio (OMC)33.
Contudo, no que consiste a noção de ação administrativa global? Como
podemos conceituar este tipo de ação? Pode-se apontar que esta consiste na criação de
normas, adjudicações e outras decisões que não decorrem simplesmente criação de
tratados ou resolução de disputas. São standards, regras de aplicação geral e decisões
informais tomadas no contexto da implementação de regimes regulatórios
internacionais34. É a partir da abordagem desta ação administrativa global que podemos
conceber e delinear o Direito Administrativo Global.
II – A regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica da ação
administrativa global
a. Regulação e direito internacional
A regulação do patrimônio comum da humanidade tem como um de seus pontos
centrais a já referida Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e
Natural, daqui para frente denominada Convenção, em conjunto com a Lista do
Patrimônio Mundial (lista). Este espaço é regulado por um organismo internacional – a
UNESCO – em conjunto com seus Estados partes. Existe literatura extensa sobre a
Convenção, os critérios utilizados para determinar o que se enquadra na lista de bens a
serem protegidos, possíveis sanções aos Estados que não protegem tais bens, etc.
A lista consiste em um conjunto de bens culturais e naturais de valor universal
definido pelos parâmetros da Convenção. A composição da lista passa por duas fases
diferentes – nomeação e seleção – e pela análise de três atores: Estados partes da
Convenção, órgãos consultivos e o Comitê do Patrimônio Mundial (Comitê). O
processo de nomeação ocorre por iniciativa dos Estados que propõem que seus bens,
naturais ou culturais, sejam avaliados para passar a integrar a lista. A Convenção
original data de 1972, entretanto, em 2003 um adendo importante foi realizado: a
incorporação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Desde
2003, além do texto protegendo o patrimônio cultural e natural da humanidade, passou a
33 KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico. Introduction: Global Governance and Global Administrative Law in the International Legal Order. In: European Journal of International Law, Vol. 17, n.1, 2006. P.3. 34 Idem, Ibidem. P. 17.
23
compor a Convenção o texto de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial Segundo a
UNESCO esta texto de salvaguarda regula o tema do patrimônio cultural imaterial e,
assim, complementa a Convenção de 1972, que cuida dos bens tangíveis35.
Especialistas de três órgãos consultivos – ICOMOS para bens culturais
(Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, no original, em inglês, International
Council on Monuments and Sites); IUCN para bens naturais (União Internacional para a
Proteção da Natureza, no original, em inglês, International Union for Conservation of
Nature) e ICCROM (Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauração
de Bens Culturais, no original, em inglês, International Center for the Study of the
Preservation and Restoration of Cultural Property) – avaliam os dossiês de nomeação
para verificar se estes são complacentes com os parâmetros definidos na Convenção.
Visitas de campo são realizadas para verificar a autenticidade, integridade e proteção
dos bens em questão. Assim que a avaliação técnica é concluída, o órgão consultivo
responsável pela avaliação faz sua recomendação ao Comitê, o qual terá a palavra final
na escolha dos bens que irão passar a integrar a lista.
A seleção dos novos integrantes da lista ocorre em sessões anuais do Comitê, o
qual consiste em um conjunto de representantes de vinte e um Estados partes da
Convenção, eleitos pela Assembleia Geral desta. Os mandatos dos representantes são
oficialmente de seis anos, contudo, é prática optar voluntariamente pelo encurtamento
do mandato em quatro anos visando abrir espaço para que outros Estados integrem o
Comitê e promovam a diversidade.
Para um bem venha integrar a lista é preciso atender pelo menos um dos dez
requisitos descritos na Convenção, além de ser autêntico, manter a integridade e
assegurar que mecanismos de conservação próprios sejam estabelecidos36. Os requisitos
englobam tanto características culturais como naturais e podem ser resumidos em: (i)
representar uma obra prima da criatividade e engenhosidade humana; (ii) exibir um
relevante conjunto de valores humanos, durante um espaço de tempo ou dentro de uma
espaço cultural especifico, referente à arquitetura, tecnologia, artes monumentais,
planejamento urbano ou paisagismo; (iii) possuir traços únicos de cultura ou civilização
tradicionais vivas ou que já desapareceram; (iv) ser um exemplo excepcional de um tipo
de construção, conjunto arquitetônico e tecnológico ou panorama que ilustra um estagio
35 UNESCO, Patrimônio Cultural Imaterial. Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangible-heritage/ Acesso: 01 out. 2016. 36 BERTACCHINI, Enrico; LIUZZA, Claudia; MESKELL, Lynn; SACCOJE, Donatella. The Politicization of UNESCO World Heritage decision making. In: Public Choice, vol. 167, issue 1, 2016. P. 99.
24
significativo da história humana; (v) ser um exemplo excepcional de um assentamento
humano ou uso de recursos naturais que sejam representativos de uma cultura ou
interação humana com o meio ambiente; (vi) ser diretamente ou tangivelmente
associado a eventos, tradições, ideias, valores, crenças, criações artísticas ou literárias;
(vii) conter fenômenos naturais superlativos ou áreas de excepcional beleza natural e
importância estética; (viii) ser exemplo excepcional da representação de grandes eras da
história do planeta, incluindo históricos de vida animal, transformações geológicas ou
características geográficas e fisiográficas; (ix) ser exemplo excepcional representativo
dos processos ecológicos e biológicos de evolução e desenvolvimento dos mais diversos
ecossistemas e comunidades de plantas e animais; (x) conter os mais significativos
habitats naturais para a conservação de diversidade biológica, incluindo aqueles que
contem espécies de valor inestimável em perigo de extinção37.
A Convenção tem natureza de tratado internacional, sendo a fonte de Direito
International Público que brinda os juristas com uma maior grau de certeza uma vez que
se assemelha às leis do direito interno e geralmente se apresenta sob a forma escrita38.
Desse modo, podemos entender que a Convenção é um exemplo de hard law. Ou seja, é
um conjunto de normas pelas quais os Estados partes da Convenção estão vinculados.
Sabe-se que no campo do Direito Internacional é difícil promover o enforcement das
normas devido a soberania dos Estados. Geralmente, o cumprimento destas normas, em
grande parte, decorre das obrigações morais dos membros da comunidade
internacional39. O regime capitaneado pela Convenção é criticado justamente por não
ser suficientemente efetivo e por promover decisões com déficit de accountability. Este
regime não garante o cumprimento por parte dos Estados soberanos de suas normas,
pois estes sempre acabam por deixar prevalecer a autonomia das autoridades domésticas
uma vez que temem deixá-las comprometidas.
Nesse mesmo sentido, é possível apontar que existe uma tensão entre a
soberania estatal e o reconhecimento de que certas estruturas, propriedades e áreas não
constituem o patrimônio de um Estado individual, mas sim da humanidade40. Existe
ainda outra tensão: de uma lado temos o interesse da humanidade de preservar o
37 A tradução dos requsitos é nossa. A redação original, em inglês, encontra-se em: http://whc.unesco.org/en/criteria/ Acesso: 01 out. 2016. 38 NASSER, Salem Hikmat. Fontes e Normas do Direito Internacional – Um Estudo sobre a Soft Law. São Paulo: Atlas, 2006. 2a Ed. P. 67. 39 FYAL, Alan; LEASK, Anna. Managing World Heritage Sites. Routledge: Nova York, 2011. P. 23. 40 BATTINI, Stefano. The Procedural Side of Legal Globalization: The Case of the World Heritage Convention. In: International Journal of Constitutional Law; vol. 9, issue 2, 2011. P. 362
25
patrimônio que impacta o seu desenvolvimento; do outro, temos os Estados soberanos
que não querem abrir mão de sua discricionariedade nos processos de tomada de
decisão doméstica. Logo, é preciso conceber uma abordagem que permita a
representação dos interesses da comunidade global através da intervenção e influência
dos processos de tomada de decisão doméstica que impactam os bens públicos
globais41.
A dinâmica de afirmação do patrimônio comum da humanidade como princípio
jurídico inspirador de regimes internacionais alternativos à apropriação individual
desses espaços e recursos pelos Estados encontra no espaço global uma área de
concretização42 . Além das características peculiares do patrimônio comum da
humanidade devido a sua qualidade de bem público global, a percepção de seu potencial
econômico e estratégico de valor inestimável no contexto do espaço global nos leva a
conceber a regulação deste ambiente de forma distinta e, até mesmo, ambiciosa.
Com o surgimento do conceito de Direito Administrativo Global encontramos
subsídio para pensar este espaço de regulação do patrimônio comum da humanidade de
forma diferente. O aspecto substantivo desta regulação se relaciona com o interesse
global de preservação de certos bens e, a fim de atingir este objetivo, a regulação acaba
por influenciar o processo de tomada de decisão doméstico. Alguns entendem que o
espaço regulatório do patrimônio comum da humanidade exemplifica um modelo
procedimental de integração legal e institucional43 , modelo este que poderia ser
concebido sob o arcabouço teórico do Direito Administrativo Global.
Esta concepção da regulação do patrimônio comum humanidade implica a
transformação dos processos de tomada de decisão doméstica, e não a sua
substituição44, grande medo dos Estados soberanos. Ademais, temos que no mundo
globalizado, cada vez mais os impactos da regulação doméstica – principalmente
quando discorrem sobre bens públicos globais – afetam os interesses extraterritoriais,
fazendo com que os Estados exerçam seu poder público para além de sua fronteiras.
