ficÇÕes de uma poÉtica autobiogrÁfica - ufmt.br · de caráter mítico e idealizado,...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
PAULO WAGNER MOURA DE OLIVEIRA
FICÇÕES DE UMA POÉTICA AUTOBIOGRÁFICA
CUIABÁ-MT 2012
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PAULO WAGNER MOURA DE OLIVEIRA
FICÇÕES DE UMA POÉTICA AUTOBIOGRÁFICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Orientadora: Profª Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis.
CUIABÁ-MT 2012
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DEDICATÓRIA
Ao meu Pai, José Nilo de Oliveira, in memorian. À minha mãe, Maria Helena Moura de Oliveira.
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AGRADECIMENTOS
Ao Divino Mestre, pela oportunidade de crescimento e evolução. Aos meus pais, meus primeiros professores. À Maria de Lourdes dos Santos, a quem desejo sinceros votos de Luz, Paz e Amor. Aos queridos filhos, Pablo e Camila, minhas jóias raras. À minha orientadora, Profa. Célia Maria Domingues Reis pela paciência e pelos sábios conselhos. Aos amigos Issakar e Cyntia Valente que desde o princípio acreditaram da presente dissertação. Às professoras Gilvone Furtado e Sheila Dias Maciel, pelo incentivo e atenção. Ao professor Ramsés Agameton, pela vontade constante de auxiliar. Aos amigos da Trupe Encantada, Juliano Moreno, Claudinha ,Dagoberto e Afonso pelo Amor Fraterno e inspirador. Aos Mestres Pedro Gonçalves e Teodoro Irigaray e ao amigo Élvio, pelo otimismo e o apoio cuiabano. Aos amigos do mestrado, Silvana, José Maria, Luciane, André Sena, Wender, Adilson e Maíra. A minha namorada, Viviane Francischini pelo apoio incondicional. Ao poeta Wanderley Wasconcelos, que de forma prestativa e atenciosa colaborou em todas as fases da dissertação. Aos professores da banca, Rhina Landos e Osvaldo Copertino Duarte, pela disposição e auxílio imprescindíveis. Aos professores, à coordenação e aos funcionários do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem (MeEL). Á CAPES, pelo apoio financeiro.. À Ligia Prieto, Ivan Deus, Enio Burgos e demais amigos do Dharma da Associação Meditar.
O silêncio As vozes das cigarras Penetram as rochas
Bashô
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RESUMO
Nesta dissertação realizamos uma análise crítica de poemas do escritor mato-grossense Wanderley Wasconcelos, visando compreender a configuração do tempo e da memória, sob a perspectiva do conceito bergsoniano de duração, como núcleo de criação capaz de unir num mesmo tecido sígnico o real, o fictício e o imaginário. Nos poemas há um eu poemático, alter ego literário do autor, personagem responsável pelo extravasamento de um eu confessional. Eu que revisita o passado idílico da infância, em contraposição ao presente adulto, com suas dificuldades, às transformações sociais, testemunhadas no contexto de um referencial histórico-geográfico que remete ao período de ocupação da Região Araguaia, em Mato Grosso. Este encontro de tempos, um, de caráter mítico e idealizado, identificado com o período da infância, e o outro, histórico, social e exterior, provoca no eu poemático sentimento de desenraizamento e alienação frente à realidade. Apesar do conflito, a evocação das lembranças termina por se coadunar à vivência atual.
Palavras-chave: Wanderley Wasconcelos, poesia e memória, alter ego.
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ABSTRACT
In this dissertation, we realize a critical analyse of Wanderley Wasconcelos’ poetry, a matogrossense writer, aiming to comprehend the time and memory configuration, at the perspective of the bergsonian concept about ‘duration’, as the criative nucleus able to join in the same signic plan: the ‘real’, ‘fictitious’ and ‘imaginary’. In the poems there are lyrical Self, a literary alterego of the athor, responsible persona by the liberation of the confessional Self. A ‘lyrical Self’, that reliving the idyllical past childhood, in contradiction at the aldult present, with his difficulties to the social transformations, witnessing from the historical-geographic referencial, in Araguaian-MT occupancy context. In this meeting of times, one of mythical and idealized, identified with childhood period, and the other, with historical, social and outside, provoking in the ‘lirycal Self’, feeling of an uprooting and an alienation inf front of the reality. In spite of the conflict, the evocation of memories finish to join at actually existence.
Key-Words: Wanderley Wasconcelos, poetry and memory, alterego.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................08
CAPÍTULO I. ALTER EGO, INFÂNCIA E MEMÓRIA ................................14
1.1 Tempo e Memória................................................................................14
1. 2 Memória e Esquecimento.................................................................20
1.3 Eu-narrador-alter ego..........................................................................27
1.4 A reivenção da infância......................................................................35
CAPÍTULO II. TEMPO, SOCIEDADE, SER E ETERNIDADE ..................42
2.1 Poesia e mediação social .................................................................52
2.2 Tempo, morte e transcendência........................................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................76
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................78
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INTRODUÇÃO
Compreender o trabalho de criação poética de um autor buscando
em sua obra as singularidades e ocorrências que a caracterizam é sempre um
terreno escorregadio, tendo em vista que a literatura, como diz Ezra Pound, “é
linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (2006, p.32), é
aparato autônomo que, embora construído num horizonte de linguagem
partilhada socialmente foge ao senso comum e à positividade histórica ao se
constituir como metáfora complexa. Ou, como diria Umberto Eco (2005), como
“obra aberta” que, mesmo possuindo um eixo próprio de sentido está sujeita a
uma multiplicidade de interpretações em seu universo de construção e
recepção. A poesia e a arte em geral trazem em si um caráter enigmático
inesgotável por mais que encontremos caminhos adequados para compreendê-
las.
Considerando a escolha da obra do mato-grossense Wanderley
Wasconcelos como objeto de análise crítica, a presente dissertação justifica-se,
primeiro, pela constatação de que estamos diante de um poeta em seu sentido
pleno. Poeta que consegue projetar no meio singular de sua linguagem
estética, entre outros aspectos importantes, um memorialismo lírico e
contundente pelo qual circulam amalgamadas: referências sócio-históricas e
questões existenciais e metafísicas, capazes de conferir à obra em foco um
caráter de universalidade, como constataremos ao longo do presente estudo.
Outra justificativa é a urgência de estudos acadêmicos que propiciem a
entrada de Wanderley Wasconcelos no rol de poetas como Marilza Ribeiro,
Lucinda Persona, Benedito Sant’Anna da Silva Freire, Dom Pedro Casaldáliga,
entre outros, do cenário matogrossense, que já possuem estudos críticos
relevantes de suas obras.
Filho de pais garimpeiros Wanderley Wasconcelos nasceu a 14 de
março de 1950, na cidade mato-grossense de Torixoréu, localizada às
margens do Araguaia, fronteira com Goiás. Em sua infância, o escritor
vivenciou de perto a realidade dos garimpos e a luta pela terra nas glebas de
posseiros da região. De forma desigual, esses posseiros enfrentaram os
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latifúndios criados no Médio e no Baixo Araguaia, expansão que ganhou
relevância a partir das décadas de 50 e 60. Graduado em Comunicação e Artes
pela Universidade Federal de Uberlândia, contra a vontade do pai que o queria
advogado, Wanderley Wasconcelos volta à região Araguaia e se estabelece
em Barra do Garças (MT), cidade em que iniciou sua carreira literária, em
princípios da década de 70.
Longe de querer rotular a escritura de Wanderlei Wasconcelos como
pertencente a este ou aquele movimento literário, nota-se que esta apresenta
condições do fenômeno literário denominado “Poesia Marginal”. Primeiro pelo
formato das edições dos livros, feitas em pequenas tiragens custeadas pelo
próprio autor, edições de características quase artesanais quando comparadas
com o formato utilizado pelas grandes editoras. Um processo em que a
participação do autor nas diversas etapas da produção e distribuição do livro
termina por criar o que Heloísa Buarque de Hollanda chama de
um produto gráfico integrado[...] de imagem pessoalizada que ativa uma situação mais próxima do diálogo do que a oferecida comumente na relação de compra e venda de produtos (1981, p.97-8)
Pois, continua a pesquisadora, a “participação do autor no ato da
venda de certa forma recupera para a literatura o sentido de relação humana (
2007, p.11).
O segundo aspecto que liga a poesia de Wasconcelos ao citado
fenômeno é a aproximação com aquilo que Heloisa Buarque chama de “recuo
estratégico para o modernismo de 22”, em especial no que se refere “a
incorporação poética do coloquial como fator de inovação e ruptura com o
discurso nobre acadêmico” (HOLLANDA, 2007, p. 11). Essa incorporação
funciona, desde Oswald de Andrade, como procedimento artístico que absorve
situações e sentimentos vividos pelo artista no processo de elaboração da
obra, conferindo-lhe um caráter de momentaneidade.
Esse coloquialismo aparece de forma frequente na poesia de
Wanderley Wasconcelos. Como exemplo podemos citar “Aboio Arqueiro”
(1999, p.29) que traz na última estrofe os seguintes versos: “Umas labigó diz
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sim para o seu tédio / no momento em que rascunha / para não ferir o cu com a
unha”. Assim como na “Poesia Marginal” o uso do baixo calão na poesia do
poeta mato-grossense nem sempre resulta num efeito de choque, mas “na
maior parte das vezes, aparece como dialeto cotidiano naturalizado e, não raro,
como desfecho lírico” (HOLLANDA, 2007, p.12).
Ressaltamos que este procedimento – que marcou poetas
importantes da contemporaneidade brasileira, como Paulo Leminsk, Carlos
Saldanha, Francisco Alvim, entre outros – apesar de encontrar ecos
consideráveis na poética wasconceliana não afasta dela a notada influência de
autores da tradição modernista como Carlos Drummond de Andrade, Manuel
Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Autores cujas produções denotam
preocupação estética e estilística, ao mesmo tempo em que trazem reflexões
elaboradas sobre problemas sociais e existenciais que envolvem a condição
humana, ultrapassando o imediatismo criativo, “o flash cotidiano” (HOLLANDA,
2007, p.11) e a tendência ao poema piada, que predominou sobre a elaboração
literária em parte considerável da poesia marginal.
O importante na aproximação entre a poética aqui estudada e a
poesia marginal é que, a partir dos anos de ditadura no Brasil toda uma
geração sem voz, conhecida também como “geração mimeógrafo”, formada por
poetas e escritores sem espaço editorial e distante dos centros urbanos buscou
nas produções independentes uma maneira de se fazer ouvir, uma válvula de
escape para suas criações.
Contemporâneo dessa geração, o poeta Wanderley Wasconcelos
publicou de forma independente quatro livros de poemas: Porto Submerso
(1975), Um Drink em Linha Reta (1987), Aboio: Causos da vida posseira (1999)
e Viagem Nua (2004). Poeta em plena ebulição que faz da literatura uma
profissão de fé, o escritor possui várias obras inéditas como os livros de
poemas Cordel sem Viola (Um mundo entre parêntesis), Diário Ínfimo, Ventre
desnudo da noite, e Gaveta de estrelas. Em prosa o autor tem por publicar: Um
teto para chamar de seu, Beco das Almas e Almanaque.
Este estudo terá como recorte poemas que constam nos livros Aboio:
Causos da vida posseira (1999) e Viagem Nua (2004), obras que trazem de
forma proeminente o eixo temático tempo/memória que vislumbramos como
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foco da análise; perspectiva temática que ganha importância orgânica e
estrutural no trabalho de compreensão de aspectos fundamentais que
constituem a poética de Wanderley Wasconcelos. Nos poemas, o autor utiliza
elementos de caráter confessional e autobiográfico como substrato para suas
criações. No âmbito da criação literária, esse caráter ganha a configuração do
que Wolfgang Iser chama de “como se” (LIMA apud ISER, 1983, p. 406) pois
“o mundo representado no texto é, por seu lado, produto do fingir, resultante
dos atos de seleção e combinação”, sendo por isso distinto do mundo dado.
Ao criar no texto um mundo análogo ao chamado mundo da vida a
escrita artística permite que por ela sejam vistos “os dados do mundo empírico
por uma ótica que não lhe pertence, razão porque constantemente ele pode ser
visto de uma forma diversa do que é” (LIMA apud ISER, 1983, p.406). Para Iser
a oposição entre ficção e realidade deveria ser substituída “por uma relação
tríplice”, pois apesar de possuir elementos significativos do real, o texto
ficcional não se reduz à descrição deste. Logo, “o seu componente não tem
caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação
de um imaginário” (LIMA apud ISER, 1983, p.385), ou seja, a escrita literária ao
repetir a realidade transforma-a em signo, transgredindo as determinações que
estariam implícitas nos elementos referenciais.
Nos poemas escolhidos para análise, percebemos a ocorrência de
um eu poemático, que em muitos momentos se transfigura em alter ego
literário do poeta, assumindo na temporalidade expressa três configurações
principais, três extratos que se sobrepõem. A separação que fizemos se dá
pela necessidade de sistematizar a leitura dos poemas. Nas configurações, há
extravasamento de um eu confessional mais ligado aos próprios sentimentos e
reminiscências da infância. Há também a presença do que podemos chamar de
um “eu narrador”, que sintetiza as transformações sociais e históricas,
marcadas por um topos que analogicamente nos remete ao período de
ocupação do Médio e Baixo Araguaia. Nesta modulação do eu lírico sobressai
uma discursividade de sentido mais social e ideológico, que chega a denotar o
que Benoît Denis (2002, p. 24) chama de “engajamento transistórico”, distinto
do engajamento sartreano, historicamente delimitado pela vontade de
alardeamento da revolução Bolchevique. A noção de engajamento transistórico
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discorre sobre a presença de um discurso ético, que aponta para a
necessidade de justiça social, mas leva em conta que o “espaço das
possibilidades” no qual o escritor se coloca, “não é idêntico em todas as
épocas. Ele está em constante mutação e não pára de se reconfigurar, dando a
cada período da história a seu papel singular” (DENIS, 2002 ,p.27). Neste
modo de ser que encontramos na poesia de Wanderley Wasconcelos destaca-
se uma poesia narrativa, criadora de micro-fábulas que sugerem a presença de
personas inseridas num contexto de memória coletiva, memória permeada pelo
imaginário que lhe atribui sustentação.
Percebemos que a trajetória do eu-autor é marcada, ainda, por um
processo de amadurecimento originado em preocupações e insights
metafísicos, quando a visão antes projetada ao passado pessoal e alheio (ao
exterior), passa a se projetar para o futuro, expressando consciência de sua
condição existencial, de que vive sob o “signo da morte” ou, para usar o termo
de Heidegger, de sua irredutível “condição dada” de existência humana
(HEIDEGGER apud EAGLETON, 2004, p.94).
Nas três modulações vivenciadas pelos “eus ficcionais” citados acima
ocorre uma sobreposição de tempos, um tempo de caráter notadamente mítico
e idealizado, identificado com o período da infância, e outro social e histórico -
quando dizemos histórico, falamos de uma história sem o ranço positivista da
historicidade - voltado para o exterior e marcado pela sensação de
desenraizamento e alienação do eu-poemático frente à realidade presente. É
claro que, mesmo quando traz dados consideráveis da realidade social ou
alude à sua própria vivência, há sempre, no processo de escrita, a inserção do
sonho, da imaginação e principalmente do trabalho de reinvenção do passado
no presente individual daquele que escreve.
Feitas essas considerações, organizamos a dissertação em dois
capítulos.
No primeiro, “Alter Ego, Infância e Memória”, fizemos um estudo
acerca do tempo e da memória sob a ótica de pensadores e teóricos como
Bergson (1972-1979-2006), Meyerhoff (1976) e Júlio Pimentel Pinto (2004),
com ênfase no contraponto existente entre o tempo humano psicológico e
qualitativo e o tempo “social”, “histórico” e quantitativo, tempos que surgem
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contrapostos e fundidos na realidade criada pelo trabalho literário. Nele são
feitas análises de poemas que tratam da questão memória, esquecimento e
impossibilidade de reconstrução fiel do vivido. Há também neste capítulo uma
análise da imagem do “baú” baseada na poética do espaço de Bacherlard
(1993).
No capítulo segundo, intitulado “Poesia, Memória e Sociedade”
estabelecemos uma trajetória na poética do autor. Em princípio, investigamos
as relações entre criação poética e realidade social, na tentativa de decifrar
como os referenciais históricos, sociais e até geográficos, são recriados pelo
autor em um número considerável de poemas. Como base, alicerçamo-nos
teoricamente no conceito de memória coletiva de Maurice Halbwachs (2006),
nos estudos sobre memória, de Alba Olmi (2006) e nas relações entre
literatura, tempo e sociedade abordadas por Alfredo Bosi (2002-2004) e
Antônio Cândido (1989-2000-1993-20002).
