finanças fora de controle por que demoramos tanto para perceber

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PRIMEIROS PASSOS |||||||||||||||||||||||||||| [ por Tabata Pitol A PEDAGOGA CRISTINA QUEIRÓS LEVOU UM susto quando se deu conta de que estava de- vendo mais de R$ 70 mil. Sem saber ao certo como as finanças chegaram a esse estágio – uma vez que não havia comprado bem de gran- de valor –, ela só percebeu o tamanho do pro- blema ao pedir R$ 10 mil ao marido para pagar contas em atraso. “Eu não sabia que estava devendo tanto. Sabia que tinha cartões de crédito e emprés- timos em atraso, mas não sabia o real valor das minhas dívidas. Achei que R$ 10 mil se- riam suficientes. Mas meu marido quis que eu mostrasse tudo o que estava devendo antes de me emprestar o dinheiro, e só quando coloquei tudo no papel percebi que estava muito mais endividada do que imaginava”. Cristina não é um caso raro entre os bra- sileiros. Muitas pessoas só percebem que as finanças saíram do controle quando já estão muito endividadas. “Infelizmente a própria bio- logia do ser humano explica por que ele demo- ra tanto para perceber que está em problemas financeiros. Preferimos fingir que não estamos vendo. Acreditamos nas contas de cabeça que nunca são exatas. Nomeamos de dissonância cognitiva o processo que nos leva a duvidar do óbvio, a negar todos os sinais de que algo não está indo bem”, conta o economista pela PUC- -SP e especialista em investimentos e méto- dos quantitativos pela FGV, Richard Rytenband. O planejador financeiro Valter Police com- pleta: “Não é uma coisa que se faz de propó- sito, mas a pessoa vai deixando passar. Parece impossível engordar 100 kg sem se dar conta, não é? Mas a televisão está cheia de progra- mas com pessoas que chegaram à obesidade mórbida sem procurar um médico, fazer uma dieta ou começar um programa de exercícios. O mesmo acontece quando o assunto é dinheiro”. BUSCANDO SOLUÇÕES No entanto, o fato de ser algo recorrente não significa que devemos considerar como nor- mal. “Temos que assumir nossas responsabi- lidades e nossos atos. Nos endividamos exces- sivamente porque descuidamos das finanças. ESPECIALISTAS EXPLICAM MECANISMOS DA MENTE QUE NOS FAZEM “IGNORAR” SINAIS DE PROBLEMAS FINANCEIROS E DÃO DICAS PARA QUE DIFICULDADES SEJAM IDENTIFICADAS MAIS FACILMENTE A culpa é nossa e só nós podemos impedir que a situação se agrave cada vez mais”, afirma Po- lice. Para ele, nada é mais eficaz do que colo- car, na ponta do lápis, os gastos e ganhos para evitar o endividamento. O consultor afirma que o ideal é, mês a mês, parar para avaliar o orçamento e se questio- nar se os gastos são maiores ou menores que os ganhos, e se está se pagando muitos juros. “Avaliando todos os meses a pessoa vai perce- ber se a situação está saindo do controle e aí é hora de parar e cortar os gastos supérfluos. Não é uma coisa gostosa de fazer, ninguém gosta de constatar que tem um problema, que não está dando conta. Mas quanto mais se dei- xa passar, pior vai ficar. Então, embora seja do- lorido, quanto antes identificar o problema, me- lhor. Os juros no Brasil são altíssimos e podem elevar uma dívida rapidamente”, revela Police. Patrícia Santos é um exemplo. Não imagina- va que os meses que ficou sem pagar o cartão de crédito, o cheque especial e o financiamento do carro popular, após ficar desempregada, re- sultariam em uma dívida de quase R$ 50 mil. “É muito difícil você descobrir que deve R$ 50 mil e não ter um patrimônio nesse valor. Não tinha ideia de que devia tanto até os avisos de cobrança começarem a chegar. Minha dívi- da era de roupas, passeios e o carro, que não custava mais do que R$ 20 mil, mas ainda não estava quitado. Não sei como cheguei a esse ponto sem perceber, mas sei que os juros aju- daram bastante. Precisei pegar empréstimos de familiares, vender o carro, e paguei primeiro o que cobrava mais juros”, conta a publicitária. HÁBITOS PERIGOSOS Além de observar e avaliar atentamente os gastos, os especialistas afirmam que há vários sinais de que uma pessoa vai enfrentar um pro- blema financeiro. “Tem gente que se engana. Já ouvi clientes dizendo que gastaram muito em determinado mês porque tiveram um aci- dente de carro. Isso acontece, claro. Mas é por isso que é fundamental ter seguro e plano de saúde. Também já ouvi a justificativa: tive um imprevisto, o IPVA (Imposto de Propriedade 46 | invista | março abril | 2012 47 2012 | março abril | invista | IMAGENS ISTOCKPHOTO

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Page 1: Finanças fora de controle   por que demoramos tanto para perceber

primeiros passos ||||||||||||||||||||||||||||[por Tabata Pitol

A PedAgogA CrisTinA Queirós levou um susto quando se deu conta de que estava de-vendo mais de R$ 70 mil. Sem saber ao certo como as finanças chegaram a esse estágio – uma vez que não havia comprado bem de gran-de valor –, ela só percebeu o tamanho do pro-blema ao pedir R$ 10 mil ao marido para pagar contas em atraso.