É este exercício do poder público para além das fronteiras – realizado no caso das
decisões sobre o patrimônio comum da humanidade – que serve de ponto de conexão ao
conceito de Direito Administrativo Global: a existência de bens globais implica a
41 Idem, Ibidem. P.363. 42 PUREZA, José Manuel. O Património Comum da Humanidade – Rumo a um direito internacional da solidariedade? P. 247 43 BATTINI, Stefano. The Procedural Side of Legal Globalization: The Case of the World Heritage Convention.. P. 364. 44 Idem, Ibidem, P. 366.
26
concessão de poder para mais de um Estado para regular. A estrutura desta regulação –
reconhecimento do poder de regulação e dever do regulador de levar em consideração
os interesses afetados – possui lógica similar a do direito administrativo. Aqui, os
fundamentos do direito administrativo atuariam como mediadores dos desiquilíbrios
entre os Estados reguladores, estendendo a lógica e os propósitos do modelo da
representação de interesses para além das fronteiras nacionais45 . Temos que os
mecanismos de accountability46 passariam a ser exercidos para tornar não apenas o
Estado accountable perante a seus cidadãos, mas todos os agentes da regulação
accountable aos diversos atores desse sistema. Os desafios estão em identificar a
existência de uma ação administrativa global, sua forma de atuação e em organizar
como a prestação de contas será realizada de forma transparente e acessível sob a égide
de um possível Direito Administrativo Global.
b. O exercício da ação administrativa global
O primeiro passo para explorarmos e identificarmos a ação administrativa global
no contexto da regulação do patrimônio comum da humanidade é observar com mais
atenção os órgãos consultivos do sistema regulatório capitaneado pela UNESCO. Tais
órgãos são mais que meramente consultivos e possuem grande relevância no sistema.
Cada um dos órgãos possui uma diferente estrutura organizacional. O ICOMOS é
uma organização não governamental criada em 1965. Possui mais de 11 mil membros
individuais (indivíduos engajados na conservação de monumentos da comunidade
científica, especialistas, técnicos administrativos, etc.) e 95 comitês nacionais
institucionais, formados por membros do ICOMOS em cada país. A IUCN foi fundada
em 1948 como uma associação internacional que possui como membros governos e
45 Idem, Ibidem. P. 367-368. 46 Devido a dificuldade de encontrar um termo em português adequado, o termo accountability e seus derivados, como accountable, serão utilizados no original em inglês ao longo deste trabalho. Entendemos accountability como um processo de avaliação e responsabilização dos agentes públicos (eleitos, nomeados ou de carreira) em razão dos atos praticados em decorrência do uso do poder que lhes é outorgado pela sociedade. Será institucional quando este processo for praticado no âmbito do próprio aparato estatal, ou social quando praticado fora dos limites estatais. Em outras palavras, é saber o que os agentes públicos estão fazendo, como estão fazendo, que consequências resultam das suas ações e como estão sendo responsabilizados. Disso surge um fluxo de informações amplo e aberto, capaz de subsidiar e incentivar a discussão e debate em torno de questões públicas (ROCHA, Arlindo Carvalho. Accountability na Administração Pública: A Atuação dos Tribunais de Contas. Artigo apresentado no XXXIII Encontro da ANPAD, na cidade de São Paulo, entre 19 e 23 de set. 2009. P. 4 Disponível em: http://www.anpad.org.br/admin/pdf/APS716.pdf). Ao longo deste trabalho o conceito de accountability será aplicado ao sistema global e, portanto, não seguirá fielmente a conceituação aqui exposta. Contudo, entendemos que esta breve explicação ajuda a entender o conteúdo central do conceito, seu caráter de prestação de contas, que será explorado ao longo do trabalho.
27
organizações não governamentais, constituída de acordo com o Código Civil Suíço.
Possui mais de 1.300 membros, incluindo agências governamentais, organizações não
governamentais internacionais e nacionais, Estados e afiliados (instituições acadêmicas,
científicas e de negócios). Já a ICCROM é uma organização intergovernamental
composta apenas por Estados – cerca de 130 atualmente – fundada em 1956 pela
decisão da Nona Assembleia Geral da UNESCO em Nova Déli47.
Estas três organizações são nomeadas pela UNESCO na Convenção como órgãos
que devem aconselhar o Comitê em suas deliberações. O IUCN, ICOMOS e ICCROM
fazem parte do sistema de regulação do patrimônio comum da humanidade, contudo,
são instituições independentes que possuem suas próprias estruturas burocráticas e
sistemas internos de governança. O ICCROM possui uma Assembleia Geral composta
por seus Estados partes, um Conselho com 25 membros eleitos pela Assembleia Geral e
um Secretariado liderado por um diretor geral; o IUCN possui um Conselho composto
por um presidente, quatro vice-presidentes, um secretário, os líderes das seis Comissões
da IUCN (Comissão para a Educação e Comunicação; Comissão para Políticas
Ambientais, Econômicas e Sociais, Comissão Mundial sobre Direito Ambiental;
Comissão sobre Gestão Ambiental; Comissão sobre Preservação de Espécies e
Comissão Mundial sobre Áreas Protegidas) e 28 conselheiros regionais; o ICOMOS
possui um Secretariado, Assembleia Geral, Conselho Científico, Conselho Geral e um
Comitê Consultivo.
A breve explicação da estrutura destes órgãos consultivos ilustra como a
regulação do patrimônio comum da humanidade tem em seu núcleo a incorporação das
mais diferentes formas de governança – nacional, internacional, transnacional, privada,
pública, etc. Entretanto, vimos anteriormente que o órgão dotado de poder para incluir
bens na lista é o Comitê. Desse modo, faz-se necessário explorar a influência das
repartições deliberativas supracitadas no Comitê e até mesmo nas decisões domésticas
para podermos encontrar mais indícios de um possível exercício de ação administrativa
global no objeto do presente trabalho.
Dos três órgãos apresentados é possível afirmar que de fato dois deles – IUCN e
ICOMOS – partilham do poder formalmente conferido ao Comitê para inscrever os
retirar bens da lista. Estes órgãos são os responsáveis por fornecer as bases factuais – os
47 CAVALIERI, Eleonora. The Role of Advisory Bodies in the World heritage Convention. In: CASSESE, Sabino; CAROTTI, Bruno; CASINI, Lorenzo; CAVALIERI, Eleonora; MACDONALD, Euan (Editores). Global Administrative Law: The Casebook – Third Edition. P. 369.
28
dossiês finais – sobre os bens indicados. De forma geral, o papel dos órgãos é fornecer
assistência técnica necessária para implementação bem sucedida da Convenção. Apesar
das decisões do IUCN e ICOMOS (fornecidas através de relatórios que possuem
recomendações) não vincularem formalmente o veredicto final proferido pelo Comitê,
são estes órgãos que conferem legitimidade ao regime de proteção do patrimônio
comum da humanidade uma vez que as decisões do Comitê terão mais chances de
serem implementadas sem sanções caso sejam baseadas em conhecimento técnico
dotado de expertise inquestionável48.
Interessante notar que, além do descrito acima, estes órgãos exercem um tipo de
função normativa. O IUCN e o ICOMOS não apenas contribuíram na redação da
Convenção, mas também foram parte do processo de atualização das Diretrizes
Operacionais, um documento fundamental para o regime de proteção do patrimônio
comum da humanidade uma vez que este é o responsável pela implementação da
Convenção, a partir do estabelecimento de procedimentos para a sua aplicação49.
Do cenário exposto dois pontos contribuem para identificarmos indícios de um
possível exercício de ação administrativa global: (i) o poder normativo dos órgãos
deliberativos explanado acima; (ii) a diversidade dos atores que integram os órgãos
deliberativos e a extensão de sua influência.
O poder normativo dos órgãos deliberativos consiste na criação de normas
procedimentais para implementação da Convenção. Tais normas são acessórias à
Convenção e não possuem natureza de fonte de Direito Internacional Público como os
tratados internacionais – e a Convenção propriamente dita – uma vez que seu caráter é
eminentemente procedimental, podendo até mesmo ser descrito como administrativo
uma vez que não possui caráter legislativo ou jurisdicional, não decorre de tratados ou
resolução de disputas. Este caráter administrativo decorre do fato destas normas
procurarem dirigir, governar, exercer uma função com um objetivo útil, traçar um
programa de ação e executá-lo. Nas discussões sobre direito público, alguns autores dão
ao vocábulo administração sentido amplo para abranger a legislação e execução50. Aqui
entendemos este caráter administrativo como conectado à execução, não
necessariamente ligado à legislação, uma vez que para concebermos o caráter
administrativo como conecto à legislação precisamos entender que as normas das quais
48 Idem, Ibidem, P. 370-371. 49 Idem, Ibidem, P. 371. 50 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012. P. 49.
29
tratamos são jurídicas. Não entendemos que o poder normativo exercido pelos órgãos
deliberativos seja jurídico uma vez que este não pertence a uma ordem jurídica51, mas
surge do exercício de organizações intergovernamentais e não governamentais. Todavia,
o fato deste poder normativo não ser jurídico não implica na sua pouca importância para
o sistema de regulação do patrimônio comum da humanidade, conforme será exposto ao
decorrer do trabalho.