Num segundo momento, enfocamos a questão metafísica e
existencial que envolve o eu-narrador-personagem, identificado na poesia de
Wanderley Wasconcelos, e que apresenta questões como a morte, o
distanciamento e a aproximação dos sujeitos de si mesmo, a eternização e
transcendência pela arte. Para tanto, fizemos uso de alguns conceitos de
Heidegger (1988) e leituras da obra do filósofo feitas por Benedito Nunes
(2002) e Michael Inwood (2004).
É importante esclarecer também que, apesar da obra escolhida
sinalizar para existência de diferentes configurações assumidas pelo eu lírico
em sua trajetória, que ganharam um corpus bibliográfico de análise próprio em
cada capítulo, não é possível estabelecer limites precisos e rígidos entre estas
configurações. Pois as diversas máscaras assumidas pelo eu lírico, e a ligação
inerente que perpassa a memória individual e coletiva, o plano confessional e o
social são estratos que se completam e se fundem no jogo de sobreposições
espaciais e temporais próprio da linguagem poética, próprio da metáfora que a
constitui.
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CAPÍTULO 1 – ALTER EGO, INFÂNCIA E MEMÓRIA
1.1. Tempo e memória
A questão do tempo ocupa lugar relevante, desde épocas remotas,
nas reflexões e interpretações de filósofos, estetas, historiadores, sociólogos,
psicólogos e literatos. Na literatura recente o tempo tornou-se tema global e
predominante, sendo difícil nela encontrar uma figura importante que não tenha
levantado o problema do tempo e de sua relação com o homem.
Só para citar um exemplo, no livro Drummond: O Gauche no Tempo
(1972), Afonso Romano Sant’Anna vislumbra a importância estrutural e
existencial que a questão tempo e memória possui na obra do poeta mineiro.
Impossível não citar Cora Coralina, cuja obra recorre à memória como um dos
principais núcleos de criação, a exemplo do livro de poemas Vintém de cobre:
meias confissões de Aninha (1993).
O advento da modernidade impregnou o espírito humano de uma
consciência do tempo “como condição universal de vida, e como um fator
inextirpável de nosso conhecimento do homem e da sociedade”
(MEYERHOFF, 1976, p. 2-3), tomando-se a ideia de tempo como inseparável
do conceito de eu:
Somos conscientes de nosso próprio crescimento orgânico e psicológico no tempo. O que chamamos eu, pessoa ou indivíduo, é experimentado e conhecido somente contra um fundo de sucessão de momentos e mudanças temporais que
constituem uma biografia. (MEYERHOFF, 1976, p.1)
A literatura mostra o tempo humano, por isso o seu significado é
buscado fundamentalmente no contexto desse mundo de experiências, ou no
contexto de uma vida humana como a soma total dessas experiências. O
tempo, assim definido, “é privado, pessoal, subjetivo” (MEYERHOFF, 1976, p.4),
ou, como se diz frequentemente, psicológico.
Extrapolando a reflexão para outras áreas, na Física o tempo é
pensado de maneira objetiva e determinado por fórmulas matemáticas,
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ganhando uma conformação quantitativa. Há também o tempo público, o tempo
dos relógios e calendários, que “sincroniza nossas experiências particulares de
tempo com vistas à ação social e à comunicação”. (MEYERHOFF, 1976, p.4)
Nessas formas de tempo é possível perceber uma independência em
relação às nossas experiências pessoais, referindo-se mais à estrutura objetiva
na natureza (estações do ano, ciclo lunar, etc.) do que ao plano subjetivo da
experiência humana.
A noção de tempo “especificada como um dado imediato de nossa
consciência” (BERGSON, 1970), revela-se paradoxal quando usada para
construir um conceito científico de tempo aplicável a uma estrutura objetiva da
natureza. O que é psicologicamente simples e diretamente determinável não é
logicamente claro e válido.
Na verdade, é necessário um longo e elaborado processo de abstração, construção e interpretação racional para fazer a transição da noção de tempo como dado da experiência pra um “sistema axiomático” de tempo que se acredita objetivamente válido na natureza. (MEYERHOFF, 1976, p.5).
Ainda em Meyerhoff, temos que em nenhum outro âmbito, talvez, a
“dicotomia entre o mundo da experiência e o mundo dos conceitos científicos é
mais marcada como no caso do tempo”. Isto se deve ao fato de o tempo, como
experiência, ter uma importância fundamental para a vida humana em geral, e
também porque “a análise cientifica do tempo parece menosprezar esse
conexão significativa” (MEYERHOFF, 1976, p.5), havendo, assim, uma
dificuldade de transição daquilo que é psicologicamente simples e
imediatamente dado, para o que é logicamente claro e objetivamente válido na
natureza.
Se levarmos em conta questões básicas relacionadas à noção de
tempo como lapso, intervalo, momento, ordem, indispensáveis à uma
compreensão razoável do que queremos dizer com passado, presente e futuro,
não é tarefa fácil defini-los objetivamente. Pois, caso prevaleça esta
determinação de uma “realidade” como algo puramente racional, a noção de
tempo será considerada irreal e ilusória, e não aspecto de alguma parte
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objetiva da realidade. Observada de acordo com esse ponto de vista, a
realidade é sem tempo ou estava além dele, eterna e imutável.
Santo Agostinho inventou engenhosa teoria sobre o tempo, conforme
Meyerhoff. Para ele, por “passado” queremos dizer então a presente
experiência da memória de coisa passada; por “futuro”, a presente expectativa
ou antecipação de coisa futura. Vale frisar aqui que, o passado de nossas
próprias vidas possui status ou natureza diferente de nossas lembranças dele
(MEYERHOFF, 1976, p.7).
Na perspectiva de uma teoria cientifica do tempo, há uma busca de
eliminar ambigüidades e perplexidades da experiência subjetiva. Infelizmente
esse processo de construção de um sistema axiomático de tempo encarado
como objetivamente válido na natureza, termina por eliminar certas
“qualidades” de tempo, carregadas de grande “significado na experiência
humana” (MEYERHOFF, 1976, p.8). Há desta forma aparente incompatibilidade
do tempo na experiência humana e o tempo na natureza.
Bergson observou que o tempo científico não perdura, e que a
ciência positiva consiste essencialmente na eliminação da duração. O tempo
apontado por Bergson se apresenta como um “dado imediato da consciência”.
O tratamento literário do tempo é bergsoniano no sentido de analisar o tempo
tal como este entra nas vidas e ações humanas, portanto diferenciado do
tempo “dentro da Mecânica e da Física” (MEYERHOFF, 1976, p. 9).
O tempo fragmentado e hierarquizado em minutos e horas, anos e
séculos não possui em sua natureza intrínseca essas divisões. De acordo com
Bergson, essas divisões são inventadas por nós com o intuito de adaptar o
tempo à nossa existência. O homem modela o mundo segundo sua imagem,
fragmentando o real graças à inteligência, devido à impossibilidade de
representar a realidade tal como essencialmente é:
Justapomos os nossos estados de consciência de maneira a percepcioná-los simultaneamente, não já um no outro, mas um ao lado do outro; em resumo, projetamos o tempo no espaço, exprimimos a duração pela extensão, e a sucessão toma para nós a forma de uma linha contínua ou de uma cadeia, cujas partes se tocam sem se penetrar. (BERGSON, 1970, p.73)
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Mas este conhecimento, visto da perspectiva bergsoniana, de certa
maneira habita apenas a superfície das coisas. É um conhecimento
instrumental que ganha sentido tão somente porque atende às necessidades
de ordem prática. Pois o real é uno e flui contínuo e incessantemente, ou
seja, a realidade é “duração pura” sem brechas ou suspensões:
A duração, que prolonga um passado, em que “o presente está prenhe de futuro”, não consiste numa justaposição de instantes. Ela designa a matéria mesma do tempo. O instante não existe. O instante que eu imagino fora de mim não é senão
uma abstração, um referencial para o meu espírito. (PIETTRE, 1997, p.45-6)
Portanto, para o homem, a duração só pode ser apreendida pela
intuição, só ela lhe permite atingir e penetrar esse todo que é em si uno e
concreto, contínuo e autêntico, por conseguinte, inefável. Desta forma, a
intuição pode ser entendida como um modo de conhecer que tem algo do
insight, pois, como diz Igor Rossini (2001, p.27), aprender pela intuição:
implica ascender a uma forma de conhecimento imediato, sem intermediários. Uma assistência presente ao espírito. Esse pensamento vem da origem latina do termo – Tueri – que significa “ver”. Assim, a captação intuitiva sugere uma visão súbita, logo inefável.
Diferente do caráter qualitativo que o tempo possuía nas sociedades
tradicionais, a revolução econômica e científica, ocorrida nos séculos XVII e
XVIII, trouxe consigo uma ideia de progresso que mudou radicalmente “o status
do tempo” até então vivenciado pelo homem ocidental. O mundo moderno fez
com que o tempo tivesse um valor supremo, pois:
Produzia coisas de valor em termos do mercado e das condições materiais da vida. O tempo era um instrumento indispensável para a produção de bens num mercado sempre em expansão. Desse modo o tempo em si podia ser encarado como um precioso elemento de riqueza, pois ele sozinho tornava possível a produção de todas as outras mercadorias. Dizem ainda: tempo é dinheiro porque as mercadorias produzidas no tempo significam dinheiro. (MEYERHOFF,1976, p.93)
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Nessa perspectiva, o tempo experimentado pelo homem passou a
ser devorado cada vez mais por “unidades quantitativas, aqui e agora”,
provocando sentimento de descontinuidade em uma temporalidade
naturalmente contínua, tanto no aspecto do agora do homem consigo mesmo,
quanto na relação dele com o passado.
O tempo da produção e da velocidade das máquinas trouxe
dilaceramento à noção de tempo pensado numa perspectiva mais humana,
psicológica e existencial, abalando a noção de identidade e os vínculos entre o
passado e o presente vividos, tanto no plano individual quanto no plano coletivo
da experiência humana.
Na poesia de Wanderlei Wasconcelos este dilaceramento traz como
consequência a temática recorrente de um eu lírico que busca o reatamento
com o passado perdido no qual ainda não ocorreu a cisão “eu e mundo”.
Ilustrando novamente com Drummond, a persona que ele criou do
gauche se manifesta como um ex-cêntrico, ou um displaced person,
demonstrando “sempre o conflito básico entre sujeito e objeto [...], o contínuo
desajustamento entre sua realidade e a realidade exterior” (SANT’ANNA, 1972,
p.43).
A poesia de Wanderley Wasconcelos se apresenta, na demonstração
que faremos à frente, como tentativa de superar essa divisão que o tempo
social, de caráter notadamente quantitativo, provoca na consciência do homem
moderno. Escritura que tenta recuperar pela memória as qualidades de
duração, interpenetração, continuidade e unidade de um tempo humano, pela
construção de um eu poético em busca de identidade em meio às fraturas
provocadas pelo tempo social desagregador. E, mesmo que o tempo social
projete reflexos profundos na matéria, utilizada como substrato para a criação
literária, é importante lembrar que a poesia identificada com a duração (durée)
bergsoniana implica a presença de um tempo intemporalizado pela memória,
tempo que supera a tripartição comum de passado-presente-futuro.
Para tanto, o poeta recria um mundo perpassado pela memória do
vivido e do testemunhado no qual o buscador do tempo perdido é sujeito e
objeto, memória como lugar de persistência, de continuidade, de capacidade
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de reviver no hoje o já inexistente, memória sujeita à razão e ao acaso, e às
aporias da imaginação criadora. Nesse sentido, a memória difere da história
ao propiciar a sobrevivência de um passado que situações vividas no presente
tentam sepultar.
Ao realizar essa projeção do passado no presente, identificando as marcas de uma continuidade pouco notável, a memória nega a alteridade de que a história sempre trata: onde a história encontra diferenças, a memória produz semelhanças, lógicas, regularidades. Inventa-se, assim, o mesmo, o igual, para sublinhar a identidade que, na passagem de uma temporalidade à outra, se perde. (PINTO, 2004, p.293)
Sublinhamos aqui, que a memória que aparece na literatura mesmo
quando perpassada por dados históricos e referenciais, é diferente da memória
histórica, em que o tempo é algo a ser encontrado e reconstruído
positivamente. Para a memória, o tempo se apresenta sem descontinuidades e
perdas por ser uno, sem fissuras e obstáculos em sua constituição individual e
psicológica. Assim:
A história é sempre a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um fio vivido no presente eterno; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória só se ajusta aos detalhes que a confortam; nutre-se de lembranças voláteis, telescópicas, globais ou aéreas, particulares ou simbólicas, sensíveis a todas as transferências, telas censuras ou projeções. (PINTO, 2004, p.293)
As extremas mudanças sociais e políticas, aliadas ao progresso
cientifico e tecnicista vividos nos dois últimos séculos - que culminaram no
fenômeno da globalização – buscam tudo adaptar e homogeneizar às
exigências mercadológicas, mecanizando as ações humanas, determinando as
vontades, os desejos, enfim, distanciando os homens de sua humanidade.
Segundo Heloísa Buarque de Hollanda, em Signos em Rotação (2005),
Octavio Paz discute os reflexos que a industrialização, o aparecimento e o
desenvolvimento da técnica provocam na noção de tempo e na poesia
moderna, ao determinarem uma crise de significados na qual:
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O mundo perde sua imagem enquanto totalidade. O tempo torna-se descontinuo, o mundo se desfaz em pedaços refletindo-se apenas como ausência ou enquanto coleção de fragmentos heterogêneos, onde o eu também se desagrega. Segundo O. Paz, descobrir a imagem do mundo no que emerge como fragmento, perceber no uno o outro, será devolver à linguagem sua virtude metafórica: dar presença ao outro. A poesia moderna seria, então, a consciência dessa separação e a tentativa de reunir o que foi separado (HOLLANDA, 1981, p.58).
Nesse contexto a memória desponta como fio condutor, porta de
acesso ao passado que ainda guarda histórias, mitos, laços afetivos e
personagens. É a memória que possibilita a recomposição da dilacerada
unidade que nos faz seres inseparáveis da noção e percepção do tempo. Desta
forma o ato de rememorar é o de construir um tempo supremo, capaz de
condensar, expandir e reinventar o vivido num grau infinito de possibilidades,
reunindo sensações, memória espontânea e intencionalidade, num mesmo
tecido.
Na poética que escolhemos como objeto de estudo o tempo e a
memória se apresentam como matéria fundamental, utilizada na construção
mimética de um entrelugar, zona livre de trânsito entre a realidade vivida e a
imaginação. Dimensão onde o tempo histórico e social adquire a característica
da intemporalidade, proporcionada por dois fatores principais: o processo de
individuação e memória do autor, e o presente inesperado e enigmático que é o
espaço de criação e expressão da linguagem poética.
1.2. Memória e esquecimento
Na poesia de Wanderley Wasconcelos surge constantemente a
presença de um eu narrador que busca recompor lembranças pessoais
“localizadas”, que projetam na sua poética um sentido autobiográfico e
21
confessional. Mas, segundo Bergson, as lembranças que reunidas comporiam
o invólucro maior do que poderíamos chamar de memória são essencialmente
fugazes e só:
se materializam por acaso, seja porque uma determinação acidentalmente que precisa de nossa atividade corporal as atraia, seja porque a indeterminação mesma dessa atitude deixe o campo livre ao capricho de sua manifestação.[...] Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar. [...] Essencialmente virtual, o passado não pode ser apreendido (2006, p. 90-120-121)
Pois as imagens passadas que conseguimos reproduzir com clareza
de detalhes e com sua peculiar coloração afetiva, são as imagens do devaneio
ou do sonho. Nesse processo o que provocamos é a contração da memória,
permitindo que esta se aguce e se contraia, mostrando a fresta de luz da
experiência onde buscamos penetrar.
Ou seja, o tempo psicológico que é o tempo que se projeta na
literatura, especificamente neste caso, na poesia, é na verdade feito de
diversos tempos que se condensam na intensidade de uma sensação presente
projetada para o ato literário, um processo onde pode eclodir da memória
involuntária uma avalanche de lembranças.
Essa mesma noção de memória involuntária ou rememorante
aparece em Mimesis: A representação da realidade na Literatura Ocidental
(2009), de Erich Auerbach. O autor, ao pensar sobre a questão tempo-memória
em dois trechos retirados da obra de Woolf e Proust, respectivamente, diz o
seguinte:
O que é essencial é que um acontecimento exterior insignificante libera idéias e cadeias de idéias, que abandonam o seu presente para se movimentar livremente nas profundidades temporais. [...] Todo peso repousa naquilo que não é visto de forma imediata, mas como reflexo. Liberada das diversas prevenções de outrora, a consciência vê as suas próprias camadas passadas com o seu conteúdo, de forma perspectiva, confrontando-as constantemente entre si, liberando-as da sua sequência temporal exterior, assim como da significação mais estreita e dependente da atualidade que
parecia ter em cada caso. (AUERBACH, 2009, p.488-9)
22
Por isso, podemos entender que o tempo-memória que se projeta na
escrita literária, a realidade apreendida como objeto de representação, possui
um caráter cambiante feito de extratos diversos que se sobrepõem,
extrapolando qualquer tentativa de enquadrá-lo como representação que se
mostra objetiva ou subjetiva, para Auerbach:
a moderna representação do tempo interior une-se a uma concepção neoplatônica segundo a qual o verdadeiro arquétipo do objeto estaria na alma do artista; de um artista que, encontrado-se ele próprio no objeto, liberou-se como observador do objeto e enfrenta seu próprio
passado.(AUERBACH, 2009, p.488-9)
Na concepção neoplatônica, a palavra da poesia em todo o falar de
outro, não remete ao outro, mas reinaugura-lhe o sentido mostrando na relação
tempo-memória não o que o passado era, mas trazendo a este o inusitado e
extraordinário da experiência inaugural.
