fichamento. fazer com. usos e táticas
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CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e tática. In: ________________. A invenção
do cotidiano. Vol. 1 (Artes de fazer); 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 91-110.
FAZER COM: USOS E TÁTICAS
“Nos locais de trabalho se vão difundindo as técnicas culturais que camuflam a
reprodução econômica sob ficções de surpresa (o ‘happening), de verdade (‘a
informação’) ou de comunicação (‘a animação)”. (p. 91).
“Reciprocamente, a produção cultural oferece um campo de expansão para as operações
racionais que permitem gerir o trabalho mediante a divisão (uma análise), mapeando-o;
(uma síntese) e massificando-o (generalização)”. (p. 91-92).
“Existem diferenças de outro tipo. Elas se referem às modalidades da ação, às
formalidades das práticas. Atravessam as fronteiras que permitem as classificações de
trabalho ou de lazer. [...] [...] essas táticas desviacionistas não obedecem à lei do lugar.
Não se definem por este. Sob esse ponto de vista são tão localizáveis como as
estratégias tecnocráticas (e escriturísticas) que visam criar lugares segundo modelos
abstratos”. (p. 92).
O que distingue as táticas das estratégias: “[...] são os tipos de operações nesses
espações nesses espaços que as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao
passo que as táticas só podem utilizá-los, manipular a alterar”. (p. 92).
Esquemas de operações: “Como na literatura se podem diferenciar ‘estilos’ ou
maneiras de escrever, também se podem distinguir ‘maneiras de fazer’ – de caminhar,
ler, produzir falar, etc. [...] Essas ‘maneiras de fazer’ criam um jogo mediante a
estratificação de funcionamentos diferentes e interferentes. [...] Ele os superimpõe e, por
essa combinação, cria para si um espaço de jogo para maneiras de utilizar a ordem
imposta do lugar ou da língua. Sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe
uma lei, ele aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira
daí efeitos imprevistos”. (p. 92-93).
Usos (“fazer com”) : “Trata-se precisamente de reconhecer ‘ações’ (no sentido militar
da palavra) que são a sua formalidade e sua inventividade próprias e que organizam em
surdina o trabalho de formigas do consumo”. (p. 93).
O uso ou o consumo
“Bens culturais”: “[...] parece possível considerar esses bens não apenas como dados a
partir dos quais se pode estabelecer os quadros estatísticos de sua circulação ou
constatar os funcionamentos econômicos de sua difusão, mas também como o repertório
com o qual os usuários procedem as operações próprias. Sendo assim, esses fatos não
são mais os dados de nossos cálculos mas o léxico de suas práticas”. (p. 93).
“[...] uma vez analisadas as imagens distribuídas pela TV e os tempos que se passa
assistindo aos programas televisivos, resta ainda perguntar o que é que o consumidor
fabrica com essas imagens e durante essas horas”. (p. 93).
Enigma do consumidor-esfinge: “Suas fabricações se disseminam na rede da produção
televisiva, urbanística e comercial. São tanto menos visíveis como as redes do
enquadramento se fazem mais apertadas, ágeis e totalitárias. [...] elas desaparecem nas
organizações colonizadoras cujos produtos não deixam lugar para os consumidores
marcarem sua atividade. [...] O telespectador não escreve coisa alguma na tela da TV.
Ele é afastado do produto, excluído da manifestação. Na realidade, diante de uma
produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se
uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como ‘consumo’ [...]”. (p. 94).
Característica do “consumo”: “[...] tem como característica suas astúcias, seu
esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade,
seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz
notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar
aqueles que lhe são impostos”. (p. 94).
Exemplos de Metaforização da ordem dominante:
a) Colonização espanhola: “[...] o espetacular sucesso da colonização espanhola no
seio das etnias indígenas foi alterado pelo uso que dela se fazia: mesmo subjugados,
ou até consentindo, muitas vezes esses indígenas usavam as leis, as práticas ou as
representações que lhes eram impostas pela força ou pela sedução, para outros fins
que não os dos conquistadores. Faziam com elas outras coisas: subvertiam-na a
partir de dentro – não rejeitando-as ou transformando-as (isto acontecia também),
mas por cem maneiras de emprega-las a serviço de regras, costumes ou convicções
estranhas à colonização da qual não podia fugir. Eles metaforizavam a ordem
dominante: faziam-na funcionar em outro registro. Permaneciam outros, no interior
do sistema que assimilava exteriormente. Modificavam-no sem deixá-lo.
