física e filosofia - heisenberg
DESCRIPTION
Física e Filosofia - HeisenbergTRANSCRIPT
-
Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida por qualquer meio, seja este eletrnico, mecnico, de fotocpia, de gravao, ou outros, sem prvia autorizao, por escrito, da Editora Universidade de Braslia.
Impresso no Brasil
Editora Universidade de Braslia SCS Q.2 Bloco C n 78 2 Andar 70300-500 Braslia, DF Fax: (061)225-5611
Ttulo original: Physics and philosophy: the revolution in modern science
Copyright 1958 by Werner Heisenberg
Direitos exclusivos para esta edio, adquiridos pela EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASLIA
Reviso: Renato de Assumpo Faria
ISBN: 85 - 230 - 0094 - 1
Capa: Francisco Regis.
Superviso grfica: Antonio Batista Filho e Elmano Rodrigues Pinheiro
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Braslia
Heisenberg, Werner H473p Fsica e filosofia. Trad. de Jorge Leal Ferreira. Braslia, Editora
Universidade de Braslia, 3 ed., 1995.
158p.
Ttulo original: Physics and philosophy: the revolution m modem science
1 Fsica - filosofia I. Ttulo.
CDU-53.01
-
S U M R I O
Prefcio da Edio Alem........................................................ 7
Introduo aos Problemas da Filosofia Natural ...................... 9
1. Tradies: Antiga e Nova ...................................................... 27
2. A Histria da Teoria Quntica .............................................. 29
3. A Interpretao de Copenhague da Teoria Quntica ............. .39
4. A Teoria Quntica e as Razes da Cincia Atmica.................49
5. O Desenvolvimento das Ideias Filosficas, aps Descartes, em Comparao
com a Nova Situao da Teoria Quntica.................................61
6. A Relao entre a Teoria Quntica e outros Ramos da Cincia
Natural.......................................................................................73
7. A Teoria da Relatividade ...........................................................85
8. Crticas e Contrapropostas Interpretao de Copenhague
da Teoria Quntica.....................................................................99
9. A Teoria Quntica e a Estrutura da Matria.................................113
10. Linguagem e Realidade na Fsica Moderna .............................. 127
11. O Papel da Fsica Moderna na Evoluo Atual do Pensamento
Humano.......................................................................................141
Apndice .................................................................................. 155
-
PREFCIO DA EDIO ALEM *
Em diversas universidades da Esccia realizam-se, anualmente, as
assim chamadas Conferncias Gifford, as quais - de acordo com a vontade
testamentria de seu instituidor deveriam versar sobre a teologia natural, vale dizer, aquela disposio - que diz respeito s questes ltimas - que
resulta quando se prescinde de todo vnculo com qualquer religio ou
ideologia pessoal. Esse propsito usualmente interpretado de forma que o
tema dessas palestras no tenha por objeto problemas especficos de uma
dada cincia, mas sim seu contedo filosfico ou consequncias que tenham a
ver com nossa concepo do mundo. Por essa razo, quando o autor se disps
a proferir as Conferncias Gifford, durante o semestre de inverno de 1956-57,
na Universidade de St. Andrews, o tema que lhe foi proposto teve por objeto
precpuo revelar as relaes entre a fsica atmica e problemas filosficos
gerais. O presente volume reproduz essas prelees em uma traduo alem
da verso original, em lngua inglesa, publicada nos Estados Unidos. (...)
As conferncias no foram proferidas especialmente para fsicos
profissionais mas sim tendo em mente um crculo mais amplo de estudantes
interessados em filosofia e nas cincias naturais. O autor, todavia, tem
conscincia de que algumas partes do livro so difceis de ser compreendidas
por aqueles que no trabalham em fsica. Isso praticamente inevitvel,
devido s dificuldades inerentes ao assunto, mas despendeu-se muito esforo
para descrever as correlaes mais importantes de tal maneira que elas
tambm possam ser entendidas pelo leigo. Provavelmente, a parte mais
complexa aquela que versa sobre as contrapropostas interpretao da
teoria quntica pela Escola de Copenhague. Nesse captulo a que nos
referimos, os detalhes podem ser omitidos por aqueles que no se dedicam
fsica, pois no so particularmente importantes para as concluses que
seguem. Ademais, a fim de facilitar o entendimento do texto no se procurou evitar repeties nos captulos restantes.
As consequncias a que a moderna fsica atmica deu lugar, das quais
aqui se fala, alteraram em muitos lugares deste planeta a viso do mundo
* Physik und Philosophie (Ulstein Bcher, 1959).
-
FSICA E FILOSOFIA
que o sculo XIX nos legou. Elas foram uma mudana na maneira de pensar
e, portanto, interessam a um crculo maior de pessoas. A presente edio tem
a inteno de ajudar a criar as condies para essa mudana.
W. Heisenberg
-
INTRODUO AOS PROBLEMAS DA FILOSOFIA NATURAL *
F. S. Northrop
Professor de Direito e Filosofia, da Faculdade de Direito da Universidade de Yale, EUA.
H uma conscincia generalizada de que a fsica contempornea deu
lugar a uma reviso importante da concepo que o homem tem do universo e
de seu relacionamento com ele. J se disse que essa reviso atinge o que h de
mais fundamental no destino e liberdade humanas, afetando mesmo a
concepo que tem o homem acerca de sua capacidade de controlar seu
prprio destino. Em ponto algum da fsica isso to flagrante quanto no
princpio de indeterminao da mecnica quntica, descoberto pelo autor
deste livro e que, comumente, leva seu nome. Portanto, ningum mais
competente do que ele para aferir seu real significado.
Em livro anterior, intitulado Os Princpios Fsicos da Teoria
Quntica**, Heisenberg faz uma exposio da interpretao terica da mecnica quntica, do seu significado experimental e, tambm, do
instrumental matemtico dessa teoria para fsicos profissionais. No presente
livro, ele analisa a teoria quntica e outras teorias no que diz respeito a suas
implicaes filosficas e a algumas de suas possveis consequncias sociais
para o leigo. Mais especificamente, procura aqui formular e sugerir respostas
s trs seguintes perguntas: (1) Que afirmam as teorias, j verificadas
experimentalmente, da fsica contempornea? (2) Quais suas implicaes na
maneira pela qual o homem pensa sobre si mesmo em relao ao seu
universo? (3) De que maneira essa nova forma de pensar, criao do mundo
ocidental moderno, ir afetar outras partes do mundo?
A ltima destas trs questes tratada brevemente por Heisenberg no
comeo e ao fim de seu questionamento. A brevidade de suas observaes,
todavia, no dever iludir o leitor sobre a importncia de seu significado.
Como observa Heisenberg, os novos caminhos iro, queiramos ou no, alterar
e parcialmente destruir costumes e valores tradicionais. frequente, entre
dirigentes de pases da sia, da frica e do Oriente Mdio, e tambm
* Texto introdutrio da edio norte-americana (Harper & Brothers, Nova Iorque, 1962).
** N.E. The Physical Principles of the Quantum Theory (University of Chicago Press, USA,
1930; reeditado por Dover Publications, Inc., USA).
-
10 FSICA E FILOSOFIA
de seus assessores ocidentais, a crena de que a aceitao por esses pases das
tcnicas e procedimentos modernos seja meramente a de lhes propiciar uma
abertura para sua independncia poltica e, depois, meios e instrumentos
prticos de ao que a tecnologia proporciona. No entanto, tal concepo
deveras simplificada, a passar por cima de muitas outras coisas. Em primeiro
lugar, deve-se ter em conta que os equipamentos da fsica moderna derivam
de sua teoria e requerem uma compreenso dessa teoria, a fim de que possam
ser corretamente fabricados e eficientemente utilizados. Em segundo, essa
teoria, por seu lado, baseia-se em pressupostos fsicos e filosficos. Quando
compreendidos, esses pressupostos filosficos geram mentalidade e
comportamento, individual e social, bem diversos e, em alguns casos,
incompatveis com as tradies de famlia e casta, com a mentalidade tribal
vigente. Em resumo, impossvel se introduzir os instrumentos da fsica
moderna sem, cedo ou tarde, introduzir a atitude filosfica correspondente e,
medida que essa atitude cative os jovens que receberam treinamento
cientfico, ela vir afetar a tessitura moral da famlia e tribo. A fim de se evitar
conflitos emocionais desnecessrios e desmoralizao social, importante
que os jovens entendam o que esteja acontecendo. Isso significa que eles
vejam a transio por que passam como a convergncia de duas mentalidades
filosficas diversas: a de sua cultura tradicional e aquela da fsica. Da a
importncia de se entender a filosofia da fsica moderna.
H aqui lugar para umas perguntas. No a fsica de todo independente
da filosofia? No se torou eficaz a fsica moderna to- somente aps livrar-se
da filosofia? Heisenberg responde ambas as perguntas na negativa. Mas por
qu?
Newton legou a impresso de que, em sua fsica, no tinham sido feitas
suposies alm daquelas exigidas pelos dados experimentais. Depreende-se
isso da sugesto que fez que no lanara mo de hipteses e que deduzira seus
conceitos bsicos e leis to-somente dos fatos da experincia. Fosse correta
essa sua concepo da relao existente entre resultados experimentais e
teoria, jamais teria a fsica newtoniana exigido qualquer modificao, pois
nunca teria levado a resultados em desacordo com a experincia. E sendo ela
consequncia dos fatos experimentais, estaria acima de qualquer dvida e
seria to final como aqueles fatos.
Em 1885, todavia, uma experincia realizada por Michelson e Morley
veio revelar um fato que no poderia ocorrer se as suposies tericas
newtonianas encerrassem toda a verdade. Ficou, assim, evidente que a relao
entre fatos experimentais e suposies tericas bem diversa daquela que Newton levara muitos fsicos modernos a supor. Essa concluso tornou-se
irrecusvel quando, cerca de dez anos mais tarde, as experincias sobre a
radiao do corpo negro vieram exigir a adio de novos pontos de vista ao
pensamento newtoniano sobre o assunto. Expresso de maneira afirmativa, isso significa que as teorias da fsica no
-
INTRODUO 11
so uma mera descrio de fatos experimentais e nem, tampouco, algo
dedutvel de uma tal descrio; ao invs disso, como enfatizou Einstein, o
fsico s chega formulao de sua teoria por via especulativa. No mtodo
que o fsico utiliza, as inferncias que faz no caminham dos fatos teoria,
mas, sim, da teoria que assumiu aos fatos experimentais. Assim, portanto, as
teorias so propostas especulativamente e delas so deduzidas diretamente as
muitas consequncias a que do lugar, a fim de que essas possam,
indiretamente, ser confrontadas com os fatos experimentais. Em resumo,
qualquer teoria fsica faz mais suposies, fsicas e filosficas, do que os fatos
experimentais, por si mesmos, fornecem ou implicam. Por esta razo,
qualquer teoria est sujeita a ser modificada e reconstruda, quando do
advento de novas evidncias que sejam compatveis com suas suposies
bsicas, conforme ocorreu com a mecnica newtoniana aps a experincia de
Michelson e Morley.