Neste sentido a poesia “quando deixa e convida a perceber a poesia,
a criação, a origem; quando mostra em toda obra que esta não esta
simplesmente aí, mas é uma obra, uma realização, um vir-a-ser.” (SANTORO,
1994, 50), esta ultrapassa o limite de copiar ou representar as coisas de
maneira diferente, ou de falar metaforicamente dos objetos do real para se
manifestar como força transformadora que possui o domínio pleno dos objetos
prefigurados, pois toda forma de representação literária constitui um domínio
de leis próprias que transcendem o caráter referencial, mesmo quando há uma
tentativa de fidelidade com os fatos vividos.
Um exemplo desse domínio que o poético exerce sobre o referencial
pode ser vistos no poema “Pião” (1999, p. 12) de Wanderley Wasconcelos:
23
Pião
Para o Dr. João Batista Sá
O meu mundo terminava logo depois da serrania. E no rodopio do pião (feito de goiabeira) a minha tarde andava lentos nós, eu e a tarde pelas calçadas assim de meninos.
Descia o pião vermelho Como um corisco (feito de goiabeira) Perseguindo a corcunda De um bravo desafiante. Meu Deus O que viam estes meus olhos Estampados No rosto daquele menino?
No poema percebemos a presença de um eu lírico manifestado em
primeira pessoa que tenta revisitar o território de sua infância. Há nos versos
um relevo entrecortado por serranias, semelhante ao local em que o autor
viveu em sua infância na região do Médio Araguaia. O título remete ao
brinquedo popular, o pião, com o qual o poeta brincava com outros colegas de
infância, entre estes, João Batista de Sá, a quem o poema é dedicado,
características que denotam um grau de confessionalidade.
Mas a imagem do pião que surge no título e em duas estrofes do
poema ganha no trabalho de representação a dimensão metafórica de
movimento circular, de um redemoinho para o qual convergem, e são recriados
por este, as sensações e imagens trazidas pelo jorro mnemônico da infância. É
o rodopiar do pião que agrega num só tempo o passar lento das tardes e o
caminhar displicente pelas calçadas (na primeira estrofe), e o zumbido veloz
do pião se desenrolando do barbante como um relâmpago (na segunda
estrofe). O trabalho de adjetivação (lenta, veloz) sugere uma gradação da
velocidade do objeto como turbilhão rememorante; é também a matéria do pião
que traz metonimicamente a presença dos quintais da infância denotada pela
reiteração do verso entre parênteses: “(feito de goiabeira)”. Desta forma
24
podemos entender que a referência autobiográfica que de maneira exterior
envolve o poema, é transcendida pelo processo criativo que faz da obra um
objeto autônomo, habitado por um tempo suspenso e um espaço inusitado, nos
quais prevalece a imaginação.
A última estrofe sugere uma quebra do fluxo rememorante construído
pelos versos anteriores, pois de forma metalinguística o eu poético reconhece a
impossibilidade de reconstruir objetivamente um quadro nítido e preciso de sua
infância, impossibilidade de reaver, no presente, o que viam seus olhos
meninos. O desconcerto interno que a última estrofe causa no poema deixa
subentendida a idéia que a memória é feita de esquecimentos e fraturas, que
só a imaginação criadora pode “costurar”.
Mesmo quando há a intenção de extravasamento do eu, entre o
vivido, a memória deste e o texto escrito, há sempre a presença de natural de
lacunas, apagamentos, rupturas e devaneios. Por isso, ao invés de colocarmos
em tensão memória e esquecimento, podemos afirmar que este último é parte
inseparável daquilo que denominamos memória. Ao se referir à presença do
esquecimento como substrato inerente ao processo de rememoração na obra
de Proust, Walter Benjamim diz que:
a lei do esquecimento também se exercia no interior da obra. Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que um acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois. [...] O importante para o autor que rememora não é o que ele viveu, mais o tecido de sua rememoração. (1996, p.37)
Essa proximidade entre memória e esquecimento surge na temática
dos poemas “Relíquia” e “Obtuário” (2004, p.13 e14), que aparecem em
sequência no livro Viagem nua. A ausência materna ganha sentido dramático
na voz do narrador que, a exemplo do poema citado acima, surge conjugado
em primeira pessoa:
25
Relíquias Como se fosse escória minha mãe deixou-me um baú suspenso na indolência do tempo. Ali dentro havia ampolas de penicilina e uma caixa de aviamentos. No álbum, a foto de seu filho Segurando uma lanterna apagada. De certo para alumiar o mundo! Obtuário Duas tábuas aparelhadas amparam a tralha guardada nesse baú de Lazina por sina amarga deixada. Mofados de seus pertences Segredos expostos, imolados. Rendas com traços encobertos Cobrem um vestido engomado. Aquela peça de ramos, então, que seu corpo aquecia (plissado em vincos profundos) Hoje dorme em tumba fria.
Os títulos dos poemas sugerem uma relação com o passado. O
primeiro tem sua raiz etimológica na palavra reliquiae, objeto preservado
para efeito de veneração no âmbito religioso. Esses objetos eram guardados
em receptáculos conhecidos como “relicários”. No poema, o baú é a imagem
análoga a esse objeto. O segundo título “Obtuário” alude ao anuncio fúnebre
de um indivíduo, no qual é comum se fazer uma espécie de resumo de suas
realizações em vida. A exemplo do poema anterior analisado há no texto
uma abertura ao dado biográfico do autor. Em “Obtuário” surge o nome da
mãe do poeta, “Lazina”, proveniente de Lazina Pinheiro Wanderley. Apesar
da referência ao nome materno, “Lazina” se configura no poema como um
ser de natureza dupla, misto de palavra e imaginação, sentimento de
ausência que se desvencilha da carga imposta pela realidade factual para
habitar o espaço enigmático da mitologia poética criada pelo autor, uma
realidade onde os afetos pessoais são reconfigurados, onde seres de carne
26
e osso são transmutados pelas palavras e ganham o direito a “eternidade”,
no turbilhão de possibilidades e impossibilidades que é a escrita poética.
No quarto verso de “Obtuário” é possível observar, também, que a
ausência provocada pela morte da persona materna é eufemizada pela frase
“por sina amarga deixada”, que possui sentido ambíguo, pois pode tanto se
referir à morte propriamente, como ao sentimento de orfandade, perda do
abrigo que a imagem desta representava.
Os dois poemas são construídos com uma sequência imagética que
tem como figura central a imagem do “baú”. Ao longo deles, este utensílio
ganha a carga simbólica de receptáculo da memória, no qual a lembrança da
figura materna é revivida pela visão do seu conteúdo: “Minha mãe deixou-me
um baú suspenso na indolência do tempo” (p.13), “Duas tábuas aparelhadas /
amparam a tralha guardada” (p.14), “No álbum a foto de seu filho” (p.13),
“mofados de seus pertences / Segredos expostos (...) aquela peça de ramos,
então, / que seu corpo aquecia...” (p.14).
A atitude de contemplação dos objetos desencadeia no eu poemático
o reviver de seu passado e a busca subjetiva de compreendê-lo. Desta maneira
o estatuto da visão ganha via dupla, ou seja, o poder de transitar e perceber
tanto o espetáculo exterior dos objetos, quanto o espetáculo interior que o
contato com eles provoca ao revelar sentimentos encobertos, ternuras e
realidades dolorosas.
No poema “Obtuário”, o personagem situado no presente vai
percebendo que algo permanece oculto ou apagado no fluir das imagens do
que seria, positivamente, a memória do vivido. A percepção do entrelaçamento
que existe entre memória e esquecimento, passado e presente é caracterizada
na construção do poema pelo uso de rimas e assonâncias que expressam a
passagem cíclica do tempo, sugerida pelo eco de palavras de terminação igual
no final dos versos. Essa marcação está caracterizada pela posição dos
adjetivos: “aparelhadas”, “guardada”, “deixada” na primeira estrofe; e,
“mofados, imolados, encobertos, engomados” na segunda; “plissados,
profundos” na última estrofe, palavras ligadas semanticamente à ideia de
apagamento e ocultação do passado que o eu-poemático tenta revisitar. Assim,
o “baú”, que guardaria o tempo vivido, transforma-se em “tumba fria”, termo
27
que encerra o poema com o sentido duplo de morte e memória ao mesmo
tempo.
Utilizando uma perspectiva fenomenológica de topoanálise,
Bachelard entende que no cofre, imagem análoga a do baú,
Estão as coisas inesquecíveis; inesquecíveis para nós, mas também para aqueles a quem daremos nossos tesouros. O passado, o presente e o futuro nele se condensam. E assim, o cofre é a memória do imemorial (2005, p.97).
Em outro trecho, Bachelard afirma que “o poeta vive um devaneio
que vela; e, acima de tudo, seu devaneio permanece no mundo, diante dos
objetos do mundo” (2005, p.97). Nos poemas “Relíquias” e “Obtuário”
Wanderley Wasconcelos recria a imagem do baú como espaço que não pode
ser mensurado geometricamente, mas sim percebido, com toda a carga de
afetividade e psicologismo que só as parcialidades da imaginação e o trânsito
livre entre realidade e devaneio poético possibilitam. A utilização de imagens
permeada de sensações, sentimentos e reescritura do vivido que encontramos
na poesia de Wanderley Wasconcelos possibilita, de certa forma, o
preenchimento de lacunas provocadas pelo esquecimento e apagamento
próprios da memória.
1.3 Eu-narrador-personagem-alter ego
Como veremos no decorrer deste trabalho, o eu poemático que
aparece na poesia de Wanderley Wasconcelos se coloca em muitos poemas
como um alter ego do autor. Alter ego rico de modulações, disfarces e
distanciamentos no trabalho de ficcionalização dos eus construídos ao longo da
obra aqui recortada. Quando dizemos alter ego, referimo-nos ao sentido
literário da palavra, ou seja, à presença de um autor que se recria e se
apresenta ao leitor na pele de um eu poético, figura fictícia utilizada como
elemento de evasão para os seus devaneios, lembranças, sentimentos,
espécie de ator de si mesmo. Portanto alter ego distinto do psicanalítico,
relacionado na psicologia lacaniana ao estágio do espelho, momento em que a
28
criança de poucos meses começa a constituir-se a partir de sua imagem
especular, iniciando “relações nas quais ela e o outro são percebidos como
réplicas. Nesse estágio, o ego é um outro e o outro um alter ego”
(LAPLANCHE; PONTALIS, 1995, p. 143).
Ao falarmos de alter ego do autor temos que levar em conta o
intrincado complexo erguido pelos procedimentos que envolvem a criação
poética, procedimentos que propiciam um trânsito livre entre interior e exterior,
sujeito e objeto. No jogo do “como se” instalado pela palavra poética, ocorre o
que Antônio Candido observou no impulso autobiográfico presente nas obras
Boitempo e Menino Antigo, de Carlos Drummond de Andrade:
A experiência pessoal se confunde com a observação do mundo e a autobiografia se torna heterobiografia, historia simultânea dos outros e da sociedade; sem sacrificar o cunho individual, filtro de tudo. ( CANDIDO, 1989, p.56)
Assim como o narrador poético presente nas citadas obras de
Drummond dá existência ao mundo de Minas no começo do século, o alter ego
construído por Wanderley Wasconcelos recria, como veremos à frente, um
mundo que se insere no período de ocupação do Médio e Baixo Araguaia, do
Estado de Mato Grosso, iniciado na segunda metade do século passado. Mas,
mesmo com a presença de indícios relevantes que inserem a poética em
questão num determinado tempo e lugar, não podemos deixar de perceber que
no trabalho de escritura, esses dados funcionam apenas como pontos de
partida. No âmbito criado pela palavra poética prevalece a:
Consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese. Assim sendo, achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la, é correr o risco de uma perigosa simplificação causal. (CANDIDO, 2000, p. 12-13)
Deste modo a relação entre o autor e o eu lírico vem sempre
impregnada por um tratamento ficcional, por uma reinvenção da realidade que
29
transpõe o nível pessoal e particular, pois a poesia, ao utilizar o particular,
redimensiona-o em direção ao universal.
Deste modo, ao aproximarmos, em nosso estudo, nomes próprios e
cenários retirados da biografia do autor, não o faremos para fins de
desenvolver análise na perspectiva da crítica genética, por exemplo, ou para
averiguar questões históricas, mas para aprofundar sentidos e caminhos de
interpretação que a poética abordada revela por si mesmo.
A principal identidade do personagem eu-narrador-autor recebe em
diversos poemas o nome de Raimundo, ou seja, coopta o primeiro nome
próprio do poeta, Raimundo Wanderley Wasconcelos. A denominação aparece
em trechos de vários poemas, como em Alvorada (1999, p. 22):
Lá fora reluz o novo mundo, a Nova Era bate à minha porta, Raimundo.
Em Aboio Arqueiro (1999, p.28-29):
A tarde subscreve solidão, Raimundo, Os teus ombros estão caídos sobre esta campina que sustenta uma colina...
Em Aboio Embora (1999, p.31):
O seu colo materno afagou uma centena de órfãos filhos de outros desterrados, -Não é, Raimundo....;
Em Alcunha (2006, p.31):
Raimundo , levei aquele codinome para o grupo Febrônio Rodrigues onde trocaram-no por Gato de Botas.
O eu poemático, construído à sombra do nome próprio do autor
apresenta como cerne de sua personalidade um contínuo desajuste, uma
sensação de desenraizamento em relação à realidade presente. A alusão ao
30
período de infância quase sempre se opõe ao o período atual em que o eu
poético adulto se situa. Em “As Sementes da Gleba”, esse desajuste é sentido
pelo contraste e conflito entre presente e passado, entre campo e cidade:
Sementes da Gleba Parte de minha infância deixei na gleba Ali plantei árvores colhi sementeiras, ordenhei uma dezena de vacas e criei porcos com meu pai goiano. Apesar do subemprego ainda me sobra tempo para o sonho. Fecho os olhos e nossa gleba vive. Se eu fosse funcionário público mandava botar um retrato Desse passado na parede. Neste tempo não sou nada Mas planto bombas no jardim.
Nos versos há um confronto de tempos, o do sonho ligado à
realidade de caráter psicológico, afetivo e pré-categorial, que inclui até mesmo
as atividades de produção do campo (“colhi sementeiras / ordenhei uma
dezena de vacas / e criei porcos com meu pai goiano...”) e o atual, marcado
pela condição social precária vivida pelo personagem (“Apesar do
subemprego”).
O tempo passado na gleba é um tempo bom: “ainda me sobra tempo
para o sonho./ Fecho os olhos/ e nossa gleba vive”, que precisa ser
reatualizado: “Se eu fosse funcionário público / mandava botar um retrato /
Desse passado na parede”, mediante a condição do presente, ao qual foi
imposta a “divisão do trabalho e do poder” (BOSI, 2000, p.139).
Tempo que limita sua existência, marcada por um referencial, uma
ordem aparente que precisa ser destruída: “Neste tempo não sou nada / mas
planto bombas no jardim”. A imagem do “jardim” ganha um sentido simbólico
de negatividade, símbolo da “ordem” imposta que tudo devora e desagrega,
tempo em que:
31
Há pouco lugar para as formas de socialidade primária quando tudo é medido pelo dinheiro, pelo caráter abstrato das instituições; e quase nem um lugar para a relação afetiva direta com a Natureza e o semelhante. (BOSI, 2000, p. 131).
Embora haja certa distância temática e estética, o poema “Sementes
da Gleba” (1999, p.44) guarda traços de intertextualidade com o poema
“Confidência do Itabirano” (1972, p.45), de Carlos Drummond de Andrade. Os
dois poemas começam falando do passado: “Alguns anos vivi em Itabira./
Principalmente nasci em Itabira...”, assim escreve o poeta mineiro. Mas
enquanto o eu poemático criado por Drumonnd fala na última estrofe do poema
de um passado burguês, cercado de posses: “...Tive ouro, tive gado, tive
fazendas hoje sou funcionário público...”, o personagem criado por Wanderlei
abre o poema falando de um passado de posseiro, de glebado: “Parte de
minha infância deixei na gleba / Ali plantei árvores / colhi sementeiras, ordenhei
uma dezena de vacas / e criei porcos com meu pai goiano...”. Há também um
aparente paralelismo frásico entre os trechos: “...Tive ouro, tive gado, tive
fazendas...” e “plantei árvores / colhi sementeiras, ordenhei uma dezena de
vacas”.