Procedimentos de consumo conservam a sua diferença no próprio espaço organizado
pelo ocupante”. (p. 94-95).
b) Uso que os meios ‘populares’ fazem das culturas difundidas pelas ‘elites’: “[...] o
mesmo processo se encontra no uso que os meios ‘populares’ fazem das culturas
difundidas pelas ‘elites’ produtoras de linguagem. Os conhecimentos e as simbólicas
impostas são de manipulações pelos praticantes que não seus fabricantes. A
linguagem produzida por uma categoria social dispõe do poder de estender suas
conquistas às vastas regiões do seu meio ambiente, ‘desertos’ onde parece não haver
nada de tão articulado, mas se vê prisioneira nas armadilhas de sua assimilação por
um maquis de procedimentos que suas próprias vitórias fazem invisível ao ocupante.
[...] O seu privilégio [das elites produtora de linguagem] corre o risco de ser apenas
aparente, caso sirva apenas de quadro para as práticas teimosas, astuciosas,
cotidianas que o utilizam [os meios populares]”. (p. 95)
Há um distanciamento entre os produtos assimilados e o uso que se faz deles: “[...]
o consumidor não poderia ser identificado ou qualificado conforme os produtos
jornalísticos ou comerciais que assimila: entre ele (que deles se serve) e esses produtos
(indícios da ‘ordem’ que lhe é imposta), existe o distanciamento mais ou menos grande
do uso que faz deles”. (p. 95).
O autor chama a atenção para a necessidade de se analisar o uso por si mesmo :
“No caso do consumo, poder-se-ia quase afirmar que a produção fornece o capital e os
usuários, como locatários, adquirem o direito de efetuar operações sobre este fundo sem
serem os seus proprietários. ‘[A refrência] as palavras e às frases [...] não pode ser
determinada sem conhecer o contesto do uso’”. (p. 96).
O uso da língua: “[...] elas se apoiam numa problemática do enunciado. Os ‘contextos
de uso’ (contexts of use), colocando o ato na sua relação com as circunstâncias, remetem
aos traços que especificam o ato de falar (ou prática da língua) e são efeitos dele”. (p.
96).
O enunciado supõe: “1. Uma efetuação do sistema linguístico por uma falar que atua as
suas possibilidades (a língua só torna real no ato de falar); 2. uma apropriação da língua
pelo locutor que a fala; 3. a implantação de um interlocutor (real ou fictício) e por
conseguinte a constituição de um contrato relacional ou de uma alocução (a pessoa fala
a alguém); 4. a instauração de um presente pelo ato do ‘eu’ que fala, e ao mesmo tempo,
pois ‘o presente é propriamente a fonte do tempo’, a organização de uma temporalidade
(o presente cria um antes e um depois) e a existência de um ‘agora’ que é presença do
mundo”. (p. 96).
“[...] o ato de falar é um uso da língua e uma operação sobre ela”. (p. 97).
Natureza das operações: “É necessário ainda precisar a natureza desses operações por
outro prisma, não mais a título da relação que mantêm com um sistema ou uma ordem,
mas enquanto há relações de forças definindo as redes onde se inscrevem e delimitam
as circunstâncias de que podem aproveitar-se. Sendo assim, de uma referência
linguística é preciso passar a uma referência polemológica. Trata-se de combates ou de
jogos entre o forte e o fraco, e das ‘ações’ que o fraco pode empreender”. (p. 97).
Estratégias e táticas
“[Os consumidores] Traçam ‘trajetórias indeterminadas’, aparentemente desprovidas de
sentido porque não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde
se movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas
organizadoras de sistemas. [...] [...] essas ‘trilhas’ continuam heterogêneas aos sistemas
onde se infiltram e onde esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes. Elas
circulam, vão e vêm, saem da linha e derivam num relevo imposto, ondulações
espumantes de um mar que se insinua entre os rochedos e os dédalos de uma ordem
estabelecida”. (p. 97).
Limites das estatísticas: “[...] as estatísticas não conhecem quase nada. Não se trata,
com efeito, de um líquido, circulando nos dispositivos do sólido, mas de movimentos
diferentes, utilizando os elementos do terreno. Ora, as estatísticas se contentam em
classificar, calcular e tabular esses elementos – unidades ‘léxicas’, palavras
publicitárias, imagens televisivas, produtos manufaturados, lugares construídos etc. – e
o fazem com categorias e segundo taxionomias conformes às da produção industrial ou
administrativa. Por isso elas só captam o material utilizado pelas práticas de consumo –
material que é evidentemente o que é a todos imposto pela produção – e não a
formalidade própria dessas práticas, sei ‘movimento’ sub-repitício e astucioso, isto é, a
atividade de ‘fazer com’. A força desses cálculos se deve a capacidade de dividir, mas
essa capacidade analítica suprime a possibilidade de representar as trajetórias táticas
que, segundo critérios próprios, selecionam fragmentos tomados nos vastos conjuntos
da produção para a partir deles compor histórias originais. Contabiliza-se aquilo que é
usado, não as maneiras de utilizá-lo”. (p. 98)
“As práticas do consumo são os fantasmas da sociedade que leva seu nome”. (p. 98).
