fichamento de des espaces autres

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Fichamento de Des espaces autres, de Michel Foucault Publicado em Dits et écrits, vol. IV, pp. 752-762, Paris : Gallimard, 1994. por Fabiano Lemos No fichamento a seguir, as passagens entre aspas são citações do original. Os trechos em itálico, entre colchetes, são explicações que ultrapassam um pouco o limite estrito do texto de Foucault, mas que acrescentam a ele dimensões importantes. Acrescentamos, entre parênteses, quando se mostrou necessário, o termo original das traduções que sugerimos. Embora esteja dividido em tópicos, para maior comodidade do leitor, o fichamento pode também ser lido como um texto corrido, omitindo-se as marcações.. Escrito em 1967, embora publicado apenas mais de quinze anos depois, em 1984, o texto Des espaces autres, de Michel Foucault, pode ser lido como uma tentativa de formular os princípios através dos quais pode se promover um novo questionamento acerca do espaço. Ou seja, uma nova forma de compreender o espaço em geral, que vem substituir aquelas que eram vigentes até o começo do século XIX na história do pensamento ocidental. [Quando Foucault fala de “pensamento ocidental” ele se refere tanto à reflexão filosófica e científica, quanto ao conjunto de práticas morais, religiosas e institucionais de uma determinada cultura ]. A partir dessa data, um novo modelo espacial, não mais estritamente geográfico, terá lugar no horizonte das teorias e das práticas do homem moderno. A relevância desse novo modelo, ao qual Foucault denominará heterotopia, será tão grande que mesmo as questões acerca do tempo se submeterão ao novo paradigma do espaço. Antes, porém, de definir essas heterotopias, esses espaços outros que não obedecem mais ao paradigma geográfico tradicional, Foucault ressalta a importância que a questão do espaço assumiu ao longo da história, e que tipos de tratamento ela recebeu nesse trajeto. Nesse sentido, o novo lugar

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Fichamento de Des Espaces Autres

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Page 1: Fichamento de Des Espaces Autres

Fichamento de Des espaces autres, de Michel FoucaultPublicado em Dits et écrits, vol. IV, pp. 752-762, Paris : Gallimard, 1994.

por Fabiano Lemos

No fichamento a seguir, as passagens entre aspas são citações do original. Os trechos em itálico, entre colchetes, são explicações que ultrapassam um pouco o limite estrito do texto de Foucault, mas que acrescentam a ele dimensões importantes. Acrescentamos, entre parênteses, quando se mostrou necessário, o termo original das traduções que sugerimos. Embora esteja dividido em tópicos, para maior comodidade do leitor, o fichamento pode também ser lido como um texto corrido, omitindo-se as marcações..

Escrito em 1967, embora publicado apenas mais de quinze anos depois, em 1984, o texto Des espaces autres, de Michel Foucault, pode ser lido como uma tentativa de formular os princípios através dos quais pode se promover um novo questionamento acerca do espaço. Ou seja, uma nova forma de compreender o espaço em geral, que vem substituir aquelas que eram vigentes até o começo do século XIX na história do pensamento ocidental. [Quando Foucault fala de “pensamento ocidental” ele se refere tanto à reflexão filosófica e científica, quanto ao conjunto de práticas morais, religiosas e institucionais de uma determinada cultura]. A partir dessa data, um novo modelo espacial, não mais estritamente geográfico, terá lugar no horizonte das teorias e das práticas do homem moderno. A relevância desse novo modelo, ao qual Foucault denominará heterotopia, será tão grande que mesmo as questões acerca do tempo se submeterão ao novo paradigma do espaço.