O exercício de criação destas normas através dos órgãos deliberativos do sistema
que regula o patrimônio comum da humanidade parece estar alinhado com a descrição
de ação administrativa global exposta anteriormente neste trabalho. Mais um indício
deste alinhamento reside no fato de que esta suposta ação administrativa afeta
diretamente os integrantes da Convenção (os Estados soberanos, per se) e todos aqueles
que colaboram para a sua implementação. As diretrizes operacionais estabelecem
parâmetros para a implementação da Convenção; as agências governamentais, as
organizações não governamentais e organismos transnacionais que fazem parte dos
organismos deliberativos acabam por ser influenciadas por tais diretrizes, em alguns
momentos até mesmo replicando-as em seus ambientes regulatórios domésticos.
A diversidade dos atores integrantes dos órgãos deliberativos também ressalta um
indício do exercício de uma possível ação administrativa global. Conforme já discutido
no presente trabalho, a emergência do Direito Administrativo Global e, da noção de
ação administrativa global decorrem do surgimento de formas complexas de
governança. Um sistema regulatório formado por um conjunto de agentes com as mais
distintas naturezas qualifica-se como uma forma complexa de governança.
Ainda procurando identificar o exercício da ação administrativa global, podemos
observar um caso concreto envolvendo o Lago Baikal, na Rússia52, e o sistema de
regulação do patrimônio comum da humanidade. O lago encontra-se ao sul da Sibéria e
possui grande relevância para a humanidade devido a sua rica e singular biodiversidade.
Em 2005 o Comitê foi informado por organizações de proteção ao meio ambiente que a
companhia responsável pela construção de um oleoduto na região da Sibéria tinha
começado a desmatar a região para criar uma rota para os encanamentos que passariam
a cerca de dois quilômetros de distância do Lago Baikal. O Comitê junto ao IUCN
montou uma missão para averiguar a propriedade e a construção, convidando o governo
51 A discussão sobre direito e não direito pode ser retomada na nota de rodapé 27 deste trabalho. 52 Este exemplo foi retirado de artigo escrito por Stefano Battini. A narrativa original do exemplo poder ser econtrada em: BATTINI, Stefano. The Procedural Side of Legal Globalization: The Case of the World Heritage Convention. P.354-356.
30
russo para fazer parte desta. A missão ocorreu entre 21 e 31 de outubro de 2005 e seu
time foi formado por autoridades federais e locais, organizações não governamentais
locais e especialistas no tema. O relatório consolidando os resultados da missão
indicava que o oleoduto estava muito próximo do Lago, fazendo com que o riscos de
acidentes de vazamentos fossem muito altos.
Como resultado da missão, o Comitê indicou que caso o governo russo aprovasse
a continuidade da construção, o Lago Baikal seria incluído na lista do patrimônio
mundial em perigo, o que acarretaria a aplicação de uma série de medidas protetivas que
poderiam vir a ser implementadas sem a anuência do governo russo.
Mesmo com a recomendação de não seguir com a construção, o Presidente
Vladimir Putin pressionou a continuidade da construção, até mesmo alterando a
composição da autoridade federal responsável por avaliações de impacto ambiental com
a intenção, que se tornou bem sucedida, de alterar as recomendações sobre a construção.
A decisão do governo russo de prosseguir com a construção do oleoduto foi
recebida com protestos da sociedade civil e noticiada com tom negativo pela imprensa
internacional. O Presidente do Comitê entrou em contato com o Presidente Putin
expressando o seus descontentamento com a decisão e pedindo para que esta fosse
revertida com intuito de preservar o Lago Baikal. Além disso, o Direito Geral da
Unesco enviou carta semelhante ao Primeiro Ministro russo e o Secretariado do Comitê
enviou notificação ao embaixador da Rússia na Unesco solicitando que este divulgasse
a avaliação e decisão oficiais tomadas pela autoridades russas sobre o Lago Baikal.
Em 26 de abril de 2006, o Presidente Putin, em uma reunião amplamente
divulgada pela mídia local, determinou que o projeto do oleoduto deveria ser alterado
de modo que este não fosse instalado próximo do Lago Baikal.
Em julho de 2006, em sua sessão anual, o Comitê comentou oficialmente o caso,
afirmando a importância da decisão russa de proteger o Lago Baikal, um bem tido como
patrimônio comum da humanidade devido ao seu relevante valor universal. O Comitê
retirou a proposição de incluir o Lago na lista de patrimônio mundial em perigo,
mantendo sua inscrição apenas na lista do patrimônio mundial.
No caso descrito acima conseguimos identificar elementos da ação administrativa
global no contexto do patrimônio comum da humanidade. Tanto o relatório do Comitê
como as ações de seu Secretariado e do Diretor Geral da UNESCO continham um
conteúdo não só recomendatório, mas de certa forma, decisório, ainda que informal.
31
Estas recomendações e decisões foram tomadas no sentido de implementar um regime
regulatório internacional, com claro objetivo de impactar o procedimento interno de
tomada de decisão da Rússia. No mesmo sentido, a alteração da decisão tomada por
autoridades governamentais russas demonstra o fluxo da ação administrativa global
ocorre tanto da esfera global para a doméstica, como da doméstica para a global.
Podemos observar os mecanismos da ação administrativa global na medida que o
regime do patrimônio comum da humanidade permite que uma organização
internacional intervenha no processo decisório doméstico. Esta intervenção é análoga
àquelas que o direito administrativo doméstico reconhece apenas para agências
nacionais ou locais e atores privados cujos interesses podem ser afetados por escolhas
administrativas.53
Em casos como o descrito acima observamos claros indícios de ação
administrativa global no contexto do patrimônio comum da humanidade. A partir do
momento que identificamos a ação passamos imediatamente a conceber um sistema
accountability que a controle. A procura desafiadora por este sistema será abordada no
próximo capítulo.
III – A ação administrativa global e sua relação com a emergência do Direito
Administrativo Global
a. Controle da ação administrativa global: questões de accountability,
transparência e enforcement
A partir do momento que identificamos indícios da existência de ação
administrativa global é natural que passemos a pensar em mecanismos de controle da
mesma. Toda ação exercida por alguém dotado de poder – neste caso, os agentes do
sistema de governança complexa do patrimônio comum da humanidade – precisa ser
posta em cheque por mecanismos de controle. Tal sistema de ação e controle é uma das
premissas do direito administrativo, não importa qual linha esta direito siga: francesa,
alemã, italiana, anglo-americana ou brasileira. No sistema doméstico temos que:
53 BATTINI, Stefano. The Procedural Side of Legal Globalization: The Case of the World Heritage Convention.. P. 363.
32
A finalidade do controle é a de assegurar que a Administração que em consonância com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, como os da legalidade, moralidade, finalidade pública, publicidade, motivação impessoalidade, em determinadas circunstancias, abrange também o controle chamado de mérito que diz respeito aos aspectos discricionários da atuação administrativa. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012. P. 791.)
Podemos, com as devidas ressalvas, aplicar a descrição acima ao sistema global
que ora analisamos. Entendemos que em um ambiente global em tese regulado por uma
forma de direito administrativo teríamos que levar em consideração o controle da ação
administrativa a partir de três grandes matrizes (i) accountability; (ii) transparência e
(iii) enforcement54 . Tendo em vista a pluralidade de agentes, normas, diretrizes,
princípios e parâmetros do sistema de regulação do patrimônio comum da humanidade
precisamos analisar cada uma das matrizes mencionadas cima, uma vez que estas
contribuem para um ambiente regulatório eficiente. De certa forma, accountability é a
matriz mais relevante neste caso uma vez que dela decorre a transparência e, em certa
medida, o enforcement. Assim, iremos partir da análise pormenorizada de um sistema
de accountability no espaço global.
De uma forma simples podemos traduzir o termo accountability da seguinte
forma: A é accountable frente a B se B pode demandar justificativas pelas ações de A.
Caso A não responda a tal demanda, B e C podem pressionar A a responder. Para o
exemplo ficar mais tangível, temos que em uma ordem jurídica nacional A seria o
Estado, B são os cidadãos e C é o direito/sistema regulatório. Ou seja, quando falamos
sobre accountability a questão central reside em saber a quem uma
instituição/agente/Estado deve ser accountable.
No crescente campo do Direito Administrativo Global é nesta questão que os
riscos são os mais altos para a distribuição de poder: se uma instituição ou sistema
complexo de governança se tornar accountable perante um grupo maior, aqueles que
anteriormente controlavam tais objetos irão se tornar menos influentes., Em muitos
casos, mais accountability creditada a um agente implica menos a outro55.
Sabemos que no ambiente doméstico a administração da máquina pública
possui basicamente dois grandes grupos a quem deve ser accountable: os indivíduos
54 Entendemos o conceito enforcement como a capacidade que um sistema possui de fazer que suas normas sejam cumpridas. Devido a dificuldade de encontrar um termo em português, iremos utilizer a expressão em sua forma original, em inglês. 55 KRISCH, Nico. The Pluralism of Global Administrative Law. In: European Journal of International Law, vol. 17, n. 1, 2006. P. 250-251.
33
(incluindo entidades individuais) na medida que seus direitos e interesses são afetados e
o povo, na medida que a ação administrativa, supostamente, obedece a objetivos
democráticos, ou em sentido amplo, ao bem coletivo.