“Trajetória”: “Ela deveria evocar um movimento temporal no espaço, isto é, a unidade
de uma sucessão diacrônica de pontos percorridos, e não a figura que esses pontos
formam num lugar supostamente sincrônico ou anacrônico. De fato, essa
‘representação’ é insuficiente, pois precisamente a trajetória se desenha, e o tempo ou o
movimento se acha assim reduzido a uma linha totalizável pela vista, legível num
instante. [...] Por mais útil que seja essa ‘redução’, metamorfoseia a articulação
temporal dos lugares em uma sequência espacial de pontos. Um gráfico toma o lugar de
uma operação”. (p. 98).
Distinção entre estratégias e práticas: “Uma distinção entre estratégias e táticas
parece apresentar um esquema inicial mais adequado”. (p. 99).
1) Estratégia: “[...] o cálculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna
possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa,
um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia
postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de
onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os
clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e
objetos da pesquisa etc.). Como na administração de empresas, toda racionalização
‘estratégica’ procura em primeiro lugar distinguir de um ‘ambiente’ um ‘próprio’,
isto é, o lugar do poder e do querer próprios. Gesto cartesiano, quem sabe:
circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro.
Gesto da modernidade científica, política ou militar”. (p. 99).
Efeitos da instauração de um corte entre um lugar apropriado e seu outro: “1. O
‘próprio’ é uma vitória do lugar sobre o tempo. Permite capitalizar vantagens
conquistadas, preparar expansões futuras e obter assim para si uma independência em
relação à variabilidade das circunstâncias. É um domínio do tempo pela fundação de um
lugar autônomo. 2. É também um domínio dos lugares pela vista. A divisão do espaço
permite uma prática panóptica a partir de um lugar de onde a vista transforma as forças
estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar portanto e ‘incluir’ na
sua visão. Ver (longe) será igualmente prever, antecipar-se ao tempo pela leitura do
espaço. 3. Seria legítimo definir o poder do saber por essa capacidade de transformar as
incertezas da história em lugares legíveis. Mas é mais exato reconhecer nessas
‘estratégias’ um tipo específico de saber, aquele que sustenta e determina o poder de
conquistar para si um lugar próprio. [...] Noutras palavras, um poder é a preliminar
deste saber, e não apenas o seu efeito ou seu atributo. Permite e comanda as suas
características. Ele se produz aí”. (p. 99-100).
2) Tática: “[...] a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então
nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem
por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal
como o organiza a lei de uma força estranha. [...] a tática é movimento ‘dentro do
campo de visão do inimigo’, como dizia von Büllow, e no espaço por ele
controlado. [...] Ela opera golpe a golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e
delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever
saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não-lugar lhe permite sem dúvida
mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as
possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que
as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai
caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia”. Em
suma, a tática é a arte do fraco. [...] A astúcia é possível ao fraco, e muitas vezes
apenas ela, como ‘último recurso’: ‘Quanto mais fracas as forças submetidas à
direção estratégica, tanto mais esta estará sujeita à astúcia’. Traduzindo: tanto mais
se torna tática”. (p. 100-101).
“A tática é determinada pela ausência de poder assim como a estratégia é organizada
pelo postulado de um poder”. (p. 101).
1) Tática: “Em sua densidade paradoxal, esta palavra destaca a relação de forças que
está no princípio de uma criatividade intelectual tão tenaz como sutil, incansável,
mobilizada à espera de qualquer ocasião, espalhada nos terrenos da ordem
dominante, estranha às regras próprias da racionalidade e que esta impõe com base
no direito adquirido de um próprio”. (p. 102).
2) Estratégia: “[...] são portanto ações que, graças ao postulado de um lugar de poder
(a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos
totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se
distribuem. Elas combinam esses três tipos de lugar e visam dominá-los uns pelos
outros. Privilegiam portanto as relações espaciais. Ao menos procuram elas reduzir
a esse tipo as relações temporais pela atribuição analítica de um lugar próprio a cada
elemento particular e pela organização combinatória dos movimentos específicos a
unidades ou a conjunto de unidades”. (p. 102).
1) Táticas: “As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao
tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em
situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço,
às relações entre momentos sucessivos de um ‘golpe’, aos cruzamentos possíveis de
durações e ritmos heterogêneos etc. [...] A diferença entre umas e outras remete a
duas opções históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem aliás
mais a coerções que a possibilidade).” (p. 102).