Essas suposies, alm do mais, so de carter filosfico. Elas podem
ser ontolgicas, isto , referem-se ao objeto do conhecimento cientfico, o
qual independente do observador; ou, ento, podem elas ser epistemo-
lgicas, quer dizer, referem-se relao entre o cientista, como experimen-
tador e conhecedor, e o objeto que conhece. As teorias da relatividade, restrita
e geral, de Einstein, modificam a filosofia da fsica moderna no aspecto
ontolgico acima referido, alterando radicalmente a teoria filosfica de
espao e tempo, e a relao desses com a matria. A mecnica quntica,
principalmente o princpio de indeterminao de Heisenberg que encerra,
notabilizou-se pela mudana que trouxe epistemologia do fsico, da relao
entre o experimentador e o objeto de seu conhecimento cientfico. A tese mais
nova e importante deste livro talvez seja a afirmao feita pelo autor de que a
mecnica quntica reviveu o conceito aristotlico de potencialidade na fsica
moderna. Consequncia disso que a mecnica quntica igualmente
importante para a ontologia e a epistemologia. Nesse ponto, a filosofia da
fsica, de Heisenberg, tem um elemento em comum com a de Whitehead.
Foi devido introduo da potencialidade, no objeto que a fsica
pesquisa, conceito que no pertencia s categorias epistemolgicas dos
fsicos, que Einstein fez objeo mecnica quntica. Sua objeo, ele a
expressou dizendo que Deus no joga dados. Com isso, queria ele dizer que o jogo de dados se baseia nas leis do acaso, por acreditar Einstein que o
conceito de acaso encontra seu sentido na cincia, to-somente pelas
limitaes epistemolgicas que decorrem da finitude da mente humana, em sua relao com o objeto onicompleto do conhecimento cientfico, sendo
portanto erroneamente aplicado quando ontologicamente diz respeito ao
prprio objeto. Sendo o objeto, de per si, todo completo e, nesse sentido,
onisciente maneira de Deus, o conceito de chance ou probabilidade no adequado em qualquer descrio cientfica desse objeto.
-
12 FSICA E FILOSOFIA
Este livro , tambm, importante por conter a resposta de Heisenberg
crtica feita teoria quntica e, em particular, ao seu princpio de
indeterminao por Einstein e outros. A fim de se entender essa resposta,
deve-se ter em mente duas coisas: (1) A relao acima mencionada entre os
dados experimentais da fsica e os conceitos de sua teoria; (2) A diferena
entre o papel que o conceito de probabilidade desempenha em (a) mecnica newtoniana e relatividade einsteiniana, e em (b) mecnica quntica. No que diz respeito ao item (1), Einstein e Heisenberg, e as mecnicas relativstica e
quntica, esto de acordo. Eles s diferem no item (2). Mesmo assim, a razo
de Heisenberg e os fsicos qunticos, em geral, diferirem de Einstein, no que
diz respeito ao item (2), depende consideravelmente do item (1) que Einstein
admite.
O item (1) afirma que os dados experimentais da fsica no implicam na
sua conceituao terica. Disso segue que o objeto do conhecimento
cientfico jamais conhecido diretamente da observao, isto , da
experimentao, mas sim pela construo terica (ou postulao axiomtica),
especulativamente proposta, e testada indireta e experimentalmente via as
consequncias que so deduzidas daquela construo. Para se compreender o
objeto do conhecimento cientfico, devemos, portanto, partir de suposies
tericas a seu respeito.
Quando assim procedermos, por um lado no caso (a) das mecnicas de
Newton e Einstein, e, por outro, no caso (b) da mecnica quntica, descobriremos que o conceito de probabilidades, ou acaso, entra na definio
do estado de um sistema fsico e, nesse sentido, no seu objeto de estudo,
somente no caso da mecnica quntica, mas no no que diz respeito
mecnica de Newton e teoria da relatividade de Einstein. Isso, sem dvida,
o que Heisenberg quer dizer quando escreve, neste livro, que a teoria quntica
reintroduziu o conceito de potencialidade na fsica. igualmente indubitvel
que era isso o que Einstein tinha em mente ao fazer suas objees teoria
quntica.
Mais concretamente, essa diferena, que existe entre a mecnica
quntica e as teorias fsicas que a precederam, pode ser assim expressa: nas
teorias de Newton e de Einstein, o estado de qualquer sistema fsico isolado,
em um dado instante de tempo, fica precisa e completamente especificado
pelo conhecimento, empiricamente adquirido, dos valores que correspondem
posio e ao momento linear de cada uma das partes, desse sistema, naquele
instante de tempo; valores probabilsticos nelas no tm lugar. Em mecnica
quntica, a interpretao de uma observao experimental, de um sistema fsico, algo um tanto complicado. A observao poder consistir de uma
nica leitura, cuja preciso ter que ser avaliada, ou ento ela poder consistir
de um conjunto complicado de dados, como no caso de uma fotografia de
gotculas dgua em uma cmara de Wilson; qualquer que seja o caso, o resultado s poder ser expresso em termos de uma distribuio de
probabilidades que diga respeito, por exemplo,
-
INTRODUO 13
posio e ao momento linear das partculas do sistema. A teoria ento poder
prever a distribuio de probabilidades para tempos futuros. A teoria,
todavia, no poder ser experimentalmente verificada, em qualquer desses
instantes futuros, meramente com base no resultado experimental segundo o
qual os valores das posies, ou dos momentos lineares, estejam dentro dos
limites preditos, em uma particular observao. A mesma experincia, com
as mesmas condies iniciais, dever ser repetida um grande nmero de
vezes, e os valores das posies e momentos lineares, que podero diferir de
uma observao a outra, devem se distribuir de maneira a reproduzir a
distribuio de probabilidades predita. Em resumo, a diferena crucial, entre
a mecnica quntica e as mecnicas de Einstein e de Newton, reside na
maneira de especificar o estado de um sistema fsico em qualquer instante de
tempo; e essa diferena est no fato de que a mecnica quntica introduz o
conceito de probabilidade em sua definio de estado, o que no o caso das
mecnicas de Newton e de Einstein.
Isso no significa que, na mecnica de Newton ou na de Einstein, no
haja lugar para o conceito de probabilidade. Todavia, nesses dois casos, esse
conceito se restringe teoria dos erros, por meio da qual a preciso do Sim e
do No, isto , verificao ou no-confirmao da predio da teoria,
avaliada. Portanto, o conceito de probabilidade restringiu-se relao
epistemolgica do cientista na verificao do que ele conhece, estando,
todavia, ausente na formulao terica desse conhecimento. Assim, o dizer
de Einstein de que Deus no joga dados se cumpre em suas duas teorias da relatividade e na mecnica newtoniana.
Cabe aqui a pergunta: existe alguma maneira de se decidir entre o
ponto de vista de Einstein e o de Heisenberg e dos outros fsicos qunticos?
Esta pergunta foi objeto de muitas respostas. Alguns fsicos e filsofos,
realando o papel das definies operacionais, argumentaram que, como
todas as teorias fsicas, as clssicas inclusive, so acompanhadas de erros e
incertezas humanas, no h o que decidir entre Einstein e os fsicos qunticos.
Essa posio, todavia, (a) no leva em conta a presena, no mtodo cientfico, de definies operacionais axiomaticamente construdas, definies tericas
constitutivas assim como a teoria dos erros, e (b) ela tambm supe que o conceito de probabilidade e mesmo o conceito mais complexo de relao de
incerteza s comparea na mecnica quntica no sentido de uma definio
operacional. Heisenberg mostra neste livro que essa ltima suposio falsa.
Outros cientistas e filsofos, que adotaram uma atitude diametral- mente oposta, argumentam que s o fato de haver incerteza na predio de
certos fenmenos no bastante para se sustentar a tese de que esses
fenmenos no sejam passveis de uma determinao completa. Esse
argumento combina o problema esttico de definir o estado de um sistema
mecnico, em dado instante de tempo, com o problema dinmico, ou causal,
de predizer mudanas no estado do sistema, no correr do tempo.
-
14 FSICA E FILOSOFIA
Mas o conceito de probabilidade s comparece, em teoria quntica, no
aspecto esttico dessa teoria, isto , em sua definio do estado do sistema.
Ser de bom alvitre para o leitor guardar a diferena entre esses dois aspectos,
a saber, a definio terica, esttica, de estado, e o aspecto dinmico, ou
causal, da mudana do estado, no passar do tempo. No que diz respeito ao
primeiro desses aspectos, os conceitos de probabilidade e de sua
companheira, a incerteza, comparecem teoricamente e em princpio; eles no
se referem meramente s incertezas e erros de natureza operacional e
epistemolgica, frutos da finitude e imprecises do pensamento e conduta
humanas, que pertencem a qualquer teoria fsica e a suas experimentaes.
Mas por que, pode-se perguntar, deveria o conceito de probabilidade
ser introduzido, em princpio, na definio terica de estado, em qualquer instante esttico t1? E, ao fazerem tal construo terica, por postulao axiomtica, no estariam Heisenberg e outros fsicos qunticos cometendo
uma petio de princpio no que diz respeito questo que se levantou entre
eles e Einstein? Este livro deixa claro que a resposta a essas perguntas a
seguinte: a justificao para esse procedimento, em mecnica quntica,
justamente a tese (1), acima mencionada, que o prprio Einstein tambm
aceitou.
A tese (1) afirma que conhecemos o objeto do conhecimento cientfico
somente por meios especulativos de construo axiomtica terica, ou
postulao; portanto, falsa a sugesto feita por Newton de que o fsico possa
inferir os conceitos tericos dos dados experimentais. Em consequncia, no
existe em nenhum sentido, a priori ou emprico, base para se afirmar que o objeto do conhecimento cientfico ou, mais especificamente, o estado de um
sistema mecnico, em um dado instante t1, deva ser definido de uma certa maneira. O nico critrio, a respeito, decorre da seguinte pergunta: qual o
conjunto de suposies tericas, referentes ao objeto da mecnica, cujas
consequncias sejam confirmadas pelos dados experimentais?