Antes, porém, de definir essas heterotopias, esses espaços outros que não obedecem mais ao paradigma geográfico tradicional, Foucault ressalta a importância que a questão do espaço assumiu ao longo da história, e que tipos de tratamento ela recebeu nesse trajeto. Nesse sentido, o novo lugar marcado pela heterotopia não é exatamente uma novidade quanto ao seu objeto, mas quanto ao modo como compreendeu esse objeto. [Toda a referência de Foucault ao espaço aqui deve ser compreendida não quanto ao lugar em si, mas ao procedimento através do qual cada cultura, em uma dada época, pôde entender o sentido geral da idéia de espaço].

Anteriormente a esse modo que surge no século XIX, existiram outros modelos de compreensão e valoração do espaço, dos quais Foucault traça, então, as características, em linhas gerais. O primeiro deles é o que encontramos ao longo da Idade Média, e que Foucault chama de espaço de localização (“espace de localization”). Nele, o princípio organizador é o da hierarquia e das oposições e comparações que ela estabelece: temos, assim, por exemplo, o lugar do sagrado e do profano, do celeste e do terrestre, do campo e da cidade. Essa organização nos fornece uma espécie de mapa, em que cada região só adquire seu valor quando comparada com outra, que lhe deve ser superior ou inferior. [Em outras palavras, todo espaço da Idade Média é um espaço definido segundo sua posição em uma escala de valores dada. É fácil perceber, com isso, que a política que reina nesses espaços é uma política vertical, teocrática ou aristocrática (não podemos esquecer que estamos na Idade Média)].

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Sucedendo esse espaço de localização, Foucault reconhece, a partir do século XVII, representado por Galileu, um novo paradigma de compreensão do espaço. Nele, a reflexão se orienta a partir da idéia de extensão (“étendue”). O espaço medieval das hierarquias e das comparações cede lugar ao espaço infinito, onde cada ponto é obtido a partir de seu valor absoluto como resultante de duas coordenadas (x, y) em um plano aberto, sem limites. [Nesse sentido, podemos afirmar que o espaço de extensão, que substitui o de localização, é, ao mesmo tempo, galileano e cartesiano].

Enfim, é como substituto desse espaço de extensão que vemos surgir, nos primeiros anos do século XIX, essa outra leitura que é a do espaço de situação (“emplacement”). [Uma tradução mais precisa do termo para o português se torna quase impossível, uma vez que Foucault já havia utilizado “localization” em um sentido que se pode mesmo contrapor a “emplacement”. A tradução desse último termo para “situação”, embora ainda incompleta, permite perceber o caráter relacional desse novo paradigma, que será considerado em seguida]. Foucault define esse espaço como sendo o resultante das “relações de vizinhança entre pontos ou elementos”. Ele pode ser compreendido como “séries, árvores, malhas treliçadas”. Nessa nova maneira de compreender o espaço, já não é possível demarcar apenas um lugar fisicamente, na medida em que se trata de um conjunto de relações, que em seu encontro, circunscreve um lugar. Essas relações podem se multiplicar dentro de um mesmo espaço físico, e assim, para cada espaço material, pode se dar um número de espaços de situação correspondente ao número de relações que se estabelece aí. Uma casa, por exemplo, é um espaço físico. Mas é também um espaço de situação definido segundo relações de utilidade (espaço para dormir, para trabalhar, para comer); ou ainda um outro espaço de situação definido segundo relações de enclausuramento (cômodos públicos, cômodos privados, cômodos de serviço). Esse exemplo nos permite observar que não se trata de um espaço efetivo, mas de uma compreensão do espaço geral, que se relaciona com o espaço físico de acordo com relações múltiplas e variáveis.

Foucault prossegue distinguindo dois tipos muito gerais de espaços de situação: as utopias e as heterotopias propriamente ditas. No primeiro caso, a situação resultante das relações estabelecidas não se aplica sobre nenhum lugar físico: a utopia é o lugar que se apresenta apenas idealizado, que serve de modelo para a sociedade. [Foucault não se deterá nessas utopias. Podemos compreendê-las melhor se imaginarmos o caso dos espaços definidos pelas utopias religiosas (o reino de Deus) ou políticas (a cidade ideal platônica, o socialismo utópico)].