Na penúltima estrofe, o poeta torixorino ironiza o eu lírico
drummondiano que se apresenta no presente como funcionário público, e diz
que “Itabira é apenas uma fotografia na parede”. Já o eu lírico, que no agora
enfrenta as agruras do subemprego, afirma que:
Se eu fosse funcionário público mandava botar um retrato Desse passado na parede
Nos dois poemas, a alusão ao retrato ganha uma dimensão
metafórica de objeto que guarda imaginariamente o tempo perdido.
Apesar do antagonismo entre passado e presente que o poema,
“Sementes da Gleba” (1999, p.44) traz, a evocação das lembranças termina
por criar e unir a suprarrealidade atemporal reconfigurada pela memória à
vivência atual (“apesar do subemprego/ainda me sobra tempo para o sonho”),
32
proporcionando, assim, a reatualização do passado na materialidade do poema
(“fecho os olho/e nossa gleba vive”). O passado da infância no campo ganha
um sentido de evasão frente à opressão vivida atualmente pelo personagem,
tempos que passam a conviver simultaneamente na realidade estética e
mnemônica, construída pelo trabalho de escritura.
Esse encontro de tempos, proporcionado pelas memórias de um
personagem que volta à ilha perdida da infância aparece também em “Espera”
(2006, p.25):
ESPERA Espero um homem na cancela que desça de seu cavalo e que me afague em seu colo. A doçura daqueles dias umedecem estes meus olhos e minha face envergonhada que a vida moldou seu rumo para engolir tempestades.
Na primeira estrofe, com função apelativa expressa no presente do
indicativo, o encadeamento verbal (“espero”, “que desça”, “me afague”)
proporciona um insight de memória, clarão repentino capaz de reconduzir o eu
lírico da atualidade ao seu cotidiano de menino que esperava todos os dias o
retorno do pai vaqueiro, personagem idealizado como cavaleiro herói, fonte de
proteção e afago. A construção imagética escrita nos três versos da primeira
estrofe supera a riqueza da memória visual à qual a cena alude, para habitar a
paisagem interior da relação afetiva estabelecida entre pai e filho, entre
menino e herói:
Nessa perspectiva, a instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à existência; não de um passado cronológico puro – o dos tempos já mortos –, mas de um passado presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de ser da infância e do inconsciente. (BOSI. 2000, p.131-2)
Na segunda estrofe o personagem-narrador, antes transposto por um
flash de memória ao momento de seu passado, assume o distanciamento
33
cronológico ao situar as memórias do menino em um tempo pretérito (“a
doçura daqueles dias”), nicho mnemônico carregado de emoção e afetividade
(“umedecem meus olhos”), que ao transbordar pelo fluxo rememorante, revela
o presente tempestivo e angustiante, que o fragiliza.
Reinventar imagens da unidade perdida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver. Isso é uma maneira que a arte encontrou como pausa e suspensão temporária frente “a certeza da carência e da dor” (BOSI. 2000, p.181).
É interessante notar, na segunda estrofe, que os sentimentos
contraditórios de um passado bom e um presente doloroso são metaforizados
por uma construção sensorial gustativa, que estabelece uma oposição entre “A
doçura dos dias” que abre a estrofe, e o “engolir tempestades”, que a encerra.
Em diversos momentos “Aboio” (1999) e “Viagem Nua” (2006)
sinalizam para a presença de uma transposição temporal e espacial
empreendida pelo citado personagem, que perfaz uma trajetória da infância
para a idade adulta, do campo para a cidade. O poema “Visões” utiliza a
imagem da porteira como referencial de transposição espaço-temporal:
Visões
Trago ao alcance das mãos os buritizais que tecem de modo
imperioso a passagem do vento e da música
que não ouço e a lembrança vazia
de currais-de gado ausência pretérita de mugidos
e de uma cancela aberta – para sempre.
Há no poema um transbordamento sintático de um verso em outro,
denotando a presença do enjambement, dispondo-os em apenas uma estrofe.
O fato de a pontuação aparecer somente no final do poema, firma a impressão
que ele é composto por uma frase única, entrecortada apenas pela disposição
34
dos versos que, por sua vez, obedecem a uma formatação visual centralizada,
que enfatizam a ideia de que as recordações evocadas pelo personagem estão
agregadas numa topologia e temporalidade pessoal, um locus referencial e
psicológico de vivência cujo eixo é o eu-autor-personagem.
Neste contexto, as imagens e elementos referenciais evocados
passam a habitar o território singular da realidade poética, espaço da invenção
em que o sensorial (“buritizais”, “currais de gado”, “passagem do vento e da
música”, “mugidos”) e o afetivo (“lembrança vazia”, “ausência pretérita”) se
fundem criando uma sensação de nostalgia bucólica. Como já dissemos, no
parágrafo anterior, o poema tem a característica de frase única e contínua,
característica que contribui para a criação de uma metáfora complexa, que só
pode ser compreendida num contexto de enunciação.
O principal elemento de constituição desta metáfora é o oxímoro
criado pelo contraponto entre presença e ausência. Ao mesmo tempo em que o
personagem traz em si (“ao alcance das mãos”) a ambiência campestre do
passado que a imagem dos buritis, personificados, proporcionam (ou “tecem de
modo imperioso”) como se as folhas destas palmeiras trançassem em seu
movimento os fios da memória, há nos versos seguintes uma dissolução desta,
pois a música do vento nas folhas não é mais ouvida, as lembranças são
vazias, e o mugido do gado, o cheiro dos currais são percepções pretéritas.
Mas, ao mesmo tempo em que o poeta nega, a presença viva da memória, a
descrição desta ausência reconstrói imagética e sensorialmente na sequência
dos versos a ambiência do vivido, reconstrói um tempo e um espaço que
atravessaram para sempre a cancela da fazenda para habitar o espaço da
imaginação.
Neste contexto, podemos dizer que a casa, o quintal ou mesmo o
espaço da fazenda delimitado por cercas e cancelas, sobrevivem no
personagem como um refúgio, uma região longínqua, recoberta de lembranças
e sentimentos:
memória e imaginação não se deixam dissociar. Ambas trabalham para seu aprofundamento mútuo. Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem. Assim a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as
35
diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. (BACHELARD, 1993, P.25)
No poema “Visões”, a memória surge como substrato para criação
estética regida, heterogeneamente, por uma fusão de percepções, por um
movimento bitransitivo entre o concreto e o abstrato, em que as imagens
primordiais evocadas pela mente são acompanhadas por sons, aromas e por
outras imagens, criando no poema mecanismos que fogem a uma percepção
racional e imediatamente apreensível.
1.4. A reinvenção da infância
É recorrente na poesia de Wasconcelos a presença da infância.
Recorrência que funciona não apenas como uma volta a um mundo bom e
lúdico, mas também como um elemento de construção estética do qual brotam
imagens, ritmos, sons e metáforas fundamentais ao trabalho de criação de
vários poemas. Desta forma, os referenciais mnemônicos colhidos no meio
familiar e social transcendem a função de representação da realidade,
ultrapassam seu caráter de verossimilhança, agregando-se, como diria Antônio
Candido (2000, p.4), à integridade estética da obra:
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente integra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo.
Nesse sentido, como foi dito, fazendo uso recorrente de elementos
autobiográficos o poeta cria uma série de poemas com interessantes recursos
estilísticos, indícios que, unidos, apontam para a trajetória fecunda de um eu.
Nossa intenção ao trazer fatos da vida do autor é a de pensar a obra
como um todo orgânico, espaço de criação no qual os aspectos exteriores
36
passam por operações complexas de depuração e condensação, fundindo-se
ao modo interior e singular do poema, ganhando o caráter enigmático e
polissêmico do “como se”.
Quando possuía apenas três anos de idade, Wanderley
Wasconcelos perdeu a mãe Lazina Pinheiro Wanderley, que morreu de
eclampsia durante o parto, junto com a criança que carregava no ventre.
Segundo relato do escritor, o fato ocorreu no ano de 1953. Assim,
Wasconcelos, órfão de mãe, passou a conviver só com o pai, Otaciano Costa,
em uma fazenda localizada na região de Lago da Pedra, pertencente hoje ao
município de São Félix do Araguaia - MT. A memória relativa à viuvez do pai é
utilizada como substrato para a construção de poemas como “Chegada” (2006,
p.24). Nele, a tristeza do filho e a solidão do pai vaqueiro relacionadas à morte
da figura materna e mulher da casa, como matéria do vivido, penetram e
ganham eco na interioridade lírica do poema.
Chegada Vindo do campo a cavalo o que trazia meu pai além daquela tarde? Trazia cantares, seu aboio, tangia gado, solidão e nosso orgulho de sermos dois naquela gleba. Ele viúvo, vaqueiro, valente. E seu filho a laçar tristezas somente.
Nos dois últimos versos encontramos a presença de uma marcação
tônica contínua, que se alterna com regularidade: “vindo do campo a cavalo /
o que trazia meu pai além daquela tarde?” e “Ele viúvo, vaqueiro, valente./ E
seu filho a laçar tristezas somente”, a cadência criada por esta marcação
sonora nos remete ao trotar do animal aludido imageticamente nos primeiros
versos.
A sonoridade que se transporta da instância imagética para a
camada fônica do poema traz uma expressividade considerável ao enunciado,
atribuindo ao personagem pai vaqueiro as características de força e altivez,
pois ele é o senhor do tempo e do destino, aquele que traz a tarde, aquele que,
37
utilizando o encantamento de seu “aboio” (canto característico usado pelos
vaqueiros para pastorear o gado) é capaz de tanger (conduzir) os sentimentos
de dor e solidão causados pela viuvez, em contraposição com a condição do
eu poético-filho que vive a laçar “tristezas somente”.
O contraponto entre a condição do vaqueiro e de seu filho, expresso
no último verso, faz emergir de forma confessional o sentimento de orfandade
materna vivenciado pelo personagem infante, uma dimensão lírica intensa e
comovente que só o aspecto involuntário da memória é capaz de revelar.
No poema “Alcunha” (2006, p.31) surge outra alusão à citada viuvez,
dado da história pessoal do autor. Sobre isso podemos pensar que a presença
na obra de vínculos da pessoa empírica do escritor, coloca-se bem além do
estritamente biográfico, pois os seres e o próprio eu reconfigurados pelo
processo de linguagem, são seres de consistência ambígua, habitantes de um
entrelugar, em que há um movimento continuo e circular entre o real e o
ficcional, espaço que permite que os seres representados se desvinculem do
“excesso de peso” imposto pela realidade factual, sem no entanto anular a
instância do real que os constitui:
Alcunha A mando do genro viúvo cheguei para ser posto na escola Ivo, filho de dona Anita, me outorgou a alcunha de importado. Raimundo, levei aquele codinome para o Grupo “Febrônio Rodrigues” onde trocaram-no por Gato de Botas.
O poema traz, como destacamos, o primeiro nome próprio do autor,
Raimundo, reconfigurado em um eu-narrador. Apesar de podermos ler
“Alcunha” sem a necessidade de correlacioná-la à biografia de Wasconcelos, o
poema possui em seu aspecto exterior uma estreita relação com esta, devido
ao fato do pai do autor, então viúvo, ter se casado novamente enviando o filho
que morava com ele em uma gleba denominada Lago da Pedra, na região do
Baixo Araguaia, para morar com a tia, Maria Ferreira, na cidade de Torixoréu
(MT) situada na região do Médio Araguaia. Passando a residir em Torixoréu o
38
menino foi matriculado no “Grupo Febrônio Rodrigues”, escola pública ainda
existente e assim denominada até hoje.
Na realidade construída pelo poema esses dados periféricos são
filtrados e simplificados de tal forma, que a instância mnemônica da qual se
originou, funciona apenas como pano de fundo para a manifestação dos afetos
e impressões que fluem como jorro mágico da intimidade do poeta, construindo
uma realidade em que o leitor também se vê como menino, vivenciando o
estranhamento dos primeiros dias de aula, e assim, tanto no processo em que
se constitui mimeticamente, como no de recepção, a obra ganha autonomia,
tendo em vista que:
a recepção não é um processo semântico, mas sim um processo de experimentação do imaginário projetado no texto. Pois na recepção se trata de produzir, na consciência do receptor, o objeto imaginário do texto, a partir de certas indicações estruturais e funcionais. (ISER apud LIMA, 1983, P. 381).
Vemos ainda em “Alcunha” que os versos apresentam uma dose sutil
de humor, trazida pelo tom erudito dos versos, com vocábulos não usuais,
“alcunha”, “outorgou”, “codinome”, sintaticamente bem ordenados, nos quais se
inserem os engraçados apelidos “Importado” e “Gato de Botas” que o eu-
poemático, menino de fazenda ganha, em virtude da situação de “estranho no
ninho” criada narrativamente ao longo dos versos.
Apesar do humor que o apelido “Gato de Botas” traz ao poema, vale
lembrar que ele nos remete ao gato personificado da fábula popular recolhida
por Perrault (1994, p.55-66). Personagem que se revela no conto como a
herança mais preciosa deixada pelo moleiro ao filho caçula que, por herdar do
pai apenas um gato, foi banido pelos irmãos mais velhos. Por sua vez o gato,
usando de astúcia, monta uma farsa por meio da qual consegue transformar
em príncipe o amo pobre. Deste modo, o gato e o filho caçula do moleiro,
apesar do final feliz, perdem no início do conto a segurança da casa e do
convívio familiar original, a exemplo do eu-poemático menino criado por
Wanderley Wasconcelos. Por caminhos inusitados de associações
inconscientes, a poesia encontra e constrói pontos de intersecção, indícios
que denotam o aspecto intuitivo da escritura lírica.
39
A condição de menino órfão de mãe aparece no poema “Aboio
Embora” (1999, p.31). O poema é uma espécie de micro-fábula em versos que
reinventa a história de Maria Ferreira, projeção da tia do poeta, casada com o
irmão de sua mãe, Pedro Wanderlei. Na segunda e terceira estrofes do poema
há uma apologia à bondade de Maria Ferreira, e o primeiro nome do autor
surge outra vez, desta feita o autor constrói “um outro” ele mesmo com o qual
dialoga no último verso da terceira estrofe: “- Não é, Raimundo?”, verso que
alude também à condição de órfão:
Aboio Embora
Maria Ferreira dona do Capão da Bacaba é nome de gente que se assenta por ser forte, de ferro, com restos feitos gerais e silêncio do falar. Em sua casaberta anjos invisíveis tropeçavam ao seu dispor para fazer o bem. O seu colo materno afagou uma centena de órfãos filhos de outros desterrados. - Não é, Raimundo? Precoce, aos setenta anos, sem nenhum enfado de fazer o bem nosso Senhor (em Goiânia) bateu a campainha do chamado inevitável. -Presente, Nosso Senhor! Teria dito com voz de quem veio ao mundo e não deixou partilha por causa do latifúndio.
Os termos “Importado” e “Gato de Botas” presentes no poema
“Alcunha” (2006, p.31); “órfão” e “desterrados”, em “Aboio Embora” (1999,
p.31), remetem à transposição vivenciada pelo eu lírico, a “expulsão” da
fazenda e da família original. Desta forma, a composição psicológica do eu
expresso no poema, é a de “exilado”, estrangeiro e habitante de um território
distinto daquele que imaginava eterno e feliz. É por isso que há, em vários
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poemas, uma tentativa de regresso ao mundo estável onde o eu passou
determinados períodos da infância. No poema acima, as marcas dessa
vivência o faz se sentir um órfão que encontra no colo da imagem projetada
pela tia, o afago materno.
A imagem do deslocado que não consegue se ajustar à ordem e aos
valores impostos será uma marca que acompanhará o eu poético em vários
momentos de sua trajetória. Esse desajuste se deve principalmente ao
confronto de tempos que mencionamos, tendo em vista que o tempo
experimentado qualitativamente pelo personagem na condição de menino vai
se extinguindo cada vez mais nas unidades quantitativas mensuráveis de um
tempo aqui e agora.
A distância interna com o passado que provoca nos eus-ficcionais
uma sensação de deslocamento é provocada tem origem em fatores externos
que se inserem na obra transformando a característica discursiva inicial. Entre
outros fatores podemos citar o efeito cumulativo das radicais mudanças sociais
impostas pela expansão do agronegócio e pela consolidação do latifúndio das
grandes fazendas de gado, que se instalaram a partir da década de 50 na
região central do país (IANNI, 1986, p.47). Elas foram mudando totalmente a
vida de pequenos agricultores que ocupavam glebas de terra no centro-oeste
brasileiro. Neste contexto cooptado como matéria temática para composição
de vários poemas “a terra não é apenas o objeto de desejo material, mas o
suporte metafísico do ser” (MAGALHÃES, 2002, p.143), uma relação que
ultrapassa o plano material, para alcançar posteriormente o patamar em que o
telúrico e o mítico tornam-se unos.