Agora, quando definimos, teoricamente e em princpio, o estado de um
sistema fsico, para fenmenos subatmicos, somente em termos de nmeros
associados posio e momento linear, como gostaria Einstein que
fizssemos, e deduzimos as consequncias tericas no caso da radiao do
corpo negro, ocorre que essa suposio terica - que diz respeito definio
do estado de um sistema fsico e ao objeto da fsica atmica - se revela em
desacordo com a evidncia experimental. Os fatos experimentais
simplesmente no so o que a teoria prev. Todavia, quando se modifica a
teoria tradicional pela introduo da constante de Planck e a incluso, em princpio, de um segundo conjunto de valores associados s probabilidades
de se encontrar certos nmeros para as posies e momentos lineares, do qual
segue o princpio de incerteza, ento os dados experimentais confirmam os
novos conceitos e princpios. Em suma, a situao em mecnica
-
1 5 . 1 5
INTRODUO
quntica, no que diz respeito s experincias sobre a radiao do corpo negro,
idntica quela com que Einstein se defrontou, face experincia de
MichelsonMorley. Em ambos os casos, foi somente pela introduo de nova suposio terica, em princpio, que a teoria fsica pde se reconciliar com os
fatos experimentais. Portanto, afirmar que, a despeito da mecnica quntica,
posies e momentos lineares (de partculas subatmicas) estejam, na
realidade, precisamente localizados no espao e tempo, e, assim, determinados por um par de valores somente, o que corresponde a uma
descrio completa e causalmente determinista, como queriam Einstein e
filsofos da cincia a que nos referimos, significa professar uma teoria, sobre o
objeto do conhecimento fsico, cujas experincias sobre a radiao do corpo
negro revelaram ser falsa, isso no sentido de que resultados deduzidos dessa
teoria no foram confirmados experimentalmente.
No se deve, claro, da concluir que no se possa descobrir uma nova
teoria, essa compatvel com os fatos experimentais acima mencionados, na
qual o conceito de probabilidade no comparea, em princpio, em sua
definio de estado. O professor Norbert Wiener, por exemplo, acredita ter
pistas a indicar a direo que uma tal teoria deveria seguir. Essa teoria, todavia,
teria que rejeitar uma definio de estado no espao-tempo quadridimensional
da relatividade restrita einsteiniana e seria, portanto, incompatvel com a tese
de Einstein por outros motivos. A possibilidade mencionada no deve,
certamente, ser excluda. Mesmo assim, at que uma tal teoria alternativa seja
apresentada, qualquer um que no possua fonte alguma de informao, a priori
ou pessoal, sobre qual deva ser o objeto do conhecimento cientfico no ter
outra alternativa a no ser aceitar a definio de estado proposta pela teoria
quntica e concordar, com o autor deste livro, que aquela definio restaura o
conceito de potencialidade ao objeto do conhecimento cientfico moderno. As
experincias sobre a radiao do corpo negro requerem que se conclua que
Deus joga seu dado.
O que dizer da situao da causalidade e determinismo em mecnica
quntica? Provavelmente, o interesse do leigo e do humanista por este livro
resida em grande parte na resposta que ele propicia.
Para bem entender a resposta, o leitor dever dar uma ateno especial
descrio que faz Heisenberg da (a) definio de estado, j mencionada, que
utiliza o conceito de probabilidade, e sobre (b) a equao temporal de Schrdinger. O leitor dever tambm certificar-se - e essa de todas as tarefas
a mais difcil - de que o significado que tem das palavras causalidade e determinismo coincide com o sentido que delas tem Heisenberg ao detalhar sua resposta. Caso contrrio, o autor estar respondendo a uma pergunta
distinta daquela feita pelo leitor, o que levar este ltimo a s equivocar por
completo.
Complica-se a situao ainda mais pelo fato da fsica moderna dar, ao conceito de causalidade, dois significados distintos e cientificamente
-
16 FSICA E FILOSOFIA
precisos, um mais forte que o outro, no havendo acordo entre os fsicos sobre
qual desses dois significados se deva atribuir palavra causalidade. Assim, alguns fsicos e filsofos da cincia utilizam essa palavra em seu sentido mais
forte. H evidncia, s vezes pelo menos, de que seja essa a acepo que
Heisenberg emprega neste livro. Outros fsicos e filsofos, entre eles o autor
desta Introduo, usam a palavra causalidade em seu sentido mais fraco e a palavra determinismo em seu significado mais forte. Quando a primeira das interpretaes mencionadas escolhida, os conceitos de causalidade e
determinismo tornam-se sinnimos. Quando, porm, se adota a segunda
interpretao, todo sistema determinista causal mas nem todo sistema causal
determinista.
Muita confuso ocorreu em discusses havidas sobre o assunto pois,
com grande frequncia, nem a pessoa que fazia a pergunta a respeito nem,
tampouco, o fsico que a respondia tinham o cuidado de especificar, na
pergunta ou na resposta, se usavam a palavra causalidade em sua acepo mais fraca ou naquela mais forte da fsica moderna. Se algum perguntar:
mantm-se a causalidade em mecnica quntica? sem, todavia, especificar se se trata de causalidade em seu sentido mais forte ou no mais fraco poder
obter respostas aparentemente contraditrias de fsicos igualmente
competentes. Um fsico, usando a palavra causalidade em seu significado mais forte, daria corretamente resposta negativa. Um outro, interpretando a
mesma palavra em seu sentido mais fraco, responderia afirmativamente, com
igual correo. natural que essa dicotomia tenha dado lugar impresso de
que a mecnica quntica no seja especfica sobre a resposta pergunta
acima. Essa impresso, todavia, no correta. A resposta da mecnica
quntica torna-se inequvoca no momento em que libertem pergunta e
resposta dessa ambiguidade latente, pela especificao pura e simples de qual
seja o sentido atribudo palavra causalidade.
importante, portanto, distinguir claramente os diferentes sentidos
possveis associados quela palavra. Comecemos pelo uso comum que o leigo
faz da palavra causa para chegarmos finalmente aos significados mais precisos da fsica moderna e passando, tambm, nessa caminhada, pela sua
acepo da fsica aristotlica. Podemos dizer: a pedra bateu na janela e assim causou a quebra da vidraa. Neste uso da palavra causalidade, ela considerada como uma relao entre objetos, isto , entre a pedra e a vidraa.
O cientista, porm, exprime o mesmo fato de maneira diferente. Ele descreve
esses acontecimentos em termos do estado da pedra e vidraa, no instante inicial t 1, quando pedra e vidraa estavam separados um do outro e do estado
desse sistema de dois objetos, em um instante ulterior t2, quando os dois
acabaram por colidir. Assim, portanto, enquanto o leigo tende a pensar na
causalidade como uma relao entre objetos, o cientista a encara como uma
relao entre estados diversos
-
INTRODUO 17
do mesmo objeto ou de um sistema de objetos, em diferentes instantes de
tempo.
Eis por que, afim de se averiguar o que diz a mecnica quntica sobre o
conceito de causalidade, preciso atentar para duas coisas: (1) a funo de
estado, que define o estado do sistema fsico, em qualquer instante
especificado, t1; (2) a equao temporal de Schrdinger, que relaciona o
estado de um sistema fsico, no instante t 1, ao seu outro estado em um tempo ulterior, t2. O que Heisenberg escreve sobre esses dois itens deve, portanto, ser lido meticulosamente.
Para bem compreender o que tem a mecnica quntica a dizer sobre a
relao entre os estados de um dado objeto fsico ou de um sistema de objetos
fsicos, em diferentes instantes de tempo, ser til que consideremos as
possveis propriedades que essa relao possa exibir. O caso mais fraco
possvel seria o de uma mera sucesso temporal, sem nenhuma conexo com
o que quer que seja e onde no houvesse a probabilidade, por menor que
fosse, de que o estado inicial, especificvel, tivesse por sequncia, no correr
do tempo, um estado futuro tambm especificvel. Hume, o filsofo do
sculo XVII, oferece-nos razes para crer que a relao entre estados de
fenmenos naturais imediatamente percebidos pelos sentidos seja desse tipo.
Certamente, dirigiu ele nossa ateno para o fato de que, nesse caso, no se
sente qualquer relao de conexo necessria e nem, tampouco, se sente
diretamente a probabilidade da sucesso. Tudo que a sensao nos traz, no
que diz respeito aos sucessivos estados de qualquer fenmeno, a mera
relao de sucesso temporal.
Esse um ponto de grande importncia. Ele significa que se pode
chegar a uma teoria causal - em qualquer cincia ou no senso comum das
coisas ou, mesmo, em uma teoria probabilstica - da relao entre os estados
sucessivos de qualquer objeto ou sistema, to-somente por meios
especulativos, atravs de uma teoria cientfica e filosfica, axiomaticamente
construda e formulada dedutivamente, a qual testada, no diretamente em
face aos dados sensoriais e experimentais, mas s de maneira indireta, via as
consequncias que dela se deduzem.
Uma segunda possibilidade que diz respeito ao carter da relao entre
os estados de qualquer sistema fsico, em diferentes instantes de tempo, a de
que a relao necessria, mas s se poder saber qual conexo seja essa pelo
conhecimento do estado futuro. O conhecimento do estado futuro poder ser
obtido, seja esperando que ele ocorra, seja por j ter sido observado,
anteriormente, o estado futuro, ou final, de sistemas do mesmo tipo. Quando esse o caso, a causalidade teleolgica. As mudanas do sistema, com o
correr do tempo, so determinadas pelo estado final, ou fito, do sistema. Um
exemplo o sistema fsico que se resume em uma bolota, no estado inicial t1, e em um carvalho, em um instante posterior t2. Parece, nesse caso, haver uma conexo necessria entre esses dois estados. Afinal, bolotas no se
transformam em macieiras ou elefantes.
-
18 FSICA E FILOSOFIA
Elas s se transformam em carvalhos. Todavia, dadas as propriedades desse
sistema fsico, no estado de bolota, no instante t1, cientista algum jamais deduziu os atributos do carvalho, que corresponde ao estado final do sistema,
em um instante ulterior t2. Pois bem, segundo a fsica aristotlica todas as relaes causais so teleolgicas.