Já as heterotopias se aplicam a lugares físicos, mas não correspondem totalmente a eles. Para ilustrar como elas funcionam, Foucault utiliza o exemplo da imagem no espelho: ela não existe enquanto dado físico no espaço, mas se aplica a uma realidade que se situa no espaço. [E, diante do espelho, eu posso estabelecer várias relações com meu corpo, meu espaço real, através dessa imagem, modificando esse espaço. O caso de uma relação neurótica com essa imagem pode resultar em uma destruição desse espaço-corpo, por exemplo, através da bulimia].

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É a essas heterotopias que Foucault se deterá em sua análise. sua proposta é de determinar quais princípios podem ser utilizados caso pretendamos construir um estudo desses espaços sem lugar real definitivo que começou a ocupar as preocupações da modernidade há dois séculos. Esses espaços são, em primeiro lugar, absolutamente relacionais, por isso, os princípios para identificá-los já não podem ser os mesmos de Galileu. A esse estudo Foucault dá o nome de heterotopologia, e só não o considera uma ciência pelos significados plenos de mal-entendidos e equívocos desse termo (uma palavra muito mal empregada – “trop galvaudé”). A partir daí, seis princípios orientarão o estudo das heterotopias; seis regras metodológicas que visam apreender o espaço heterotópico em sua qualidade especificamente relacional. A seqüência do texto, portanto, constitui uma descrição desses princípios ou regras.

Primeiro princípio: “Não há provavelmente sequer uma única cultura no mundo que não constitua heterotopias. É uma constante do grupo humano”. Como fenômeno geral, esses espaços de situação relacionais, entretanto, assumem formas muito distintas em cada grupo social. Foucault analisa duas grandes linhagens apenas para comprovar a abrangência desse espaço. Primeiro, entre os “primitivos”, existem espaços a que podemos chamar de “heterotopias de crise”, e que definem uma região, dentro do espaço físico de uma sociedade, reservada aos indivíduos que atravessam um período de transição em sua vida, único ou reincidente: por exemplo, espaços proibidos e permitidos às mulheres durante o período menstrual, ou aos adolescentes, ao longo do ciclo descrito pelos ritos de passagem. [É importante notar que Foucault não se refere aqui, obviamente, à maneira como os povos ditos “primitivos” compreendem o espaço, mas à maneira pela qual a modernidade, desde a perspectiva dos povos civilizados, tem interpretado essa espacialização].Essa heterotopia de crise tende a desaparecer nas sociedades modernas, embora alguns de seus vestígios ainda possam ser observados. Entretanto, o espaço da crise é substituído pelo lugar do desvio, onde um local é circunscrito a partir das relações estabelecidas entre os indivíduos que o habitam e as normas da sociedade: é o caso das prisões, dos hospícios, dos hospitais em geral. Confirma-se, portanto, esse primeiro princípio de universalidade das heterotopias, existentes tanto entre os “primitivos” quanto entre os modernos.

Segundo princípio: “Ao longo de sua história, uma sociedade pode fazer funcionar de um modo totalmente diferente uma heterotopia que existe”. Já que a heterotopia é um espaço das relações, não propriamente físico, um mesmo espaço real pode abrigar ora uma heterotopia, ora outra. O exemplo de Foucault é o do espaço físico do cemitério. Enquanto foi entendido como o lugar espiritual da passagem para a imortalidade, ele ocupava o centro da cidade como núcleo religioso da vida humana. Quando se passou a associar a ele e aos seus mortos a propagação de doenças – ou seja, quando a ciência substituiu a fé – ele foi enviado para longe desses centros e se transformou numa espécie de “outra cidade”: um deslocamento de um espaço que só ocorreu porque as relações que o atravessaram se modificaram.