Na administração global essa discussão é mais complexa pois vários grupos
disputam se destacar – e, consequentemente, poder – no sistema de accountability. Nico
Kirsch, em interessante artigo discutindo o pluralismo no Direito Administrativo
Global56 , aponta que no contexto da administração global existem três grandes
abordagens quanto a esta questão fundamental: (i) a clássica abordagem nacional –
aponta que o controle sobre decisões regulatórias deve ser do Estado soberano. Esta
abordagem possui origem no século XIX e apesar de limitar o impacto das decisões
regulatórias na medida que marca precisamente as fronteiras da regulação a partir das
fronteiras estatais, possui uma forte base normativa uma vez que respeita o pluralismo
político e cultural pois permite que cada sociedade incorpore seus valores no processo
de decisão regulatória; (ii) a abordagem internacionalista – possui como ponto focal a
comunidade internacional de Estados nação. Nesta abordagem é admitido que o
interesse comum dos Estados os incentivem a participar de organizações internacionais
e estas possuem o papel de guardiãs de um interesse internacional amplo e imparcial.
Nesta abordagem, a diversidade de ordens jurídicas merece reconhecimento e é melhor
protegida por Estados que podem expressar diferentes opiniões políticas. Logo, para
esta abordagem, o “quem” do sistema de accountability deve ser o conjuntos de Estados
soberanos.; (iii) a abordagem cosmopolita – esta abordagem é baseada no
individualismo liberal, segundo o qual Estados não são expressões de diversidade
valiosas por si só, mas são apenas uma ferramenta organizacional de assegurar a divisão
de trabalho e fiscalizar os perigos do poder estatal. Para tal abordagem, a figura do
“quem” deve ser a comunidade global de indivíduos, um verdadeiro público global.
Muitos que defendem esta abordagem enfatizam o papel das organizações não
governamentais como representantes da sociedade civil global em contraposição a
representação emanada pelos Estados57.
Nenhuma destas três abordagem por si só consegue sustentar o sistema de
accountability da ação administrativa global pois, em contrapartida aos sistemas
domésticos que possuem em seu topo o povo como grupo a quem a regulação deve ser
56 Nico Kirsch é Professor na Merton College da Universidade de Oxford e é um dos acadêmicos mais atuantes nas discussões sobre a emergência do Direito Administrativo Global. O estudo que citamos é o seguinte: KRISCH, Nico. The Pluralism of Global Administrative Law. In: European Journal of International Law, vol. 17, n. 1, 2006. 57 Idem, Ibidem, P. 253-255.
34
accountable, no contexto global não existe um grupo predominante, pelo contrário,
existe uma série de sujeitos a quem a regulação da ação administrativa global deve ser
accountable: Estados, organizações internacionais, organizações transnacionais,
organizações não governamentais, redes de governança, etc. Nesse sentido, Kirsch
propõe uma abordagem pluralista do Direito Administrativo Global a fim de conceber
uma solução ao problema exposto. Nesta proposição o autor não concebe uma ordem
institucional claramente estruturada e aceita que as diferentes abordagens acima irão
conviver e se desafiar mutuamente em diferentes regimes e diferentes níveis de
governança regulatória global. Em tal contexto a estabilidade seria atingida não por
decisões tomadas por uma autoridade máxima, mas por processos de negociação e
comprometimento, assim como concessões realizadas pelos diferente objetos das
abordagens explanadas acima58.
Adotar a solução pluralista parece em um primeiro momento a resposta aos
entraves do sistema de accountability apresentado neste trabalho. Todavia, seria
possível implementar este tipo de estrutura? É realizável na prática?
Podemos identificar pelo menos dois grandes problemas da proposta pluralista:
(i) a falta de segurança regulatória e (ii) disparidades de poder entre os agentes da
regulação. O primeiro problema é típico das proposições teóricas de redes complexas de
governa: a ausência de uma figura de autoridade competente resulta em um sistema
fluido de decisões, inexistindo a clareza e estabilidade que nos esperamos de um
sistema que tem matriz alguma espécie de direito.
No caso da patrimônio comum da humanidade é possível identificar que
atualmente temos um sistema de accountability próximo da abordagem
internacionalista. Isto ocorre pois o centro da regulação decorre de um tratado
internacional, a Convenção, uma fonte de Direito Internacional Público. Entretanto,
conforme vimos na sessão anterior, os órgãos consultivos que fazem parte desse sistema
englobam diversos atores que exercem ações que parecem ser administrativas, o que
contribui para a tese de que o regime do patrimônio comum da humanidade engloba
aquilo que entendemos como ação administrativa global e, portanto, deve contar com
um sistema de accountability que atenda a todos os atores envolvidos. Se tentarmos
aplicar a proposta pluralista de Kirsch na conjuntura regulatória do patrimônio comum
da humanidade teremos que enfrentar os dois problemas expostos anteriormente.
58 Idem, Ibidem, P. 277-278.
35
Quanto à falta de segurança regulatória/jurídica, entendemos que é um preocupação que
não deve ser ignorada, contudo, não é uma preocupação nova: a segurança
jurídica/regulatória sempre foi um dos maios problemas do Direito Internacional devido
a dificuldade de implementar mecanismos de enforcement compatíveis com a ideia de
soberania intrínseca aos Estados da ordem jurídica internacional. Apesar de não existir
solução para esta tensão, as práticas internacionais sempre trabalham no sentido de
tentar minimizar tal insegurança, até mesmo incentivado a incorporação de tratados e
princípios regulatórios pelas ordens jurídicas domésticas. Entretanto, observamos um
grande empecilho devido as disparidades de poder entre os agentes pertencentes a esta
esfera de regulação. Temos organizações internacionais, organizações transacionais,
organizações não governamentais nacionais e internacionais, redes de governança,
Estados, agências governamentais e indivíduos (mais precisamente, aqueles que são
cadastrados na ICOMOS) que participam ativamente da regulação. As disparidades de
poder são muito relevantes, contudo, de alguma forma todos precisam estar inseridos no
sistema de accountability. Além disso, o exercício do poder político59 dos Estados que
fazem parte da Convenção é muito alto, o que torna ainda mais difícil conseguirmos
conceber um sistema de accountability eficiente e proporcional.
A partir do momento que temos dificuldades de delinear um sistema de
accountability para a ação administrativa global instantaneamente prevemos problemas
de transparência e enforcement. O regime do patrimônio comum da humanidade já sofre
acusações de falta de transparência devido ao sistema burocrático de nomeação
fortemente influenciado por aqueles que possuem mais poder na arena internacional.
Esta falta transparência reside tanto na dificuldade de observar com clareza a alocação
dos fundos do sistema de proteção do patrimônio comum da humanidade como na falta
de transparência de decisões como a recusa de incluir os Budas do Vale de Bamiyan, no
Afeganistão, quando pleiteado pela primeira vez em 198360. Duas décadas depois da
recusa, em 2003 – e dois anos após o Talibã destruir parte significativa dos Budas – o
Comitê decidiu inscrever o Vale e seus Budas na lista, assim como na lista específica de
patrimônio comum da humanidade em perigo. Não se sabe os motivos da recusa em
1983 uma vez que o Vale já preenchia os requisitos estipulados pela Convenção, muito
menos se sabe porque o reconhecimento só foi conferido vinte anos mãos tarde, dois
59 No próximo capítulo do presente trabalho será aprofundada a questão do exercício de poder politico estatal e sua influência na decisões tomadas no contexto do regime do patrimônio comum da humanidade. 60 KEOUSH, Elizabeth. Heritage in Peril: A Critique of UNESCO’s World Heritage Program. In: Washington University Global Studies Law Review, vol. 10, issue 3, 2011. P. 606.
36
anos depois de grande parte dos Budas ter sido destruído ou gravemente danificado. Um
dos motivos para este tipo de falta de transparência esta na assimetria de poder entre as
partes integrantes do sistema de proteção do patrimônio comum da humanidade, a qual
reflete no número de bens por região. Europa e América do Norte possuem juntas quase
o mesmo número de bens protegidos que todas as outras regiões do planeta, conforme
expõe a tabela61 abaixo:
Quanto aos problemas de enforcement, temos aqueles problemas típicos do
Direito Internacional uma vez que a soberania dos Estados, quando tratada no contexto
da Convenção, muitas vezes é usada como poder barganha para não seguir normas ou
para minimizar sanções, mas também temos grandes problemas que surgem da natureza
singular desta forma de regulação. Em primeiro lugar temos que a ação ora analisada
tem cunho administrativo não jurídico, dessa forma, essencialmente já não possui
mecanismos de enforcement sólidos por não ter natureza jurídica, uma vez esta que
confere maior segurança e a possibilidade de imputação de sanções mais severas. Além
disso, temos que a ausência de uma autoridade central dificulta a implementação de
mecanismos de enforcement uma vez que estes teriam que ser fluidos e, em certa
medida, diluídos, o que acabaria por diminuir sua efetividade.
Tendo em vista os pontos focais do controle da ação administrativa global e os
muitos problemas encontrados em sua identificação passamos a indagar no próximo
61 Fonte da tabela: UNESCO. World Heritage List Statistics 2016. Disponível em: http://whc.unesco.org/en/list/stat/#s1 Acesso: 10 out. 2016.
37
subitem a conexão entre esta ação e a emergência de um direito conectado ao seu
exercício.
b. Ação Administrativa Global e Direito Administrativo Global: conexão
necessária no caso do patrimônio comum da humanidade?