Outra possibilidade que a relao entre os estados de um objeto, ou
de qualquer sistema de objetos, em diferentes instantes de tempo, seja uma
relao de conexo necessria, tal que se possa deduzir o estado futuro do
sistema, suposto isolado, do conhecimento de seu estado inicial. Em
linguagem matemtica mais tcnica, isso pressupe a existncia de uma
teoria, axiomaticamente construda e verificada indiretamente, cujos
postulados (1) propiciem uma funo de estado, cujas variveis indepen-
dentes especifiquem por completo o estado do sistema, a qualquer instante de
tempo, e (2) forneam uma equao temporal, que relacione os valores
numricos empricos dessas variveis independentes, em um instante inicial
t1 qualquer, aos seus valores numricos empricos, em qualquer instante ulterior t2, e isso de tal maneira que, introduzindo-se o conjunto de valores operacionalmente determinados, no instante t1, na equao temporal, os seus valores no instante futuro t2 possam ser obtidos por mera resoluo da
equao. Quando esse for o caso, diz-se que a relao temporal exemplifica a
causa mecnica.
Deve-se notar que essa definio de causalidade mecnica deixa em
aberto a questo de quais variveis independentes so requeridas para se
definir o estado do sistema fsico em um instante de tempo qualquer. Aqui,
surgem pelo menos duas possibilidades: (a) o conceito de probabilidade pode ser utilizado para definir o estado do sistema ou (b) ele no pode ser assim empregado. Neste ltimo caso, as variveis independentes que especificam o
estado do sistema no se referem a probabilidades e presenciamos, ento, o
tipo mais forte de causalidade mecnica. J no caso ( a ) , as variveis
independentes que definem o estado do sistema so probabilidades
associadas a propriedades, como, por exemplo, posio e momento linear; e
temos, ento, o tipo mais fraco de causalidade mecnica. Se o leitor tiver em
mente essas duas acepes de causa mecnica e prestar a devida ateno para
reconhecer de qual delas Heisenberg faz uso em diferentes passagens deste
livro, ele dever ser capaz de ter sua resposta acerca da questo sobre o status da causalidade em fsica moderna.
Que dizer sobre o determinismo? Aqui, tambm, no h um consenso
entre os fsicos e filsofos da cincia sobre em que acepo aquele termo deva ser empregado. Sua identificao com a forma a mais forte possvel de
causalidade ditada pelo senso comum. Vamos, pois, fazer uso da palavra
determinismo para denotar somente o tipo mais forte de causao mecnica. Creio, ento, que o leitor atento deste livro obter a seguinte
resposta sua pergunta: nas mecnicas newtoniana, einsteiniana e quntica, vale a causalidade mecnica ao invs da teleolgica. E por isso
-
19 INTRODUO
que a fsica quntica chamada de mecnica quntica, ao invs de teleolgica
quntica. Mas, enquanto, nas fsicas de Newton e de Einstein, a causalidade
do tipo mais forte e, portanto, ao mesmo tempo mecnica e determinista, ela
na mecnica quntica do tipo causal mais fraco e, assim, mecnica, mas no
determinista. Deste ltimo fato decorre que se, em alguma passagem deste
livro, Heisenberg usar a expresso causalidade mecnica em sua acepo mais forte, determinista, ento a resposta pergunta vale, em mecnica, a causalidade em seu sentido mais forte? ser enfaticamente No!
O leitor ter oportunidade de reconhecer que a situao mais
complicada do que essas distines introdutrias, entre os diferentes tipos de
causao, possam sugerir. Todavia, de se esperar, por termos chamado
ateno sobre essas diferentes acepes, que o leitor fique mais capacitado a
encontrar seu caminho, neste livro excepcionalmente importante, mais
facilmente do que sem aquelas consideraes.
Essas distines deveriam, tambm, bastar para permitir que se
apreenda a enorme significncia filosfica da introduo, na fsica moderna,
do tipo mais fraco de causao mecnica, o que ocorreu em mecnica
quntica. Essa significncia consistiu em reconciliar o conceito de
potencialidade objetiva e, nesse sentido, ontolgico, da fsica aristotlica,
com o conceito de causao mecnica da fsica moderna.
Seria, portanto, um erro se a nfase dada por Heisenberg, sobre a
presena na mecnica quntica de algo anlogo ao conceito aristotlico de
potencialidade, levasse o leitor a concluir que a fsica contempornea nos
tivesse conduzido de volta fsica e ontologia de Aristteles. Seria erro igual
concluir, reciprocamente, que, devido ao fato da causalidade mecnica em
sua forma mais fraca ainda valer em mecnica quntica, tudo est agora no
mesmo na fsica moderna, no que diz respeito sua causalidade e ontologia,
como ocorria antes do advento da mecnica quntica. O que ocorreu foi que,
com a teoria quntica, o homem contemporneo ultrapassou os limites do
mundo medieval e do mundo moderno, passando a uma nova fsica e a uma
nova filosofia que combinam, consistentemente, algumas das pressuposies
bsicas, de natureza causal e ontolgica, que aqueles mundos nos legaram.
bom lembrar que usamos o termo ontolgico para denotar qualquer conceito de teoria cientifica, experimentalmente verificado, que se refira ao
objeto do conhecimento cientfico, ao invs da relao meramente
epistemolgica entre o cientista, como conhecedor, e o objeto que ele
conhece. Uma tal sntese filosfica, experimentalmente verificada, da potencialidade ontolgica com a causalidade mecnica ontolgica, no sentido
mais fraco deste ltimo conceito, ocorreu quando os fsicos perceberam ser
impossvel explicar, teoricamente, o efeito Compton e, tambm, os resultados
experimentais sobre a radiao do corpo negro, a menos que estendessem o
conceito de probabilidade de seu papel meramente epistemolgico da teoria
de erros,
-
20 FSICA E FILOSOFIA
no contexto newtoniano e einsteiniano, ao especificarem quando sua teoria
ou no confirmada experimentalmente, ao seu papel ontolgico
(especificado, em princpio, nos postulados da teoria) de caracterizar o
prprio objeto do conhecimento cientfico.
, pois, de se admirar que Heisenberg tenha passado pelas experincias
subjetivas, emocionais, descritas neste livro, antes de se sujeitar
necessidade, imposta por consideraes experimentais e matemticas, de
modificar crenas filosficas e cientficas, do homem moderno e de seu
antecessor medieval, de maneira to profunda? Aqueles que se interessarem
em uma descrio, em primeira mo, do funcionamento do esprito humano
em um de seus momentos mais criadores ho de querer ler este livro, s por
esse motivo. A coragem exigida para assim se afastar do determinismo sem
qualificaes da fsica clssica moderna pode ser devidamente apreciada,
lembrando-se que um esprito to ousado e criador, como Einstein, recuou.
Ele no podia aceitar que Deus jogasse dados; e no poderia, tampouco, haver
potencialidade no objeto do conhecimento cientfico, como permite a forma
mais fraca da causalidade mecnica, em mecnica quntica.
Todavia, antes de se concluir que Deus tenha se tornado um jogador
inveterado e que a potencialidade esteja presente em todos objetos, deve-se
levar em conta certas limitaes impostas pela mecnica quntica, na
utilizao da forma mais fraca da causao mecnica. Para bem apreciar essas
limitaes, dever o leitor prestar ateno ao que dito neste livro sobre (1) o
efeito Compton, (2) a constante h de Planck e (3) o princpio de incerteza, este vinculado quela constante.
A constante h uma grandeza fsica que se refere ao quantum de ao de qualquer objeto ou sistema de objetos. Esse quantum, que estende a atomicidade da matria e eletricidade radiao luminosa, uma grandeza
muito pequena. Quando os nmeros qunticos do sistema sob observao so
pequenos, como no caso de fenmenos subatmicos, ento a incerteza
especificada pelo princpio de indeterminao de Heisenberg, para as
posies e momentos lineares das partes do sistema, torna-se significativa.
Ento, correspondentemente, toram-se tambm significativas as
probabilidades associadas s posies e momentos lineares. Quando, porm,
os nmeros qunticos do sistema so grandes, a magnitude das incertezas
especificadas pelo princpio de Heisenberg fica insignificante e as
probabilidades associadas posio e momento linear tornam-se
desprezveis. o que ocorre com os objetos macroscpicos comuns que nos
cercam. E nesse ponto que a mecnica quntica, com seu tipo basicamente mais fraco de causalidade, d lugar, como casos especiais, s mecnicas de
Newton e Einstein, com seu tipo mais forte de causalidade e determinismo.
Consequentemente, considerando-se os seres humanos meramente como objetos acessveis aos nossos sentidos, a eles se
-
INTRODUO 21
aplica o tipo mais forte de causalidade e, portanto, reina tambm o
determinismo.
Todavia, os fenmenos subatmicos so cientificamente significativos
no homem. Pelo menos, quanto a isso, a causalidade que o governa do tipo
mais fraco e ele incorpora tanto o destino mecnico quanto a potencialidade.
H razes cientficas para se crer que isso ocorra mesmo na hereditariedade.
O leitor interessado em conhecer esse tpico, alm das pginas deste livro,
deveria consultar a obra Que a Vida? * do professor Erwin Schrdinger, o fsico que d o nome equao temporal da mecnica quntica. Sem dvida
alguma, a potencialidade e a forma mais fraca da causalidade valem, tambm,
para um sem-nmero de outras caractersticas humanas, particularmente para
aqueles fenmenos neurolgicos corticais no homem, que so correlatos
epistmicos das ideias e propsitos humanos, diretamente introspectivos.
Se essa ltima possibilidade de fato ocorrer, talvez estejamos pertos da
soluo de um desconcertante problema cientfico, filosfico e, mesmo,
moral. Eis o problema: como conciliar a causao mecnica, mesmo em sua
forma mais fraca, que prevalece na mecnica quntica, com a causao
teleolgica patentemente presente nos propsitos morais, polticos e legais do
homem e na determinao causal teleolgica de seu comportamento corpreo
provocada, pelo menos em parte, por esses propsitos? Em suma, como
reconciliar a filosofia da fsica, exposta neste livro por Heisenberg, com a
cincia e a filosofia moral, poltica e legal?
Poder ser til ao leitor entender como este livro deve ser assimilado
antes que essas questes maiores possam ser corretamente compreendidas ou
efetivamente respondidas. Assim, fazemos aqui breve meno a alguns
artigos que relacionam a teoria da causao fsica relao mais ampla entre
mecanismos e teleologia, nas humanidades e cincias naturais. Os artigos
relevantes so (a) os dos professores Rosen- blueth, Wiener e Bigelow, na
revista The Philosophy of Science, janeiro de 1943; (b) os dos doutores
McCulloch e Pitts, em The Bulletin of Mathe- matical Biophysics, vol. 5, 1943, e vol. 9, 1947; e (c) o cap. XIX do livro Diferenas Ideolgicas e Ordem Mundial**, editado pelo autor desta Introduo. Se lido aps este livro, (a) mostrar como a causalidade teleolgica surge como caso particular da causalidade mecnica descrita aqui por Heisenberg. Analogamente, (b) ir propiciar uma teoria fsica, dos correlatos neurolgicos das ideias
introspectivas, expressa em termos da causalidade teleologicamente
mecnica da referncia (a), dando assim uma explicao de como as ideias podem ter um efeito causalmente
* N.E. What is Life? (Cambridge University Press, 1954; The Macmillan Company, N.Y.,
1946).