O tempo moderno e capitalista como elemento de riqueza produziu
enormes mudanças na vida social de comunidades tradicionais, alicerçadas em
uma estrutura simples de cultura e subsistência, mudanças que transformaram
o sonho da terra prometida, da terra devoluta, em área de conflito agrário. O
poeta, tendo vivido em tais condições, apresenta uma consciência reflexiva e
crítica e a expressa em seus versos.
Nesse processo de dilaceramento de grupos que criaram com a terra
um vinculo social e cultural de sobrevivência, a memória preservada, mesmo
41
num contexto de representação mimética e literária, possui um caráter de
resistência, tendo em vista que:
Sem utopias, numa sociedade sem identidade própria, uniforme e desenraizada, a memória é a única que pode nos religar a um passado ao qual pertencemos e do qual derivam nossos atitudes, nossas crenças, nossos mitos, nossa capacidade de recriar mundos possíveis nos quais já habitamos no passado, e nossa capacidade de narrar (OLMI, 2006, p-30).
Lançado em uma sociedade fragilizada, sem identidade, a
memória funciona, na poética de Wasconcelos, como fator de religação com
um passado de pertencimento, um relicário que guarda crenças, valores,
reduto marcado pela afetividade e identidade com um passado individual e
coletivo que o constituíram. No entanto, não podemos perder de vista que a
substância mnemônica utilizada na escritura poética ganha um sentido de
ruptura, pois o passado serve também para criar um presente significativo,
que se constitui como uma nova verdade, “uma verdade que só o agora, o
presente da escritura, foi capaz de trazer à tona, numa revelação que tem
sabor de “epifania” (OLMI, 2006 p-37).
A eleição da infância como um período feliz de vida firma-se como
uma margem generosa do distanciamento que se instala entre o eu lírico e a
consciência cada vez mais madura do presente, presente estéril imposto
pela modernidade. Desta consciência, desse sentimento de mundo emerge
o eu poemático que se representa deslocado da sociedade burguesa e, ao
mesmo tempo, expulso do convívio familiar idealizado como abrigo seguro.
Neste contexto a cidade moderna, o progresso técnico e científico
com seu tempo cronometrado e quantitativo, capaz de modificar a relação e
estabilidade que a posse da terra representava, são fatores determinantes
de transformação, carregados de ameaça e estranhamento. Fraturas que
induzem o artista a inserir constantemente em seu processo de escritura a
temática de recuperação do tempo anterior à “cisão” entre “eu e o mundo”.
É assim que se apresenta na poesia de Wasconcelos, num primeiro
momento, a recriação poética de um passado, como modo de resistência
simbólica frente ao desencantamento do mundo.
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CAPÍTULO II. MEMÓRIA, SOCIEDADE, SER E ETERNIDADE
Em seu percurso criativo a obra em estudo aponta para uma
temporalidade de caráter subjetivo, memória individual que se confronta e se
funde ao tempo exterior das lembranças coletivas, tempo afetado pela
consciência sócio-cultural da realidade. A memória grupal presente nos
versos encontra-se entranhada, como já dissemos, por um caráter de
testemunho tendo em vista que a leitura deste aspecto pelo poeta é
essencialmente pessoal, tanto em seu caráter de percepção e interpretação
dos dados apreendidos, quanto de recriação destes.
Esse encontro de tempos apresenta reflexos consideráveis no
corpo semântico e sonoro da obra estudada, determinando o surgimento de
uma poesia com lances de narratividade, ironia e crítica social, composta por
micro-fábulas. Estas apresentam entes e cenários retirados do contexto de
vivência empírica do poeta transmutados pelo “como se” de um Araguaia
real, fictício e imaginário.
Neste contexto que envolve a trajetória do eu lírico, o olhar que
mirava com mais intensidade o passado pessoal carregado pelos fluxos de
memória advindos da “infância”, em determinado momento, passa a se
projetar além da cancela do assentamento e do povoado provinciano. O
poema a seguir fala desta descoberta do mundo ao criar literariamente uma
relação antitética entre a cosmopolita capital irlandesa Dublin e a pacata
Torixoréu:
Longe de Dublin O cheiro disperso de jaca apodrecida corrói os sombrios quintais Torixorinos. A madrinha doceira está urdindo e canta tão longe de Dublin. Dublin não urde para a madrinha E a madrinha inexiste para Dublin. No velho beiral figura uma tabuleta do nosso culto fecundo: “Vende-se”
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vendemos de tudo exceto nossa alma cigana. Sua arte de jovem doceira ultrapassa as fronteiras da cidade. Apesar do renome a doceira ainda tece ladainhas para o Senhor São Lázaro dos cães famintos para a madrinha dos cães famintos para Dublin. Em dia de festa empunhamos copos em círculo, ressaca e vida dominical. Resignados ouvimos os solfejos lúgubres Da consagrada Jazz Band Baliza longe, muito longe de Dublin.
O poema traz um encadeamento verbal em que predomina o
presente do indicativo (“corrói”, “canta”, “ultrapassa”, “vendemos”,
“empunhamos”), que sugere a atualização no hoje de um passado antes
restrito ao espaço da memória.
Nos dois últimos versos da primeira estrofe (“Dublin não urde para a
madrinha / e a madrinha inexiste para Dublin”), o trocadilho que a frase
constrói e a alternância de posição entre o substantivo “madrinha” e o
substantivo “Dublin”, reforçam visualmente na composição dos versos a ideia
de distanciamento e oposição.
O poema cria dois campos semiológicos, o de natureza cosmopolita
constituído imaginariamente pela velha Dublin, e o provinciano situado entre
“quintais torixorinos”, espaço habitado por pessoas que se coadunam ao modo
de ser simples da madrinha e do eu lírico que o representam. A segunda e a
terceira estrofe funcionam como uma apologia ao modo brejeiro de ser
apresentado no segundo campo semiológico, um modo investido de orgulho
virtuoso, expresso por sujeitos cuja “alma cigana” não está à venda.
A oposição entre os campos ocorre primeiramente pela afirmação da
distância geográfica: “A madrinha doceira esta urdindo / e canta longe de
Dublin”; depois, pelo uso de frases que informam o sentido de
desconhecimento e indiferença do grande centro em relação à personagem e à
44
realidade provinciana que ela representa: “Dublin não urde para a madrinha / e
a madrinha inexiste para Dublin”.
O mito de São Lázaro como protetor “dos cães famintos para a
madrinha / dos cães famintos para Dublin”, metonimicamente se apresenta na
rede de sentidos construídos pelo discurso poético, como fator de confluência
entre os opostos: a um só tempo, revela a presença do imaginário religioso
que envolve as culturas dos topos em questão.
No entanto, apesar de sugerir essa aproximação, o poema não deixa
de ironizar o distanciamento que exteriormente persiste em envolver a questão.
Nos últimos versos, a referência à Jazz Band Baliza, banda de música que teve
existência real, segundo o historiador Valdon Varjão (1981, p.121), na cidade
de Balisa (GO), município vizinho a Torixoréu (MT), ganha uma conotação de
ironia. É um nome que soa como um estrangeirismo deslocado e pretensioso
para uma localidade pequena e provinciana quando comparada à anglo-
saxônica Dublin.
Percebemos, também, que fica subentendido na abertura do poema
uma idéia de destruição lenta da cidade provinciana. Nos três primeiros versos
a adjetivação trazida pelas palavras “disperso”, “apodrecida”, “sombrios”, aliada
ao verbo “corrói”, fala de um processo de deterioração da realidade vivida nos
quintais: “O cheiro disperso de jaca apodrecida / corrói os sombrios quintais /
Torixorinos...”. A última estrofe retoma essa ideia ao retratar um modo de vida
comunitário e festivo que se repete de maneira cíclica aos domingos: “Em dia
de festa empunhamos copos/ em círculo”, vida vivida resignadamente por
essa comunidade, ritual coletivo que é ameaçado por uma realidade maior e
devoradora, um modo de vida urbano e prepotente, que faz soar “lúgubre” o
som da banda de música interiorana.
Fazendo novo intertexto com a poesia de Drummond, vemos que a
percepção do mundo além dos limites provincianos, a transposição
campo/cidade também emerge como temática marcada pelo conflito, pathos
vivenciado por um eu lírico deslocado e dividido, como podemos perceber em
poemas do livro Reunião (1969): “No elevador penso na roça / na roça penso
no elevador” (“Explicação” p.27); “Espírito de Minas, me visita e sobre a
confusão desta cidade / onde voz e buzina se confundem / lança teu claro raio
45
ordenador” (“Prece do Mineiro no Rio”, p. 230). Tanto em Drummond como em
Wanderley Wasconcelos há uma espacialização do conflito entre “passado e
presente”, entre “eu e o mundo”. A recriação de um lugar bom e idealizado
situado na província em contraste com um topos urbano e tumultuado
transcende o dado contextual para refletir o conflito metafísico e psicológico de
deslocamento vivenciado pelo eu-lírico.
Em Wasconcelos, a transposição campo/cidade se dá em gradação
de imagens, rápidas, assustadas, como as encontrados em alguns trechos do
poema “Maratona” (1999, p.10-11):
O homem aponta-me o dedo dentro do ônibus veloz. percorro calçadas passo e os carros passam e fico....
Nos versos de “Caboclo” (1999, p.25) essa oposição ganha uma
configuração dramática sutil, quando o eu poemático, de origem interiorana –
do povoado “Doze de Junho”, vê-se no cenário do grande centro carioca:
Caboclo
Numa esquina da Rio Branco de São Sebastião do Rio de Janeiro lembrei-me de Doze de Junho. Chorei sozinho porque sou caboclo Mate-me assim, criador!”.
O encontro com o mundo, além da porteira da paisagem rural, também
se investe de ironia. É assim que, ambientado na periferia urbana, o mito
apocalíptico do final dos tempos e a autoridade dogmática da bíblia, como
único caminho e salvação, são ironizados no poema “Fuga” (2004, p.21):
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Fuga
Grande culto no Bairro Campinas. O pregador leu a sentença, ergueu o braço com um livro feito pássaro sobre nossa cabeças. Representante da corte celestial Ele disse de nosso Fim caso não nos entregássemos aos cuidados de sua fé. Na rua, Tia Janu apertou meu braço Para dar seu consolo: - Se a coisa apertar, filho, A gente atravessa para Goiás
Na primeira estrofe a imagem do livro como um pássaro colocado
acima da cabeça dos expectadores que assistiam a um culto religioso, dá à
cena um clima de teatralidade e traz simbolicamente a idéia de incultação de
uma verdade, de um dogma (“leu a sentença”), apresentado como superior e
incontestável. Mas, nos versos seguintes essa autoridade vai sendo
ironicamente desconstruída pelas frases: “Representante da corte celestial /
Ele disse de nosso Fim / caso não nos entregássemos / aos cuidados de sua
fé” (grifo nosso). A ironia ganha refinamento e relevo ao desmontar a verdade
universal apocalíptica usando o localismo ingênuo e impagável, presente nos
dos dois últimos versos: “Se a coisa apertar filho, / A gente atravessa para
Goiás”.
A descoberta do mundo além da porteira é também uma tomada de
consciência do presente, do tempo histórico e social projetado no eu poético
como um comprometimento maior com a realidade. O discurso poético que se
apresenta neste momento, mesmo quando perscruta o passado, é
transpassado por uma visão critica apurada e aguda na qual o individual busca
o coletivo pelo sentimento de pertencimento à sociedade e ao mundo.
Consta no livro Aboio: Causos da vida posseira (1999, p-3) a
seguinte dedicatória:
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Este livro resgata a memória de minha mãe Lázina
e dos tios Pedro
Mundico Corina
Bibica (filha de Salóme) Luzia (filha de Pocidônio)
e Maria Ferreira do (Capão da Bacaba) .
Essa dedicatória aprofunda a ideia de um conteúdo autobiográfico ao
sugerir que os poemas que o livro encerra estão impregnados pelas memórias
e vivências pessoais e coletivas do autor; poemas que revelam um contexto
retirado do plano referencial e perpassado por pessoas que compartilharam
histórias, narrativas e experiências em comum:
Ao falar sobre a relação entre o social e o literário e o processo que
as vivências pessoais do autor sofrem no interior do texto, Antônio Candido,
citando um crítico francês, frisa que estas relações são marcadas pela
individuação do artista no processo de criação tendo em vista que:
O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao
devolver à realidade. (SAINT BEUVE apud CANDIDO, 2000,
p.18)
Arte é comunicação expressiva e, como tal, revela realidades e modos
de ser, situando-se, devido a isso, além de noções e conceitos estanques e
delimitados que uma visão sociológica positivista poderia atribuir à obra.
Nesta perspectiva é que observamos na poética em estudo, a
impossibilidade de se estabelecer fronteiras precisas entre poesia como
experiência de linguagem e auto-representação e, num sentido mais amplo,
entre ficção e compromisso com a realidade. Temos que considerar, também, a
falibilidade que é a representação do real, mesmo quando há o
estabelecimento de um pacto de autenticidade perante os fatos narrados.
Levando em consideração estes fatores, podemos dizer que há na
poesia de Wasconcelos uma recriação poética do tempo passado, uma
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reinvenção lírica da memória, com seus encobrimentos e imprecisões, tão
presentes nos modos de ficção em que ocorre um impulso maior de
extravasamento do eu e a necessidade permanente de confissão e
testemunho.
Quando falamos de testemunho, há uma associação direta desta
palavra com a narrativa literária de cunho histórico. Entretanto, quando se trata
de poesia, notamos que há um diferencial considerável em relação à história
como campo de produção de conhecimento, espaço de problematização e de
crítica. Ou como diz Davi Arriguci Jr (2002, p.103):
A obra poética (...) não se reduz ao documento histórico, embora também o seja; ela é antes, como historiografia inconsciente, o registro atual do que se passou na interioridade de um homem durante seu tempo vivido e ganhou expressão correspondente. Conserva aquela substância viva que ficou do passado no presente intemporal da forma do poema.
O poeta não pretende invadir o campo do historiador. Como produtor
cultural sua arte não deixa de evidenciar aspectos históricos no complexo
espaço de composição que é a obra de arte, criando o que Arriguci chama de
“historiografia inconsciente”.
O poema abaixo é um exemplo representativo em que o social e o
estético, a forma e o conteúdo se agregam para compor um todo uno e
interdependente:
Silêncio com Pequi
Virgem Marina cheia de graça de carne e osso que tropeçou na vida. Crescida entre irmãos pouco disse ao mundo, engolindo sofreres pelos cantos da casa. Magra, como uma vara, poucos apostavam
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no seu destino. Marina cresceu, Deus lhe deu dois mamilos tímidos como seus olhos que nunca deram a janela em busca de pretendentes. “Dia virá” uma voz lhe dizia e o condão duma Fada Mesquinha apontou-lhe um príncipe: Geraldo Alto. O feitiço segurou Marina pelo pulso. A Prefeitura assentou-lhes em um lote perdido. Fizemos o barraco, cobrimos de palha, levantamos um fogão goiano. Era sábado, Dia Santo e Geraldo Alto vestiu seu terno de linho para o enlace. As palavras do juiz denunciaram a idade entre ambos: ele mais velho trinta anos. [olhos vexados Sob uma estampa De Jesus crucificado (impassível) Ao destino dos nubentes.] Fui escolhido por Marina para ser seu padrinho. Juntei Cruzeiros E dei-lhe um corte de cetim. Vi Marina, repetidas vezes, dentro daquele vestido ao lado de Geraldo Alto. Enquanto isso, toda a vila cobrava A intimidade do casal Que perecia alheio “às cousas deste mundo” como dizia Geraldo Alto.
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Nove meses em ponto, Nove anos e nenhum rebento. Geraldo Alto deixou Marina sem herdeiros para a divisão universal de seus bens. Anos depois A Fada Mesquinha apontou um novo amor para Marina. Marina Que talvez cozinhe Silêncio com pequi Em seu fogão goiano.
Como podemos notar, o poema remete às lembranças e vivências
relacionadas ao passado coletivo de uma determinada comunidade. Esta
posição é revelada pela presença de um eu narrador homodiégetico que se
posiciona como personagem testemunho e participante dos fatos narrados. A
atitude narrativa carregada de referências autobiográficas presente no poema,
mesmo quando recriada poeticamente, é capaz de fornecer
Descrições e observações sobre como vive ou como se viveu em um determinado lugar, num território, numa família, (...) em qualquer situação na qual os seres humanos trocaram narrativas e com elas aprenderam mutuamente [...].A própria vida é narrativa, enquanto é história, não podemos deixar de reconhecer que nossas vidas estão constantemente entrelaçadas com outras narrativas, com as histórias que narramos ou que nos são narradas das mais diversas formas, com as histórias que sonhamos ou imaginamos, ou que gostaríamos de poder narrar. (OLMI, 2006, p.15-32).