“[...] as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar
oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das
ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder”.
(p. 102).
Retóricas das práticas, astúcias milenares
“Não é de se ficar espantado como [as] homologias entre as astúcias práticas e os
movimentos retóricos. Com relação às legalidades da sintaxe e do sentido ‘próprio’
distinto daquilo que não é, os bons e os mais torneios da retórica jogam no terreno que
foi assim posto de lado. [...] [...] embora (ou por serem) excluídas em princípio do
discurso científico, essas ‘maneiras de falar’ fornecem à análise ‘maneiras de fazer’ um
repertório de modelos e hipóteses. Afinal de contas, são apenas variantes, numa
semiótica geral das táticas”. (p. 103).
Pretensões do autor: “Meu trabalho não visa diretamente a constituição de uma
semiótica. Consiste em sugerir algumas maneiras de pensar as práticas cotidianas dos
consumidores, supondo, no ponto de partida, que são do tipo tático. Habitar, circular,
falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às
características das astúcias e das surpresas táticas. Gestos hábeis do ‘fraco’ na ordem
estabelecida pelo ‘forte’, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores,
mobilidades nas manobras, operações polifórmicas, achados alegres, poéticos e
bélicos”. (p. 103-104).
“Essas práticas apresentam com efeito curiosas analogias, e como imemoriais
inteligências, com as simulações, os golpes e manobras que certos peixes ou certas
plantas executam com prodigiosa virtuosidade. Os procedimentos desta arte se
encontram nas regiões remotas do ser vivo, como se vencessem não apenas as divisões
estratégicas das instituições históricas mas também o corte instaurado pela própria
instituição da consciência. Garantem continuidades formais e a permanência de uma
memória sem linguagem, do fundo dos mares até as ruas de nossas megalópoles”. (p.
104).
O esfarelamento das táticas: “[...] na escala da história contemporânea, parece também
que a generalização e a expansão da racionalidade tecnocrática criaram, entre as malhas
do sistema, um esfarelamento e um pulular dessas práticas antigamente reguladas por
unidades locais estáveis. Cada vez mais as táticas vão saindo de órbita. [...] Sendo
assim, o modelo ‘estratégico’ também muda, como que perdido no seu sucesso:
repousava na definição de um ‘próprio’ distinto do resto; torna-se o todo. Seria possível
que, aos poucos, esgotasse as suas capacidades transformadoras para constituir somente
o espaço (tão totalitário como os cosmos de tempos idos) onde se ativaria uma
sociedade de tipo cibernético, entregue aos movimentos brownianos de táticas invisíveis
e sem número. [...] miríades de movimentos quase invisíveis, operando na textura
sempre mais fina de um lugar homogêneo, contínuo e próprio a todos. Seria já o
presente ou ainda o futuro da grande cidade?”. (p. 104-105).
“[...] o estudo de algumas táticas cotidianas presentes não deve no entanto esquecer o
horizonte de onde vêm e, no outro extremo, nem o horizonte para onde poderiam ir. A
evocação desses remotos passados ou futuros permite ao menos resistir aos efeitos da
análise, fundamental mas muitas vezes exclusiva e obsessional que procura descrever as
instituições e os mecanismos da repressão. [...] Mas essa elucidação do aparelho por si
mesmo tem como inconveniente não ver as práticas que lhes são heterogêneas e que
reprime ou acredita reprimir. No entanto, elas tem alta probabilidade de sobreviver a
esse aparelho também e, em todo o caso, fazem também parte da vida social, tanto mais
resistentes quanto mais ágeis e ajustadas a mudanças perpétuas”. (p. 105).
“A paisagem imaginária de uma pesquisa sempre tem algum valor, mesmo que
destituída de rigor. Restaura aquilo que se indicava um sai sob o rótulo de ‘cultura
popular’, mas para mudar em uma infinidade móbil de táticas aquilo que se representava
como uma força matricial da história. Mantém portanto presente a estrutura de um
imaginário social de onde a questão não cessa de assumir formas diferentes e de surgir
sempre de novo. Previne também contra os efeitos de uma análise que, necessariamente,
não é capaz de apreender essas práticas a não ser nas extremidades de uma aparelho
técnico, onde alteram os distorcem os seis instrumentos. E assim o próprio estudo se faz
marginal com relação aos fenômenos estudados”. (p. 105-106).
“Daquilo que cada um faz o que é que se escreve? Entre os dois, a imagem, fantasma do
corpo experiente e mudo, preserva a diferença”. (p. 106).