** N.E. Ideological Differences and World Order (editado por Yale University Press, USA, 1949). )
-
22 FSICA E FILOSOFIA
significativo no comportamento humano. Similarmente, (c) mostrar como
as ideias e propsitos, do homem moral, poltico e legal, esto relacionados,
atravs de (b) e (a), com a teoria da potencialidade fsica e causalidade mecnica, to exaustivamente descrita por Heisenberg nesta obra.
Resta-nos chamar ateno para o que o professor Heisenberg diz sobre
o Princpio da Complementaridade, de Bohr. Esse princpio desempenha um
papel importante na interpretao da teoria quntica feita pela Escola de Copenhague, a que pertencem Bohr e Heisenberg. Alguns estudiosos da mecnica quntica, tal como Margenau em seu livro A Natureza da Realidade Fsica*, tendem a concluir que a mecnica quntica requer
meramente a definio de estado, a sua equao temporal de Schrdinger e
seus postulados matemticos, suficientes para assegurar, como notamos
acima, que as mecnicas de Newton e Einstein decorram da mecnica
quntica como um de seus casos particulares. De acordo com essa ltima
tese, o princpio da complementaridade nasce da dificuldade de se ter sempre
em mente as duas formas, forte e fraca, da causalidade mecnica, com a
consequente atribuio da forma mais forte quelas partes da mecnica
quntica onde somente a forma mais fraca comparece. Quando isso ocorre,
h que introduzir o princpio da complementaridade a fim de evitar
contradies. Se, todavia, se evita aquela prtica precedente, o princpio da
complementaridade, mesmo se logica- mente desnecessrio, pelo menos
ainda guarda o condo de nos ajudar a evitar o perigo, notado por Margenau
** e que no escapara a Bohr, de se dar pseudo-solues a problemas fsicos e
filosficos, ao se brincar precipitada e imprecisamente com a lei da
contradio, em nome do princpio de complementaridade.
Fazendo-se uso desse princpio, as restries que tiveram de ser
impostas linguagem do senso comum da fsica atmica, nos seus aspectos
corpuscular e ondulatrio, permitiram que as duas descries se unissem.
Mas, uma vez formulado um resultado, com exatido matemtica, axio-
maticamente construda, qualquer uso ulterior daquele princpio no passa de
mera convenincia quando, ao se deixar de lado as suposies matemticas,
essenciais e exatas, da mecnica quntica, nos viciamos na linguagem e
imagens, do senso comum, de ondas e partculas.
Mostrou-se necessrio partirmos para as diferentes interpretaes do
princpio da causalidade, a fim de capacitar o leitor a formar um juzo mais
abalizado a respeito do que diz Heisenberg sobre os conceitos, cartesiano e
do senso comum, de substncias materiais e mentais. Isso se deve ao fato de que sua concluso, sobre Descartes, resulta da generalizao, feita pelo autor
* N.E. The Nature of Physical Reality (McGraw Hill Book Co., Inc., N. Y., 1950, pp. 418-22.
Ver tambm Northrop, A Lgica das Cincias e das Humanidades (The Logic of the
Sciences and the Humanities, Macmillan, N.Y., 1947, cap. 11).
**N.E. Margenau. op. cit. p. 422.
-
INTRODUO 23
deste livro, do princpio da complementaridade alm da fsica: primeiro,
relao entre conceitos biolgicos, do ponto de vista do senso comum, e
conceitos matemticos e fsicos da mecnica quntica; segundo, ao problema
corpo-mente.
O resultado dessa generalizao que a teoria cartesiana das
substncias mentais se sai muito melhor, como tambm o conceito de
substncias em geral, do que em qualquer outro livro, sobre a filosofia da
fsica contempornea, que o autor destas linhas conhece.
Whitehead, por exemplo, conclui que a cincia e filosofia contempo-
rneas no tm lugar para o conceito de substncia e nem dele necessitam. E
com isso concordam monistas neutros como Bertrand Russel e lgico-
positivistas como Camap.
Podemos, de uma maneira geral, dizer que o argumento de Heisenberg
que no h razo alguma que nos obrigue a abandonar qualquer dos
conceitos, oriundos do senso comum, seja na biologia ou na fsica, aps se ter
compreendido os conceitos refinados que conduzam clarificao completa
dos problemas da fsica atmica. Como essa clarificao completa, ela
relevante somente em um domnio restrito de problemas da cincia e, assim,
no se pode evitar que usemos, em outros domnios, muitos conceitos que no
resistiriam a uma anlise crtica do tipo da que foi feita na teoria quntica.
Como o ideal da clarificao completa jamais ser atingido - e importante
que no nos enganemos a respeito - podemos nos permitir o uso de conceitos
oriundos do senso comum, desde que tenhamos bastante cuidado e cautela. A
esse respeito, a complementaridade , certamente, um conceito cientfico
muito til.
De qualquer maneira, duas coisas parecem claras e fazem com que o
que diz Heisenberg sobre esses assuntos seja da maior importncia. Em
primeiro lugar, o princpio da complementaridade e a validade atual dos
conceitos cartesianos e os que derivam do senso comum, de corpo e mente,
esto indissoluvelmente ligados: permanecem ou caem juntos. Em segundo,
pode ser que ambas essas noes no sejam mais que trampolins convenientes
que devam ser descartados agora ou futuramente. Mesmo assim, pelo menos
na teoria da mente, o trampolim ter que permanecer at que, pelo seu uso
continuado, encontremos uma teoria linguisticamente mais exata e
empiricamente mais satisfatria que nos permita abandonar a linguagem
cartesiana. certo que existem, atualmente, teorias fragmentrias da mente
que no fazem uso da noo de substncia, mas nenhum de seus autores, a
menos que seja Whitehead, jamais mostrou como a linguagem dessas teorias
poderia ser compatibilizada com a linguagem cientfica de outros fatos do
conhecimento humano. , portanto, provvel que qualquer indivduo que
pense saber mais que Heisenberg sobre assuntos dessa importncia, seja ele
um fsico profissional, filsofo ou leitor leigo, corra o grave risco de supor que esteja de posse de uma teoria
-
24 FSICA E FILOSOFIA
cientfica que diga respeito relao entre mente e corpo, quando de fato isso
no assim.
At aqui, temos focalizado nossa ateno, com duas nicas excees,
naquilo que a cincia tem a dizer sobre o objeto do conhecimento cientfico
qua objeto; ele independe de sua relao com o cientista como conhecedor. Em suma, temos nos ocupado com sua ontologia. Essa filosofia, todavia, tem
tambm sua componente epistemolgica, esta consistindo das trs partes
seguintes: (1) a relao entre (a) os dados diretamente observados, obtidos pelo fsico em sua condio de conhecedor indutivo, em suas observaes ou
em suas experincias e (b) os postulados de sua teoria, especulativamente
propostos, indiretamente verificados e axiomaticamente construdos. Esse
ltimo item, (b), define o objeto do conhecimento cientfico qua objeto e faz,
assim, sua ontologia. A relao entre (a ) e ( b ) define um fator na epistemologia. ( 2 ) O papel desempenhado pelo conceito de probabilidade na
teoria dos erros, por meio da qual o fsico define o critrio para estimar de
quanto seus resultados experimentais se afastam, devido aos erros da
experimentao humana, das consequncias deduzidas dos postulados da
teoria e, ainda assim, ser considerados como confirmando a teoria. (3) O
efeito da experincia que est sendo feita sobre o objeto que est sendo
conhecido. O que diz Heisenberg a respeito da presena do primeiro e
segundo desses trs fatores epistemolgicos, na fsica contempornea, j foi
destacado nesta Introduo. Falta, todavia, chamar ateno do leitor sobre o
que tem a dizer o autor deste livro acerca do item (3).
Na teoria da fsica moderna que precedeu o advento da mecnica
quntica, o item (3) no desempenhou papel algum. Em consequncia, a
epistemologia da fsica de ento estava completamente especificada to-
somente pelos itens (1) e (2). Na mecnica quntica, todavia, o item (3)
tornou-se (assim como os itens (1) e (2)) assaz importante. O prprio ato de
observar altera o objeto que esteja sendo observado, quando seus nmeros
qunticos so pequenos.
Heisenberg deduz, desse ltimo fato, uma concluso deveras impor-
tante acerca da relao entre o objeto, o fsico que o observa e o resto do
universo. Para julgar essa concluso preciso atentar para alguns pontos-
chave que consideraremos a seguir. Podemos relembrar que, em algumas das
definies de causalidade mecnica j apresentadas nesta Introduo, foi
acrescentada a expresso limitativa para um sistema isolado, enquanto em outras instncias ficou ela implcita. Essa condio limitativa pode ser
satisfeita, em princpio, nas mecnicas de Newton e Einstein e, tambm, na prtica, fazendo-se observaes cada vez mais cuidadosas e novos
refinamentos nos equipamentos experimentais utilizados. A introduo do
objeto do conhecimento cientfico, em mecnica quntica, elimina, todavia,
em princpio (e no meramente na prtica, devido s imperfeies que provm da observao humana e de seus instrumentos) a
-
INTRODUO 25
possibilidade de se satisfazer a condio de que o objeto do conhecimento do
cientista seja um sistema isolado. Heisenberg mostra, tambm, que a incluso
do equipamento experimental e, mesmo, do olho do observador, no sistema
fsico - que o objeto de estudo - nada ajuda pois, se a mecnica quntica
estiver correta, os estados de todos objetos tm que ser definidos, em
princpio, recorrendo-se ao conceito de probabilidade. Em consequncia,
somente se todo o universo for includo no objeto do conhecimento cientfico,
poder-se- satisfazer a condio limitativa expressa nas palavras para um sistema isolado, mesmo na acepo mais fraca da causao mecnica. Indubitavelmente, mostra-se neste livro que a filosofia da fsica
contempornea to nova em sua epistemologia quanto em sua ontologia. De
fato, da originalidade de sua ontologia - a unificao consistente da
potencialidade e da causalidade mecnica em sua forma mais fraca - que
emana a novidade da epistemologia.
