ficha - 10º ano - português - alma - manuel alegre - jogo de futebol

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Ficha de Trabalho Língua Portuguesa Prof.ª Paula Marçal 1 5 10 15 20 25 30 35 40 Era dia de comício da oposição em Alma, presidido por minha avó materna, Beatriz, em representação de meu avô Geraldo Pais, chefe da Carbonária e fundador da República. (…) Só que naquele dia não havia apenas o tão esperado comício da oposição. À mesma hora, o Beira-Rio jogava contra o Vista Alegre. Por isso de nada serviram os rogos de minha avó e os ralhos de minha mãe. Nada me fazia ceder. E por nada deste mundo, muito menos por causa de um comício, eu estava disposto a perder o jogo no velho campo de São Cristóvão. Meu pai, menos por falta de coragem do que por filosofia de vida, não estava para lhes fazer frente. Mas nesse dia senti que secretamente admirava a minha resistência. E às duas por três, perante tal insistência de uma e de outra, dei por mim a perguntar-me porque raio é que, afinal, eu não havia de ser, também, monárquico? Meu pai ouvia, calado. De quando em vez piscava-me o olho. E a minha avó porque tens de ir, e a minha mãe era o que faltava que não. Até que subitamente meu pai explodiu: Não vai, não quer ir não vai, ele é meu filho e quem decide sou eu. Vamos os dois ao jogo. E fomos. Aos vinte minutos, já o Beira-Rio estava a perder por três a zero. Zeca Sucateiro, empoleirado na vedação, gritava para o Armandinho Alfaiate, que jogava a ponta esquerda: És um entrevado. Ao que o outro respondia: Entrevada era a tua avó. Diga-se de passagem que naquele tempo ainda um jogador podia saltar para fora do campo e ir às fuças à assistência. Era uma cena que se repetia: Zeca Sucateiro atezanava Armandinho e este, quando menos se esperava, ferrava-lhe dois tentos no focinho. Foi o que aconteceu ao findar a primeira parte, continuava o Beira-Rio a levar três. Meu pai, além de campeão de atletismo, tinha sido jogador de futebol da Académica e possuía o diploma de treinador. Quando as coisas estavam a correr mal, o que era quase sempre, pediam-lhe ao intervalo para ele ir às cabinas tentar virar o resultado. Ele chegara a treinar o Beira-Rio, mas tinha-se chateado por causa de Zamora, o guarda-redes, (meu pai dizia keeper), assim chamado por imitar o outro, o grande Zamora da seleção de Espanha. Zamora, ou seja o Firmino, tinha qualidades. Era o que o meu pai dizia. O pior era o feitio. Sempre que Manuel Tinoco ia para trás da baliza, a coisa dava para o torto. Não que não gostasse de Zamora, mas tinha mau perder. Já com a seleção era a mesma coisa. Ao menos

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Page 1: Ficha - 10º ano - Português - Alma - Manuel Alegre - Jogo de Futebol

Ficha de Trabalho

Língua Portuguesa

Prof.ª Paula Marçal

1

5

10

15

20

25

30

35

40

Era dia de comício da oposição em Alma, presidido por minha avó materna, Beatriz, em

representação de meu avô Geraldo Pais, chefe da Carbonária e fundador da República. (…)

Só que naquele dia não havia apenas o tão esperado comício da oposição. À mesma hora,

o Beira-Rio jogava contra o Vista Alegre. Por isso de nada serviram os rogos de minha avó e os

ralhos de minha mãe. Nada me fazia ceder. E por nada deste mundo, muito menos por causa

de um comício, eu estava disposto a perder o jogo no velho campo de São Cristóvão. Meu pai,

menos por falta de coragem do que por filosofia de vida, não estava para lhes fazer frente. Mas

nesse dia senti que secretamente admirava a minha resistência. E às duas por três, perante tal

insistência de uma e de outra, dei por mim a perguntar-me porque raio é que, afinal, eu não

havia de ser, também, monárquico?

Meu pai ouvia, calado. De quando em vez piscava-me o olho. E a minha avó porque tens

de ir, e a minha mãe era o que faltava que não. Até que subitamente meu pai explodiu: Não

vai, não quer ir não vai, ele é meu filho e quem decide sou eu. Vamos os dois ao jogo.

E fomos.

Aos vinte minutos, já o Beira-Rio estava a perder por três a zero. Zeca Sucateiro,

empoleirado na vedação, gritava para o Armandinho Alfaiate, que jogava a ponta esquerda: És

um entrevado. Ao que o outro respondia: Entrevada era a tua avó. Diga-se de passagem que

naquele tempo ainda um jogador podia saltar para fora do campo e ir às fuças à assistência.

Era uma cena que se repetia: Zeca Sucateiro atezanava Armandinho e este, quando menos se

esperava, ferrava-lhe dois tentos no focinho. Foi o que aconteceu ao findar a primeira parte,

continuava o Beira-Rio a levar três.

Meu pai, além de campeão de atletismo, tinha sido jogador de futebol da Académica e

possuía o diploma de treinador. Quando as coisas estavam a correr mal, o que era quase

sempre, pediam-lhe ao intervalo para ele ir às cabinas tentar virar o resultado. Ele chegara a

treinar o Beira-Rio, mas tinha-se chateado por causa de Zamora, o guarda-redes, (meu pai

dizia keeper), assim chamado por imitar o outro, o grande Zamora da seleção de Espanha.