Após identificarmos e delimitarmos indícios de ação administrativa global
passamos a conceber a ideia de um direito que controle esta ação. Para que tal
concepção seja esboçada será necessário observar a relação da ação administrativa com
o que se entende como Direito Administrativo Global. Deixando de lado a premissa
errônea de que ação administrativa é parte necessariamente integrante do direito
administrativo, podemos nos guiar pelas seguintes perguntas: se os agentes pertencentes
ao regime regulatório do patrimônio comum da humanidade exercem aquilo que
entendemos como ação administrativa global, existe um tipo de direito administrativo
que controla tal administração? Ou seja, há uma forma de controle da ação
administrativa que decorre de um tipo de direito? A partir disso podemos analisar sob a
ótica do arcabouço teórico do Direito Administrativo Global (i) se existe um tipo de
direito que controla o que identificamos ao menos como indícios da existência de ação
administrativa global e (ii) se este direito pode ser compreendido como administrativo e
global.
Atrás da ideia de Direito Administrativo Global encontramos questionamentos
acerca do entendimento ortodoxo sobre o Direito Internacional, o qual é baseado em
organizações internacionais e separação entre o doméstico e internacional.62 Estes
questionamentos surgem devido ao fato do Direito Administrativo Global não se limitar
apenas às premissas de Direito Internacional, concebendo um forma de regulação
diferente. Entretanto, apesar de não se limitar ao Direito Internacional, o Direito
Administrativo Global ainda se embasa em fontes normativas formais que incluem as
clássicas fontes de Direito Internacional Público63. Em linhas gerais, o termo GAL
aplica-se a um conjunto de normas, práticas, princípios e parâmetros, obrigatórios ou
não, aplicado em uma série de países por um número plural de atores. Logo, podemos
identificar dois vetores essenciais para a análise deste tipo de direito: (i) a identificação
62 KINGSBURY, Benedict. The Concept of ‘Law’ in Global Administrative Law. In: European Journal of International Law, vol. 20, n.1, 2009. P. 25. 63 ASPREMONT, Jean D’. Formalism and the sources of International Law – A Theory of the Ascertainment of Legal Rules. Oxford: Oxford University Press, 2013. P. 120.
38
de fontes e critérios para a classificação como direito e (ii) requisitos de caráter público
(no original, em inglês, publicness), transparência, proporcionalidade, racionalidade,
etc.
Quando concebemos a ideia de direito temos implícita a segunda pergunta:
aquele conjunto organizado de normas que queremos caracterizar como direito faz parte
de uma ordem jurídica?64 Conforme exposto anteriormente, o espaço regulado pelas
novas formas de governança citadas neste trabalho não se limita apenas à ordens
jurídicas nacionais ou à ordem jurídica internacional. O Direito Administrativo Global
parece ter tanto partes que se revelem direito propriamente dito, como partes que
demonstrem ser mecanismos de regulação. Desse modo, o Direito Administrativo
Global demonstra ser um conjunto de mecanismos que podem ser jurídico ou não.
Ao longo deste trabalho observamos que distintas formas de regulação existem.
Entendemos que não precisa existir conexão necessária entre os novos fenômenos
regulatórios e um tipo formal e tradicional de direito. No caso da regulação do
patrimônio comum da humanidade não observamos traços de fortes de um direito
intrinsecamente ligado aos indícios de exercício de ação administrativa global que
expomos, pois, conforme analisado no subitem anterior, não é possível delinear um
sistema de accountability eficiente. Antes disso, já é difícil apontar com firmeza o
exercício da ação administrativa global uma vez que as ações tomadas no contexto da
regulação do patrimônio comum da humanidade ainda permanecem encobertas pelas
formas típicas de ação administrativa doméstica e de ação derivada de fontes e sujeitos
tradicionais do Direito Internacional Público.
Além disso, temos que as discussões sobre Direito Administrativo Global são
eminentemente sobre procedimento, contudo, entendemos que seria necessário tentar
compreender com maior profundidade o aspecto substantivo deste direito e, para que
isso seja possível, seria necessário identificar as figuras legítimas para promulgar
normas de caráter público global que seria um dos objetos do Direito Administrativo
Global. Quando nos referimos aos aspectos substantivo e procedimental do Direito
Administrativo Global entendemos que o primeiro se refere àqueles atos emanados por
autoridades administrativas, incluindo seus atos legislativos e decisórios, enquanto o
segundo se refere àqueles atos que estabelecem a execução dos objetivos da
administração, atos que apontam como essa administração pode proceder nos casos
64 Ver discussão sobre direito e não direito na nota de rodapé número 27.
39
concretos65 . Sabemos que a discussão sobre o aspecto substantivo do Direito
Administrativo Global é mais complicada devido à dificuldade de identificar uma
autoridade global dotada de legitimidade em relação a um poder público global. Nos
parece que no caso do patrimônio comum da humanidade tal legitimidade não está
concentrada em apenas uma instituição ou órgão, mas sim pulverizada entre
organizações internacionais, intergovernamentais, não governamentais domésticas e
internacionais e até mesmo agências governamentais uma vez que as decisões tomadas
e normas criadas por estas autoridades acabam por impactar globalmente a governança
dos bens públicos que integram o patrimônio.
O caso do patrimônio comum da humanidade é especialmente interessante pois
sua natureza de bem público global complexo nos direciona a conceber uma ideia de
consciência coletiva, logo, torna mais fácil a concepção da ideia de uma ação
administrativa global conectada a uma espécie de poder público global. Sabemos que as
discussões sobre Direito Administrativo Global não apontam expressamente a
necessidade de atribuir a um ente a qualidade de regulador máximo. No espaço global
não existe um poder executivo centralizado, mas existe atividade regulatória relevante,
principalmente quando detectamos a necessidade de regular algo de interesse público,
como o objeto deste trabalho.
Portanto, entendemos que não existe uma conexão necessária entre ação
regulatória e um respectivo direito que engloba tal faceta de regulação uma vez que o
direito possui características específicas que não encontram respaldo em um espaço que
ultrapassa as barreiras do doméstico e do internacional. A inexistência de tal conexão,
todavia, não significa que um espaço regulatório complexo como o do patrimônio
comum da humanidade não funcione em meio das tradicionais organizações
multilaterais internacionais que dominam as relações além das fronteiras nacionais. No
próximo capítulo serão exploradas algumas tensões da governança do patrimônio
comum da humanidade e a conexão desta esfera regulatória com a promoção do
desenvolvimento da sociedade internacional.
IV – Patrimônio Comum da Humanidade, Ação e Direito Administrativo Global
no contexto do desenvolvimento da sociedade internacional
65 KINGSBURY, Benedict. The Concept of ‘Law’ in Global Administrative Law. P. 34.
40
a. Os paradigmas do multilateralismo e os perigos do universalismo
Conforme observamos, a regulação do patrimônio comum da humanidade é em
grande parte pautada pelas diretrizes de um organismo internacional multilateral. Além
disso, a natureza de seu objeto – um bem público global – torna imprescindível o
incentivo à cooperação entre as partes signatárias da Convenção.
Na literatura sobre organismos internacionais encontramos várias análises
críticas sobre o potencial democrático de tais organizações e os riscos que a politização
destas implica em seu bom funcionamento66. Entendemos que o exercício do poder
político dos Estados soberanos na UNESCO no âmbito da regulação do patrimônio
comum da humanidade é um fator primordial para entendermos suas dificuldades.