Sem dvida, uma outra coisa est bem clara. Uma anlise das teorias
especficas da fsica moderna, experimentalmente verificadas, no que diz
respeito ao que elas revelam sobre o objeto do conhecimento cientfico e de
sua relao com o conhecedor humano, exibe uma filosofia, ontolgica e
epistemolgica, muito rica e complexa, parte essencial da teoria cientfica e
de seu prprio mtodo. A fsica, portanto, no epistemolgica e
ontologicamente neutra. Negue-se qualquer um dos pressupostos
epistemolgicos da teoria fsica e no sobrar mtodo cientfico algum para
testar se verdadeiro o que a teoria afirma acerca do objeto fsico, no sentido
de sua confirmao emprica. Tente-se negar qualquer um dos pressupostos
ontolgicos e no restar contedo bastante nos postulados matemticos da
teoria fsica, axiomaticamente construdos, a permitir a deduo de sua verso
dos fatos experimentais, a qual introduzida a fim de predizer, organizar
consistentemente e explicar os resultados revelados pela experincia. Assim,
portanto, na medida em que os fsicos experimentais nos asseguram que sua
teoria da fsica contempornea seja indireta e experimentalmente verificada,
eles ipso facto nos garantem ser igualmente verificada a mui rica e complexa filosofia, ontolgica e epistemolgica, associada quela teoria.
Quando sua filosofia, empiricamente comprovada, do verdadeiro nas
cincias naturais identificada com o critrio do bom e do justo, nas
humanidades e nas cincias naturais, obtemos a tica da lei natural e a
jurisprudncia. Em outras palavras, temos aqui critrio e mtodo cognitivos
que, cientificamente, fazem sentido, para julgarmos tanto as normas verbais,
pessoais e sociais da lei positiva, assim como tambm o ethos vivente, este
corporificado nos costumes, hbitos e instituies culturais tradicionais dos
povos e culturas existentes neste mundo. O encontro dessa nova filosofia da
fsica com as respectivas filosofias do pensamento da humanidade o evento mor do mundo de hoje e de amanh. Nesse ponto, a
-
26 FSICA E FILOSOFIA
filosofia da fsica expressa neste livro e sua referncia importante s
consequncias sociais da fsica fazem seu encontro.
Os captulos deste livro foram apresentados nas Gifford Lectures da Universidade de St. Andrews, na Esccia, durante o perodo acadmico de
inverno de 1955-1956. De acordo com o desejo expresso pelo seu fundador,
as Gifford Lectures deveriam discutir livremente todas as questes relativas s concepes do homem sobre Deus e o Infinito, sua origem, natureza e
verdade, se ele pode ter essas concepes, se Deus est ou no sujeito a
limitaes e quais seriam elas e assim por diante. As conferncias proferidas por Heisenberg no procuraram alcanar problemas to imensamente gerais
e difceis como esses. Mas elas tentaram ir bem alm dos limites de qualquer
cincia particular, a penetrar no vasto domnio dos problemas humanos mais
gerais, que tm sido levantados pelo enorme desenvolvimento recente e pelas
aplicaes prticas de longo alcance da cincia natural.
-
Captulo I
TRADIES: ANTIGA E NOVA
Quando, hoje em dia *, se fala da fsica moderna, o primeiro
pensamento que ocorre diz respeito s armas nucleares. Todos sabem da
enorme influncia dessas armas na estrutura poltica do mundo de hoje, e
ningum tem dvida em admitir que a influncia da fsica sobre a situao
geral seja maior do que jamais foi. Mas ser o aspecto poltico da fsica
moderna o mais importante? Quando o mundo, em sua estrutura poltica,
tiver se ajustado s novas possibilidades tecnolgicas, que restar da
influncia da fsica moderna?
A fim de responder essas perguntas, preciso se ter em mente que cada
ferramenta traz consigo o esprito que lhe deu origem. Como toda nao e
grupo poltico tm, de alguma maneira, que se interessar pelo problema das
novas armas, independentemente da localizao e da tradio cultural desse
grupo, o esprito da fsica moderna acabar por permear a mente das pessoas,
ligando-se de diversas maneiras s velhas tradies. Qual ser, de se
perguntar, o resultado desse impacto de um dos ramos da cincia moderna
sobre poderosas e antigas tradies? Naquelas partes do mundo onde a
cincia moderna foi desenvolvida, o interesse maior dirigiu-se, por longo
tempo, para a atividade prtica, indstria e engenharia combinadas com a
anlise racional das condies externas e internas que justificassem tal
atividade. Nesses pases, no haver dificuldade maior em lidar com as novas
ideias, isso pelo fato de terem tido tempo bastante para um ajustamento, lento
e gradual, aos mtodos modernos do pensamento cientfico. Em outras partes
do mundo, confrontar-se-o essas ideias com os fundamentos religiosos e
filosficos da cultura nativa. Por ser verdade que os resultados da fsica
moderna tocam de perto em conceitos fundamentais como realidade, espao e
tempo, a confrontao poder dar lugar a mudanas inteiramente novas e,
atualmente, imprevisveis. Um aspecto caracterstico desse encontro entre a
cincia moderna e as velhas maneiras de pensar ser sua completa
internacionalizao. Nessa troca de ideias, de um lado, a velha tradio, ser
diferente em diversas partes
* N.T. Leve, o leitor, em conta que esse hoje em dia de um quarto de sculo atrs.
-
28 FSICA E FILOSOFIA
do mundo, mas por outro lado a cincia ser a mesma em qualquer lugar e o
resultado dessa troca se espalhar por toda parte onde ela estiver sendo
discutida.
por tais razes que talvez no seja uma tarefa sem importncia a
tentativa de se discutir essas ideias da fsica moderna em uma linguagem no
demasiadamente especializada, a fim de estudar suas consequncias
filosficas e compar-las com algumas das tradies mais antigas.
Talvez a melhor maneira de abordar os problemas da fsica moderna
seja atravs de uma descrio histrica do desenvolvimento da teoria
quntica. verdade que essa teoria apenas um pequeno setor da fsica
atmica e esta, tambm, por sua vez, um diminuto setor da cincia moderna.
Mesmo assim, foi na teoria quntica que ocorreram as mudanas
fundamentais no que diz respeito ao conceito de realidade e mais nessa
teoria, em sua forma final, que as novas ideias da fsica atmica esto
concentradas e cristalizadas. Por outro lado, os equipamentos experimentais,
enormes e extremamente complexos, em uso nas pesquisas em fsica nuclear,
exibem um outro aspecto deveras impressionante desse domnio da cincia
moderna. Mas, no que se refere s suas tcnicas experimentais, a fsica
nuclear representa a extenso extrema de um mtodo de pesquisa que
determinou o crescimento da cincia moderna, desde Huyghens, Volta ou
Faraday. De maneira anloga, pode-se tambm dizer que a desestimulante
complicao matemtica, de algumas partes da teoria quntica, representa a
consequncia extrema dos mtodos utilizados por Newton, Gauss e Maxwell.
Todavia, a mudana no conceito de realidade, que se manifesta na teoria
quntica, no uma simples continuao do passado; essa mudana parece
representar um novo caminho no que diz respeito estrutura da cincia
moderna. Eis por que o primeiro dos captulos que se seguiro ser devotado ao estudo do desenvolvimento histrico da teoria quntica.
-
Captulo II
A HISTRIA DA TEORIA QUNTICA
A origem da teoria quntica est ligada a um fenmeno bem conhecido
que no pertencia s partes centrais da fsica atmica. Qualquer pedao de
matria, quando aquecido, tora-se incandescente, primeiramente
avermelhado e depois esbranquiado a temperaturas mais elevadas. Sua
colorao no depende muito de sua superfcie e para um corpo negro ela
depende somente da temperatura em que se encontra. Portanto, a radiao
emitida por um corpo negro, a altas temperaturas, um objeto de interesse
para a pesquisa cientfica; trata-se de um fenmeno simples que deveria ter
uma explicao, igualmente simples, com base nas leis clssicas conhecidas
da radiao e do calor. As tentativas feitas no fim do sculo XIX por Lorde
Rayleigh e Jeans, todavia, malograram e vieram revelar srias dificuldades.
No possvel se descrever aqui a natureza dessas dificuldades em termos
simples, bastando dizer que a aplicao de leis conhecidas no levaram a
resultados satisfatrios. Quando Planck, em 1895, iniciou suas pesquisas
nesse domnio, procurou concentrar-se no tomo radiante ao invs de na
radiao por si mesma. No entanto, isso no removeu nenhuma das
dificuldades inerentes ao problema, embora tenha simplificado a
interpretao dos fatos empricos. Foi nesse tempo, durante o vero de 1900,
que Curbaum e Rubens, em Berlim, fizeram medidas muito precisas do
espectro da radiao trmica. Ao saber desses resultados, Planck tentou
reproduzi-los teoricamente por frmulas matemticas simples que parecem
plausveis do ponto de vista de sua pesquisa sobre a relao entre calor e
radiao. Um dia, Planck convidou Rubens para um ch em sua casa e
tiveram ento a oportunidade de comparar os resultados experimentais mais
recentes de Rubens com uma nova frmula sugerida por Planck. A
comparao mostrou uma concordncia completa. E essa descoberta
constituiu-se na lei de Planck da radiao trmica. Isso deu lugar a um perodo de intensa atividade terica para Planck.
Qual seria a interpretao fsica correta da nova frmula? Pelo fato de Planck
poder, com base no seu trabalho anterior, traduzir facilmente sua frmula em termos do tomo radiante (o assim chamado oscilador), ele
-
30 FSICA E FILOSOFIA
deve ter logo descoberto que sua frmula parecia revelar que tudo se passava
como se o oscilador s pudesse emitir quanta com energias discretas - um resultado to diferente de tudo que se conhecia na fsica clssica que ele
certamente deve t-lo, de incio, rejeitado. Mas, em um perodo de intenso
trabalho, no vero de 1900, finalmente convenceu-se que no havia como
escapar de sua concluso. Conta o filho de Planck que seu pai lhe falara sobre
suas novas ideias, durante longa caminhada pelo Grunewald, um bosque nos
subrbios de Berlim. Nesse passeio, ele confessou que acreditava ter feito
uma descoberta de primeira grandeza, comparvel talvez somente s
descobertas de Sir Isaac Newton. Assim, Planck deve ter, nesse tempo, compreendido que sua frmula vinha abalar os fundamentos de nossa
descrio da Natureza e que, um dia, esses fundamentos teriam que sofrer
nova formulao. Planck, um conservador em sua maneira de ver as coisas,
no gostou nada dessas consequncias, mas, mesmo assim, publicou sua
hiptese quntica em dezembro de 1900.