Desta forma, mesmo que se tratasse de uma narrativa de cunho
meramente ficcional, é difícil deslocar o poema “Silêncio com Pequi” do
contexto social de memória coletiva do qual foi retirado, pois a micro-fábula
narrada no poema reconstrói todo um modo de viver de um grupo em uma
determinada região. Grupo social inserido em um tempo no qual ainda existia a
prática dos casamentos arranjados; em que o dinheiro era o Cruzeiro; em que
os noivos usavam terno de linho e se presenteava as mulheres com cortes de
cetim. Um espaço habitado por gente simples que realizava mutirões para
construir casas de palha com fogão de lenha do tipo goiano, no qual eram
preparados alimentos com produtos locais como o fruto do pequizeiro.
51
Essa realidade expressa no poema “Silêncio com Pequi” só se faz
possível por intermédio da reconstrução de elementos pertencentes à memória
coletiva. Maurice Halbwachs (2006, p.39), afirma o seguinte:
Não basta reconstituir pedaço a pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de um mesmo grupo. Somente assim podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída.
No contexto de criação poética, os dados reconstruídos pela
memória coletiva são uma forma de conhecimento que aprofunda as reflexões
sobre a vida, pois a poesia, além de experimentação estética é conhecimento
do mundo e da natureza humana, é reconstituição de fragmentos que permite
simultaneamente um mergulho e um distanciamento “contemplativo” no grande
teatro humano.
É assim que, expressando capacidade imaginativa carregada de
humanidade e fortes ecos de memória coletiva, o poeta desmascara a
condição feminina no aspecto da submissão de mulheres fadadas a uma vida
exígua e obscura, com as quais se solidariza ao retratá-las em seus versos.
Para tanto, o poema se coloca como uma espécie de “antifábula” que começa
pela intertextualidade semântica e sonora do primeiro verso com a oração à
“Virgem Maria”. Trata-se de uma oração presente no chamado “Santo Rosário”
católico, cujos versos iniciais são traduzidos do latim para o português, assim:
“ Ave Maria, cheia de graça,/ o Senhor é convosco./ Bendita sois vós entre as
mulheres,/ e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...”.
Observamos nos dois primeiros versos, que a similaridade sonora
com a oração católica se dá pela regularidade do acento rítmico, sempre
presente nas vogais tônicas da segunda sílaba poética das palavras. No
terceiro e quarto versos de “Silêncio com pequi” há uma quebra dessa
regularidade rítmica que marca expressivamente a mudança de sentido,
reforçada pela presença da sonoridade mais grave e surda da vogal /o/, trazida
pelas palavras “osso” e “tropeçou”, sonoridade expressiva que se ajusta à idéia
52
de tristeza e sofrimento (MARTINS, 2008, P. 52) que a personagem (Marina)
vivenciará ao longo dos versos.
A intertextualidade com a oração conota ainda a ideia de submissão,
castidade e conformação que a imagem mítica de Maria representa no
imaginário religioso, androcêntrico e patriarcal. Mas, simultaneamente, a
imagem idealizada da “Santa” é contraposta à imagem de uma mulher “real” de
“carne e osso” que devido à submissão aos padrões sociais impostos “tropeçou
na vida”. Desta forma, a primeira estrofe serve como indício narrativo do
destino infeliz que a personagem terá ao longo da narrativa, um destino oposto
à referência mística e apologética que Maria recebe na oração católica: “
Bendita sois vós entre as mulheres,/ e bendito é o fruto do vosso ventre,
Jesus...”.
Nos versos seguintes, outros elementos contribuem para a
conotação do que podemos entender como antifábula, ou simplesmente
desmi(s)tificação, pois o eu feminino, Marina, ao invés de possuir uma Fada
Madrinha, tem uma “Fada Mesquinha”, personagem ironicamente “benfazeja”
que lhe dá um “príncipe” (Geraldo Alto).Ele, ao invés de jovem e belo como nos
contos fabulosos tem 30 anos a mais que ela, e é avesso ao contato íntimo, ou
seja, “às cousas deste mundo”, sendo por isso incapaz de dar-lhe um herdeiro.
Enquanto “Maria”, mesmo se mantendo “Virgem”, gerou um filho tido como
“Bendito fruto”, o esperado Messias bíblico.
2.1. Poesia e mediação social
Cada vez mais o eu poético que buscava reatar-se a uma realidade
perpassada pela memória atemporal da infância, defronta-se com um mundo
onde é possível distinguir valores dominantes em cada formação social,
percebendo “pontos de vista que servem de anteparo entre os homens e as
coisas ou os outros homens” (BOSI, 2000, 138). É neste contexto de
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identificação e distinção de valores que a poesia de Wanderley Wasconcelos
ganha um caráter mais prosaico e narrativo, em que:
Já não basta à palavra poética as mediações “naturais” da imagem e do som; entra na linha de frente do texto o sistema ideológico de conotações que vai escolher ou descartar imagens, e trabalhar imagens escolhidas com uma coerência e perspectiva que só uma cultura coesa e interiorizada pode alcançar. (BOSI, 2000, p. 138).
Mas, mesmo quando o processo de escritura poética é invadido pela
mediação do social, devemos sempre levar em consideração que os escritos
de ficção, objeto por excelência de uma história da literatura, ligados, portanto
a um contexto e um tempo social e histórico, são antes de tudo:
individuações descontinuas do processo cultural. Enquanto individuações, podem exprimir tanto reflexos (espelhamentos) como variações, diferenças, distanciamentos, problematizações, rupturas e, no limite, negações das convenções dominantes no seu tempo. (BOSI, 2002, p.10)
Desta forma a poesia como processo de linguagem, processo criador
de realidades supera as contingências referencias sem negá-las. No poema
“Jardim” (1999, p.18-19) ao transfigurar o ambiente social utilizando a alegoria
sugerida pelo título o poeta deixa entrever, sugere a existência de luta social e
consciência de classe:
‘ Jardim
O jardim burguês ganha formas. Canteiros antecipam a importância das rosas que se alastrarão arrogantes. Sem que se plante (eu tenho certeza!) O fedegoso daninho triunfará.
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O texto se constitui de dois períodos que se opõem semanticamente. O
primeiro composto por quatro versos e duas frases construídas na chamada ordem
direta, com entonações descendentes (MARTINS, 2008, p.85) que culminam no
ponto. Frases declarativas que metaforicamente falam da expansão da classe
burguesa, versos em que a imagem da rosa assume um sentido de negatividade e
prepotência.
O período seguinte, constituído por três versos, traz uma frase
exclamativa ascendente, na qual podemos notar uma inversão sintática ( “sem
que se plante”). O efeito da inversão atribui ênfase à condição de descaso
demonstrada pelo estamento social que o “fedegoso” representa, e que se
opõe àquela projetada sobre a “rosa”.
A alegoria presente no poema “Jardim” revela a existência de uma
um antagonismo social no qual o discurso autoritário dominante é confrontado
pelo discurso contra-ideológico, fazendo com que o eu poemático assuma o
lugar de participante de um grupo social. Persona que acredita na utopia de
uma sociedade dominada pela classe popular, ou num sentido mais marxista,
por uma sociedade sem divisão de classes, pois como diz o poema, “O
fedegoso daninho triunfará”.
Mesmo que o poema possa receber significados distintos no
processo de recepção, há em seu sentido uma tendência de engajamento à
causa de luta social, há a presença do que poderíamos chamar de
engajamento transistórico, numa perspectiva que transcende o conceito
sartreano de engajamento. A idéia de uma literatura engajada dentro dos
moldes professados por Jean Paul Sartre ganharam destaque no período do
pós-guerra, período durante o qual a Revolução Bolchevique se apresentou
como uma alternativa social de dimensão utópica frente às mazelas do
capitalismo e dos conflitos bélicos que arrasaram principalmente a Europa na
primeira metade do século XX.
Essa perspectiva de engajamento pode ser encontrada, segundo
Denis Benoît, nas reflexões de Barthes que entende o engajamento dentro de
uma possibilidade literária transhistórica, um comprometimento de
desvelamento do mundo “que se encontra sob outros nomes e com outras
formas ao longo de toda história da literatura” (2002. p.18). Na ótica desta nova
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concepção, mais abrangente e móvel, dada ao conceito de engajamento é que
Benoît (2002, p.17) vislumbra que “sempre existiu uma literatura de combate,
preocupada em tomar parte nas controvérsias políticas ou religiosas.”
Mas a atitude de transpor para o ato de escritura o conjunto de
valores éticos e ideológicos nos quais acredita e pelos quais ele, o poeta, se
define como individuo sócio-culturalmente situado,
não obscurece o sentido da arte ser, eminentemente, comunicação expressiva, expressão de realidades profundamente radicadas no artista, mais que transmissão de noções e conceitos. Neste sentido, depende essencialmente da intuição, tanto na fase criadora quanto na fase receptiva. [...] Justamente porque é comunicação expressiva, a arte pressupõe algo diferente e mais amplo do que as vivências do artista. (CANDIDO, 2000, P.22)
A presença de um discurso poético atravessado por um discurso de
cunho ideológico e social, também pode ser encontrado em “Ouvindo” (1999,
p.11). O poema utiliza o paralelismo frásico em quatro versos dos nove que
compõem o poema, alcançando um efeito rítmico e semântico inesperado de
intensificação do que quer dizer, sem dizê-lo explicitamente:
Ouvindo A vizinha pretende matricular-se no supletivo e reconquistar seu tempo perdido. A vizinha ouve repetidamente os Rolling Stones Minha galinha também ouve os Rolling Stones e cata migalhas invisíveis no chão. Minha galinha ouve repetidamente os Rolling Stones e por certo desconhece a gula dos nobres. Eu também ouço os Rolling Stones E acaricio um reumatismo no joelho esquerdo.
A repetição paralelística reforça ironicamente a ideia de imposição
cultural, capaz de fazer com que até uma galinha indiferente, preocupada
unicamente com sua subsistência ouça os Rolling Stones, construção antitética
que confronta a ambição burguesa ( “gula dos nobres”) ao ato da ave que cata
migalhas invisíveis no quintal.
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De maneira semelhante à do poema “Jardim” (1999, p.18-19), o eu
poético que aparece nos versos acima, situa-se num estamento social diferente
da classe burguesa, referida no poema como “nobres”. Outra característica de
“Ouvindo” é o uso da ironia. Para Bergson (1983, p.11), o riso que advém da
ironia presente na obra de arte, possui uma finalidade ética e geral que
ultrapassa a finalidade estética, pois como diz a máxima: o riso “castiga os
costumes”, e também “suaviza, enfim, tudo o que puder restar de rigidez
mecânica na superfície do corpo social”, sendo por isso capaz de questionar e
desmascarar os excessos que comprometem a vida individual e social.
Esse aprofundamento ideológico sinalizado na obra de Wanderley
Wasconcelos pode ser percebido no subtítulo Causos da Vida posseira que o
livro Aboio traz, num sentido mais amplo, é uma alusão às referencias sociais,
históricas e culturais vivenciada pelos moradores da região do Araguaia
pertencente à chamada Amazônia Legal, região ainda hoje marcada pelos
conflitos de terra que envolvem posseiros, grileiros e latifundiários, conflitos que
se estendem desde os anos 60 e 70, quando ocorreu um desmonte de glebas
e a expulsão de posseiros assentados nas terras, antes devolutas, da região:
Naqueles anos sangrentos – e ainda hoje - reinava um clima de medo no interior do país. Muitos posseiros, além de diversos outros tipos de trabalhadores, que migraram em busca do sonho da terra, foram expulsos, torturados ou assassinados. Um posseiro entrevistado relata como era feita a justiça dos matadores: “Os pistoleiros não podiam ver um homem na mata com a changa – o saco/mochila – nas costas, que passavam bala. Morria ali mesmo e ali ficava.” Foram denunciadas ainda práticas cruéis, como cortar as orelhas dos posseiros e entregá-las, mediante uma recompensa, aos patrões. (GUIMARÃES NETO, p. 2008).
Em vários trechos de Aboio surgem alusões à questão agrária, às
injustiças sociais e à luta pela terra: “e não deixou partilha / por causa do
latifúndio (“Aboio Embora”,1999, p,.30); “Glebado é assim, Otaciano da refrega
/ é Angelim, que enverga mas não quebra” (“Parecências”, 1999, p.36); “A poça
de sangue na calçada / nos arrieiro das praças de garimpo / já na aurora do
latifúndio” (“De Bonde com o Sonho”, 1999, 38). Na epígrafe que acompanha o
subtítulo Álbum & Álibi, do livro Aboio, encontramos o seguinte texto: “Vinte de
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julho de 1969, Neil Armstrong pisava no solo lunar. Dois homens no alpendre,
meu pai e eu, condenávamos as agruras do latifúndio ouvindo o cantar dos
galos”. Mesmo que surjam inseridas em um contexto fictício em que o real
ganha a citada dimensão imaginária perpetrada pelo “como se”, há nestas
alusões a intenção de denúncia do esquema de dominação ocorrido em Mato
Grosso pelos detentores do poder político e econômico.
Nesse ponto da poesia de Wanderley Wasconcelos, no qual afloram
versos “atravessados” por um discurso social localizado, eglodem aspectos de
confluência com a poesia de Dom Pedro Casaldáliga, pois as duas poéticas
levantam questões relacionadas ao mesmo período de ocupação da região do
Baixo e Médio Araguaia, período marcado pela violência e pelas injustiças
sociais. Mas vale ressaltar que a poesia do poeta torixorino não possui a
mesma dimensão de engajamento da poesia de Casaldáliga, obra de luta e
denúncia que tem como pano de fundo os princípios da Teologia da Libertação
(MAGALHÃES, 2002, 155), e que, apesar do forte conteúdo ideológico e à
vezes panfletário, não deixa de figurar entre as mais belas e expressivas da
literatura contemporânea produzidas em Mato Grosso.
O poema “Acampamento” (1999, p.36), que retiramos do livro Aboio:
Causos da Vida Posseira de Wandreley Wasconcelos, possui um discurso de
denúncia social, no qual a luta dos trabalhadores sem-terra é contraposta à
opulência das plantações de soja e algodão que, ao lado da pecuária,
representam as atividades de exploração econômica praticadas atualmente nos
latifúndios da região Araguaia:
Acampamento
O ônibus vence a rodagem feita de buracos De um de outro lado da cerca farpada o sojal maduro, apesar de alheio, é belo! Sem alegria, bestas apocalípticas segam alqueires de algodão que deixarão os portos mesmo que alguém morto de fome grite-Volte! Mais à frente o carro sacoleja as molas e pára, descem dois homens recém-libertos que chegam. Quando avançamos pelo latifúndio armado
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vimos que os meninos voltaram a jogar bola. Uma mulher costura sob um lonado encardido E, no círculo feito da tarde, aquela gente Plantou uma bandeira para insultar o vento E uma cruz para resistir quando for tempo.
A construção que vemos estampada em “Acampamento” dá ao
poema um caráter eminentemente imagético, porque não dizer, pictórico, feito
de quadros que se sobrepõe no olhar de um eu poemático comprimido entre os
cenários do latifúndio e do acampamento de camponeses sem-terra. Nos três
primeiros versos a sucessão de quadros, que por verossimilhança conduziriam
o leitor a vivenciar visualmente da realidade sugerida pelo título, é quebrada
pelo inusitado.
Utilizando uma técnica de escrita cubista os versos seguintes da
estrofe: “sem alegria bestas apocalípticas segam / alqueires de algodão que
deixam os portos /mesmo que alguém morto de fome grite-Volte!”, apesar de
estarem dispostos em linhas distintas, prefiguram uma frase única de pronuncia
continua e exclamativa que produz simultaneamente três quadros distintos. A
aglutinação dos verbos “grite” e “volte” é a materialização lingüística mais
aparente dessa simultaneidade.
Em uma dimensão do quadro projetado pela frase, o poema é
invadido pelo dado mítico que introduz a animização de objetos, ou seja, das
máquinas agrícolas transfiguradas em “bestas apocalípticas”. Visão aterradora
que sintetiza o sentimento de indignação e injustiça vivenciado pelo eu lírico,
intertexto com o tempo mítico referido na bíblia, tempo marcado pela tribulação
e sofrimento como mostra a tradução do Livro do Apocalipse, presente na
coletânea de literatura fantástica organizada por Flávio Moreira da Costa (2006,
p.21): “[...] O quinto [anjo] derramou sua taça sobre o trono da besta e o reino
da besta se cobriu de trevas, e as pessoas mordiam a língua de dor [...]”.
Semelhante ao quadro Campo de trigo com corvos, de Van Gogh, a beleza da
plantação de algodão é ameaça e encoberta pela presença do sinistro.
Na outra face tridimensional que a frase sugere, vemos o produto da
colheita remetido para navios, riqueza arrancada da terra a se deslocar sobre
a água, deixando na dimensão oposta da cena a máscara do desespero, cena
que por analogia poderíamos muito bem associar ao “Grito” estampado no
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quadro homônimo de Edward Munch, cenas que de forma comum são
carregadas de um tom dramático que transcende o social ao revelar o absurdo
da condição humana.