Os gráficos abaixo67 oferecem uma amostra visual de como o conflito de
interesses inerente a um organismo internacional está impactando a regulação do
patrimônio comum da humanidade. O primeiro gráfico aponta que a concordância entre
as recomendações dos órgãos consultivos e as decisões do Comitê caíram
consideravelmente: de 2003 a 2012, por exemplo, o índice de concordância passou de
cerca de 80% para 40%. O segundo gráfico aponta que o fator de concordância entre
nomeações de bens a serem incluídos na Lista e bens que lograram a sua posição sob a
proteção da Convenção diminuiu vertiginosamente, tanto em casos de nomeações por
Estados que fazem parte do Comitê como em nomeações feitas por Estados não
integrantes do Comitê68. Estes gráficos não são suficientes para explicar a complexidade
66 Neste sentido citamos os seguintes artigos: BERTACCHINI, Enrico; LIUZZA, Claudia; MESKELL, Lynn; SACCONE, Donatella. Multilateralism and UNESCO World Heritage: decision-making, States Parties and political processes. In: International Journal of Heritage Studies, vol. 21, n. 5, 2015; BERTACCHINI, Enrico; LIUZZA, Claudia; MESKELL, Lynn; SACCONE, Donatella. The Politicization of UNESCO World Heritage decision making. In: Public Choice, vol. 167, Issue 1, 2016. P. 99; BERTACCHINI, Enrico; LIUZZA, Claudia; MESKELL, Lynn. Shifting the balance of power in the UNESCO World Heritage Committee: an empirical assessment. In: International Journal of Cultural Policy, jun. 2015; e DAHL, Robert. Can International Organizations be Democratic? A Skeptic’s View. In: SHAPIRO; HACKER-CORDON (Organizadores). Democracy’s Edges, 1999. 67 Os gráficos utlizados foram concebidos a partir de dados divulgados pela UNESCO e criados pelos autores do seguinte artigo: BERTACCHINI, Enrico; LIUZZA, Claudia; MESKELL, Lynn; SACCONE, Donatella. Multilateralism and UNESCO World Heritage: decision-making, States Parties and political processes. In: International Journal of Heritage Studies, Vol. 21, n. 5, 2015 68 Interessante notar que na 26 sessão do Comitê em 2002 – um ano antes da data de início do espaço amostral dos gráficos analisados – foi adotada a Budapest Declaration on World Heritage, a qual estabeleceu objetivos estratégicos para atrair parceiros a fim de preservar e conservar bens de valor inestimável para o planeta. Tal declaração sinaliza a crescente importância conferida à proteção do patrimônio comum da humanidade e também pode ser interpretada como uma mudança na racionalidade que levou ao aumento nos conflitos de interesses referentes a Convenção e seus desdobramentos. Uma versão reduzida do conteúdo da declaração pode ser lido aqui: “We, the members of the World Heritage Committee, recognize the universality of the 1972 UNESCO World Heritage Convention and the consequent need to ensure that it applies to heritage in all its diversity, as an instrument for the sustainable development of all societies through dialogue and mutual understanding; The properties on the World Heritage List are assets held in trust to pass on to generations of the future as their rightful inheritance; In view of the increasing challenges to our shared heritage, we will: encourage countries that have not yet joined the
41
das decisões tomadas no âmbito do regime regulatório do patrimônio comum da
humanidade, contudo, eles demonstram o impacto latente dos conflitos de interesses e a
dificuldade que a estrutura burocrática e dogmática de um organismo internacional
possui de lidar com este tipo de situação. É válido mencionar que alguns fatores que
influenciam a crescente discrepância de opiniões, como as refletidas pelos gráficos, são
as mudanças dos fatores de poder no cenário internacional, como a ascensão da China e
seu poder econômico que lhe confere a possibilidade de investir milhões em dossiês de
nomeação (e a expectativa do retorno do investimento, ou seja, a inclusão de seus bens
na lista)69; e a coalizão formada pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul, países que passaram a atuar estrategicamente na arena internacional para atingir
seus interesses individuais que foram sub-representados na arena internacional70
Convention to do so at the earliest opportunity, as well as with other related international heritage protection instruments; invite States Parties to the Convention to identify and nominate cultural and natural heritage properties representing heritage in all its diversity, for inclusion on the World Heritage List; seek to ensure an appropriate and equitable balance between conservation, sustainability and development, so that World Heritage properties can be protected through appropriate activities contributing to the social and economic development and the quality of life of our communities; join to cooperate in the protection of heritage, recognizing that to harm such heritage is to harm, at the same time, the human spirit and the world's inheritance; promote World Heritage through communication, education, research, training and public awareness strategies; seek to ensure the active involvement of our local communities at all levels in the identification, protection and management of our World Heritage properties; We, the World Heritage Committee, will cooperate and seek the assistance of all partners for the support of World Heritage. For this purpose, we invite all interested parties to cooperate and to promote the following objectives: strengthen the Credibility of the World Heritage List, as a representative and geographically balanced testimony of cultural and natural properties of outstanding universal value; ensure the effective Conservation of World Heritage properties; promote the development of effective Capacity-building measures, including assistance for preparing the nomination of properties to the World Heritage List, for the understanding and implementation of the World Heritage Convention and related instruments; increase public awareness, involvement.” 69 BERTACCHINI, Enrico; LIUZZA, Claudia; MESKELL, Lynn; SACCONE, Donatella. Multilateralism and UNESCO World Heritage: decision-making, States Parties and political processes. In: International Journal of Heritage Studies, Vol. 21, n. 5, 2015. P. 428. 70 Idem, Ibidem, P. 432.
42
Além do natural incentivo à cooperação, o exercício da regulação de um
determinado bem por organismos internacionais procura identificar e definir
parâmetros, normas e diretrizes que sirvam como um denominador comum, um guia.
Podemos até mesmo afirmar que esta é uma das premissas das discussões sobre
regulação global: a tentativa de construir um conjunto de regras, princípios e/ou
parâmetros universais.
O Direito Administrativo Global não é uma exceção. Em um artigo71 provocador
que se propõe a realizar uma análise crítica do potencial de realização das propostas da
cátedra do Direito Administrativo Global, Carol Harlow identifica e discorre sobre
quatro conjuntos de princípios e parâmetros que foram atribuídos ao Direito
Administrativo Global. Estes são: (i) princípios de procedimentos que surgiram nos
direitos administrativos domésticos, especialmente o princípio da legalidade e do devido
processo legal (ii) o conjunto de valores que compõe o rule of law, promovidos por
parâmetros de liberalismo econômico e livre mercado; (iii) valores de governança,
especialmente transparência, participação e accountability; e (iv) valores de direitos
humanos72. Para a autora a diferente ênfase em cada um desses princípios assim como
as diferentes tradições nacionais sobre os assunto tornam muito difícil a construção e
identificação de um conjunto de princípios de direito administrativo sólido o suficiente
para substanciar o Direito Administrativo Global. Este apontamento é complementado
71 HARLOW, Carol. Global Administrative Law: The Quest for Principles and Values. In: The European Journal for International Law, vol. 17, n.1, 2006. P. 187-214. 72 Idem, Ibidem, P. 187.
43
pelas opiniões de Harlow sobre os perigos do universalismo desta forma emergente de
direito: a autora aponta que o direito administrativo em sua forma moderna é
essencialmente uma construção ocidental e naturalmente depende da base constitucional
e democrática por trás dele. Para Harlow a tentativa de expandir estes princípios ao
nível universal, apesar de possível, arrisca negligenciar valores de sistemas não
contemplados por estes princípios e também beneficiar certos atores poderoso em vez
de atender a todos cidadãos de forma equitativa73.
Entendemos que toda forma de regulação que almeja ser global corre o risco de
ser afetada pelas mazelas do universalismo. Afinal, universalismo e transplantes
institucionais são amplamente criticados, principalmente quando no nosso objeto de
análise encontram-se países de desenvolvimento tardio74. No caso do patrimônio
comum da humanidade e sua relação com o Direito Administrativo Global as tensões
que emanam do universalismo são latentes.
Todas as nações, sejam elas desenvolvidas ou em desenvolvimento, possuem
bens naturais ou culturais, materiais ou imateriais de valor inestimável. A diversidade
cultural é uma das grandes questões do mundo contemporâneo, sendo possível afirmar
que existe um certo senso comum de que todas as nações possuem traços culturais ou
naturais importantes para a formação cultural coletiva do planeta. Logo, a partir do
momento que temos um regime regulatório para este bem é natural que um número alto
de nações queira fazer valer suas opiniões e interesses. Um dos principais problemas
encontra-se no fato do direito administrativo ser um construção típica de ambientes
democráticos uma vez que seu objetivo é controlar o poder público, por meio de
mecanismos de freios e contrapesos (no original, em inglês, checks and balances).
Assim, parte-se de pressuposto de que existe um governo democraticamente eleito para
exercer o poder público no âmbito doméstico e o direito administrativo é um
instrumento daqueles que elegeram democraticamente seus representantes para
assegurar que não ocorram abusos de poder. A partir do momento que transportamos a
ideia de direito administrativo para a esfera global nos deparamos com um impasse: não
existe um governo global e nem todas as nações que são agentes da esfera global
baseiam seus governos no modelo democrático. No caso do objeto aqui analisado, o
73 KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico. Introduction: Global Governance and Global Administrative Law in the International Legal Order. In: European Journal of International Law, vol. 17, n.1, 2006. P. 9. 74 Neste sentido discorrem Mark Galanter e David Trubek em: GALANTER, Mark; TRUBEK, David. Acadêmicos Auto alienados – Reflexões sobre a Crise Norte Americana da Disciplina Direito e Desenvolvimento.In: Revista Direito GV, n. 6, 2007.
44
qual atinge um grande número de nações, muitas delas com modelos de governo não
democráticos, encontramos dificuldades para implementar na esfera global
características essenciais do núcleo do que se entende como direito administrativo:
poder de polícia, transparência, accountability, enforcement, etc.
Além do exposto acima, faz-se necessário retomar outra questão: nos estudos
sobre a emergência do Direito Administrativo Global o foco costuma ser nos
procedimentos. Pouco fala-se sobre substância e conteúdo das normas e sobre a
propriedade daqueles bens que serão administrados, em outras palavras, sobre quem é
possuidor do objeto de controle e qual a natureza de tal objeto. Aqui encontramos outro
problema da expansão do direito administrativo para a esfera global: o direito
administrativo doméstico tem como um de seus objetivos proteger o interesse público –
e, por consequência a propriedade pública – de uma nação via o controle de seu
governo, ou seja, podemos dizer que os cidadãos são “donos” do espaço público e de
bens de interesse público e cabe ao direito administrativo assegurar que este espaço e
bens sejam respeitados; no espaço global é muito mais difícil identificar os donos,
principalmente quando falamos de bens públicos globais. Tomemos o sítio arqueológico
de Machu Picchu, no Peru, como exemplo. A propriedade onde se encontra a cidadela é
do governo peruano e, consequentemente, dos cidadãos peruanos. Entretanto, a partir do
momento que aquele espaço passou a integrar a lista da UNESCO devido ao seu valor
inestimável para a humanidade houve uma complexificação desta propriedade. Não
cabe mais ao governo peruano decidir soberanamente e individualmente quais atitudes
tomar em relação à cidadela, eles precisam respeitar os parâmetros de conservação e
proteção emanados pela Convenção uma vez que existe um dever perante a sociedade
global de manter aquele sítio arqueológico devido ao seu valor inestimável. Logo,
podemos afirmar que esta propriedade é de toda humanidade ou ela continua sendo do
povo peruano? É propriedade privada ou pública? Se não conseguimos responder estas
perguntas, a implementação de premissas de direito administrativo tornam-se mais
complicadas. A situação toma proporções ainda mais complicadas quando temos um
bem cultural imaterial ou intangível. Este tipo de bem compreende as expressões de
vida e tradições que comunidades, grupos e indivíduos em todas as partes do mundo
recebem de seus ancestrais e passam seus conhecimentos a seus descendentes75. Um
exemplo deste tipo de bem de origem brasileira é o frevo, um ritmo musical e tipo de
75 Este é o conceito adotado pela UNESCO e pode ser encontrado em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangible-heritage/ Acesso: 01 out. 2016.