To nova era a ideia de que a energia radiante somente pudesse ser
emitida e absorvida em quantidades discretas que no havia como
introduzi-la na estrutura tradicional da fsica. Uma tentativa feita por Planck,
a fim de reconciliar sua nova hiptese com as leis da radiao conhecidas,
malogrou em seus pontos essenciais. Cinco anos se passaram at que o
prximo passo pudesse ser dado na nova direo.
Foi a que surgiu o jovem Albert Einstein, um gnio revolucionrio
entre os fsicos, que no se amedrontava com a ideia de se afastar dos velhos
conceitos. Havia, ento, dois problemas em que ele poderia fazer uso das
novas ideias. O primeiro era o assim chamado efeito fotoeltrico, que consistia na emisso de eltrons por metais sob ao de luz. Tinham as
experincias mostrado, especialmente as de Lenard, que a energia dos
eltrons emitidos no dependia da intensidade da luz, mas, to-somente, de
sua cor ou, mais precisamente, de sua frequncia. Esse resultado, todavia, no
podia ser entendido com base na teoria tradicional da radiao. Einstein pde
explicar tal resultado ao interpretar a hiptese de Planck quando afirma que a
luz consiste em quanta de energia que se propagam atravs do espao. Ademais, a energia de um nico quantum de luz deve, de acordo com as hipteses feitas por Planck, ser igual ao produto da frequncia da luz pela
constante de Planck.
O outro problema foi o do calor especfico * dos corpos slidos. Aqui, a teoria tradicional conduzia a valores para o calor especfico que
concordavam com as observaes feitas a altas temperaturas, discordando
todavia com as feitas a baixas temperaturas. E, mais uma vez, pde Einstein
mostrar que se podia entender o fenmeno aplicando-se a hiptese quntica
s
* N.T. Vide Apndice (p. 155): Do Efeito Fotoeltrico e da Teoria do Calor Especfico dos Slidos".
-
A HISTORIA DA TEORIA QUNTICA 31
vibraes elsticas dos tomos em corpos slidos. Esses dois resultados, o
efeito fotoeltrico e a teoria do calor especfico de slidos, marcaram um
avano de grande importncia, por terem revelado a presena do quantum de ao de Planck (nome usado pelos fsicos para a constante por ele introduzida)
em fenmenos diversos que nada tinham diretamente a ver com a radiao
trmica. Os dois resultados revelaram, tambm, o carter profundamente
revolucionrio da nova hiptese, pois o primeiro deles conduzia a uma
descrio da luz completamente diversa daquela propiciada pelo modelo
ondulatrio tradicional. A luz poderia ser interpretada como consistindo de
ondas eletromagnticas, de acordo com a teoria de Maxwell, ou ento como
sendo constituda de quanta de luz, pacotes de energia que se propagam pelo espao com velocidade assaz elevada. Mas, pergunta-se: poderia ela ser ambas
as coisas? Sabia Einstein, no h dvida, que os fenmenos bem conhecidos de
difrao e interferncia podem ser explicados somente no modelo ondulatrio.
No podia ele pr em dvida a existncia de uma contradio entre esse
modelo ondulatrio e a ideia dos quanta de luz,. como tambm no tentou remover a inconsistncia dessa nova interpretao. Ele simplesmente encarou
a contradio como algo que provavelmente seria entendido somente muito
tempo depois.
Enquanto isso, as experincias de Becquerel, Mme. Curie e Rutherford
tinham resultado em alguma clarificao da estrutura do tomo. Em 1911, as
experincias feitas por Rutherford sobre a interao dos raios alfa ao penetrar atravs da matria resultaram em seu famoso modelo atmico. Nele, o tomo
apresentado como sendo composto de um ncleo central, que est carregado
positivamente e que responsvel por quase toda a massa do tomo, e por
eltrons que circulam ao redor do ncleo, qual planetas em torno do Sol. A
ligao qumica entre tomos de elementos diferentes explicada como
resultado de uma interao entre os eltrons mais externos de tomos vizinhos;
ela nada tem a ver diretamente com o ncleo atmico. O ncleo, por sua vez,
determina o comportamento qumico pela presena e grandeza de sua carga, a
qual por sua vez fixa o nmero de eltrons em um tomo neutro. Esse modelo
do tomo no podia, a princpio, explicar a caracterstica mais importante do
tomo, a saber, sua enorme estabilidade. Sistema planetrio algum, de acordo
com as leis da mecnica de Newton, jamais retornaria sua configurao
inicial aps uma coliso com um outro desses sistemas. Mas um tomo de
carbono, por exemplo, ainda continuar a ser um tomo de carbono depois de
uma coliso ou em uma interao que o ligue quimicamente a tomos de outros elementos.
A explicao para essa inusitada estabilidade foi dada por Bohr, em
1913, aplicando a hiptese quntica de Planck. Com efeito, se o tomo pode
mudar sua energia somente por quanta com energias discretas, isso deve significar que o tomo s possa existir em estados discretos estacionrios,
aquele de energia mais baixa sendo o estado em que ele
-
32 FSICA E FILOSOFIA
normalmente se encontra. Portanto, aps qualquer tipo de interao, o tomo
retornar ao seu estado normal.
Assim, pela aplicao da teoria quntica ao modelo atmico, Bohr pde
no somente explicar a estabilidade dos tomos como tambm dar, em alguns
casos simples, uma interpretao terica dos espectros de linhas emitidas por
tomos que foram excitados por descargas eltricas ou pelo calor. Sua teoria
baseou-se em uma combinao de mecnica clssica, no que dizia respeito ao
movimento dos eltrons, e de condies qunticas, estas superimpostas ao
movimento clssico dos eltrons a fim de propiciar estados estacionrios
discretos. Uma formulao matemtica consistente dessas condies foi dada
posteriormente por Sommerfeld. Ora, Bohr estava bem ciente do fato de que
as condies qunticas vinham prejudicar a consistncia da mecnica
newtoniana. No caso mais simples, a saber, o tomo de hidrognio, pde-se
calcular pela teoria de Bohr as frequncias da luz emitida pelo tomo, e o
acordo com a experincia foi perfeito. Todavia, essas frequncias diferiam
das frequncias orbitais dos eltrons que circulam ao redor do ncleo, e de
seus harmnicos, e este fato mostrou imediatamente que a teoria ainda estava
repleta de contradies. Ela, porm, continha uma parte essencial da verdade,
pois explicava qualitativamente o comportamento qumico dos tomos e seus
espectros de linhas; e a existncia de nveis estacionrios discretos foi, por
fim, verificada nas experincias de Franck e Hertz, e de Stern e Gerlach.
A teoria de Bohr abrira uma nova linha de pesquisa. A grande
quantidade de dados experimentais, colecionados pela espectroscopia atravs
de muitas dcadas, estava agora disposio para prestar informaes sobre
as estranhas leis qunticas que governam os movimentos dos eltrons nos
tomos. E as muitas experincias da qumica podiam ser utilizadas para o
mesmo propsito em vista. Foi desse tempo em diante que os fsicos
aprenderam a fazer as perguntas corretas; e fazer a pergunta certa ,
frequentemente, mais do que a metade do caminho que conduz soluo do
problema.
Mas quais eram essas perguntas? Praticamente, todas elas tinham a ver
com as estranhas contradies que pareciam persistir entre resultados de
diferentes experincias. Afinal, como pode ser que a mesma radiao que
produz figuras de interferncia e que, portanto, deve consistir de ondas
tambm produza o efeito fotoeltrico e deva, consequentemente, consistir de
partculas em movimento? E, tambm, como pode ser que a frequncia do
eltron, em seu movimento orbital no tomo, no coincida com a frequncia da radiao emitida? Significaria isso que o movimento orbital no existe?
Ora, se a ideia de movimento orbital for errnea, ento o que sucede com os
eltrons no interior do tomo? Podemos ver os eltrons movendo-se em uma
cmara de Wilson, e eles so s vezes expelidos de um tomo; por que razo
no deveriam eles tambm se mover dentro de um tomo? verdade que os eltrons poderiam estar em repouso no estado
-
A HISTORIA DA TEORIA QUNTICA 33
normal do tomo, o estado de menor energia. H, todavia, muitos estados de
energia mais alta, onde a camada de eltrons tem momento angular. Neste
caso, no parece admissvel que os eltrons estejam em repouso. Aqui,
pode-se acrescentar um bom nmero de exemplos semelhantes. Percebia-se,
assim, repetidamente, que a tentativa de descrever os fenmenos atmicos,
dentro dos conceitos da fsica tradicional, conduzia a contradies.
No comeo da dcada de vinte, os fsicos gradualmente se acostu-
maram a lidar com esse tipo de dificuldade, e adquiriram um conhecimento,
um tanto vago, verdade, sobre onde os tropeos iriam ocorrer, e aprenderam
a evit-los. Como? Bem, eles aprenderam qual descrio de um fenmeno
atmico seria a mais conveniente para uma dada experincia. Isso, todavia,
no era bastante para prover uma viso ampla e consistente daquilo que ocorre
em um processo quntico, mas serviu para modificar a atitude dos fsicos de
tal maneira que eles, de um jeito ou de outro, acabaram por captar o esprito da
teoria quntica. Assim, mesmo algum tempo antes de se ter conseguido uma
formulao consistente da teoria quntica, sabia-se prever mais ou menos qual
seria o resultado de qualquer uma dessas experincias.
Frequentemente, discutiam-se o que algum chamou de experincias ideais. Tais experincias foram imaginadas para responder a uma questo deveras crtica sem, todavia, haver preocupao, por parte de seus autores, se
elas poderiam ou no ser realizadas praticamente. claro que era importante
que elas fossem, em princpio, realizveis, embora pudessem requerer
tcnicas extremamente complicadas. Acreditava-se que essas experincias
poderiam ser muito teis para esclarecer certos problemas. Mesmo que no
houvesse acordo entre os fsicos sobre o resultado de uma certa experincia
ideal, era frequentemente possvel encontrar-se uma experincia similar e
mais simples que pudesse ser realizada e, assim, a resposta experimental viria
contribuir de maneira essencial para maior clarificao da teoria quntica.
O fato mais estranho daqueles anos foi que os paradoxos da teoria
quntica no desapareceram durante esse processo de clarificao; pelo
contrrio, tornaram-se ainda mais marcantes e mais estimulantes. Havia, por
exemplo, o caso da experincia de Compton sobre o espalhamento de raios X.