“Eu não sabia que estava devendo tanto. Sabia que tinha cartões de crédito e emprés-timos em atraso, mas não sabia o real valor das minhas dívidas. Achei que R$ 10 mil se-riam suficientes. Mas meu marido quis que eu mostrasse tudo o que estava devendo antes de me emprestar o dinheiro, e só quando coloquei tudo no papel percebi que estava muito mais endividada do que imaginava”.

Cristina não é um caso raro entre os bra-sileiros. Muitas pessoas só percebem que as finanças saíram do controle quando já estão muito endividadas. “Infelizmente a própria bio-logia do ser humano explica por que ele demo-ra tanto para perceber que está em problemas financeiros. Preferimos fingir que não estamos vendo. Acreditamos nas contas de cabeça que nunca são exatas. Nomeamos de dissonância cognitiva o processo que nos leva a duvidar do óbvio, a negar todos os sinais de que algo não está indo bem”, conta o economista pela PUC--SP e especialista em investimentos e méto-dos quantitativos pela FGV, Richard Rytenband.

O planejador financeiro Valter Police com-pleta: “Não é uma coisa que se faz de propó-sito, mas a pessoa vai deixando passar. Parece impossível engordar 100 kg sem se dar conta, não é? Mas a televisão está cheia de progra-mas com pessoas que chegaram à obesidade mórbida sem procurar um médico, fazer uma dieta ou começar um programa de exercícios. O mesmo acontece quando o assunto é dinheiro”.

BusCAndo soluçõesNo entanto, o fato de ser algo recorrente não

significa que devemos considerar como nor-mal. “Temos que assumir nossas responsabi-lidades e nossos atos. Nos endividamos exces-sivamente porque descuidamos das finanças.

EspEcialistas Explicam mEcanismos da mEntE quE nos fazEm “ignorar” sinais dE problEmas financEiros E dão dicas para quE dificuldadEs sEjam idEntificadas mais facilmEntE

Finanças Fora de controle: por que demoramos tanto

para perceber?

A culpa é nossa e só nós podemos impedir que a situação se agrave cada vez mais”, afirma Po-lice. Para ele, nada é mais eficaz do que colo-car, na ponta do lápis, os gastos e ganhos para evitar o endividamento.

O consultor afirma que o ideal é, mês a mês, parar para avaliar o orçamento e se questio-nar se os gastos são maiores ou menores que os ganhos, e se está se pagando muitos juros. “Avaliando todos os meses a pessoa vai perce-ber se a situação está saindo do controle e aí é hora de parar e cortar os gastos supérfluos. Não é uma coisa gostosa de fazer, ninguém gosta de constatar que tem um problema, que não está dando conta. Mas quanto mais se dei-xa passar, pior vai ficar. Então, embora seja do-lorido, quanto antes identificar o problema, me-lhor. Os juros no Brasil são altíssimos e podem elevar uma dívida rapidamente”, revela Police.

Patrícia Santos é um exemplo. Não imagina-va que os meses que ficou sem pagar o cartão de crédito, o cheque especial e o financiamento do carro popular, após ficar desempregada, re-sultariam em uma dívida de quase R$ 50 mil. “É muito difícil você descobrir que deve R$ 50 mil e não ter um patrimônio nesse valor. Não tinha ideia de que devia tanto até os avisos de cobrança começarem a chegar. Minha dívi-da era de roupas, passeios e o carro, que não custava mais do que R$ 20 mil, mas ainda não estava quitado. Não sei como cheguei a esse ponto sem perceber, mas sei que os juros aju-daram bastante. Precisei pegar empréstimos de familiares, vender o carro, e paguei primeiro o que cobrava mais juros”, conta a publicitária.

HáBiTos PerigososAlém de observar e avaliar atentamente os

gastos, os especialistas afirmam que há vários sinais de que uma pessoa vai enfrentar um pro-blema financeiro. “Tem gente que se engana. Já ouvi clientes dizendo que gastaram muito em determinado mês porque tiveram um aci-dente de carro. Isso acontece, claro. Mas é por isso que é fundamental ter seguro e plano de saúde. Também já ouvi a justificativa: tive um imprevisto, o IPVA (Imposto de Propriedade

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BensO motivo que levou Cristina a se endividar é o mesmo que leva muitas pessoas aos pro-blemas financeiros: comprar por achar que merece.