45
dança original do estado de Pernambuco. É possível identificar os legítimos donos ou
herdeiros de um ritmo musical/estilo de dança?
Sabemos que é da natureza de um bem público global não identificar com
certeza o seu dono. Entretanto, questões como as apontadas acima precisam ser levadas
em consideração para compreender as dificuldades da criação de um sistema de
accountability eficiente no contexto da regulação do patrimônio comum da humanidade.
Para concebermos a regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica do
Direito Administrativo Global não é imprescindível identificar um grupo responsável
por certo bem, mas sim identificar quem performa a ação administrativa global. Tal
identificação terá papel fundamental no sistema de accountability deste espaço
regulatório e ajudará a mitigar os questionamentos descritos acima.
Ante o exposto, constatamos que o espaço ocupado pelo patrimônio comum da
humanidade é multifacetada e sua análise suscita mais perguntas do que respostas.
Todavia, também constatamos que este campo de regulação provoca uma série de inputs
ao contínuo desenvolvimento da sociedade global, conforme será abordado no próximo
subitem.
b. A transformação da esfera regulatória global, o desenvolvimento e a
formação do rule of law internacional
O contexto pós segunda guerra mundial foi marcado por transformações na
sociedade que expuseram um conflito entre novos e antigos valores76. A mudança nas
relações entre os Estados gerou um nova ordem internacional que engloba mudanças
econômicas, políticas e jurídicas. Nesse contexto, em um primeiro momento, a noção de
desenvolvimento foi fortemente atrelada à economia; a mudança de especialização
econômica, salto de produtividade, falhas de mercado, know how e mecanismos de
reciprocidade sendo conceitos chave para entendê-la77. Posteriormente, noções de
direito e regulação foram incorporadas ao debate. Países em desenvolvimento, sua
maiores asiáticos, latino americanos e africanos, começaram a contestar as
desigualdades e clamar por mudanças na esfera global.
76 NASSER, Salem. Desenvolvimento, Costume Internacional e Soft Law. No prelo, com o autor. P. 6. 77 AMSDEN, Alice. The Rise of the Rest – Challenges to the West from Late-industrializing Economies. New York: Oxford Press, 2001. P. 17.
46
Como resultado houve a incorporação de princípios gerais de Direito
Internacional como a autodeterminação política e econômica dos povos, a soberania
sobre os recursos naturais, a igualdade soberana dos Estados, temperada pela correção
das desigualdades reais, entre outros. Dentro desse conjunto de princípios estava o
direito ao desenvolvimento, o qual surge ao mesmo tempo que a construção de um
regime jurídico do desenvolvimento internacional78.
A tentativa de construção de um regime do desenvolvimento internacional
apresenta as mesmas tensões entre o âmbitos domésticos e internacionais presentes em
toda discussão sobre regimes e governança global. Do mesmo modo, a agenda do
desenvolvimento internacional não se mostra totalmente consolidada e gera muitas
dúvidas. Sabemos que o direito regula as relações humanas e que no contexto atual estas
clamam pelo desenvolvimento político, econômico e jurídico na tentativa de minimizar
as desigualdades. Contudo, o funcionamento deste regime na nova ordem internacional
encontra barreiras promovidas pelas tensões entre os campos doméstico e o
internacional, entre governança e direito.
As discussões sobre Direito Administrativo Global podem ser vistas no contexto
de promoção de desenvolvimento da esfera global na medida que ele visa regular os
bens de interesse público global que abalam as barreiras do doméstico e do público. A
quebra das barreiras tradicionais das esferas doméstica e internacional está fortemente
ligada à formação da nova ordem internacional, que por sua vez relaciona-se com a
especialização do Direito Internacional. Quando pensamos no caso do patrimônio
comum da humanidade e sua relação com o Direito Administrativo Global, observamos
a conexão com as duas faces do Direito e Desenvolvimento Internacional: (i) temos a
promoção do Direito do Desenvolvimento na medida que promovemos as relações entre
os Estados e o estabelecimento de uma ordem mundial que leva em consideração os
déficits entre os seus sujeitos; (ii) e temos a promoção do Direito ao Desenvolvimento
no contexto internacional, uma vez que os indivíduos poderão exercer este direito
humano a partir do contato com o patrimônio comum da humanidade – cultural e
histórico – que permite moldar as identidades individuais e comunitárias.
A noção de Direito e Desenvolvimento está fortemente ligada à concepção de
rule of law, sendo a última compreendida como qualidade de um sistema jurídico e
78 NASSER, Salem. Desenvolvimento, Costume Internacional e Soft Law. P. 6
47
possibilidade de avaliar esta qualidade79. A ligação torna-se ainda mais forte quando
estes conceitos são interligados na esfera internacional. A discussão em torno do rule of
law no Direito Internacional enseja de forma diferente do que se dá em relação aos
ambientes domésticos: no âmbito internacional esta discussão é mais do que
investigações sobre as qualidades das normas, seus conteúdos e funcionamento de
instituições, o debate consiste em uma contínua investigação sobre a caracterização da
sociedade em que se opera, suas fontes e sujeitos80. Quando discutimos o rule of law na
esfera internacional estamos transferindo a discussão sobre a qualidade de um sistema
jurídico para um ambiente que nem sempre será jurídico, conforme observamos ao
longo deste trabalho. Portanto, a discussão sobre rule of law no contexto internacional
ora apresentada está conectada mais aos valores do rule of law, e não na tentativa de
mensurar a qualidade de uma ordem jurídica internacional, pois, como vimos existe
grande parte da regulação internacional que não é propriamente jurídica. Desse modo,
temos que se o debate em torno do rule of law está conectado a compreensão de como a
sociedade opera tendo como balizas seus valores, no contexto atual de transformação do
Direito Internacional ele estará ligado a agenda de desenvolvimento que surge com a
nova ordem internacional.
A promoção do rule of law internacional está associada à sua necessidade para o
progresso da sociedade globalizada81. Em 2004, o então Secretário Geral da ONU Koffi
Annan, em um estudo sobre o rule of law82, apontou a necessidade de sua promoção
tanto no âmbito doméstico como no internacional. No entendimento da organização,
rule of law seria um princípio de governança dotado das seguintes características:
prestação de contas dos sujeitos, promulgação pública do direito, adjudicação
independente e não arbitrária, segurança jurídica, transparência das instituições,
aplicação igualitária de normas, consistência com as normas e costumes internacionais
sobre direitos humanos, entre outros. Este documento tem especial importância por
demonstrar a preocupação da comunidade internacional com a compreensão da
sociedade internacional como um todo e com a qualidade de seu sistema83.
79 NASSER, Salem. Rule of Law e Direito Internacional: uma nova aproximação. In: VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri (organizadores). Estado de Direito e o Desafio do Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 59. 80 Idem, Ibidem, P. 77. 81 MOYO, Monica. The International Rule of Law: An Analysis. In: Minnesota Journal of Law, vol. 23, n.1, p. 79-100, 2014. P. 79. 82 UNITED NATIONS. Secretário-Geral, The Rule of Law and Transitional Justice in Conflict and Post-Conflict Societies, 2004. 83 CARDILLI, Carolina Fontolan. Pluralismo de regimes no Direito Global. IP. 27.
48
Esta relação entre rule of law e desenvolvimento também se conecta à discussão
sobre o patrimônio comum da humanidade e Direito Administrativo Global na medida
que a tentativa de superar os limitações do Direito Internacional na regulação de bens
públicos globais visa promover um sistema jurídico mais adequado às necessidades de
sua comunidade.
A dinamicidade da esfera internacional implica mudanças na sociedade e,
consequentemente, na regulação da mesma: de um lado, a sociedade e sua regulação se
tornam mais especializadas de acordo com as demandas de uma nova ordem
internacional, de outro, procura-se entender, medir a qualidade e caracterizar o novo
sistema de operação da sociedade.
Entretanto, algumas dificuldades surgem quando tentamos conceber a promoção
do rule of law no contexto atual da sociedade internacional, um contexto de plural e
complexo.