Pelos dados de experincias anteriores sobre a interferncia de luz espalhada,
no havia dvida de que o espalhamento se dava da seguinte maneira: a onda
eletromagntica incidente fazia o eltron vibrar com a frequncia da onda; o
eltron oscilante emitia, ento, uma onda esfrica de mesma frequncia,
produzindo, assim, a luz espalhada. Compton, todavia, descobriu em 1923 que a frequncia dos raios X espalhados no coincidia com a frequncia do
raio X incidente. Essa mudana na frequncia podia ser formalmente
entendida admitindo-se que o espalhamento resultasse da coliso de um quantum de luz (no caso,
-
34 FSICA E FILOSOFIA
raios X) com um eltron. Na coliso, a energia do quantum de luz mudaria e,
visto que a sua energia seria dada pelo produto de sua frequncia pela
constante de Planck, essa frequncia teria que mudar correspondentemente.
Mas o que ocorre nessa interpretao da onda de luz? As duas experincias -
uma, sobre a interferncia da luz espalhada e, a outra, da modificao da
frequncia da luz espalhada pareciam contraditrias e sem vislumbre de qualquer possibilidade de compromisso.
Por essa poca, muitos fsicos estavam convencidos de que essas
aparentes contradies faziam parte da estrutura intrnseca da fsica atmica.
Eis por que em 1924, na Frana, de Broglie procurou estender o dualismo,
entre as descries de onda e de partcula, s partculas elementares que
constituem a matria, comeando pelo eltron. Mostrou ele que uma certa
onda de matria poderia corresponder ao eltron em movimento, da mesma maneira que uma onda de luz corresponde a um quantum de luz se propagando. Todavia, no era muito claro que tipo de associao esse
corresponder estava a sugerir. Mas a sugesto de de Broglie era que a condio quntica, na teoria de Bohr, deveria ser interpretada como uma
assero sobre as ondas materiais. Uma onda, circulando ao redor do ncleo
atmico, no pode deixar de ser, por razes geomtricas, uma onda
estacionria; e o permetro da onda tem que ser um mltiplo de seu
comprimento de onda. Dessa maneira, a ideia de de Broglie conseguiu ligar a
condio quntica, at ento elemento estranho na mecnica dos eltrons, ao
dualismo onda-partcula.
Na teoria de Bohr, a discrepncia observada entre as frequncias
calculadas dos eltrons e da radiao emitida teve que ser interpretada como
uma limitao do conceito de rbita eletrnica, conceito que j levantara
suspeitas desde o comeo. Todavia, para os estados de energia mais alta, os
eltrons mover-se-iam a uma grande distncia do ncleo da mesma maneira
como o fazem quando os vemos atravessar uma cmara de Wilson. Fazia
ento sentido falar-se em rbitas eletrnicas. Foi, assim, deveras satisfatria
a constatao de que, para as rbitas mais exteriores, as frequncias da
radiao emitida se aproximavam cada vez mais da frequncia orbital e de
seus harmnicos mais altos. Por outro lado, tambm Bohr j tinha sugerido,
em artigos anteriores, que as intensidades das linhas espectrais emitidas se
aproximavam das intensidades dos harmnicos correspondentes. Esse
princpio de correspondncia j se tinha mostrado muito til no clculo aproximado das intensidades das linhas espectrais. Dessa maneira, tinha-se a
impresso de que a teoria de Bohr dava uma descrio qualitativa, embora no quantitativa, do que ocorre no interior do tomo; e que alguma nova
caracterstica do comportamento da matria estava sendo expressa pelas
condies qunticas que, por seu lado, diziam respeito ao dualismo
onda-partcula.
A formulao matematicamente precisa da teoria quntica emergiu
finalmente como consequncia de dois diferentes desenvolvimentos. O
-
A HISTRIA DA TEORIA QUNTICA 35
primeiro deles derivou do princpio de correspondncia de Bohr. Tinha-se
aqui que abandonar o conceito de rbita eletrnica, mas mant-lo no limite
dos grandes nmeros qunticos, isto , para as grandes rbitas. Neste ltimo
caso, a radiao emitida - por intermdio de suas frequncias e intensidades -
propicia uma imagem das rbitas eletrnicas que deriva do que os
matemticos denominam de expanso de Fourier da rbita. A ideia trazia
consigo a sugesto de que se deveria expressar as leis mecnicas, no por
equaes para as posies e velocidades dos eltrons mas, sim, por equaes
para as frequncias e amplitudes da expanso de Fourier. Partindo-se , ento,
dessas novas equaes e modificando-as ligeiramente, poderamos esperar
obter relaes para as grandezas que correspondem s frequncias e
intensidades da radiao emitida, mesmo para o caso de rbitas pequenas e
para o estado fundamental (ou normal) do tomo. Esse plano pde de fato ser posto em prtica e, no vero de 1925, deu lugar ao formalismo matemtico
que foi denominado mecnica das matrizes ou, para se usar uma expresso mais geral, mecnica quntica. Assim, as equaes de movimento da mecnica clssica foram substitudas por equaes formalmente semelhantes
entre matrizes; foi uma experincia realmente estranha ver que muitos
resultados da mecnica newtoniana, como a conservao da energia e outros,
podiam ser igualmente derivados no novo esquema. Posteriormente, as
investigaes'de Bom, Jordan e Dirac mostraram que as matrizes
representativas da posio e momento do eltron no comutam. Esse ltimo
resultado revelou claramente a diferena essencial entre as mecnicas
quntica e clssica.
O outro desenvolvimento decorreu da ideia de de Broglie das ondas
materiais. Schrdinger procurou estabelecer uma equao para as ondas
estacionrias de de Broglie que circundam o ncleo atmico. No incio de
1926, conseguiu ele derivar os nveis de energia, que correspondem aos
estados estacionrios do tomo de hidrognio, como autovalores de sua
equao de ondas (que traz o seu nome), e pde apresentar uma prescrio
mais geral, que permitiu a transformao de um dado conjunto de equaes
clssicas de movimento em uma correspondente equao de ondas em um
espao tridimensional. Posteriormente, conseguiu Schrdinger demonstrar ser
seu formalismo, o da chamada mecnica ondulatria, matematicamente equivalente ao formalismo anterior da mecnica das matrizes.
Finalmente, tinha-se um formalismo matemtico consistente que
poderia ser utilizado em suas duas formulaes equivalentes, uma partindo de relaes entre matrizes e a outra de equaes de ondas. Com esse formalismo,
obtiveram-se corretamente os valores dos nveis de energia do tomo de
hidrognio; e levou menos de um ano para se mostrar o seu sucesso para o
tomo de hlio e nos casos mais complicados de tomos mais pesados. Mas
ainda resta a pergunta: em que sentido o novo formalismo descrevia a
estrutura atmica? Os paradoxos que sobrevi-
-
36 FSICA E FILOSOFIA
nham do dualismo onda-partcula no tinham sido resolvidos; permaneciam
escondidos de alguma maneira no esquema matemtico da teoria.
Um primeiro passo, e muito interessante, na direo do entendimento
real da teoria quntica foi dado por Bohr, Kramers e Slater, em 1924, que
procuraram resolver a aparente contradio do dualismo onda-partcula pela
introduo do conceito de onda de probabilidade. As ondas eletromagnticas
foram interpretadas, no como ondas reais, mas sim como ondas de probabilidade cuja intensidade determinaria, em um dado ponto do espao, a
probabilidade associada absoro (ou emisso induzida) de um quantum de luz por um tomo localizado naquele ponto. Essa ideia conduziu
concluso de que as leis da conservao de energia e momento linear no
precisam valer para um nico evento, por serem elas somente leis estatsticas
e, assim, verdadeiras quando mdias estatsticas so consideradas. Esta
concluso, todavia, no era correta, e a relao entre os aspectos ondulatrio e
de partcula complicou-se ainda mais.
Entretanto, o artigo de Bohr, Kramers e Slater revelava uma
caracterstica essencial da correta interpretao da teoria quntica. Esse
conceito por eles introduzido de onda de probabilidade era algo inteiramente
novo na fsica terica desenvolvida desde Newton. Probabilidade, em
matemtica ou na mecnica estatstica, significa uma afirmao sobre o nosso
grau de conhecimento acerca de uma situao concreta. Quando jogamos
dados, no temos como conhecer exatamente os detalhes finos do movimento
de nossas mos, que determinam a maneira como caem os dados e, portanto,
dizemos que a probabilidade de cair um certo nmero uma em seis. A onda
de probabilidade de Bohr, Kramers e Slater, todavia, significava mais do que
isso: ela correspondia a uma tendncia para alguma coisa. Tratava-se, assim,
de uma verso quantitativa do velho conceito de potncia da filosofia
aristotlica, que introduzia algo entre a ideia de evento e o evento real, um tipo
estranho de realidade fsica a mediar entre possibilidade e realidade.
Posteriormente, quando o arcabouo matemtico da teoria foi
completado, Max Bom retomou a ideia de onda de probabilidade e apresentou
uma definio clara da quantidade matemtica que deveria, no formalismo,
ser interpretada como onda de probabilidade. Essa onda no era tridi-
mensional, como as elsticas e de rdio, mas uma onda em um espao de
configurao mutidimensional e, portanto, uma quantidade matemtica um
tanto abstrata.
Todavia, mesmo nesse tempo, no vero de 1926, ainda no era claro,
em cada caso, como deveria ser utilizado o formalismo matemtico a fim de se
descrever uma dada situao experimental. Sabia-se como descrever os
estados estacionrios de um tomo, mas no se sabia como descrever um
evento muito mais simples: um eltron passando atravs de uma cmara de Wilson.
-
A HISTRIA DA TEORIA QUNTICA 37
Quando, naquele vero, Schrdinger mostrou que seu formalismo da
mecnica ondulatria era matematicamente equivalente ao da mecnica
quntica, ele tentou tambm, por algum tempo, abandonar completamente as
ideias de quanta e de saltos qunticos, e substituir os eltrons nos tomos simplesmente por suas ondas tridimensionais de matria. A inspirao que o
levou a tal empresa proveio do resultado de que os nveis de energia do
tomo de hidrognio, em sua teoria, pareciam ser simplesmente as
autofreqncias das ondas estacionrias de matria. Pareceu-lhe, portanto,
ser um engano chamar as autofreqncias de energias; elas no passavam de
frequncias. Todavia, nas discusses realizadas no outono de 1926 em
Copenhague entre Bohr e Schrdinger e o grupo de fsicos de Copenhague,
tornou-se logo aparente que tal interpretao no seria suficiente