“Todo mundo, quando vai comprar algo mais caro, usa essa afirmação: eu mereço, trabalho tanto. Provavelmente mereça mesmo, mas esses agrados podem trazer uma grande dor de cabeça. A verdade é que quem não atingiu a independência financeira não deveria se dar ao luxo de ter algumas coisas. Carrão e casa de praia não são sinônimo de uma boa situ-ação financeira. Ao contrário, são bens que trazem despesas e podem comprometer mui-to o orçamento de uma pessoa. É preciso ter cuidado ao proferir a frase ‘eu mereço’”, alerta Richard Rytenband.

indePendênCiA finAnCeirAO economista explica que, para evitar defini-tivamente os problemas, o caminho é óbvio:

atingir a independência financeira (conseguir que os lucros - gerados por bens e investimen-tos - paguem todas as despesas mensais), para que a pessoa não precise de fontes exter-nas de renda, nem mesmo do salário.

“Sei que isso não é fácil, mas é possível. O problema é que a mentalidade das pessoas está errada. Por exemplo, as pessoas não têm que poupar com o objetivo de ter uma reserva para a aposentadoria, o ideal é adotar hábitos que levem a conquistar a independência finan-ceira antes, para ter rendimentos durante a aposentadoria. Mas, para conseguir isso, é preciso ter investimentos e uma sobra cons-tante. É fato: só vai se dar bem quem gasta menos do que ganha”, afirma o professor, que completa: “e também é importante saber que não é possível conquistar esse patamar ape-nas poupando. Para conseguir isso é preciso investir, já que a poupança apenas evita que o dinheiro perca seu poder de compra”, aconse-lha Rytenband.

TesTe rápidorichard rytenband elaborou um teste para você identificar se é candidato a problemas financeiros. se você identificar, em seu comportamento, pelo menos três atitudes das cinco descritas a seguir, pode enfrentar dificuldades se não alterar rapidamente sua forma de agir. Teste:

1 - gasta tudo que tem ou mais do que tem.

2 – tem qualquer forma de dívida, principalmente cartão de crédito e cheque especial.

3 - não tem o hábito de investir.

4 - não é “útil” para a sociedade: sem utilidade social, se a pessoa ficar desempre-gada, não consegue se reposicionar. sem ganhos, não há como atingir a indepen-dência financeira. É fundamental investir em si próprio para se tornar útil.

5 – não tem consciência de que o dinheiro perde valor ao longo dos anos – sem essa consciência, a pessoa deixa o dinheiro em investimentos muito conservado-res, que não trazem lucro.

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de Veículos Automotores). Ora, todos sabemos que IPVA não é imprevisto. Então, o primeiro passo é parar de se enganar e assumir que você está descontrolado”, garante Police.

Rytenband completa: “é preciso saber iden-tificar problemas e comportamentos de risco. Uma pessoa estourada no cheque especial, pagando 10% de juros ao mês, e que tem di-nheiro na poupança - mas não o usa para qui-tar essa dívida - tem dificuldades para iden-tificar comportamentos de risco. É comum a pessoa alegar que não quer mexer na pou-pança, “pois aquele é o único dinheiro que ela tem”, mas manter um investimento que rende 0,5% ao mês e continuar pagando 10% de ju-ros certamente vai levá-la à falência”.

Mas, para o planejador financeiro da Police Consultoria, o sinal mais claro de um provável problema é o aumento no nível de endivida-mento. “É fácil perceber. Uma pessoa que não pegava dinheiro no banco e que, de repente, começa a entrar no cheque especial, passa a considerar o limite do cheque parte do salá-rio. Quem vez ou outra pega um empréstimo no caixa eletrônico e depois começa a pegar um empréstimo para pagar outro vai enfrentar sérios problemas. A mesma coisa com o car-tão de crédito: primeiro a pessoa compra no cartão e paga a fatura. Depois começa a par-celar as compras no cartão, aí para de pagar

o total da fatura, em seguida começa a parce-lar itens como supermercado no cartão e, por fim, pega empréstimo para pagar o cartão. É um caminho longo com sinais que podem ser percebidos se a pessoa estiver atenta às mu-danças no seu comportamento”.

De fato, Cristina admite que faltou aten-ção aos seus gastos e comportamentos. “Foi preciso levar um grande choque para perce-ber que eu estava descontrolada. Percebi que gastava muito dinheiro com mimos para os meus filhos, sempre usando a desculpa de que eles mereciam tudo de melhor. Realmen-te merecem, mas já entendi que tenho que dar a eles o que meu orçamento permite. Mesmo tendo essa consciência é difícil controlar. Meu marido está me ajudando para que eu não co-meta os mesmos erros. Felizmente, eu pude contar com o dinheiro que ele poupava para pagar as dívidas, senão eu ainda estaria pe-gando empréstimos, fazendo novas dívidas, tanto para tentar quitar o que estava devendo, quanto para consumir ainda mais”.

Valter elogia a atitude de Cristina. “A família precisa estar perto nesse momento. Aliás, eu defendo que o orçamento deve ser feito e ava-liado por todos da família. Não adianta um se controlar e os outros gastarem demais. Man-ter os gastos dentro de um limite deve ser um compromisso de toda a família”.