Os quatro versos seguintes constroem metonimicamente, pela sucessão
inversa estabelecida entre consequência e causa, a sugestão que ocorreu
recentemente um conflito entre posseiros e o latifúndio: “descem dois homens
recém-libertos que chegam”; “quando avançamos pelo latifúndio armado /
vimos que os meninos voltaram a jogar bola”, versos que instalam no poema
um clima de tensão e luta.
Nos últimos quatro versos o poeta retoma de forma mais evidenciada o
procedimento pictórico de construção do inicio, pois se dermos
tridimensionalidade aos planos de imagens lançados pelos versos vemos:
sobre o fundo de um fim de tarde uma mulher a costurar uma lona, no plano
posterior posseiros fazem um circulo em volta do mastro de uma bandeira que
tremula ao vento. É como se todo o poema tentasse criar um quadro vivo da
realidade retrata, utilizando para tanto, imagens que apesar de instalar o
inusitado e o imprevisível, não deixam de criar devido ao seu grau de
verossimilhança, índices consideráveis de referencialidade na imaginação do
leitor, pois como diz Alfredo Bosi “Formada, a imagem busca aprisionar a
alteridade estranha das coisas e dos homens. O desenho mental já é um modo
incipiente de apreender o mundo” (2000, p.20).
Há na poesia de Wanderlei visível grau de comprometimento com a
causa camponesa, advindo do fato do escritor ser filho de posseiros que
tentaram resistir à invasão do latifúndio sobre suas terras. Mas a transposição
de fatos sociais para poesia tem como armadilha o fosso da arte panfletária,
que mergulha o fazer artístico no lugar comum, colocando o valor histórico e
documental acima do estético. Em Wanderley Wasconcelos vemos uma arte
que mesmo revestida de intencionalidade ideológica e caráter denunciatório
frente à realidade que clama por mudança social, consegue realizar com
maestria a dialética: entre o plano externo e o plano interno presente na poesia.
Segundo Antonio Candido a única maneira possível de se penetrar criticamente
em obras desta natureza é:
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entrar pela própria constituição do discurso, desmontando-o como se a escrita gerasse um universo próprio. E a verificação básica a este respeito é que autor pode manipular a palavra em seus dois sentidos principais: reforçando ou atenuando a sua semelhança com o mundo real (1996, p.30)
No poema “Corumbiara” (1999, p.21) o autor utilizando a tragédia
real vivenciada por camponeses de Rondônia, consegue transpor para obra a
natureza do ocorrido de maneira totalmente renovada pelo fazer artistico. É
interessante observar como os detalhes históricos da tragédia são
desmontando e reconstruídos esteticamente. O episodio conhecido como
massacre de Corumbiara, ocorrido no município homônimo, ganhou
repercussão internacional e se deu quando:
centenas de famílias de sem terra ocuparam no dia 14 de julho de 1995 uma parte da fazenda Santa Elina e na madrugada do dia 09 de agosto, policiais e jagunços fortemente armados atacaram o acampamento, começando o massacre de Corumbiara. Posseiros foram executados sumariamente, mulheres foram usadas como escudo, camponeses foram torturados”. (MESQUITA, 2002, p. 41)
No poema, tanto o momento de confronto quanto as repercussões
deste ganham, a exemplo “Acampamento” analisado anterior, um procedimento
de criação no qual sobressai a construção imagética:
Corumbiara A floresta imperiosa observa a Lua conduzindo a terra Tombam cerejeiras no colo da noite da gleba itinerante. Amanhece Pende por fim um trapézio Da emboscada do dia. Corumbiara, Corumbiara teus órfãos choram e tuas araras vermelhas espantam corvos de seus despojos.
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No tribunal (se houver) A Justiça arrodiará o toco Desse tempo louco (Acorda, Florentino, que a tarde desce e um casal faz amor porque ninguém é de ferro.) John Cage pinte esta floresta De arcos e facões manifestos.
Retoricamente surge na primeira estrofe a animização da lua e da
floresta, criando implicitamente uma relação simbiótica e telúrica do homem
com a natureza, “posseiros” que habita a gleba assentada no colo da noite.
Mas a citada relação é ameaçada pelo tombar das cerejeiras, imagem que
serve de índice e prenuncio da tragédia que se aproxima, tragédia que tem
como pano de fundo social e ambiental, o avanço do latifúndio que destrói a
floresta para implantar fazendas de gado.
A estrofe seguinte usa metaforicamente a imagem do trapézio, como
objeto que permite saltos repentinos e perigosos, para retratar a emboscada
que tomou de assalto a gleba de posseiros assentada na floresta. Em seu
aspecto exterior a estrofe fala, ainda, da cotidianidade desses crimes na região
amazônica.
A repetição da palavra “Corumbiara” no primeiro verso da terceira
estrofe atribui ritmicamente a esta, um tom de lamento. A presença
contrastante dos corvos e araras promove visualmente a representação da luta
entre a morte e a vida que envolve que desponta nos conflitos pela posse da
terra. É interessante notar, também, o cenário de “pós-guerra”, “pós-front” que
a cena retrata como denúncia da presença de uma guerra silenciosa e
desigual.
A quarta estrofe, apesar da rima e do coloquialismo é a menos densa
do texto, e refere-se, quase que de forma direta, à questão da impunidade e
omissão da justiça em relação à questão agrária, estrofe em que sobressai o
aspecto histórico envolveu o caso, pois segundo informações trazidas pelo site
da CUT, mesmo com a repercussão internacional que o episódio teve:
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A justiça condenou apenas dois camponeses pela morte de dois policiais, e só. Em 2004, a Organização dos Estados Americanos (OEA) responsabilizou o Brasil pelo massacre e determinou o pagamento de indenização às vítimas, reconhecendo que o ato contra os camponeses foi uma operação de guerra em tempos de paz. Até hoje, nenhuma indenização foi paga. (PEDREIRA, CUT BRASIL, 2011).
Mas o que parecia um “esfriamento” da bela sequência imagética
que o poema vinha construindo, recebe um impulso desconcertante provocado,
primeiro, pelo corte semântico introduzido pela presença do erótico na quinta
estrofe. Segundo, pela interferência metalingüística da estrofe final, na qual o
eu poemático alude ao processo pictórico de construção do poema como um
quadro que poderia ser pintado pelo artista plástico e compositor de vanguarda
norte-americano John Cage (1912-1992). Quadro este em que índios e
camponeses - historicamente os principais prejudicados pelo processo de
ocupação da Amazônia e representados metonimicamente no poema pelas
imagens dos arcos e facões - manifestam uma atitude de força e luta frente as
injustiças.
O trabalho poético que poderia se constituir como um panfleto
corretamente ideologizado por uma proposta esquerdista de escrita,
sincronizado com o gosto fácil do leitor, se apresenta em “Corumbiara” com
uma linguagem inovadora que lança desconcerto sobre o “cartesianismo
poético”, pois como diz Antônio Candido “ a maioria dos leitores ainda tem a
sensibilidade encalhada na fase parnasiana” (2002, p.123), surgindo daí a
necessidade de poetas inovadores. Wanderley Wasconcelos é um desses que
demonstra capacidade de “carregar as tintas e contundir com certa violência a
inércia do nosso comodismo estético” (Ibdem, p.123)
Nos poemas do poeta torixorino os dados contextuais situados em
um topos identificável e a carga dos discursos ideológicos advindos da
biografia do indivíduo enquanto ser social, são deslocados de seu nexo
habitual:
A eficiência de tais poemas é devida ao fato de conservarem a referência ao mundo (que é sempre um imã para nossa percepção), mas promovendo a invenção de outro mundo, que
63
de certo modo o suplanta e satisfaz o nosso desejo de ir além do real” (CANDIDO, 1993, p. 121).
O processo encantatório que emerge na poética de Wandereley
Wasconcelos possibilita a criação de um “universo fictício (cuja lei é a
ordenação arbitrária de componentes convencionais) (CANDIDO, 1993, p.121).
No universo criado pela poesia o “mundo é desfeito e refeito”, e mesmo que
apresente relações consideráveis com o mundo natural e a realidade sócio-
cultural que envolve os homens, é um universo autônomo com plena
capacidade de transcender o chão das referencialidades presente em sua
constituição.
2.2. Tempo, morte e transcendência
É impossível a uma poética que possui um eixo temático focado na
questão tempo-memória, se isentar da abordagem metafísica de natureza
ontológica e existencial, visto que “o ser e o tempo” são instâncias
inseparáveis, da mesma forma que “o eu e o mundo” se constituem
mutuamente. Na poética de Wanderley Wasconcelos o trabalho de recriação
da vida, a construção de um eu lírico a partir da memória, termina por projetar
as questões fundamentais que permeiam a condição humana, visto que “não
pode haver grande poesia que não seja metafísica” (SANT’ANNA, 1972, p.33).
Na poética aqui abordada, a configuração de um eu mnemônico que
busca se religar a essência e a identidade perdida de seu passado, de um eu
lírico que reflete as contingências de um determinado contexto social e
ideológico, ganha ao longo de seu percurso temporal um sentido de
maturidade. Uma modulação em que o eu poético, criado ao longo da obra,
passa a refletir destacadamente sobre as questões metafísicas do Ser.
Como dissemos a abordagem distinta destas modulações do eu
temporal tem a finalidade de sistematizar e facilitar o trabalho de análise critica,
pois estes aspectos nada mais são do que configurações de um mesmo ser,
tendo em vista que na dialética entre o “eu e o mundo”, o ser metafísico
presente na construção do eu poemático, não se separa do ser “social”. E
como o produto de mimese, feito a “imagem e semelhança” de seu criador (o
64
poeta), ele também é constituído pela emergência de um diálogo constante
com o mundo, tendo em vista que “o mundo não é um objeto que existe “fora
de nós”, [...] o mundo nunca é algo do qual possamos fugir e nos confrontar
com ele” (EAGLETON, 2006, p. 94).
No trabalho de análise deste subcapítulo faremos uso dos conceitos
de “Dasein”, “autenticidade”, “inautenticidade”, “finitude” e “transcendência”
retirados de O ser e o tempo (1988) de Heidegger, com apoio de teóricos que o
estudaram como Benedito Nunes (2002) e Michael Inwood (2004). É
importante frisar que a abordagem do Ser em Heidegger é essencialmente
temporal, nela o Ser (Dasein) é aquele que antecipa sua morte” (INWOOD,
2004, p. 20), fato que se coaduna, como veremos, à presente análise crítica.
Esclarecemos que a aproximação entre poesia e filosofia na obra de
Wanderley Wasconcelos que trazemos aqui, não se deve ao fato do poeta
tentar introduzir em sua obra idéias e reflexões filosóficas extraídas da obra
deste ou daquele filósofo, mas, sim, porque algumas configurações e
temáticas, presentes nos versos do poeta torixorino encontram aproximação e
diálogo natural, e até explicação, quando vista sob a luz das idéias de
Heidegger. É bom que se diga, também, que apesar da autonomia que a
Literatura goza nada impede que filosofias que emergiram em uma
determinada época, reflitam ou apareçam vinculadas como substrato de uma
obra. Em relação a essa aproximação T.S. Eliot diz que “Dante tinha atrás de si
um sistema coerente e belo (São Tomás de Aquino) enquanto Shakespeare
era secundado por pensadores inferiores ao seu talento (Sêneca, Montaigne,
Maquiavel)” (SANT’ANNA, 1972, P.31).
No cerne da problemática metafísica que envolve a obra de
Wandereley Wasconcelos, encontramos a questão da morte e os
desdobramentos que esta certeza, esta condição dada de existência provoca
no eu poético. Em princípio, ela se mostra como algo exterior ao eu, que
empreende uma viagem no tempo, é a morte alheia, ambientada num espaço
coletivo que comove e revela a finitude do homem, um drama que, apesar de
sua densidade, termina por se dissipar nas amenidades e falácias do dia-a-dia:
há uma cotidianização da morte.
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No poema abaixo o personagem, “padrinho carpinteiro”, é quem mais
sente e se comove com as mortes que ocorriam no povoado, devido ao oficio
que exerce, de fabricante dos esquifes, o “feitor de lacres emudecidos”, “feitor
de portas” para o desconhecido, “feitor de destinos” certeiros:
Margem Esquerda Para Manoel Pereira Barros Cimo azulado à esquerda do rio. Rio de sombreados quintais de cheiro adocicado no silêncio dos mangueirais na astúcia dos almanaques da sorte, fortuna e saber amarelecidos. Vinha da oficina o zoar do serrote e o canto lento do padrinho carapina. Feitor de si feitor de portas feitor do destino. Homem de formas feitor de lacres emudecidos assim como fez um baú Carmesi, para a feiticeira Candinha. Desdita feliz por se viver distante, distante de todas as partes do mundo. Pobre recanto de não se passar ninguém. Tudo era passado O presente empurrava-se. Quando morria alguém a tristeza zoava nos serrotes e batia-se mil pregos e o padrinho quase mudo. A cidade enlutava-se pelo transcurso da vida.
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A morte nos deixava a todos solitários por tristes semanas amenizadas com as falácias da Barbearia Real. Malgrado os infortúnios a perua Willys partia às oito em ponto. Partia para Goiás.
O poema é marcado por um ponto ao final de cada estrofe, fato que
proporciona uma suspensão provisória do andamento sonoro, criando com isto,
uma modulação rítmica. Essa suspensão, após a qual segue outra estrofe e
assim sucessivamente, coaduna-se à sugestão de continuidade da vida que o
texto apresenta como ideia principal em sua construção discursiva.
Em “Margem Esquerda” observamos, também, que o título e o
primeiro verso, “Cimo azulado à esquerda do rio.”, mostram imageticamente a
existência de margens opostas, separadas por um rio e, por conseqüência,
trazem a ideia de travessia, viagem e passagem de um ponto ao outro. Na
mitologia grega, a transposição da vida para a morte se dá pela travessia do rio
Cócito, onde os passageiros são conduzidos pelo barqueiro Caronte
(BULFINCH, 2010, p. 42).
A sugestão de transposição de tempo e espaço ainda está presente
nos trechos: “Pobre recanto / de não se passar ninguém.”, “Tudo era passado /
O presente empurrava-se”, “A cidade enlutava-se / pelo transcurso da vida”.
São frases que, somadas à adjetivação, atribuem ao poema um tom de
entristecimento, de esmaecimento das coisas ao redor (“fortuna e saber
amarelecidos”, “canto lento”, “silêncio dos mangueirais”, “lacres emudecidos”,
“viver distante”, “Pobre recanto”, “padrinho quase mudo”) criando uma
ambientação de luto, perda e recolhimento que envolve a localidade e seus
habitantes: “A morte nos deixava / a todos solitários”, emoção que
hiperbolicamente contamina as ferramentas e o trabalho do tio carpinteiro:
“Quando morria alguém / a tristeza zoava nos serrotes”,
Mas o sentimento coletivo da morte, atualizado a cada nova perda,
não impede os ritos do cotidiano: a fabricação das urnas, os encontros na
67
“Barbearia Real”..., a chegada da “perua Willys”, “tristes semanas amenizadas”.
E, assim, a partida que se sobressai ao final do poema não é a de transposição
da vida para a morte, mas a rotineira, pontual, que servia de condução aos
moradores locais: “a perua Willys partia/ às oito em ponto.// Partia para Goiás.”.
A consciência da vida como viagem em direção à morte vai se
consolidando como uma ameaça à própria existência do eu poético, que
testemunha os fatos do cotidiano à sua volta. Mas, por outro lado, a
observação do destino comum dos homens traz a consciência de que o eu
testemunho ainda é um sobrevivente. O poema “Aboio Urbano” (1999, p. 27)
fala dessa condição do ser que, pela memória e narração da morte alheia,
estende-se e se presentifica no aqui e agora:
Aboio Urbano Theodomiro morreu de acidente E a surpresa provocou ultraje à parentela. Naquele átimo Mandaram chamar Baiano que nos quatro alto-falantes gritou seu nome (Theodomiro!) para que todos soubessem de sua passagem miúda entre nós, sobreviventes.
A aliteração das consoantes oclusivas [t] e [d] que aparecem
acentuadas no poema nas palavras “acidente”, “ultraje”, “parentela”,
“mandaram”, “gritou”, “todos”, devido ao seu traço explosivo, sugerem a ideia
de ruído duro e seco, pancada (MARTINS, 2008, p.54) atribuindo maior
dramaticidade à morte trágica de Theodomiro, referida no poema. Tal efeito
sonoro, foco construído em torno do personagem, projetam em “Aboio Urbano”
a sugestão de distanciamento entre vida e morte, entre aquele que se foi e os
que ficaram, propiciando uma sensação de adiamento da própria morte do eu
poemático.