Zamora, ou seja o Firmino, tinha qualidades. Era o que o meu pai dizia. O pior era o feitio.

Sempre que Manuel Tinoco ia para trás da baliza, a coisa dava para o torto. Não que não

gostasse de Zamora, mas tinha mau perder. Já com a seleção era a mesma coisa. Ao menos

levassem as cores da Monarquia, dizia o Manuel Tinoco, que era republicano, fumava charuto

e nunca tirava o chapéu à diplomata, nem mesmo para dormir, diziam as más línguas de Alma.

Quando a seleção levava nove da Espanha, era assim que ele desabafava: Ao menos vestissem

a camisola da monarquia, a da República não. E o mesmo acontecia sempre que, no seu

entender, Zamora dava um frango. O que, diga-se em abono da verdade, frequentemente

acontecia. Então, Manuel Tinoco começava a roer o charuto e dizia-lhe por detrás da baliza:

Ao menos tira a camisola, não sujes as cores da tua terra. Zamora, isto é, o Firmino, ouvia uma,

duas, três vezes. Mas às tantas não se aguentava: despia a camisola e desatava a correr pelo

campo fora. Meu pai, que juntamente com seu irmão Tiago, tinha sido campeão nacional de

estafeta de quatro por cem, levantava-se do banco e sprintava até o agarrar. Às vezes tinha de

lhe pregar um par de estalos. E Zamora lá voltava para as redes do Beira-Rio.

Mas um dia, em que Manuel Tinoco tinha sido especialmente cáustico, ao ponto de lhe

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dizer: vai vestir a camisola do Beira-Mar, que era a pior coisa que se podia dizer a um beira-

riense, o Firmino não esteve com meias aquelas: saiu da baliza, amachucou o chapéu de

Manuel Tinoco, o que por muitos foi tomado quase como um sacrilégio, despiu-se todo e saiu

do campo em pelo.

Aí o meu pai chateou-se: Não corro atrás de um gajo nu.E nunca mais treinou o Beira-Rio.

Mas lá ia às cabinas sempre que lhe pediam e as coisas, como era costume, estavam a correr

para o torto. Não sei o que lhes disse naquele dia, mas aos dez minutos da segunda parte, já o

Beira-Rio tinha reduzido para dois a três. Lembro-me perfeitamente do segundo golo:

Armandinho foi marcar um corner, meu pai deu umas instruções e Almiro veio de trás e

marcou. Foi de tal modo que Manuel Tinoco se virou para o meu pai e disse-lhe: Amigo

Lourenço, este golo é seu.

Estava o jogo em ponto de rebuçado, quando apareceu Gonçalo Pena, republicano de

sangue azul, vagamente primo do meu pai e ainda um pouco mais alto do que ele. Tinha um

grande nariz curvo e o lábio inferior um pouco caído. Como o dos Braganças, dizia o meu pai.

Vinha a pedido da minha avó. Está toda a gente à tua espera, disse ele. É uma vergonha se não

vais.

Manuel Alegre, Alma

1. Classifica o narrador do texto quanto à presença e à ciência. Justifica a tua resposta com exemplos do texto.

2. Explicita a relação que o narrador tem com o seu pai.

3. Faz a caracterização do pai do narrador.

4. Explicita o significado da seguinte expressão:

a. “Estava o jogo em ponto de rebuçado” (l. 53)

5. Relê o último parágrafo. Identifica dois recursos estilísticos e comenta a sua expressividade.

6. Este pode ser considerado um texto autobiográfico. Identifica e explicita três características que o comprovem.

7. Identifica os registos de língua presentes no excerto, exemplificando-os.

8. Analisa sintaticamente as expressões sublinhadas:

a. “Por isso de nada serviram os rogos de minha avó e os ralhos de minha mãe. Nada me fazia ceder. E por nada deste mundo, muito menos por causa de um comício, eu estava disposto a perder o jogo no velho campo de São Cristóvão. Meu pai, menos por falta de coragem do que por filosofia de vida, não estava para lhes fazer frente. Mas nesse dia senti que secretamente admirava a minha resistência.”

9. Divide e classifica as orações:a. Nesse dia senti que secretamente admirava a minha resistência.b. (...) gritava para o Armandinho Alfaiate, que jogava a ponta esquerdac. Sempre que Manuel Tinoco ia para trás da baliza, a coisa dava para o torto.d. Foi de tal modo que Manuel Tinoco se virou para o meu pai(...)

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10. Indica a classe e subclasse das seguintes palavras:a. “Lembro-me perfeitamente do segundo golo: Armandinho foi marcar um

corner, meu pai deu umas instruções e Almiro veio de trás e marcou. Foi de tal

modo que Manuel Tinoco se virou para o meu pai e disse-lhe: Amigo Lourenço,

este golo é seu.”

b. “Ao menos levassem as cores da Monarquia, dizia o Manuel Tinoco, que era

republicano, fumava charuto e nunca tirava o chapéu à diplomata, nem mesmo

para dormir, diziam as más línguas de Alma.”

11. Classifica as seguintes palavras quanto ao processo de formação.

a. “guarda-redes” (l. 25)

b. “sprintava” (l. 39)

c. “corner” (l. 50)

d. “perfeitamente” (l. 49)

e. “Beira-Rio” (l. 4)