Terceiro princípio: “A heterotopia tem o poder de justapor, em um único lugar real, vários espaços, várias situações (“emplacements”) que são, neles mesmos, incompatíveis”. O modelo mais imediato que permite pensar esse princípio é o do teatro: vários cenários, muitas vezes contraditórios, são capazes de ocupar um mesmo espaço, na

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medida em que as ações dramáticas exigem essa reversibilidade. Mas Foucault utiliza também o exemplo dos jardins persas, onde o mundo inteiro estaria representado de forma micrológica: assim, os mares, os lagos, os rios estariam representados no mesmo único fluxo de água desse jardim. [Como se este fosse uma síntese virtual de todos esses espaços reais possíveis].

Quarto princípio: “As heterotopias estão ligadas mais comumente a cortes (“découpages”) do tempo”. Ou seja, esses espaços relacionais estão geralmente associados a formas de compreensão do tempo que não são contínuas ou lineares, as “heterocronias”. No caso dos museus, por exemplo, a relação espacial que o sustenta é a da reunião de elementos historicamente distintos que, em seu conjunto, oferecem a possibilidade de constituição de um campo de conhecimento (biológico, sociológico, político – é, por isso, uma heterotopia da coleção). Mas esse espaço reúne, no mesmo gesto, tempos essencialmente distintos, objetos que não pertenceram a uma mesma época e que só se encontram a partir da existência desse espaço outro que é o museu. Pode ocorrer também que ao invés do acúmulo do tempo, uma heterotopia esteja associada a um imediatismo do tempo, como se todos os elementos habitantes desse espaço só pudessem ter uma existência efêmera, sem marcas reais. Foucault exemplifica com o caso das festas e dos lugares que visitamos em férias.

Quinto princípio: “As heterotopias supõem sempre um sistema de abertura e interdição que, ao mesmo tempo, as isola e as torna penetráveis”. Em outras palavras, cada heterotopia pressupõe um modo específico de entrar nela e aí permanecer ou sair. [Não sendo um espaço físico, não se pode chegar a ela simplesmente se posicionando em um ponto geográfico]. Cada heterotopia tem uma regra ou um conjunto de regras que lhes permite o acesso: para a prisão, a infração à norma; para o hospital, a doença. Foucault utiliza ainda o exemplo da estalagem de certas fazendas do Brasil, onde qualquer viajante pode passar a noite. Seu sistema de abertura pode parecer muito amplo, mas não se deve esquecer que ele impõe um limite, o da estalagem, já que o viajante não pode, sem autorização, se dirigir à casa-grande: o espaço de acesso é também um espaço-limite, de interdição.

Sexto e último princípio: Toda heterotopia tem, “em relação ao espaço restante, uma função”. Isso porque a resultante das relações que atravessam um espaço real não são apenas internas, mas também externas. [No caso já citado do cemitério, a mudança das relações intrínsecas (de lugar privilegiado para foco de doenças) reconfigurou a sua relação com o espaço que lhe cercava e o transportou para fora da cidade]. No caso dos conventos de jesuítas de algumas colônias da América do Sul, há heterotopias internas (espaço de devoção a Deus, de educação religiosa), mas há uma reorganização do espaço exterior aos muros do convento, que posiciona os prédios e ruas ao seu redor e se impõe como centro, e também reorganiza a vida cotidiana dos habitantes a partir de um tempo que ele também impõe com seus sinos e hábitos.

Após elaborar esse conjunto de seis princípios gerais, Foucault termina seu texto por uma analogia entre a heterotopia e a figura do navio: o espaço do navio é sempre móvel, e sempre se define como relação, ora com o mar infinito, ora com as regiões por

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onde passa ou onde se detém. O mesmo pode se dizer desse espaço moderno, que é uma leitura mesma do espaço, e que se apreende sempre e somente sob a forma de um vetor resultante de múltiplas relações. [O exemplo do navio é um exemplo muito caro a Foucault em seus livros. Desde a História da Loucura, de 1961, ele é utilizado. Ver sobre isso, o capítulo Stultifera navis, do livro citado, pp.3-44].