A temática do testemunho da morte de pessoas do seu convívio é
constante na obra do poeta, a exemplo de poemas como “Aboio” (1999, p.29):
“...Sem gemido pro mode ofensa / E sem medo da morte / Ti Lôra seguiu
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passarinho / pro céu que ele mesmo, / de esguela, não acreditava...”; “Adeus a
P. Neves” (1999, p.38): “...Anacleto P. Neves / está morto. / Seu corpo cruza o
portal / e no seu peito um punhal....”. A presença recorrente desta temática traz
como implicação, um aprofundamento no eu poético do sentido trágico que
envolve a natureza humana.
Ao sentir e perscrutar a morte, o mundo e os homens ao seu redor, o
eu representado se percebe imerso em sua existência, vê-se como ser-no-
mundo, “não simplesmente no sentido de ocupar um lugar ao lado de outras
coisas, mas no sentido de interpretar e engajar-se continuamente com outras
entidades e com o contexto em que estas se acham, o “ambiente” ou o “mundo
ao nosso redor” (HEIDEGGER apud INWOOD, 2004, p.33).
Nesse sentido, a consciência vai ganhando maturidade ao longo da
trajetória criada. O mesmo olhar que perscruta a existência finita alheia, por
mais que fuja da certeza de sua morte tentando disfarçá-la no anonimato da
sua gente, por mais que se esquive dela como possibilidade própria, percebe
que
está predeterminado pelo seu fim. Basta o homem viver, que já é bastante velho para morrer, reza antigo provérbio alemão. Então a morte é esse fim “como possibilidade da impossibilidade”. Estamos diante do não-ser como essência da existência. ( NUNES, 2002, p.21).
É desta forma que se apresenta para o eu lírico, que se projetava
para o exterior, para o passado pessoal e alheio, um novo foco em direção às
possibilidades de seu próprio ser no tempo. Na primeira estrofe do poema
“Busca” (2004, p.10) observamos a presença de um ser cuja consciência
temporal ultrapassa a percepção própria dos homens de senso comum:
Passo por homens que passam São objetos, não conhecem retorno. Seguem o caminho dado segurando o presente pela cauda.
Marcados pela aliteração das sibilantes /s/ e /c/ , os versos
apresentam a sugestão visual de um personagem em movimento que passa e
vê a figura de outros homens. De forma ambígua, o verso inicial ganha sentido
69
metafórico de referência à temporalidade como condição humana, sentido do
ser como portador de existência finita e provisória: “passo por homens que
passam”.
No segundo e no terceiro versos, o eu lírico se refere aos homens
observando-os como entes (objetos), ou, como diria Heidegger (2004, p.38), o
ser simplesmente-dado, mera coisa, um ser dentro-do-mundo, e não de fato
humano, no sentido de ter “suas próprias opiniões” e de ser “senhor de si
mesmo”. O filósofo distinguiu o eu “autêntico” do “inautêntico”. É autêntico “à
medida que pensa por si, é a pessoa que é, ou é fiel ao seu verdadeiro”, o que
não precisa implicar em excentricidade. Também a “prática padrão pode ser
escolhida autenticamente”. Por outro lado, é inautêntico aquele que faz algo
“simplesmente porque é isso que se faz” (2004, p.33) e, conclui Heidegger, é a
condição normal da maioria de nós na maior parte do tempo”.
Nos dois últimos versos da estrofe o eu lírico apresenta consciência
de sua irreversibilidade temporal, consciência fundamental à construção de sua
autenticidade, de seu distanciamento em relação aos homens alheios a própria
morte, que “seguem o caminho dado / segurando o presente pela cauda”. Esta
metáfora, que ganha um grau de iconicidade ao designar indiretamente outra
situação semelhante, ampliando uma estrutura paralela (RICOEUR, 2005,
p.291), retrata o drama humano frente à inexorabilidade da passagem do
tempo e a tentativa ilusória dos homens que tentam reter o presente. Tempo
que, ao ser inquirido pelo processo mental de linguagem, já é passado. Os
versos tomam a imagem de um animal fugidio, que em vão os homens tentam
segurar pela cauda, colocando-a em analogia com o presente que se projeta
velozmente para o futuro.
O poema “Roncador” (1990, p.7) é um exemplo significativo da
temática existencial focada na paisagem interior que o eu lírico
confessionalmente vai desvelando:
Roncador
Cerca-me a serra e cerco-me. E nesta serra, em seus labirintos encerro-me.
70
A aliteração construída pela repetição dos fonemas /s/ e /r/, aliada à
homofonia que envolve os verbos “cerca-me”, “cerco-me”, “encerro-me”, e à
reiteração do pronome “me”, criam no poema uma cadência sonora e
existencial, um movimento de ida e volta que transita da paisagem externa
(“cerca-me a serra”) para a paisagem interna (“cerco-me”), e desta para aquela,
fundindo assim as imagens que aparecem no poema. São elas: a paisagem da
serra do Roncador, o eu lírico que a contempla e o sentimento de falta de saída
e enclausuramento que a paisagem do labirinto suscita no eu lírico. A
aliteração e a homofonia intensificam a quebra de barreiras e a fusão imagética
e semântica entre sujeito e objeto. A aliteração confere, ainda, à elocução do
poema, um ritmo repetitivo e contínuo, semelhante ao arfar proporcionado pelo
sentimento de angústia.
A consciência da finitude humana, do não-ser, é inseparável do
conceito de angústia. Em vários títulos da poética wasconceliana emergem
sentimentos de tédio, angústia e silêncio, como percebemos nos seguintes
versos:
As minhas tardes não são elas corriqueiras são bem-vindas ao tédio, ao laço da agonia. As minhas tardes são fúteis, são claras e nego o pranto às escondidas, a vida em demasia. (“Tartédio”, 1990, p. 8).
Preterido passo meus dias compulsando o tempo resvalo abaixo onde tracei por conseguinte o sulco medular do meu silêncio. (“Caminho”, 1999, p.9) Ressente a tarde e o ventre caído são idos de inércia e tempo de quem desanda lento. (“Auto retrato”, 1999, p.18)
Progressivamente, a descoberta da tragédia humana provocada
pelo inexorabilidade do tempo ( “As minhas tardes são fúteis...”; “pretérito /
71
passo meus dias”; são idos / de inércia e tempo / de quem desanda lento”) vai
se projetando na realidade construída pelo tecido poético, uma descoberta que
vai se tingindo de um tom mais dramático e corrosivo:
“(...) estamos apodrecendo no baú de nossos valores.
Florescem as begônia O tempo e os tamarindos passam Já são quase três. (“Tempo”, 1999, p.9-10)
É na angustia que Heidegger situa a possibilidade de transformação
da existência humana, a oportunidade de o homem se livrar da inautenticidade.
Quando o homem é tocado pela angústia, esta propicia uma maior clareza de
consciência de sua transitoriedade, preocupação que o faz compreender a si, a
sua natureza essencialmente temporal. Desta forma “a angústia pode ser
compreendida como a experiência original do tempo humano, o tempo vivido,
base da própria existência” (GAMA, 2002, p.125).
No poema “Foto 3X4” (2006, p.29), a consciência que o eu adquire
ao refletir sobre o tempo, toma a forma de negação do passado, afirmação de
uma vida no presente que se projeta em direção a um futuro duvidoso e
inevitável:
FOTO 3X4 Discorro o cerco ao rumo incerto em que me perco. viver é agora todo o resto joguei fora.
O poema apresenta, na primeira estrofe, uma simetria rítmica
proporcionada pelo acento presente na segunda sílaba de cada verso, e pelo
uso do homeoteleuto, eco proporcionado pela similaridade sonora das
palavras: “cerco”, “incerto”, “perco”. A associação dos recursos fônicos e do
substrato semântico das estrofes ao título, resultam numa sugestão de
percurso de tempo e existência empreendidos pelo eu poemático, pois a
72
imagem dos diversos retratos no formato 3x4, ao longo da vida, possibilitam
uma recapitulação do tempo vivido, a compreensão do ser temporalizado entre
a vida e a morte.
Deste modo, a temporalidade, “enquanto condição da existência
como poder-ser, é a possibilidade da possibilidade.” (NUNES, 2002, p. 31). Ou
seja, a substância do homem é a existência e o Dasein é temporal, logo existe
apenas “temporalizando-se, entre nascimento e morte” (id. P.31). O Dasein
toma consciência que a temporalização constitui sua própria existência e sem o
seu Ser não haveria mundo. Desta forma ele se descobre como Dasein que
perfaz um trajeto demarcado no tempo, um Ser cuja “história” se mescla à sua
própria realidade espiritual. É importante frisar que para Heidegger a “história”
tem um sentido diferente da história vista numa perspectiva positivista, no
esforço, sempre presente em sua obra, para renovar as formas de expressão
em filosofia ele faz:
uma distinção entre Histoire, que significa aproximadamente “o que acontece”, e Geschichte, que é”o que acontece” experimentado como autenticamente significativo. Minha própria história pessoal só é autenticamente significativa se aceito a responsabilidade pela minha própria existência, assumo minhas possibilidades futuras e vivo constantemente consciente de minha morte futura. (EAGLETON, 2006, p.99)
A trajetória do eu representado na poética wasconceliana ganha uma
perspectiva considerável de análise quando submetida à teoria do Ser presente
em Heidegger, perspectiva em que a questão da morte possui importância
fundamental para a elaboração de vários conceitos, como veremos adiante.
Na poética em foco, questão da morte emerge como tema
recorrente. Aos poucos a morte, que se apresentava como uma limitação
fundamental, no contexto da realidade expressa em linguagem poética, adquire
um sentido de transcendência, momento em que o eu lírico passa a encará-la
como um problema próprio da existência e não como o fim desta. É no campo
de luta com a palavra que a morte vai perdendo o caráter aparente de
negatividade, no sentido comum de destruição física da vida.
Em contraposição à realidade provocada pela corrosão temporal,
eclode na trajetória do personagem um movimento em direção à
73
transcendência dessa realidade. A certeza trágica do destino humano é
invadida pelo desejo de adiamento e de “eternização” do ser. Há um
evidenciamento da tensão e dialógo entre vida e morte, ser e não-ser.
Em ”Aboio Final” (1999, p.32), ao estabelecer uma analogia entre a
morte de um abacateiro e de sua própria condição, o eu representado
demonstra a necessidade de adiamento e preparação frente ao inevitável. No
poema, a familiaridade com a morte e a aceitação desta, como processo
natural da condição humana, proporciona ao personagem um vínculo e a
necessidade de maior atenção ao espetáculo da vida que perpassa as
pequenas coisas:
Aboio Final Cá, em minha observância acompanho o morrer de um abacateiro. A folha amarela despenca de modo calado. Pedi a Nosso Senhor Jesus Cristo que quero assim, com jeito, contando os dias e lentas encenações das coisas, gentes e bichos. Devagar e não de repente. Quero tempo para a despedida Porque vivendo (só vivo) E não tenho tempo para adeuses.
A modulação sonora criada pela disposição dos versos e pela
pontuação (uso dos pontos na primeira estrofe, pontos e vírgulas no segunda,
e do parênteses na terceira) proporcionam uma interrupção sequencial na
entonação do poema, diminuindo a possibilidade de uma leitura direta e menos
compassada do texto. A expressividade causada por este procedimento possui
um nexo semântico com os versos que falam sobre o distendimento da vida e
a necessidade de ‘sorver” e observar com atenção seu transcorrer: “ A folha
amarela despenca de modo calado”, “contando os dias e lentas encenações”,
“devagar e não de repente”.
A compreensão da morte como processo natural da existência e a
busca de transcendência do sentido trágico e da angústia que ela representa
presente “Aboio Final”, aparece também no poema “Aboio Menino” (1990,
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p.26), poema que evidencia a presença de um ser que sobrevive na
experiência artística da linguagem.
No diálogo que o eu-autor-narrador sugere estabelecer com outro
representado pela figura do filho, inferimos que, mesmo reconhecendo sua
incapacidade de decifrar o mistério da vida e de conter o absurdo da morte, o
eu poemático afirma sua permanência no futuro na figura de seu filho, e
também de seus descendentes, mas é na concretização do trabalho de
escritura poética que reside a possibilidade de eternização e permanência do
“si-mesmo”, pois é nela que o poeta projeta sua trajetória real e fictícia, suas
inquietações existenciais, os rastros de sua realidade exterior e subjetiva. É na
obra de arte que ele se projeta além de si mesmo, além do seu própria tempo.
Vejamos o poema:
Aboio Menino O que é a vida, meu filho? Teus óculos, teus olhos imprimem uma resposta abstrata. estamos sós, somos dois homens e temo absurdamente pelos teus pés. A minha geração foi maluca e olhando assim para você, vestido em sua juventude, não ouso pensar em caduquice. Com você renovei meus dias e os teus filhos renovarão os teus e, assim, a eternidade baterá à nossa porta, sempre.
A conquista da “eternidade” à qual o poeta se refere em “Aboio
Menino”, como dissemos, é uma tentativa propiciada pelo próprio fazer poético.
De acordo com Jeanne Marie Gagnebin, o ato de escritura de um livro é
sempre acompanhado pela esperança que o escritor nutre de
deixar assim uma marca imortal, que inscreve um ato duradouro no turbilhão das gerações sucessivas como se seu texto fosse um derradeiro abrigo contra o esquecimento e o silêncio , contra a indiferença da morte. (GAGNEBIN, 2006, P. 112)
75
E assim podemos inferir que linguagem poética funciona na obra de
Wasconcelos como receptáculo da memória, aprisionamento do tempo vivido
e construção do tempo idealizado, ou como diz Afonso Romano Sant’Anna
(1972, p. 197-98):
Poesia é o que fica depois do fluxo, depois da vida. É a derrota do tempo, porque é uma forma que se intemporalizou ao sintetizar vida e morte e ao somar perdas e ganhos de um modo dialético. (...) Entenda-se, portanto poesia como a vida retirada da vida, a vida sobrante à vida, a vida que se estrutura além da morte. Aquilo que resiste e persiste.
Devido à possibilidade de sua obra se perpetuar no tempo,
carregando consigo sua alma original, como um pedaço reinventado de si
mesmo que insiste em sobreviver, é que o poeta deixa sua marca incomum,
salvando, pelo ato de escritura, sua memória, suas percepções e o
testemunho pessoal de seu tempo. Carregado pela individuação e intuição
inerentes ao ato de escritura poética, este testemunho ganha, no processo de
linguagem, a capacidade plena de transmutação do mundo, de transcendência
dos níveis de representação e analogia do real, para apreender o indivisível
que há por traz do ser e da palavra.
76
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho é apenas a abertura de uma pequena clareira
na selva densa dos estudos que se fazem necessários para o conhecimento e
a descoberta da importância que a obra do poeta Wanderley Wasconcelos
representa no cenário dos escritores que despontam em terras mato-
grossenses. Um poeta que utiliza o tempo-memória como ponto de partida para
construção de uma metáfora poética que utiliza o individual e o particular para
se projetar em direção ao universal.
Dimensão que é alcançada por intermédio de uma escrita concisa,
que incorpora procedimentos das vanguardas literárias que deram impulso a
poesia modernista e contemporânea produzida no Brasil e na América Latina.
Procedimentos que digerem a “língua” da metrópole acrescentando a esta, não
apenas os elementos autóctones da historia e do imaginário vivenciados nos
trópicos americanos, mas uma atitude que caminha entre a submissão e a
transgressão do código assimilado, entre a obediência e a rebelião, por que
não dizer, uma literatura que realiza o ritual antropófago que é, numa visão
ampla, a literatura latino-americana.
A tentativa de Wasconcelos de criar uma poética com indícios
autobiográficos que apontam para a existência do percurso temporal de um eu,
pode ser compreendida de diversas perspectivas de leitura, em especial
àquela que leva em conta a presença de um si mesmo reconfigurado. Poética
na qual o jorro inesperado da memória, a realidade nativa, as inquietações
existenciais, as projeções interiores e os mitos são utilizados como matéria de
escritura no jogo de individuação da experiência estética. Constituindo, assim,
uma dimensão em que o real e o ficcional encontrem apoio mútuo para a
construção do plano imaginário que dá autonomia a obra. Jogo em que é
possível recuperar pela imaginação e pela fantasia a essência de um passado
que se julgava perdido, passado novo e presentificado, inesgotável e
eternizado pela capacidade poética de criar mundos e realidades insuspeitadas
e indizíveis.
77
Apresento, então, Wanderley Wasconcelos, poeta com grande
talento literário, escritor que navega em sua humilde canoinha contra a
correnteza dos tempos atuais, tempo que tudo tenta transformar em mesmice,
tempo que tenta ocultar o poder extraordinário que a poesia possui de religar o
homem à sua natureza mais profunda e essencial.
Pela insistência em se fazer ouvir por meio de livros quase
artesanais, é um arauto de resistência cultural instalado no coração do
Araguaia. Poeta que, pela qualidade do conjunto da obra publicada e inédita,
com certeza merece reconhecimento e uma maior visibilidade editorial e
acadêmica.
78
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