Primeiro, temos a tensão entre o direito e o não direito84. Uma interpretação
mais formalista do conceito de rule of law pode apontar que apenas o que for direito
poderá ser seu objeto. Tal concepção está ligada ao “rule of law promotion on
steroids”85, o qual foca apenas no fortalecimento do sistema jurídico estatal. Desse
modo, regimes regulatórios não fundados naquilo que pode ser compreendido como
direito não são facilmente aceitos pelo arcabouço teórico que visa a promoção do rule of
law86. No caso da regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica do
Direito Administrativo Global podemos observar a aplicação prática desta crítica: é
difícil defender que o arcabouço teórico do Direito Administrativo Global tenha caráter
jurídico consolidado e predominante uma vez que este surge não apenas de uma ordem
jurídica, mas também de outros meios que não são necessariamente jurídicos. Tal
arcabouço é também identificado como aquilo que entendemos como não direito, um
conjunto regulatório parte normativo, parte não normativo, de eficácia limitada ou
plena, a depender do caso. Portanto, se ficarmos limitados pela interpretação formalista
de rule of law não conseguiremos fomentar o desenvolvimento de vias formas
regulatórias – extremamente relevantes, diga-se de passagem – como as que decorrem
do não direito.
84 O aprofundamento da discussão sobre direito e não direito pode ser encontrado na nota de rodapé número 23 do presente trabalho de conclusão de curso. 85 JANSE, Ronald. A Turn to Legal Pluralism in Rule of Law Promotion? In: Erasmus Law Review, n. 3/4, 2013. P. 185. 86 CARDILLI, Carolina Fontolan. Pluralismo de regimes no Direito Global.. P.28,
49
Segundo, apesar das transformações da sociedade internacional, o pensamento
acadêmico ainda é muito centrado no Estado e no legalismo87. Na academia ainda
somos vassalos do suserano entendido como a divisão entre doméstico e internacional88.
Neste paradigma centralizado no Estado é muito difícil discutir a qualidade de um
sistema jurídico que de certa forma limita a soberania destes, há forte resistência à
mudanças89 . A aplicação prática deste pensamento acadêmico mais conservador
impacta regimes regulatórios uma vez que muitos deles não se limitam a ser
estritamente internacionais, são transacionais ou globais, e a dificuldade em aceitar e
lidar com essas novas formas não acompanha as mudanças estruturais e funcionais que
ocorrem na sociedade e a demanda dos próprios objetos da regulação por formas cada
vez mais abrangentes de regulação.
Terceiro, existe conflito quanto a concepção da ideia de rule of law. Apesar de já
termos apresentando a concepção de rule of law que julgamos mais adequada, muito
discute-se sobre suas variantes. A ideia geral é de que o direito funciona como um
limitador do poder arbitrário através dos mecanismo de transparência e controle. Existe
ainda uma subdivisão em concepções finas e espessas90. A primeira está mais ligada a
aspectos procedimentais e formais (como a existências de mecanismos democráticos), a
segunda relaciona-se demandas materiais (como a concordância com direitos civis e
políticos) 91. É relativamente fácil enquadrar e procurar promover o rule of law no
contexto da regulação do patrimônio comum da humanidade sob a ótica do Direito
Administrativo Global de acordo com a primeira concepção uma vez que, como já
mencionamos, o arcabouço teórico desta emergente forma de pensar direito é sobretudo
focado no aspecto procedimental do mesmo. Entretanto, ainda foi pouco explorado o
aspecto substantivo do Direito Administrativo Global. Já mencionamos que vemos
como fundamental essa conexão entre o aspecto procedimental e substantivo
Quarto, ao observarmos o ambiente no qual diferentes regimes regulatórios,
transnacionais ou ordens jurídicas convivem, temos potencialmente conflitos entre
esses. Estes conflitos podem ser tanto sobreposição de normas de diferentes regimes do
direito internacional, ou entre regimes regulatórios e direito internacional, ou entre
direito doméstico e regime transnacional, ou entre normas de uma ordem jurídica e
87 Idem, Ibidem, P. 186. 88 Ver discussão sobre o Duo de Westfália: P. 18. 89 CARDILLI, Carolina Fontolan. Pluralismo de regimes no Direito Global. P.28. 90 Tradução nossa. No original, em inglês: thinner and thicker conceptions. 91 Idem, Ibidem, P. 28-29.
50
normas de regimes que pertencem a outra ordem, etc. Desta sobreposição dois
problemas podem emergir: quanto à escolha e interpretação, duas normas aplicáveis e
quanto à instituição competente para dirimir eventuais controvérsias que surjam. Estes
dois problemas podem enfraquecer a segurança jurídica, criando um ambiente propício
ao forum-shopping92. No caso da regulação do patrimônio comum da humanidade como
o proposto aqui temos o surgimento de uma forma de criação sui generis, repleta de
características típicas de formas de regulação doméstica e internacional, pública e
privada.
É inegável que a regulação do patrimônio comum da humanidade adiciona
dificuldades a serem enfrentadas no cenário analisado acima e, ao mesmo tempo,
fomenta as discussões e percepções sobre novas formas de relação e desenvolvimento
da sociedade global.
Considerações finais
Nos estudos sobre regulação rupturas e mudanças paradigmáticas são
angustiantes. Elas incentivam a preocupante necessidade de procurar soluções em novos
paradigmas teóricos e normativos que intendem restabelecer a segurança do ambiente
jurídico.
Observamos que o sistema regulatório do patrimônio comum da humanidade é
extremamente complexo, multifacetado e em certa medida paradoxal, uma vez que seu
objeto desafia as premissas do direito à propriedade, sendo qualificado como global mas
não se encaixando inteiramente nesta definição
É natural voltarmos ao direito quando nos deparamos com contextos
angustiantes como este: a legalidade e toda sua segurança são reconfortantes. No caso
de sistemas complexos de regulação nós procuramos encontrar indícios de que aquilo
mais próximo do que conhecemos e confiamos está por trás da zona cinzenta de
incertezas que nos é exposta.
A tentativa de enxergar a regulação do patrimônio comum da humanidade sob a
ótica do Direito Administrativo Global parece se encaixar no cenário descrito acima.
Observamos que existem indícios de algo que se assemelha à ação administrativa global
e em um segundo momento partimos da premissa que existiria um direito –
92 Idem, Ibidem, P.29.
51
administrativo, global – centralizador e controlador desta ação. Contudo, quando
olhamos mais a fundo, entendemos que ainda não existem elementos suficientes para
apontar a emergência de um Direito Administrativo Global. Entre os elementos que
dificultam a emergência deste direito está o fato de que o direito administrativo parte da
premissa que o sistema de governo é democrático. Como vimos, não existe um governo
global e muitos dos governos que integram o sistema de regulação do patrimônio
comum da humanidade possuem sérios déficits democráticos e em alguns casos são até
mesmo autoritários.
Além da premissa democrática, observamos a incapacidade de denominar este
conjunto de regras como direito devido a ausência de uma ordem jurídica a que ele se
filie, legitimadora de um sistema eficiente de accountability. É um motivo formalista,
porém fundamental para compreender os entraves da regulação do sistema do
patrimônio comum da humanidade, conforme exposto ao longo do trabalho.
Todavia, é imprescindível apontar que não é apenas porque uma forma
regulatória não pode ser qualificada como direito que ela não é extremamente relevante.
Como vimos o sistema complexo de governança objeto deste trabalho se desprende das
amarras tradicionais do direito e possui implicações das mais diversas possíveis. Um
dos exemplos apresentados brevemente foi o impacto da política nas decisões tomadas
pelo sistema regulatório do patrimônio comum da humanidade. Esta questão elucida a
interdisciplinaridade do direito na medida que para ser entendida com mais
profundidade é necessário observá-la a partir da ótica das relações internacionais.
Ademais, entendemos que esta nova forma de regulação impacta diretamente o
desenvolvimento da sociedade internacional. De um lado temos a tentativa de
construção de um rule of law internacional e, do outro, temos a complexificação do
espaço global e surgimento de mecanismos cada vez mais cinzentos sobre sua natureza.
Como fazer para sistematizar estas novas formas de regulação, como fazer para
estabelecer um sistema de freios e contrapesos eficiente no contexto tão caro à
humanidade, como a preservação de seu patrimônio? Estas são exemplos de questões
que, no momento, não possuem respostas definitivas. Mas, talvez, antes de tentarmos
resolver estes grandes dilemas precisemos dar uma passo para trás visando compreender
de fato os elementos da nova dinâmica global. Este trabalho foi um tentativa de começar
a compreender as vicissitudes deste desafio, mas para que tal dinâmica seja totalmente
52
compreendida muito trabalho precisa ser realizado, incluindo pesquisas empíricas sobre
casos como o do patrimônio comum da humanidade.
Se tentarmos responder de forma sucinta a pergunta que deu origem a este
trabalho teríamos a seguinte resposta: Sim, podemos começar a conceber a regulação do
patrimônio comum da humanidade sob a ótica do arcabouço teórico do Direito
Administrativo Global. Podemos pois verificamos indícios de uma ação administrativa
global, conforme demonstrado ao longo do trabalho. Estes indícios podem não ser
robustos, contudo, são importantes para observar como a esta regulação se dá por meio
de um conjunto de mecanismos jurídicos, não jurídicos, normativos, regulatórios e
políticos. Esta é uma resposta otimista uma vez que expressamos várias vezes ao longo
deste trabalho que a identificação desta ação administrativa global é difícil e nem
sempre clara, o que pode suscitar dúvidas sobre a emergência de um Direito
Administrativo Global. No contexto das mudanças do espaço global esse otimismo é
fundamental para incentivar os estudos e a promoção de uma sociedade mais
transparente e acessível.
53
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